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Imagens Religiosas em Minas Gerais Beatriz Ramos de Vasconcelos Coelho Professora Emérita – Universidade Federal de Minas Gerais Centro de Estudos da Imaginária Brasileira (Ceib) – Presidente Introdução O restaurador moderno examina todos os aspectos de uma obra antes de restau- rá-la. Esse exame envolve identificação da obra, proprietário, procedência, dimen- sões, alguns aspectos técnicos, e, especialmente, as características do estado de con- servação e as causas das deteriorações ou de alterações apresentadas. Por volta de 1990, percebi que o fato de ter a obra de arte nas mãos e saber examiná-la, era um privilégio que poucos tinham, mesmo os historiadores de arte. Considerei que era preciso aproveitar esse fato, aprofundando, de maneira sistemática, os estudos e exa- mes técnicos e científicos da obra. Escolhi, para isso, as imagens religiosas do estado de Minas Gerais, de grande importância religiosa, social, artística e cultural. Come- cei, então, no Centro de Conservação e Restauração de Bens Culturais Móveis (Ce- cor), da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais, pesquisa interdisciplinar sobre esculturas religiosas em madeira policromada. Com esse intui- to, foram pesquisadas até hoje, mais de 90 imagens devocionais do século XVIII e começo do XIX em igrejas de cidades históricas, buscando aprofundar o conheci- mento da iconografia, dos aspectos formais e estilísticos e, especialmente, dos mate- riais e técnicas utilizados pelos santeiros que nasceram, ou moraram e trabalharam em Minas Gerais nesse período. As pesquisas foram financiadas, em parte, pelo Con- selho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e pela Funda- ção de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig). A metodologia usada foi dividida em duas partes: trabalho de gabinete e traba- lho de campo. As atividades de gabinete foram: levantamento e leitura da bibliografia sobre o assunto; elaboração de banco de dados, com fichas e formulários; digitação dos dados obtidos; exames e análises complementares realizados nos diversos labo- ratórios especializados; exames de algumas imagens através de raios X; análise com- parativa entre as diversas imagens estudadas. O trabalho de campo envolveu viagens

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Imagens Religiosas em Minas Gerais

Beatriz Ramos de Vasconcelos CoelhoProfessora Emérita – Universidade Federal de Minas Gerais

Centro de Estudos da Imaginária Brasileira (Ceib) – Presidente

Introdução

O restaurador moderno examina todos os aspectos de uma obra antes de restau-rá-la. Esse exame envolve identificação da obra, proprietário, procedência, dimen-sões, alguns aspectos técnicos, e, especialmente, as características do estado de con-servação e as causas das deteriorações ou de alterações apresentadas. Por volta de 1990, percebi que o fato de ter a obra de arte nas mãos e saber examiná-la, era um privilégio que poucos tinham, mesmo os historiadores de arte. Considerei que era preciso aproveitar esse fato, aprofundando, de maneira sistemática, os estudos e exa-mes técnicos e científicos da obra. Escolhi, para isso, as imagens religiosas do estado de Minas Gerais, de grande importância religiosa, social, artística e cultural. Come-cei, então, no Centro de Conservação e Restauração de Bens Culturais Móveis (Ce-cor), da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais, pesquisa interdisciplinar sobre esculturas religiosas em madeira policromada. Com esse intui-to, foram pesquisadas até hoje, mais de 90 imagens devocionais do século XVIII e começo do XIX em igrejas de cidades históricas, buscando aprofundar o conheci-mento da iconografia, dos aspectos formais e estilísticos e, especialmente, dos mate-riais e técnicas utilizados pelos santeiros que nasceram, ou moraram e trabalharam em Minas Gerais nesse período. As pesquisas foram financiadas, em parte, pelo Con-selho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e pela Funda-ção de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig).

A metodologia usada foi dividida em duas partes: trabalho de gabinete e traba-lho de campo. As atividades de gabinete foram: levantamento e leitura da bibliografia sobre o assunto; elaboração de banco de dados, com fichas e formulários; digitação dos dados obtidos; exames e análises complementares realizados nos diversos labo-ratórios especializados; exames de algumas imagens através de raios X; análise com-parativa entre as diversas imagens estudadas. O trabalho de campo envolveu viagens

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às cidades selecionadas; exame detalhado das obras escolhidas; remoção de material para análises; documentação fotográfica, escrita, gravações e filmagens.

Nos locais, as peças eram examinadas atentamente, com observação de sua estrutura, emendas, marcas de instrumentos, cores do bolo armênio, presença de folhas metálicas e sua distribuição, camada de policromia e também motivos e técnicas usadas na ornamentação.1 Eram preenchidas as fichas previamente elabo-radas, feitos desenhos esquemáticos da estrutura da obra, decalques de algumas áreas da policromia, sendo executadas fotografias e gravações em áudio e vídeo.

Durante mais de dez anos, submetemos 90 esculturas policromadas (imagens devocionais) a essa metodologia que, aos poucos, foi se aperfeiçoando. Durante certo período da pesquisa, contamos com a participação mais próxima e muito produtiva, do especialista em conservação de bens culturais móveis e mestre em história da arte, Marcos César de Senna Hill. A partir daí, aprofundamos as análises da composição, as observações dos detalhes da anatomia do santo representado, bem como do panejamento e de suas relações com a anatomia.

Análise dos suportes

Com as devidas autorizações, amostras de madeira foram removidas e envia-das ao doutor em botânica, na área de anatomia da madeira, Pedro Luiz Braga Lisboa, do Museu Goeldi, em Belém do Pará, para identificação. Posteriormente, outras amostras foram analisadas pelos biólogos e mestres em botânica, Adriana D. C. Costa, Maria José de A. C. Miranda e Geraldo José Zenid do Laboratório de Análise e Identificação de Madeiras (Laim), do Instituto de Pesquisas Tecnológicas do Estado de São Paulo (IPT). É importante esclarecer que a amostra não pode ser demasiado pequena (um cubo de 5 mm, aproximadamente) e que deve ser remo-vida sem danificar a obra. Isso torna quase impossível a identificação da madeira no caso de imagens pequenas.

Amostras de madeira de 42 esculturas (46,6%) foram identificadas. O cedro, ou Cedrela, da família das Meliaceas, foi encontrado em 31 amostras (73,80%). Foram identificadas, entretanto, outras nove madeiras brasileiras (21,42%), espe-cialmente em imagens do início do século XVIII:

Da Matriz de Nossa Senhora do Pilar, em Ouro Preto, foram analisadas amos-tras de sete esculturas. Nas amostras das imagens de São Miguel (uma do capacete e de duas da base), São Rafael, (base) e São Domingos de Gusmão, (base), foi identifi-cado o nosso conhecido cedro. Em outras esculturas foram encontradas diversas madeiras: Nossa Senhora da Conceição, (base), louro, Cordia (da família Boraginá-

1 Esclarecemos que é difícil obter autorização para esse tipo de exame, quando o objetivo não é a restauração. Heliana Angotti informa as dificuldades até para conseguir fotografar algumas peças. SALGUEIRO. Heliana Angotti. 1983. p 21 e 28.

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cea); São Tomás de Aquino, (base) cambará, Moquinia sp. (Compositae); São João Evangelista (base e cabeça) pinho-do-paraná, Araucaria angustifolia (Araucariaceae); Nossa Senhora do Pilar, (parte interna, atrás) castanheiro, Castanea sp. (Fagaceae).

Na Capela do Padre Faria, em Ouro Preto, foram identificadas amostras das seguintes imagens: São Bento - guaperê ou cangalheiro, nome científico Lamano-nia da família das Cunoniaceae; Nossa Senhora do Bom Parto, (base e figura) - ca-nela, nome científico Ocotea, Nectandra ou Aniba sp. (Lauraceae); e Nossa Senho-ra do Rosário, carvoeiro, quaresmeira-da-estrada ou carvão-vermelho; nome científico Miconia (Metastomatacea).

Da Igreja de Santa Efigênia, também em Ouro Preto, outras amostras foram ana-lisadas, sendo identificadas duas madeiras: canela, nome científico Ocotea, Nectan-dra (Lauraceae) na escultura de Santa Bárbara (base) e marinheiro, Guarea (Meliace-ae) na imagem de Santa Efigênia, (manto, atrás) e no Santo Elesbão, (base).

Do acervo do Museu Arquidiocesano de Arte Sacra de Mariana, o cedro foi identificado em amostras de três imagens: São Bernardo de Claraval, (amostra da base e da mão); Santo Inácio de Loyola (base) e Coroação da Virgem, atribuída a Francisco Xavier de Brito, também conhecida como Nossa Senhora Rainha dos Anjos, (base). Entretanto, em outras duas foram identificadas madeiras diferentes: Santana Mestra (base) cambará, Moquinia sp. Compositae e Santo Antônio (base) jequitibá, nome científico, Cariniana (Lecythidaceae);

Nas outras imagens analisadas, que pertenciam à igreja de Nossa Senhora da Assunção, mais conhecida como a Sé de Mariana, (Nossa Senhora do Carmo, São Pedro e São Sebastião), à Matriz de Nossa Senhora da Conceição, de Catas Altas (Nossa Senhora do Rosário, São Gonçalo do Amarante, Santo Antônio e Nossa Senhora da Conceição), à Matriz de Santo Antônio, de Tiradentes (Santa Rita de Cássia, Santa Gertrudes, Nossa Senhora da Piedade, São João Nepomuceno, Santa-na Mestra e São João Batista), a madeira identificada foi, em todas, o cedro.

Nas esculturas com documentos comprobatórios da autoria de Aleijadinho - São Simão Stock e São João da Cruz, (Igreja de Nossa senhora do Carmo, de Sabará) - e em outras a ele atribuídas - Santana Mestra, (Museu do Ouro, em Sabará), Anjo tocheiro (Museu da Inconfidência, Ouro Preto), Nossa Senhora das Mercês (Ouro Preto) e Nos-sa Senhora da Piedade (Felixlândia), a madeira encontrada foi também o cedro.

Apenas em uma imagem - a pequena Nossa Senhora do Pilar, da Matriz de Nos-sa Senhora do Pilar, em Ouro Preto - foi identificada a madeira do castanho, Casta-nea (Fagaceae), que não existe no Brasil, sendo muito usada em Portugal. Acredita-mos que apenas em casos como esse é possível afirmar que se trata de uma imagem européia.2 Penso que algumas imagens consideradas portuguesas, por sua erudição, devem ter sido feitas por artífice português residente no Brasil, uma vez que a madei-ra é brasileira, e dificilmente teria sido levada para Portugal para de lá retornar como escultura. A madeira Albiza lebbeck (L.) Benth, da família das Leguminosas, cujo

2 FERNANDES. Orlandino Seitas. 1999. p.1-4.

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nome mais popular é angico, foi encontrada na Nossa Senhora do Ó, da Igreja do mesmo nome, em Sabará. Essa madeira, no entanto, também pode ser encontrada no Brasil, não podendo afirmar-se, nesse caso, tratar-se de escultura feita em Portugal.

Resumindo, o cedro foi encontrado em todas as imagens examinadas da Matriz de Catas Altas, (1a metade do século XVIII), em três da Sé de Mariana (1a metade do século XVIII), em seis da Matriz de Tiradentes, em algumas esculturas do Museu Ar-quidiocesano de Mariana, sendo também encontrado em todas as imagens examina-das do Aleijadinho (2a metade do século XVIII). Entretanto, na maioria das imagens da Matriz de Nossa Senhora do Pilar, da Capela do Padre Faria e da Igreja de Santa Efigênia, em Ouro Preto, foram identificadas outras madeiras. Ainda não chegamos a nenhuma explicação sobre este fato, pois é muito pequeno até hoje, o número de peças das quais foi afeita identificação científica das madeiras.

Estrutura

Pudemos verificar que, em Minas Gerais, as imagens do início do século XVIII são formadas, geralmente, por apenas dois blocos, o corpo e a mão direita, que segura o atributo. Isso resulta do pouco movimento das imagens desse período, com a indumen-tária muito próxima do corpo, embora algumas vezes já apresentando movimentação. Na maior parte das peças da segunda metade do século XVIII, foi observado o emprego de muitos blocos, para possibilitar a representação de gestualidade típica do estilo ro-cocó. Em uma única imagem, São João Nepomuceno, da Matriz da cidade de Santa Luzia, pudemos constatar que a peça fora executada com dois blocos de madeira pou-co espessos, colados no sentido vertical da escultura, o que resultou em um afastamen-to das bordas dessas placas em toda a altura da imagem.

Os resultados dos exames visuais devem ser reavaliados com a execução e análise de radiografias. As radiografias complementam os exames a olho nu, tra-zendo informações importantes do interior da obra. Elas têm por finalidade docu-mentar detalhes da estrutura interna, como emendas, vazados, tipo de olhos de vidro, introdução de pinos, cravos, pregos, parafusos ou outros materiais. O pes-quisador experiente pode distinguir materiais originais e acréscimos com relativa facilidade. Na nossa pesquisa, algumas radiografias foram feitas nas igrejas, e ou-tras no Cecor, por Alexandre Soares Leal (na época, bolsista do CNPq), sob orien-tação do Dr. Luiz Antônio Cruz Souza. Em apenas um caso, foi executada na Santa Casa de Misericórdia, de Ouro Preto.

Em alguns casos, constatamos uniões apenas com cola, mais difíceis de serem observadas nas radiografias, mas, em muitos outros, podemos encontrar cravos (pregos artesanais), que são originais, e também pregos e parafusos, que indicam claramente, intervenção na obra estudada. A radiografia dá uma informação preci-sa do tipo de olhos de vidro (esféricos ou com apenas uma calota de vidro) bem como de sua colocação e da fixação da parte seccionada entre a face o crânio,

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além de outras possíveis emendas ou aberturas. Dá informações, também sobre a densidade ou peso molecular dos materiais.

Encontramos muitas esculturas feitas em blocos maciços, porém verificamos que outras são ocas, e que as aberturas têm, ou tiveram, tampas para seu fechamen-to. Sobre essas tampas, encontramos policromias perfeitamente executadas, mes-mo nas emendas, indicando que não foram feitas para serem removidas. Verifica-mos em seis esculturas atribuídas ao escultor português, Francisco Vieira Servas (todas representando tocheiros), que elas são ocas, com duas e não uma abertura nas costas, porém com a madeira continuando inteiriça na altura da cintura. Nesses casos, há tampas fechando a abertura, ou marcas de que foram feitas para recebe-rem uma tampa (FIG. 1). É interessante registrar o que Le Gac e Alcoforado infor-mam sobre as aberturas em esculturas da autoria de Frei Cipriano da Cruz, bem diferente do que encontramos aqui: “o esvaziamento do tronco, que também visa-va diminuir o peso das obras, ficou aparente, não chegando, em nenhum dos casos que nos foi dado observar, a ser tapado por uma tábua.”3

3 LE GAC, Agnes; ALCOFORADO, Ana. (2003). p. 39

Gráfico tocheiro Congonhas estrutura

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Algumas obras do Aleijadinho por nós examinadas apresentavam vários blo-cos de madeira e, na parte oca, encontramos - quando foi possível observar -, marcas de goivas e formões, e pequenas peças de madeira, como tacos, reforçando algumas partes. Estes foram os casos do São João da Cruz, da Igreja de Nossa Se-nhora do Carmo, de Sabará, e da Nossa Senhora da Piedade, de Felixlândia.

Examinamos, também, a direção das fibras das madeiras e constatamos que, como era de se esperar, as fibras estão no sentido vertical da escultura, e as mãos, quando executadas separadamente, têm as fibras no sentido longitudinal. Algumas esculturas têm o corpo da figura no sentido vertical, mas a base tem as fibras no sentido horizontal (FIG. 2).

Encontramos imagens com olhos esculpidos e pintados, outras com olhos de vidro, sendo neste último caso, esféricos e com pedúnculos, constatados através de radiografias. Consideramos que olhos de vidro não são indicação correta da época da confecção da escultura. Examinamos duas esculturas de Antônio Francisco Lis-boa, o Aleijadinho, com autoria comprovada por documentos (São Simão Stock e São João da Cruz, de 1779, da Igreja de Nossa Senhora do Carmo, de Sabará), que têm olhos de vidro; entretanto, o Mau Ladrão, executado pelo mesmo artista poste-riormente, entre 1796 e 1799, tem olhos esculpidos e pintados, como quase todas as outras figuras dos passos da Paixão, em Congonhas, excetuando-se os Cristos.

Santa Rita fibras

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Policromia

Quanto à policromia, o primeiro fato a registrar é que, como sabido, na escul-tura policromada a talha é feita por um artífice – o escultor ou entalhador –, en-quanto o douramento e a policromia são executados por um pintor dourador da mesma ou de outra oficina. Algumas vezes o douramento poderia ser executado por um artífice e a policromia por outro. Portanto, normalmente, a policromia não dá informações precisas sobre o possível autor da escultura. Outro aspecto a desta-car é a distinção entre a carnação (imitação da cor da carne) e o estofamento4 (re-presentação dos tecidos das indumentárias). Pela qualidade, podemos aquilatar a experiência e a habilidade do pintor. O aprendiz, ainda não tendo uma mão firme, pode cometer algumas falhas com o instrumento, fato que pode ser observado es-pecialmente no esgrafito.

Em muitas imagens encontramos a policromia tão bem executada na parte da frente da indumentária quanto na parte de trás. Contudo, em inúmeros casos, há uma simplificação bem marcada entre a frente e as costas do vestuário. Isso se explica pelo fato de que quase todas as imagens por nós examinadas foram feitas para colo-cação em nichos de altares (retabulares), quando seriam vistas apenas pela frente. Essa simplificação diminuía também os custos do trabalho a ser pago pelo encomen-dante, sobretudo se não eram colocadas folhas de ouro na parte posterior da vesti-menta. Muitas vezes, o douramento está apenas na parte da frente; em outros casos, a partir dos ombros, o douramento passa a ser em reservas, havendo uma simplifica-ção do emprego de punções ou, ainda, a inexistência da pintura a pincel, encontrada na parte anterior do panejamento. Em quatro imagens (dois anjos tocheiros da Basí-lica do Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas, e dois do Museu da Inconfidência, de Ouro Preto) não há, praticamente, policromia nas costas dos personagens, que têm pintados apenas os cabelos e uma faixa que prende a cintura. Mais uma vez, registramos a diferença entre o que encontraram Le Gac e Alcoforado nas esculturas de Frei Cipriano da Cruz: “É nas costas da maior parte das imagens, isentas de poli-cromia [...] que se pode melhor apreciar a estrutura homogénea da madeira deixada à vista.”5 Na nossa pesquisa, não encontramos nenhuma escultura com as costas deixadas na madeira.

Para surpresa nossa, encontramos folhas de prata em várias esculturas, espe-cialmente do final do século XVIII. São Simão Stock e São João da Cruz, do Aleija-dinho, da Igreja de Nossa Senhora do Carmo, de Sabará, bem como Santa Efigênia, da Igreja de Nossa Senhora do Rosário, de Mariana (FIG. 3), têm toda a capa ou o com revestimento total em folhas de prata, sendo as bordas douradas. Por medida de economia, entretanto, nos três casos as folhas de prata estão colocadas com um centímetro de separação entre elas, aproximadamente. Se, por um lado, houve o emprego de um material mais caro (a prata era mais cara do que o ouro, na época), por outro, procurou-se reduzir os gastos, pois nas costas encontramos essa separa-

4 A palavra vem do francês étoffe, que significa tecido.5 LE GAC, Agnes; ALCOFORADO, Ana. (2003). p.38.

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ção. Os resplendores de São Simão Stock e de São João da Cruz são em madeira, totalmente revestidos de folhas de prata. A cruz de São João também é executada do mesmo modo, porém sobre a prata há uma laca amarela, dando a impressão de ouro. Em imagens de Nossa Senhora, pudemos identificar folhas de prata em nu-vens e, em outras esculturas, encontramos a prata distribuída economicamente, no sistema que, no Brasil, é denominado “reserva”.

A punção foi encontrada em abundância, com marcas em vários formatos, distribu-ída de diferentes maneiras, preenchendo espaços vazios, criando contrastes entre fosco e brilhante, destacando o contorno de folhas e pétalas de flores, ou formando barrados com círculos e triângulos, curvas e ziguezagues, em decotes e bordas de mantos.

Encontramos o esgrafito em quase todas as esculturas analisadas, formando dese-nhos fitomorfos (FIG. 4) ou geométricos. Há desenhos bem executados e esgrafitos dese-nhados com grande perfeição encontrados também em imagens de certo sabor popular.

Gráfico Efigênia ouro e prata

Gráfico Crisântemo Simão Stock

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A pintura a ponta de pincel destaca algumas partes do desenho, sugerindo relevo, especialmente em representações fitomorfas. Em imagens com a policromia bem completa, continua a execução do douramento, das punções e da pintura a pincel, mesmo na parte das costas das peças. Em apenas uma das esculturas estu-dadas - Santana Mestra, da Igreja Matriz de Catas Altas - encontramos representa-ções antropomorfas, executadas com pintura a pincel.

Os relevos foram amplamente observados nas bordas dos mantos, das túnicas e nos decotes das indumentárias. Algumas vezes eles podem ser executados direta-mente na madeira, pelo entalhador, em outras podem ser realizados com superpo-sições de camadas de preparação, ou com o auxílio de um cordão, que dará a es-pessura desejada. Nas imagens mineiras, encontramos um único caso em que o relevo foi esculpido na madeira (São Miguel, da Igreja Matriz de Santa Luzia). Em todos os outros casos, ele foi executado com superposições de camadas de prepara-ção. No ano 2000 pudemos conhecer, no módulo Barroco da exposição do Redes-cobrimento (Brasil 500 anos, São Paulo), uma grande escultura de São Lourenço, de São Miguel das Missões, no Rio Grande do Sul, sem policromia e contendo muitos relevos, executados na madeira. Heliana Angotti6 cita “pastilhamentos” em algumas esculturas do escultor goiano Veiga Valle. Ela os descreve, entretanto, como “inci-sões com instrumento apropriado”, o que não corresponde ao que foi usado em Mi-nas Gerais. Os relevos, muito utilizados no norte de Portugal e empregados em ima-gens de barro do século XVII, na Bahia, por Frei Agostinho da Piedade, praticamente não são encontrados em imagens devocionais em madeira de outras localidades no Brasil, reduzindo-se seu emprego aos artistas de Minas Gerais ou de portugueses que aqui viveram. Nos outros estados, os barrados são ornamentados com esgrafitos ou punções, e não com relevos.

Nas imagens pesquisadas, encontramos também rendas douradas, feitas, se-gundo análise realizada por Claudina Maria Dutra Moresi, no laboratório do Cecor, com rendas de bilro executadas com fios de linho. Muitas vezes, encontramos ape-nas resquícios da renda, mas podemos afirmar que na maioria dos casos ela é ori-ginal, pois existe um pequeno degrau para sua colocação nas bordas dos mantos ou das túnicas. Recentemente, estivemos analisando uma imagem de Nossa Senho-ra das Mercês, da Igreja Matriz de São Gonçalo do Rio Abaixo, em Minas Gerais, que mantém, nas bordas, aplicação de renda dourada, em excelente estado.

Análise morfológica

Segundo Michel Lefftz: “A análise morfológica da escultura se baseia princi-palmente em três eixos: a composição, a anatomia e o panejamento.”7 Nas nossas pesquisas, terminado o exame dos procedimentos técnicos, passávamos a realizar

6 SALGUEIRO. Heliana Angotti. 1983. p 72.7 LEFFTZ, Michel. 2003. p. 57-60. Ver também: LEFFTZ, Michel. 2006. p. 99-111.

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a análise formal e estilística das imagens. Observávamos e registrávamos as linhas principais da composição, as secundárias e a predominância de verticais, diagonais ou horizontais, que sugerem rigidez; as curvas e contracurvas, que sugerem movi-mento. Em seguida, observávamos a gestualidade da figura, movimento do persona-gem que resulta nas linhas principais da composição e a maneira de representar de-talhes anatômicos. Também observávamos as dobras do panejamento, sua proximidade ou distância do corpo do personagem representado, bem como a coe-rência do panejamento em relação à anatomia. Observamos e registramos, sobretu-do detalhes anatômicos - lábios, narizes, orelhas dedos e unhas - que podem marcar alguns cacoetes do escultor. Atualmente, estamos iniciando a análise mais detalhada do panejamento seguindo metodologia sugerida por Lefftz, que estabelece parâme-tros bem objetivos para seu estudo, que ele denomina “gramática da morfologia.”

Comparações podem ser feitas, com bastante precisão, quanto à identificação dos procedimentos e dos materiais empregados. No caso da policromia, também podem ser feitas comparações de motivos, técnicas e materiais empregados, po-dendo-se chegar a estabelecer o que foi adotado em uma determinada época, ate-lier ou artista. No entanto, é mais difícil realizar, de maneira suficientemente obje-tiva, a análise das formas da composição, detalhes anatômicos, tipos de dobras dos panejamentos, e de se chegar a conclusões sobre a autoria das esculturas. É neces-sário muita prudência e, de preferência, uma análise minuciosa e objetiva para evitar afirmações equivocadas.

Em artigo publicado em 2003, Natália Marinho registra que, em Portugal, falta cooperação “entre historiadores da arte e técnicos de conservação e restauro (só recentemente iniciada e de forma muito restrita), tendo sido esta uma das razões que mais contribuiu para o atraso no desenvolvimento dos estudos sobre a policro-mia da imaginária portuguesa”8. Acredito que, com o desenvolvimento da nossa pesquisa, o conhecimento sobre a imaginária mineira foi ampliado, que as análises feitas em laboratório trouxeram importante contribuição de profissionais de outras áreas, como química e botânica, tendo sido também de grande importância a con-vivência e a troca de idéias e de informações com historiadores de arte. Estamos certos, também, de que os conhecimentos adquiridos podem ser úteis para o cam-po da conservação-restauração como também para o da história da arte.

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COELHO, Beatriz. Imaginária devocional policromada no Brasil: materiais e técni-ca In: POLICROMIA. A escultura policromada religiosa dos séculos XVII e XVIII.

8 FERREIRA-ALVES, Natália Marinho. 2003. p. 17.

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