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IMAGENS E IMAGINÁRIOS EUROPEUS NA AMÉRICA: O MITO DOS GIGANTES DO MUNDO PRÉ-HISPÂNICO NA NARRATIVA DOS CRONISTAS ESPANHÓIS NO SÉCULO XVI Adriano Rodrigues de Oliveira 1 Quando os primeiros europeus atravessaram o Atlântico e aportaram nas terras “americanas”, trouxeram consigo todo um imaginário fantástico, cujas raízes mais profundas, remontam ao mundo antigo e medieval. Assim, diversos mitos conhecidos pelo homem europeu quinhentista, sobre seres monstruosos e lugares fabulosos, encontraram na América, terra fértil para se disseminar. De imaginação fecunda, os viajantes e caçadores de fortuna, viam na imensidão do continente “recém-descoberto”, as possiblidades para o tão sonhado encontro com o maravilhoso. No entanto, nada seria tão emblemático quanto a difusão das imagens sobre os povos americanos, em muitos casos, representados como bárbaros, selvagens e monstruosos. Serge Gruzinski (2006), reconhecido estudioso desse embate cultural da Europa como o Novo Mundo, destaca que a partir da chegada de Cristóvão Colombo em 1492, houve uma verdadeira “guerra das imagens”, nos termos do autor, com graves consequências políticas e culturais, um processo assimétrico que fez prevalecer as representações imagéticas oriundas da cultura ocidental sobre as “imagens indígenas”. Com efeito, tal fenômeno fora possibilitado pela rápida difusão da imprensa nas mais diversas atividades do cotidiano, e neste caso, facilitou e agilizou a propagação das gravuras de procedência europeia em suas diversas formas de representações do “mundo americano” (GRUZINSKI, 2006, p. 14-15). Sobre as características dessas ilustrações, de estirpe europeia e renascentista, datadas dos séculos XVI e XVII, a historiadora Laura de Mello e Souza (1996) faz os seguintes apontamentos: 1 Doutorando em História pela UNESP/Assis. O estudo que resultou nessa comunicação originou-se de pesquisas durante o desenvolvimento da tese e contou com o financiamento da CAPES - Código de Financiamento 001. E-mail: [email protected].

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Page 1: IMAGENS E IMAGINÁRIOS EUROPEUS NA AMÉRICA: O MITO …...relato de autoria do espanhol Agustín de Zárate (1514 - 1585), um administrador real e cronista que chegou ao Vice-Reino

IMAGENS E IMAGINÁRIOS EUROPEUS NA AMÉRICA: O MITO DOS

GIGANTES DO MUNDO PRÉ-HISPÂNICO NA NARRATIVA DOS

CRONISTAS ESPANHÓIS NO SÉCULO XVI

Adriano Rodrigues de Oliveira1

Quando os primeiros europeus atravessaram o Atlântico e aportaram nas terras

“americanas”, trouxeram consigo todo um imaginário fantástico, cujas raízes mais

profundas, remontam ao mundo antigo e medieval. Assim, diversos mitos conhecidos

pelo homem europeu quinhentista, sobre seres monstruosos e lugares fabulosos,

encontraram na América, terra fértil para se disseminar. De imaginação fecunda, os

viajantes e caçadores de fortuna, viam na imensidão do continente “recém-descoberto”,

as possiblidades para o tão sonhado encontro com o maravilhoso. No entanto, nada seria

tão emblemático quanto a difusão das imagens sobre os povos americanos, em muitos

casos, representados como bárbaros, selvagens e monstruosos.

Serge Gruzinski (2006), reconhecido estudioso desse embate cultural da Europa

como o Novo Mundo, destaca que a partir da chegada de Cristóvão Colombo em 1492,

houve uma verdadeira “guerra das imagens”, nos termos do autor, com graves

consequências políticas e culturais, um processo assimétrico que fez prevalecer as

representações imagéticas oriundas da cultura ocidental sobre as “imagens indígenas”.

Com efeito, tal fenômeno fora possibilitado pela rápida difusão da imprensa nas mais

diversas atividades do cotidiano, e neste caso, facilitou e agilizou a propagação das

gravuras de procedência europeia em suas diversas formas de representações do “mundo

americano” (GRUZINSKI, 2006, p. 14-15).

Sobre as características dessas ilustrações, de estirpe europeia e renascentista,

datadas dos séculos XVI e XVII, a historiadora Laura de Mello e Souza (1996) faz os

seguintes apontamentos:

1 Doutorando em História pela UNESP/Assis. O estudo que resultou nessa comunicação originou-se de

pesquisas durante o desenvolvimento da tese e contou com o financiamento da CAPES - Código de

Financiamento 001. E-mail: [email protected].

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[...] não seguia, naquela época, critérios de representação norteados

eminentemente pela observação direta da natureza – malgrado o óbvio

peso de um naturalismo na arte renascentista. Não se representava o que

se tinha diante dos olhos, mas o que era possível e lícito representar,

segundo normas e cânones muito bem fixados (SOUZA, 1996 apud

RAMINELLI, 1996, p. 9).

O historiador francês Roger Chartier (2005), chama nossa atenção para o fato de

que, tais imagens, não podem de modo algum ser ponderadas como meras ilustrações,

mas como a representação de um imaginário coletivo (CHARTIER, 2005, p. 27-28).

Seguindo nessa mesma linha de pensamento, o estudioso do imaginário europeu no Novo

Mundo, Roja Mix (2006), observa que essas imagens conservam uma realidade histórica,

expressando um imaginário político, religioso e social (ROJA MIX, 2006, p. 21).

Também o historiador Jean-Claude Schmitt (2007), complementa que: “Todas as

imagens, em todo caso, têm sua razão de ser, exprimem e comunicam sentidos, estão

carregadas de valores simbólicos, cumprem funções religiosas, políticas ou

ideológicas...” (SCHMITT, 2007, p. 11).

Feitas essas considerações iniciais, vale destacar que, o estudo explanado na

presente comunicação, deriva de nosso projeto maior de doutorado que se encontra em

andamento, onde estamos analisando o imaginário europeu e a transposição do “mito dos

gigantes” para o Novo Mundo no transcorrer dos séculos XVI e XVII. Conforme

constatamos até o presente momento, esse tema clássico se transformou, tanto ao

incorporar os elementos provenientes do imaginário colonial, quanto ao imbricar-se à

certas narrativas indígenas, em que o gigantismo era ingrediente fundamental para

explicar um passado remoto e caótico.

Em nosso entendimento, esse fora o caso do emblemático mito dos gigantes

sodomitas, seres “desmesurados, vorazes, monstruosos e cruéis”, que teriam habitado os

Andes na aurora dos tempos e, cujas fábulas, segundo os relatos de diversos cronistas

espanhóis do século XVI, faziam parte da memória coletiva das populações incaicas

quando do contexto da invasão e colonização espanhola na América.

Do mesmo modo, na narrativa dos missionários católicos que chegaram à Nova

Espanha após a conquista das terras “mexicanas”, os gigantes, seres dotados de grande

estatura e força bruta, teriam habitado a Mesoamérica nos tempos primordiais, quando

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causaram grandes desconfortos entre as populações locais, uma vez que eram selvagens

e sanguinários.

Sobre as criaturas do espaço geográfico andino, nos deparamos com um primeiro

relato de autoria do espanhol Agustín de Zárate (1514 - 1585), um administrador real e

cronista que chegou ao Vice-Reino do Peru em 1544, para exercer o cargo de contador

da Real Hacienda (TEODORO, 1991, p. 131-132). A seguinte narrativa encontramos em

sua Historia del descubrimiento y conquista de la provincia del Peru, obra escrita entre

os anos de 1544 e 1550 a partir dos testemunhos dos informantes incas:

Próximo a esse cabo [Santa Elena], os índios da terra dizem que

habitaram uns gigantes, cuja estatura era tão grande quanto quatro

estados de um homem mediano. Não disseram de que parte eles vieram;

mantinham-se das mesmas comidas dos índios, especialmente pescado,

porque eram grandes pescadores; eles iam pescar em balsas, cada um

na sua, porque estas não podiam levar mais, seria como navegar três

cavalos em uma balsa; venciam o mar em duas braças e meia;

divertiam-se muito de encontrar tubarões, golfinhos, ou outros peixes

muito grandes, porque teriam mais para comer; cada um comia mais

que trinta índios; andavam nus, porque tinham dificuldades de fazer os

vestidos; eram tão cruéis, que sem causa alguma, matavam muitos

índios, de quem eram muito temidos...(ZARATE, 1968, p. 10).

[Tradução nossa]

Relato semelhante é o que se encontra nas páginas redigidas pelo soldado Pedro

Cieza de León (1518-1554), espanhol que chegou ao Peru em 1547, para servir no

exército de Pedro de la Gasca durante as rebeliões de Gonzalo Pizarro (PEASE In: DE

LEÓN, 2005, p.11-12). Em sua Crónica del Peru, publicada em Sevilha no ano de 1553,

o cronista alega ter recebido informações diretamente dos índios locais, sobre esses

indivíduos forasteiros de estatura gigantesca e corpos e membros monstruosos:

Os nativos contam pelo relato que receberam de seus pais, que ouviram

desde muito tempo, que vieram do mar em umas balsas de juncos

semelhantes a grandes barcas, uns homens tão grandes, que tinham

maior estatura do joelho para baixo que um homem comum em todo o

corpo, mesmo que este fosse de boa estatura, e que seus membros

estavam em conformidade com a grandeza de seus corpos deformados,

e que era coisa monstruosa de ver as cabeças, pois eram grandes, e

tinham cabelos que chegavam até as costas. Os olhos eram tão grandes

que pareciam pequenos pratos. Afirmam que os gigantes não tinham

barbas, e que uns se vestiam de peles de animais, enquanto outros,

andavam nus, e não traziam mulheres consigo (DE LEÓN, 2005, p.

150-151). [Tradução nossa]

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É interessante observar que, tanto Zárate, quanto Cieza de León, alegam que

recorreram aos informantes indígenas para descrever a natureza desses antigos seres

andinos, esquivando-se, por tabela, da veracidade dos controversos relatos. Ambas as

narrativas são muito semelhantes, embora, no caso do segundo cronista, os gigantes

adquirem uma forma ainda mais insólita, pois, além do corpo deformado e da cabeça

monstruosa, possuíam olhos tão grandes que só podiam ser mensurados quando

comparados a pequenos pratos (DE LEÓN, 2005, p. 150-151).

Assunto ainda mais emblemático, fora a tentativa desses cronistas europeus em

explicar o motivo pelo qual os gigantes não mais habitavam essas terras quando da

chegada dos colonizadores europeus. Cieza de León observa em sua crônica que:

Depois de alguns anos, os gigantes estavam ainda nessa região, e como

não tinham mulheres, e as naturais não combinavam com eles por sua

grandeza, ou porque era vício entre eles por conselho e indução do

maldito demônio, praticavam uns com os outros, o pecando nefando da

sodomia, tão gravíssimo e horrendo. E na qual, usavam e cometiam

publicamente e abertamente, sem temor de Deus e pouca vergonha de

si mesmos. E todos os nativos afirmam, que Deus nosso senhor não se

prestando a esconder pecado tão ruim, enviou o castigo de acordo com

a gravidade do pecado. E assim dizem que, estando todos juntos

envoltos em sua maldita sodomia, veio fogo do céu terrível e muito

assustador, fazendo muito barulho, do meio do qual saiu um anjo

resplandecente com uma espada afiada e flamejante, com a qual, com

um só golpe, ele matou a todos, e o fogo os consumiu, e não restou

senão alguns ossos e caveiras que, para memória do castigo, quis Deus

que permanecessem sem serem consumidos pelo fogo (DE LEÓN,

2005, p. 151). [Tradução nossa]

Agustín de Zárate fornece relato semelhante sobre o terrível castigo divino que

abateu esses sodomitas de estatura gigantesca:

Há memória entre os índios, transmitidas de pais para filhos, de muitas

particularidades desses gigantes, especialmente do fim destes; porque

dizem [os índios] que veio do céu um jovem resplandecente como o sol,

e pelejou contra os gigantes, atirando-lhes, chamas de fogo; e assim, os

gigantes foram recuando a um vale, onde o jovem acabou de matar a

todos, por ser, como dizem que estas pessoas eram [os gigantes], muito

dados ao vício contra a natureza, a justiça divina os tirou da terra,

enviando algum anjo para isso, como foi feito em Sodoma e outras

partes...” (ZÁRATE, 1968, p. 10). [Tradução nossa]

Vemos que, em ambos os casos, embora persistam as reminiscências de um

possível mito “indígena”, estes, já foram devidamente contaminados pelo imaginário

europeu. Assim, seguindo os termos de uma tradição judaico-cristã, enraizada na longa

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duração do tempo histórico, duas personagens “europeias” assumem o protagonismo da

narrativa: o Diabo, a figura que induz os homens a praticar o pecado nefando, e Deus, que

não podendo permitir tal iniquidade, envia o seu soldado celeste para acometer de morte

esses pecadores andinos. De todo modo, vemos a transformação da “lenda incaica” sendo

transformada, com efeito, em uma fábula moralista essencialmente cristã.

Duas gravuras que foram inseridas nas edições das Crónica del Peru, de Cieza

de León, explicam muito bem, no nosso entendimento, os embates entre as imagens e os

imaginários europeus no Novo Mundo. Na primeira, impressa na oficina de Martín

Montesdoca, no ano de 1553, para compor a primeira edição da referida obra, vemos a

representação do anjo cristão empunhado uma espada na direção dos gigantes andinos,

que se encontram na parte inferior do desenho, assustados e caídos sobre o chão. Ao lado

do soldado celeste, as chamas de fogo ardem sobre a terra e os pecadores que nela habitam

(fig. 1. A.). Já na segunda edição das Crónica del Peru, publicada em Antuérpia em 1544,

na casa de Juan Steelsio, o gravurista acrescentou a nudez corporal nos gigantes,

reforçando, por tabela, o pecado da sodomia (fig. 1. B.).

A B

Fig. 1. O castigo dos gigantes sodomitas. Gravuras para as Crónicas del Peru, de Pedro Cieza de León. A

primeira ilustração (A) foi publicada em Sevilha em 1553, na tipografia de Martín Montesdoca. A segunda

estampa (B) foi gravada em Antuérpia, em 1554, na imprensa de Juan Steelsio. Fonte: The Internet Archive

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Assim como nos Andes, os padres franciscanos e dominicanos que chegaram a

Nova Espanha após a conquista das terras astecas, relataram que os gigantes faziam parte

das lendas e da memória dos povos mexicanos. O padre franciscano André Olmos (1485-

1571), em sua Historia de los mexicanos por sus Pinturas, escrita na década de 1530,

observa que de acordo com as lendas astecas, tais gigantes teriam sido os primeiros

homens criados pelos deuses, sendo que eram indivíduos de elevada estatura e força

descomunal (OLMOS, 1891, p. 1).

Uma versão mais cristianizada do mito foi a que forneceu um segundo frei da

ordem franciscana, Toribio de Benavente Motolínia (1482-1568). Em sua obra intitulada

Historia de los Indios, o religioso não poupa esforços para descrever de modo negativo

esses seres colossais, considerados por ele como sendo verdadeiros filhos do demônio,

uma vez que haviam sido gerados a partir das relações inapropriadas que ocorriam fora

do matrimonio, uma prática comum entre os antigos mexicanos, reforça o franciscano em

sua crônica (DE MOTOLINÍA, 2014, p. 176).

Na maioria dos relatos dos cronistas europeus, essas criaturas do “mundo pré-

hispânico”, são associadas há um passado remoto e caótico, onde não havia nenhuma luz,

ordem ou normas. O frade dominicano Diego Durán (1537 - 1588), um espanhol que

chegara ainda criança no México, ao entrevistar um centenário morador de Cholula, nos

legou a curiosa narrativa em sua Historia de las Indias de Nueva España, obra também

conhecida como Códice Durán:

No princípio, antes que a luz ou o sol fosse criado, estava essa terra em

obscuridade e trevas, e vazia de toda coisa criada; toda plana, sem

colina ou quebrada, cercada por todas as partes de água, sem árvore ou

coisa criada, e depois que a luz e o sol nasceram no Oriente, apareceram

nela uns homens gigantes de estatura deformada, e possuíram esta terra;

os quais, desejosos de ver o nascimento do sol e seu ocaso, propuseram

em ir procurá-lo e, dividindo-se em duas partes, alguns caminharam em

direção ao Poente, e outros em direção ao Oriente [...] não achando

remédio para poder chegar ao sol, apaixonados por sua luz e beleza,

concordaram em construir uma torre tão alta que chegasse ao cume do

céu; e chegando materiais para o feito, acharam um barro e betume

muito pegadiço, com os quais, muito rapidamente, eles começaram a

construir a torre, e aumentando-a ao máximo que puderam, que diziam

parecer chegar ao céu [...] Então, naquele momento, os habitantes do

céu saíram para todas as quatro partes do mundo, assim como raios, e

eles demoliram o edifício que ainda construíam, dos quais, espantados

os gigantes, e cheios de medo, se dividiram e se esparramaram por todas

as partes da terra (DURÁN, 1867, p. 7). [Tradução nossa]

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No final do século XVI, o jesuíta espanhol José de Acosta (1540-1600), destaca

em Historia natural y moral de las Indias, publicada em 1590, que esses antigos gigantes

teriam habitado as terras mexicanas, causando grandes incômodos às populações locais.

Dessa forma, os Tlaxcaltecas teriam se valido da estratégia e inteligência para vencer a

crueldade e a força bruta desses oponentes colossais:

No tempo que todas essas nações habitavam, os Chichimecas – antigos

habitantes – não mostraram oposição nem fizeram resistência, somente

se faziam ausentes e – como espantados – se escondiam na mais oculta

das pedras. Porém, aqueles que moravam na outra parte da montanha

nevada, onde os Tlaxcaltecas habitavam, não consentiram como os

demais Chichimecas, antes eles se puseram a defender a terra

[impedindo os demais de passar por elas] e – como eram gigantes,

segundo a relação de suas histórias – quiseram se lançar com força

contra os forasteiros; mas sua grande força foi superada com o truque

dos Tlaxcaltecas. Os quais lhes garantiu e, fingindo paz com eles, os

convidaram para uma ótima refeição [...]; quando mais estavam em sua

embriaguez roubaram as suas armas em oculto – que eram uns grandes

porretes, rodelas e espadas, de madeira e outros gêneros. Feito isso,

inesperadamente os gigantes atacaram eles; querendo se defender sem

suas armas, eles foram para as árvores próximas, e lançando mão de

seus galhos, assim eles os quebravam como alface. Mas ao fim, como

os Tlaxcaltecas vieram armados e em ordem, impediram os gigantes e

feriram eles sem deixar homem com vida (ACOSTA, 2008, p. 235).

[Tradução nossa]

O gravurista suíço, Matthäus Merian (1593-1650), representou em pormenores

o episódio que culminou na destruição desses antigos seres desmesurados. Em uma

gravura desenhada para ilustrar a primeira edição de Historia Antipodum, coleção de

viagens ao Novo Mundo de autoria de Johann Ludwig Gottfried (1584-1633), vemos

concomitantemente o desenrolar e o desfecho da emblemática cena. A gravura se divide

em dois planos imagéticos/narrativos: no primeiro vemos o momento em que os

Tlaxcaltecas servem um banquete para os seus oponentes, provavelmente composto por

pães, vinhos e peixes. Na sequência do drama, os indígenas atacam os inimigos com suas

flechas, enquanto estes, se defendem agarrando os galhos de árvores em suas

proximidades tal como na descrição de Acosta (fig. 2.).

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Fig. 2. A destruição dos gigantes que habitaram o “México” em tempos remotos. Gravura de Matthäus

Merian, para Historia Antipodum, coletânea de viagens ao Novo Mundo de Johann Ludwig Gottfried.

Publicada em Frankfurt am Main no ano de 1655. Fonte: The Internet Archive.

Conforme constamos em nossa pesquisa, até o presente momento, a narrativa

dos “gigantes do mundo pré-hispânico”, resulta de um rico e emblemático amálgama de

mitos, elementos e tradições. Assim, embora possamos perceber os traços dos possíveis

mitos indígenas, sobretudo os de procedência inca e asteca, vale destacar que estes já

foram suficientemente “corrompidos” pelo imaginário europeu, onde a noção de

gigantismo, carregada de conotações negativas, deriva tanto da tradição grega, quanto da

visão judaico-cristã.

A transformação das imagens e dos imaginários indígenas em fábulas e alegorias

de significados cristãos, é um assunto que norteia esse nosso estudo, merecendo maiores

atenções. Tal processo não está de modo algum desgarrado do contexto histórico da

conquista, dominação e exploração do Novo Mundo e, tampouco, das lutas entre as

imagens e os imaginários desses dois mundos antagônicos, que só se encontram por meio

do embate.

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Fontes primárias

ACOSTA, Josef de: Historia Natural y Moral de las Indias. Madrid: Consejo Superior

de Investigaciones Científicas, 2008. Fondazione Prospero intorcetta. Disponível em:

http://www.fondazioneintorcetta.info/. Acesso em: 27 de setembro de 2020.

DE LEÓN, Pedro de Cieza. Crónica del Peru: El señorío de los incas. Caracas,

Venezuela: Fundación Biblioteca Ayacucho, 2005. Disponível em:

http://www.biblioteca.org.ar/libros/211665.pdf. Acesso em: 22 de setembro de 2020.

DE MOTOLINÍA, Toribio de Benavente. Historia de los indios de la Nueva España.

Madrid: Real Academia Española, 2014. Disponível em:

https://www.fundacionaquae.org. Acesso em: 27 de setembro de 2020.

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DURÁN, Frei Diego. Historia de las Indias de Nueva España e islas de la tierra firme.

Tomo I. México: Imprenta de Ignacio Escalante, 1867. Cortesia do The Internet Archive.

Disponível em: https://archive.org/details/historiadelasind02dur/page/n4. Acesso em: 27

de setembro de 2020.

OLMOS, André. Historia de los mexicanos por sus Pinturas. [S.l.: s.n.]. 1891. p. 1.

Disponível em: https://www.academia.edu. Acesso em: 27 de setembro de 2020.

ZARATE, Agustin de. Historia del descubrimiento y conquista de la provincia del

Peru. Biblioteca Peruana, tomo 2. Lima: Editores Tecnicos Asociados S.A, 1968.

Disponível em: http://www.atlantisbolivia.org/zardes.pdf. Acesso em: 22 de setembro de

2020.

Referências

CHARTIER, Roger. A força das representações: história e ficção. Organizado por João

Cezar de Castro Rocha. – Chapecó, SC: Argos, 2015.

GRUZINSKI, Serge. A guerra das imagens: De Cristóvão Colombo a Blade Runner

(1492-2019). São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

ROJAS MIX, Miguel. EL Imaginario: Civilización y cultura del siglo XXI. Buenos

Aires: Prometeo Libros, 2006.

SCHMITT, Jean-Claude. O corpo das imagens: ensaio sobre a cultura visual na Idade

Média. Bauru, SP: EDUSC, 2007.

TEODORO, Hampe Martínez. Agustín de Zárate, contador y cronista indiano (Estudio

biográfico). In: Mélanges de la Casa de Velázquez, tome 27-2, 1991, 131-132. Epoque

moderne. pp. 129-154. Disponível em: https://www.persee.fr/. Acesso em: 22 de

setembro de 2020.