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IMAGENS E ELEMENTOS DA MATEMÁTICA EM CARTILHAS E LIVROS DE LEITURA DE 1930 A 1960 NICARETA, Samara Elisana 1 - SEED-PR/SME-Curitiba Grupo de Trabalho – História da Educação Agência Financiadora: não contou com financiamento Resumo Este estudo tem por objetivo discutir os elementos da matemática, do currículo, e o uso das imagens no processo de ensino enquanto elementos formadores de um projeto de Estado, Nação e Sociedade. A metodologia adotada privilegia a análise simbólica das figuras em detrimento a quantificação, desta forma desenvolveu-se uma pesquisa qualitativa. Ao desvelar estas imagens, presentes em cartilhas e livros de leitura, colhemos evidencias para elucidar as práticas curriculares, as políticas públicas, o plano de governo, concebidos a partir de um projeto de Estado. No período, de 1930 a 1960 a educação passou a ser considerada um ponto chave para formar cidadãos capazes de auxiliar na construção da nação dotando os cidadãos de civismo e moralismo. O livro didático foi eleito como instrumento de inculcação ideológica incorporando virtudes morais, valores patrióticos, valores sociais, devoção à religião, além de transmitir e legitimar um currículo próprio. A partir das imagens incidimos a compreender um conjunto mínimo de saberes matemáticos que deveriam ser desenvolvidos no interior da escola e necessários a consolidação do projeto de sociedade, compreendido nas suas relações sociais e culturais emergentes. Aliado a concepção de que a sala de aula abrange um campo de forças políticas e espaço de aprendizagens sociais, temos um lugar onde as relações culturais se reproduzem em dinâmicas de poder. A política curricular pode se tornar um mecanismo tanto para emancipar como para aprisionar e condicionar professores e alunos. Na análise realizada o currículo estaria servindo a um projeto maior de sociedade, para uns elementos básicos do ensino da Matemática, mesmo que de maneira estereotipada, e, para outros um aprofundamento do conhecimento possibilitando assim uma garantia do controle social vigente. Palavras-chave: Imagem. Ilustração. Livro didático. Introdução Os livros de leitura e as cartilhas nas décadas de 1930 a 1960, traziam as marcas de uma política de estado ligada a um plano de governo que tinha por objetivo impulsionar o 1 Mestre em Educação (UTP); Pós-graduada em Psicopedagogia (PUC-PR) Professora da Rede Municipal de Educação de Curitiba e Pedagoga da Rede Estadual de Ensino do Paraná. E-mail: [email protected]

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IMAGENS E ELEMENTOS DA MATEMÁTICA EM CARTILHAS E

LIVROS DE LEITURA DE 1930 A 1960

NICARETA, Samara Elisana1 - SEED-PR/SME-Curitiba

Grupo de Trabalho – História da Educação

Agência Financiadora: não contou com financiamento Resumo Este estudo tem por objetivo discutir os elementos da matemática, do currículo, e o uso das imagens no processo de ensino enquanto elementos formadores de um projeto de Estado, Nação e Sociedade. A metodologia adotada privilegia a análise simbólica das figuras em detrimento a quantificação, desta forma desenvolveu-se uma pesquisa qualitativa. Ao desvelar estas imagens, presentes em cartilhas e livros de leitura, colhemos evidencias para elucidar as práticas curriculares, as políticas públicas, o plano de governo, concebidos a partir de um projeto de Estado. No período, de 1930 a 1960 a educação passou a ser considerada um ponto chave para formar cidadãos capazes de auxiliar na construção da nação dotando os cidadãos de civismo e moralismo. O livro didático foi eleito como instrumento de inculcação ideológica incorporando virtudes morais, valores patrióticos, valores sociais, devoção à religião, além de transmitir e legitimar um currículo próprio. A partir das imagens incidimos a compreender um conjunto mínimo de saberes matemáticos que deveriam ser desenvolvidos no interior da escola e necessários a consolidação do projeto de sociedade, compreendido nas suas relações sociais e culturais emergentes. Aliado a concepção de que a sala de aula abrange um campo de forças políticas e espaço de aprendizagens sociais, temos um lugar onde as relações culturais se reproduzem em dinâmicas de poder. A política curricular pode se tornar um mecanismo tanto para emancipar como para aprisionar e condicionar professores e alunos. Na análise realizada o currículo estaria servindo a um projeto maior de sociedade, para uns elementos básicos do ensino da Matemática, mesmo que de maneira estereotipada, e, para outros um aprofundamento do conhecimento possibilitando assim uma garantia do controle social vigente. Palavras-chave: Imagem. Ilustração. Livro didático.

Introdução

Os livros de leitura e as cartilhas nas décadas de 1930 a 1960, traziam as marcas de

uma política de estado ligada a um plano de governo que tinha por objetivo impulsionar o

1 Mestre em Educação (UTP); Pós-graduada em Psicopedagogia (PUC-PR) Professora da Rede Municipal de Educação de Curitiba e Pedagoga da Rede Estadual de Ensino do Paraná. E-mail: [email protected]

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Brasil ao progresso (OLIVEIRA e GUIMARÃES, 1984), primeiro vinculado ao ideário do

Estado Novo e depois ao populismo. Este grande panorama consolidou-se através de

elementos estruturais, mecanismos e instrumentos de controle, massificação, subjugação e

inculcação, dentre os quais figura a educação pública.

No limiar das relações entre ensino e aprendizagem que ocorre no interior da escola,

dos ambientes escolares, temos uma interação de forças entre “fazeres” didáticos e projetos

pedagógicos. Reconhecendo a sala de aula como um campo de forças políticas e espaço de

aprendizagens sociais, temos um lugar onde as relações culturais se reproduzem em

dinâmicas de poder. Nesta tessitura, consideramos o livro didático um dos principais artefatos

culturais responsáveis pela propagação de um projeto de nação, como instrumento de poder,

de cunho estatal e governamental. Admitindo esta característica assíncrona na história do livro

didático, observamos uma intencionalidade política, ideológica e tecnocrática latente sobre a

sua produção e disseminação. Sendo estes modelos de educação adotados perante uma

posição seletiva frente ao currículo escolar. A inclusão ou ausência de determinados

conteúdos curriculares também faz parte de um rol de mecanismos utilizados a serviço de um

programa de governo para a sustentação do controle estatal da sociedade. As distorções ou

incompreensões produzidas pela forma de interpretar certos conteúdos nos livros didáticos

podem tornar o professor um mero instrumento a serviço da reprodução da ordem social

hegemônica. Outro aspecto a ser considerado é a qualidade dos livros que passam por

interesses políticos.

A política curricular pode se tornar um mecanismo tanto para emancipar como para

aprisionar e condicionar professores e alunos. Por isso, considera-se que o professor é o

mediador entre o aluno e a cultura. A forma como este profissional transmite o conhecimento

determina sua posição diante da cultura e das relações sociais. Não se pode encarar a seleção

de certos conteúdos pelo professor como neutra ou passiva, mesmo porque existe, de fato,

uma intencionalidade que envolve tanto o profissional consciente ou não desse processo como

um controle que se manifesta na sociedade. Para este estudo considero como livro didático os

também denominados: livro de classe, manual escolar, cartilha escolar, livro escolar, livro de

leitura ou livro texto. Tais expressões são mais ou menos utilizadas como sinônimas, devido,

em grande parte a variações de nomenclatura, a questões linguísticas e idiomáticas.

Alain Choppin (2002) utiliza simultaneamente essas diversas denominações quando se

refere ao livro didático. Para ele, o livro é um instrumento pedagógico manifestante das

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relações sociais e das prescrições determinadas por programas oficiais quanto ao ensino.

Torna-se necessário ressaltar que a importância do livro didático não se limita apenas aos

aspectos pedagógicos e às possíveis influencias na aprendizagem e no desempenho dos

alunos.

A partir deste momento, concebemos que a função social a ser representada para os

livros didáticos segue uma configuração política e econômica, sendo que os valores

difundidos em seu conteúdo podem ser adotados como ideais para a sociedade, portando, uma

certa visão de ciência, de mundo.

O livro didático como ferramenta do currículo

Concepções e filosofias do ensino, via de regra, tendem a ser incorporadas no livro

didático em menor ou maior intensidade segundo o seu maior ou menor poder de influir na

prática escolar. Assim, a forma como se organiza e se planifica a relação professor-aluno é

uma variável importante para caracterizar o ato educativo num dado momento. É um

instrumento que sofre modificações em seu conteúdo e na própria função que desempenha no

processo de ensino. Os materiais escolares, sobretudo os livros didáticos, têm importância

para o desenvolvimento curricular em função dos seguintes fatores:

1. São os tradutores das prescrições curriculares gerais e, nessa mesma medida, construtores de seu verdadeiro significado para alunos e professores. 2. São os divulgadores de códigos pedagógicos que levam à prática, isto é, elaboram os conteúdos ao mesmo tempo que planejam para o professor sua própria prática; são depositários de competências profissionais. 3. Voltados à utilização do professor, são recursos muito seguros para manter a atividade durante um tempo prolongado, o que dá uma grande confiança e segurança profissional. Facilitam-lhe a direção da atividade nas aulas. (SACRISTÁN, 2000, p. 157).

A forma como estão estruturados os conhecimentos nos livros didáticos pode

determinar uma visão própria de organização social e cultural, assim como manifesta a forma

de avaliação, de planejamento, de educação, enfim, de práticas educativas adotadas como

padrão para as instituições de ensino. Os conteúdos elencados num currículo irão supor uma

demanda que aproxima dos alunos um produto cultural. Este, por sua vez, traz a configuração

de uma dada editora ou editor, demonstrando seu poder em difundir ideias, comportamentos e

conhecimentos: “O editor de livros-textos, ou de qualquer outro meio que desenvolva o

currículo, não só cria e distribui produtos culturais, como também configura uma prática

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pedagógica e profissional” (Ibidem, p. 157). Ou seja, quem escreve nem sempre vê retratado o

que realmente pensa, pois a redação final passa pelo crivo de um editor ou de um grupo que

fará a seleção dos conteúdos postos, ou tirados, ou acrescentados, ou ainda omitindo algum

conhecimento.

Sob certa ótica, os livros oportunizam a percepção direta ou indireta da ideologia que

orientava os autores do texto ou mesmo daqueles que os coletaram. Para que o livro didático

desempenhe sua função de maneira satisfatória, ou para reproduzir, ou para emancipar, o

professor é a figura indispensável como formador de opiniões.

Se o currículo expressa o plano de socialização através das práticas escolares imposto de fora, essa capacidade de modelação que os professores têm é um contrapeso possível se é exercida adequadamente e se é estimulada como mecanismo contra-hegemônico. Qualquer estratégia de inovação ou de melhora da qualidade da prática do ensino deverá considerar este poder moderador e transformador dos professores. (SACRISTÁN, 2000, p. 166).

Portanto, se o professor possui uma visão crítica de sua prática educativa, de seu

papel, não como detentor do saber ou reprodutor de conteúdos previamente selecionados e

organizados, mas como mediador do conhecimento e auxiliar no processo de aprendizagem,

isto poderá servir de enfrentamento como mecanismo contra-hegemônico. A escolha ou

seleção do que ensinar e como ensinar é feita nas salas de aula pelo professor e nas editoras,

em parceria com uma política de governo, que busca a criação e manutenção histórica de

conteúdos curriculares que sirvam aos objetivos da educação. Nessa perspectiva, os livros

didáticos podem significar a face visível de conteúdos culturais impostos.

Não existe saber que não seja a expressão de uma vontade de poder. Ao mesmo tempo, não existe poder que não se utilize do saber, sobretudo de um saber que se expressa como conhecimento das populações e dos indivíduos submetidos ao poder. (SILVA, 2000, p.120).

Nesta perspectiva, os livros didáticos podem ser utilizados como instrumentos para a

manutenção de poder e podem traduzir até a ideologia do Estado.

A Visibilidade de Elementos da Matemática em Cartilhas e Livros de Leitura

Ao tomar para análise o livro didático consideramos que nele revela-se a prova real de

um conjunto de experiências, traços culturais, ideologias e modelos deixados pelo homem

numa determinada época. Nesta concepção do fazer histórico (LE GOFF, 2003, p. 530)

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considera-se como corpo documental tudo aquilo que dependa da habilidade do historiador

em “fazer falar as coisas mudas”, pois estas trazem elementos da sociedade que as produziu.

Levando em consideração que o documento, no caso os livros didáticos, são expressões

carregadas de identidades, produtos da sociedade que as fabricou e que manifestam um jogo

de relações de poder. Portanto:

O documento não é inócuo. É, antes de mais nada, o resultado de uma montagem, consciente ou inconsciente, da história, da época, da sociedade que o produziram, mas também das épocas sucessivas durante as quais continuou a viver, talvez esquecido, durante as quais continuou a ser manipulado, ainda que pelo silêncio. (LE GOFF, 2003, p. 538).

Este novo fazer histórico permite, portanto, verificar significados que podem ou não

estar aparentes. Investigar a intencionalidade de se abordar fatos, acontecimentos e do contar

a história de uma maneira singular apoiada nas relações de forças de quem detinha o poder.

A pesquisa que se utiliza da análise de documentos vinculados às instituições

escolares, como é o caso dos livros didáticos, supõe uma série de percalços. O primeiro deles

é justamente encontrá-los. Material consumível, descartável e até bem pouco tempo

considerado de pouco valor acadêmico, os livros escolares não são fáceis de serem

localizados, sendo raros os espaços destinados à preservação e à memória do livro didático

(CHOPPIN, 2002).

Fazendo parte do arsenal educativo encontramos imagens veiculadas nos livros de

leitura, cartilhas ou livros didáticos. Essas referências visuais ajudam a construir nosso acervo

estético, nos transmitem concepções sobre os acontecimentos da História, podem expressar

modos de vida, formas de comportamento, valores sociais, nos revelar condicionantes em

relação ao gênero. A imagem auxilia na construção de uma pedagogia de imagens.

Nossas coleções de imagens ficam preservadas cuidadosamente em nosso imaginário e passam a ser um dos referentes para entendermos o mundo, seja pela insistência de seus significados inscritos culturalmente e outros que atribuímos a elas, seja pelas suas qualidades formais e composicionais que nos seduzem, ou pela proximidade e intimidade que mantemos com estas figurinhas e os vínculos afetivos que criamos nas interações entre nós e as imagens. (CUNHA, 2007, p. 113)

Algumas práticas culturais como a de colecionar figurinhas ou santinhos ou de fazer a

leitura de imagens tornam-se componentes do referencial infantil. Através das imagens as

crianças são conduzidas tanto para o mundo social e cultural, quanto ao mundo imaginário.

Aprendemos a nos comunicar inicialmente por meio de rabiscos, borrões e desenhos; estes,

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vão adquirindo forma, significado e acompanham nossa maneira de ver o mundo criando

hábitos e modelos que influenciam no presente e povoarão inconscientemente o futuro desta

criança.

O destaque está na maneira como somos seduzidos por uma imagem bem elaborada,

com cores e brilho, ou pela composição bem delineada, que nos faz atores de uma

determinada cena, de um lugar ou de uma personagem. Essas imagens povoam o inconsciente

e, vez por outra, por exemplo, são retratadas num desenho de escola, ou, então, nos pegamos

usando roupas que em muito se parecem com as utilizadas por uma personagem ou

encontradas numa simples representação, como numa fantasia.

A mesma pedagogia de imagens que serve para ilustrar, encantar e estimular a

aprendizagem da criança pode causar sentimentos contrários como, medo, frustração ou inibir

a apreensão de um determinado conteúdo. Neste caso podemos lembrar a associação feita

entre a Matemática e imagens demoníacas como a estudada por Fernanda Wanderer (2012).

Figura 1 – Capa da cartilha Meu Livro de Contas,

vol. 1, 1933.

Figura 2 – Capa da cartilha Meu Livro de Contas,

vol. 2, 1933.

É nítida a associação da Matemática como algo ruim, algo que perturba que é difícil.

Algo que precisa ser pensado, relacionada ao raciocínio lógico, capacidade muitas vezes

relacionada ao sexo masculino. O imaginário representado acima é utilizado para reforçar o

medo, para forçar estudar, como algo que não se aprende facilmente.

Outro exemplo de ilustração de capa de livro de Matemática esta representado abaixo.

Temos na imagem um menino que esta estudando, fazendo contas, aprendendo a adição

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(1+1= ), aparece nesta ilustração uma menina alimentando carneiros. É possível nesta imagem

a associação da adição com a ideia de contar carneirinhos (1 + 1= 2). O ambiente retratado é

tranquilo, possivelmente a ideia de campo, a menina está representada como a responsável por

cuidar dos animais, tarefas domésticas. Na contra capa temos a presença de três carneirinhos

relacionados com a escrita do número que representam uma associação entre número e

quantidade.

Figura 3 – Capa do livro Meu Diário de aritmética, v.2, 1969.

Figura 4 – Contra capa do livro Meu Diário de aritmética, v.2, 1969.

As referências visuais a que temos acesso constroem nosso acervo estético, nos

transmitem concepções sobre os acontecimentos sociais e podem expressar modos de vida,

formas de comportamento e valores sociais:

Estas diferentes representações expressas em diferentes suportes materiais e linguagens, épocas e tradições culturais me ensinaram a ver sob determinados regimes escópicos. Entendo os regimes escópicos como as maneiras de ver produzidas pelas interações com os diferentes materiais visuais. O modo como construímos nossos modos de ver, a visualidade é formada pelos diferentes regimes escópicos, distinguem a visão, como as possibilidades fisiológicas dos olhos enxergarem, e a visualidade como a construção cultural do nosso olhar. (CUNHA, 2007, p. 115-116).

Portanto, para Cunha (2007) as representações visuais ou artefatos visuais vinculam-se

aos chamados regimes escópicos. As representações vão além de uma possibilidade

fisiológica ou do sentido da visão. Elas dão visualidade ou materialidade segundo um aparato

cultural, direcionam e condicionam nosso olhar. Assim, expressam sentimentos, indicam

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formas de relacionamento e influenciam na aprendizagem. O que vemos é uma convenção

social produzida e aceita como normatizadora de hábitos e condutas próprias para a infância.

De diversas maneiras, as imagens vão sendo incorporadas como auxílio pedagógico ao

professor. Mas esta característica não é exclusividade da educação infantil. Ela é encontrada,

também com a mesma finalidade, nos livros didáticos. Ali existe, também, uma

intencionalidade no processo de seleção de imagens. Algumas servem para padronizar, outras

são valorizadas, encontramos ainda, aquela imagem que é excluída, e outra que existe mesmo

sem expressar ou representar diretamente o conteúdo expresso. Para exemplificar o uso de

imagens incorporadas a livros didáticos que não são próprios para o ensino de Matemática

temos:

Figura 5 – Livro: As férias com o Vovô (pré-livro), 1966.

Figura 6 – Cartilha Proença. 84 ed., 1955

Na figura 5 temos um conteúdo que pertence a área da Matemática, medidas de tempo,

apesar de estar em forma de texto servia para que o aluno decorasse e visualizasse as horas, os

dias da semana, quantos meses tem um ano, as unidades de tempo, hora, minuto e segundo.

Lembrando que este livro, “As férias com o Vovô”, é um livro de leitura e nele encontramos

além de elementos de Língua Portuguesa, Ciências, História e Geografia, de Ensino

Religioso, temos também, noções de Matemática. Nestas noções percebemos o uso de uma

imagem de paisagem (palmeiras), que não se relaciona diretamente ao conteúdo. Na figura 6

da Cartilha Proença, surgem os dias da semana numa ordem cronológica de tempo, a

representação de números ordinais. Para reforçar o conteúdo, seguem-se perguntas referentes

ao assunto, um exercício de memorização.

A noção de tempo constituiu-se uma prioridade no ambiente escolar, tendo visto o

apelo ao progresso via industrialização, tanto na década de 1930 quanto em 1960. A

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referência ao estudo do tempo, controlado, tornou-se também uma prioridade no âmbito

escolar e social. Coube a escola ensinar mais que a noção de tempo, mas, decorar e respeitar

as horas, o semanário e o calendário. Desta forma, encontramos presente nas cartilhas e livros

de leitura nos anos iniciais, a ideia de trabalho, saber cumprir horário – o tempo da fábrica

adentra a escola.

Figura 7 – Cartilha Proença. 84 ed., 1955 Figura 8 – Cartilha Proença. 84 ed., 1955

Na mesma cartilha, temos na figura 7 uma sequência numérica de 1 a 5, com a escrita

dos números, noções de adição, esta operação matemática está representada pela escrita e não

por números, neste caso sinalizamos a ausência de sinal de adição. Ainda observa-se uma

associação de número a quantidade representada. Na figura 8 procura-se relacionar o número

10 com o número de dedos das mãos, quantidades como: uma mão tem cinco dedos – duas

mãos têm dez dedos. A seguir, temos na figura 9 e figura10 a representação de um cubo,

figura geométrica, escreve como é composto o cubo, traz algumas características desse sólido

geométrico, também está mostrando noções de proporcionalidade. A intenção nesta lição é

decorar o nome da figura geométrica e associá-la a sua forma.

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Figura 9 – Cartilha Proença. 84 ed., 1955 Figura 10 – Cartilha Proença. 84 ed., 1955

Uma imagem puramente não tem significado em si. Mas, quando, além da imagem,

existe uma forma específica de falar sobre ela, atribuindo um valor cultural e social, criamos

de certa maneira uma identidade através da legitimação ou naturalização de um dado modelo

imagético. Se existe uma mediação cultural e histórica nas imagens, há também um grande

número de interpretações que variam conforme valores particulares atribuídos a certos textos

visuais. Os significados atribuídos às imagens guardam um rico emaranhado de muitos

dizeres, ou seja, por traz de uma simples representação o que existe é uma forte tendência

ideológica.

As imagens acabam constituindo acervos daquilo que deve ser admirado, preservado, repassado e cultivado pelas crianças. [...] As produções culturais, sejam elas quais forem, programam nosso olhar sobre o mundo, definem e hierarquizam o que é bom, bonito, mal, feio e isto implica em estabelecer diferenças, territorialidade, forças de poder, inclusões e exclusões sociais, de quem pertence e quem não faz parte daquela esfera sociocultural. (CUNHA, 2007, p. 141)

Isto significa dizer que o poder ideológico por trás das imagens nos transforma

em receptáculos e repetidores de padrões sociais, comportamentais, atitudinais e estéticos.

Nossas vidas são invadidas por um conjunto de imagens ou, conforme Cunha (2007),

artefatos visuais, construídos e idealizados para reforçar uma padronização da sociedade.

Pensando nas imagens presentes nos livros didáticos, podemos considerar que

para o professor elas configurariam uma forma de auxiliar na aprendizagem. O conteúdo

imagético incorpora os saberes escolares:

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Efetivamente, as imagens criavam uma maneira especial de leitura, sobretudo, na fase inicial de alfabetização, onde se mesclava com a oralidade. A presença de ilustrações favorecia, em princípio, o diálogo, suscitando comentários que deslizavam continuamente do escrito para o oral e do oral para o escrito. E, desde o início das publicações de livros para as crianças, pode-se constatar que são ilustrados. (BITTENCOURT, 2008, p. 197).

Sob perspectiva didática, para o professor, os livros ilustrados podem auxiliar

diretamente, colaborando no sentido de fazer-se entender. Geralmente as imagens estão

associadas a um texto, servindo assim de “dica” para uma suposta leitura que pretende

suscitar determinada compreensão, construir sentidos preconcebidos. A leitura das imagens

presentes nos livros, cartilhas e livros textos, podem, portanto permitir a identificação de

comportamentos, hábitos; de valores a inculcar além da identificação com certo grupo social,

também induzir à negação de certos agrupamentos sociais e de suas condutas e hábitos.

Considerações Finais

Por meio do estudo dos livros didáticos é possível garimpar vestígios para a produção

da história da educação nacional, da cultura escolar no Brasil. É viável reconstruir aspectos de

um processo histórico complexo, considerando permanências, fragilidades, condicionamentos

sociais e culturais ao redor da educação escolar e dos elementos curriculares de quem os

livros didáticos são veículo. Evidencia-se que a função social do livro didático pode ser

considerada como de um poderoso instrumento destinado a fixar e assegurar um

posicionamento educacional, como veículo privilegiado para inocular regras,

comportamentos, padrões sociais. A visão deste instrumento didático, componente curricular

essencial, ao ser elaborada pela instituição escolar, pode gerar uniformização do saber e de

representações, auxiliando a construir uma forma de pensar e utilizar a ciência que reforçam

ou mantêm uma certa ideologia.

Verificamos que o ensino da Matemática não era um assunto exclusivamente de livros

próprios dessa área do conhecimento, vista certa carência editorial voltada aos anos iniciais.

Surgiam as “noções” da Matemática em livros de leitura e cartilhas destinadas a alfabetização

de forma variada, mesmo que superficialmente os conteúdos considerados essenciais de um

currículo escolar eram selecionados e incluídos nos livros em geral. Sendo o livro didático

usado pelo professor para uniformizar o saber, ficava evidente que certos conteúdos deveriam

ser vistos de maneira geral por todos. Desta forma, o currículo estaria servindo a um projeto

maior de sociedade, para uns elementos básicos do ensino da Matemática, mesmo que de

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maneira estereotipada, e, para outros um aprofundamento do conhecimento possibilitando

assim uma garantia do controle social vigente.

REFERÊNCIAS

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BITTENCOURT, C. Livro didático e saber escolar (1810 – 1910). Belo Horizonte: Autêntica, 2008.

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CUNHA, S. R. V. Pedagogias de imagens. In: DORNELLES, L. V. (org.). Produzindo pedagogias interculturais na infância. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007, p. 113 – 145.

DORFMUND, L. P.; AZEVEDO, Z. de. Meu Diário de Aritmética. São Paulo: FTD, 1969.

LE GOFF, J. História e Memória. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2003.

NAST, W.; TOCHT ROP, L. Meu livro de contas. v. 1 e v. 2. São Leopoldo: Editora Rotermund, 1933.

OLIVEIRA, J. B. A.; GUIMARÃES, S. D. P. A Política do Livro Didático. São Paulo: Summus; Campinas: Ed. Universidade Estadual de Campinas, 1984.

PROENÇA, Antônio Firmino. Cartilha Proença. 84.ed. São Paulo: Melhoramentos, 1955.

SACRISTÁN, J. G. O currículo: uma reflexão sobre a prática. Porto Alegre: ArtMed, 2000.

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WANDERER, F. Educação Matemática e artefatos pedagógicos de escolas rurais

multisseriadas. In: Caderno pedagógico, Lajeado, v. 9, n. 1, 2012, p. 51-66.