imagem provável da fortaleza da barra grande nos dois...

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ARQUITETURA MILITAR 124 AS FORTIFICAÇÕES DA ENTRADA DO CANAL DA BARRA GRANDE FORTALEZA DE SANTO AMARO DA BARRA GRANDE E FORTIM DO GÓES FORTE DO CRASTO OU DA ESTACADA Victor Hugo Mori minúcia o estado anterior do forte (1817) e a proposta de alteração. Maço 20/pasta 2/doc. 6 do Arquivo do Estado – cópia arquivo iphan. 23 Relatório escrito a lápis datado de 1860, assinado O Genal. Come. Mar. José Olinto de Carvº. e Silva, do Arquivo Histórico do Exército (RJ) com reprodução no Arquivo do iphan-sp. 24 Ver nota 20 sobre este relatório de Euclides da Cunha. O “jornalista” E. da Cunha também se manifestou sobre a artilharia inexistente no Forte S. João: “há pouco mais de dois anos, uma comissão de engenheiros militares percorreu êste trecho da nossa costa, arrolando aquelas velhas bôcas de fogo, que o governo federal parece ter cedido a um contratante pelo preço dos ferros velhos imprestáveis…” 25 O tombamento deste forte pelo iphan em 31/10/65 utilizou a denominação “Forte de São Felipe. Em recente trabalho “Monumentos Quinhentistas da Baixada Santista”, do Prof. Júlio Katinsky, publicado na “Revista da usp” nº 41, 1999, pp. 74-97, o autor interpretou formalmente os restos do Forte de São Luiz, como remanescente da construção quinhentista do Forte S. Felipe, ao encontrar similaridade da sua cortina curva com um provável muro (“barbacã”) de defesa do Engenho dos Erasmos. Segundo o autor seria este forte comparável aos exemplos do Livro de Duarte das Armas (1516). Afonso de Taunay foi um dos poucos autores a afirmar que estas ruínas pertenciam ao Forte de São Luiz: “O Morgado de Matheus (…) ordenara que no local do antigo forte de São Felipe se erguesse novo baluarte que devia ter o nome de seu santo padroeiro: São Luiz”. In “Uma Relíquia Notabilíssima a Conservar: O Forte de São Tiago da Bertioga”, Revista do sphan nº 1, p. 6. 26 Tanto o tombamento do Condephaat como o do iphan reiteraram a denominação “Ermida Santo Antonio do Guaibe” na Armação das baleias. A carta do gov. D. Luiz Antônio de Souza de 29/12/1766 ao Conde de Oeyras demonstra claramente que as ruínas atuais foram construídas após o governo do Morgado de Matheus (1768) pelo administrador da Armação Francisco José da Fonseca, pois o próprio governador proibiu a construção de uma nova capela, tendo em vista a existência do oratório da Fortaleza da Bertioga: “…fui fazer visitas na Fabrica da Armação das Baleas da Barra da Bertioga, no dia 10 de março deste ano…advertindo que se determinava fazer huma Capella junto as cazas da dita Armação a prohibi por ser em prejuízo da Fazenda de S. Mag.e…”. 27 Relatório do sphan de 28/11/1937. Onfale (esposa de Hércules). Mário de Andrade também constatou “uma rachadura de alto à baixo” na cortina sul e a fachada nordeste “está cedendo”, com a guarita “pendendo para terra ameaça ruir” – era o estrago do maremoto de 1769 que ainda não fora de todo solucionado.

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As FortiFicAções dA entrAdA do cAnAl

dA BArrA grAndeFortAlezA de sAnto AMAro dA

BArrA grAnde e FortiM do góes Forte do crAsto ou dA estAcAdA

Victor Hugo Mori

minúcia o estado anterior do forte (1817) e a proposta de alteração. Maço 20/pasta 2/doc. 6 do Arquivo do Estado – cópia arquivo iphan.

23 Relatório escrito a lápis datado de 1860, assinado O Genal. Come. Mar. José Olinto de Carvº. e Silva, do Arquivo Histórico do Exército (RJ) com reprodução no Arquivo do iphan-sp.

24 Ver nota 20 sobre este relatório de Euclides da Cunha. O “jornalista” E. da Cunha também se manifestou sobre a artilharia inexistente no Forte S. João: “há pouco mais de dois anos, uma comissão de engenheiros militares percorreu êste trecho da nossa costa, arrolando aquelas velhas bôcas de fogo, que o governo federal parece ter cedido a um contratante pelo preço dos ferros velhos imprestáveis…”

25 O tombamento deste forte pelo iphan em 31/10/65 utilizou a denominação “Forte de São Felipe. Em recente trabalho “Monumentos Quinhentistas da Baixada Santista”, do Prof. Júlio Katinsky, publicado na “Revista da usp” nº 41, 1999, pp. 74-97, o autor interpretou formalmente os restos do Forte de São Luiz, como remanescente da construção quinhentista do Forte S. Felipe, ao encontrar similaridade da sua cortina curva com um provável muro (“barbacã”) de defesa do Engenho dos Erasmos. Segundo o autor seria este forte comparável aos exemplos do Livro de Duarte das Armas (1516). Afonso de Taunay foi um dos poucos autores a afirmar que estas ruínas pertenciam ao Forte de São Luiz: “O Morgado de Matheus (…) ordenara que no local do antigo forte de São Felipe se erguesse novo baluarte que devia ter o nome de seu santo padroeiro: São Luiz”. In “Uma Relíquia Notabilíssima a Conservar: O Forte de São Tiago da Bertioga”, Revista do sphan nº 1, p. 6.

26 Tanto o tombamento do Condephaat como o do iphan reiteraram a denominação “Ermida Santo Antonio do Guaibe” na Armação das baleias. A carta do gov. D. Luiz Antônio de Souza de 29/12/1766 ao Conde de Oeyras demonstra claramente que as ruínas atuais foram construídas após o governo do Morgado de Matheus (1768) pelo administrador da Armação Francisco José da Fonseca, pois o próprio governador proibiu a construção de uma nova capela, tendo em vista a existência do oratório da Fortaleza da Bertioga: “…fui fazer visitas na Fabrica da Armação das Baleas da Barra da Bertioga, no dia 10 de março deste ano…advertindo que se determinava fazer huma Capella junto as cazas da dita Armação a prohibi por ser em prejuízo da Fazenda de S. Mag.e…”.

27 Relatório do sphan de 28/11/1937. Onfale (esposa de Hércules). Mário de Andrade também constatou “uma rachadura de alto à baixo” na cortina sul e a fachada nordeste “está cedendo”, com a guarita “pendendo para terra ameaça ruir” – era o estrago do maremoto de 1769 que ainda não fora de todo solucionado.

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SÉCULOS XVI E XVII

A partir de 1580 toda a América ficou sob domínio da coroa espanhola. A Holanda e a Inglaterra, tradicionais parceiras de Portugal, estavam em conflito com a Espanha. Passaram, então, a ameaçar as suas novas colônias.

“F oi durante o domínio espa-nhol sobre Portugal que realmente se organizaram

os primeiros sistemas eruditos de forti-ficação” aqui no Brasil, cujos protagonistas foram os engenheiros italianos a serviço de Felipe II, “na época os maiores especialis-tas em fortificações moder-nas apropriadas às novas armas de fogo”1.

As mudanças desse período tardaram a se refletir na longínqua Capitania de São Vicente. Ainda em 1578, o inglês John Whithall, que adotara o nome de João Leitão, casado com a filha única do geno-

vês José Adorno, convidou seu amigo na Inglaterra Richard Staper a enviar um navio para S. Vicente para “trazer mercadorias” e “carregar

de acúcar”. O navio Minion of London chegou em Santos

em 03/02/1581, perma-necendo pacificamente por três meses e partin-do em junho carregado

de açúcar.2

Edward Fenton partiu da Inglaterra em 01/05/1582

com destino às Índias pelo Estreito de Magalhães. O almirante espa-nhol Diogo Flores Valdez, nomea-do por Felipe II “Capitão General das Costas do Brasil”, com uma

Imagem do “Trattato del Radio”, de Latino Orsini (1583)Na página ao lado, águia bicéfala dos Habsburgos: símbolo do poder de Felipe II nas Américas.

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Imagem provável da Fortaleza da Barra Grande nos dois primeiros séculos da colonização em fotomontagem sobre foto de Carlos Marques (1998) VHM

prometido recompensar com “dinhei-ro e depois lhe fora pago com vinho vina-gre e ferro e lona podre”4.

Chegando a esquadra em Santa Catarina, Valdez separou três navios dados como impróprios para prosseguir, “Almirante, Con-cepción e Begónia, e mandou-os para o Rio de Janeiro sob o comando de Andrés Igino”, que partiu contrariado, no dia 14/01/1583. A esquadra princi-pal chegou à entrada do Estreito de Magalhães no dia 07/02/1583, e fracassou na tentativa de contorná--lo e fazer as fortificações, retor-nando ao Brasil.5

No dia 19/01/1583, o inglês Edward Fenton chegou ao porto de Santos, que era um dos mais impor-tantes entrepostos para o abasteci-

mento das naus com destino ao Estreito de Magalhães. Ao contrá-rio do Minion of London, desta vez os ingleses foram recebidos com reservas face às novas relações da política internacional e principal-mente devido a presença da esqua-dra espanhola de Felipe II na região. As negociações com Fenton esta-vam sendo encaminhadas por José Adorno, seu genro João Leitão (John Whithall), Estêvão Raposo e Paulo Bandeves, “quando na tarde de 24 entraram as naus espanholas e tra-vou-se o combate”. A nau espanhola Santa Maria de Begónia foi destruí-da e os ingleses partiram com algu-mas avarias, retornando à Inglater-ra sem completar a missão nas Índias.6

Detalhe da ilustração “St. Vicent” do livro de viagem de Joris van Spilbergen, ca. 1615. À direita, na entrada do canal de acesso ao porto, aparece a isolada Fortaleza da Barra edificada em 1583. A reprodução da gravura do livro “Capitanias Paulistas…” de Benedito Calixto, apresenta a seguinte legenda: H- é um castelo na costa da terra perto do rio; I- são quatro de nossas chalupas subindo o rio; K- é um dos nossos navios que protege as nossas chalupas; P- como se incendiou um pequeno navio português.

armada de 16 navios, partiu de Cádiz em 09/09/1581, para percor-rer as costas do Brasil até o Estreito de Magalhães onde deveria fortifi-car as duas margens. Integravam a esquadra espanhola, Pedro Sar-miento Gamboa, designado gover-nador do Estreito de Magalhães; Alonso de Sotomayor, nomeado governador do Chile; o engenheiro militar Bautista Antonelli e o vedor e contador da armada Andrés Egui-no (Igino).

O tempo da estada no Brasil da esquadra espanhola “passou-se em resgate de pau brasil e outras mercado-rias, rusgas entre os chefes. Os resgates, verdadeiros peculatos, estenderam-se também a São Vicente, onde foi tomada carga de açúcar”3.

O Almirante Flores Valdes partiu do Rio de Janeiro em novembro de 1582 em direção ao sul. A Câmara da Vila de São Paulo, em 1583, se revol-tou com a Provisão de Jerônimo Lei-tão, Capitão de S. Vicente, ordenan-do pela segunda vez ao moradores “para que dessem duzentas rezes de gado vacum para a armada de sua majestade para seguir a viajem do estreito de maga-lhães”. Responderam os vereadores ao Capitão que os moradores “todos a uma voz comum disseram que o gado que ao presente havia nesta vila e seu termo não era senão vacas femeas e não havia boi macho nenhum por serem dados o ano passado para a dita armada de sua majestade”. A recusa tinha também como justificativa que no ano ante-rior (1582) o Almirante Valdez havia

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Antes da abdicação de Carlos v em 1555, seu filho Felipe (1527-1598) gover-nava o Ducado de Milão, que se estendia de Pavia até Mântova. Todo o sul abaixo de Roma e a região do Piemonte também esta-vam sob o domínio dos Habsburgos.

Em 1557 o engenheiro militar Giovanni Battista Antonelli, acompanhando o Duque Filiberto de Savoia e a família Gonzaga Col-lona de Mântova, teria participado da bata-lha de San Quintin, sob o comando do Duque de Alba, na vitória dos "espano-ita-lianos" sobre os franceses aliados do Papa Paulo iv. O Tratado de Cateau-Cambrésis no ano seguinte referendou como domínio de Felipe ii da Espanha as áreas de Milão, Nápoles, Sicília e Sardenha. Inúmeros arquitetos e engenheiros da "península ita-liana" sem o apoio do mecenato papal e dos ducados independentes, buscaram amparo na corte espanhola através do Duque de Alba, vice-rei de Nápoles e Sicília, e do pró-prio Felipe ii que fora governante da região milanesa.

Battista Antonelli foi colega e protegido do arquiteto aristocrata Vespasiano Gonza-ga Collona (1531-1591), vice-rei da região valenciana com quem trabalhou no sistema de fortificação de Alicante a partir de 1562. Gonzaga Collona, posteriormente Duque de Mântova, projetou e construiu em 1588 a célebre cidade fortificada de Sabbioneta - um marco do urbanismo renascentista.

Juan Bautista ou Battista era o chefe de uma família de engenheiros militares, composta pelo irmão Bautista Antonelli e

seus sobrinhos Francisco (Francesco), Cristóbal (Cristóforo) de Roda, e Juan Bautista (Giovan Battista, o jovem). Todos adotaram o sobrenome famoso "Antonelli".

Bautista, o irmão mais novo, estava em 1583 na esquadra de Flores Valdez na Costa do Brasil para projetar fortificações no Estreito de Magalhães. Devido a um incidente no Porto de Santos com inglêses, acabou permanecendo na Capitania de São Vicente para projetar e construir a Fortale-za da Barra Grande, conforme o relato de Pedro Sarmiento Gamboa.

Em 1586, após o saque de Francis Drake ao Caribe, Bautista foi designado engenhei-ro militar para a região. Chegou acompa-nhado dos parentes engenheiros, todos a serviço de Felipe ii.

Devem-se à "família Antonelli" inúme-ros projetos hoje declarados Patrimônio da Humanidade pela Unesco: as muralhas defensivas de Cartagenas de Índias, o sis-tema de fortificação de Havana incluindo a famosa Fortaleza de "El Morro", a Forta-leza de "San Pedro de la Roca" em Santia-go de Cuba, o forte de Portobelo no atual Panamá, o traçado urbano de Antigua na Guatemala, as fortificações de Campeche no México, a Fortaleza de "San Felipe del Morro" em San Juan de Porto Rico, etc. São também atribuídos à lavra dos "Anto-nellis" o Forte de Trujillo em Honduras, a conclusão do Aqueduto "de la Zanja Real" em Cuba, e o forte de San Juan Di Ulúa em Vera Cruz no México.

A FAMÍLIA ANTONELLI : CONSTRUTORES DE MONUMENTOS

Edward Fenton sentiu o gosto da vingança cinco anos depois. Foi designado pela coroa inglesa comandante da nau Mary Rose na batalha que destruiu a “Invencível Armada” de Felipe II. Essa derrota marcou o fim da hegemonia maríti-ma da Espanha e Portugal. Nas pró-ximas décadas as invasões de ingle-ses, franceses e holandeses serão constantes tanto na área caribenha como no nordeste brasileiro.

Andrés Eguino (Higino ou Igino) ordenou a construção de um forte na entrada da Barra Grande de Santos, aproveitando-se da artilha-ria e materiais da nau destruída Santa Maria de Begónia, e seguiu para o Rio de Janeiro com as duas naus restantes, deixando a tripula-ção do Begónia guarnecendo o forte. No mês de abril chegou a Santos Pedro Sarmiento Gamboa, a quem devemos os relatos históri-cos destes acontecimentos. Em seguida chegou o comandante Diogo Flores Valdez, retornando da mal sucedida empreitada no Estreito de Magalhães.

Sarmiento Gamboa relatou que o almirante Valdez desqualificou a obra iniciada “de mala traça” por Igino, transferindo para si o crédito dessa iniciativa para ofuscar o seu fracasso na missão no sul: “Y para del todo descomponer las cosas del Estrecho, quiso (Valdez), aprovechar-se de la oca-sion del fortezuelo que halló comenzado, y adjudicó aquello que habia hecho Andrés de Aquino (Igino) para si, por-

que se dixiese que habia hecho algo y cubriese lo que no tenia cubierta. Y por esto dejó alli al ingenier que iba para uno de los fuertes, y por alcaide á Domingo de Garri”. Segundo Sarmiento, este “ingenier” era Bautista Antonelli.7

Rafael Moreira acrescenta que esse engenheiro militar era o italiano Bauttista Antonelli, que “juntamente com seu auxiliar o jesuíta Gaspar Sam-pere” empreenderam obras em San-tos e no Rio de Janeiro entre 1582 e 1584, e fora autor de “interessantes estudos para ligar Abrantes ao Escorial e Madri por via fluvial”.8

Antonelli permaneceu em Santos por determinação de Valdez junta-mente com a guarnição do Begónia, projetando e dirigindo as obras da Fortaleza da Barra Grande, e prova-velmente, auxiliando os moradores da capitania a melhorar as incipien-tes fortificações da capitania. A similaridade tipológica entre os edi-fícios dos quartéis da Fortaleza de Santo Amaro da Barra Grande e do Forte da Bertioga (únicos existentes nessa época), não obstante as altera-ções externas que sofreram a partir do século XVIII, tem como hipótese, a influência de Antonelli em 1583 ou do florentino Baccio de Fillicaya, que esteve em Santos no início do século XVII.

A construção dessa fortaleza tinha dois objetivos. O primeiro seria de guarnecer o Porto de Santos, um entreposto importante para a rota ao Estreito de Magalhães, de nave-gantes ingleses e holandeses; e o

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segundo, marcar simbolicamente a presença do rei Felipe II da Espanha (Felipe I de Portugal) nessas para-gens perdidas do Atlântico Sul, impondo aos vicentinos a obediên-cia legal à dinastia dos Habsburgos. A resistência e a indignação dos moradores da Capitania às “expro-priações de mercadorias” determi-nadas por Valdez, o comércio ilegal com navegadores ingleses, e o clima ainda persistente tanto no Brasil como em Portugal, do desejo da restauração do trono português, provavelmente levaram o Coman-dante espanhol à construir essa for-tificação e a manter uma guarnição “espanhola” com cem soldados.

Além do relato de Pedro Sarmien-to, temos também o testemunho do Padre José de Anchieta no seu céle-bre apontamento “Informações do Brasil e de suas Capitanias” de 1584: “Nela fez agora Diogo Flores Valdes, general da armada que Sua Majestade mandou ao estreito de Magalhães, um forte com gente e artilharia, porque está da outra banda do rio que é a barra de São Vicente onde podem entrar naus grossas. Nesta barra estiveram o ano passado de 1583 dois galeões ingleses que queriam contratar com os moradores e, vindo de arribada três naus da dita armada maltratada das tormentas, mete-ram os ingleses uma delas no fundo com morte de alguma gente e se foram aco-lhendo”. Fica claro que Fenton não estava em Santos fazendo pilhagens mas simplesmente comerciando com os moradores locais.

A armada de Flores Valdez retor-nou a Espanha em maio de 1584, após dar início a uma fortificação denominada de São Felipe no atual Estado da Paraíba. Em março de 1585, ainda permanecia na For-taleza da Barra Grande a guarni-ção de soldados espanhóis chefia-da por Domingo de Garri, confor-me narrativa do padre Fernão Car-dim: “O padre (visitador Christo-vão Gouvêa) em S. Vicente visitou os padres.(…) também visitou o forte que deixou Diogo Flores, com cem sol-dados”.9 Certamente muitos desses soldados-construtores espanhóis escolhidos eram artífices e deze-nas deles aqui se radicaram. Como é o caso do famoso Bartolomeu Bueno, carpinteiro naval, que pos-teriormente foi o inspetor das obras da Matriz de São Paulo e pai dos bandeirantes Jerônimo Bueno e Amador Bueno.

Canhão primitivo, semelhante aos utilizados na defesa da Capitania de São Vicente no século XVI – Castelo de Santo Ângelo, Roma

Implantação provável do projeto original da Fortaleza de Santo Amaro com suas baterias escalonadas VHM

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Uma das hipóteses possíveis aventada por Carlos C. Lemos seria que “os modelos eruditos construídos à beira do canal de Santos e de Bertioga poderiam muito bem ter inspirado os projetos de casas rurais, tanto nos pró-prios engenhos litorâneos como serra acima, nos esparsos complexos roceiros bandeiristas”. O autor questiona porém a possibilidade do Tratado de Andrea Palladio publicado em 1570, pouco anos depois, estar influenciando os construtores nas longínquas colônias de Portugal e Espanha.12 Esse modelo tipológico aqui transplantado tem origem na Vila Medici de Poggio a Caiano na Toscana projetada em 1480 por Giu-liano da Sangallo.

Assim, uma das alternativas viá-veis seria a presença direta na Capi-tania de S. Vicente de projetistas “eruditos”, com amplos conheci-mentos da arquitetura “mediterrâ-nea”, das vilas da renascença na Itá-lia, e dos textos dos tratadistas ita-lianos. Giovanni Antonelli – o mais importante engenheiro militar de Felipe II para as Américas – foi o pri-meiro desses “eruditos” a projetar fortificação nessa capitania e inú-meros de seus artífices aqui perma-neceram. O engenheiro florentino Baccio de Fillicaya foi o segundo que passou por aqui nos primeiros anos do século XVII, projetando o Forte de Montserrate e a capela do mesmo nome na Vila de Santos por ordem de Francisco de Souza. Esses primeiros engenheiros italianos

possuiam ampla formação erudita, balizadas pelos seus mecenas e protetores: Vespasiano Collona e Ferdinando I.

Muitos autores minimizaram a capacidade dos engenheiros milita-res na elaboração de projetos arqui-tetônicos eruditos. Mário Mendon-ça de Oliveira desfaz esse precon-ceito afirmando que bastaria con-sultar “um tratado de engenharia mili-tar português onde os grandes arquite-tos italianos são citados com invulgar intimidade, desde Vitrúvio, ao lado de mestres de fortificações como Castriotto, Sardi, Antoni, Dogen, Freitag, De Ville, Pagan, Vauban, Maralois, Stevin, Medrano, e assim por diante.”13

A impressão de quem avista a for-taleza, com suas muralhas serpen-teando pelas encostas, é que a topo-grafia foi o elemento determinante do projeto. Essa também foi a inter-pretação de Júlio Katinsky e Fernan-da Fernandes que não identificaram nessa planta “a tipologia das fortifica-ções onde a geometria é o elemento defi-nidor da organização espacial”14. Des-vinculado das obras dos tratadistas do Renascimento pela “ausência de bastiões, baluartes e tenalhas”, o proje-to “sugere uma tradição técnica mais facilmente identificável com as técnicas registradas nos desenhos das fortalezas às divisas com a Espanha, do livro de Duarte das Armas (1516)”15.

Qual teria sido o motivo da esco-lha desse sítio acidentado, quando do lado oposto do canal a área plana permitiria a construção de um

Teria restado alguma evidência da fortaleza quinhentista edificada por Antonelli após as grandes obras de transformação promovidas no sécu-lo XVIII? Se tomarmos como referên-cia o relatório do Brigadeiro João Massé de 1714, poderíamos aferir que haviam permanecidos dos sécu-los anteriores, as duas baterias sobrepostas “a de dentro e a de fora”,“a casa que serve de Armazem de polvora” (atual capela), e o edifício dos “quar-teiz”. Tanto esse relatório como o de autoria do Brigadeiro Silva Paes de 1738, colocan em dúvida a afirma-ção de Júlio Katinsky que esse edifí-

cio do alojamento dos soldados seria “seguramente do século XVIII”.10

A planta do edifício dos quartéis, dimensionada para abrigar “cem soldados” de Flores Valdez, poderia ter como matriz a tipologia das vilas renascentistas. Seu partido arquitetônica é similar ao que encontramos na Bertioga, e nas casas rurais do planalto dos séculos XVII e XVIII, denominadas “casas bandeiristas”. Segundo Luís Saia, essas casas paulistas tinham nos desenhos das plantas “além da ori-gem mediterrânea tradicional” o “tra-tamento palladiano erudito”.11

Fortaleza projetada na Barra da Vila de Santos em meados do século XVII – contra-bateria da Fortaleza da Barra Grande – no local onde existiu o Forte do Crasto AHU

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Vila Mediceas de Poggio a Caiano (esq.)Vila Medicea de Artimino (em cima)Forte Belvedere ou de São Jorge (em baixo, à esq.)Fortaleza da Barra Grande, na Capitania de São Vicente (em baixo, à dir.)A Vila Medicea em Poggio a Caiano nas cercanias de Florença, é consi-

derada a primeira da renascença. A residência projetada em 1480 por Giuliano da Sangallo para Lorenzo Medici, antecede em cerca de setenta anos a tipologia das vilas com a loggia entalada no eixo da fachada principal ao gosto de Andrea Palladio, cujo padrão foi disseminado nas terras paulistas.

A Vila Medicea de Artimino, inspirada na vizinha Vila de Poggio, foi construída entre 1590 e 1595 por Bernardo Buontalenti (arquiteto e engenhei-ro militar) para moradia de Ferdinando I. O Grão-duque da Toscana, era o pro-tetor e responsável pela formação educacional do jovem Baccio di Filicaya – o primeiro Engenheiro-mor do Brasil. O curto aprendizado profissional de Filica-ya em Florença deve ter sido intenso. Além da construção da Vila Artimino, Ferdinando I estava construindo o Forte Belvedere em Florença, também pro-jetado por Buontalenti, onde o edifício do aquartelamento seguia a tipologia das vilas residenciais como ocorreria em Santos.

Baccio di Filicaya foi o segundo engenheiro militar italiano a trabalhar em Santos nos primeiros anos do século XVII. Assim como o seu compatriota Gio-vanni Antonelli, o pioneiro na Capitania de São Vicente, deve ter trazido novi-dades na arte de projetar e construir nestas paragens desconhecidas e distantes de Florença – berço do Renascimento.

A INFLUÊNCIA DO RENASCIMENTO ITALIANO

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do século XVII para um sistema de tropas irregulares particulares sob o comando de um senhor. Surgiram as Bandeiras, voltadas para a captu-ra de indígenas para suprir a imen-sa carência de escravos.

No litoral, a existência de uma fortaleza isolada na entrada da Barra Grande, desguarnecida pelo lado oeste onde um “morro servia de padrasto”, e sem o apoio de uma contra-bateria para o cruzamento de fogos, servia apenas como marco simbólico do domínio luso-espa-nhol. O ataque do corsário Caven-dish ao porto de Santos e à Vila de S. Vicente em 1591, apenas compro-vou a ineficácia de uma fortaleza isolada na Ilha de Santo Amaro.

Em meados do século XVII foi pro-jetado um forte quadrangular com quatro baluartes, fosso e revelins na

atual Ponta da Praia de Santos, em frente à Fortaleza de Santo Amaro, mas nada foi edificado por falta de interesse da Coroa.

Com a restauração do trono por-tuguês em 1640, a partida dos holandeses de Pernambuco em 1654, e principalmente, a descoberta de ouro na Capitania de S. Vicente em 1698, a proteção ao Porto de Santos voltou a ser uma prioridade política da metrópole.

Aliás, os descobrimentos aurífe-ros alteraram profundamente a organização militar no Brasil no século XVIII. Com o objetivo de con-trolar todas as áreas de extração e de circulação, a Coroa se viu obriga-da a instalar milícias regulares no território, desfazendo, paulatina-mente, o sistema de defesa “feudal” implantado em 1534.

baluarte estelar? O projeto da Forta-leza abaluartada do Crasto projeta-do por João Massé em 1714 do lado de Santos, demonstrou ser factível essa opção.

Ao observarmos os inúmeros projetos da “família de Juan Bautis-ta” na região do Caribe, a hipótese do “estilo Antonelli” de fortificar poderia ser a resposta para essa indagação. Quase todas as fortifica-ções tem como característica as “baterias sobrepostas” escalonadas sobre as escarpas naturais, que per-mitem linhas de tiros “rasantes” e de “mergulhão”. A Fortaleza de S. Felipe de Porto Rico chegou a pos-suir quatro níveis de patamares de armas, interligados por uma rampa. Considerando-se o reduzido alcan-ce e precisão das primitivas artilha-rias do século XVI, este “sistema Antonelli” permitiria surpreender o ataque das naus, desnorteando os

timoneiros diante das imprevisíveis trajetórias dos projéteis disparados. Nos anos que se seguiram, esse rudimentar partido com reminis-cências medievais, foi aperfeiçoado e consagrado no projeto de Neuf--Brisach de Vauban.

No início do século XVII os maio-res rendimentos da Coroa advi-nham da produção açucareira do nordeste e do monopólio da comer-cialização de escravos africanos. A perda da principal área brasileira de produção de açúcar e dos entre-postos de escravaria na África para os holandeses levaram a metrópole a concentrar os investimentos de defesa na área nordestina.

A Capitania de S. Vicente perma-neceu nesse período fora da aten-ção e do controle do governo cen-tral. No planalto paulista as orde-nanças compostas por “regimentos não regulares”, evoluíram a partir

O armazém de Pólvora foi desativado por se encontrar em lugar desprotegido

O edifício dos quartéis possuia uma altura a†é o frechal de apenas 2,30 m.

Fortaleza da Barra Grande antes da intervenção de João Massé em 1714 VHM

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de elaborar, em 1714, os projetos da “Fortaleza do Crasto” e da moder-nização da Fortaleza da Barra Gran-de, introduziu na Baixada Santista os modernos conceitos de Vauban, procurando transformar as primiti-vas fortificações de caráter pontual, num complexo sistema de defesa territorial. No próximo capítulo, trataremos do projeto que visava a transformar a vila de Santos em recinto fortificado: “a praça forte vaubaniana”. Segundo Mario Men-donça, o brigadeiro João Massé “era de origem inglesa (possivelmente bati-zado John Massey) e não francesa, como muitos historiadores dizem e, até mesmo, antigos documentos infor-mam”.17

A provisão régia de 27/01/1715, considerando “a grande despesa, que a fazenda Real não pode suprir”, man-dou aceitar a proposta de João (Manuel) de Crasto de Oliveira, na

forma da planta desenhada pelo brigadeiro João Massé, e somente após a conclusão das obras aprova-das por um engenheiro real teria “efeito as tais merçês”. O projeto do brigadeiro possuía planta quadran-gular com uma tenalha voltada para o Canal da Barra, e dois baluartes angulares no lado norte. Estava protegido por um fosso e uma linha externa de estacada.18

Para a Fortaleza de Santo Amaro, o engenheiro Massé iria propor uma grande obra de reforma. O precioso relatório de obras que nos deixou, demonstra que apenas o edifício dos quartéis ou “casa forte” perma-neceria na configuração primitiva. Tudo mais seria alterado e amplia-do para atender os novos preceitos da arquitetura militar:

“Na Barra Grande deve-se acabar a Fortaleza de Santo Amaro para o que necessita das obras seguintes (…):

Planta da Fortaleza de Santo Amaro (1734): das obras projetadas em 1714 por Massé apenas havia sido construído o reduto no alto do morro AHU

E sta tentativa também fracas-sou, porém, o interesse polí-tico de dar prioridade à

defesa da vila Santos estava cada vez mais explícito: “ter nela o maior cuidado por ser o único porto para as minas”.

Finalmente, em 30/10/1710, João de Crasto de Oliveira em petição ao rei, se ofereceu para edificar a for-taleza defronte à de Santo Amaro às suas custas, incluindo os “quatro quartéis para a Infantaria desta praça”, “sem reparo no grandioso custo a que há de chegar”, orçados em duzentos e cinqüenta mil cruzados, tudo em troca das seguintes “mercês”:“1ª O Forro de Fidalgo da Casa de S. Mag. na forma do Estilo.2ª Dois hábitos de Cristo cada um com Tença de oitenta mil reis cada ano por três vidas para passar de Pai a Filho e deste a Neto, pagas as ditas tenças nesta provedoria de Santos.3ª A propriedade de um ofício nas minas que renda todos os anos duzen-tos mil reis.4ª A patente de Sargento Maior da Dita Fortaleza para mim e meus des-cendentes com vinte mil reis de soldo cada mês”.

Em 1712, Manuel de Vila Lobos elaborou um projeto para o novo

"Forte do Crasto", possivelmente, aproveitando-se do desenho do século XVII: planta quadrangular com quatro baluartes. O governo português, cauteloso diante do vulto da obra, ordenou a ida do bri-gadeiro João Massé e Manoel Pimentel a Santos, para examinar o local e fazer “a figura da fortificação que paracer mais conveniente”, pois sem o “conhecimento do terreno, se não poderá fazer tão importante obra como a esta que se pretende”.16

O brigadeiro João Massé foi o mais importante personagem na consolidação da defesa militar da capitania no período colonial. Além

Petição de João de Crasto de Oliveira solicitando “mercês” em troca da construção do Forte do lado de Santos (1710) AHU

SÉCULOS XVIII E XIX

Através da Carta régia de 02/12/1698, o rei ordenou “a arrecadação dos impostos” na Capitania de São Vicente com objetivo de “pagar a edificação da fortaleza da Barra naquela vila”, que serviria de apoio à antiga Fortaleza de Santo Amaro.

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uma estacada paralela aos lados, na forma que se tem explicado no papel que toca a fortaleza nova (na praia fronteira). João Massé”

A Carta régia de 22/03/1721 orde-nava a alfândega do Rio de Janeiro consignar 4.000 cruzados anuais ao novo governo estabelecido em S. Paulo, para as obras da Fortaleza de Santo Amaro propostas pelo briga-deiro Massé. Quase nada havia sido executado, pois ainda faltavam os “parapeitos, um recinto em toda a cir-cunvalação do monte, cortadura, casa de pólvora, e correr-se uma cortina pela parte do Rio”.19

Enquanto em 1726 o Governo do Rio de Janeiro continuava a explicar os motivos que o impediam de enviar os 4.000 cruzados anuais para as fortificações de Santos, as obras na Fortaleza de Santo Amaro per-maneciam paralisadas. Do outro lado do canal da Barra Grande, em 1733 estavam concluídos parte dos “alicerces da muralha” da Fortaleza do Crasto “que estavam feitos confor-me a Planta do Brigadeiro João Macé”.20

O ataque dos espanhóis da Argen-tina à colônia portuguesa de Sacra-mento em 1735 e as constantes ten-tativas de “ocupar o litoral ao sul de Cananéia, já que ainda eram nebulosas as divisas entre os domínios de Castela e Portugal antes do Tratado de Madri, de 1750, e do Tratado de Santo Ildefon-so, de 1777”, determinaram a implantação de uma política de defesa da costa meridional do Brasil e das “divisas entre a então capitania

de Mato Grosso e os territórios espa-nhóis da vertente amazônica”. O prin-cipal personagem na estruturação da defesa do litoral sul foi o briga-deiro José da Silva Paes, que no ano de 1739 projetou “um sistema trian-gulado de fortalezas” para a defesa de Santa Catarina.21

A provisão real de 15/02/1736 ordenou a suspensão de todas as obras de defesa da praça de Santos até a vinda do brigadeiro Silva Paes. Um dos fatores que motivaram a presença do brigadeiro em Santos, tinha sido a peritagem feita por ordem do conde de Sarzedas Luís Antônio de Távora, na “obra princi-piada a custa de João de Crasto cujos alicerces se acharam insuficientes, razão por que vos parecera dar me conta pri-meiro para novamente vos declarar se aquela Fortaleza se deve principiar sobre outros fundamentos que tenham a suficiencia e segurança necessária a proporção da obra que ali se requer para defesa daquela barra”.22

O brigadeiro Silva Paes esteve em Santos em 1738 para “examinar as obras que naquele porto se achavam fei-tas, e as que se deviam fazer”. Na For-taleza de Santo Amaro “faltava só cerrar-se pela parte de terra com um muro, que a cerque de sorte que deixára advertido ao Governador daquela Praça lhe fechar na parte em que hoje se acha a polvora, que é uma casinha de telha vã, e que para Armazem da mesma pol-vora elegêra o sítio mais capaz na mesma Fortaleza, de que lhe deixára o risco por donde se devia fazer: Que na

Projeto do Brigadeiro Massé para a Fortaleza do Crasto em 1714 AHU (esq.)

Em 1714, apenas a tenalha projetada por Massé foi executada. O restante das obras foi embargado pelo Brigadeiro Silva Paes em 1738 VHM (em cima)

Levantar se os parapeitos das Bate-rias até nove palmos por dentro e seis por de fora, deixando canhoneiras de vinte e cinco, em vinte cinco palmos de meio em meio.

Entre as canhoneiras deve-se fazer banquetes.

Acabar de lajear a bateria de baixo.Metida na Fortaleza toda a artilharia

necessária deve-se feixar a praça baixa.Fazer-se no lugar assinalado pelo Sr.

Governador uma Casa de pólvora com aquelas prevenções já explicadas no outro papel.

Desmanchar-se a Casa de Pólvora que lá está por ser mal construído e em sitio muito arriscado.

Correr-se uma cortina pela parte de dentro do Rio, e sobre ela fazer uma bateria de oito ou dez peças de artilha-ria, lajeada e com os parapeitos na forma das outras.

Fazer uma porta pequena na paragem

para aonde se entra do Rio a fortaleza, coberta adiante de uma travessa de alve-naria entulhada pelo meio de 15 palmos de largura. (atual portão espanhol)

Continuar se abrir a cortadura até por baixo do nível da água do mar e fazer cortar o mato que esta nas ladeiras do Outeiro na Fortaleza para o fazer inacessível em todas as partes. E porque ambas as baterias da Fortaleza estão descobertas de um alto que fica para alem da cortadura a tiro de espingarda delas, será necessário levantar um Reduto em forma de Atalaia em cima do dito alto capaz de conter 12 ou 15 homens para o que bastará uma torre quadrada comprida por baixo de qua-renta palmos em cada lado, alto de trin-ta e cinco de sapato ao cordão com escarpa de um palmo sobre seis e suas abóbadas e parapelas ...

Ao redor da dita atalaia e a quarenta palmos de distancia deve-se correr

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Parece-nos que Silva Paes pouco acrescentou daquilo que fora deli-neado por João Massé em 1714 na Fortaleza da Barra Grande. Limi-tou-se a projetar a nova casa de pól-vora no alto do morro atrás da ata-laia e mandou prosseguir a cortina até o portão da cortadura projetada por Massé. No velho edifício dos quartéis apenas sugeriu reforçar as vigas do telhado. Em 1742 o gover-nador José Roiz de Oliveira trans-formou a velha casa de pólvora abandonada em uma capela alpen-drada com frontão em volutas, e a sineira sobre a parede que prosse-gue do frontispício nunca chegou a ser executada.

Silva Paes confirmou o parecer anterior sobre a precariedade das fundações executadas na Fortaleza do Crasto, e ordenou a suspensão definitiva da obra projetada por João Massé. Caso fosse concluída, esta fortaleza seria a única do tipo

abaluartada em Santos. A resolução do brigadeiro dá-nos a entender que João de Crasto de Oliveira nunca receberia a totalidade das “mercês” prometidas na Provisão real de 27/01/1715.

As iconografias da Fortaleza do Crasto mostra-nos que a tenalha de pedra que “já se achava fóra da terra uma braça” fora mantida e o restante do perímetro com-plementado por uma estacada de madeira. A partir dessa oca-sião passou a d e n o m i n a r - s e Forte da Estacada.

Perspectiva do Forte da Estacada VHMPlanta do Forte da Trincheira ou da Estacada levantada por João da Costa Ferreira (ca. 1815) AHE

Retrato de Dom Luís Antonio de Botelho Mourão, o “Morgado de Matheus”

“Fortaleza da Barra Grande: nesta fortaleza todas as baterias são à barbeta”. Planta desenhada pelo Tenente Izaltino J.M. de Carvalho, no século XIX AHE

Fortaleza de Santo Amaro no final do século XVIII. Haviam sido concluídos: o reduto e a casa de pólvora no alto do morro e a capela alpendrada VHM

casa forte necessitavam de ser reforça-das as vigas, que a cobrem, para que não suceda e romperem-na”. Na Fortaleza de João de Crasto a tenalha voltada para o canal “já se achava fóra da terra uma braça de obra, porém como os ali-cerces se fizeram com pouca precaução, não estava em termos de se seguir, mas como o dito João de Castro não queria

seguir aquela obra, e por agora não era mui precisada, importando o seu calcu-lo o melhor de sessenta mil cruzados, e a fazenda real daquela repartição não estava em termos de fazer a tal despesa; a julgára o dito Brigadeiro por hora des-necessária, e que só se podiam conservar as cinco peças de sorete em que se acham”.23

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“Obras Novas de Fortalezas na Barra de Santos”. Construção do Fortim do Góes junto à Armação de Baleia. BN

Forno de cal de sambaqui pertecente à antiga Fazenda dos Jesuítas em Cubatão (atual Cosipa). Ele foi reativado pelo Morgado de Matheus para as obras das fortalezas

dos padres da Companhia de Jesus em 1759, como mostra o ofício de 04/12/1767 ao tenente Antônio J. de Carvalho, administrador da fazen-da: “Sem embargo das justíssimas razões como Vm.ce se explica que lhe assistem, faça Vm.ce cal, e mais cal por-que é necessária nesta ocasião para

reparos das Fortalezas de que depende a defesa e segurança desse Porto”.26

Em 1768 o governador enviou o sargento-mor Manoel C. Zuniga para examinar a Fortaleza de Santo Amaro que “estava principiada a arrui-nar em um dos ângulos dela”. Parece que nada foi feito nesta ocasião, pois,

Projeto geométrico para o Fortim do Góes (acima) AHU

O governador D. Luiz Antônio de Souza Mourão, o morgado de Mateus, iniciou a partir de 1765 , a remodelação do sistema de defesa do Porto de Santos. Na Fortaleza da Barra Grande concluiu a cortina até a porta da cortadura, e construiu a pri-são no interior do quartel. Mandou projetar um fortim na Praia do Goes “para impedir os desembarques que podem haver naquela praia, que tem fundo, e podem chegar a ela as embarca-ções sem serem vistas da Fortaleza de Santo Amaro, e desembarcando gentes, e ganhando o morro sem impedimento, ficam enfiando do alto, sem nenhum obs-taculo, com os mosquetes todos os que andarem dentro da dita Fortaleza de Santo Amaro que se descobre toda, e por conseqüencia é logo tomada.”

A planta inicial do Fortim do Goes “que se havia fazer de estacada”, possuía a cortina de madeira em forma curvi-línea voltada para o canal. Em 1766, o

governador resolveu alterar o projeto para uma configuração trapezoidal “feito de pedra e cal”. No ano seguinte, faltava completar o parapeito e as guaritas. “O Forte consta de uma corti-na de dois angulos abertos de 2/3 palmos de comprido, e de 20 de alto, a qual forma tres faces, uma virada para a praia, que defende o desembarque, e as duas para o mar, da parte de tras é pegado no morro. Levará dezoito peças, foi feito com muita comodidade na despesa, parece-me que andará por três mil cruzados, e faz gran-de diferença ao que custou a cortina com que se acrescentou a Fortaleza de Santo Amaro, que sendo quase o mesmo impor-tou muitos mil cruzados.”24

Nesta época, o morgado de Mateus também estava edificando o Forte São Luiz na Bertioga. Toda a cal de sambaqui empregada nessas obras provinha da caieira da fazen-da dos jesuítas de Cubatão25, incor-porada pela Coroa com a expulsão

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frente do quartel uma grande varanda, onde se recolha a artilharia”.28

A invasão de Portugal pelas tro-pas de Napoleão Bonaparte, em 1807, acarretou a transferência da Corte portuguesa para o Rio de Janeiro no ano seguinte. A transfor-mação da colônia em metrópole vai

involuntariamente, criar as bases para se desenvolver internamente o conceito de “nação brasileira” e o conseqüente sentimento de inde-pendência.

Protegido das forças napoleôni-cas pela distância, e apoiado pelas demais nações, principalmente pela Inglaterra, com a abertura dos por-tos brasileiros, a Coroa desviou a política de defesa litorânea para um novo inimigo: a invasão dos ideais da revolução francesa e da inde-pendência americana. A Circular de 07/06/1810 aos comandantes das vilas da marinha, ordenava o exame das equipagens e passageiros, podendo “submeter a quarentena” as embarcações americanas, com o objetivo de proibir a entrada dos “franceses papéis incendiários contra o felicíssimo governo de Nosso Amado Soberano”.29

Vista do Fortim do Góes em 1960

Detalhe da cortina do Fortim do Góes

“Reduto que D. Luís mandou fazer na Barra de Santos” BN

apenas em 1793, o pedreiro Manoel Lopes examinando as cortinas con-cluiu: “que carece muito acudir os dois cunhais das duas guaritas da Bateria de baixo, pela parte exterior, por ter a conti-nuação do mar, cavado a cantaria dos sobreditos cunhais de sorte, que enfra-quecidos o talude da muralha, (…) e que se pode reparar com um betume feito de borra de azeite e cal”.27

Em 1777, foi assinado o Tratado de Santo Ildefonso entre Portugal e Espanha, definindo os limites do Brasil até o atual estado do Rio Grande do Sul. Afastado o perigo espanhol do sul, a atenção militar da Coroa passou a se concentrar nas revoltas internas, inspiradas nos movimentos, que geraram a Inde-pendência dos Estados Unidos e a Revolução Francesa, a exemplo da Inconfidência Mineira. Assim, no fim do século XVIII, pouco se fez nas obras das fortificações santistas. Os recursos provenientes do açúcar

ituano foram canalizados para a construção da primeira estrada lajeada interligando o Porto de San-tos ao planalto paulista - a Calçada do Lorena.

Na virada do século, um relatório assim descrevia o estado das fortifi-cações: “Na barra grande achei as por-tas podres e espedaçadas, o quartel muito arruinado e parte dele a cair, a casa da pólvora por acabar; na bateria de baixo achei algumas peças montadas em carretas podres e outras no chão, muito mal tratadas, de sorte que toda esta bateria está impossibilitada de fazer fogo (…); No norte da praia do Goes se acham oito peças, quatro montadas e quatro desmontadas e muito mal trata-das, de sorte que algumas já estão em estado de não poder dar fogo; Na forta-leza da Trincheira (Estacada) se acham onze peças, todas desmontadas e algu-mas já sem serventia. A estacada esta toda podre e o quartel bastante arruina-do. Com pouca despesa se pode fazer na

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Ruínas da Casa de Pólvora no alto do morro

Reduto: terceira bateria construída no século XVIII para a proteção de encostas defronte a Casa de Pólvora

Detalhe da “Planta da Vila de Santos” (século XVIII) AHE

Em 1809, o engenheiro João da Costa Ferreira recebeu ordens para ir a Santos substituir todos os reparos das artilharias para carretames navais, aqueles “de quatro rodas, como he o carretame da marinha” pois eram “mais comoda para se livrarem das chu-vas”, pois facilmente se deslocavam para os telheiros de proteção. Outra recomendação dessa época para a melhor proteção dos reparos e arti-lharia, era no sentido de pintar com “oleo de linhaça na falta deste com azeite de amono, e uma terra que há em Cananéia que é semelhante ao roxo-terra da Italia” (óxido de ferro)30.

Exaurido o ouro das Minas Gerais, que sustentou o esplendor do barro-co brasileiro, a produção do café que partiu do vale do Rio Paraíba flumi-nense até São Paulo, iria dar suporte para a transformação da feição colo-

nial das nossas cidades. Era o estilo neoclássico que a “Missão Francesa” trazia para a corte no Rio de Janeiro, e serviu de referência para todo o país no campo das artes e arquitetu-ra. Porém na área mercantil e militar, todo o controle estava nas mãos da Inglaterra, que tinha o interesse em dominar a zona platina do sul. Até mesmo a Independência do Brasil, contou com o apoio de Londres, que liberou o primeiro empréstimo exter-no no valor de 3 milhões de libras esterlinas em 1824. A organização militar colonial encerrou-se na práti-ca, somente com a criação da Guarda Nacional em 18/08/1831, após a revolta que resultou na abdicação de D. Pedro I, segundo Werneck Sodré.31

Os relatórios dos comandantes da Barra Grande entre os anos da Inde-pendência do Brasil e 1853, perten-

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Planta do “Estado actual dos diversos desméritos do Forte da Barra Grande”, anterior a 1895. AHE

Em 1858, o quartel foi considerado “em bom estado por se ter ultimado uma obra em 1854”, porém ainda necessi-tava da “mudança da cozinha para fora do Corpo do Quartel por estar contígua a sala de jantar em razão da fumaça”. Faltava também a construção de uma latrina que “em tempo algum existiu”, e a “supressão dos alçapões de cima das duas prisões por serem lugares que são hoje ocupados em arrecadação dos utensílios”, e “abrindo-se as compe-tentes portas nos mesmos lugares em que serviam em outros tempos” para as pri-sões, uma “para correção e a outra para maiores crimes”, ficariam todas com “comunicação do ar”.

As muralhas foram rebocadas e caiadas em 1860, mas no quartel o relatório informava que a sala preci-sava “ser assoalhada bem como forrar e assoalhar dois quartos”. O edifício religioso “necessitava ser "reentelha-do, assualhado e caiado”, a casa de pólvora no alto do morro continua-va sem piso de tijolos.32

No ano seguinte a Forte da Esta-cada, então denominado Augusto, já encontrava-se desativado. O General José Olinto de C. e Silva relatava que o “defronte a fortaleza da Barra Grande um Forte denominado Augusto, o qual está de todo em aban-dono, tem algumas bocas de fogo cal. 12 que pretendo emprega-las na fortaleza da Bertioga”.33

Em 1878, desabou o alpendre da capela em “conseqüência do mau esta-do”. No ano de 1886 o fortim do Góes estava desarmado e na Barra Grande a “casa do comandante, quar-tel e paiol da polvora estavam em estado de ruina ameaçando os seus telhados desabarem à todo momento devido estar a maior parte da madeira estragada e podre, (…) e as muralhas estavam todas pretas, por não serem caiadas há mais de trinta anos”.

A última obra aconteceu em 1894, na reforma inacabada do quartel. O telhado colonial arruinado, foi subs-tituído por um novo, mais alto,

“Planta da fortaleza da Barra Grande da Vila de Santos” desenhada pelo Tenente-Coronel J. Antonio Cabral AHE

centes ao Arquivo do Exército, denunciavam invariavelmente o estado de abandono das fortificações da entrada da barra de Santos.

O alvo da poderosa Inglaterra era controlar as rotas marítimas comer-ciais brasileiras. A tutela inglesa per-mitiu ao governo brasileiro descui-dar-se da proteção física do porto de Santos, concentrando os recursos de defesa na organização do aparelho militar central, para suprimir os dis-túrbios internos e, externamente, buscar o domínio da região cisplatina atendendo aos interesses dos ingle-ses. Aliás, as revoltas internas, que se iniciaram como sequelas da separa-ção de Portugal, tornaram-se fre-qüentes a partir da Regência, contra-pondo liberais e conservadores e, depois, monarquistas e republicanos.

O relatório do Comandante da For-taleza da Barra, de 1815, descrevia que “o quartelamento esta avir abaixo, sua ruína é considerável, a varanda dos fundos do quartelamento esta a cair e a casa do Deposito das munições da mesma Fortaleza se acha em estado de não poder ali guardar coisa alguma ainda de menor risco por causa das águas que recebe tanto por cima como por baixo”. No ano de 1853, o comandante Tenente Coro-nel Alexandre M. de Carvalho Oli-veira reclamava que “o estado do Quartel é tão ruinoso, tão incomodo, e tão insalubre e pouco decente, que não pode sofrer a menor demora na sua repa-ração”. Enfim, no ano seguinte, acon-teceram algumas obras de reforma tão aguardadas, que foram executa-das pelo tenente cel. Alexandre de Carvalho Oliveira.

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Postal da Fortaleza da Barra antes do encerramento das suas atividades militares

Góes foram invadidos por particulares que apoderaram-se de terrenos e cons-truíram sem licença casas habitações em terrenos do Ministério da Guerra,(…); acrescento que o Forte Augusto ficou por isso reduzido de extensão que em nada difere de um quintal comum”. Em pior situação que os terrenos da época colonial estava a antiquada artilharia da Fortaleza da Barra Grande e do Forte Augusto (Estacada).

“No forte Augusto.A artilharia assentada no forte

Augusto não pode funcionar. São seis os canhões aí existentes e eis os motivos alegados: O canhão retro-carga Whit-worth 70º está montado n’um reparo de Gribeanval que não tem a compatível solidez e fixidez. Um dos canhões Whit-worth 70º está há anos encravado com uma granada do seu mesmo calibre (70). Um dos três canhões restantes está montado n’um reparo de Praça e Costa ao qual falta o respectivo caixilho e dis-positivos inerentes a esta parte do repa-ro (caixilho). Restam pois dois canhões: Um d’estes dois ante-carga Whitworth 70º como os outros está montado n’um reparo de Praça e Costa de caixilhos e

tudo assentado sobre o estrado de madeira porém a testa do caixilho d’este reparo está assentado sobre o estrado que é de madeira, quando esta parte do reparo devia assentar sobre trilho de bronze ou ferro (aparafusado ao estra-do) para a testa do caixilho poder com eles (desviar).(…) O Canhão restante tem a culatra quebrada. São estes os pontos principais que acarretam a impossibilidade de funcionar perfeita-mente a artilharia citada. (…)

Na Fortaleza.Um antecarga Whitworth 24º des-

montado por não existir aqui o respecti-vo reparo. Um ante-carga Whitworth 12º que tem o pano da culatra quebrada e além disso a carreta em que está mon-tado não tem rodas, as quais apodrece-ram (…). Quatro canhões ante-carga Whitworth 4º que não prestam serviço pela insignificância do calibre e dois canhões de bronze raiados 12º. Estes últimos, isto é estes dois canhões la Hite 12º fazem todo o serviço, taes como inti-mações a navios delinquentes, salvas continenciais a navios de guerra etc.” 34

Em 1897, a Comissão que estuda-va o novo plano de defesa do Porto

Cartão postal colorizado da Fortaleza da Barra Grande do início do século XX

coberto com telhas francesas. As fachadas norte e leste foram refeitas segundo as formas ecléticas do período. O alpendre fronteiro ganhou arcadas de tijolos coroadas por platibanda substituindo o beiral primitivo. Nas demais faces do edi-fício e no seu interior, permanece-ram os vãos emoldurados pelas cantarias tradicionais.

Os conflitos internacionais contra a Argentina (1851-1852), o Uruguai (1864-1865) e principalmente o Paraguai (1864-1870), fomentaram o fortalecimento da armada militar brasileira e a necessidade da moder-nização do sistema defensivo nacio-nal. Outro dos legados da Guerra do Paraguai foi o surgimento de lideranças nascidas fora da aristo-cracia formada pelos senhores de terra, que constituiriam o epicentro do poder republicano, logo após a deposição de D. Pedro II.

No final do século XIX, já estava em elaboração o novo Plano de Defesa do Porto de Santos, em fun-ção da chegada da ferrovia inglesa e da modernização do sistema por-tuário de Santos. As modernas arti-lharias como os canhões Krupp e Schneider-Canet com alcance e pre-cisão quilométrica, tornaram obso-leto o sistema de defesa colonial da Baixada Santista. Pouco depois, começariam as desapropriações das glebas de Itaipú para se implantar as novas fortificações.

Em nome da modernização, nem mesmo os terrenos militares de posse imemoriais tiveram qualquer preocupação pelo Ministério da Guerra. No Relatório de 1889 o comandante Francisco Álvaro de Souza ainda pedia providências aos superiores “porque consta-me que em datas anteriores, os dominios da Fortale-za, forte Augusto, e Paiol da Praia do

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Interior da Capela de Santo Amaro, antes da restauração

rar a velha fortificação: “Me parece que nesta Fortaleza vão ser executadas obras de adaptação a defesa do porto; (…) Quaisquer que sejam as obras, não deixa de ter cabimento o pedido de pro-videncias contido no presente Relatório, e que, datando de anos, assim vão conti-nuando. (…) O fornecimento de peque-nos canhões para salvas será fatalmente necessário, porque a Fortaleza depois de restaurada, não poderá fazer este serviço com canhões de grosso calibre”.

Felizmente, o projeto da “segun-da barreira” foi abandonado pela Comissão de Defesa do Porto. Em abril de 1905 a Fortaleza da Barra foi desarmada após 312 anos de ati-vidade militar defendendo a entra-da do Porto de Santos substituída pela Fortaleza de Itaipu.

A antiga Fortaleza do Crasto, da Estacada posteriormente denomi-

nada Forte Augusto, foi demolida no início do século XX para a cons-trução da Escola de Aprendizes de Marinheiro. Nesse novo edifício, iniciado em 1906, funciona atual-mente o Museu de Pesca de Santos.

Durante os anos que se seguiram, a história da Fortaleza de Santo Amaro foi permeada por ocupações provisórias intercaladas por perío-dos de abandono. Foi sede do Cír-culo Militar e posteriormente da Sociedade dos Amigos da Marinha. Tombada como monumento nacio-nal pelo IPHAN em 1964, somente em 02/09/1993 deu-se início ao processo de sua recuperação, com a assinatura do “Protocolo de Inten-ções” entre o Instituto do Patrimô-nio Histórico e Artístico Nacional, a Universidade Católica de Santos e a Prefeitura de Guarujá.

de Santos trabalhava sigilosamente com a hipótese de se criar duas linhas de defesa. A primeira na entrada da baía de Santos compos-ta de três fortificações assentadas na Ponta do Itaipu, na Ilha das Pal-mas e um forte marítimo no meio da baía. A segunda linha também com três baterias situadas na Forta-leza de Santo Amaro, que seria

demolida, na foz do Rio de Santo Amaro junto ao Canal da Barra e a outra na Ilha de Santos.

Segundo o relatório de Dezembro de 1897, do Capitão Erico Augusto de Oliveira, a antiga Fortaleza da Barra seria demolida e substituída por um forte retangular completa-mente fechado e blindado de con-creto para abrigar “uma bateria torpê-dica submarina” protegida por “abó-bodas a prova de bombas” com espes-suras de 2,5 m. Seriam três tubos lança-torpedos móveis com "campo de tiro de 120º", baseado no sistema “indicado pelo general Brialmont em sua Defeuse des Côtes”.

O comandante da Fortaleza da Barra em 1904, desconhecendo o teor destes projetos secretos para a defesa do Porto, ingenuamente pro-testava por mais verbas para restau-

Interior do quartel destelhado da Fortaleza da Barra Grande”

Canhão Withworth abandonado na Fortaleza da Barra Grande (1969) IPHAN

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DA BARRA DE SANTOS DE 1º/01/1904”

Higiene. Não é lisonjeiro o estado sanitário do pessoal. (…) não possuem os requisitos exi-

gidos pela higiene, tais como latrinas, drenagens de águas pluviais, ventilação (…)Armamento.A fortaleza tem para o serviço dois canhões Krupp 7,5 e 28 sendo que um deles

já está com uma das rodas estragada. A não ser este armamento possui mais qua-tro canhões ante-carga Whitworth 4º, que não são aproveitados por pequenos, e um canhão antecarga Whitworth 24 libras, desmontado e para o qual não existe aqui o respectivo reparo.

Até há pouco existiam mais dois canhões de bronze, que auxiliava as sal-vas de artilharia, porem foram retirados pelo arrematante de metais impres-táveis no serviço.

Ficaram portanto para o serviço das salvas, apenas os dois canhões Krupp acima mencionados, pelo que fiz pedido em 31 de Julho do ano findo, de mais dois outros. Pelo ofício da Seção de Material do Senhor Comandante numero 1619 de 23 de outubro ainda de 1903, fui informado que o fornecimento deixara de ser feito, porque a Chefia da Comissão de defesa do porto desta Cidade, em informa-ção prestada, declarou não convir o fornecimento. (…)

Considerações Gerais.Me parece que nesta Fortaleza vão ser executadas obras de adaptação a defesa

do porto; serviço este, a cargo da Comissão que há dois anos está trabalhando no costão fronteiro na barra.

Quaisquer que sejam as obras, não deixa de ter cabimento o pedido de provi-dencias contido no presente Relatório, para as faltas e inconvenientes atualmen-te existentes, e que, datando de anos, assim vão continuando. (…) O fornecimen-to de pequenos canhões para salvas será fatalmente necessário, porque a Fortale-za depois de restaurada, não poderá fazer este serviço com canhões de grosso cali-bre e isto no caso de serem eles aqui assentados; (…)

Fortaleza da Barra de Santos, 1º de Janeiro de 1904.As. Francisco Alvaro de SousaCapitão Comandante”

Relatório do ano de 1903 da fortaleza da Barra de Santos, manuscrito de 01/01/1904 assinado pelo Capitão Comandante Francisco Alvaro de Souza – Arquivo Histórico do Exército (RJ) – Cópia IPHAN-SP.

“ÚLTIMO RELATÓRIO DO COMANDO DA FORTALEZA

(…)EdifíciosAcham-se sob a imediata dependência deste Comando, alem dos dois edifícios

existentes nesta fortaleza, mais os seguintes: deposito de Artigos Bélicos e paiol da Praia do Goes.

Na Fortaleza, pode-se dizer que existe apenas uma casa aproveitável. É a que subdividida internamente, abrange o quartel e casa do Comando. O outro edifício a parte; foi construído em tempos coloniais para capela, acha-se em ruínas. Cons-ta-me que a casa foi consertada em 1894; porém as obras então encetadas não foram concluídas. Beneficiaram somente a frente e oitão direito, porem mais da metade da casa; na parte dos fundos; ficou com alguns muros em ruínas, paredes por concluir, ausência de soalho ou ladrilho nos compartimentos e falta de portas e janelas. Esta parte do quartel, apesar de nociva, esta sendo aproveitada, por não haver outro recurso; pois que a interrupção das obras, importou na supressão de acomodações indispensáveis, que interiormente existiam. A parte da frente é ocupada pelo prin-cipal alojamento e casa do Comando, e tem um porão comum, cuja altura varia de um metro a alguns centímetros, conforme os acidentes do terreno. Este porão (cuja área me parece não ser cimentada, de modo a torna-la estanque) não tem mezani-nos nem comunicação para o exterior, para ser arejado ou asseado. Devido ao gran-de numero de dezenas de anos que o local é habitado, é de presumir, que deve exis-tir no porão corpos adequados à emanações de gases mephiticos. (…)

Depósito de Artigos Bélicos.Esta situado fora da Fortaleza e necessita pequenas obras de reboco nas pare-

des, pinturas e substituição de algumas telhas.

Paiol da Praia do Goes.É constituído por um pequeno edifício, subdividido internamente em dois com-

partimentos, armazenando em um deles toda a munição. Para sua guarda, ali exis-te um pequeno destacamento, que reside dentro mesmo do Paiol, no compartimento contíguo ao da munição; por não haver outra qualquer dependência para esse fim. Me parece que deve ser reparado a falta de uma pequena casa, para moradia do pes-soal em guarda do Paiol. Este edifício precisa de ligeiros concertos, inclusive nos batentes, que apodreceram de uma janela. (…)

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primeira proposta de restauro for-mulado para a Fortaleza da Barra Grande, de autoria do arquiteto Lúcio Costa35, em 21/09/1950, que assim se manifestava sobre esse monumento “já indevidamente refor-mado, cabendo agora, na eventualidade de obras de adaptação beneficia-lo com novo telhado (mais baixo e com telhas de modelo antigo), recompondo-se ainda os arcos e demais vãos modernizados”.

Para os técnicos do iphan, a polê-mica sobre esse projetos fomentou uma profunda reflexão e questiona-mento sobre os conceitos formula-dos nas cartas de restauro, cuja dis-cussão é parte das preocupações atuais de inúmeros congressos internacionais.

Os diversos posicionamentos assumidos por grupos ou pessoas ao longo deste processo, quase que refletem os mesmos argumentos que deflagraram debates incessantes na Europa, sobre os procedimentos de restauro a partir do século XIX. Alguns defendiam a idéia romântica da simples manutenção do status quo, ou seja, a preservação da Forta-leza da Barra como ruínas, outros, a restauração dos edifícios em suas formas originais idealizadas por Giovanni Battista Antonelli36 no século XVI; haviam os partidários de se recuar o monumento no tempo até o século XVIII, conforme concebi-do pelo brigadeiro João Massé 37, e opositores que pregavam o retorno dos edifícios às feições assumidas recentemente quando abrigava o

Clube Militar. Imaginaram até mesmo a possibilidade de se conti-nuar as obras interrompidas em 1894 por falta de recursos, completando-se as duas fachadas que faltaram com modenaturas ecléticas.

Os partidários da manutenção do aspecto de ruínas, conscientemente ou inconscientemente, evocavam o posicionamento romântico de John Ruskin (1819-1900) e William Mor-ris (1834-1896) no século XIX, ideolo-gicamente firmado na crítica à revo-lução industrial emergente. Sobre a restauração, defendida por Viollet--Le-Duc (1814-1879) na França, Rus-kin38 afirmava ser “impossível restau-rar qualquer coisa que foi grande e bela na arquitetura, como é impossível res-suscitar dos mortos, (…), aquele espíri-to que se comunica através da mão do artífice não pode jamais voltar a vida.” A seguir o autor justificava esta afir-mação39: “nós não temos nenhum direi-to de tocá-los, não são nossos, perten-cem à aqueles que o construíram e em parte a todas as gerações humanas que os seguiram.”

É, porém, William Morris, segui-dor do pensamento de Ruskin, o autor de inúmeros enunciados que ajudaram a definir o moderno con-ceito de preservação cultural. Mor-ris, foi o criador do “The Anti-Res-toration Movement” em 1877 e da “SPAB – Society for The Protection of Ancient Buildings”, fundamenta-do na crença que apenas a socieda-de organizada e conscientizada daria eficácia à uma política preser-

A HISTÓRIA DO RESTAURO NAS OBRAS DA FORTALEZA DA BARRA GRANDE

Das últimas obras de restauração efetuadas pelo IPHAN em São Paulo, os projetos da Fortaleza da Barra Grande na Ilha de Santo Amaro e o do Forte São João da Bertioga, foram sem dúvida os mais polêmicos.

Fortaleza da Barra Grande em 1983

I ncitaram manifestações públi-cas de aprovação e repúdio. Estiveram presentes ininter-

ruptamente na mídia sob múltiplos enfoques e críticas, devido à pro-posta inovadora na concepção dos projetos de arquitetura.

Passados oito anos do início do movimento pró-Fortaleza coordena-do pela unisantos, e da apresenta-ção pública do anteprojeto de res-tauro na Faculdade de Arquitetura de Santos, pressente-se hoje uma quase unanimidade, quanto à apro-vação dos critérios arquitetônicos adotados.

A visão dos monumentos paulati-namente ressurgindo, brancos e vigorosos, na paisagem dos Canais da Barra Pequena e Grande, depois de décadas de abandono, vandalis-mo e arruinamento, arrefece as dife-renças conceituais de opiniões, sendo aos poucos substituídas pela cumplicidade na ressurreição des-ses monumentos.

O partido arquitetônico do projeto para a Fortaleza da Barra Grande coordenado pelo Professor Antonio Luiz Dias de Andrade do iphan, com a colaboração do arquiteto Vic-tor Hugo Mori, tem sua origem na

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Proposta de restauração dos arquitetos Antonio Luiz Dias de Andrade e Victor H. Mori IPHAN

naire raisonné de l'architecture française du XI au XVI siècle” (1854): “restaurar um monumento não é ape-nas reconstituí-lo, repará-lo, ou refazê--lo, mas restabelecer um estado com-pleto que pode jamais ter existido”.

Gallego Fernandez43 prefere tradu-zir o termo “état complet”, por “estado ideal”, por entender ser o objetivo do restauro violletiano a edificação de um modelo idealizado – um arquéti-po formulado através dos “momentos de privilegiada síntese” 44 da história da arquitetura, desconsiderando-se o que o precede (formação) e o que o procede (decadência).

O pensamento de Viollet-Le-Duc não pode ser dissociado, do pensa-mento arquitetônico do século XIX, expressa parcialmente nas restitui-

ções ideais que arquitetos e arqueó-logos realizaram na Europa, e dos ensinamentos nas escolas de arqui-tetura, que motivaram uma séria crítica de César Daly por ensinar “O antigo e nada mais que o antigo. E entre o antigo, nem o começo nem o fim, e sim exclusivamente o apogeu.” 45

Também não podemos desconsi-derar o confronto ideológico de Viollet-Le-Duc com os partidários da arquitetura clássica, que defen-diam ser a cultura greco-romano, a gênese da arquitetura nacional fran-cesa, inclusive do românico. Para Viollet-Le-Duc, era o gótico do sécu-lo XIII idealizado, o arquétipo que representava o espírito nacional. Essa tese libertava a França da influência e dependência cultural

Desenho feito pelo arquiteto Antonio Luiz Dias de Andrade do Quartel e Capela antes da restauração IPHAN

vacionista. Liderou um movimento internacional contra a restauração da catedral de São Marcos em Vene-za, defendendo o “conceito de patri-mônio humanidade” em artigo inti-tulado “The Restoration of St. Mark's”, em 1879, quando afirmava: “Os edifícios de uma nação não são somente propriedade desta nação, mas são do mundo todo”.40

Em outro artigo, datado de 1885, “The Demolition of Churches in York”, Morris41 defendeu a idéia da preservação de conjuntos urbano, das pequenas construções cujas demolições “significaria arrancar da cidade, a sua alma, torna-la um local banal”, discutiu a preservação das “pequenas e humildes igrejas paro-quiais dignas de proteção como as gran-

des catedrais do país”, e afirmou a necessidade do uso do edifício como meio de preservação: “cada arquitetura possui a sua particular fun-ção (…), quando a função vem a faltar, toda a construção se extingue. Por essa razão é importante encontrar uma fun-ção social inclusive para as velhas igre-jas abandonadas (…)”.

O arquiteto Gustavo Pereira, assim sintetizou o pensamento de Morris sobre a intervenção em monumentos: “reparar ao invés de restaurar, prevenir para não ter que remediar”.42

Em oposição aos princípios defendidos por Morris e Ruskin, Viollet-Le-Duc na França, propõe os fundamentos do restauro moderno, no seu clássico “Diction-

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Conclusão da estrutura metálica em aço corten no edifício do Quartel

A hipótese de retorno aos dois primeiros séculos implicaria na prá-tica, em destruir todo o conjunto existente, mantendo-se apenas as duas baterias, ainda assim dimi-nuindo-se a altura acrescentada por Massé e manter o quartel em sua tipologia palladiana, espacialmente semelhante às casas bandeiristas do planalto, porém mais baixo que a construção atual e sem as arcadas acrescentadas no século XIX. A outra hipótese de retorno às feições do século XVIII, também implicaria a demolição e reconstrução de 50% do quartel, ainda assim calcado em conjecturas, pois inexistem evidên-cias materiais ou iconográficas con-

fiáveis para definir os elementos como portas, janelas, detalhes técni-cos, cobertura, etc.

A polêmica sobre a restauração no século XIX, que criou as bases para o restauro moderno, na verdade, não se limitou aos personagens Ruskin, Morris e Viollet-Le-Duc. O arqueó-logo R. Bordeaux, em sua obra “Traité de la reparation des eglises: Principes d'Archèologie practique”, de 1862, insere na discussão um dos postulado básico do restauro moderno: “conservar respeitando o antigo sem mutilar os agregados que o tempo incorporou.” 48 A restauração do Arco de Tito em Roma em 1821 por Valadier, apresentou o princípio

Mural de Manabu Mabe, em mosaico de vidro, para a Capela da Fortaleza da Barra Grande (1997)

de Roma, afirmando sua gênese na arte oriental trazida pelos cruzados. Na restauração de Saint-Front de Perigueux, com assessoria direta de Viollet-Le-Duc, seu discípulo Paul Abadie, materializou esta tese, “construindo” uma igreja bizantina tendo como modelo ideal a igreja dos Santos Apóstolos em Constanti-nopla, sobre uma igreja típica da Aquitânia, que se comprovou pos-teriomente ser suas cúpulas (demo-lidas por Abadie) produtos de uma cultura local que “seguiu adotando os modos de construir romanos”.46

Idênticas posturas de restaura-ção foram executadas em São Paulo, conforme demonstrou o Prof. Antônio Luiz Dias de Andra-de, sob a égide do pensamento violletiano, cujo paradigma pode ser simbolizado na obra da Cadeia de Atibaia.47

Os defensores da idéia de restitui-ção da imagem da Fortaleza, tal qual ela se configurava no século XVI ou XVIII, enquadram-se na vertente de pensamento denominado “Restauro Estilístico”, originário dos postula-dos de Viollet-Le-Duc.

Desconhe-se com precisão a confi-guração primitiva da Barra Grande entre o primeiro e o segundo século. É a partir do projeto de restruturação da Fortaleza, no início do século XVIII, que podemos acompanhar a evolu-ção arquitetônica deste complexo militar até os dias de hoje. Do relató-rio do brigadeiro Massé, podemos concluir que já existiam as cortinas da bateria de baixo, e da bateria de cima, a casa de pólvora cujo arcabouço foi transformado em capela em 1742 e o edifício do quartel profundamente alterado nos séculos XIX e XX, todos remanescentes do século XVI ou XVII.

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Interior da Capela destelhada. Na parede do fundo com “pixações” foi executado o mural de Manabu Mabe

Imagem aérea da Fortaleza de 1983, antes da restauração

Elevação principal do Quartel antes da restauração. Observa-se que a primeira pilastra de tijolos havia sido destruída por ato de vandalismo e reforçada por um apoio de concreto

Vista do interior do Quartel tomado por vegetações. O telhado havia sido destruído por ato de vandalismo.

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Vista da Fortaleza da Barra a partir de Santos

da como a recusa das posições românticas antagônicas: “ruínas total de um lado; reconstrução total de outro.”49 Defende a conservação dos acréscimos incorporados, à seme-lhança de R. Bordeaux, ao afirmar “que o monumento tem suas estratifi-cações, como a crosta terrestre, e que tudo, da profundeza à superfície, pos-suem seus próprios valores e que devem ser respeitados.”50 O princípio da diferenciação entre a nova inter-venção e a parte antiga, aplicado por Valadier é parte dos oito pon-tos proposto por Boito, no Con-gresso de Engenheiros e Arquitetos em Roma (1884). O critério conser-vativo de Morris e Ruskin é reafir-mado, principalmente no denomi-nado Restauro arqueológico (Anti-guidade) 51, admitindo-se apenas a consolidação e a anastilose, e na recomendação de conservar para não restaurar.

A conceituação proposta por Camilo Boito, ao invalidar o ruinismo e a reconstrução (mimética, deduti-va, analógica e arquetípica), elimi-nou as propostas aventadas para a restauração do Forte da Barra Gran-de, referentes a sua conservação como monumento arqueológico ou a restituição de sua imagem perdida irremediavelmente no passado.

Os restos remanescentes da forta-leza, configuravam ainda a espacia-lidade do complexo militar. A arti-culação destas partes, compostas de cortinas, guaritas, praças de armas, paredes, oitões, envasaduras, pisos, arcadas, etc., e a paisagem transfor-mada, definiam volumetricamente e espacialmente o monumento, por-tanto, tratava-se de arquitetura e não de ruínas arqueológicas.

A partir do pensamento de Boito, Gustavo Giovannoni (1873-1948) consolidou a “Teoria do Restauro

Elevação principal do Quartel. A restauração manteve a configuração dos acréscimos do século XIX, como o desenho das arcadas, envasaduras e platibanda (acima). O Quartel depois da restauração (abaixo)

da distinção do material e da técni-ca, entre o antigo e o novo.

A sistematização deste conjunto de idéias foi obra de Camilo Boito (1836-1914), que perseguiu a conciliação dos pensamentos divergentes tradu-zindo-os num único corpo conceitual.

Boito reconhecia a validade do restauro como ato excepcional, contrapondo-se a corrente inglesa, porém negando os princípios apre-goado por Viollet-Le-Duc relativos à unidade estilística. Essa “Teoria Intermediária” pode ser sintetiza-

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Execução do mosaico de vidro no Atelier Sarasá. Abaixo, detalhe ampliado

Científico” em seu texto intitulado “Restauri dei monumenti” de 1912.

Liliana Grassi assim sintetiza esta teoria: “Por restauro científico se enten-de a operação que se limita a consolidar, recompor, valorizar os traços remanes-centes de um monumento (…)”.52

A Conferência Internacional de Atenas em 1931, normatizou os cri-térios de Giovannoni, dividindo a obra de restauro em trabalhos de:

consolidação; recomposição por anastilose; liberação de acréscimos privados de efetivo interesse; com-plementação de partes acessórias para evitar a substituição; inova-ção53 ou acréscimo de partes indis-pensáveis com concepção moderna.

Partidário da escola “giovanno-niana”, o arquiteto Ambrogio Annoni, autor do clássico “Scienza ed arte del restauro” (1946), diver-Vista aérea da Fortaleza com a cidade de Guarujá e o mar aberto ao fundo

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1- Lajeado primitivo de pedra2- Soleira de cantaria original3- Lajota de cerâmica sob o piso atual

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da. Nessa circunstância especial, foram lançadas as bases da Teoria do “Restauro Crítico”. Piero Gazzo-la reedificou estilisticamente a ponte do Castelvecchio em Verona, com-pletamente destruída pelos alemães. O próprio Giovannoni reconheceu, conformado naquele momento: “será melhor um restauro cientifica-mente imperfeito, que represente uma nota perdida na história da arquitetura, que a renúncia completa (da carta de restauro), a qual privaria as nossas cida-des dos seus aspectos característicos nos mais significativos monumentos.”55

Em 1964, reconsagram-se os prin-cípios do Restauro Científico, duran-te o Congresso realizado na cidade de Veneza, quando o pensamento de Boito-Giovannoni são revistos e ampliados. A partir desses conceitos teoricamente reelaborados por Cesa-re Brandi, foi redigida a Carta Italia-na de Restauro de 1972.

Brandi, conceitua a restauração de bens culturais como “o momento meto-dológico do reconhecimento da obra de arte, na sua consistência física e na sua dupla polaridade, estética e histórica, ten-do-se em vista a sua transmissão para o futuro”. O segundo princípio de Brandi é que “o restauro deve mirar o restabelecimento da unidade potencial da obra de arte, quanto seja possível, sem cometer um falso artístico ou um falso histórico, e sem cancelar os traços da pas-sagem da obra de arte no tempo”.56

A partir dos anos oitenta, inicia-se um intenso debate na Itália objeti-vando a reformulação dos preceitos

normatizados na Carta de Veneza de 1964 e na Carta Italiana de Res-tauro de 1972.

A ampliação do conceito de bem cultural nos últimos anos em con-traposição aos mesmos princípios de intervenção formulados no início deste século, demonstrava um equí-voco de origem na formulação das Cartas.

Internacionalmente contesta-se hoje, o conceito tradicional de “autenticidade”, a partir do qual foi construída a teoria do restauro con-servativo. Paolo Marconi, adianta que o termo “falso histórico é impreg-nado de moralismo de sacristia”57 , cita como exemplo de autenticidade as reconstruções dos monumentos japoneses, e a reconstrução no século

XVII da fachada gótica construída por

Configuração do projeto de restauração da Fortaleza VHM

Planta do Quartel IPHAN

gia quanto a necessidade de se normatizar as operações de res-tauro em um código de procedi-mentos. Annoni defendia a tese de que a circustância ditaria o crité-rio, “il caso per caso”. Grassi, afir-ma que esta postura de Annoni, nasce a partir de um bom senso formulado na prática das obras de restauro, sendo “hoje particular-mente atual”.54

A destruição provocada pelos bombadeiros na segunda guerra, de inúmeros centros históricos e edifí-cios monumentais europeus, levou ao questionamento dos conceitos do “Restauro Científico”, que exigiam uma postura de quase neutralidade do arquiteto em relação ao monu-mento. O momento dramático recla-mava dos arquitetos, uma postura ativa frente à destruição generaliza-

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A mudança da técnica construtiva mostra a posição do antigo prolongo do telhado

O conceito de restauro fixado em Veneza em 1964, ao abolir o libera-lismo do pós-guerra, valorizou a importância absoluta do passado, assegurando-lhe o direito exclusivo de transmissão para o futuro. O processo histórico de transforma-ção deveria ser interrompido, de modo a alijar a época presente do direito de permanência. O espaço da intervenção contemporânea deveria ser sempre “fora” do espa-ço histórico, afinal o tempo atual seria privado de autenticidade – “um falso histórico”.

Da Convenção do “Consiglio Nazionale delle Ricerche”, em Roma (1986), nascia a “Carta 1987 da Conservação e do Restauro de objetos de arte e de cultura”59, cuja alteração principal das Cartas ante-riores, fundamenta-se na separação metodológica e conceitual do res-

tauro das obras de arquitetura, dos demais objetos de arte e cultura. O coordenador dos trabalhos de reda-ção dessa nova Carta60, Arq. Paolo Marconi , sintetiza este documento apropriando-se de uma frase do Arq. Roberto Gambetti: “far rientrare l'architettura nella sua storia”.

O projeto final de restauração da Fortaleza da Barra Grande, tem como compromisso, reintroduzir o monumento à vida cotidiana da Bai-xada Santista, devolvendo à vida um espaço agonizante. Reincorpo-rar sua arquitetura no processo his-tórico interrompido, através de uma proposta projetual contemporânea, implica necessariamente em buscar o respeito mútuo entre a nova arqui-tetura e a estrutura antiga.

A “restauração prismática” ou recomposição volumétrica do Casa do Comandante, vislumbrada pelo

Evidência da posição do antigo telhado

Carlo Fontana no Pallazo Pubblico di Siena, responsável pelo milagre estético da Piazza del Campo.

A generalização das posturas do restauro, independentemente das diferenças dos objetos tratados, é considerado impraticável. A impos-sibilidade de se restaurar a cidade histórica, a paisagem, o edifício, com idêntico critério de intervenção da pintura, escultura, objetos históri-cos, obriga a uma ampla revisão nos critérios de Brandi, já contestado no passado por Roberto Pane. Busca-se uma nova conciliação entre o libera-lismo arquitetônico do “Restauro Crítico” e o pensamento conservati-vo do “Restauro Científico”.

A arquitetura (das cidades, dos edifícios, das paisagens transforma-das), denominada “monuments vivents”, possue intrinsecamente o caráter da mutabilidade, que consti-

tui o fator primordial de sua perma-nência através dos tempos. Ao con-trário das obras de pintura ou escul-tura, está exposta aos cataclismos, aos desgastes do uso, ao tráfego, às intempéries, às variações climáticas, etc. Constitui-se no espaço privile-giado onde a sociedade se transfor-ma, e sua sobrevivência depende da sua capacidade de adaptar-se às novas exigências sociais. Camilo Boito, ao reconhecer os valores de permanência das estratigrafias sobrepostas nos monumentos arqui-tetônicos, indiretamente reconhecia o seu caráter de mutabilidade.

A exigência do respeito absoluto às marcas do passado, tanto na arquitetura como nas demais artes segundo o pensamento de Brandi, permite que “uma cidade se reduza à cenografia” arqueológica, mero obje-to de fruição visual.58

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Notas1 Lemos, Carlos A. Cerqueira – “O Brasil”, in “História das Fortificações Portuguesas no

Mundo” org. por Rafael Moreira, Lisboa, Publicaçõs Alfa S.A., 1989, p. 235.2 Varnhagen, Francisco Adolfo (Visconde de Porto Seguro). “História Geral do Brasil” – Tomo

Primeiro (Notas de Rodolfo Garcia). 4ª ed. São Paulo, Edições Melhoramentos, 1948, notas v, p. 446.3 Varnhagen, Francisco Adolfo (Visconde de Porto Seguro). Op. cit., p. 447.4 “Atas da Câmara da Cidade de São Paulo: 1562-1592” – Vol. i Século xvi. Divisão do Arquivo

Histórico, Prefeitura do Município de São Paulo, pp. 217/218.5 Varnhagen, Francisco Adolfo (Visconde de Porto Seguro). Op. cit. Notas vii, p. 447.6 (Idem, ibidem, notas vi, p. 447).7 Sarmiento Gamboa, Pedro in “sumaria relación, in coleccion de Documentos inéditos del Archivo de

Indias”, 5. 338 – Apud: Varnhagen, Francisco Adolfo, op.cit., p. 440.8 Moreira, Rafael. “A Arquitetura Militar”, in “Arte em Portugal”, Lisboa, Publicações Alfa.9 Cardim, Fernão. “Tratados da Terra e Gente do Brasil”. 2ª ed. S. Paulo, Cia. Editora Nacional,

1939, p. 315.10 Katinsky, Júlio Roberto. Op. cit., p. 87.11 Saia, Luís. “Morada Paulista”. Editora Perspectiva S.A. 2ª ed. São Paulo, 1978, p. 32.12 Lemos, Carlos A. Cerqueira. “Casa Paulista”. S. Paulo, Edusp – Editora da Universidade de

S. Paulo, 1999, pp. 66-68.13 Mendonça de Oliveira, Mario: “Robert Smith e a Engenharia Militar Brasileira” in “Robert

Smith: A Investigação na História da Arte”; Coord. Manuel da Costa Cabral e Jorge Rodrigues, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, sd., p. 256.

14 Fernandes da Silva, Fernanda. “Fortificações Brasileiras. Máquinas de Guerra e de Memória”. Tese de Doutorado, São Paulo, fflch-usp, 1991, p. 228.

15 Katinsky, Júlio Roberto. Op. cit., pp. 79/80.16 Doc. Arquivo Histórico Ultramarino – do catálogo do IV Colóquio Internacional de Estudos

Luso-Brasileiros – cópia arq. iphan/sp.17 Mendonça de Oliveira, Mario: “Robert Smith e a Engenharia Militar Brasileira” in “Robert

Smith: A Investigação na História da Arte”. Coord.: Manuel da Costa Cabral e Jorge Rodrigues, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, sd., p. 274 (nota 80) : "A prova da sua nacionalidade pode ser encontrada em: Chaby, Claudio. Synopse dos decretos remetidos ao extinto Conselho de Guerra. Lisboa: Imprensa Nacional, 1872 (Maço 64) – Decreto de 23 de Janeiro de 1705, sobre oficiais ingleses indicados para Portugal e também: Madureira dos Santos, Cel H, M. Decretos do extinto Conselho de Guerra. Lisboa: Imprensa Nacional 1976 – Decreto de 4 de Novembro de 1720 (maço 79) sobre licença de Massé ir a Inglaterra sua pátria."

18 “Documentos Interessantes para a História e Costumes de São Paulo” – vol. xlix. Arquivo do Estado de S. Paulo, pp. 165/166.

19 “Documentos Interessantes para a História e Costumes de São Paulo” – vol. l . Arquivo do Estado de S. Paulo, pp. 13/14.

20 Carta régia de 30/10/1733 ao Conde de Sarzedas – cópia arquivo iphan.21 Lemos, Carlos A. Cerqueira. “O Brasil” in “História das Fortificações Portuguesas no

Mundo” org. por Rafael Moreira, Lisboa, Publicaçõs Alfa S.A., 1989, pp. 237 e 252.22 Provisão real de 15/02/1736. “Cartas Régias, provisões, alvarás e avisos (1662-1821)” –

Cópia arquivo IPHAN.23 Provisão real de 27/09/1738 ao Gov. da Cap. de S. Paulo, dando conta do relatório de maio

de 1738, do brigadeiro Silva Paes – cópia Arquivo iphan-sp.24 Carta de D. Luiz Antônio de Souza de 02/01/1767 – cópia arquivo iphan-sp.25 Lemos, Carlos A. Cerqueira in “Alvenaria Burguesa” – Ed. Nobel – São Paulo – 1985 – p. 44.

Os remanescentes desta caieira de Cubatão encontram-se hoje preservados dentro da área da Cosipa no local denominado Casqueirinho.

26 Ofício de D. Luiz Antônio de S. B. Mourão, de 04/12/1767, ao Tenente Antonio Joze de Carvalho, administrador das Fazendas do P.P. Jesuítas de Santos. Doc. Interessantes para a Hist. e Costumes de S. Paulo Vol. lxviii – Arquivo do Estado de São Paulo, p. 37.

27 Ofício de D. Luiz Antônio S. B. Mourão, de 17/10/1768, ao Capitão Fernando Leite Guimarães, Comandante da F. da Barra Grande de Santos: Doc. Interessantes para a Hist. e Costumes de S. Paulo – vol. lxviii – Arquivo do Estado de S. Paulo, p. 105. Essa argamassa imper-meável era o “tittin”, composto de pó de tijolo, cal e azeite de baleia “curtidas por muitos dias”, recomendado para o assentamento das pedras das cortinas das fortalezas voltadas para o mar até uma altura de “15 palmos”, conforme ensinava o Engenheiro Frias de Mesquita em 1619, nos apontamentos sobre a Fortaleza do Rio Grande. Silva-Nigra, D. Clemente Maria da – “Francisco Frias de Mesquita, engenheiro-mór do Brasil” in Revista do sphan, V. 9, 1945.

28 Manuscrito sem data ou assinatura encontrado entre os papéis do marechal Arouche sobre as fortificações de Santos, provavelmente dos anos entre 1797 e 1815. Cópia arquivo iphan-sp.

29 Circular aos comandantes das villas da marinha, de 07/06/1810, mandando submeter a

mestre Lúcio Costa há quase cin-quenta anos – centro focal do con-junto, e hierarquicamente destacada na organização do espaço militar – foi possível com a execução de uma delicada estrutura metálica, moder-na e discreta, que parece quase tocar nas superfícies antigas, porém afas-ta-se respeitosamente, até cobrir um vão protegido de quase 40 metros.

A contemporaneidade do desenho espacial concebido em aço corten, revela a obediência aos termos da Carta de Veneza, quando prescreve: “todo trabalho complementar reconheci-do como indispensável por razões estéti-cas ou técnicas, destacar-se-á da compo-sição arquitetônica e deverá ostentar a marca do nosso tempo”.

Não se buscou assim, a imitação do passado recente ou remoto, optou-se em assumir a arquitetura contemporânea, como uma verdade de nosso tempo, reversível tecnica-mente mas com direito à permanên-

cia se o futuro assim determinar.Todas as marcas do passado foram

mantidas conforme recomendava Brandi, e a unidade potencial da obra se assegurará através da pre-sença da arquitetura de hoje, elo necessário para transmitir o monu-mento para o futuro, como assegura a Carta de 1986. O mural de Manabu Mabe, na Casa de Pólvora converti-da em Capela, simboliza o direito da arte de hoje de se integrar com aque-las produzidas no passado. A conti-nuidade entre passado, presente e futuro não será interrompida.

O debate sobre esse projeto foi um espelho da história da restaura-ção, o que nos leva a creditar a todos os que direta ou indiretamen-te, participaram da luta pela preser-vação da Fortaleza61, a co-autoria das obras que ainda prosseguem.

Foi um projeto amadurecido por quase cinqüenta anos, do mestre Lúcio Costa à participação de todos.

Fortaleza da Barra Grande: desenho impresso na Alemanha por volta de 1900 “Lembrança de Santos”

ArquiteturA MilitAr

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sisteMA de proteção dA vilA de sAntosForte de MonserrAte,

Forte de itApeMA, cAsA do treM Bélico e o plAno de deFesA

de João MAssé

Victor Hugo Mori

quarentena os navios americanos e tomar providências a fim de evitar a propaganda da revolução francesa. “Documentos Interessantes para a Hist. e Cost. de S. Paulo”, vol. lix. Arquivo do Estado de S. Paulo, pp. 20-21.

30 Correspondência oficial do capitão general Antônio José da Franca e Horta ao cel. engen-heiro João da Costa Ferreira em 17/04/1809. “Doc. Interessantes para a História e Costumes de São Paulo”. Arquivo do Estado de S. Paulo, Vol. lviii, pp.129-130.

31 Sodré, Nélson Werneck. Op. cit., p. 58.32 Arquivo Histórico do Exército, Rio de Janeiro. (Cópia iphan-sp)33 Relatório a lápis assinado pelo gal. come. mar. José Olinto de Carvalho e Silva de

01/01/1861 – Arquivo Histórico do Exército – RJ (Cópia iphan-sp).34 Relatório do ano de 1898 da Fortaleza da Barra de Santos, manuscrito de 02/04/1899 assina-

do pelo 1º tenente Comandante Francisco Alvaro de Souza – Arquivo Histórico do Exército (RJ) – Cópia iphan-sp.

35 O arquiteto e urbanista Lúcio Costa era nesta ocasião Diretor de Estudos de Tombamento do iphan.36 G. B. Antonelli, responsável pela primeira edificação de um ponto fortificado na Barra

Grande em 1583, ocasião em que acompanhava a esquadra de Flores de Valdez, era segundo Rafael Moreira, em seu texto “A arquitetura militar”, in “Arte em Portugal” – Editora Alfa, engen-heiro militar italiano que chegou a Portugal acompanhando o duque de Alba, e foi autor de “inter-ressantes estudos para ligar Abrantes ao Escorial e Madri por via fluvial{, juntamente com o “seu auxiliar o jesuíta Gaspar Sampere”, empreenderam inúmeras obras “no Rio de Janeiro e Santos (1582-1584) e no Nordeste (1597)”.

37 O engenheiro militar brigadeiro João Massé é autor da reestruturação da Fortaleza da Barra Grande em 1714, e também de interessante projeto de defesa para a Vila de Santos.

38 Ruskin, John. “Le sette Lampade dell' Architettura”, apresentação de Roberto Di Stefano, Editorial Jaca Book, Milão, p. 227.

39 Idem. Ibidem, p. 228.40 La Regina, Francesco. “William Morris e l'Anti Restoration Movement”, Revista Restauro,

n° 13/14, 1974, p. 130.41 Idem. Ibidem, p. 135.42 Pereira, Gustavo. “A questão da preservação segundo John Ruskin e William Morris e a

criação do anti-restoration movement em 1877”, trabalho para a disciplina Restauro i – fau-usp/fupam.

43 Gallego Fernandez, Pedro Luis. “Viollet Le Duc: la restauracion arquitectonica y el racional-ismo arqueologico fin de siglo”, in “Restauración Arquitectónica{, Universidad de Valladolid, 1992, p. 29.

44 Arrechea Miguel, Julio Ignacio. “De la Composicion a la arqueologia”, in “Restaración Arquitectónica”, Universidade de Valladollid, 1992, p. 12.

45 Arreche Miguel, Julio Ignacio. Op. cit., p. 12.46 Gallego Fernandez, Pedro Luis. Op. cit., p. 38.47 Dias de Andrade, Antonio Luiz. “O Paradigma de Atibaia”, Trabalho programado para Tese

de Doutoramento – fau-usp.48 Gallego Fernandez, Pedro Luis. Op. cit., p. 31.49 Grassi, Liliana. “Storia e Cultura dei Monumenti”, Società Editrice Libraria, Milão, 1960, p. 434.50 Boito, Camilo. “Questione Pratiche di Belle Arti”, capítolo “Restaurare o conservare{, Milão,

1893. Apud. Grassi, Liliana. Op. cit., p. 434.51 Boito distingue a arte do restauro em três partes: Restauro arqueológico (Antiguidade);

Restauro pictórico (Medieval) e Restauro arquitetônico (Renascimento).52 Grassi, Liliana. Op. cit., p. 446.53 Sobre a “inovação”, a autora Liliana Grassi acrescenta que Giovannoni não acreditava nesta

operação de restauro, pela impossibilidade de coexistência entre a arquitetura moderna e a antiga.54 Grassi, Liliana. Op. cit. p. 448. Annoni é autor de inúmeras obras de restauro, com vasta

experiência no canteiro. Nessas obras nota-se “a aceitação dos princípios boitianos”.55 Idem. Ibidem, p. 451.56 Brandi, Cesare. "Teoria del Restauro", Piccola Biblioteca Einaudi, G. Einaudi Editore, Torino,

1977, pp. 6-8.57 Marconi, Paolo. “Il restauro e l'architetto – teoria e pretica in due secoli di debattito”,

Marsilio Editore, Veneza, 1995, p. 10.58 Idem. Ibidem, p. 5.59 Reproduzida na obra de Marconi, Paolo, op. Cit, anexos A e B, pp. 207-228.60 Participaram além de Marconi na redação final desta Carta, Umberto Baldini e Paolo Mora

(Instituto Centrale per il Restauro), Franca Manganelli (ICPL), Giovanni Di Geso (Ufficio Centrale), Giorgio Tempesti (Accademia di Belle Arti), etc.

61 Vale ressaltar em especial o empenho de dois militares da reserva, o cel. Reginaldo Moreira de Miranda e o prof. Élcio Rogério Secomandi, ambos profundos estudiosos da história militar no Brasil.