imagem, historiografia, memória e tempo - maria lúcia bastos kern

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  • 7/31/2019 Imagem, historiografia, memria e tempo - Maria Lcia Bastos Kern

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    DAL,Salvador.Aper

    sistnciadamemria.

    1931(detalhe).

    Maria Lcia Bastos Kern

    Dout ora em Histr ia da Art e pela Universidade de Paris I. Prof essora do Depart ament o

    de Histria e do Programa de Ps-graduao em Histria da Pontifcia Universidade

    Catlica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Pesquisadora do CNPq. Autora, entre outros

    l ivros, de Arte argentina: tradio e modernidade. Porto Alegre: EdiPUCRS, 1996.

    [email protected]

    Imag

    em,

    hist

    oriografia,

    mem

    riaetempo

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    Nas ltimas dcadas, esto sendo efetuadas revises nesse campo doconhecimento, concernentes aos problemas evidenciados nos paradigmascientficos da modernidade e as questes de memria e tempo tm sidoreavaliadas por historiadores e historiadores da arte, com o objetivo derepensar os mtodos de pesquisa decorrentes.1

    Interrogar e refletir a respeito dos modelos de tempo representaatravessar a espessura de distintas concepes de memria. O pensamentorelativo ao tempo no Ocidente tem origem comum na viso judaico-crist,

    teorizada por Santo Agostinho, que em A cidade de Deus a delimita comolinear efinalista do devir humano. Essa viso concebida de forma unitriae cclica, direcionada ao progresso pela vontade divina. O homem ao ser

    Imagem, historiografia, memria e tempoMaria Lcia Bastos Kern

    resumo

    Neste ensaio procura-se revisar os mo-

    delos de tempo e memria concebidos

    pela historiografia da arte e apresentar

    algumas reflexes tericas, motivadas

    pelo recente debate epistemolgico e

    pelo esgotamento do carter unitrio e

    totalizante da disciplina, cujas teoriasa condicionaram sistematizao, ba-

    seada numa certa ordem cronolgica e

    evolutiva de imagens selecionadas, em

    busca de sentido e de coerncia. Nas

    ltimas dcadas, tm sido efetuadas

    revises nesse campo do conheci-

    mento, concernentes aos problemas

    evidenciados nos paradigmas cient-

    ficos da modernidade, e as questes

    de imagem, memria e tempo vem

    sendo reavaliadas por historiadores ehistoriadores da arte, com o objetivo

    de repensar as suas concepes e os

    mtodos de pesquisa decorrentes.

    palavras-chave: historiografia da arte;

    tempo; memria.

    abstract

    In this essay seeks to revise the models

    of time and memory designed by the

    historiography of art and present some

    theoretical reflections, prompted by

    recent epistemological debates and the

    exhaustion of the unitary character of the

    discipline and totalizing theories, whichconditioned the systematization, based

    on approximate chronological order and

    evolutionary selected images in search of

    meaning and coherence. In recent decades,

    there have been revisions made in thisfield

    of knowledge, concerning the problems

    revealed in the paradigms of modernity

    and scientific questions of image, memory

    and time have been reviewed by historians

    and art historians, in order to rethink

    their conceptions and research methods

    involved.

    keywords: historiography of art; time;

    memory.

    1 Esse ensaio parte de questestratadas em Historiografia daarte face s mudanas de pa-radigmas: memria e tempo,

    publicado nos Anais do XXIXColquio do Comit Brasileiro deHistria da Arte, Vitria: UFES,2009, p. 87-97.

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    agemconsiderado como imagem e semelhana a Deus constri o seu destino,

    na busca de salvao, sendo que a queda no invalida a redeno futura.Essa acepo permanece at o sculo XVIII, como histria teolgica, ladoa lado, com a histria dos homens que emerge no Renascimento. Ela seseculariza e, segundo Reinhart Koselleck, na noo de horizontes deexpectativas, alicerada em campos de experincia, que possibilitam

    ao presente histrico os permanentes pontos de encontros da recordaoe da esperana.2 Essa viso de tempo permeia os modelos historiogrficosda arte no mundo moderno.

    Modernidade, memria e o tempo cclico

    O primeiro estudo historiogrfico significativo a Vida dos artistas(1550), de Giorgio Vasari (1511-1574), em que relata a biografia de Cimabueaos clebres artistas do Renascimento, englobando trs sculos de criaoartstica. O autor, como artista, conhece em profundidade as atividadesexercidas pelos colegas em diferentes cidades, seus deslocamentos, asproblemticas relacionadas ao gosto e ao mecenato. O seu conhecimentodeve-se, em parte, aos constantes contatos com os artistas, suas distintasobras e com as concepes estticas de seu tempo, fatos que o estimulama desenvolver um pensamento terico, que acrescido por sua erudio eseu interesse como colecionador de desenhos, colaboram para o empre-endimento historiogrfico. Ao basear-se na premissa de que o desenho mais importante do que a cor, Vasari o utiliza como critrio para avaliar otalento dos artistas e enfatizar a arte florentina, sem deixar de consideraras normativas do classicismo para julgar as suas obras. Como Alberti, eleenfatiza a qualidade no s do desenho, mas tambm a capacidade de imi-

    tao da natureza, mesmo tendo conscincia de que a arte pode suplant-la.Para Vasari, o clssico emerge no momento em que os artistas co-meam a imitar o antigo, sendo o mesmo explicado pelo estudioso na suatemporalidade histrica, por meio do modelo biolgico de crescimento,maturidade e envelhecimento, que se formaliza numa viso de tempo cclicoe que justifica os momentos de sua retomada, ou melhor, de seu renascer.3Assim, a sua classificao cronolgica ordenada a partir da ausncia de

    beleza, prpria arte bizantina, que representa a infncia, consagraosoberana de Miguel ngelo, smbolo da maturidade, do progresso e daperfeio.

    Observa-se que Vasari, atravs das biografias, estabelece a compa-

    rao entre trs pocas, tendo como fim apresentar distintas concepesde arte de cada momento, fenmeno que prprio aos intelectuais doRenascimento, cujo termo definido como negao do passado imediato,distante das premissas clssicas, e do presente superior que as adota e asrenova.4 Vasari coleta informaes sobre os artistas mortos, exceto Miguelngelo, que o considera divino. Na sua biografia, ele o identifica comognio por suas obras realizadas e como Deus que vive da prtica dessasartes, isto , de pintura, escultura e arquitetura, os gnios toscanos sosempre superiores a qualquer outro na Itlia (...).5

    O seu objetivo no fazer uma histria cientfica, mas magistra vitae,ou seja, apresentar a biografia dos artistas como exemplaridade, da arecorrente consagrao dos selecionados mais contemporneos. Ele intro-duz na disciplina noes que, posteriormente, em parte a estruturam ao

    2 CATROGA, Fernando. Me-mria, histria e historiografia.Coimbra: Quarteto, 2001, p. 18

    3 Ver: VASARI, Giorgio. Vie desartistes. Paris: Bernard Grasset,2007 e THUILLER, Jacques.Thorie gnrale de lhistoire delart. Paris: Odile Jacob, 2003.Vasari leva quase dez anosinvestigando e recopilandodados obtidos em viagens pelaItlia. A viso cclica estrutura-se, primeiramente, na infnciada arte, com Cimabue, Giotoe outros artistas; depois, noflorescimento e juventude, comMasaccio, Donatello, Ghiberti e

    Brunelleschi; para finalmenteatingir na maturidade a per-feio, com Giorgione, Ticiano,Leonardo da Vinci, Rafael eMiguel ngelo.

    4 Esse sentimento reaparece nafamosa Querelle des anciens etmodernes (final do sculo XVII eincio do sculo XVIII), entre osintelectuais que acreditam queo presente qualitativamentesuperior ao passado, certezamotivada pelas cincias e osseus progressos, em detrimento

    do humanismo renascentista.5 VASARI, Giorgio, Vie des ar-tistes, op. cit. p. 347.

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    procurar dar um sentido narrativo, baseado na evoluo e no progresso,cuja meta a ser atingida a perfeio (arte clssica). Essas noes se aliam sacralizao e genialidade dos artistas que atingem os cnones estipula-dos pelo historiador, os quais so mais tarde adotados pela Academia deDesenho de Florena.6

    Na modernidade, o prestgio das cincias da natureza crescente,

    chegando a invadir todos os nveis de seu entendimento de mundo e devida, incluindo a prpria reorganizao do espao epistmico.7 DesdeVasari a Johann Joachim Winckelmann (1717-68), os pressupostos e m-todos dessas cincias so, paulatinamente, aplicados na historiografia daarte, sendo que a noo de tempo biolgico cclico, que se estabelece daorigem ao progresso e ao declnio, ainda mantida no sculo XVIII. 8 Essaordenao temporal apresenta tambm um sentido vitalista ao pressupora mutao da arte entre nascimento e morte.

    Neste momento, Winckelmann sistematiza a disciplina de Histriada Arte como conhecimento, desligada das tradicionais hierarquias entrerazo e sensibilidade, de origem platnica (desenho e cor), que nortearamo pensamento artstico. O historiador alemo tambm concebe o apogeuda arte com o classicismo e na introduo de Histria da arte da antiguidade(1764), destaca que a disciplina deve mostrar a sua origem, o seu cresci-mento, suas modificaes e queda, bem como ensinar os diversos estilosdos povos, pocas e artistas.9 Nesse estudo, Winckelmann abandona oscritrios normativos clssicos e introduz outra concepofilosfica, a crticado conhecimento,10 fazendo da Histria da Arte uma disciplina autnoma,estruturada em distintos estilos, que se condicionam aos diferentes locaise pocas. A partir desses suportes tericos e metodolgicos de estudo, elepretende atingir a essncia da arte, cuja acepo delimitada pela noo

    de beleza ideal. Entretanto, verifi

    ca-se que a disciplina sistematizada sobo paradoxo, de um lado, da concepo esttica atemporal; e, de outro, daprtica histrica fundada no tempo.11

    Como homem da modernidade e crtico em relao ao seu tempo,ele se dedica a estudar a histria da arte antiga grega integrada sua so-ciedade, com vistas a projetar o futuro e atingir a liberdade. Para ele, osartistas ao conhecerem a arte grega podero descobrir a beleza da naturezae, assim, criar a arte do devir. Winckelmann ao projetar o futuro, afirma osujeito histrico como agente de mudanas. Ele faz da arte um dos meiospelo qual o projeto de modernidade possa ser concretizado e inaugura umfenmeno indito ao delimitar a ao do sujeito histrico pela retomada da

    origem da arte como mecanismo de produzir o novo. Ao afirmar o sujeitohistrico, Winckelmann produz uma grande transformao, porque definea sua entidade e o afasta, definitivamente, do destino providencialista deteor divino12 e dos determinismos biolgicos.

    Com o Iluminismo, as reflexes sobre o futuro so permeadas pelaideia de progresso e perfeio, apoiadas por consistentes aprofundamentosfilosficos. O presente e o futuro so qualificados como pocas de autono-mizao e emancipao racional (Kant), funcionando o passado como umaespcie de preparao (com avanos e recuos) de um itinerrio que, todavia,s nopor vir (agora secular e imanente) realizaria, plenamente, a essnciaperfectvel da natureza humana.13 Essa meta leva o homem luta contraa sua prpria natureza (paixes e vcios), a abandonar, gradativamente, osdeterminismos biolgicos e a seguir o seu caminho sob os imperativos da

    6 Cf. BOZAL, Valeriano. (org.).Historia de las ideas estticas y delas teoras artsticas contempor-neas. Madri: Visor, p. 136-137.7 Cf. CATROGA, Fernando. Ospassos do homem como restolho dotempo: memria efim dofim daHistria. Coimbra: Almedina,2009, p. 221.8 Winckelmann ao estudar aarte grega, a divide em quatroperodos de acordo com osestilos identificados: 1. An-tiga at Fdias, cujas formasso mais rgidas; 2. Sublimena poca de Fdias e de seuscontemporneos; 3. Belo dePraxteles at Lisipo e Apeles;4. Da imitao at a morte daarte. Posteriormente, essa visocclica acaba sendo aplicadapara estudar a vida dos estilos.Ver: POMMIER, Edouard. Win-ckelmann, inventeur de lhistoire

    de lart. Paris: Gallimard, 2003.Winckelmann estabelece outrafrmula temporal, na quala arte passa por trs etapas:nasce com o necessrio, depoispesquisa a beleza e continuacom o suprfluo. As duas cro-nologias devem ser aplicadass artes em geral, ultrapassan-do as especificidades da artegrega antiga. Ver POMMIER,Edouard. Winckelmann: lartentre norme et histoire. RevueGermanique Internationale, His-toire et Thories de lart. Paris:PUF, 1994, p. 259

    BORNHEIM, Gerd. Introdu-o a leitura de Winckelmann.In: WINCKELMANN, JohannJoachim. Reflexes sobre a arteantiga. Porto Alegre: Movi-mento/UFRGS, 1975, p. 23. Em1763, ele publica em DresdenAfaculdade de sentir o belo na arte eseu ensinamento.

    10 Kant na sua teoria do conhe-cimento estabelece a relaosujeito e objeto, assim comoa sntese entre o racionalismocartesiano e o empirismo in-gls, isto , o conhecimentosensvel e o entendimento.11 DIDI-HUBERMAN, Georges.Limage survivante :histoire delart et temps ds fantmesselon Aby Warburg. Paris:Minuit, 2002, p. 19 e 20. Win-ckelmann escreve a histria daarte antiga porque tem consci-ncia de que ela est morta, masque pode oferecer modalidadespara ser observada pelos artis-tas contemporneos.12 BOZAL, Valeriano (org.). His-toria de las ideas estticas y de lasteoras artsticas contemporneas.op. cit., p. 23.13 CATROGA, Fernando. Ospassos do homem como restolhodo tempo, op. cit., p. 162.

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    agemrazo e da liberdade, assim como a organizar a sociedade de acordo com

    seus ditames. Contra a sua animalidade, o homem afirma a liberdade e odireito. Nesse momento, a histria s tem sentido se for entendida comoproduto da ao, numa sucesso progressiva e teleolgica, em que opresente possa ser pensado como o incessante produto de escolhas, nasquais o homem pode continuar a progredir. Assim, a Histria concebida

    na sua dinmica temporal e o homem na sua busca de perfeio. O tempoadquire sentido acumulativo e contnuo em direo ao devir, enquanto opassado se configura como preparao,o presente comoanunciao daverdade e o futuro como a promessa da sua consumao. Esta promessade consumao, segundo Kant, no garantida, mas se constitui numapossvel tendncia de carter tico-racional.14

    Nessa poca, a Histria comea a ser tambm pensada de mododistinto das cincias naturais e a enfatizar a ao do homem como sujeito,definido como ser racional.

    Com a emergncia da Histria da Arte, contempornea ao apareci-mento dos museus, da crtica de arte e da Esttica constitui-se o campo deconhecimento e institucional prprio da arte, o qual interfere na criaoartstica ao traar teorias normativas, buscando dar um sentido unitriopermeado pela ideia de progresso.

    Memria e a emergncia do Historicismo

    A concepo de tempo baseada no progresso permanece no pensa-mento de Hegel, que interioriza no tempo da arte, uma espcie de duraoe destino. Para tal, estabelece a dialtica que dirige a continuidade da artee se fundamenta, primeiramente, no Esprito, depois no Absoluto e que

    deve se encontrarfi

    nalmente como Esprito Absoluto. Essa noo de tempoconcebida na durao, em direo a um futuro misterioso, mas inevitvel edeterminado, torna-se a base filosfica da historiografia e da museologia,a partir do sculo XIX.15 Para ele, a histria da arte revela essa progressivaevoluo do esprito humano. Assim, nesse momento, as grandes histriasuniversais da arte emergem estruturadas em narrativas e obras selecionadasdo passado, buscando dar unidade e sentido evolutivo as mesmas, sendoessas premissas tambm utilizadas na organizao dos museus.

    Hegel substitui a filosofia da histria pela filosofia do Esprito, eli-mina a separao entre sujeito e razo, assim como a ao dos atores queso absorvidos pelo Esprito Absoluto, smbolo do devir, do progresso e

    da perfeio.Ele procura uma justificativa filosfica para a reconstituio da his-

    tria da evoluo da arte, devendo a mesma ser comum a todos os povose tempos, a partir do discernimento do seu papel histrico [arte] e concluique ela smbolo de uma viso de mundo, Weltanschauung. Hegel intro-duz ainda outra explicao para a ideia de repetio cclica de uma formaparticular de arte, como o classicismo, que no termina motivado pelodeclnio, mas est relacionado a certo desenvolvimento mental e culturalque no se repete. Com essa justificativa, o filsofo reconcilia o esprito eo mundo, acabando com a separao entre eles e estabelecendo uma novarelao da arte com a histria, como uma tomada de posse do mundo peloesprito. Mesmo que a arte continue, sua forma pode no satisfazer mais oesprito. Assim, a arte enquanto manifestao sensvel do esprito assume

    14Idem, ibidem,p. 164-169.

    15 THUILLIER, Jacques. Thoriegnrale de lhistoire de lart, op.cit ., p. 116-118. Pensamentodistinto de Kant, cuja noode futuro prometida, masno determinada. Se o Ilumi-nismo acentua a importnciado sujeito e da razo, com oRomantismo a nfase dadana ideia de Deus e a ideia dobelo concebida como EspritoAbsoluto. A ideia o contedo

    da religio e da cultura, queocupa uma hierarquia bemmais elevada do que a arte.

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    uma funo histrica, podendo tornar-se objeto de uma histria universal,visto que ele concede a ela nova modalidade de compreenso e estabeleceas bases da historiografia. 16

    Entretanto, a sua histria da arte concebida pela morte de suasfiguras e de seus objetos singulares, como a contemplao de um mundopassado que no desempenha outra funo. Para Hegel, o historiador deve

    encarnar o contedo total do Esprito de cada forma, atravs de um movi-mento continuado, no qual a forma morre ao revelar para a histria a suaprpria verdade. O Esprito e a morte permitem a crena e a emergncia doSaber Absoluto. A histria o devir que se atualiza no saber. O problemada Histria da Arte aps Hegel que ela se apia no pressuposto de quea verdade s pode ser proferida aps a morte. No se afirma mais que aarte est morta, mas que ela imortal. 17

    Com o Romantismo, ocorre uma progressiva separao entre oshistoriadores da arte e os artistas, visto que os primeiros no reconhecemmais os artistas de seu tempo e deixam de analisar as obras do presente.Essa separao se processa no momento em que a Histria da Arte se tornauma disciplina autnoma e acadmica. Quatrmere de Quincy, em 1815,

    j salienta a desconexo da arte com a vida, ao criticar tanto a disciplinaquanto os museus por esse afastamento, numa publicao intitulada Con-sidrations Morales sur la destination des ouvrages de lart. 18

    A autonomia da disciplina e da arte levou Heinrich Wolfflin (1864-1945) a afirmar que possvel fazer uma Histria da Arte sem nome, isto, sem artista j que ele apenas executa aquilo que conceituado por AloisRiegl, como Kunstwollen (querer artstico) 19 ou por Hegel, como espritodo tempo. Os artistas, por sua vez, comeam tambm a no evocar maisos grandes mestres do passado como modelos e adotam a misso auto-

    assumida de vanguarda, afi

    rmando a sua autonomia, o carter militar desuas aes, direcionando a arte para o devir. A autonomia da Histria daArte gera ainda certo afastamento da Esttica e as duas disciplinas se cons-tituem em domnios de conhecimentos especializados e independentes.20

    Wolfflin, no livro Conceitos fundamentais da histria da arte (1915), afir-ma que o estilo artstico como a natureza imutvel (viso contestada jpelos intelectuais romnticos que a concebiam como processo evolutivo),defendendo a noo cclica do tempo em arte, formada pelas fases antiga,clssica e barroca. Para estudar estas fases, ele considera o mtodo rigorosoformal como o mais adequado. Hoje, os estudiosos verificam nesse mtodocerta permanncia e homogeneidade em cada ciclo, bem como criticam as

    incongruncias do dualismo que o compe: linear e pictrico; forma abertae forma fechada; unidade mltipla e unidade simples etc.

    A partir dessa acepo formal, Wolfflin destaca que preciso umahistria da arte em que se possa seguir, passo a passo, o surgimento daviso moderna e que descreva, numa srie sem lacunas, a sequnciados estilos. 21 Ele prope, assim, uma modalidade de narrativa que procu-ra ordenar as obras em estilos, isto , encerr-las dentro de classificaesrgidas e num sentido cclico e evolutivo, sem deixar lacunas. O perigodesse mtodo excluir obras que no se integrem a essas classificaes.

    Observa-se no prefcio da 6. Edio (1943) que Wolfflin modifica,em parte, a noo de tempo em arte, quando destaca que nunca se voltaao mesmo ponto na Histria, mas () igualmente certo que dentro do pro-cesso geral da evoluo possvel distinguir evolues isoladas, fechadas

    16 BELTING, Hans. LHistoirede lart est-elle finie? Nmes: J.Chambond, 1989, p. 19-22.

    17 DIDI-HUBERMAN, Georges.Devant limage. Paris: Minuit,1990, p. 59-63. Os museustambm organizam e expemas suas colees, sem conexo

    com a arte de seu tempo.18 Ver BELTING, Hans. O fimda Histria da Arte: uma re-viso dez anos depois. SoPaulo: Cosac Naif, 2006, p.193. Quatremre critica ainda arecorrente imitao do passadoe o estudo da obra morta queestimula o culto do fetichismodo antigo. CHOAY, Franoise.Avant-Propos.In: RIEGL, Alois.Le culte moderne des monuments.Paris: Seuil, 1984, p. 15.

    19 RIEGL, Alois. Grammairehistorique des arts plastiques.Paris: Klincksieck, 1978, p. XVI.Oto Pctch na apresentao dolivro destaca que o conceito ambguo, podendo significarinteno, fenmeno genticode estilo, em que o historiadordeve descobrir seus ancestraise descendentes, ou ainda es-foro inconsciente que conduz impulso transgressora. OKunstwollen situa-se em faceao esprito de mundo deHegel e vontade de poderde Nietzsche, com vistas a so-lucionar a dualidade indivduoe entidade coletiva. No entanto,ao desenvolver o conceito deestilo, como meio de sistemati-zar o conhecimento histrico daarte, Riegl adota mecanismosde anlise interna das obras eexplica as mudanas estilsticasa partir do conceito de evolu-o orgnica, relativamenteautnomo.

    20 Belting salienta que AloisRiegl e Henrich Wolfflin apre-sentam em seus estudos certa

    integrao com a esttica dofinal do sculo, mas sem olharpara a arte mais recente.

    21 WOLFFLIN, Heinrich. Con-ceitos fundamentais da histria daarte. So Paulo: Martins Fontes,2000, p. 202. Ele identifica naevoluo das formas a expres-so dos sentimentos de vida decada poca.

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    agemem si mesmas, e que, nesses perodos, a linha de evoluo apresenta certo

    paralelismo. Nesse texto, ele afirma ainda que a evoluo nem sempre sincrnica, nas diferentes artes, podendo coexistir heterogeneidade deimagens num mesmo tempo, sendo essa decorrente das distintas atmosferaspticas em diferentes povos. Entretanto, salienta que as desigualdades noanulam a importncia da evoluo (temporal), porque podem se unir em

    um estilo comum, prprio a uma gerao.22No sculo XIX e parte do XX, domina na historiografia a noo de

    esprito do tempo que contestada pelas vanguardas devido ao seucarter homogneo, face diversidade de suas mltiplas e diferenciadasaes em prol da inveno e da projeo do devir. Entretanto, a historio-grafia continua, em geral, atrelada ao historicismo 23, numa concepo detempo unitrio e evolutivo e de arte universal. Ela centraliza seus estudosem artistas ou movimentos, cujas obras fundam-se nas categorias de auto-nomia, qualidade e originalidade, segundo a viso de mundo unitria deseu tempo, assim como exalta os feitos criativos dos artistas que anunciamo futuro, numa orientao teleolgica. As noes de progresso e espritoabsoluto so os fins aspirados por muitos artistas e adotados, em parte,pela historiografia. O esprito do tempo aparece muitas vezes interligadoao querer artstico de Riegl, ou ideia de cosmoviso de mundo cara aErwin Panofsky, apesar de alguns historiadores, crticos de arte e filsofoscontestarem essas categorias, tendo em vista a percepo de que o tempoda arte um tempo prprio, que na realidade plural e heterogneo.

    Reao contra o Historicismo

    Nesse momento de transio dos sculos XIX e XX, a historiografia

    da arte, a grosso modo, apresenta duas vertentes importantes, a formalistaque se fundamenta numa anlise imanente das obras e condicionada aosentido evolutivo; e, a outra, que se poderia denominar cultural, que emdetrimento da forma busca considerar as representaes e as condiessociais, externas criao das obras. Nessa ltima vertente destacam-se

    Jakob Burckhardt (1818-1897) com o livro,A cultura do Renascimento italiano(1860), e Aby Warburg (1866-1926), com seus estudos sobre o Renascimentoflorentino.

    Warburg, contemporneo de Heinrich Wofflin e dos historiadores daarte de Viena,24 demonstra em seus estudos estar consciente da expansodas cincias sociais, principalmente da Antropologia. Ele ope-se ao po-

    sitivismo e ao uso exclusivo do mtodo formal de anlise que dominama disciplina, no incio do sculo XX, propondo estudos interdisciplinares.Nas suas pesquisas sobre o Renascimentoflorentino, ele articula as relaesentre as experincias individuais dos artistas e os sistemas simblicos vin-culados s tradies culturais, considerando as sobrevivncias do passado,isto , do mundo antigo no mundo moderno. Assume, assim, uma posiocontrria ao historicismo e noo de progresso em arte.

    Ele cria o mtodo iconolgico, porm o utiliza quando necessrioou como primeira etapa de suas pesquisas, para assegurar um estoquede conhecimentos histricos e literrios indispensveis a anlise das re-presentaes e poder conectar a arte com a vida da sociedade florentina.25Para atingir tal fim, esse estudioso lana mo de documentos at entodesprezados pelos historiadores da arte, como cartas de mercadores, car-

    22 WOLFFLIN, Heinrich. Con-ceitos fundamentais da histria daarte, op. cit., p. X XI.

    23 O historicismo baseia-sena ideia de memria social ecoletiva oriunda da noo desociedade como organismo outotalidade, na qual os sujeitossociais coletivos so postuladoscomo motores imanentes do

    dinamismo histrico. Hoje, amemria coletiva concebidacomo a interiorizao do tem-po social, cujas narrativas soelaboradas pelos grupos comomecanismos para construremsuas memrias e identidades.Ver CATROGA, Fernando.Memria, histria e historiografia,op. cit., p. 19

    24 Em Viena destacam-se:J.Burckhardt, Alois Riegl eJulius Schlosser. Os estudos so-bre Renascimento do primeirohistoriador exercem profundointeresse em Warburg. SobreWarburg ver: GOMBRICH,Ernest Hans. Aby Warburg.Anintellectual biography. London:Phaidon Press, 1986; BURU-CA, Jos Emlio. Historia delas imgenes e historia de las ideas.Buenos Aires: Centro Editorde Amrica Latina, 1992; BU-RUCA, Jos Emlio. Historia,arte, cultura. De Aby Warburg aCarlo Ginzburg. Buenos Aires:Fondo de Cultura Econmicade Argentina, 2002; DIDI-HU-BERMAN, Georges. LImagesurvivante, op. cit., GINZBURG,Carlo.Mitos, emblemas e sinais.So Paulo: Companhia das Le-tras, 1989; MAHQUES, RafaelG. Iconografa e iconologia. Ma-dri: Ediciones Encuentro, 2008;SIEREK, Karl. Images oiseaux.Aby Warburg et la thorie desmdias. Paris: Klincksieck, 2009.

    25 Erwin Panofsky considera,posteriormente, esse mtodopara analisar a continuidadedas representaes de ale-gorias, a partir de critrios

    cognitivos e de conexes coma sociedade, segundo visounitria e totalizante.

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    tas amorosas, testamentos, mitos, crenas etc.26 Warburg analisa ainda asredes culturais construdas entre os centros econmicos do norte e do suleuropeu, as mentalidades dos artfices, artistas e clientes, sem deixar deconsiderar a identidade social dos colecionadores e o estmulo que derampara a renovao do gosto, conectado com a Antiguidade. Para ele, essasrenovaes so resultantes de uma energia consciente e da vontade

    social. Ele procura, assim, estabelecer conexes entre as representaesfigurativas das obras com as prticas culturais, os gostos e as mentalidadesdos grupos sociais em estudo.

    A partir dessas conexes com outros campos do conhecimento, darecorrente busca de questionamentos e solues ele repensa a disciplina,abandonando a noo de tempo evolutivo, as tipologias e desenvolvendoo conceito depathosformal que inaugura uma nova percepo do Renasci-mento. Esse conceito elaborado atravs da observao das representaesdas imagens, dos gestos e movimentos das figuras, e de diferentes expres-ses psquicas. A partir do pathosformal, Warburg verifica nas imagens apresena de distintos tempos e memrias e o carter hbrido da arte doRenascimento, rompendo com as vises homogeneizadoras e unitrias doformalismo de Wlfflin e do historicismo. 27

    Ao analisar as pinturas de Boticeli, Warburg reflete a respeito do con-ceito de sobrevivncias que repousa sob a noo de sintomas 28, a qual lhepermite identificar as manifestaes artsticas como fenmenos vinculados histria e evidenciar os diferentes sentidos e temporalidades presentesnas obras. Ele trabalha essa noo a partir do processo de comparaoentre as obras em distintos momentos histricos, tendo em vista verificaras razes dessas sobrevivncias.

    Para compreender as sobrevivncias, Warburg articula as categorias

    de polaridade e de dialtica sem sntese, em que verifi

    ca os traos da me-mria do passado que permanecem no presente. Segundo sua concepode histria, o passado no um tempo concludo, j que emerge de formarecorrente no presente.

    Ele cria o Atlas da memria (1924) Mnemosyne que se constituicomo instrumento de estudo ao colocar, lado a lado, as fotografias dasimagens para relacion-las, compar-las e orden-las segundo hipteseslevantadas ao longo da pesquisa. O Atlas permite sries variadas de com-posies imagticas, nas quais Warburg estabelece articulaes, associaese imbricaes, que lhe permitem avanar na anlise das imagens e chegar adiferentes respostas s questes relativas s temporalidades e s memrias

    presentes nas mesmas. O estudioso alemo procura atravs do mtodo decomparao identificar as permanncias e, sobretudo, pensar por imagens.Esse mtodo comparativo aliado a outras categorias de anlise possibilitaa montagem do conhecimento das imagens de forma mais complexa.29 Asdistintas articulaes para estudar as imagens so efetuadas porque elasso consideradas como verdadeiros mediadores culturais, vivas, dinmicase que contribuem para dar forma, sentido e existncia ao mundo.30

    Warburg cria uma concepo de histria interdisciplinar, na quala Antropologia lhe permite fazer inmeros avanos no que se refere squestes de ordem cultural, bem como a Filosofia e a Psicanlise exercempapeis significativos para a construo de outro modelo de Histria daArte. Esta disciplina fundada na memria coletiva e nas representaessimblicas, questes que esto sendo retomadas na contemporaneidade

    26 Warburg, nos seus estudossobre o Renascimento, analisao objeto artstico, articulando-ocom a trama de relaes que seestabelecem entre os mecenas,humanistas e artistas, assimcomo procura identificar asua funo social. Ele procuraestabelecer conexes entre asrepresentaes figurativas dasobras com as prticas culturais,os gostos e as mentalidades dosgrupos sociais em estudo. Napoca, a originalidade de seumtodo consistia em relacio-nar as imagens e documentosescritos, interrogar as obras porseus sentidos e funes. Nessasconexes estabelecidas, War-burg insere tanto obras eruditascomo objetos de carter popu-lar, elucidando assim a culturavisual. A sua Histria da Arte

    apresenta o carter associativo,cujos mtodos e interpretaesso sempre renovados diantede novas pesquisas. Nessesentido, estabelece a relaoda pintura de Botticelli comexpresses gestuais, com a dan-a e as identifica com as paixese emoes, pois acredita que aimagem no se constitui comoum saber fechado, concebendo-a como um movimento querequer as dimenses antropo-lgicas do ser e do tempo.

    27 Ver DIDI-HUBERMAN,

    Georges. Savoir-mouvement.In: MICHAUD, Philippe A.AbyWarburg et limage en mouvement.Paris: Macula, 1998, p. 7-22. Aidentificao da pluralidadeartstica numa mesma pocaest tambm presente na obrade Julius Von Schlosser, Histriado retrato em cera (1911), assimcomo a noo de sobrevivncia.Os dois historiadores so con-temporneos e evidenciam emsuas reflexes conhecimentosdas pesquisas de Freud, sendoque Warburg se define como umpsico-historiador. Ver DIDI-HU-BERMAN, Georges. Viscositset survivances. Lhistoire delart lpreuve du matriau. In:Critique, n. 611, Paris, abr. 1998,p. 159-161.

    28 Warburg publica, em 1893,estudos sobre O nascimentoda Vnus e A Primavera deBoticelli e formula a hipteserelativa sobrevivncia dasexpresses gestuais da Antigui-dade, que supe uma espcie dememria inconsciente, prpria

    da memria coletiva. Nessaspinturas, os movimentos dasfi-guras e das vestes so relaciona-dos com a dana e as ninfas da

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    agemface ao descontentamento dos estudiosos com as inconsistncias dos pa-

    radigmas formalista e historicista, dominantes at pouco tempo.Os estudos de Warburg tm, em parte, continuidade na Europa e

    EUA, podendo-se destacar a historiografia de Ernst Gombrich, na Ingla-terra,31 e de Erwin Panofsky, nos EUA. Este ltimo, a partir de uma visomais cognitiva e positiva, faz da obra veculo de informaes, sendo que o

    seu mtodo iconolgico tem sido objeto de crticas na atualidade e inclusivepor Gombrich. Como Warburg, Gombrich valoriza os aspectos psicolgicospresentes nas imagens.

    Na contemporaneidade, Georges Didi-Huberman percebe a neces-sidade das revises desses paradigmas, fato que o conduz a fazer umaarqueologia crtica das modalidades de pensar o tempo e a memria e arefletir sobre os valores que esto conectados com essas noes utilizadaspela historiografia da arte. Pensar o tempo interrogar a disciplina, seusmodelos de anlise, a histria e a historicidade.32 Para atingir tais objetivos,ele parte do exemplo da pintura de Fra Anglico Santa Conversao (co-nhecida tambm como Madona das sombras, 1438-1450), que se encontra noconvento de So Marco, em Florena. Huberman observa que essa pinturaconfigura a interpretao especfica de uma tradio textual recolhida na

    biblioteca de So Marco e a sobrevivncia de uma antiga tradio figural,oriunda de Bizncio, do uso litrgico de pedras semipreciosas multico-loridas, via arte gtica e obra de Gioto. Para ele, diante dessa imagemo presente e o passado se reconfiguram, pois ela tem tanto de memria,quanto evidncia de presente e mesmo de futuro. Essa pintura florentinado Renascimento ao ser analisada pelas bordas e pelas margens, poderiaser apreendida sob etiqueta de arte abstrata devido s manchas coloridasque a compem.

    Fra Anglico representa o momento mtico da Encarnao e revela asua devoo espiritual, que no o obriga a uma representao do visvel.O estudioso verifica diante dessa singularidade pictural que necessriorevisar os mtodos de anlise da Histria da Arte, visto que os inmerosestudos sobre arte florentina no se detiveram, rigorosamente, na imageme a identificaram com representaes visveis prprias arte renascentista.33Entretanto, para Fra Anglico e os religiosos daquele momento figurar omundo sagrado significa se afastar do visvel,34 para expressar o invisveldo mundo celestial.

    Huberman considera que nem a iconologia de Panofsky e a semio-logia estruturalista no do conta da complexidade dessa imagem e que

    as consideraes que Michael Baxandall, como historiador social da arte,prope em relao conexo da pintura de Fra Anglico com os sermesreligiosos de seu tempo e com o texto do humanista Cristoforo Landino,de 1481 (trinta anos aps a morte do artista), a respeito da recepo da obrano so satisfatrias. Esse recurso de Baxandall no pertinente porqueno h concordncia de tempos35 e os sermes no so elementos de com-parao. A devoo de Fra Anglico, revelada na obra, no resultante doestilo dos mesmos, mas de sua espiritualidade, imaginao e da expressodo momento mtico da Encarnao. O artista preserva o pensamento daEscolstica e o latim medieval, enquanto o humanista Landino utiliza olatim clssico. Huberman destaca ainda que diante dessa obra o presenteno cessa de se reconfigurar, ao apresentar partes com manchas coloridasque se assemelham s abstraes modernas.

    Antiguidade, por suas formassemelhantes de representao.Ver os textos relativos s duaspinturas em WARBURG, Aby.Essaisflorentins.Paris: Klincksie-ck, 1990, p. 49-100.As noes desintoma, formuladas por Hegele Freud, apresentam acepesdistintas. Warburg concebeo sintoma como uma espciede memria inconsciente quesobrevive em distintas tempora-lidades. Carlo Ginzburg salientaque a Antiguidade buscada porWarburg no a apolnea cls-sica, mas a dionisaca, oriundade Nietzsche, atrelada noode pathosformal e identificadanas imagens pelas expresses deestados de espritos das figurasrepresentadas. GINZBURG,Carlo. Mitos, emblemas, sinais,op. cit., p. 45.

    29 Ver DIDI-HUBERMAN, Ge-orges. Limage survivante, op.cit ., p. 452-459. Mnemosynesignifica a personificao cls-sica da memria, a me dasNove Musas.

    30 SIEREK, Karl. Images oiseaux.Aby Warburg et la thorie desmdias, op. cit., 186.

    31 Gombrich recebe uma bolsade estudos do Instituto War-burg, porm entra em conta-to com o pensamento dessehistoriador, em Viena. Maistarde, ele muda residncia paraLondres, onde dirige essa insti-tuio, de 1967 a 1976.

    32 DIDI- HUBERMAN, Georg-es. Devant le temps. Histoire delart et anachronisme des images.Paris: Minuit, 2000, p. 13.

    33Idem, ibidem, p. 10 e 11. PietMondrian acredita tambm queno h nenhuma forma figu-rativa perfeita que representeo divino. Ver sobre imagenssacras medievais: SCHMITT,

    Jean-Claude. O corpo das ima-gens. Bauru: Edusc, 2007.

    34 DIDI- HUBERMAN, Georg-es. Fra Angelico. Dissemblance etfiguration. Paris: Flammarion,1995, p. 12.

    35 Baxandall utiliza fenmenosculturais e cognitivos paraanalisar a obra de Fra Angelico,bem como o texto do humanistaLandino, que difere do pensa-mento escolstico do artista.Huberman verifica que Landi-no versado em latim clssico

    e defensor da lngua vulgar,enquanto o artista preserva olatim medieval com suas distin-es escolsticas e hierarquias.

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    A obra de Fra Anglico no apresenta, assim, concordncia com apoca de sua criao. Ela evidencia distintas memrias, fenmeno queconduz Huberman36 a refletir a respeito da temporalidade, ao observaras sobrevivncias, os anacronismos e os reencontros de temporalidadescontraditrias e descontnuas que compem a imagem.

    A partir desse estudo, da obra de Donatello37 e tantas outras, o estu-

    dioso francs defende o anacronismo como meio fecundo de se entender asimagens, quando afirma que o historiador no pode se contentar em fazer ahistria da arte apenas sob ngulo da euchronie, isto , o ngulo convenientedo artista e seu tempo (cnone da disciplina). As artes visuais exigem quese aborde sob ponto de vista de sua memria, das suas manipulaes dotempo e dos dilogos que os artistas estabelecem com obras de distintosmomentos histricos. Para ele, diante da imagem contempornea o passadono cessa de se reconfigurar, porque ela pensada numa construo de me-mria, numa construo de tempos impuros e complexos. Pensar o tempo interrogar o objeto de estudo da Histria da Arte e a sua historicidade.

    As abordagens pautadas nas noes de estilo ou de poca no doconta da complexidade da obra e de sua montagem de tempos distintos,pois muitas vezes elas criam camisas de fora para determinar que certosfenmenos sejam resultantes de um mesmo tempo e estilo. Colocar emquesto o anacronismo interrogar a plasticidade e com ela a mescla dediferentes tempos e memrias presentes, em detrimento de um tempoesttico e rgido, prprio aos estudos de Semitica. A imagem no deveser apenas determinada pelo olhar de seu tempo, visto que o artista podese contrapor ao mesmo e ela implica numa certa dinmica de memria.

    O anacronismo necessrio quando o passado se revela insuficientee ele pode dar indcios de sintoma, isto , de um novo problema para a

    Histria da Arte. Assim, o anacronismo no pode ser reduzido ao terrvelpecado temido pelos historiadores, visto que ele na histria atua contra aordem dos acontecimentos,38 e no possibilita a construo da narrativaevolutiva. A sua identificao um meio de pensar a obra e sua intricadarede de conexes.

    Huberman acredita que a grande potencialidade da imagem est nofato dela ser ao mesmo tempo sintoma, como interrupo do saber, e conhe-cimento, como interrupo do caos. O sintoma a presena da sobrevivnciade outros tempos e a conjuno da diferena e da repetio. Pensar o tempoimplica a diferena e a repetio, o sintoma e o anacronismo. De modosemelhante a Warburg, ele verifica que a presena de memrias distintas

    evidencia o sintoma e a necessidade de interrogao que permite o avanodo conhecimento sobre a obra. A imagem-sintoma interrompe o curso darepresentao visual e da histria cronolgica, devendo ser pensada sobngulo de um inconsciente da representao e de memrias entrelaadas.

    Para pensar a imagem e o tempo, Huberman retoma tambm opensamento dialtico de Walter Benjamin (1892-1940), que cria uma novaconcepo de histria ao estabelecer a percepo de temporalidade, contr-ria ao idealismo, ao historicismo,39 ao positivismo e noo de progresso.Em relao ao tempo histrico, ele destaca: A Histria objeto de umaconstruo, cujo lugar no constitudo por um tempo homogneo e vazio,mas por um tempo preenchido por todos os agoras (Jetztzeit). Assim, paraRobespierre, a Roma Antiga era um passado carregado com todo o pesopresente, que ele extraiu do continum da Histria.40

    36 DIDI-HUBERMAN, Georges.Devant le temps. Histoire de lartet anachronisme des images, op.cit., p. 10 - 39.

    37 Huberman verifica nas es-culturas de Donatello refe-rncias formais e tcnicas daantiguidade, do medievo e da

    modernidade.38 DIDI- HUBERMAN, Geor-ges. Devant le temps. Histoire delart et anachronisme des images,op. cit. p. 21-28.

    39 Habermas salienta a contra-dio de W. Benjamin, no quese refere ao seu posicionamentocontra o historicismo, devidoao fato dele se apoiar, em parte,no pensamento marxista.

    40 HABERMAS, Jrgen. Crticaconscientizante ou salvadora. A

    atualidade de Walter Benjamin.In: Habermas. Grandes CientistasSociais. So Paulo: tica, 1980,p. 180.

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    agemPara ele, a Revoluo Francesa, no seu tempo, compreende a si mesma

    como uma Roma recomeada, visto que seu modelo parte da Roma Antiga.A histria objeto de uma construo cujo lugar o tempo do agora,mas o agora concebido como um tempo que permite o conhecimento dopassado, como ncleo temporal da histria, no qual o tempo se revela porsua breve imobilizao. 41

    Benjamin apresenta uma acepo qualitativa da temporalidade,fundada, de um lado, na rememorao e, de outro na ruptura messinicae revolucionria do continum da Histria. A Revoluo pressupe a inter-rupo messinica da Histria e do devir. (Tese VII)

    Ele produz uma verdadeira revoluo no pensamento histrico,quando transforma o passado como fato objetivo em fato de memria, oque significa conceb-lo como fato em movimento, como fato psquico ematerial.

    Seu pensamento inicial aproxima-se, em parte, ao de Warburg aoconsiderar o tempo e a memria como imagem do inconsciente coletivoe ao perceber a dimenso prpria da arte moderna, que no pode serconcebida como novidade absoluta, nem como retorno total s fontes. Asobras de arte tm uma historicidade especfica, que no se conecta com oprogresso e nem contrasta com a arte do passado. Essa relao temporal prpria da imagem dialtica.

    Benjamin prope a noo de montagem como mtodo para construiro conhecimento histrico e analisar a imagem artstica em suas distintastemporalidades e memrias. O mtodo da montagem proposto fundadona memria em movimento, que imobiliza momentaneamente numa in-terrupo do ritmo de tempos heterogneos, contra qualquer tentativa desntese. A imagem condensa todos os estratos da memria involuntria

    da humanidade.42

    As sobrevivncias e os sintomas so os meios pelos quais se compemessa montagem e eles podem ser identificados nos detalhes, nos vestgiose no no observado. Todas essas categorias so identificadas por Didi-Huberman como constituintes do anacronismo. Assim, a concepo deHistria de Walter Benjamin funda-se na retomada contra a pelo, isto, na anlise da complexidade dos ritmos e contra-ritmos, das latncias ede suas crises, das sobrevivncias e de seus sintomas.43

    Desse modo, ele procura estabelecer articulaes da arte do presentecom o passado e consider-la na perspectiva do anacronismo, visto queo presente dos acontecimentos atua como suporte para fazer emergirem

    as sobrevivncias e a memria, isto , as reminiscncias. Fazer histria tambm um ato de anacronismo porque se remonta ao passado atravsdos pressupostos cientficos do presente.

    A noo de anacronismo examinada por Huberman tambm consi-dera a sua virtude dialtica, porque ela parece emergir da relao que hentre a imagem e a histria. A imagem tem uma histria e a sua tempora-lidade no deve ser reconhecida como elemento da histria que ela porta.O tempo no significa necessariamente o passado, mas a memria, porqueela decanta o passado, o humaniza e configura o tempo. A memria psquica no seu processo e anacrnica nos seus efeitos de montagem, poisela conecta o inconsciente.

    Huberman busca ainda nos estudos de Carl Einstein (1885-1940)sobre o Cubismo e a arte africana (1915), subsdios para pensar a Histria

    41 BENJAMIN, Walter. Passa-gens. Belo Horizonte/So Paulo:UFMG/ Imprensa Oficial, 2009,p. 28-29.

    42 BENJAMIN, Walter. Paris, ca-pitale du XIXe. sicle. In : DIDI-HUBERMAN, Georges. Devantle temps, op. cit., p 117-118.

    43 DIDI-HUBERMAN, Georges.Devant le temps, op. cit., p. 83-95.A primeira etapa desse ca-minho ser aplicar histria oprincpio da montagem. Isto :erguer as grandes construesa partir de elementos mins-culos, recortados com clarezae preciso. E, mesmo, descobrirna anlise do pequeno mo-mento individual o cristal doacontecimento total. Portanto,romper com o naturalismohistrico vulgar. Apreender aconstruo da histria comotal. Na estrutura do comen-trio. Resduos da histria.BENJAMIN, Walter, Passagens,op. cit., p. 503.

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    da Arte e a sua concepo contra a ordem dos acontecimentos, com vistasa deter com maior profundidade o seu olhar sobre a obra. Ele verifica queas obras de arte no so suficientes para definir uma poca e que, muitasvezes, elas se submetem a posies contra as correntes gerais de um mo-mento, como so os casos das vanguardas que buscam modificar o real, aestrutura do homem e as vises de mundo. Para ele, a misso da histria

    da arte reside num estudo das condies que engendram as obras, e nono simples alinhamento histrico e descritivo das imagens.44

    Na sua monografia sobre Georges Braque (1934), Einstein critica ahistoriografia evolucionista e homogeneizadora que no identifica as sub-verses produzidas pelos artistas, bem como a esttica idealista e o mtodode anlise imanente da obra, praticado por Wolfflin, que desconsidera osseus condicionantes externos.45

    Ele formula uma prtica historiogrfica baseada no questionamentode conceitos e mtodos oriundos do historicismo e do formalismo, abertaa outros campos da cincia, pois tem conscincia que o saber especficono possibilita a compreenso da complexidade das imagens artsticas.

    em Paris que ele conhece o Cubismo e percebe a importncia dainveno de Picasso e Braque, pelo fato de que a transformao das for-mas plsticas supe a mudana de espao, de viso e das coordenadasdo pensamento. Esses artistas no se separam do real, mas criam o real,segundo critrios ticos. Eles instauram uma nova viso de mundo e umato de ver indito, que leva Einstein a pensar no sentido revolucionrio dearte e pensamento estabelecido por esses artistas.46

    A criao do novo espao considerada pelo estudioso alemo, comoa negao do espao contnuo e estvel, e a decomposio do espao an-tropocntrico, que significa a decomposio do saber antropocntrico e a

    criao do espao descontnuo, no qual a colagem representa a destruioda realidade convencional. O Cubismo pe fim tambm ao sujeito estvele determinado e Einstein verifica que essa experincia visual exige umanova posio do sujeito, diante da instabilidade e da mobilidade. A artemoderna descentraliza o sujeito.47

    Enstein acredita que a Histria da Arte deve ser pensada como con-flito e luta de formas contra modalidades de experincias ticas, de espaosinventados e de figuraes sempre reconfiguradas. A seu ver, a disciplinarequer a interpretao dessas figuraes e reconfiguraes, exigindo dohistoriador contrapor pensamentos, sem estabelecer a clausura praticadapelo formalismo. Ele constri uma Histria da Arte contra o modelo esttico

    idealista e do juzo de gosto kantiano, visto que a obra no destinada aagradar a sensibilidade, mas ela portadora, nessa acepo, de conheci-mento. Ele critica, assim, os critrios de beleza, que levam adorao dasobras fazendo delas verdadeiros fetiches.48

    Einstein, no seu estudo sobre Georges Braque, salienta que o historia-dor ao julgar a arte pelo critrio esttico da beleza recusa-se em afront-la,pois acaba a isolando do conjunto da histria, sem considerar seus proce-dimentos formais e sua eficcia antropolgica. A Esttica ignora a imagem,a sua relao com a produo de saber e o uso do pensamento, apoiada nafora mtica de uma metafsica da totalidade.49

    As suas reflexes sobre histria da arte so resultantes de pesquisas,fato que o levam a propor o mtodo genealgico, no qual a origem e a novi-dade se combinam dialeticamente. A origem no pensada como fonte do

    44 EINSTEIN, Carl. Georges Bra-que. Bruxelas: La Part DOeil,2003, p. 15-18. Ele escreveesse livro entre 1931-2. CarlEinstein atua como crtico ehistoriador da arte, alemo noincio do sculo XX, que s maisrecentemente reconhecidona Europa. Seus estudos sointroduzidos na Frana em1978, por Jean Laude, no cat-logo da exposio Paris-Berlim1900-1933, no Centro CulturalGeorges Pompidou. Einstein foidiscpulo de H. Wlfflin e Ge-orge Simmel; publica em 1915um estudo sobre Arte Negra,quando se encontra afastadodo meio acadmico. DIDI-HUBERMAN, Georges. Devantle temps, op. cit ., p. 163-164.Einstein escreve para a revistaDocuments Doctrines, Arch-

    ologie, Beaux-Arts, Etnographie,criada em 1929, por Georges-Henri Rivire, na poca diretordo Museu do Homem. Einsteinparticipado comit editorial eGeorges Bataille como secre-trio e redator. Como seu sub-ttulo indica, uma revista decarter pluralista para a qual ossurrealistas colaboram e cujasmetodologias so muitas vezesexperimentais. Ele escreve paraoutros peridicos alemes im-portantes, nos anos 20, como,por exemplo, Propylen-Kuns-

    tgeschichte e Kunsliteratur; eproduz estudos sobre L Art duXXe. Sicle (1926, 1928 e 1931).

    45 EINSTEIN, Carl. GeorgesBraque, op. cit., p. 14-19. Eledestaca o seu temor em relaoaos estudos monogrficos pelapossibilidade dos mesmos serestringirem ao artista e suaobra, como produto autnomosem conexes vivas.

    46 EINSTEIN, Carl. GeorgesBraque, op. cit., p. 32.

    47

    DIDI-HUBERMAN, Georges.Devant le temps, op. cit., p. 196-200.

    48 Ver DIDI-HUBERMAN,Georges. O anacronismo fa-brica a histria: sobre a ina-tualidade de Carl Einstein. In:ZIELINSKY, Mnica (org.).Fronteiras: arte, crtica e outrosensaios. Porto Alegre: Editorada UFRGS, 2003, p. 27 e 28. Hu-berman salienta a importnciade seu pensamento, visto quehoje, a filosofia analtica anglo-sax tenta criar uma esttica

    normativa.49 EINSTEIN, Carl. Georges Bra-que, op. cit., p. 17 e 18.

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    agemfuturo e nem a novidade pensada como ruptura com o passado. Einstein

    analisa as esculturas africanas ultrapassando seu carter etnogrfico, reli-gioso e como refm do uso que a arte moderna faz delas. Ele parte da anlisedo Cubismo, buscando estudar a experincia formal e rearticulando-a comos elementos antropolgicos prprios s culturas africanas. passandodo geral para o particular que a etnografia pode oferecer novos temas de

    estudo ao historiador da arte.50 Assim, ele acredita que abre caminhospara a pesquisa pontual das artes africanas.

    Einstein cria uma nova metodologia, na qual concilia a Histria daArte e a Antropologia, sem deixar de produzir a anlise formal das obras.Esta anlise se processa via Adolf Hildebrand, que afirma a exigncia for-malista da viso distncia da escultura e que Einstein a articula comas condies culturais e religiosas africanas, partindo da noo de espaodo Cubismo.51

    As reflexes tericas e os mtodos formulados pelos intelectuaisalemes Warburg, Benjamin e Einstein nos permitem verificar queeles se atem s questes internas e externas s obras recorrem a outroscampos do conhecimento e estabelecem uma rica trama de associaes earticulaes de categorias que possibilitam chegar a respostas diversasdaquelas homogeneizadoras do historicismo e do formalismo, baseadasnas noes de evoluo e de progresso.52

    Os conceitos tericos e metodologias propostos por Huberman de-monstram a complexidade da imagem e colocam em xeque os mtodoscannicos presentes, em geral, na disciplina. Ao defender as distintastemporalidades da imagem, ele demonstra que o seu tempo por ser hetero-gneo impuro e que esta nada mais do que uma montagem de temposdiferentes, formando anacronismos. necessrio se identificar os encontros

    de temporalidades contraditrias na imagem, visto que podem elucidar aintricada rede de conexes com as quais ela elaborada.Gilles Deleuze53 corrobora com esse pensamento ao afirmar que a

    imagem no presente, mas um conjunto de relaes de tempos e queessas relaes no so jamais identificadas pela percepo comum, masesto na imagem desde a sua criao.

    Logo, o historiador comete um grave erro ao isolar e purificar asimagens e o tempo, ao procurar dar unidade aos fenmenos e se limitara euchronia, para ordenar a narrativa. Ora o objeto da Histria da Arteno a unidade do perodo focalizado, mas a sua dinmica, o que supemovimentos em todos os sentidos, tenses, rizomas de determinismos,

    anacronismos em ato e contradies.54Concluindo com Walter Benjamin,55 rememorar no significa apenas

    evocar o passado, ao contrrio, nesse ato h um desejo em transform-lo demodo a acabar o que ficou inacabado. Por isto, a evocao do passado nose limita ordenao irreversvel, assim como os seus nexos so ditadospor afinidades eletivas e estas condicionam a cada presente a construode sua prpria histria.

    Artigo recebido em julho de 2010. Aprovado em agosto de 2010.

    50 EINSTEIN, Carl. La sculpturengre. In: DIDI-HUBERMAN,Georges. O anacronismo fa-brica a histria: sobre a inatu-alidade de Carl Einstein, op.cit., p. 46.

    51 DIDI-HUBERMAN, Georges.O anacronismo fabrica a hist-ria: sobre a inatualidade de CarlEinstein, op. cit., p. 43-46.

    52 Essas questes analisadaspor eles esto sendo retoma-das, pois se inserem no debateepistemolgico que ocorre naHistria da Arte, em que o es-

    tatuto da obra, as intenes, osusos, as funes e os fins estotambm em pauta, porm semesquecer que a arte tem umpensamento visual.

    53 DELEUZE, Gilles. Le cerveau,cest lcran. In: DIDI-HUBER-MAN, George. Limage brle.In : ZIMERMANN,L. Penser parles images. Nantes: C. Defaut,2006, p. 28.

    54 DIDI-HUBERMAN, Georges.Ouvrir Vnus. Paris: Gallimard,1999, p. 27.

    55 CATROGA, Fernando, Mem-ria, histria e historiografia, op.cit., p. 33 e 34.

  • 7/31/2019 Imagem, historiografia, memria e tempo - Maria Lcia Bastos Kern

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