imagem digital em movimento e processos

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  1 IMAGEM DIGITAL EM MOVIMENTO E PROCESSOS POÉTICOS DE CRIA ÇÃO DIGITAL IMAGE IN MOTION AND PROCEDURES POÉTICOS CREATION Tatiana Giovannone Travisani  RESUMO: E ste trabalho reúne a nálises so bre as imag ens digita i s com questões estruturais e po éticas do movi men to. Pro e um a compreensã o das po ssibi li dades a rtísticas da imagem digital através d a ca tegori zaçã o de t rês estág ios da imag em digit aliz a da: desm ateriali zaçã o, ubiqüid a de e repli ca bi li dade. T rata- se de ima ge ns qu e passa ram por algum processo d e captura a nalógi ca , por meio d e câm era s e após i sso, foram digitalizadas. A partir dai, podem sofrer transformações estéticas e sinestésicas de acordo com as possibilidades oferecidas pela tecnologia digital. O trabalho inclui os prin cipais fatores qu e sã o si ngulare s ao uni verso di gital, que permitem con cepções a rtísticas partic ulare s atra vés das novas m í dias surg i das. Para isso, f oram e scol hid as três obr as artíst icas contempo nea s, que propõe um a fruição v isual inov adora e um a reflexão atua l a respeito da a rte em temp o s de conv ergência das m íd ias. Palavras-chave:  imag em -movi mento, imag em di gital, convergê ncia, novas m íd ias, arte e tecnologia  A BS TR A C T : This paper analyzes digital images with structural and poetics issues of the movement. Proposes an understanding of artistic possibilities of digital imaging through the categorization of three stages to the process of the digital image: dematerialization, ubiquit y an d repli ca bi li ty. T hese i ma ge s ha ve underg o ne some pro cess of ana log capture by cam era s a nd t hen w ere codificated. Then, t hey ca n be ae sthetic an d sin esthesic transformed according to the possibilities afforded by digital technology. The study includes the m ain fac to rs that a re u nique to d igital, ena bli ng innovative a rti stic ideas throug h new m edia eme rge . For thi s, t hree c o ntemporary artw orks were chosen, which proposes an innovative visual enjoyment and reflection on the current art in times of convergence of media. Ke y words:  mov eme nt i ma ges ; dig i tal i ma ges; co nvergence ; new media; art & technology INTRODUÇÃO  A i m agem d i g i t a l v e m sen d o es t u d a da com fr e q üên c ia p o r a r t i s t a s e pesquisa do res de várias á reas de conheci me nto , na tentati va de def ini r padrões e stéti cos e concei tuais sobre um a m ídia qu e possui a compl exida de como essência. A lguns fato res  Doutoranda em Artes Visuais pela ECA/ USP, m estre em Artes Vi sua is pela UNESP. Pesquisadora de poéticas digitais em grupo de pesquisa da CAPES e professora universitária de comunicação e artes. [email protected]

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  • 1

    IMAGEM DIGITAL EM MOVIMENTO E PROCESSOS POTICOS DE CRIAO

    DIGITAL IMAGE IN MOTION AND PROCEDURES

    POTICOS CREATION

    Tatiana Giovannone Travisani

    RESUMO: Este trabalho rene anlises sobre as imagens digitais com questes estruturais e poticas do movimento. Prope uma compreenso das possibilidades artsticas da imagem digital atravs da categorizao de trs estgios da imagem digitalizada: desmaterializao, ubiqidade e replicabilidade. Trata-se de imagens que passaram por algum processo de captura analgica, por meio de cmeras e aps isso, foram digitalizadas. A partir dai, podem sofrer transformaes estticas e sinestsicas de acordo com as possibilidades oferecidas pela tecnologia digital. O trabalho inclui os principais fatores que so singulares ao universo digital, que permitem concepes artsticas particulares atravs das novas mdias surgidas. Para isso, foram escolhidas trs obras artsticas contemporneas, que prope uma fruio visual inovadora e uma reflexo atual a respeito da arte em tempos de convergncia das mdias. Palavras-chave: imagem-movimento, imagem digital, convergncia, novas mdias, arte e tecnologia

    ABSTRACT: This paper analyzes digital images with structural and poetics issues of the movement. Proposes an understanding of artistic possibilities of digital imaging through the categorization of three stages to the process of the digital image: dematerialization, ubiquity and replicability. These images have undergone some process of analog capture by cameras and then were codificated. Then, they can be aesthetic and sinesthesic transformed according to the possibilities afforded by digital technology. The study includes the main factors that are unique to digital, enabling innovative artistic ideas through new media emerge. For this, three contemporary artworks were chosen, which proposes an innovative visual enjoyment and reflection on the current art in times of convergence of media. Key words: movement images; digital images; convergence; new media; art & technology

    INTRODUO

    A imagem digital vem sendo estudada com freqncia por artistas e

    pesquisadores de vrias reas de conhecimento, na tentativa de definir padres estticos e

    conceituais sobre uma mdia que possui a complexidade como essncia. Alguns fatores

    Doutoranda em Artes Visuais pela ECA/USP, mestre em Artes Visuais pela UNESP. Pesquisadora de poticas digitais em grupo de pesquisa da CAPES e professora universitria de comunicao e artes. [email protected]

  • 2

    determinam essa constante busca da compreenso de todo esse potencial sinestsico, que

    afeta diretamente a percepo visual e tambm o comportamento da sociedade atual. Um

    deles o fato de o sistema digital simular, muito alm de representar, o mundo material

    que identificamos como realidade.

    Dentro desse mundo esto as mdias j existentes antes dessa tecnologia: a

    pintura, a fotografia, o cinema e o vdeo, por exemplo, que, em ambiente digital, se

    tornam cdigos numricos e, a partir da, ganham possibilidades infinitas de recriao.

    O movimento das imagens tambm j foi bastante pesquisado, principalmente

    com o advento do cinema. Na poca, as questes ligadas ao movimento eram j

    amplamente estudadas pela fsica, matemtica, arte, psicologia e sociologia. Atravs

    dessas reas de conhecimento, muitos avanos possibilitaram experimentaes tcnicas,

    at que se chegasse concepo de um aparato que capturasse e reproduzisse imagens

    em movimento, algo revolucionrio para a arte. Muitos so os registros tericos e

    prticos que permeiam a temtica da imagem-movimento do cinema. Quanto imagem

    digital nas artes, so poucas as pesquisas especificamente relacionadas ao movimento, e

    muitas, das poucas existentes, tratam de tcnicas de animao digital, o que no o

    intuito deste artigo.

    O que se pretende unir estudos que envolvam as imagens digitais com questes

    estruturais e poticas do movimento e, com esse fim, analisar os processos e

    procedimentos artsticos sob a luz das possibilidades da tecnologia digital, quando as

    imagens ganham novas formas dinmicas e novos padres de movimento, partindo de

    uma diviso de estgios da imagem digitalizada, proposto por Cludia Giannetti (2007) e

    seus potenciais poticos.

    A imagem de que se vai tratar aqui no a imagem sinttica, criada por

    algoritmos, e sim a imagem que passou pelo processo de captura atravs de algum

    aparato tcnico, como a cmera, e que foi digitalizada, permitindo, assim, a manipulao

    e a recriao, mudando seu carter original e transformando-a numa nova obra. Partindo

    da explicao histrica e conceitual dos termos empregados, ser feito uso de trs obras

    para exemplific-los e ilustr-los. Assim, propor uma maneira de analisar trabalhos

    criados em meio digital, pensando em caractersticas de etapas comuns que podem

    sugerir uma possvel linguagem: desmaterializao, ubiquidade e replicabilidade.

    DESMATERIALIZAO

  • 3

    O conceito de desmaterializao dos mais representativos nas questes que

    envolvem a esttica digital. Surgiu na segunda metade da dcada de 60, antes das

    primeiras manifestaes em arte digital. Foi desenvolvido por parte da crtica de arte

    contempornea, para definir manifestaes que pretendiam questionar a obra enquanto

    objeto nico e supremo, referindo-se aos dogmas renascentistas e relao entre a arte e

    consumo. Grupos como o Fluxus trouxeram arte das dcadas de 60 e 70 prticas

    artsticas com a temtica de temporalidade, como happenings, performances e instalaes.

    Nesse mesmo perodo tambm surgia o termo Arte Conceitual, onde a proposta era

    promover a queda do pensamento da arte como esttica primordialmente visual, para

    priorizar a idia e o conceito por trs de uma obra. A obra, ento, de fechada passa a ser

    aberta (Umberto Eco, 1962), a autoria deixa de ser exclusiva para ser compartilhada e a

    recepo deixa de ser passiva para ser participativa.

    Com a desmaterializao do objeto artstico veio tambm a desmaterializao de

    fronteiras entre territrios reais e fictcios e a relao rgida entre as disciplinas da arte.

    Muitos tericos anunciavam a morte da arte, que, para eles, havia perdido sua essncia. A

    desmaterializao coloca-se, assim, como uma das principais caractersticas do

    pensamento contemporneo e um dos fios condutores que significam, do sentido e

    explicam a arte presente, desde o aparecimento dessas manifestaes at as aes atuais

    em arte digital.

    Entre os anos 70 e 90 surgiram as primeiras experimentaes artsticas com o

    computador, a computer art, mas, em geral, eram imagens que repetiam os esquemas e

    estilos visuais prprios da arte tradicional, usando-os como ferramenta, no como

    linguagem. As imagens eram traduzidas ao analgico, e impressas como uma gravura ou

    pintura, gerando desinteresse pelo movimento. Surge ento a net art ou media art, em que

    as experimentaes deixam de imitar a aparncia da arte analgica para assumir os

    critrios singulares e prprios das novas tecnologias digitais, como a realidade espacial

    (virtual), a estrutura fragmentada (hipertextual), a natureza ubqua (multipresencial) e sua

    recepo (interativa) (MECAD, 2006-2007).

    Quando tratamos da desmaterializao no mbito digital algumas questes devem

    ser ressaltadas, pela particularidade da perda da imagem de sntese. A desmaterializao

    deixa de ser um termo conceitual e passa a ser fsico, j que no h um suporte

    representando essas imagens, somente cdigos, bits de informao. A converso da

    forma original em um mapa de bits, ou combinaes numricas, ocorre com a

    reconstruo matemtica, eliminando qualquer relao analgica anterior. Assim, a

  • 4

    imagem digitalizada envolve esse aspecto especfico da desmaterializao em sua prpria

    constituio.

    Quando se fala de desmaterializao, epistemologicamente aplica-se a perda de

    materialidade, da fisicalidade. Em snscrito, mtram significa matria e medida, e sua raiz

    significa fazer com as mos, medir, construir, e por isso se aplica ao digital a

    desmaterializao. O que ocorre no universo digital a possibilidade da manipulao

    numrica, o que permite a elaborao no s de imagens imateriais, mas de um ambiente

    digital no necessariamente relacionado ao ambiente fsico, material, que denominamos

    realidade. um no lugar, no fixado em nenhum territrio geogrfico.

    A tecnologia digital, na qual apenas um equipamento possibilita a criao e a

    difuso, ou seja, a troca constante de dados atravs da integrao da rede de internet

    determinou uma grande ruptura. Paul Virilio e Peter Weibel (1997) chamam a isso da

    era da ausncia, onde, alm do objeto ser desmaterializado, h tambm a

    desmaterializao dos corpos, que so substitudos pelas aes determinadas no

    momento da relao homem-mquina. As mensagens, imagens e sons enviados e

    recebidos caminham pelo ambiente digital como se o prprio eu fosse representado por

    esses dados de informao enviados nos clicks. Na arte pictrica, o homem a usava para

    representar seu entorno, da forma como ele o observava. Agora usamos as imagens em

    outro sentido, com a inteno de que elas nos representem no ciberespao. Peter Weibel

    observa: O espao imaterial da telecomunicao, o espao virtual desmaterializado da era tecnolgica, no somente um espao da ausncia, um espao da falta, mas tambm um novo espao da presena, da telepresena, um novo espao situado alm do visvel, que sempre esteve ali, mas que nunca pde ser visto. O tecnoespao e o tecnotempo se situam alm da experincia fsica; so espaos que se tornaram experimentveis por meio de mquinas telemticas, espaos de tempo invisveis. (WEIBEL,1997, p. 110)

    Outro fator, ainda, determina uma maior complexidade na desmaterializao em

    meio digital do que nos demais meios. Ao disponibilizar sua obra na rede, a relao

    autor-obra-pblico ganha um novo carter, alm da participao ativa praticada nas

    performances: a possibilidade da recriao, fazendo da obra um continuum de atualizaes,

    em que o formato original, determinado.

    UBIQUIDADE

  • 5

    Ubiqidade a possibilidade de estar presente em toda parte, em qualquer

    tempo, simultaneamente ou no, conceito que envolve um distanciamento ainda maior

    da idia tradicional de objeto. A ubiqidade na arte contempornea aponta para a

    necessidade de expandir as noes clssicas de tempo e espao, questionando

    profundamente a esttica da arte ocidental baseada na premissa do objeto nico, absoluto

    e soberano. o segundo estgio na construo de novas concepes artsticas, e que

    discute no apenas a fisicalidade do objeto, mas tambm sua prpria maneira de existir

    em dimenses, expandindo as noes de permanente/efmero, nico/mltiplo,

    presente/ausente e autoria/pblico.

    Os primeiros experimentos a tratar diretamente da ubiqidade foram os projetos

    de arte por satlite, os Satellite Art. Nam June Paik foi um precursor desses projetos. Com

    alguma obstinao pela telecomunicao, ele buscava uma metacomunicao para criar

    uma obra que fosse executada simultaneamente em locais distintos do mundo. Perseguiu

    por 15 anos essa explorao, bem sucedida ao final. Em 1977 inaugurou o Documenta 6

    de Kassel, com uma transmisso via satlite de performances realizadas ao vivo na

    Europa e nos Estados Unidos, chamada Nine Minutes Live.

    No incio da dcada de 70 tambm ocorreram as primeiras exploraes da

    Computer Art. Temas como telecomunicao e arte associados idia de ubiqidade

    foram naturalmente incorporados a esse novo movimento, j que o processo criativo

    ocorria diretamente em meio digital, em cdigos numricos e com a obra passvel de ser

    transportada a qualquer local. Um dos pioneiros da Computer Art, o brasileiro Waldemar

    Cordeiro, observava ser possvel, pela telecomunicao, uma conexo global,

    antecipando a proposta da arte em rede e as noes de ubiqidade e participao

    coletiva. Sinalizava a inadequao dos meios eletrnicos ao pensamento contemporneo.

    O foco desses trabalhos era, assim, investigar metodologias e estratgias mais

    satisfatrias.

    A questo da ubiqidade na arte est amplamente relacionada integrao entre

    arte e cincia, arte e tecnologia. A realizao de trabalhos voltados ao tema foram

    possveis apenas quando a idia e o conceito eram a prpria explorao tcnica, onde o

    intuito era, exatamente, levar reflexo e fruio de outras possibilidades sinestsicas

    atravs dos novos meios de comunicao. Nesse sentido, a imagem deixa de ser

    diretamente vinculada a um meio especfico para se tornar uma imagem que pode habitar

    qualquer meio.

  • 6

    Segundo Peter Weibel (1998), dois eventos facilitaram a nova definio de

    imagem. O primeiro foi o advento da fotografia, resultante do encontro entre imagem e

    meios tecnolgicos, o nascimento do visual em substituio imagem. No visual h

    novos contextos, materiais distintos e tcnicas que romperam com a noo de imagem

    absoluta e nica, priorizando a sensao visual. O segundo foi a separao entre

    mensagem e meio, com a inveno, inicialmente, do telgrafo. Com a tecnologia digital

    os meios esto em inter-relacionamento, e abre-se espao para a explorao de uma nova

    linguagem, de ps-imagem.

    A ubiqidade, como j referido, a possibilidade de estar presente em todas as

    partes, simultaneamente ou no. No meio digital esse carter se faz inteiramente possvel,

    pois o mundo imaterial dos cdigos a base da cultura telemtica atual. Toda obra

    digitalizada pode percorrer os canais da Web e habitar qualquer aparelho conectado.

    J no vivemos somente nas ruas e nas casas, mas tambm nos fios telefnicos, nos cabos e redes digitais. Estamos telepresentes num espao de ausncia. Aqui onde nos encontramos, estamos ausentes, e onde no estamos, somos onipresentes. A histria da arte desde o sculo XIX at a atualidade mais imediata proporciona uma srie de claros indcios da desapario do espao na experincia do tempo e da telepresena no espao virtual. (WEIBEL,1997, p.110)

    Peter Weibel refere-se a ns como usurios onipresentes. Mas a mesma reflexo

    aplica-se s imagens e processos visuais, produtos desse meio. No h mais qualquer

    localizao real para essas imagens, que podem ser compartilhadas infinitamente e, desse

    modo, apropriadas a outro uso.

    REPLICABILIDADE

    A replicabilidade a perda total da relao entre original e cpia. A imagem

    digital um processo contnuo de criao, no mais um objeto fixo e imutvel. Walter

    Benjamin, no ensaio A obra de arte na poca de sua reprodutividade tcnica, publicado em

    1936, apontava, j, para a quebra da noo de aura sobre o objeto nico, conseqncia da

    introduo da reproduo tcnica na arte. Ele denota processos de desmaterializao do objeto de

    arte, de serializao industrial e da ruptura estabelecida entre o domnio do artefato para o domnio das

    mediaes maqunicas (MELLO, 2007, p. 103). Benjamin referia-se aos meios de produo

    vindos com a evoluo industrial, e desde a imprensa de Gutenberg. As mediaes

    maqunicas permitiam a reproduo de uma imagem artstica, como da Monalisa de

  • 7

    DaVinci ou de uma fotografia. Com o advento das mdias eletrnicas a reproduo passa

    a ser mais que uma possibilidade tcnica, torna-se uma condio bsica da prpria

    produo. Machado aponta fatores de mudana, principalmente os referentes ao suporte,

    na arte eletrnica: o que se guarda em algum lugar no mais um original, mas uma matriz tcnica, um molde ou modelo (por exemplo: o negativo ou mster), de onde sairo as reprodues, estas sim e apenas elas destinadas fruio massiva (MACHADO, 1996, p. 17).

    Na tecnologia digital o termo reproduo perde o sentido, pois no h cpia no

    sentido literal da palavra. O que se reproduz a prpria frmula matemtica da imagem,

    texto ou som. Na cultura de massa havia a perda da qualidade entre a matriz e a cpia.

    Isso no acontece na digital, a no ser que ocorra uma mudana na estrutura original dos

    pixels, no formato ou codec, objetivando maior facilidade no compartilhamento. Segundo

    Mello (2007, p. 103): com a cultura digital h a ruptura da noo de original e matriz da obra de arte, na medida em que no meio digital tudo original e matriz, portanto, tudo cpia tambm.

    Uma vez disponvel em algum ambiente em rede, apoiado por um banco de

    dados, seja a Internet ou aparelhos celulares (agora com a tecnologia bluetooth), a imagem

    torna-se passvel de apropriao e replicabilidade por outro sujeito, no mais o que a

    disponibilizou e a difundiu. Essa questo, apesar da discusso relativa ao copyright

    (fundado em meios de produo ultrapassados), um dos principais fatores a fazer do

    sistema digital uma revoluo, em termos de produo artstica. Nesse contexto,

    reafirma-s: a imagem digital um processo contnuo de atualizaes, uma multicriao,

    de multisujeitos.

    A imagem digital converteu-se numa prxis operacional, em que o sujeito

    participa, transforma e vive uma situao de experimentao visual at ento indita.

    Segundo Alain Renaud (apud FABRIS, 1998, p. 02), uma passagem da contemplao

    ao: (...) a imagem informtica no mais o ponto de chegada visual de um corte ou de um enquadramento ptico que manifesta, por projeo na lei da Representao uma essncia objetiva atribuda por antecipao ao mundo revelada pelo Olhar de um Sujeito universal e soberano; uma srie de mediaes que a conduzem at forma final. Ele explica: (...) mas um acontecimento aleatrio, ponto de chegada de um processo, que remete ao jogo de toda uma srie de mediaes especficas que o traduzem e o conduzem at o estgio de `imagem' terminal.

  • 8

    Passamos da cultura de massas cibercultura, e uma das principais caractersticas

    deste momento exatamente a forma de perceber a informao como um bem coletivo,

    no mais uma verdade unilateral. Como aponta Lvy (1997, p. 102), no h identidade estvel na informtica, porque os computadores, longe de serem os exemplares materiais de uma imutvel idia platnica, so redes de interfaces abertas a novas conexes imprevisveis, que podem transformar radicalmente seu significado e uso.

    Estamos na cultura do sampler e do remix, o que no significa uma cultura de

    simples apropriao da produo de algum produto, mas uma cultura da participao,

    que se d pelo uso da circulao de obras: o remix a verdadeira natureza do digital (Gibson

    apud LEMOS, 2005, p. 03). A tcnica do remix e do sampler comeou a ser utilizada na

    msica pelos DJs de hip hop, que inseriam a sonoridade de msicas variadas em outro

    contexto (ao vivo), construindo uma nova identidade sonora. A tecnologia digital tornou

    possvel a convergncia das demais mdias, e o sampler e o remix tornaram-se aes

    freqentes dos usurios, no apenas na colagem e montagem dos materiais, mas tambm

    na reciclagem das mdias-fontes. Para Mello (2007, p. 105),

    possvel perceber nesse universo contemporneo de convergncia generalizada entre mdias que as linguagens maqunicas participam hoje dessa nova realidade como um tipo de experincia esttica capaz de reconfigurar cada vez mais as apropriaes ocorridas entre matriz e copia.

    Pela primeira vez na histria das mdias no dependemos dos meios de

    comunicao hegemnicos para obter, deter e repassar conhecimento, desenvolver

    produtos e, o mais importante, ter espao para difundir produes prprias. Qualquer

    um pode ser criador e tornar pblico um trabalho. De acordo com Lemos:

    A nova dinmica tcnico-social da cibercultura instaura assim, no uma novidade, mas uma radicalidade: uma estrutura miditica mpar na histria da humanidade onde, pela primeira vez, qualquer indivduo pode, a priori, emitir e receber informao em tempo real, sob diversos formatos e modulaes, para qualquer lugar do planeta e alterar, adicionar e colaborar com pedaos de informao criados por outros. Tudo comunica e tudo est em rede: pessoas, mquinas, objetos, monumentos, cidades. (LEMOS, 2005, p. 02)

  • 9

    H espaos prprios para a troca de conhecimento e construo de saber

    coletivo, onde o principal intuito compartilhar livremente os trabalhos, estimulando a

    recriao. So exemplos o Creative Commons1 o Overmundo2. e o Wikipedia3.

    A replicabilidade de obras sem dvidas um dos fatores mais caractersticos da

    cultura digital. Importa, portanto, considerar esse movimento como manifestaes

    artsticas atuais, prprias da convergncia miditica. Para Manovich (2001) o remix a

    melhor metfora para entendermos as novas mdias, ou seja, a replicabilidade no

    apenas uma possibilidade tcnica dos meios digitais, o prprio pensamento e ao

    digitais.

    OBRAS

    Para podermos visualizar melhor esses trs estgios da imagem digital em

    movimento, foi escolhido trs obras artsticas contemporneas, que utilizam meios

    digitais no processo criativo. Cada um desses trabalhos permite observar os trs

    processos da imagem digital em movimento, em diferentes intensidades, no decorrer de

    determinados estgios das obras.

    Muitas obras evidenciam processos de hibridao diversos, e esse o caso de Stop

    Motion Studies4 (2003), de David Crawford.. Um deles o processo de captura das

    imagens atravs de uma cmera de vdeo, depois digitalizadas e dividas em frames, como

    numa animao. Atravs do algoritmo randmico, a narrativa perde a seqencialidade e

    os frames so redistribudos de forma a dar novas impresses de movimento e esttica.

    Essa obra serve como bom exemplo das novas possibilidades surgidas em imagens

    digitalizadas. Inicialmente existe a relao fsica, j que, no vdeo, o registro das imagens

    eletromecnico, com uma fita magntica como suporte. Passou pelo processo de

    digitalizao e, com a programao recebida, ganhou uma esttica particular.

    Stop Motion Studies, na verdade, desconstri o movimento e frisa os instantes, at

    que, randomicamente juntos, permitem perceber uma dinmica particular das imagens,

    que, sem ser fiel ao observado, est mais prxima do que sentimos. Isso ocorre tambm

    por utilizar o metr como cenrio, o meio de transporte mais simblico das grandes

    cidades. A narrativa dada por Crawford sugere um movimento descontnuo e, ao mesmo

    1 http://creativecommons.org/ 2 www.overmundo.com.br/ 3 www.wikipedia.org/ 4 www.stopmotionstudies.net

  • 10

    tempo, infinito, aproximando-se muito da sensao de estar dentro de um metr, espao

    que permite relacionar as dinmicas sociais e o comportamento dos indivduos, cada vez

    mais mediados pela tecnologia digital. O carter randmico da obra deixa aos

    participantes online a sensao de vivenciarem um instante infinito.

    possvel identificar, nessa obra, os trs processos da imagem digital: a

    desmaterializao, quando a imagem capturada pela cmera de vdeo digitalizada,

    perdendo sua relao inicial com o objeto; a ubiqidade, pois, alm de ser uma obra online

    e, portanto, potencialmente presente em toda e qualquer parte, em qualquer tempo e

    simultaneamente, a mesma caracterstica faz parte, metaforicamente, da temtica da obra,

    que permite ao usurio estar presente nos metrs de vrias cidades do mundo; e a

    replicabilidade, a perda da relao entre o original e a cpia, o que era o original, ao

    passar pela montagem algortmica desconstrudo, e a cpia, ou melhor, as cpias e

    multiplicaes dessas imagens fazem a reconstruo. Na verdade, a essncia da obra

    essa: as cpias originam a obra, tornam-se seu original.

    Outra obra Soft Cinema (2005) de Lev Manovich e Andreas Kratky. Para Lev

    Manovich5, a mquina do sculo XX foi o cinema, nascido da interseco de duas

    tecnologias da era industrial: a engenharia, que permitiu capturar o movimento, e a

    eletricidade, que torno possvel sua projeo. O projetor de filme reproduzia imagens do

    mesmo tamanho e movia-se na mesma velocidade, o que expressa adequadamente a

    filosofia e o pensamento do perodo industrial (MANOVICH, 2005, p. 02).

    Que tipo de cinema pode-se esperar na era da informtica? Como representar a

    experincia subjetiva de uma pessoa que vive numa sociedade informtica global? Qual o

    cinema apropriado era Google? Buscando respostas a essas perguntas, Lev Manovich e

    Andreas Kratky comearam a pensar no Soft Cinema6. Por trs anos desenvolveram o

    software (o prprio Soft Cinema), capturando imagens e criando a arte e o design para

    conceber a proposta de um novo cinema.

    De maneira geral o sistema baseia-se num banco de dados de clips de imagens

    diversas, catalogadas por parmetros determinados no software. Atravs de um processo

    randmico, o software vai relacionando esses parmetros, formando um vdeo. Na tela,

    algumas janelas, uma principal e outras menores, exibem os clips relacionados pelo

    5 www.manovich.com 6 www.softcinema.net

  • 11

    software. Alm dos clips de imagens capturadas, o banco de dados mostram ainda

    imagens grficas, textos e msicas, que seguem o mesmo padro de relao.

    Em Soft Cinema torna-se evidente um nvel extremo de replicabilidade. A

    programao do software foi toda baseada na lgica do remix e do sampler. Mesmo com

    imagens exclusivas, o processo que ocorre durante a atualizao do sistema, criando a

    seqncia das cenas, um remix automtico, um remix programado para ocorrer, porm

    com combinaes seqenciais aleatrias e randmicas. Soft Cinema no somente uma

    obra interessada em explorar as potencialidades da tecnologia digital. Busca tambm

    construir outras estruturas de produo e concepo possibilitadas pelo computador e,

    desse modo, propor uma linguagem miditica nova, que represente integralmente o

    pensamento atual.

    Por fim, as obras em performances ao vivo, as live images, de Luiz Duva. O

    processo criativo das live images foi inspirado nos DJs de msica, mas tem as imagens

    como foco principal. A tecnologia digital, responsvel por esse avano, permite que a

    edio e a projeo do material realizado sejam feitas em tempo real. Para que a

    performance ocorra, so necessrios um espao com um telo para a projeo, um

    projetor ligado a um computador com software prprio para criao ao vivo e, no

    comando, um artista com um banco de imagens pr-selecionadas para determinar um

    seqncia nica nesse ambiente.

    Alguns grupos, no Brasil, so reconhecidos por trabalhos muito expressivos. Luiz

    Duva7, um dos precursores, desenvolveu uma tcnica bastante particular. J era um

    artista do audiovisual, mas foi, segundo ele, motivado a trabalhar com live images pela

    possibilidade de desconstruir a narrativa linear das imagens, recriando-as em situaes

    imprevisveis. Podia oferecer, assim, novas possibilidades novas relao imagem-

    movimento, com a manipulao em tempo real.

    Sua criao Concerto para Laptop8 (2007), prope um ensaio potico que parte da

    livre interpretao de diferentes paisagens emocionais, extradas da memria de pessoas

    annimas. A rearticulao, ao vivo, permite uma anlise das complexas relaes entre o

    passado, o presente e a realidade em andamento. Para tanto, Duva compe imagens

    sobrepostas que misturam um homem, uma montanha e terra por todo lado. A dinmica

    dessas imagens nica: o que se v no so simples imagens em movimento, uma

    proposta esttica totalmente inovadora, fazendo as imagens parecerem 3D sem que

    7 www.liveimages.com.br 8 www.coisaminha.com.br

  • 12

    tenham sido programadas. Usa somente as tcnicas de sopre-posio e da narrativa dos

    frames no lineares. O movimento das imagens assemelha-se muito mais ao dos nossos

    pensamentos e sonhos do que ao do sensorialmente visto.

    As imagens ao vivo so a prpria representao do pensamento digital. Percorrem

    intensamente os processos da desmaterializao, ubiqidade e replicabilidade. Com foco

    maior na replicabilidade, as obras de Duva so totalmente remix e sampler delas mesmas, j

    que o produto final s conhecido durante a performance ao vivo, e cada resultado nico.

    CONCLUSO Partindo da imagem digital em movimento o presente trabalho props uma reflexo a

    cerca das criaes artsticas atuais, que exploram as novas possibilidades estticas

    oferecidas por ferramentas e dispositivos tecnolgicos contemporneos. Para tanto, foi

    sugerida uma diviso de estgios ao qual a imagem digital pode percorrer para atingir tais

    tratamentos estticos. Essa diviso pode ser (re)aplicada a outras situaes tratando-se do

    comportamento na era digital. importante frisar que os trabalhos aqui citados no so

    somente experimentos de linguagem mas sim obras de arte inspiradas em questes do

    mundo atual, onde o espao e o tempo so representados e mediados constantemente

    por aparelhos conectados. Isso promove uma postura social particular onde expresses

    como compartilhamento, interatividade e participao so muito freqentes. E isso com

    certeza est trazendo sociedade, assim como na classe artstica, uma nova forma de se

    relacionar com o mundo, que agora, pode ser visualizado e penetrado por pequenos

    toques.

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