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ilustrada EF SEGUNDA-FEIRA, 8 DE MARÇO DE 2010 E1 CINEMA ‘PRECIOSA’ LEVA CINCO ESTATUETAS NO INDEPENDENTE SPIRIT AWARDS Pág. E4 PONDÉ POLITIZAÇÃO DA SEXUALIDADE PREJUDICA VIDA CONTEMPORÂNEA Pág. E12 Tel.: 0/xx/11/3224-7842 Fax: 0/xx/11/3224-2284 E-mail: [email protected] Serviço de atendimento ao assinante: 0800-775-8080 Grande São Paulo 0/xx/11/3224-3090 Ombudsman: [email protected] Gilberto Tadday/Folha Imagem Felipe Lara, 31, posa para foto no bairro de Tribeca, em Nova York Ex-guitarrista de rock, compositor erudito brasileiro radicado em Nova York Felipe Lara ganha inédita projeção internacional, com apenas 31 anos ................................................................................................ IRINEU FRANCO PERPETUO COLABORAÇÃO PARA A FOLHA No próximo sábado, dia 13, no Festival Ars Música, em An- tuérpia, na Bélgica, o Quarteto Arditti toca “Tran(slate)”, do compositor brasileiro radicado em Nova York Felipe Lara. Fundado pelo violinista bri- tânico Irvine Arditti em 1974 e atração da edição de 2010 do Festival Internacional de In- verno de Campos do Jordão, o grupo já gravou nada menos que 160 CDs e é tido como o mais destacado quarteto de cordas do planeta no quesito interpretação de música contemporânea. Ser tocado pelo Quarteto Arditti é uma honra para qual- quer compositor. No caso do jo- vem sorocabano de 31 anos, contudo, está se tornando uma rotina. “Conheci o quarteto em 2005, quando ajudei a organi- zar um concerto com música nova dos doutorandos em com- posição da NYU (Universidade de Nova York)”, conta Lara. Foi para este evento que ele escreveu seu primeiro quarteto de cordas —“Corde Vocale”, que o grupo apresentou em São Paulo, em 2007, quando parti- cipou do Festival Música Nova. Não parou por aí. Em 2008, Lara embolsou os K 3.000 do Staubach Preis no 44º Curso de Férias de Música Nova de Darmstadt —o evento que transformou a cidade germâni- ca, no pós-Guerra, na meca das vanguardas da música contem- porânea por disseminar as es- téticas de compositores como Pierre Boulez, 84, e Karlheinz Stockhausen (1928-2007). Pois bem: a obra com que La- ra venceu o prêmio foi justa- mente “Tran(slate)”, que mis- tura a execução do quarteto de cordas com recursos eletrôni- cos em tempo real. “Em ‘Tran(slate)’, utilizo gravações de samples da minha voz e de três harmônicos com- plexos do violão como material harmônico”, explica. A obra também tem, contudo, uma versão puramente instrumen- tal, sem recursos eletrônicos. É nesse formato que “Tran(slate)” será tocado em Antuérpia pelo Quarteto Ardi- tti. E é nele, ainda, que acaba de ser apresentado em Nova York, pelo Jack Quartet. O tom da crítica assinada por Anthony Tommasini no “The New York Times”, na última quinta-feira, dia 4, é altamente elogioso. Tommasini chama a obra de “brilhantemente realizada”, e descreve como todas as sonori- dades específicas da música eletrônica “são evocadas pelos músicos em uma obra tecnica- mente formidável e ampla- mente variada, que evolui em seções crepitantes. A perfor- mance foi um ‘tour de force’ de intensidade e cor”. Neste ano, Lara tem ainda duas encomendas internacio- nais: o Ensemble Recherche, da Alemanha, pediu-lhe um “Liebeslied” (“Canção de Amor”), uma peça puramente instrumental para incluir na turnê em que comemora 25 anos de atividade. Também em terras germâni- cas, o Donaueschingen Musik- tage, o mais antigo festival de música contemporânea do pla- neta, realizado desde 1921 no sudoeste da Alemanha, estreia uma obra do compositor em outubro com a Netherlands Chamber Radio Philharmonic, de Amsterdã, sob a batuta do regente e compositor húngaro Peter Eötvös, 66. Nascido em Sorocaba, em 1979, e criado em São Paulo, Lara era, na adolescência, um guitarrista de rock que se apai- xonou por jazz e MPB. Em 1999, ganhou uma bolsa para estudar seu instrumento e ar- ranjo na Berklee College of Music, em Boston (EUA). “Até então, eu conhecia pou- quíssima música clássica, e quase nada escrito depois da ‘Sagração da Primavera’”, afir- ma, citando o célebre bailado do compositor russo Igor Stra- vinski (1882-1971), estreado em Paris, em 1813. A virada foi um concerto da Sinfônica de Boston, regida por Seiji Ozawa, tocando a “Sinfo- nia Turangalîla” (1948), do francês Olivier Messiaen (1908-1992). A partir dali, Lara resolveu virar compositor. Seu site (www.felipelara.com) lista 32 obras de sua autoria. Hoje, ele é doutorando em música na Universidade de No- va York, onde pesquisa a obra do francês Tristan Murail, 63, seu professor, e um dos princi- pais nomes da corrente van- guardista conhecida como es- pectralismo. CREDF,1.,6, .................................................................. o vanguardista Comentário Complexas e “difíceis”, composições não são para ficarem engavetadas ................................................................................................ SIDNEY MOLINA CRÍTICO DA FOLHA C C omo seria se a busca de “unidade na diversida- de” (que é a assinatura de um autor como Mozart) se unisse com o trabalho de varia- ção contínua sobre um “míni- mo denominador” (que define a personalidade poética de Bee- thoven)? Uma resposta pode ser “Tutti”, de Felipe Lara, es- crita para uma formação came- rística análoga à de “Pierrot Lu- naire” de Schoenberg (1874- 1951), e disponível em excelen- te gravação no CD “Música Plu- ral” (2009), interpretada pelo Percorso Ensemble dirigido por Ricardo Bologna. Escrita em apenas um mês quando o compositor contava 25 anos (ele acaba de completar 31), não é, entretanto, música tradicional: “Tutti” é obra “difí- cil”, conectada com os experi- mentalismos das vanguardas da segunda metade do século 20. Nela todos os músicos to- cam o tempo todo (não há so- los), o que permite escutar o grupo de câmara como se fosse um único instrumento comple- xo: esse som, “sintetizado arte- sanalmente”, flui e reflui até es- tancar em momentos de satu- ração e colapso —ou mesmo em “pausas para reflexão”, como ocorre perto do final. Ao mesmo tempo, cada linha de cada instrumento é também um todo em si, construído mi- nuciosamente de modo ora a preservar, ora a subverter ca- racterísticas idiomáticas. A so- lução de confrontar a estatici- dade dos harmônicos naturais (a série harmônica) com quatro séries dodecafônicas, a capaci- dade de graduar e recusar a li- nearidade rítmica e o controle da tensão formal entre desen- volvimento retórico e justapo- sições súbitas são algumas das categorias brilhantemente tra- balhadas na peça. Mais do que um “hegelianis- mo delirante”, as antinomias de Lara parecem compor uma teia que abarca lógica formal e dialética, como se saíssem da “filosofia concreta” de Mário Ferreira dos Santos (1907-68). “Tran(slate)” (2008), por ou- tro lado — a obra que será apre- sentada pelo Quarteto Arditti no Festival Ars Musica da Bél- gica—, dramatiza “kantiana- mente” a inquietação diante da impossibilidade de acessar “coisas em si”. Tal como em “Corde Vocale” (2006), o pri- meiro quarteto de cordas, tam- bém estreado e gravado pelo Arditti (o registro está no CD “Quatro Visões Contemporâ- neas na Música Paulista”, de 2008), processos radicais de “tradução” acabam por se tor- nar uma imagem do próprio ato de compor. Em entrevista à Ilustrada,o diretor turco Semih Kaplano- glu (vencedor do Urso de Ouro no Festival de Cinema de Ber- lim deste ano) definiu seus fil- mes como “difíceis”. Isso não impede, entretanto, que sejam realizados, apresentados, pre- miados e debatidos. Felipe La- ra não escreve música para fi- car engavetada: sem abrir mão das cicatrizes do espírito, sua musicalidade complexa atrai intérpretes e provoca a escuta. BARÍTONO BRASILEIRO ESTREIA EM NY O barítono brasileiro Paulo Szot estreou na sexta no Metropolitan de Nova York. Szot in- terpretou o protagonista da ópera “O Nariz”, de Chostakóvitch, baseada em conto homônimo de Gogol, sob regência de Valery Gergiev. Neste ano, ele ainda canta em uma monta- gem de “Carmen”, de Bizet, em Valência, com o maestro Zubin Mehta. Em novembro, em Nova York, começa os ensaios de um musical baseado no filme “Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos”, do espanhol Pedro Almodóvar.

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    SEGUNDA-FEIRA, 8 DE MARÇO DE 2010 ★ E1

    CINEMA‘PRECIOSA’ LEVACINCO ESTATUETASNO INDEPENDENTESPIRIT AWARDSPág. E4

    PONDÉPOLITIZAÇÃO DASEXUALIDADEPREJUDICA VIDACONTEMPORÂNEAPág. E12

    Tel.: 0/xx/11/3224-7842 Fax: 0/xx/11/3224-2284E-mail: [email protected]

    Serviço de atendimento ao assinante: 0800-775-8080Grande São Paulo 0/xx/11/3224-3090

    Ombudsman: [email protected]

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    Felipe Lara, 31,posa para foto no bairrode Tribeca, em Nova York

    Ex-guitarrista derock, compositorerudito brasileiroradicado em NovaYork Felipe Laraganha inéditaprojeçãointernacional,com apenas31 anos................................................................................................IRINEU FRANCO PERPETUOCOLABORAÇÃO PARA A FOLHA

    No próximo sábado, dia 13,no Festival Ars Música, em An-tuérpia, na Bélgica, o QuartetoArditti toca “Tran(slate)”, docompositor brasileiro radicadoem Nova York Felipe Lara.

    Fundado pelo violinista bri-tânico Irvine Arditti em 1974 eatração da edição de 2010 doFestival Internacional de In-verno de Campos do Jordão, ogrupo já gravou nada menosque 160 CDs e é tido como omais destacado quarteto decordas do planeta no quesitoi nterpre tação d e músicacontemporânea.

    Ser tocado pelo QuartetoArditti é uma honra para qual-quer compositor. No caso do jo-vem sorocabano de 31 anos,contudo, está se tornando umarotina. “Conheci o quarteto em2005, quando ajudei a organi-zar um concerto com músicanova dos doutorandos em com-posição da NYU (Universidadede Nova York)”, conta Lara.

    Foi para este evento que eleescreveu seu primeiro quartetode cordas —“Corde Vocale”,que o grupo apresentou em SãoPaulo, em 2007, quando parti-cipou do Festival Música Nova.

    Não parou por aí. Em 2008,Lara embolsou os K 3.000 doStaubach Preis no 44º Curso deFérias de Música Nova deDarmstadt —o evento quetransformou a cidade germâni-ca, no pós-Guerra, na meca dasvanguardas da música contem-porânea por disseminar as es-téticas de compositores comoPierre Boulez, 84, e KarlheinzStockhausen (1928-2007).

    Pois bem: a obra com que La-ra venceu o prêmio foi justa-mente “Tran(slate)”, que mis-tura a execução do quarteto decordas com recursos eletrôni-cos em tempo real.

    “Em ‘Tran(slate)’, utilizogravações de samples da minhavoz e de três harmônicos com-plexos do violão como materialharmônico”, explica. A obratambém tem, contudo, umaversão puramente instrumen-tal, sem recursos eletrônicos.

    É n e s s e f o r m a t o q u e“Tran(slate)” será tocado emAntuérpia pelo Quarteto Ardi-tti. E é nele, ainda, que acaba deser apresentado em Nova York,pelo Jack Quartet. O tom dacrítica assinada por AnthonyTommasini no “The New YorkTimes”, na última quinta-feira,dia 4, é altamente elogioso.

    Tommasini chama a obra de“brilhantemente realizada”, edescreve como todas as sonori-dades específicas da músicaeletrônica “são evocadas pelosmúsicos em uma obra tecnica-mente formidável e ampla-mente variada, que evolui emseções crepitantes. A perfor-mance foi um ‘tour de force’ deintensidade e cor”.

    Neste ano, Lara tem aindaduas encomendas internacio-nais: o Ensemble Recherche,da Alemanha, pediu-lhe um“Liebeslied” (“Canção deAmor”), uma peça puramente

    instrumental para incluir naturnê em que comemora 25anos de atividade.

    Também em terras germâni-cas, o Donaueschingen Musik-tage, o mais antigo festival demúsica contemporânea do pla-neta, realizado desde 1921 nosudoeste da Alemanha, estreia

    uma obra do compositor emoutubro com a NetherlandsChamber Radio Philharmonic,de Amsterdã, sob a batuta doregente e compositor húngaroPeter Eötvös, 66.

    Nascido em Sorocaba, em1979, e criado em São Paulo,Lara era, na adolescência, umguitarrista de rock que se apai-xonou por jazz e MPB. Em1999, ganhou uma bolsa paraestudar seu instrumento e ar-ranjo na Berklee College ofMusic, em Boston (EUA).

    “Até então, eu conhecia pou-quíssima música clássica, equase nada escrito depois da‘Sagração da Primavera’”, afir-ma, citando o célebre bailadodo compositor russo Igor Stra-vinski (1882-1971), estreado emParis, em 1813.

    A virada foi um concerto daSinfônica de Boston, regida porSeiji Ozawa, tocando a “Sinfo-nia Turangalîla” (1948), dofrancês Olivier Messiaen(1908-1992). A partir dali, Lararesolveu virar compositor. Seusite (www.felipelara.com)lista 32 obras de sua autoria.

    Hoje, ele é doutorando emmúsica na Universidade de No-va York, onde pesquisa a obrado francês Tristan Murail, 63,seu professor, e um dos princi-pais nomes da corrente van-guardista conhecida como es-pectralismo.

    CREDF,1.,6, ..................................................................

    ovanguardistaComentário

    Complexas e “difíceis”, composiçõesnão são para ficarem engavetadas................................................................................................SIDNEY MOLINACRÍTICO DA FOLHA

    CCC omo seria se a busca de“unidade na diversida-de” (que é a assinaturade um autor como Mozart) seunisse com o trabalho de varia-ção contínua sobre um “míni-mo denominador” (que definea personalidade poética de Bee-thoven)? Uma resposta podeser “Tutti”, de Felipe Lara, es-crita para uma formação came-rística análoga à de “Pierrot Lu-naire” de Schoenberg (1874-1951), e disponível em excelen-te gravação no CD “Música Plu-ral” (2009), interpretada peloPercorso Ensemble dirigidopor Ricardo Bologna.

    Escrita em apenas um mêsquando o compositor contava25 anos (ele acaba de completar31), não é, entretanto, músicatradicional: “Tutti” é obra “difí-cil”, conectada com os experi-mentalismos das vanguardasda segunda metade do século20. Nela todos os músicos to-cam o tempo todo (não há so-los), o que permite escutar o

    grupo de câmara como se fosseum único instrumento comple-xo: esse som, “sintetizado arte-sanalmente”, flui e reflui até es-tancar em momentos de satu-ração e colapso —ou mesmo em“pausas para reflexão”, comoocorre perto do final.

    Ao mesmo tempo, cada linhade cada instrumento é tambémum todo em si, construído mi-nuciosamente de modo ora apreservar, ora a subverter ca-racterísticas idiomáticas. A so-lução de confrontar a estatici-dade dos harmônicos naturais(a série harmônica) com quatroséries dodecafônicas, a capaci-dade de graduar e recusar a li-nearidade rítmica e o controleda tensão formal entre desen-volvimento retórico e justapo-sições súbitas são algumas dascategorias brilhantemente tra-balhadas na peça.

    Mais do que um “hegelianis-mo delirante”, as antinomiasde Lara parecem compor umateia que abarca lógica formal edialética, como se saíssem da“filosofia concreta” de MárioFerreira dos Santos (1907-68).

    “Tran(slate)” (2008), por ou-tro lado — a obra que será apre-sentada pelo Quarteto Ardittino Festival Ars Musica da Bél-gica—, dramatiza “kantiana-mente” a inquietação diante daimpossibilidade de acessar“coisas em si”. Tal como em“Corde Vocale” (2006), o pri-meiro quarteto de cordas, tam-bém estreado e gravado peloArditti (o registro está no CD“Quatro Visões Contemporâ-neas na Música Paulista”, de2008), processos radicais de“tradução” acabam por se tor-nar uma imagem do próprio atode compor.

    Em entrevista à Ilustrada, odiretor turco Semih Kaplano-glu (vencedor do Urso de Ourono Festival de Cinema de Ber-lim deste ano) definiu seus fil-mes como “difíceis”. Isso nãoimpede, entretanto, que sejamrealizados, apresentados, pre-miados e debatidos. Felipe La-ra não escreve música para fi-car engavetada: sem abrir mãodas cicatrizes do espírito, suamusicalidade complexa atraiintérpretes e provoca a escuta.

    BARÍTONOBRASILEIROESTREIA EM NY

    O barítono brasileiroPaulo Szot estreou nasexta no Metropolitande Nova York. Szot in-terpretou o protagonistada ópera “O Nariz”, deChostakóvitch, baseadaem conto homônimo deGogol, sob regência deValery Gergiev.

    Neste ano, ele aindacanta em uma monta-gem de “Carmen”, deBizet, em Valência, como maestro Zubin Mehta.Em novembro, em NovaYork, começa os ensaiosde um musical baseadono filme “Mulheres àBeira de um Ataque deNervos”, do espanholPedro Almodóvar.