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231 II – Segunda Parte Habitação permanente 1. A ocupação histórica e conjunta na porção norte da Ilha do Bananal O lado Javaé A área do Parque Nacional do Araguaia que os Javaé e Karajá reivindicam que seja reconhecida oficialmente como Terra Indígena Utaria Wyhyna (Karajá) / Iròdu Iràna (Javaé) situa-se na porção norte da Ilha do Bananal, em pleno território de ocupação tradicional dos Karajá e Javaé, mas atualmente não há nenhuma aldeia na área devido a uma série de razões históricas. No entanto, os Javaé, principalmente os da aldeia Boto Velho, e os Karajá setentrionais ainda mantêm ligação histórica, econômica, sócio-cultural e afetiva com a área, onde existiram várias aldeias dos Karajá e dos Javaé até a metade do século passado (ver carta topográfica no início deste relatório). Além disso, o baixo curso do Rio Javaés e do Riozinho, ou seja, a parte mais setentrional dos dois rios, na porção norte da Ilha do Bananal, era antigamente uma região habitada em conjunto pelos Karajá e Javaé, como já foi mencionado por Toral (1992, 1999). Para efeito de melhor compreensão, vou considerar como baixo curso ou porção norte do Rio Javaés, aproximadamente, o trecho do rio ao norte da atual aldeia Boto Velho (próxima da foz do Rio Formoso do Araguaia). Isso não impede de considerar como aldeias Javaé setentrionais algumas antigas aldeias um pouco ao sul da aldeia Boto Velho. E vou considerar como porção norte da Ilha do Bananal a área interiorana ao norte das atuais aldeias Boto Velho (dos Javaé) e Macaúba (dos Karajá).

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II – Segunda Parte

Habitação permanente

1. A ocupação histórica e conjunta na porção norte da Ilha do Bananal

– O lado Javaé

A área do Parque Nacional do Araguaia que os Javaé e Karajá reivindicam que seja

reconhecida oficialmente como Terra Indígena Utaria Wyhyna (Karajá) / Iròdu Iràna

(Javaé) situa-se na porção norte da Ilha do Bananal, em pleno território de ocupação

tradicional dos Karajá e Javaé, mas atualmente não há nenhuma aldeia na área devido a

uma série de razões históricas. No entanto, os Javaé, principalmente os da aldeia Boto

Velho, e os Karajá setentrionais ainda mantêm ligação histórica, econômica, sócio-cultural

e afetiva com a área, onde existiram várias aldeias dos Karajá e dos Javaé até a metade do

século passado (ver carta topográfica no início deste relatório). Além disso, o baixo curso

do Rio Javaés e do Riozinho, ou seja, a parte mais setentrional dos dois rios, na porção

norte da Ilha do Bananal, era antigamente uma região habitada em conjunto pelos Karajá e

Javaé, como já foi mencionado por Toral (1992, 1999).

Para efeito de melhor compreensão, vou considerar como baixo curso ou porção

norte do Rio Javaés, aproximadamente, o trecho do rio ao norte da atual aldeia Boto Velho

(próxima da foz do Rio Formoso do Araguaia). Isso não impede de considerar como aldeias

Javaé setentrionais algumas antigas aldeias um pouco ao sul da aldeia Boto Velho. E vou

considerar como porção norte da Ilha do Bananal a área interiorana ao norte das atuais

aldeias Boto Velho (dos Javaé) e Macaúba (dos Karajá).

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De acordo com a tradição oral dos dois grupos, expressa formalmente pela

mitologia, em tempos remotos os Karajá moraram originalmente no baixo curso do Rio

Javaés, de onde saíram para ocupar definitivamente as margens do médio Araguaia depois

de vencer a guerra contra o povo Wèrè. Posteriormente, mas em um tempo anterior à

colonização do Brasil Central pela sociedade nacional, os Javaé e os Karajá passaram a

habitar os respectivos territórios tradicionais e também a viver em aldeias mistas na região

setentrional da Ilha do Bananal. No entanto, sempre houve um reconhecimento pacífico por

parte dos dois grupos de que as terras a leste do Riozinho (Wabe) – o grande rio que corta a

Ilha do Bananal ao meio, em seu sentido longitudinal – eram tradicionalmente território

Javaé, enquanto as terras situadas a oeste do Riozinho eram território Karajá. Por essa

razão, a terra indígena em questão divide-se entre o lado Karajá, chamado de Utaria

Wyhyna, e o lado Javaé, chamado de Iròdu Iràna.

É um tanto óbvio, porém necessário, dizer que os antigos moradores das aldeias

Javaé e Karajá utilizavam-se permanentemente, seja para a agricultura, a pesca, a caça, a

coleta ou as práticas funerárias, das áreas que se estendiam para além das duas margens do

rio onde estavam instaladas suas aldeias. A localização das aldeias permanentes em

determinado sítio decorria unicamente do fato de existirem poucos lugares completamente

imunes à inundação no vale do Araguaia, mas as amplas áreas inundáveis a leste e a oeste

das margens do respectivo rio continuavam a ser usadas para a reprodução física e cultural

dos dois grupos. Na maioria dos casos, os nomes de aldeias referem-se aos sítios

permanentes de inverno, mas na estação seca os grupos familiares mudavam-se para praias

relativamente próximas, que poderiam estar situadas na mesma ou na outra margem do rio

e cujas aldeias provisórias tendiam a ser conhecidas pelo mesmo nome. As aldeias de verão

de uma determinada área costumavam ter uma ligação com uma aldeia de inverno

específica, pois eram como partes inter-relacionadas de uma mesma micro-região.

Considerando-se a extensão do território de uso dos moradores de uma aldeia, no

que se refere às margens dos rios, e o tradicional padrão territorial de alternância de aldeias,

conforme a estação do ano, a identificação da Terra Indígena Utaria Wyhyna (Karajá) /

Iròdu Iràna (Javaé) pressupõe também o histórico das aldeias situadas em sua vizinhança,

tanto no caso do lado Javaé quanto do lado Karajá, uma vez que as duas margens dos rios

Araguaia e Javaés eram habitadas e utilizadas indistintamente pelos moradores das aldeias

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setentrionais. Em outras palavras, o histórico da ocupação da porção norte da Ilha do

Bananal inclui as antigas aldeias Karajá setentrionais das margens direita e esquerda do Rio

Araguaia, assim como as aldeias Javaé setentrionais das margens direita e esquerda do Rio

Javaés.

Segundo lembram os Javaé, na área havia grandes e famosas aldeias que

funcionavam como pontos de encontro, para variados fins, entre os Karajá, os Xambioá e

os Javaé. A “foz do Rio Javaés” (Bero Biawa ijò, “boca do Rio Companheiro”) era um

lugar estratégico que permitia o encontro das três etnias no baixo Javaés ou dentro da Ilha

do Bananal (ver mapas n° 3, n° 4 e n° 5). Para os Karajá setentrionais e Xambioá,

acostumados a navegar pelo médio e baixo Araguaia, respectivamente, a entrada pela foz

do Rio Javaés era o meio de mais fácil acesso – via fluvial – tanto para o Rio Javaés, centro

do território Javaé e rico em recursos naturais, quanto para o interior da Ilha do Bananal.

Praticamente todo o interior da ilha pode ser atingido facilmente, especialmente na época

das enchentes, entrando-se pela foz do Riozinho, que deságua no baixo Javaés, na altura da

ponta norte da ilha. Não por acaso, Hãwarahedà, uma das principais aldeias Karajá de

origem mítico-histórica, situava-se nas proximidades da confluência do Rio Javaés com o

Araguaia.

O lugar mais importante onde os Karajá, Javaé e Xambioá se encontravam era a

aldeia Iròdu Iràna, que dá nome ao lado Javaé da terra indígena e cuja origem remonta ao

conhecido episódio em que Tanỹxiwè toma o fogo dos animais, como já foi dito (ver fotos

n° 41 e n° 42). A conquista mítica ocorreu exatamente no lugar que passou a se chamar

Iròdu Iràna (“o lugar onde os animais gritaram”, atônitos com a perda) desde então,

localizado no limite sudeste da área. A aldeia situava-se fora da Ilha do Bananal, ao lado da

foz do Riozinho do Ezequiel (Ijòrina), importante afluente da margem direita do baixo

curso do Rio Javaés. Devido à sua localização espacial, a aldeia Iròdu Iràna era

considerada como uma espécie de “meio” ou “centro” do território maior ocupado pelas

três etnias no vale do Araguaia.

Iròdu Iràna era uma aldeia muito grande e era também um dos tradicionais sítios de

inverno permanentes, que nunca era abandonado pelos moradores. Era comum, entretanto,

que em expedições de pesca mais distantes pelos rios do vale do Araguaia, as pessoas

ficassem dois ou até três anos longe da aldeia, para então retornar. No sítio da antiga aldeia

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existe ainda uma elevação de terra que era usada pelas hirari (classe idade das meninas pré-

adolescentes) e ijadoma (classe de idade das moças que já passaram pela menarca, mas

ainda não se casaram) para brincar confeccionando objetos de barro. Nesse lugar, as

meninas e moças faziam panelas (watxiwi) e bonecas e barro.

Em Iròdu Iràna também se encontra até hoje a pedra que era utilizada para fabricar

o hijè, um adorno labial. Durante o Hetohokỹ Javaé, o ritual de iniciação masculina, os

jovens passavam pelo ritual de furação do “lábio inferior” (hijèrawo) com o osso do

macaco guariba (asỹ), presenciado por Souza Filho (1987c) e Lima Filho (1994) entre os

Karajá, onde seria introduzido o botoque labial cilíndrico chamado hijè. A cada diferente

classe de idade correspondia uma forma diferente do adorno labial, sinalizando a mudança

de status:

O weryry (criança não iniciada) usava o hijè, um pequeno botoque labial cilíndrico

de pedra, da espessura do lábio.

Quando o menino era iniciado, tornando-se um jyrè, ele colocava o koluò, um

botoque de madeira bem fina, enrolado em forma de espiral abaixo do lábio.

Na classe de idade rahetodu, depois da iniciação, o koluò adquiria um formato reto

e com a ponta virada para dentro (abaixo do queixo).

O weryrybò, rapaz ainda não casado, usava um koluò mais comprido e totalmente

reto. Ele também usava o cabelo comprido e amarrado atrás pelo kòtuè, um adorno

de algodão.

Quando o homem casava e tinha filhos, alcançando a classe de idade ijoityhy, o

koluò, também reto e comprido, atingia o seu tamanho máximo, na altura do

umbigo. Conforme os anos avançavam, o koluò começava a diminuir de tamanho.

Os velhos (matukari) voltavam a usar o hijè, botoque pequeno e discreto de pedra,

da espessura do lábio.

No início do século 20, o adorno labial era feito também com uma concha

encontrada nos rios em razão da dificuldade de se trabalhar manualmente com a pedra.

Alguns dos homens Javaé mais velhos tiveram o lábio furado, mas a prática não é mais

realizada há décadas.

Os Xambioá costumavam subir o Araguaia, entrar no Rio Javaés e se instalar, em

suas expedições de verão, na aldeia de praia Txireheni, de onde eles subiam mais um pouco

o Rio Javaés e chegavam até à aldeia Iròdu Iràna, tida como um célebre lugar de encontro

entre os três povos falantes da língua Karajá. Os Karajá vinham das aldeias ao norte da

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atual aldeia Macaúba por via fluvial ou, às vezes, por dentro da Ilha do Bananal, à pé,

quando enviavam sinais de fumaça para avisar que estavam chegando e possibilitar aos

hóspedes que se preparassem para recebê-los. Os sinais de fumaça intermitentes

sinalizavam as intenções pacíficas do grupo, ao contrário da fumaça permanente dos Kraho,

Xerente e Apinajé, que atacavam os Javaé do Rio Loroti e aldeias do médio Javaés.

Outros Karajá vinham, por via fluvial, das aldeias ao norte da Ilha do Bananal,

como Hirè Bero (atual Barreirinha), Dòrè Taina (atual Barreira das Princesas) e Èhyho

(atual Barreira de Campo). Os Javaé vinham predominantemente das aldeias do baixo

Javaés, como Manaburè e Latèni Ixena, e da região da grande aldeia Wariwari. Em alguns

casos, vinham pessoas de aldeias mais distantes, como Marani Hãwa, que tinham mais

dificuldade para trazer alimentos. Então os moradores de Iròdu Iràna sempre preparavam

roças especiais para receber os seus visitantes periódicos. Ao modo consagrado no alto

Xingu, os encontros tinham como objetivo trocas pacíficas e diversas entre as diferentes

etnias e, principalmente, competições por meio da tradicional luta ritual (ijèsu), que faz

parte até hoje do calendário cerimonial dos Javaé e Karajá.

O encontro de lutadores ocorria também na antiga aldeia Kòtu Iràna, situada nas

imediações da confluência do Rio Wariwarizinho com o Riozinho, no norte da Ilha do

Bananal, para onde iam os Javaé de Iròdu Iràna, entre outros. Os Javaé e Karajá viviam

juntos na aldeia Kòtu Iràna, embora os Javaé morassem na margem leste do Riozinho e os

Karajá, na margem oeste. Nas disputas rituais, os Xambioá compareciam enfeitados com

muitas penas, enquanto os Karajá, em tempos mais recentes, traziam miçangas para trocar

pelos outros objetos. Na ocasião, era escolhido o melhor lutador (ijèsudu) dos três grupos e

os vencedores tinham o direito de levar os cobiçados enfeites dos perdedores.

O vencedor das lutas em Iròdu Iràna ou em Kòtu Iràna, as quais mantinham uma

ligação permanente, alcançava também o direito de buscar o apreciado “óleo do peixe

pataquinha” (dèdèsi hanỹ ou dèdèsi òlỹrè) no Lago Kòtu Iràna (Kòtu Iràna Ahu), ao lado

da aldeia de mesmo nome. Quando frito, o peixe dèdèsi expelia grande quantidade de óleo,

que era usado como uma espécie de tempero da mandioca e do inhame cozidos. Embora o

peixe não fosse raro, ele era muito mais fácil de ser capturado em um lugar mais estreito do

Lago Kòtu Iràna, onde existia em abundância. Os Xerente às vezes atacavam a aldeia Kòtu

Iràna para buscar o óleo de dèdèsi. A expressão Kòtu Iràna significa “o lugar onde a

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tracajá gritou” e origina-se de um evento mítico ocorrido no lugar, aqui resumido, no tempo

em que os animais eram gente.

A tracajá (kòtu) subiu em um pé de jatobá e gritou chamando a onça, fingindo que

não podia descer. A onça veio e falou: “pode descer, que eu seguro você aqui embaixo”.

Então kòtu se soltou lá de cima e caiu na testa da onça, propositadamente. Por isso o

lugar ficou sendo conhecido como Kòtu Iràna, “o lugar onde a tracajá gritou”.

A luta ritual em Kòtu Iràna, dos Karajá contra os Javaé ou os Xambioá, era do tipo

malua, marcada por duas cerimônias específicas, uma de recepção aos hóspedes e outra ao

fim das lutas. Os Javaé desciam o rio e ficavam esperando os Karajá e Xambioá, que

chegavam ao lugar entrando pela foz do Rio Javaés, ou vice-versa. Cabia àqueles que

chegavam por último tomar a iniciativa de provocar a luta malua, ocasião em que os

visitantes encostavam suas canoas no barranco da aldeia já cantando e gritando. O encontro

dos especialistas em luta era chamado wiwèitykynỹkỹmỹ, referindo-se ao “abraço na região

mediana do corpo” (wèityky) durante a luta, em vários aspectos similar ao huka huka alto-

xinguano.

Os Karajá e Xambioá costumavam se encontrar também no baixo Araguaia, onde

existia um outro lugar, não freqüentado pelos Javaé, de extração do óleo de pataquinha. Foi

depois desses encontros que se passou a valorizar a existência do peixe nas proximidades

da foz do Rio Wariwarizinho. A aldeia Kòtu Iràna foi extinta ainda no século 19, mas o

costume de realizar trocas em Iròdu Iràna estendeu-se por muito tempo, chegando até o

início do século 20, quando os Xambioá e Karajá traziam para os encontros os novos bens

que recebiam dos padres dominicanos de Conceição do Araguaia. Nessa época, os Javaé de

Marani Hãwa, uma das grandes aldeias Javaé, aprenderam a navegar até a distante cidade

do Pará, onde aprenderam a usar roupas.

Por causa dessas lutas e trocas rituais muito antigas entre as três etnias, os Karajá

setentrionais, em especial, adquiriram o costume de freqüentar o baixo curso dos rios

Javaés e Riozinho, no norte da Ilha do Bananal, tanto para suas expedições provisórias de

pesca, na estação seca, quanto para se fixar em aldeias junto ou próximo dos Javaé. Às

vezes, os Karajá acompanhavam os Javaé até as suas aldeias mais interioranas e

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meridionais, mas em geral a tendência era permanecer nas imediações da porção

setentrional dos rios Javaés e Riozinho.

A confluência do Riozinho com o Rio Javaés (Wabe Ijò, “boca do Riozinho”), na

ponta norte da Ilha do Bananal, era um conhecido e tradicional ponto de parada das três

etnias durante suas viagens. As famílias paravam na foz do Riozinho, um lugar de recursos

abundantes, para caçar os animais permitidos ao consumo (camaleão, quati, tartaruga,

macaco guariba, macaco prego, jacu, o pato da asa branca, entre outros), para pescar,

coletar produtos como o mel e, principalmente, para preparar alimentos. Na época da

estação seca, em um tempo bem anterior ao século 20, famílias inteiras dos Xambioá e dos

Javaé e Karajá setentrionais, em sua maioria, mudavam-se para as praias do baixo Javaés,

morando durante meses nas aldeias de verão. Havia os lugares certos de acampar, cuja

localização e história são conhecidas até hoje pelos mais velhos Javaé e Karajá.

As listas a seguir (ver mapas n° 3, n° 5 e carta topográfica) contêm informações,

quando possível, sobre a localização, histórico e situação atual das antigas aldeias situadas

em ambas as margens do baixo curso do Rio Javaés ou nas suas proximidades (ver fotos

anexas). Nenhum desses lugares – apresentados no sentido sul/norte e em continuidade – é

habitado atualmente pelos Javaé ou Karajá. A margem oeste do Rio Javaés corresponde ao

que está dentro da Ilha do Bananal, enquanto a margem leste corresponde ao que está fora

da ilha.

Principais sítios de aldeias antigas do baixo Javaés fora da Terra Indígena Utaria

Wyhyna (Karajá) / Iròdu Iràna (Javaé):

1. Hatõmõkò (margem oeste, ao sul da atual aldeia Boto Velho): uma das aldeias de

inverno mais antigas, fundada pelos Karajá quando vieram morar no baixo Javaés

depois de ascender do Fundo das Águas em Inỹsèdyna. Um dos lugares onde os

Karajá foram atacados em tempos remotos pelos Wèrè.

2. Waderikò (margem oeste, ao sul da atual aldeia Boto Velho): uma das aldeias de

inverno mais antigas, fundada pelos Karajá quando vieram morar no baixo Javaés

depois de ascender do Fundo das Águas em Inỹsèdyna. Um dos lugares onde os

Karajá foram atacados em tempos remotos pelos Wèrè.

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3. Latèni Ixena (margem oeste, ao norte da atual aldeia Boto Velho): uma das aldeias

de inverno mais antigas, fundada pelos Karajá quando vieram morar no baixo

Javaés depois de ascender no Fundo das Águas em Inỹsèdyna. Um dos lugares onde

os Karajá foram atacados em tempos remotos pelos Wèrè. Nesse tempo muito

antigo, a aldeia era conhecida como Kunahija. Posteriormente, quando já era

habitada pelos Javaé, a aldeia passou a se chamar Latèni Ixena depois que um

latèni, entidade mascarada que participa do ritual de iniciação masculina, caiu do

barranco da aldeia. Era uma das maiores e mais estáveis aldeias da região.

4. Asukò (um pouco distante da margem leste do Rio Javaés, junto ao Lago do Salu):

asukò é o nome nativo da imbaúba, árvore que existia em abundância no lugar. A

aldeia foi extinta no início do século 20.

5. Hãriò (margem oeste)

6. Narybykò (1) (margem oeste)

7. Harewekò (margem oeste)

8. Manaburè (margem oeste): era conhecida como uma das maiores e mais estáveis

aldeias de inverno da região.

9. Hãriwatò (margem oeste)

10. Kòbyryra Teburèna (margem leste): seu nome significa “o lugar (na) onde a “onça

vermelha” (kòbyryra) brigou ou ficou zangada (teburè)”.

11. Hãriwatòriòrè (margem oeste)

12. Walu (margem oeste): na beira do Rio Javaés existia a aldeia Walu de verão,

habitada pelos Javaé. A aldeia Walu de inverno ficava um pouco mais distante das

margens do rio, dentro da Ilha do Bananal. Walu é a palavra nativa para cabaça.

Werehina, onça mítica e canibal, matava muitas pessoas, retirando delas apenas o

crânio. Werehina morou onde existiu a aldeia Walu e na porta de sua casa existiam

muitos crânios, parecidos com cabaças, motivo pelo qual a aldeia ficou com esse

nome. A aldeia foi extinta antes do século 20.

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Principais sítios de aldeias antigas do baixo Javaés dentro ou vizinhas à Terra

Indígena Utaria Wyhyna (Karajá) / Iròdu Iràna (Javaé):

13. Iròdu Iràna (margem leste): grande aldeia de inverno situada fora da terra indígena,

mas junto ao limite sudeste, e de extraordinária importância histórica. A aldeia

situava-se no lugar exato onde o herói mítico Tanỹxiwè (ou Kanỹxiwè, segundo os

Karajá) conquistou o fogo dos animais para a humanidade, conforme a tradição oral

Karajá e Javaé, razão pela qual seu nome foi escolhido pelos Javaé para nomear a

porção Javaé da terra indígena. Além disso, o lugar era o célebre ponto de encontro

entre as etnias Karajá, Javaé e Xambioá antes do século 20. Iròdu Iràna, aldeia de

intensa vida ritual durante a estação cheia, era composta de famílias Javaé e Karajá

e situava-se junto à foz do Riozinho do Ezequiel (Ijòrina), importante afluente da

margem direita do Rio Javaés. A aldeia foi extinta nos anos 50 do século passado

por causa de epidemias de catapora e sarampo, tendo restado pouquíssimos

remanescentes entre os Javaé atuais. Atualmente existe uma espécie de clube de

pesca de não-índios instalado no lugar, do qual faz parte uma casa de alvenaria

construída recentemente. Ezequiel era o nome do morador regional que habitava o

local antes do clube e cujo nome serve de referência até hoje para o lugar.

14. Bòròrèwa (margem oeste): aldeia de inverno Javaé situada ao lado da boca de um

lago pequeno da Ilha do Bananal que se emenda no Rio Javaés. Na estação seca, os

moradores mudavam-se para a praia situada do outro lado do rio. Atualmente o

lugar da aldeia está coberto por uma vegetação mais densa, antes inexistente.

Bòròrèwa significa “pé (wa) de cervo (bòròrè)”.

15. Kotèburè (margem leste): aldeia de verão situada ao lado da boca do Lago Kotèburè

(Kotèburè Ahu), um grande lago que se emenda ao Rio Javaés. Era uma aldeia

temporária, onde os Javaé, Karajá ou Xambioá costumavam morar durante a estação

seca para comer ovos de tracajá, tartaruga e camaleão. Kòtèburè é o nome de um

tipo de cipó abundante nas imediações da aldeia, que se usa como fieira para

colocar os peixes. A aldeia foi abandonada definitivamente depois de um ataque dos

Kayapó. O sítio da aldeia agora está dentro da Fazenda Ponderosa e no antigo porto

da aldeia existe atualmente uma passagem para o gado beber água no rio.

16. Txireheni (margem leste): aldeia de verão Javaé situada ao lado da boca do pequeno

Lago Txireheni (Txireheni Ahu), que se emenda ao Javaés, onde os moradores

ficavam alguns meses, todos os anos, para depois subir ou descer o rio. Txireheni é

o nome de um “aruanã” (ijasò, no dialeto Karajá, ou irasò, no dialeto Javaé),

entidade mascarada que participa dos rituais Javaé e Karajá e que representa os

primeiros ancestrais que até hoje vivem no Fundo das Águas. Segundo os Javaé, o

aruanã Txireheni mora ainda nas profundezas do Lago Txireheni. A aldeia foi

extinta no início do século 20. Atualmente, o lugar está muito próximo da sede do

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Centro de Pesquisa Canguçu1 e está tomado por uma vegetação densa. Caravanas de

pescadores não-índios costumam se instalar nas suas imediações na estação seca.

17. Oxiani (margem oeste): aldeia de verão situada bem ao lado da “foz do Riozinho”

(Wabe ijò), a 10 km da confluência do Rio Javaés com o Araguaia, onde as famílias

permaneciam até o rio começar a encher. Oxia é um tipo de borboleta e a partícula

ni indica tanto o que é “falso” ou “imitação” de algo como um “espírito”. Oxiani é,

portanto, uma “falsa borboleta”, mas no sentido mais preciso de um ser mágico e

invisível com a forma de borboleta. Oxiani também é o nome de uma pessoa. A

aldeia deixou de existir no início do século 20 e atualmente existem as instalações

abandonadas de um posto de fiscalização do IBAMA no lado oposto da foz do

Riozinho.

Muitas das aldeias listadas foram extintas por causa de epidemias diversas (catapora

e sarampo, principalmente) na primeira metade do século 20, as quais foram interpretadas

pelos Javaé como produtos de grandes feitiços mortais. Atualmente, restaram pouquíssimos

remanescentes das aldeias Asukò, Kòtèburè, Iròdu Iràna e Bòròrèwa entre os Javaé atuais.

As outras aldeias do baixo Javaés, em sua maioria, já tinham se acabado antes, em tempos

mais ou menos remotos, por motivos variados. Por essa razão, nos dias de hoje é muito

difícil obter informações sobre o passado e constituição das aldeias Javaé setentrionais,

diferentemente do que ocorre em relação às outras micro-regiões do território Javaé.

Segundo a mitologia Javaé, Latèni Ixena (ou Kunahija), Waderikò e Hatõmõkò

eram aldeias fundadas pelos Karajá no baixo Rio Javaés antes da chegada dos bandeirantes

ao Brasil Central. As aldeias foram o palco dos primeiros conflitos entre os Karajá e os

Wèrè, os quais resultaram na mudança definitiva dos Karajá para o Araguaia. Em Macaúba,

ouvi de Sebastião Waihore Karajá a mesma versão da história, havendo uma memória

Karajá mais elaborada a respeito do baixo Javaés do que sobre qualquer outra porção do

território Javaé. Os Karajá incluem também Narybykò (1) como uma dessas antigas aldeias

Karajá do baixo Javaés abandonadas em tempos míticos (ver Mapa n° 4). Toral (1999:12),

por sua vez, inclui as aldeias “Unahija, Otxisaò e Hatomoò”, que teriam sido habitadas

1 O “Centro de pesquisa, educação ambiental e eco-turismo” Canguçu, cuja área faz limite à área de proteção

ambiental do Cantão (TO), foi inaugurado em 1999 e é ligado à Universidade Federal do Tocantins. O centro

funciona em parceria com o IBAMA, a NATURATINS e algumas ONGs, que apóiam o “Projeto de seqüestro

de carbono” (ver May et alli, 2004). Antes, o lugar era conhecido como Mato Verde e era utilizado como

acampamento de pesca pelos donos da Fazenda Canguçu (ver fotos n° 44 e n° 45).

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pelos Karajá no baixo Javaés, como parte das aldeias ainda existentes no início do século

20.

Além das aldeias listadas, existiram também outras aldeias permanentes no interior

da Ilha do Bananal, no baixo curso do Riozinho, dentro da Terra Indígena Utaria Wyhyna

(Karajá) / Iròdu Iràna (Javaé), como as aldeias Narybykò (2), extinta no início do século

20, aproximadamente, e Nibònibò. Os Javaé de Boto Velho também encontraram cacos de

cerâmica fabricada por seus antepassados às margens do Bòtòè Ahu (“Lago da Pomba”),

um dos lagos da área do Parque Nacional do Araguaia.

Segundo a versão Javaé da história, os Karajá e Javaé moravam juntos em Narybykò

(2), mas mantinham uma relativa separação. Os Karajá moravam do lado leste do Riozinho,

enquanto os Javaé moravam no lado oeste do rio, invertendo as posições tradicionais. Os

dois se visitavam reciprocamente e em muitas ocasiões ocorriam lutas rituais ou jogos

rituais entre ambos, como a Hèloosõ anarakana, “brincadeira” (anarakana) noturna de

arremessar “lenha” (hèè) “acesa com fogo” (loosõ). A aldeia teve fim quando um homem

Karajá matou a sua esposa Karajá e o conflito entre as famílias envolvidas desestruturou o

grupo. O casal foi trabalhar na roça e, ao retornar, a sua filha única, de três anos, resolveu

pegar as flores de um arbusto de tabaco (kòti) que ela viu na beira de um barranco muito

alto. A criança morreu ao despencar do barranco e o pai, inconformado, atribuiu a morte da

filha à negligência da mãe, matando-a com um golpe de facão no pescoço. Pouco tempo

depois da morte, os Karajá retornaram para o Araguaia e os Javaé para aldeias meridionais

dentro da Ilha do Bananal.

Segundo a versão Karajá da mesma história, o filho do casal estava começando a

engatinhar e a mãe, que estava cozinhando, não viu quando a criança se afastou até a beira

do barranco do rio e morreu afogada. Antes disso, o marido já havia ameaçado matar a

esposa caso o filho morresse, o que ele fez cortando o pescoço da esposa com uma foice. A

família da mulher foi atrás do assassino para se vingar e, por causa dessa tragédia, os

Karajá espalharam-se nas aldeias Urà Hãwa, Uè Bero (Crisóstemo de Cima) e Rènôà (Lago

Grande), extinguindo-se a aldeia na virada para o século 20, aproximadamente. Narybykò

(2) localizava-se para baixo (ao norte) de Tarumã, nome do lugar no Riozinho que marca a

divisa entre a Terra Indígena Inãwébohona e o Parque Nacional do Araguaia (IBAMA).

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Os Javaé lembram que os Karajá moravam também em Nibònibò, uma aldeia

situada na margem oeste do baixo Riozinho. A aldeia localizava-se dentro da Terra

Indígena Utaria Wyhyna (Karajá) / Iròdu Iràna (Javaé), mas um pouco ao norte de

Narybykò (2). Era um lugar conhecido pela abundância de pés de “coco babaçu” (noõbò).

Nibònibò era um pé de coco muito grande e considerado sagrado, pois suas folhas tinham

poderes milagrosos. Certa vez, no tempo que os animais ainda eram humanos, segundo a

mitologia, alguém matou o marido da onça. Inconformada, a onça carregou o corpo do

marido para junto de Nibònibò e lavou-o com as folhas de babaçu, que foram capazes de

ressuscitá-lo.

Diferentemente do que ocorria nas outras aldeias Javaé (micro-regiões de Bèdèky,

de Wariwari e de Marani Hãwa) e nas aldeias Karajá das margens do Araguaia, em que as

etnias mantinham-se relativamente separadas, os dois grupos conviviam proximamente nas

aldeias do baixo Riozinho e do baixo Javaés. Nas aldeias conjuntas de inverno, havia o lado

Karajá e o lado Javaé da aldeia, o que muitas vezes coincidia com as diferentes margens do

rio. Apesar das trocas e intercâmbios rituais, os casamentos interétnicos eram evitados por

causa da regra da uxorilocalidade, embora não fossem totalmente interditos. As famílias

Javaé não tinham interesse que seus homens fossem morar na casa de sogros Karajá,

praticando uma endogamia étnica. Mesmo assim, houve casamentos entre os dois grupos,

de modo que se reconhece até hoje um parentesco distante entre os Karajá e Javaé. Depois

que os Karajá passaram a viver no Araguaia em tempos mítico-históricos, sempre houve

uma convivência pacífica entre os Javaé, Karajá e Xambioá, que nunca se enfrentaram em

guerra aberta ou declarada.

Por outro lado, também sempre houve episódios tensos entre os três grupos, a maior

parte das vezes associados a acusações de feitiçaria, o que provocou conflitos e mortes

entre famílias. Assim como no alto Xingu, a tensão interétnica era expressa nas lutas e

jogos rituais que ocorriam nessas aldeias misturadas, como no jogo Kohurò, nome de um

pequeno tipo de flecha, sem penas, feita da madeira pati e do osso de algum animal. A

flecha era arremessada com um dedo da mão pelas pessoas durante enfrentamentos

cerimoniais entre dois grupos opostos.

No século 19, ocorreu um conflito mais sério entre os Javaé e Karajá das aldeias

setentrionais, o que é lembrado como um episódio raro. Os Karajá já possuíam armas de

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fogo (mỹkawa) e, desafiados por mexericos dos Javaé, que disseram que as balas não eram

capazes de eliminá-los, os Karajá atacaram uma aldeia Javaé. Os Javaé ainda não possuíam

armas de fogo, utilizando para se defender apenas flechas e juasa, um tipo de flecha com

lâmina cortante na ponta. Depois desse evento, os Javaé abandonaram algumas aldeias da

porção norte da Ilha do Bananal. O missionário Frei Luís Palha (1942) relata um conflito

que teria havido, na década de 30, entre os Javaé de uma aldeia situada no Riozinho e os

Karajá de uma aldeia próxima.

Além desse fato histórico, as desconhecidas e mortais doenças trazidas pelas frentes

de expansão nacional, interpretadas a princípio como produtos de feitiçaria interna contra a

coletividade, foram determinantes para a dizimação da maior parte da população Javaé. O

novo contexto histórico levou ao fim das aldeias setentrionais de inverno e de verão

situadas a leste do Riozinho. A invasão cada vez maior do território Javaé a partir do início

do século 20 (por mineradores, pescadores e caçadores profissionais, criadores de gado e

vilarejos em expansão), a conseqüente redução extrema da população na primeira metade

do século 20 e a destinação – pelo Estado brasileiro – da porção centro-norte da Ilha do

Bananal exclusivamente à proteção ambiental, na segunda metade do século 20, impediram

até hoje que os Javaé retornassem definitivamente à Terra Indígena Utaria Wyhyna

(Karajá) / Iròdu Iràna (Javaé), parte extremamente importante do seu território de

inquestionável ocupação tradicional, embora ainda mantenham vínculos históricos, sócio-

culturais, econômicos e afetivos com a área2. O quadro a seguir resume os dados sobre a

época em que as antigas aldeias setentrionais foram extintas:

2 Visitei pessoalmente todos os sítios de aldeias antigas do baixo Javaés situados dentro ou nas imediações da

Terra Indígena Utaria Wyhyna (Karajá) / Iròdu Iràna (Javaé), cuja localização foi marcada com o aparelho

GPS. Prevista para durar um dia, a viagem durou três dias, porque o Rio Javaés estava muito mais seco do

que o normal para a época (julho), dificultando enormemente a navegação. Meu guia foi Benoi Temanaku,

filho de pai Javaé e mãe Karajá, nascido na extinta Iròdu Iràna há 67 anos atrás (ver Foto n° 40). Apesar da

minha insistência, não foi possível visitar os lugares antigos dentro da Ilha do Bananal, nas margens do

Riozinho (em especial Kòtu Iràna e Narybykò), por várias razões: por via terrestre, eram lugares de difícil

acesso, para os quais não há trilhas de carro há muitos anos; por via fluvial, o Riozinho já estava muito seco e

de difícil navegação; por fim, o motivo mais importante, a única pessoa (Wasari) – também com mais de 60

anos – que conhecia com exatidão a localização das aldeias estava fora da aldeia Boto Velho, envolvida com

outras atividades (ver Foto n° 50).

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Quadro n° 10 – Data de extinção das principais aldeias Javaé setentrionais de

ocupação imemorial

Aldeia Data de extinção

1. Hatõmõkò Antes do século 20

2. Waderikò Antes do século 20

3. Latèni Ixena Antes do século 20

4. Asukò Início do século 20

5. Hãriò ?

6. Narybykò (1) Antes do século 20

7. Harewekò ?

8. Manaburè Antes do século 20

9. Hãriwatò ?

10. Kòbyryra Teburèna ?

11. Hãriwatòriòrè ?

12. Walu Antes do século 20

13. Iròdu Iràna Década de 50 do século 20

14. Bòròrèwa Primeira metade do século 20

15. Kòtèburè Primeira metade do século 20

16. Txireheni Início do século 20

17. Oxiani Início do século 20

18. Narybykò (2) Início do século 20

19. Nibònibò Antes do século 20

20. Kòtu Iràna Antes do século 20

– O lado Karajá

O lado Karajá da Terra Indígena Utaria Wyhyna (Karajá) / Iròdu Iràna (Javaé) – a

oeste do Riozinho – também foi ocupado por importantes e antiqüíssimas aldeias até a

primeira metade do século 20. Diferentemente das aldeias mistas do lado Javaé, entretanto,

o lado oeste da porção norte da Ilha do Bananal foi ocupado predominantemente por aldeias

dos Karajá setentrionais (ver Mapa n° 4 e carta topográfica). Embora sempre tenha sido

comum encontrar alguns Javaé morando em aldeias Karajá e vice-versa, as aldeias mistas,

tal como foram descritas no item anterior, eram uma característica marcante do baixo curso

do Riozinho e do Rio Javaés, não chegando ao Araguaia.

Lembrando o que diz a tradição oral Karajá, os primeiros ancestrais ascenderam do

Fundo das Águas em Inỹsèdyna, um lugar muito próximo do limite sul da terra indígena, de

onde foram morar no baixo Javaés. Depois que o herói Teribrè venceu a guerra com os

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Wèrè, os Karajá deixaram de viver no baixo Javaés e instalaram-se definitivamente no Rio

Araguaia. Em uma das importantes versões do grande mito de origem, o primeiro lugar que

os Karajá passaram a viver foi a grande e muito antiga aldeia Hãwarahedà, situada na

margem oeste do Araguaia, nas proximidades da foz do Rio Javaés, em um dos pontos mais

estratégicos do médio Araguaia. Foi de Hãwarahedà que os Karajá se espalharam para as

outras aldeias – cuja origem remonta a um tempo longínquo – situadas ao sul, como Wodo,

Bidinaò, Ijòròtòbò, Tỹtè Ijò, Utaria Wyhyna, Ètèhõry, Nana Birè, Urà Hãwa, Bèdu Hãwa

(atual Macaúba), entre outras, e ao norte, como Hirè Bero (atual Barreirinha), Èhyho (atual

Barreira de Campo) e Way (ver fotos anexas).

Algumas dessas importantes aldeias de origem mítica situavam-se dentro da Terra

Indígena Utaria Wyhyna (Karajá) / Iròdu Iràna (Javaé), na margem direita do Rio

Araguaia, ou na sua vizinhança, ou seja, na margem esquerda. Atualmente, com já foi dito,

não há nenhuma aldeia na terra indígena em questão, mas os Karajá de diferentes aldeias

que ainda mantêm vínculos econômicos, culturais e afetivos com a porção norte da Ilha do

Bananal originam-se, principalmente, dessas antigas aldeias setentrionais, situadas ao norte

do local de origem mítica conhecido como Inỹsèdyna. Os nomes das aldeias tendem a se

referir, em sua maioria, aos sítios permanentes de inverno, situados nas duas margens do

Araguaia, que eram utilizadas indiscriminadamente para a pescaria, caça e coleta.

Com poucas exceções, as terras mais altas localizavam-se na margem oeste do

Araguaia, pelo menos no que diz respeito às aldeias dos Karajá setentrionais, de modo que

a maioria das aldeias de inverno situava-se na margem oeste ou esquerda do Araguaia. Na

estação seca, porém, os moradores das aldeias Karajá tendiam a se espalhar pelas praias da

margem direita do Araguaia, no lado da Ilha do Bananal, temendo os ataques dos Kayapó

aos Karajá setentrionais e dos Xavante aos Karajá meridionais, os quais apareciam na

margem esquerda do grande rio apenas na época do verão. Durante o inverno, as grandes

extensões de savana inundada impediam o descolamento dos grupos inimigos, que não se

utilizavam de canoas e viviam mais distantes das margens do Araguaia. Como exímios

nadadores e remadores, o rio era o principal recurso de defesa dos Karajá contra os Kayapó

e Xavante, que tinham pouco ou nenhum domínio sobre as águas. Os Karajá ainda lembram

de Wanahua Kayapó, criado em Xambioá, que matou muitos índios Karajá. Em termos

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gerais, os Karajá setentrionais viviam a estação da cheia na margem oeste do Araguaia,

enquanto a estação da seca era passada no lado da Ilha do Bananal.

Os maiores e mais antigos cemitérios dos Karajá setentrionais são os cemitérios das

antigas aldeias de Inỹsèdyna, no Parque Indígena do Araguaia, e de Utaria Wyhyna, dentro

da terra indígena sob estudo (Parque Nacional do Araguaia), onde até hoje se encontram

urnas funerárias (watxiwii) de barro inteiras ou em cacos (ver fotos n° 16 e n° 22). Após a

saída mítica dos primeiros ancestrais do espaço fechado em que viviam no Fundo das

Águas, o “Povo de Fora” (Ahana Mahãdu) fundou uma aldeia ao lado do buraco que serviu

como passagem para o mundo em que vivemos. Como já foi dito, Inỹsèdyna significa “o

lugar de origem da mãe do povo Inỹ” e é uma espécie de centro do território Karajá ao

longo do médio Araguaia, situando-se em um lugar alto a cerca de dois quilômetros do

limite sul da terra indígena em questão. A aldeia tornou-se imensa com o tempo e os

primeiros ancestrais escolheram um lugar seco, na sua vizinhança, onde foram enterrados

os primeiros mortos Karajá. A aldeia Inỹsèdyna deixou de existir antes do século 20, mas

os Karajá de todas as aldeias da região ao redor, incluindo os mais meridionais de Itxala e

os mais setentrionais de Lago Grande, continuaram enterrando seus mortos no antigo

cemitério. Como a maioria dos Karajá setentrionais está agora concentrada na aldeia

Macaúba, localizada a poucos quilômetros de Inỹsèdyna, o grande e famoso cemitério da

primeira aldeia é ainda utilizado para enterros.

Utaria Wyhyna é considerada a aldeia antiga mais importante dentro do lado Karajá

da Terra Indígena Utaria Wyhyna (Karajá) / Iròdu Iràna (Javaé), motivo pelo qual os

Karajá escolheram o seu nome para nomear a parte que lhes diz respeito na nova terra

indígena. A aldeia ao norte de Macaúba foi habitada até os anos 50 do século passado, mas

o grande cemitério de Utaria Wyhyna – que era maior ainda que o de Inỹsèdyna – não é

mais utilizado para enterros, porque ele é muito mais distante de Macaúba do que

Inỹsèdyna. A expressão Utaria Wyhyna (ou Kutaria Wyhyna, na versão feminina da língua)

significa “o lugar (na) de Utaria (nome de uma pessoa) flechando (wyhy)” e refere-se a um

antiqüíssimo episódio ocorrido no lugar. Na época em que os peixes jaraqui (nana)

apareciam, Utaria fez uma cerca de taquara dentro do rio para aprisioná-los. Todos na

aldeia pararam suas atividades para observar Utaria juntando os jaraqui em sua cerca, fato

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que deu nome ao lugar. Por isso, a aldeia também pode ser chamada de Utaria Wyhyna

Nana Tòdykyna, frase que significa “o lugar onde Utaria cercou os jaraqui para flechá-los”.

As listas a seguir (ver mapas n° 4, n° 5 e carta topográfica), apresentadas no sentido

sul/norte, contêm informações sobre a localização, histórico e situação atual das mais

importantes antigas aldeias dos Karajá setentrionais, situadas em ambas as margens do Rio

Araguaia, ao norte de Inỹsèdyna (ver fotos anexas). A margem oeste do Araguaia

corresponde ao que está fora da Ilha do Bananal, enquanto a margem leste corresponde ao

que está dentro da ilha. Nenhum desses lugares é habitado atualmente pelos Karajá. No

caso de Èhyho, a antiga aldeia não mais existe, mas algumas famílias moram dispersas no

povoado de Barreira de Campo.

Principais sítios de aldeias antigas dos Karajá setentrionais dentro ou vizinhas à

Terra Indígena Utaria Wyhyna (Karajá) / Iròdu Iràna (Javaé):

1. Inỹsèdyna (margem leste): sítio de extraordinária importância mítico-histórica, onde

existe o grande buraco – localizado no Parque Indígena do Araguaia, a poucos

quilômetros do limite sul da terra indígena sob estudo – por onde os primeiros

ancestrais ascenderam do Fundo das Águas para o mundo em que vivemos, segundo

a tradição oral. Nas imediações do lugar existiu a primeira aldeia de inverno dos

Karajá e ainda existe o primeiro cemitério. Até pouco tempo atrás, não havia

nenhum tipo de vegetação dentro do buraco, que é tomado pelas águas na estação

cheia e que os Karajá tinham o hábito de visitar com freqüência. O local sagrado da

passagem mítica situa-se em uma área de savana (varjão) e atualmente a vegetação

cresceu muito tanto dentro quanto ao redor do buraco. O grande cemitério de

Inỹsèdyna, onde os Karajá de todas as aldeias da região ao redor enterravam seus

mortos até a metade do século 20 e onde os de Macaúba ainda enterram os seus

mortos, localiza-se em um lugar mais alto, coberto por uma mata mais densa, a

cerca de 200 metros do local de passagem mítica. No cemitério se vêem vestígios

tanto de túmulos mais antigos como de enterros mais recentes. A aldeia foi extinta

antes do século 20.

2. Urà Hãwa: antiga aldeia de inverno, com mais de 200 pessoas, instalada em um

barranco muito alto no extremo sul da Ilha de Isabel, uma ilha do Rio Araguaia

situada entre a aldeia Macaúba e a cidade de Santa Terezinha. Na literatura

(Tavener, 1966), é mencionada como “Ponta da Ilha”. Urà Hãwa significa “aldeia

ou lugar (hãwa) de mangaba (urà)”. Não havia cemitério na aldeia e os mortos eram

enterrados em Inỹsèdyna. A aldeia foi extinta nos anos 50 do século passado,

quando os moradores se transferiram para Macaúba atraídos pelos missionários

evangélicos, e atualmente não há ninguém morando no lugar.

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3. Nana Birè (margem oeste): aldeia de verão, conhecida também como Juasa Hãwa

(aldeia de Juasa), instalada na grande praia que surge bem ao lado (sul) da atual

cidade de Santa Terezinha na estação seca. A aldeia era conhecida pelos regionais

como “aldeia de Leriane”, pois Juasa ou Leriane eram os nomes do chefe (ixỹwèdu)

local na primeira metade do século 20. Na literatura (Lipkind apud Donahue, 1982,

Machado, 1947, Simões apud Lima Filho & Alvarenga Nunes, 1992), é conhecida

como Morro de Areia. Nana birè quer dizer “peixe jaraqui (nana) magro (birè)”. Na

mata que se situa atrás da praia, ainda existe um pé de jatobá que foi plantado pelos

próprios Karajá de Nana Birè, que comeram a fruta e deixaram a sua semente no

local. Não havia cemitério na aldeia e os mortos eram enterrados em Inỹsèdyna.

Quanto Santa Terezinha foi fundada, nos anos 30, a praia era bem maior e havia

poucas pessoas morando na aldeia. Atualmente não há ninguém morando no lugar,

mas no mês de julho, auge da temporada turística no Araguaia, quando os não-

índios de Santa Terezinha e de outras cidades vizinhas acampam nas praias, os

Karajá de Macaúba transferem-se para uma praia ao lado de Nana Birè, morando

em ranchos de palha, para vender artesanato para os turistas. A aldeia foi extinta nos

anos 50 do século passado, quando os moradores se transferiram para Macaúba

atraídos pelos missionários evangélicos.

4. Ètèhõry Hãwa (margem oeste): grande aldeia de verão situada ao lado de onde

existiu o povoado Furo de Pedra, um pouco ao norte de Santa Terezinha. Ètèhõ é a

palavra nativa para o “olho de buriti”, parte valorizada da palmeira de buriti para a

confecção de vários artefatos. Ètèhõry Hãwa refere-se ao lugar ou aldeia “onde a

canoa encostou para se pegar olho buriti”. O local era famoso pela quantidade de

buriti e as pessoas vinham de outras aldeias buscar a palmeira no lugar. Atualmente

não há ninguém morando no local. A aldeia foi extinta nos anos 50 do século

passado, quando os moradores se transferiram para Macaúba atraídos pelos

missionários evangélicos.

5. Utaria Wyhyna (margem leste): grande aldeia de inverno, situada em sítio de

extraordinária importância histórica, onde existe o maior cemitério dos Karajá

setentrionais, de origem remota no tempo. A antiga aldeia e o cemitério não se

situavam exatamente na margem leste do Araguaia, mas um pouco para dentro da

Ilha do Bananal, onde ficavam escondidos de quem passa pelo Araguaia. A aldeia e

o cemitério localizavam-se nas margens do Utaria Wyhyna Ahu Bero (Lago-Rio

Utaria Wyhyna), um grande lago comprido conhecido localmente como Lago do

Mané Quitandeiro. O nome deriva de um regional que tinha um retiro de gado às

margens do lago. Não há mais vestígios da aldeia, apenas do famoso cemitério, que

está situado em uma área alta e seca, coberta de mata mais densa, que nunca é

tomada pelas enchentes. Como é um cemitério muito antigo e não mais utilizado há

tempos, é muito difícil encontrar urnas funerárias intactas. O Lago Utaria Wyhyna

ainda tem grande abundância de peixes e emenda-se ao Araguaia. Não há ninguém

morando no lugar atualmente, mas a boca do lago é uma porta aberta à invasão

freqüente ao norte da Ilha do Bananal por não-índios. A aldeia foi extinta na

primeira metade do século passado.

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6. Tỹtè Ijò (margem oeste): grande aldeia de inverno com muitas casas e Casa dos

Homens, que comandava uma vida ritual intensa. Situava-se ao lado da boca do

Lago do Crisóstemo (Tỹtè Ijò), que se emenda ao Araguaia, e por isso a aldeia era

conhecida também como Crisóstemo de Baixo (diferenciando-se da aldeia

Crisóstemo de Cima ou Uè Bero). A aldeia de verão era em uma praia do outro

lado, na Ilha do Bananal. Tỹtè é a palavra nativa para a trepadeira imbé e Tỹtè Ijò é

“boca ou foz do Lago do Imbé”. Embora a aldeia estivesse localizada em um lugar

alto, a área ao seu redor era inundável, obrigando aos moradores a plantar suas roças

do outro lado do rio, também na Ilha do Bananal. Uma vez uma grande enchente

inundou o lugar das casas. Era comum os porcos-do-mato (porco queixada ou ixỹ)

invadirem as roças atrás de alimentos e serem abatidos pelos Karajá, que apreciam a

carne do porco selvagem, ainda existente na terra indígena. Dada a

indisponibilidade de terras secas ao redor da aldeia, os mortos eram enterrados no

grande cemitério de Utaria Wyhyna. Os Kayapó tentaram raptar uma moça Karajá

de Tỹtè Ijò, mas não conseguiram, porque ela gritou e conseguiu fugir. Hoje ela é

uma das mulheres idosas da aldeia Macaúba. Por causa desse ataque, os Karajá

passaram a morar sempre no lado da Ilha do Bananal durante a estação seca.

Atualmente existe uma casa de alvenaria no lugar da aldeia, junto ao barranco do

Araguaia, mas que fica vazia durante boa parte do ano e é de propriedade da

fazenda que ocupa a área. A aldeia extinguiu-se nos anos 50 do século passado,

quando os moradores mudaram-se para Macaúba atraídos pelos missionários

evangélicos.

7. Bidinaò Hãwa (margem oeste): grande aldeia de inverno, com muitas casas e Casa

dos Homens, situada ao lado da foz do Latè Bero, “Rio do Peixe-Cachorra”,

conhecido na região como Córrego Antônio Rosa. Antônio Rosa era um Karajá que

morava no lugar na primeira metade do século 20. Bidinaò Hãwa é “aldeia (hãwa)

do pé (ò) de jenipapo (bidina)” e o sítio de inverno era conhecido como Antônio

Rosa na literatura (Tavener, 1966). A aldeia de verão ficava em uma praia enorme

do lado da Ilha do Bananal, mas que agora está bastante reduzida. Ainda existem

duas mangueiras no sítio de inverno, que foram plantadas pelos Karajá há mais de

70 anos. Dada a indisponibilidade de terras secas ao redor da aldeia, os mortos de

Bidinaò eram enterrados nos cemitérios de Utaria Wyhyna, Inỹsèdyna ou Lago

Grande. Antigamente o lugar da aldeia era limpo de vegetação, mas agora o mato

tomou conta do lugar. Por volta do fim dos anos 40 ou início dos anos 50, o SPI

estimulou a concentração dos moradores das aldeias vizinhas, em especial Ijòrò

Tòbò, em Bidinaò, o que teve curta duração. Pouco tempo depois, os moradores se

mudaram para Lago Grande e, depois, para Tỹtè Ijò, extinguindo-se Bidinaò no

início nos anos 50. Atualmente, uma grande fazenda ocupa a área e foi fundado o

pequeno povoado Antônio Rosa, com empregados da fazenda, às margens do

Córrego Antônio Rosa, um pouco distante do lugar original da aldeia. O lugar

antigo da aldeia é agora utilizado como acampamento de verão por turistas que vêm

em grande quantidade das cidades vizinhas, principalmente de Vila Rica, e que são

guiados em suas pescarias pelos moradores de Antônio Rosa. Muitas vezes os

turistas são levados para pescar no outro lado do Araguaia, nos lagos da Ilha do

Bananal, atualmente dentro do Parque Nacional do Araguaia. Os moradores de

Antônio Rosa também pescam nos lagos da ilha para vender o peixe obtido. Uma

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grande embarcação com restaurante para turistas fica atracada na foz do Córrego

Antônio Rosa na estação seca.

8. Ijòrò Tòbò Hãwa (margem oeste): grande aldeia de verão, com muita gente,

instalada em uma praia da margem oeste do Araguaia, oposta à boca do Lago do

Boto (Buhã Ahu), que está dentro da Ilha do Bananal. Na estação cheia, seus

moradores mudavam-se para Bidinaò. A expressão Ijòrò Tòbò Hãwa significa

“aldeia (hãwa) da fruta (tòbò) que a raposa (ijòrò) come”. Na estação seca, antes do

século 20, os Kayapó tentavam atacar a aldeia, rodeando-a e escondendo-se no

mato, de onde vigiavam seus moradores. Mas quando os Karajá percebiam a sua

presença, eles corriam pela praia e fugiam para o rio. Os Kayapó não eram

acostumados a correr na areia e se cansavam logo, sem alcançar os Karajá. Com o

tempo, os Kayapó desistiram de cercar a aldeia e atacar os Karajá, porque estes

eram muitos. No início do século 20, os Karajá ficaram sabendo dos planos dos

Kayapó pelos padres dominicanos de Conceição do Araguaia, que catequizavam os

Kayapó e os Karajá, entre outros. Atualmente, os Karajá pretendem fazer um posto

de fiscalização no lugar, uma vez que a boca do Lago do Boto, que se emenda ao

Araguaia, é muito utilizada pelos não-índios da região – turistas e vendedores de

peixe – para entrar nos lagos e rios da Ilha do Bananal. A praia da aldeia era bem

maior do que a que existe hoje no lugar. A aldeia extinguiu-se na década de 50,

quando seus moradores se transferiram para Bidinaò, estimulados pelo SPI.

9. Rènõà (margem oeste): aldeia de inverno situada junto à boca do Córrego Beleza

(Rènõà Bero), no lado do Mato Grosso. A larga boca do córrego é conhecida como

Lago Grande e se emenda ao Araguaia. Não existem áreas secas propícias às roças

de inverno ao redor da aldeia nem do outro lado do rio, na Ilha do Bananal, pois

praticamente toda a região é inundada pelo Araguaia na estação cheia. Os Karajá da

antiga Rènõà plantavam pequenas roças em áreas distantes e mais interioranas do

Rio Beleza ou pequenas roças de verão, com milho e melancia, do lado da Ilha do

Bananal. Na estação seca, os moradores se mudavam para uma praia que existia em

uma ilha em frente ao atual povoado Lago Grande. No início do século 20, Texibrè,

conhecido depois como “Tonico Karajá”, fundou a aldeia Rènõà junto à foz do Rio

Rènõà (Córrego Beleza). Texibrè era originário da aldeia Itxala, mas sua família

havia abandonado o local depois de um ataque mortífero dos Tapirapé. Depois de

um tempo em Nana Birè, Texibrè e sua família ficaram morando por muitos anos

em uma aldeia chamada Narybykò (que não se confunde com as outras duas aldeias

de mesmo nome já citadas), situada no médio curso do Rio do Côco, afluente da

margem direita do Araguaia, ao norte da Ilha do Bananal. Depois da morte de seu

pai, Texibrè e a restante da família decidiram se mudar de Narybykò, que foi

abandonada por todos. O grupo subiu o Araguaia, liderado por Tonico Karajá, e se

instalou definitivamente junto à foz do Córrego Beleza, fundando a aldeia Rènõà –

com quatro casas/famílias – em uma região utilizada tradicionalmente para a

pescaria pelos Karajá setentrionais. Um ou dois anos depois, segundo os Karajá, o

branco conhecido como João Paulino, originário do Maranhão, chegou ao lugar com

sua família em um batelão, vindo de Araguacema, e pediu autorização a Texibrè

para morar no lugar e criar gado. Segundo os Karajá e os atuais moradores não-

índios do lugar, que ficou conhecido como Lago Grande até hoje, iniciou-se uma

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duradoura convivência harmoniosa entre as famílias de Tonico Karajá e João

Paulino. Os descendentes deste último dizem que ele e sua esposa chegaram em

Lago Grande em 1922. Com o tempo, outras famílias de não-índios juntaram-se ao

grupo, que se tornou um pequeno povoado. No início dos anos 50,

aproximadamente, Joãozinho Lutari, parente próximo de Tonico Karajá por parte de

mãe, e sua família instalaram-se em Lago Grande. Em meados dos anos 50, quando

Tonico Karajá já tinha falecido, Zé Grande Belèhiru, um dos membros do grupo de

Lago Grande, mas que na época era o cacique de Tỹtè Ijò, convidou seus parentes

de Lago Grande para se mudarem para a nova aldeia Macaúba, estimulados pelos

missionários. A maior parte do grupo se transferiu definitivamente para Macaúba,

mas um pequeno grupo, ao qual se juntaram outros parentes posteriormente,

continuou morando em Rènõà. Os moradores da aldeia, que moravam ao lado de

Lago Grande, porém separados dos seus moradores não-índios, habitaram Rènõà até

cerca de dez anos atrás, quando algumas mortes de velhos integrantes do grupo

provocaram o fim da aldeia. Algumas famílias foram para Barreira de Campo,

enquanto os restantes passaram a viver em Lago Grande. Atualmente, o grupo de

Barreira de Campo retornou a Lago Grande e os Karajá reivindicam o

reconhecimento de uma terra indígena nas vizinhanças do povoado.

10. Wodo (margem leste): aldeia muito grande e antiga, situada às margens do Rio das

Mercês ou Mercedes (Wodo Bero), no interior da Ilha do Bananal, em um capão de

coco. Em razão da abundância natural, os Karajá gostavam de ir sempre ao lugar em

tempos mítico-históricos para passear, pescar e pegar tartarugas, mas eram

devorados por Wodo (“fumaça”), nome de um humano que tinha o poder mágico de

se transformar na onça canibal Werehina. Certa vez, o chefe Kawina e seu irmão

conseguiram matar Werehina usando Juasa, uma taboca envenenada que ainda é

encontrada no lado do Mato Grosso. Só os Karajá conhecem esse veneno perigoso,

que pode matar ou aleijar quem não souber manipulá-lo adequadamente. Por causa

desse episódio, o lugar ficou sendo chamado de Wodo e depois se transformou em

uma aldeia. Wodo localiza-se em um lugar de difícil acesso fluvial no auge da

estação seca, pois o Rio Mercedes seca muito e fica quase intransitável. Lá ainda

são encontrados vestígios de uma ocupação muito antiga, como a palmeira tucum e

panelas de barro Karajá. O grande Rio Mercedes, o maior rio do lado Karajá da

porção setentrional da Ilha do Bananal, cai no Araguaia e é penetrado atualmente,

de forma ilegal, por pescadores/vendedores de grande quantidade de peixe. A aldeia

foi extinta antes do século 20.

11. Hãwarahedà (margem oeste): grande e antiga aldeia de inverno de extraordinária

importância histórica, situada estrategicamente nas imediações da foz do Rio Javaés

(Bero Biawa), o braço direito da Ilha do Bananal. Devido à sua importância, a

aldeia também é conhecida como Hãwahakỹ, “grande aldeia”, o que tem uma

conotação de lugar honrado ou sagrado. Segundo a mitologia, foi a primeira aldeia

Karajá fundada no Araguaia depois que Teribrè e seu povo venceram os Wèrè e

deixaram a seguir de morar no baixo Javaés. De Hãwarahedà, os Karajá se

espalharam para o sul e para o norte ao longo do médio Araguaia. Entre o sítio da

aldeia e a foz do Rio Javaés existe a Ilha do Sudário, no Rio Araguaia. No local

existe um antigo e famoso cemitério Karajá, onde eram enterrados os mortos das

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aldeias vizinhas que não possuíam áreas secas apropriadas em seus arredores. O

último enterro realizado no local, entretanto, ocorreu há mais de 40 anos.

Atualmente, o sítio da aldeia está exatamente na divisa do Mato Grosso com o Pará,

dentro da Fazenda Fartura, de propriedade do grupo Supergasbrás. A aldeia foi

extinta antes do século 20.

Principais sítios de aldeias antigas dos Karajá setentrionais fora da Terra Indígena

Utaria Wyhyna (Karajá) / Iròdu Iràna (Javaé):

12. Dòrè Taina (margem oeste): antiga aldeia de inverno, situada no lado oposto da foz

do Rio do Côco, afluente da margem direita do Araguaia, de onde os Karajá partiam

para morar nas aldeias de verão do baixo Javaés e entrar na Ilha do Bananal pelo

Riozinho. Dòrè Taina significa “papagaio (dòrè) estrela (taina)”, pois antes havia

grande quantidade desse tipo de papagaio no lugar. No fim do século 19, o lugar

ficou conhecido como Barreira da Princesa. Como já foi dito antes, o etnógrafo

alemão Fritz Krause (1940b:149) menciona a “aldeia do chefe Walatá” que ele

encontrou na Barreira da Princesa em 1908, que na época era a aldeia mais

setentrional dos Karajá. E o antropólogo americano Tavener (1966) encontrou 23

Karajá morando em Barreira da Princesa em 1966, depois do que não há mais

registros sobre essa aldeia na literatura. Os mortos da aldeia eram enterrados no

famoso e antigo cemitério de Hãwarahedà.

13. Hirè Bero (margem oeste): antiga aldeia de inverno, situada em uma ilha do

Araguaia que não era totalmente inundada pelo rio, de onde os Karajá partiam

anualmente para morar nas aldeias de verão do baixo Javaés e entrar na Ilha do

Bananal pelo Riozinho. A ilha localizava-se em frente ao lugar conhecido como

Barreirinha, nome de uma fazenda que se instalou no local. Há registros sobre a

existência de moradores Karajá em Barreirinha até a década de 60, segundo dados

do SPI (Malcher, 1964). Atualmente não há ninguém morando no lugar. Os mortos

de Hirè Bero eram enterrados nos cemitérios de Hãwalora (Caseara), ao sul, e de

Hãwarahedà, ao norte.

14. Èhyho (margem oeste): aldeia de inverno muito antiga, de onde os Karajá partiam

para morar nas aldeias de verão do baixo Javaés e entrar na Ilha do Bananal pelo

Riozinho. Atualmente existe o povoado Barreira de Campo no lugar, fundado no

fim do século 19 sobre o sítio da aldeia Karajá. Depois de várias idas e vindas de

seus moradores no século 20, em razão de conflitos e mortes causadas por doenças,

a aldeia Èhyho foi extinta em 1971, quando a FUNAI transferiu os remanescentes

Karajá para a nova aldeia Santo Antônio (ao lado de Santa Maria das Barreiras).

Posteriormente, famílias Karajá de Lago Grande e outros lugares passaram a morar

no povoado, mas não mais reunidos na aldeia. Atualmente, quatro famílias Karajá,

com vínculos próximos de parentesco com os moradores Karajá de Lago Grande, e

com alguns cônjuges não-índios, moram dispersos no povoado e ainda mantêm o

antigo costume de pescar no Rio Javaés e Riozinho, dentro da porção norte da Ilha

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do Bananal. Os mortos de Èhyho eram enterrados na própria aldeia, onde ainda

existe um cemitério utilizado pelos Karajá até recentemente.

15. Hãwalora (margem leste): sítio de antiga aldeia Karajá onde atualmente existe a

cidade turística de Caseara, em Tocantins. Existe um grande cemitério Karajá perto

do porto fluvial de Caseara, atualmente cercado, onde eram enterrados os mortos de

várias aldeias vizinhas (Hirè Bero, Matukari Dò, Way). A aldeia foi extinta nos anos

40, aproximadamente, quando os não-índios se apropriaram do local.

16. Way: antiga e grande aldeia de inverno situada em uma ilha do Rio Araguaia, ao

norte de Caseara, conhecida como Praia do Norte, onde algumas famílias Karajá

moraram até 1963. No verão, as famílias se transferiam para uma praia situada na

margem direita do Araguaia, mas agora a paisagem local mudou bastante. Havia

muitos pés de jatobá em Way e agora não há ninguém morando na ilha. O grupo

tinha o hábito de pescar todos os anos no Rio Javaés, o que ainda se mantém entre

os remanescentes. Os mortos de Way eram enterrados no cemitério de Hãwalora

(Caseara). Com a morte de alguns velhos integrantes do grupo, em razão de doenças

desconhecias, atribuídas na época a feitiçaria, os antigos moradores se dispersaram

em dois grupos. Alguns subiram o Araguaia em direção à recém-fundada Macaúba,

onde vivem até hoje com seus descendentes, enquanto outros desceram o rio e

foram viver na aldeia liderada por Benta Tuahideru, prima de uma das mulheres de

Way, ao lado da atual Santa Maria das Barreiras. Conflitos entre os dois grupos,

porém, levaram os Karajá de Way a se mudarem para a praia em frente a Santa

Maria das Barreiras alguns anos depois. Então Manoel Quirino, o prefeito da

cidade, conhecida na época como Santana do Araguaia (e antes como Barreira de

Santana), ofereceu uma área aos Karajá a cerca de 10 km ao sul da cidade, às

margens do Rio Preto (Bisa Bero), afluente do Araguaia. Com o incentivo do SPI e

depois da FUNAI, o grupo de Way passou a morar na nova aldeia Santo Antônio em

1971. Pouco tempo depois, a FUNAI estimulou a transferência do pequeno grupo

Karajá de Barreira de Campo para a aldeia Santo Antônio (Terra Indígena Santana

do Araguaia), onde os remanescentes dos dois grupos e seus descendentes vivem até

hoje.

17. Matukari Dò: aldeia situada em uma ilha do Rio Araguaia, conhecida atualmente

como Ilha de Campo, ao sul da cidade de Santa Maria das Barreiras. Matukari Dò

significa “alimento de origem animal (dò) do homem velho (matukari)”.

Atualmente não há ninguém morando no lugar. A aldeia foi extinta nos anos 50 do

século passado, aproximadamente, em razão de epidemias desconhecidas. Os

mortos de Matukari Dò eram enterrados no cemitério de Hãwalora (Caseara), pois

não havia área seca nas proximidades da aldeia.

18. Hore Ijòti (margem oeste): antiga aldeia de inverno onde os Karajá moraram até a

virada para o século 20, aproximadamente, de onde se espalharam para outros

lugares depois que grande parte da população original morreu devido às novas

doenças. A aldeia situava-se onde hoje existe a cidade de Santa Maria das Barreiras,

que primeiramente era conhecida como Barreira de Santana, fundada no fim do

século 19, e posteriormente ficou conhecida como Santana do Araguaia. Os mortos

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de Hore Ijòti eram enterrados em um cemitério situado próximo da beira do rio, mas

que foi destruído pelos não-índios. O explorador francês Coudreau encontrou

famílias Karajá morando em Barreira de Santana em 1897. Atualmente existem

duas aldeias Karajá (Santo Antônio e Maranduba) nas proximidades de Santa Maria

das Barreiras. Os moradores de Maranduba são remanescentes ou descendentes dos

moradores originais de Hòrè Ijòti.

19. Weriòkò (margem oeste): antiga aldeia de inverno situada no Pará, a meio caminho

exato entre Araguacema (antigo presídio de Santa Maria) e Conceição do Araguaia,

e tida pelos Karajá como a mais setentrional das antigas aldeias fundadas em

tempos míticos. A aldeia se extinguiu nos anos 40, aproximadamente, em razão de

doenças desconhecidas que atingiram seus habitantes. Os sobreviventes se

dispersaram, subindo o Araguaia, e o local ficou conhecido como Furo de Pedra.

Em Weriòkò havia um cemitério onde foram enterrados parentes de alguns dos

Karajá que vivem atualmente em Lago Grande.

As aldeias listadas que continuaram a existir precariamente no século 20 o fizeram

com a população drasticamente reduzida em comparação às grandes e estáveis aldeias do

passado pré-colonial, que são mencionadas tanto pela memória oral Karajá quanto pelos

primeiros registros escritos do século 18. Como já foi dito, os Karajá estabilizaram a sua

população por volta do início do século 20, após mais de 300 anos tendo a população

dizimada tanto por conflitos diretos com os invasores do seu território quanto por doenças

para as quais não possuíam imunidade ou tratamentos adequados.

Atualmente, os Karajá originários dessas aldeias setentrionais e seus descendentes,

principalmente, são os que ainda mantêm vínculos com a Terra Indígena Utaria Wyhyna

(Karajá) / Iròdu Iràna (Javaé), ainda que concentrados, em sua maior parte, na aldeia

Macaúba. Como veremos no próximo item, os Karajá de todos os locais que ainda

permanecem habitados ao norte de Inỹsèdyna, incluindo as aldeias mais distantes do Pará,

ainda freqüentam a porção norte da Ilha do Bananal para pescar, a atividade principal, ou

caçar e coletar.

A história dos Karajá setentrionais no século 20 foi fortemente impactada pela

atuação dos missionários protestantes e do próprio órgão indigenista oficial (SPI e FUNAI),

que contribuiu decisivamente, em momentos diferentes, para que os Karajá abandonassem

seus antigos sítios de moradia e perdessem o controle sobre o seu território tradicional para

os vilarejos e as grandes fazendas que se instalaram no vale do Araguaia a partir dos anos

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60. Na mesma época, a destinação da porção centro-norte da Ilha do Bananal à proteção

ambiental, pelo Estado brasileiro, gerou intensos conflitos entre os órgãos estaduais e

federais de proteção ambiental e a população indígena, dificultando ainda mais a

manutenção da integridade do antigo território Karajá de ocupação tradicional3. O quadro a

seguir resume os dados sobre a época em que as antigas aldeias setentrionais foram

extintas:

Quadro n° 11 – Data de extinção das principais aldeias Karajá setentrionais de

ocupação imemorial

Aldeia Data de extinção

1. Inỹsèdyna Antes do século 20

2. Urà Hãwa (Ponta da Ilha) Década de 50 do século 20

3. Nana Birè (Morro de Areia) Década de 50 do século 20

4. Ètèhõry Hãwa (Furo de Pedra, MT) Década de 50 do século 20

5. Utaria Wyhyna Primeira metade do século 20

6. Tỹtè Ijò (Crisóstemo de Baixo) Década de 50 do século 20

7. Bidinaò Hãwa (Antônio Rosa) Década de 50 do século 20

8. Ijòrò Tòbò Hãwa Década de 50 do século 20

9. Rènõà Década de 90 do século 20

10. Wodo Antes do século 20

11. Hãwarahedà Antes do século 20

12. Dòrè Taina (Barreira da Princesa) Década de 60 do século 20

13. Hirè Bero (Barreirinha) Década de 60 do século 20

14. Èhyho (Barreira de Campo) 1971

15. Hãwalora (Caseara) Década de 40 do século 20

16. Way 1963

17. Matukari Dò Década de 50 do século 20

18. Hore Ijòti (Santa Maria das Barreiras) Início do século 20

19. Weriòkò (Furo de Pedra, PA) Década de 40 do século 20

3 Visitei pessoalmente todos os sítios das mais importantes aldeias antigas Karajá situados dentro ou nas

imediações da Terra Indígena Utaria Wyhyna (Karajá) / Iròdu Iràna (Javaé), cuja localização foi marcada

com o aparelho GPS. Apesar da tentativa, não foi possível alcançar o sítio da aldeia Wodo, pois o leito do Rio

das Mercês estava interrompido a certa altura e a viagem não pode ter continuidade. Meu principal guia foi

Marcos Uraura, com mais de 60 anos, nascido na antiga aldeia Bidinaò e pai do Cacique Malua, da aldeia

Macaúba (ver foto n° 17). Na viagem a Wodo, o guia Karajá foi Sawaru (ver Foto n° 31).

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2. A ocupação atual e separada na porção norte da Ilha do Bananal

– O lado Javaé

Como já foi dito, atualmente não há nenhuma aldeia Karajá ou Javaé na Terra

Indígena Utaria Wyhyna (Karajá) / Iròdu Iràna (Javaé) e não mais existem aldeias

habitadas conjuntamente pelos Javaé e Karajá. O lado Javaé da terra indígena, entretanto, é

ainda freqüentado, para variados fins, principalmente pelos Javaé da aldeia Boto Velho, a

aldeia Javaé mais setentrional (ver Mapa n° 2). A aldeia está localizada na Terra Indígena

Inãwébohona e nela moram atualmente 132 pessoas, segundo dados de 2007 da FUNASA

local. Assim como a aldeia Macaúba, dos Karajá, Boto Velho foi fundada nos anos 50 do

século passado sobre um antiqüíssimo sítio de ocupação imemorial, conhecido como

Inỹwèbohona, que estava abandonado há muito tempo e onde ocorreram importantes

episódios mítico-históricos. A seguir, transcrevo uma versão Javaé, colhida em Boto Velho,

da história muito conhecida que faz parte do corpus mítico Karajá e Javaé.

Há muito tempo atrás, os meninos que iam entrar pela primeira vez na Casa dos

Homens (os jyrè) ficavam na casa de suas respectivas mães durante o ritual de iniciação

masculina. Quando os worosỹ4 iam caçar, os jyrè tinham que ficar dentro da casa da mãe.

Mas uma das mães insistiu com teimosia para que seu filho contasse o modo como os

worosỹ arrumavam suas mãos e o filho, diante da incômoda insistência da mãe, revelou o

segredo masculino. Um velho que estava junto à fogueira ouviu a revelação e, como

naquele tempo as normas eram muito mais rígidas, ele foi atrás de Harabòbò5, que

naquele momento passava por dentro da aldeia carregando uma borduna e um facão ao

chegar de uma caçada com os worosỹ. O velho contou a Harabòbò que ainda há pouco o

segredo tinha sido contado e Harabòbò reagiu enfurecido perguntando: “então por que

4 Palavra que designa a coletividade masculina reunida em suas atividades rituais. Os worosỹ são os principais

protagonistas do ritual de iniciação masculina, que envolve caçadas rituais coletivas. 5 Harabòbò é o nome de um importante personagem no ritual de iniciação masculina. Ele lidera os worosỹ nas

caçadas rituais e representa a ordem sagrada, assumindo o papel de guardião da lei e dos segredos masculinos.

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você ainda está vivendo?!”. Ele começou cortando a cabeça do velho para iniciar a sua

vingança ou maldição contra a aldeia. Quando o grupo de worosỹ conhecido como ijoimỹ

ijoinadu acabou de chegar, Harabòbò contou o que havia ocorrido e eles resolveram

tomar uma atitude drástica.

Entre os homens havia dois irmãos que eram os mais valentes e os principais

lutadores. Eles se chamavam Ijaura e Tabuhana6, este último o irmão mais velho, e

valorizavam a tradição e os segredos da Casa dos Homens acima de tudo. Em razão do

acontecido, os dois resolveram amaldiçoar a aldeia, desejando que todo o povo morresse

amaldiçoado. Os dois cavaram três buracos na terra, de tamanhos diferentes, para

homens, mulheres e crianças, separadamente. O buraco dos homens era maior que os das

mulheres e crianças. Ijaura e Tabuhana falaram para todos os homens da aldeia que não

era para ter compaixão de suas mulheres e filhos, pois o mais importante eram as leis da

aldeia e a tradição. Os dois lutadores ordenaram que todas as canoas da aldeia fossem

soltas no rio e que todos os worosỹ ficassem ao redor da aldeia vigiando as pessoas para

que ninguém fugisse. Então eles colocaram lenha dentro dos buracos, ateando fogo, e

jogaram todas as pessoas lá dentro, uma de cada vez, começando pelas mulheres. Cada

vez que uma pessoa caía no buraco, a sua barriga estourava, e por isso o lugar ficou

conhecido desde então como Inỹwèbohona, “o lugar (na) onde estouraram as barrigas

(wèboho) das pessoas (inỹ)”.

Restaram apenas Ijaura e Tabuhana, que se entristeceram profundamente ao

perceber que não tinha mais ninguém vivo e que haviam matado seus próprios parentes.

Um perguntou ao outro o que seria deles e ambos decidiram que eles também deveriam

morrer, matando-se reciprocamente. Os dois irmãos ficaram frente a frente e celebraram a

despedida dançando ao redor do buraco. A música que cantaram dizia que eles eram muito

valentes e bravos. Um flechou o outro e os dois morreram, tendo fim a aldeia.

Havia, no entanto, dois cunhados que tinham saído para buscar filhotes de arara

quando houve esse conflito na aldeia. Depois de uma semana, os dois rapazes retornaram

ao local e não encontraram mais ninguém. Os dois imaginaram que algo muito grave

havia ocorrido por causa da revelação dos segredos masculinos e continuaram vivendo no

6 Ijaura (ou Ijahura) era conhecido também como Ijòbyra, enquanto Tabuhana era conhecido também como

Ijaburi.

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lugar sozinhos, sem mulheres ou crianças. Um dia foram pescar e, a uma certa distância

da aldeia, escutaram o barulho de alguém socando algo no pilão. Quando retornaram à

aldeia, encontraram uma refeição (iweru e ibòbesè) pronta. Espantados, os dois

indagaram um ao outro se alguém tinha sobrevivido ou se teria algum “espírito” no lugar.

No dia seguinte foram pescar de novo e novamente encontraram a comida preparada. No

terceiro dia, eles combinaram que iam flagrar o autor das refeições assim que escutassem

o barulho do pilão. Até hoje as casas têm duas portas, uma virada para o mato e outra

para o rio. Os rapazes combinaram que um ia entrar pela porta da frente (a do rio) e outro

pela de trás (a do mato), ao mesmo tempo, para descobrir o que estava acontecendo.

Assim que entraram na casa, os dois cunhados viram atônitos duas belas moças

cozinhando. Ao serem indagadas sobre sua identidade, elas responderam que eram

periquitos (biri) que se transformaram em humanos. Então os dois rapazes se casaram com

as duas moças e assim o povo Inỹ recomeçou novamente.

Por causa dessa história, até hoje existem os três buracos onde as barrigas

explodiram, a cerca de 100 ou 200 metros de Boto Velho, que são um dos lugares sagrados

de visitação dos Javaé.

Nos anos 40 do século passado, cerca de 12 famílias fundaram uma aldeia no lugar

conhecido como Kòtxisakò (atual Barreira da Cruz, ver foto n° 32), junto à foz do Rio

Formoso do Araguaia, o mais importante afluente da margem direita do Rio Javaés.

Algumas das famílias, lideradas por João Wataju, eram de sobreviventes de uma epidemia

de catapora em Karalu Hãwa (no Lago da Pataca), adquirida durante visita de trocas ao

posto do SPI na aldeia Karajá Santa Isabel. Wataju convidou para a nova empreitada a

família de sua prima, que estava morando há algum tempo com o marido Kurumarè e

outros parentes na aldeia Kuira Hãwa, famoso ponto de encontro para expedições de pesca

na região do Rio Loroti. A sua prima era originária da região do Bèdèky e estava casada

com Kurumarè, originário da aldeia Marani Hãwa. Temeroso após a chegada dos primeiros

fazendeiros ao Loroti, onde seria instalada a Fazenda Capão de Coco, o grupo aceitou o

convite de Wataju e, juntos, mudaram-se para Kòtxisakò. Antes de se instalarem no novo

lugar, os sobreviventes das epidemias em Karalu Hãwa moraram em dois outros locais à

beira do Rio Javaés.

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No fim dos anos 50, depois que o SPI convenceu alguns dos moradores de

Kòtxisakò a se transferirem para Canoanã, entre eles João Wataju, o grupo restante,

liderado por Kurumarè, mudou-se para Hòròtoro Hãwa, nome original do lugar situado a

cerca de dois quilômetros rio acima, mas do lado da Ilha do Bananal. A mudança ocorreu

também em razão de conflitos com os não-índios da margem direita do Rio Javaés. Em

Hòròtoro Hãwa foi fundada a atual aldeia Boto Velho, situada a cerca de 100 ou 200

metros do sítio Inỹwèbohona, palco do importante episódio mítico que deu o nome à atual

Terra Indígena Inãwébohona.

Ainda em meados dos anos 40, a aldeia Syrahakỹ, no Lago Ananás, também foi

atingida por uma grande epidemia e seus sobreviventes dirigiram-se para uma das aldeias

do Riozinho e, depois, para Boto Velho. Anos depois, na década de 60, moradores de

Wariwari e Txukòdè mudaram-se para a aldeia Boto Velho, que também abrigou outros

remanescentes das pequenas aldeias interioranas setentrionais, como Wararèkona, no Lago

do Mamão. Na versão recolhida por Toral (1999:90) a respeito da formação da aldeia Boto

Velho, o autor ouviu de um de seus moradores atuais que, na época das epidemias, “morria

gente de manhã, ao meio-dia, de tarde e à noite. Enterrar os mortos tornava-se quase

impossível. Aldeias inteiras foram praticamente extintas”. A aldeia chegou a ter apenas 40

remanescentes de vários locais em 1965 (1999:88).

Como já foi narrado antes, Toral (1981, 1983) relata pressões do SPI nos anos 60 e

da FUNAI, no início dos anos 70, para que os Javaé de várias aldeias, inclusive os de Boto

Velho, se concentrassem na aldeia Canoanã. Segundo o autor, parte dos moradores de Boto

Velho se mudou para Canoanã temporariamente em 1973, retornando ao local de origem

em 1979. Mas alguns Javaé continuaram morando na aldeia, que nunca foi abandonada

desde a sua fundação e cuja população cresceu gradualmente. Desde 1980, os moradores de

Boto Velho viveram um processo histórico diferenciado em relação aos Javaé centrais e

meridionais no que se refere ao reconhecimento oficial da terra indígena, o que ocorreu

tanto por diferenças internas (aldeia mais distante e constituída por remanescentes de outras

micro-regiões) quanto externas (sobreposição de uma área de proteção ambiental sobre seu

território pelo Estado). Em 2002, devido a conflitos internos, um grupo de cerca de 30

pessoas partiu de Boto Velho e fundou a aldeia Boa Esperança.

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A aldeia Boto Velho é a aldeia Javaé mais próxima do limite sul da Terra Indígena

Utaria Wyhyna (Karajá) / Iròdu Iràna (Javaé), sendo, portanto, a principal aldeia de onde

partem os Javaé que pescam na área do Parque Nacional do Araguaia, apesar dos conflitos

históricos com os órgãos ambientais (ver fotos anexas). Toda a porção norte da Ilha do

Bananal, a leste do Riozinho, é considerada pelos Javaé como parte da micro-região

controlada pelos moradores de Boto Velho. A área dentro da ilha é delimitada ao norte,

portanto, pela foz do Riozinho (Wabe Bero ijò), mas os Javaé controlam também toda a

margem do Rio Javaés até a sua foz, na ponta norte da Ilha do Bananal (ver Mapa n° 2 e n°

5) O limite sul é a boca do Lago Hãjutoro, conhecido regionalmente como Canto de Lama,

que cai no Rio Javaés e está situado na Terra Indígena Inãwèbohona. O Lago Hãjutoro não

se confunde com o Rio Hãjutoro, afluente do Riozinho. A aldeia não tem posto indígena,

mas é atendida pela AER da FUNAI de Gurupi (TO) e pela Base de Apoio da FUNASA de

Lagoa da Confusão (TO).

Atualmente há pouquíssimos remanescentes vivos das antigas aldeias do baixo

Javaés e do baixo Riozinho, os quais se encontram espalhados nas aldeias Javaé. Os

sobreviventes da célebre Iròdu Iràna mudaram-se para a aldeia Hautekỹ Hãwa, na região

do Loroti, em meados do século passado, mas novamente foram atingidos por doenças

desconhecidas, como a catapora e o sarampo, morrendo quase todos. Da aldeia Bòròrèwa

existe apenas uma velha mulher Karajá, que mora em Macaúba. Mas seus descendentes, em

maior número, e todo o povo Javaé, conforme reunião realizada com os caciques e

lideranças de todas as aldeias em Canoanã, reconhecem plenamente as terras a leste do

Riozinho na porção norte da Ilha do Bananal como território de ocupação tradicional

imprescindível à sua reprodução física e cultural.

– O lado Karajá

Atualmente não existe nenhuma aldeia Karajá na Terra Indígena Utaria Wyhyna

(Karajá) / Iròdu Iràna (Javaé), mas esta é ainda freqüentada, para variados fins, pelos

Karajá de diversas aldeias, especialmente os Karajá setentrionais, que moram nas aldeias

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Macaúba e Ibutuna, no povoado Lago Grande, na cidade de Barreira de Campo e nas

aldeias Santo Antônio e Maranduba (ver Mapa n° 2 e fotos anexas). Mas os moradores de

aldeias mais distantes, como Itxala, mais ao sul, também pescam ocasionalmente na ponta

norte da Ilha do Bananal.

Quadro n° 12 – Os Karajá que freqüentam a Terra Indígena Utaria Wyhyna (Karajá)

/ Iròdu Iràna (Javaé) atualmente

Local de origem Localização População (2007)7

Aldeia Macaúba Ilha do Bananal, Parque Indígena do

Araguaia, sudoeste de Tocantins.

393

Aldeia Ibutuna Ilha do Bananal, Parque Indígena do

Araguaia, sudoeste de Tocantins.

63

Povoado Lago Grande

(Renõà)

Margem oeste do Araguaia, extremo

nordeste do Mato Grosso.

21

Cidade Barreira de Campo

(Èhyho)

Margem oeste do Araguaia, extremo

sudeste do Pará.

14

Aldeia Santo Antônio Margem oeste do Araguaia, Terra

Indígena Santana do Araguaia, extremo

sudeste do Pará.

47

Aldeia Maranduba Margem oeste do Araguaia, Terra

Indígena Maranduba, extremo sudeste

do Pará.

33

Total 571

No que se refere ao tempo de permanência dos Karajá nos locais mencionados, a

aldeia Macaúba (Hèryri Hãwa) foi fundada em 1956, como já foi dito antes, no

antiqüíssimo sítio Karajá de Bèdu Hãwa, onde existiu uma aldeia no tempo do herói

Teribrè. Nos anos 50 já não havia mais ninguém morando em Bèdu Hãwa há centenas de

anos e o fim mítico-histórico da aldeia, tomada por uma grande inundação, foi narrado no

item sobre a mitologia. Já foi dito também que, na década de 50 do século passado, a

Missão Evangélica Novas Tribos, de origem norte-americana, chegou ao Araguaia e

convenceu os Karajá das pequenas aldeias setentrionais, cuja população já estava bastante

7 Os dados sobre a população Karajá que vive em Lago Grande e Barreira de Campo provêm da minha

pesquisa de campo e foram colhidos em junho de 2007. O restante provém dos dados da FUNASA (dezembro

de 2007), que em seus quadros estatísticos inclui os Karajá de Barreira de Campo na população de Lago

Grande. Segundo meus dados de campo, porém, obtidos junto ao Posto Indígena Santana do Araguaia,

existem 102 pessoas morando nas aldeias Santo Antônio e Maranduba, entre índios e não-índios, ao invés das

80 computadas pela FUNASA.

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reduzida em função das epidemias, a se transferirem definitivamente para o sítio

abandonado de Bèdu Hãwa, surgindo então a aldeia Macaúba (ver fotos anexas).

Um pouco antes, no fim dos anos 40 ou início dos anos 50, o SPI havia tentado

concentrar os Karajá setentrionais na aldeia Bidinaò Hãwa (Antônio Rosa), estimulando a

plantação de roças, o que não teve sucesso, pois logo a seguir seus habitantes se dispersam.

O SPI levou o cacique da aldeia para fazer tratamento de saúde em Aruanã e, depois disso,

nunca mais voltou a atuar entre os Karajá de Bidinaò. Os moradores de Ijòrò Tòbò Hãwa

mudaram-se para Bidinaò, que dois ou três anos depois se extinguiu. A seguir, seus

moradores foram para Lago Grande e, depois, para Tỹtè Ijò (Crisóstemo de Baixo), de onde

foram convidados pelos missionários protestantes a se mudarem para a nova Macaúba.

O antropólogo Christopher J. Tavener (1966) ouviu dos Karajá em 1966 que a maior

parte dos moradores de Macaúba veio das aldeias “Furo de Pedra” (Ètèhõry Hãwa) e

“Antônio Rosa” (Bidinaò Hãwa), que se extinguiram em meados dos anos 50 após a morte

do Cacique Antônio Rosa, e da aldeia de “Barreira da Princesa” (Dòrè Taina), aos quais se

juntaram alguns Javaé. Ouviu também que outros Karajá das aldeias setentrionais teriam se

mudado para aldeias mais ao sul, em lugares como o Posto Heloísa Torres, a aldeia Karajá

“Ponta da Ilha” (Urà Hãwa), Fontoura e outras aldeias mais meridionais. Alguns deles,

ainda, teriam se mudado para mais ao norte, como o povoado de Lago Grande e Barreira de

Santana (atual Santa Maria das Barreiras).

Em 2007, ouvi dos Karajá de Macaúba que os missionários Oto e Tomé disseram

aos Karajá setentrionais que queriam “trabalhar” com os índios. Na época, anos 50, Zé

Grande Belèhiru era o ixỹwèdu (cacique ou capitão) de Tỹtè Ijò (Crisóstemo de Baixo),

embora tivesse chegado à aldeia junto com o grupo que veio de Lago Grande. Os

missionários conversaram com Zé Grande e fizeram reunião com a comunidade de Tỹtè Ijò,

propondo a mudança e que os próprios Karajá escolhessem o novo local para fundação da

missão evangélica. O cacique Zé Grande Belèhiru foi então o responsável por escolher o

sítio da nova aldeia, para onde os moradores de Tỹtè Ijò mudaram-se em 1956, ficando

conhecido como o hãwa wèdu (“dono da aldeia”, ou seja, o fundador) de Macaúba. Os

pertences dos moradores, que somavam poucas famílias, foram trazidos pelos missionários

em um barco a motor. Os missionários plantaram roças fartas em Macaúba, com muita

batata, inhame, banana, cana, entre outros produtos agrícolas, e davam assistência à saúde.

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Oto e Tomé convidaram depois os moradores das outras aldeias da região para se

mudarem para Macaúba. Além de Tỹtè Ijò (Crisóstemo de Baixo), os missionários

conversaram com os Karajá de Ètèhõry Hãwa (Furo de Pedra), Urà Hãwa (Ponta da Ilha),

Nana Birè (Morro de Areia), Renõà (Lago Grande) e Hirè Bero (Barreirinha), os quais, em

sua grande maioria, aceitaram se transferir para a aldeia recém-fundada. Alguns do grupo

de Hirè Bero, no entanto, não gostaram do novo local e voltaram para o seu lugar de

origem. As antigas aldeias Karajá setentrionais do Mato Grosso tiveram fim nessa época,

pois nunca mais seus moradores retornaram aos lugares de origem, que foram ocupados

logo a seguir pelas frentes de expansão nacionais. Entretanto, apesar de aglomerados em

Macaúba, em sua maioria, os Karajá setentrionais ainda mantêm importantes vínculos com

o território de origem, em especial com a porção norte da Ilha do Bananal. A área a oeste

do Riozinho, dentro do Parque Nacional do Araguaia, é freqüentada por todos os Karajá

setentrionais, a despeito dos conflitos históricos com os órgãos ambientais.

O limite norte da micro-região tradicionalmente controlada pelos moradores de

Macaúba na Ilha do Bananal é uma praia do Araguaia conhecida como Hỹtana tòla kỹnỹra,

“praia (kỹnỹra) junto à boca de lago (tòla) chamada Jacu-Cigano (Hỹtana)”. A praia está na

margem direita do Araguaia, na área do Parque Nacional do Araguaia, um pouco ao sul do

povoado de Lago Grande. Mas os moradores de Macaúba reivindicam o direito de uso de

toda a ponta norte da ilha, a oeste do Riozinho, em seus conflitos com os Karajá de Lago

Grande (ver Mapa n° 2). Ao sul de Macaúba, o Lago do Krumarè (Tòlahakỹ) é o limite

consensual dentro da Ilha do Bananal entre as micro-regiões da aldeia Macaúba e da aldeia

Fontoura. A oeste, a área é limitada pelo Rio Araguaia e, a leste, pelo Riozinho, que corta o

interior da Ilha do Bananal no seu sentido longitudinal. Como já foi dito, em 2007, um

grupo originário de Macaúba fundou a aldeia Ibutuna, ao lado da primeira, por causa de

conflitos internos. As aldeias Macaúba e Ibutuna estão dentro da Terra Indígena Parque do

Araguaia e estão incluídas na área de atuação da AER da FUNAI de São Félix do Araguaia

(MT) e do Pólo Base da FUNASA de Santa Terezinha (MT).

A história da aldeia Rènõà já foi contada no capítulo anterior, lembrando aqui que o

vilarejo Lago Grande foi fundado, no início do século 20, junto aos Karajá da aldeia Rènõà

de inverno, em frente a uma das suas respectivas aldeias de verão. Apesar dos diferentes

impactos provocados pelos moradores não-índios, incluindo a interferência dos

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missionários evangélicos nos anos 50, os Karajá nunca abandonaram o lugar, seja residindo

separadamente na aldeia, vizinha a Lago Grande, seja residindo misturados aos não-índios

do povoado mais recentemente (ver foto n° 23). Atualmente, os Karajá de Lago Grande

continuam praticando atividades econômicas – em especial a pescaria para subsistência e

para a comercialização – na porção norte da Ilha do Bananal, cujas terras se tornaram

imprescindíveis à sua reprodução física, uma vez que as terras da margem esquerda do

Araguaia e os seus inúmeros lagos estão em sua maior parte sob o controle de grandes

fazendas. O grupo reivindica da FUNAI o reconhecimento oficial de uma terra indígena na

região da antiga aldeia Rènõà. Os Karajá de Lago Grande estão incluídos na área de

atuação da AER da FUNAI de São Félix do Araguaia (MT) e do Pólo Base da FUNASA de

Santa Terezinha (MT).

A pequena cidade de Barreira de Campo, fundada no fim do século 19, está

localizada sobre Èhyho, sítio de ocupação imemorial Karajá onde ainda vive um reduzido

grupo Karajá (ver foto n° 24). Por volta de 1971, a FUNAI convenceu a família Karajá que

morava na aldeia Èhyho a se juntar ao grupo de Way – cujos remanescentes moravam desde

1963 nas vizinhanças da atual Santa Maria das Barreiras – na nova aldeia Santo Antônio.

As duas aldeias de ocupação imemorial foram abandonadas definitivamente, mas algum

tempo depois os Karajá de outros lugares, em especial de Lago Grande, passaram a morar

em Barreira de Campo. Desta vez, no entanto, os Karajá não mais se reuniram em uma

aldeia e passaram a morar precariamente, dispersos em casas alugadas pelos não-índios ou

em casas populares doadas pelo governo para seus cônjuges não-índios. O atual grupo

residente em Barreira de Campo, cujos integrantes são casados com não-índios, em boa

parte dos casos, tem ligações históricas e de parentesco com os Karajá de Lago Grande e

também se utiliza principalmente da porção norte da Ilha do Bananal para a sobrevivência

econômica, mantendo o costume de seus antepassados distantes8. O grupo não é atendido

pela FUNASA nem pela FUNAI, não tem áreas para o plantio de roças e depende

exclusivamente da cada vez mais difícil pescaria comercial para a sobrevivência.

Atualmente está nos planos do grupo se mudar para Lago Grande caso a FUNAI demarque

uma área na região.

8 Durante a minha visita a Barreira de Campo, encontrei apenas uma jovem mulher Karajá, de quem obtive

informações limitadas, pois o restante do grupo estava viajando em uma temporada de pescaria.

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Por fim, existem as distantes aldeias Karajá Santo Antônio e Maranduba, no Pará,

cujos moradores viajam quase todos os anos – na época do verão – para pescar no norte da

Ilha do Bananal na tentativa de encontrar os peixes e tartarugas que agora são raros nas

proximidades das aldeias. As longas viagens mantêm o antigo padrão de alternância nas

estações, mas não são mais tão freqüentes por causa do alto custo com combustível, porque

poucas pessoas nas duas comunidades possuem barcos a motor e porque os Karajá temem a

atuação dos fiscais do IBAMA instalados na Barreira da Princesa, que reprimem a pesca de

pirarucu e tartarugas. Ainda são feitas viagens a remo também, o que toma considerável

tempo. As duas aldeias têm origem bastante diferente e foram fundadas no século 20 nas

proximidades da atual cidade de Santa Maria das Barreiras, vilarejo fundado no fim do

século 19 sobre o sítio da antiga aldeia Karajá Hore Ijòti e batizado originariamente com o

nome de Barreira de Santana. Entre os anos 50 e 80 do século passado, o povoado teve seu

nome modificado para Santana do Araguaia e, posteriormente, para o atual Santa Maria das

Barreiras.

A aldeia Maranduba situa-se às margens do Rio Araguaia, bem ao lado (norte) da

cidade de Santa Maria das Barreiras. Seus moradores descendem de Benta Tuahideru, uma

mulher de mais de 100 anos, nascida em Hore Ijòti, aldeia que deixou de existir no início

do século 20 (ver foto n° 26). Tuahideru e sua família continuaram morando ao lado de

Barreira de Santana depois que os outros membros do grupo morreram por doenças ou se

dispersaram, abandonando a antiga aldeia. Segundo lembram os Karajá de Maranduba, o

prefeito Manoel Quirino doou a terra ao lado do povoado para os Karajá no fim dos anos 60

ou início dos anos 70, aproximadamente. Pouco tempo depois, a FUNAI pressionou o

grupo para que se juntasse aos Karajá de Barreira de Campo e Way, que foram convencidos

pelo órgão indigenista, em 1971, a se transferirem para um único lugar, a nova aldeia Santo

Antônio, ao sul de Santa Maria das Barreiras. Benta Tuahideru, no entanto, resistiu às

pressões e permaneceu com sua família no lugar atual. O prefeito local também tentou

convencer o grupo, sem sucesso, a se mudar para Santo Antônio. Em 1999, após anos de

reivindicações, a FUNAI enviou um grupo de trabalho à área, o que resultou na

identificação antropológica da Terra Indígena Maranduba, ainda em processo de

regularização fundiária.

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A aldeia Santo Antônio (Terra Indígena Santana do Araguaia), por sua vez, está

situada a cerca de 10 km ao sul de Santa Maria das Barreiras, às margens do Bisa Bero

(“Rio das Araras”), afluente do Araguaia conhecido regionalmente como Rio Preto (ver

fotos n° 27 e n° 28). Como já foi dito, na virada dos anos 60 para os anos 70, o SPI e depois

a FUNAI iniciaram um movimento de transferência dos pequenos grupos que viviam em

Way e Èhyho (Barreira de Campo) para a nova aldeia Santo Antônio. As duas aldeias

tradicionais dos Karajá setentrionais foram extintas definitivamente e alguns de seus

moradores passaram a viver espalhados nas cidades próximas e outros em Santo Antônio,

aldeia fundada em 1971. Com a justificativa etnocêntrica de que “os Karajá não tinham

lugar certo para morar”, em razão de seu padrão de alternância sazonal de aldeias, o próprio

SPI escolheu o novo lugar de moradia. Os habitantes originais de Èhyho permanecem em

Santo Antônio até hoje, enquanto os de Way mudaram-se em 1980 para aldeias Javaé,

retornando em 2007 para Santo Antônio. A Terra Indígena Santana do Araguaia foi

demarcada e homologada nos anos 80, depois de uma mobilização do grupo, mas

atualmente os Karajá reivindicam a identificação de uma área que ficou fora da demarcação

e de uma grande ilha no Araguaia, chamada Nõhõtikyrana (ou Ilha do Batata, pelos

regionais), utilizada pela comunidade para atividades de subsistência.

Como os atuais moradores de Santo Antônio são originários das tradicionais aldeias

setentrionais Èhyho e Way, que historicamente mantinham ligação com o baixo Javaés e a

porção norte da Ilha do Bananal, tal ligação secular ainda se mantém. Mesmo em face das

restrições impostas pela situação de contato com a sociedade nacional, o grupo ainda

acampa e pesca anualmente tanto no baixo Javaés quanto no interior da Ilha do Bananal, ao

qual têm acesso pela foz do Rio das Mercês ou pela foz do Riozinho. Os Karajá de Santo

Antônio têm uma relação mais forte e presente com a Ilha do Bananal do que os Karajá de

Maranduba. No que se refere à relação entre os dois grupos, os Karajá de Santo Antônio e

Maranduba não cultivam vínculos entre si, apesar da proximidade espacial, devido a

conflitos entre o grupo de Way e o de Maranduba originados na década de 60. As aldeias

Santo Antônio e Maranduba são atendidas pelo Posto Indígena Santana do Araguaia,

instalado em Santa Maria das Barreiras e vinculado à distante AER da FUNAI de

Araguaína (TO), e pelo Pólo Base da FUNASA de Santa Fé do Araguaia (TO).

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Conforme reuniões realizadas em todas as aldeias Karajá (com exceção de Aruanã),

ficou claro que todo o povo Karajá reconhece plenamente as terras a oeste do Riozinho na

porção norte da Ilha do Bananal como território de ocupação tradicional imprescindível à

reprodução física e cultural dos Karajá setentrionais.

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3. Critérios de ocupação territorial

Os principais critérios dos povos Karajá e Javaé para “localização, construção e

permanência” (Portaria n° 14, de 9.6.96, do Ministério da Justiça) das aldeias relacionam-se

intimamente com o regime anual de inundações periódicas do vale do Araguaia e com a sua

condição de tradicionais agricultores e pescadores. Como já foi exposto, o Araguaia e seus

afluentes inundam grandes extensões de terra durante meses seguidos na estação chuvosa,

que vai de outubro a abril, aproximadamente, e é conhecida regionalmente como “inverno”,

época em que o rio começa a encher gradualmente até atingir o ápice por volta de março ou

abril. O “verão” se inicia em maio, aproximadamente, época em que a chuva cessa e o rio

começa a esvaziar gradativamente, atingindo o ápice da seca por volta de setembro. Os

Karajá e Javaé concebem o ciclo anual em termos da oposição básica entre a estação

chuvosa (bèora), associada ao rio cheio, e a estação seca (wyra), associada às praias

fluviais. As estações do ano, segundo os Javaé e descritas em maiores detalhes a seguir, são

pensadas como uma espécie de continuum circular, uma vez que o fim de um ciclo é

sempre o início de outro9:

Bèora tỹmỹra ou Berira tỹmỹra: “nova (tỹmỹra) enchente (bèora)” ou “água

começando a andar”, expressões que se referem ao início da estação chuvosa,

quando o rio começa a encher, por volta de fim de novembro e dezembro.

Bèora: “embaixo (ora) da água (bèè)”, expressão que se refere ao tempo do rio

cheio, por volta de janeiro e fevereiro.

Bèora tya: “meio ou auge (tya) das águas (bèè)”, expressão que se refere ao ápice da

enchente, por volta de março.

Bèè rytynỹra: “água (bèè) deslizou (rytynỹra)”, expressão que se refere ao tempo

em que a água começa a descer ou “cair”, por volta de fins de abril e início de maio.

Bèè rukỹmỹ ou bèè rukỹra: “água (bèè) secou (rukỹmỹ)”, expressão que se refere ao

tempo em que a água desce bastante e começam a aparecer as primeiras praias, por

volta de fins de maio e junho.

Behetximỹ: “água parada, sozinha ou solitária”, expressão que se refere ao tempo de

transição entre o inverno e o verão, por volta de julho. Behetxi é “ponte” ou

“transição”.

9 Ver Donahue (1982), Toral (1992), Lima Filho (1994) e Pétesch (2000) sobre o calendário Karajá, que em

termos gerais é muito parecido.

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Wyra tỹmỹra: “começo (tỹmỹra) do tempo seco (wyra)”, expressão que se refere ao

início do verão, o tempo em que as tracajás botam seus ovos nas praias, por volta do

fim de julho e início de agosto.

Wyra: “seca”, expressão que se refere ao tempo do verão, quando os ipês ficam

amarelos e nascem os filhotes de tracajá, por volta do início de setembro.

Wyra tya: “meio ou auge (tya) da seca (wyra)”, expressão que se refere ao ápice da

seca, quando as tartarugas começam a desovar, por volta de fins de setembro ou

início de outubro.

Behetximỹ: “água parada, sozinha ou solitária”, expressão que se repete e se refere

ao período de transição, agora, entre o verão e o inverno, por volta de fim de

outubro e início de novembro.

As aldeias estão ainda e estavam instaladas historicamente nos poucos lugares a

salvo das enchentes, que agora são ocupados e disputados por vilarejos, cidades e sedes de

fazendas. Até a metade do século 20, pelo menos, os dois grupos mantinham um padrão

territorial de alternância entre as aldeias de inverno ou da estação cheia, situadas em lugares

mais altos e secos, e as aldeias de verão ou da estação seca, situadas nas praias que surgem

nos rios à medida que a água vai secando10

. Porém, como veremos a seguir, a alternância

sazonal de aldeias fazia parte de um padrão territorial mais profundo de sedentarismo.

Um critério histórico fundamental para a construção de aldeias, como já foi

observado por Toral (1992, 1999) e Pétesch (2000), é a proximidade de importantes cursos

d’água ricos em peixes e tartarugas, base da dieta alimentar. Os Karajá são, antes de tudo,

exímios pescadores e senhores das águas, dando menor ênfase às habilidades cinegéticas ou

ao consumo de caça, como foi exaustivamente registrado pelos pesquisadores, funcionários

do governo, viajantes ou escritores que estiveram em suas aldeias11

, além de serem

habitantes das margens de cursos d’água. Uma análise da localização dos sítios das antigas

aldeias Karajá mostra que grande parte delas estava situada, quando era possível, levando-

se em consideração as enchentes, junto ou nas proximidades da foz dos rios ou bocas de

lagos que se emendam ao Rio Araguaia em ambas as margens. Isso era especialmente

válido no caso dos Karajá setentrionais. Como já disse Toral (1992), antes havia aldeias

10

Ver Ehrenreich (1948), Krause (1940a, 1940b, 1941b), Baldus (1970), Tavener (1966, 1973), Donahue

(1982), Toral (1992, 1999), Pétesch, (2000). 11

Ehrenreich (1948), Krause (1940-1944), Ribeiro da Silva (1935), Lipkind (1948), Schultz (1953), Aureli

(1962a, 1962b, 1963), Tavener (1973), Bueno (1975, 1987), Fénelon Costa (1978), Bandeira de Mello (1982),

Donahue (1982), Toral (1999), Pétesch (2000).

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Karajá também nas margens de lagos e rios piscosos da porção oeste e noroeste da Ilha do

Bananal e não apenas nas margens do Araguaia.

O mesmo pode ser dito dos Javaé. As aldeias das margens do Rio Javaés também se

localizavam, em sua maioria, junto ou nas proximidades da foz de importantes rios ou

bocas de lagos que se emendam ao Rio Javaés em suas duas margens. As aldeias

interioranas, por sua vez, estavam sempre às margens do Riozinho e de seus afluentes ou de

importantes e grandes lagos centrais extremamente piscosos (ver Toral, 1999). Tal

preferência se repetia nas aldeias a leste da Ilha do Bananal, que se situavam às margens de

lagos ou dos afluentes da margem direita do Rio Javaés, em especial os rios Loroti e

Formoso do Araguaia, ricos em recursos aquáticos. Em seu relatório etno-ambiental sobre a

Terra Indígena Inãwébohona, o biólogo Costa Júnior (1999:31) considera que os principais

fatores “levados em consideração para o estabelecimento das aldeias Javaé” são a “presença

de áreas não alagáveis, fundamentais para o estabelecimento de aldeias, roças e

cemitérios”, e “a proximidade de um dos corpos d’água permanentes”, tanto em razão do

transporte fluvial quanto da proximidade de recursos pesqueiros.

A pesca também era e é a maior fonte de alimentação dos Javaé, não

correspondendo à realidade a imagem que os Karajá, segundo Pétesch (2000), fazem dos

Javaé como mais voltados ao consumo de animais terrestres ou como moradores distantes

dos cursos d’água, ou seja, distantes do Araguaia. Costa Júnior (1999:32) mostra o “uso da

biodiversidade” pelos Javaé de Boto Velho: 45,90% do que é utilizado vem da pesca,

enquanto 25% vem da caça, 21,6% da coleta e 7,4% da agricultura. O autor descreve em

maiores detalhes o uso do território em função da pesca, que teria “uma posição singular no

campo sócio econômico e religioso” (1999:37) do grupo, e argumenta que “a caça é uma

atividade praticada de maneira periférica” (1999:69), embora a proximidade de tipos de

vegetação propícios à caça, como a Mata do Mamão, ou à coleta, também era levada em

consideração para a ocupação territorial.

A alternância entre aldeias de inverno e de verão também estava relacionada com os

padrões de subsistência mais adequados às características ambientais próprias do

Araguaia12

. Na estação cheia, quando os peixes se dispersam pelas imensas áreas

inundadas, sendo mais difícil a sua captura, a caça e os produtos agrícolas, que são

12

Ver Donahue (1982), Toral (1992, 1999), Lima Filho (1994), Pétesch (2000).

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plantados no início das chuvas, adquirem uma maior importância econômica e no próprio

calendário ritual. Nessa época, em que tradicionalmente a população fica mais concentrada

nas aldeias, é realizado até hoje o ritual de iniciação masculina (Hetohokỹ), uma espécie de

ápice do ciclo ritual anual, em que tem destaque o consumo de produtos agrícolas e de

animais de caça13

. Os Karajá e Javaé dão muito mais ênfase à pescaria e atualmente a caça

em algumas áreas é bem mais difícil de ser encontrada que no passado, mas ainda mantêm

o costume, embora não com a mesma regularidade, de realizar caçadas coletivas na estação

cheia, quando os animais, em especial o porco queixada, também estão concentrados nos

poucos capões de mato que se mantêm secos.

A pescaria é a principal fonte de alimentação dos Karajá e Javaé e é praticada o ano

inteiro, inclusive para fins comerciais, mas é uma atividade de maior rendimento na estação

seca, entre maio e outubro, quando os peixes estão concentrados nos inúmeros lagos,

principalmente, e afluentes da bacia do Araguaia. Por essa razão, tradicionalmente, famílias

inteiras das aldeias de inverno transferiam-se para as móveis aldeias de verão, instaladas

nas praias, onde a vida ritual coletiva adquiria menor importância e de onde poderiam

atingir com mais facilidade os lugares onde os peixes e tartarugas estavam concentrados.

Os Karajá se dispersavam nas praias também para fugir dos ataques dos grupos indígenas

vizinhos hostis, como os Kayapó e Xavante, que chegavam às margens do Araguaia

durante a seca. A perícia na arte de nadar e remar é invocada como o principal recurso de

defesa dos Karajá contra os ataques dos inimigos que tinham dificuldade em se locomover

na água. Assim como os Karajá em relação às praias do Araguaia, famílias Javaé

costumavam mudar-se no verão para temporadas de pesca nos lagos e rios da Ilha do

Bananal e arredores, acampando nas praias que surgem com a seca.

É importante ressaltar que, apesar do padrão de alternância territorial entre aldeias

fixas de inverno e acampamentos de verão, não se pode caracterizar os antepassados dos

atuais Karajá e Javaé como povos nômades. Embora os etnógrafos dos Karajá tendam a

enfatizar a grande mobilidade de pequenos grupos ao longo do Araguaia desde o século 19

13

O Hetohokỹ Karajá nunca foi interrompido, mas o ritual é revivido há vários anos apenas nas grandes

aldeias, como Santa Isabel, Fontoura e Macaúba. O Hetohokỹ Javaé, que era realizado quase todos os anos,

em todas as aldeias, teve sua continuidade interrompida por muitos anos após o contato, tendo sido realizado

apenas seis vezes entre a década de 50 e 90, somente em Canoanã. Dos anos de 1991 até agora (2008), com a

escolha de um novo chefe ritual, os Javaé realizaram nove rituais de iniciação completos, quatro em Canoanã,

um em Wariwari, um em Boto Velho, dois em São João e um em Barreira Branca, além de várias outras

versões menores.

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(sem chegar ao ponto, entretanto, de definir os Karajá como “nômades”)14

, as aldeias fixas

não eram abandonadas. A transferência definitiva de aldeias só ocorreu no caso dos Karajá

meridionais, associada à busca de uma maior proximidade com os pioneiros centros de

troca regionais – os aldeamentos oficiais ao sul da Ilha do Bananal – no século 19. Tal

modelo de ocupação territorial é muito diferente do seminomadismo dos Kayapó, que

abandonavam suas aldeias a cada 2 ou 5 anos (Turner, 1992), ou dos Xavante (Maybury-

Lewis, 1984). Em geral, a literatura antropológica atribui a sedentarização e aglutinação nas

maiores aldeias Karajá atuais ao contato, uma vez que tanto o SPI (ver Baldus, 1948)

quanto os missionários protestantes do século 20 (ver Tavener, 1966, Donahue, 1982)

desestimularam os antigos acampamentos de verão e encorajaram a concentração das

famílias de aldeias menores em grandes aldeias.

Mas é revelador que as primeiras notícias sobre os Karajá (Fonseca, 1867) dão conta

de grandes aldeias, com milhares de pessoas, e que, desde os primeiros registros do século

17, os Karajá sempre estiveram morando na região da Ilha do Bananal e arredores, nas

margens do trecho livre de cachoeiras do médio Araguaia, em cujo centro geográfico está o

lugar de sua origem mítica imemorial (Inỹsèdyna). Chiara (1970:16) chama a atenção para

a “persistência das aldeias” (ao contrário dos acampamentos de verão) nos mesmos lugares

“durante várias gerações” do século 20, “um fato importante que no entanto nunca chamou

a atenção dos etnólogos que se ocuparam dos Karajá”. Em minha recente pesquisa (2007)

com os Karajá sobre seus padrões de ocupação territorial, ficou evidente que as aldeias de

inverno do passado eram grandes aldeias situadas desde tempos remotos, e de forma

duradoura, nos poucos lugares altos e secos das duas margens do Araguaia.

As grandes aldeias de inverno muito antigas, conhecidas e visitadas pelos moradores

das aldeias atuais e cujos sítios e cemitérios são encontrados ao longo de todo o território

Karajá, são concebidas como os lugares onde os primeiros ancestrais se instalaram após os

eventos míticos fundadores e onde os Karajá sempre estiveram morando desde então. Santa

Isabel, Fontoura, São Domingos, Itxala e Macaúba, as grandes aldeias atuais, cuja

constituição no século 20 foi fortemente influenciada pelo processo histórico de perdas

populacionais e pela ação de agências externas, estão situadas em sítios antiqüíssimos

referidos pela mitologia ou de ocupação Karajá imemorial.

14

Ehrenreich (1948), Krause (1940-1944), Tavener (1973), Donahue (1982), Toral (1992), Pétesch (2000).

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Pode-se até especular que os Javaé teriam uma vida mais sedentária que os seus

vizinhos Karajá. Toral (1992), que argumenta em favor da mobilidade das antigas aldeias

Karajá, em outro texto (1999:47) reconhece que “as aldeias Javaé ocuparam secularmente

com roças e habitações os mesmos locais” em razão dos poucos lugares secos na região.

Como já foi dito antes, as aldeias Javaé mais importantes do passado recente, como Marani

Hãwa, Wariwari, Imotxi, Lòreky, Iròdu Iràna ou as da região do Bèdèky, entre outras, eram

consideradas como lugares de habitação permanente e imemorial. Apesar das mudanças

ocorridas no século 20, a maior parte das treze aldeias atuais localiza-se em antigos sítios

de importância mitológica, que foram habitados em tempos muito antigos e depois

abandonados, como Kanõanõ e Inỹwèbohona (Boto Velho).

Meus dados atuais indicam, entretanto, que os dois grupos tinham padrões similares

de ocupação territorial, no sentido de que a alternância sazonal de aldeias não era

incompatível com um padrão mais profundo de sedentarismo. Na estação cheia, quando

grandes áreas são inundadas e as praias desaparecem, os moradores das aldeias de verão

Karajá ou Javaé, instalados provisoriamente e de modo mais disperso nas diversas praias,

retornavam sempre para a aldeia de inverno mais próxima. Esta era concebida idealmente

como um lugar perene e de concentração de uma grande população, ao qual seus moradores

estavam permanentemente ligados, por duas razões básicas: por ser um lugar sempre seco,

com áreas propícias à agricultura, e por ser o local onde os mortos aparentados eram

enterrados.

Na prática, entretanto, nem todas as aldeias Javaé e Karajá estavam ou estão em

lugares que suprem todos esses requisitos, como já vimos, havendo aldeias de inverno que

tinham ou têm apenas o espaço reservado às casas, não possuindo áreas secas ao redor para

a agricultura ou para a instalação de cemitérios. Nesses casos, os moradores viajam em

canoas para os sítios mais distantes onde podem plantar ou enterrar os mortos. Há aldeias

também que não estão em lugares altos o suficiente, sendo atingidas em parte pelas águas

dos rios nas inundações maiores.

Apesar da predominância atual da pesca, no passado a agricultura era também um

importante componente dentro desse complexo peculiar de sedentarismo. Há fortes indícios

de que a agricultura tinha um papel essencial na vida dos Karajá e Javaé, embora a

literatura sugira, ainda que de modo superficial, que os Javaé tenham se dedicado com mais

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empenho ao plantio de roças que os seus vizinhos Karajá no século 2015

. No que se refere

aos Javaé, especificamente, o biólogo Costa Júnior (1999:68) constatou que, considerando-

se a escassez de áreas não inundáveis, “tudo indica que a disponibilidade de terras

agricultáveis seja um importante fator para o estabelecimento das aldeias, uma vez que os

recursos pesqueiros não são um fator limitante”. Há vários anos, a atividade agrícola está

em declínio entre os dois grupos, especialmente nas grandes aldeias, o que tem relação com

vários fatores, entre eles o recebimento de salários e aposentadorias. Donahue (1982) chega

a dizer que a agricultura entre os Karajá é uma atividade de segunda classe, pela qual os

homens têm pouco interesse, quando comparada à pescaria.

Pétesch (2000:163), no entanto, comenta o caráter surpreendente da importância de

dois “ritos agrários” Karajá, hoje desaparecidos, associados ao momento de plantação e de

colheita (ver Palha, 1942), uma vez que “estes índios são geralmente descritos na literatura

etnográfica como fracos agricultores, em particular o subgrupo étnico de cima” (os Karajá

propriamente ditos). A autora lembra ainda que não se observa traços de cerimônias

equivalentes entre os vizinhos do Brasil Central Jê-Bororo. Embora de modo um pouco

diferente dos ritos Karajá, os Javaé também possuíam um ritual dedicado ao favorecimento

da agricultura, que fazia parte do rito Iweruhukỹ até os anos 70 do século passado. E o

empenho regular e cotidiano nas atividades agrícolas fazia e ainda faz parte da construção

da honra pessoal de um homem casado Javaé. Bueno (1975) destaca a importância da

lavoura para os Karajá, que estaria em decadência por causa das novas relações

econômicas, enquanto Lima Filho (1994) insiste que a importância da agricultura seria

anterior ao contato com o colonizador europeu em razão da importância de produtos

agrícolas em rituais como o Hetohokỹ.

15

Krause (1943b), Lipkind (1948), Aureli (1962b), Tavener (1973), Donahue (1982), Toral (1981, 1992,

1999). O inspetor Mandacaru, do SPI, notou em 1912 que “os carajás são pouco dedicados à agricultura”, em

contraste com o povo Javaé, que “entrega-se exclusivamente à agricultura para cuja indústria tem decidida

vocação. Cultivam em grande escala a mandioca, o milho e a bananeira, em menor, a canna, batatas,

abóboras, carás, amêndoas, algodão etc. etc.” (microfilme n° 324 da FUNAI, fotogramas n° 10 e 11). Em

1932, o jornalista Hermano da Silva (1935:260) observou “grandes plantações” Javaé, com produtos variados,

surpreendendo-se com tal “estranho” e “devotado desvêlo à cultura de solo”, que seria desnecessário em razão

da abundância de caça e pesca na região. Lipkind (1948:181) disse que “os Javahé são agricultores mais

laboriosos que os outros Carajá, cultivando extensas plantações” (grifo do autor). Toral (1981) supôs que

uma ênfase maior dos Javaé na agricultura seria um produto da invasão da Ilha do Bananal por posseiros,

causando o declínio da antiga mobilidade em função das pescarias.

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As grandes aldeias de inverno Karajá e Javaé eram e são concebidas ainda como o

centro de uma micro-região usada para as atividades econômicas, cujos limites devem ser

respeitados pelos moradores de outras aldeias mais distantes. As aldeias Javaé e Karajá

eram e ainda são autônomas em relação às outras, como entre os Jê e Bororo (Turner,

1979a), cabendo aos habitantes de cada uma o direito de pesca, caça, agricultura e coleta

em um determinado território circundante, o que inclui os lagos e rios específicos da região.

As aldeias maiores eram consideradas como uma espécie de centro dessa micro-região, que

incluía as aldeias menores próximas. Tal padrão ainda se mantêm na maioria dos casos.

Tanto entre os Karajá, conforme minha pesquisa recente (2007) em aldeias Karajá,

como entre os Javaé, os habitantes de cada aldeia conhecem com precisão os limites do seu

território de uso circundante, evitando idealmente adentrar nos rios e lagos utilizados pelos

moradores das micro-regiões vizinhas. Segundo os Karajá de Fontoura e São Domingos,

para se pescar ou caçar na área de uma outra grande aldeia é preciso pedir autorização ao

cacique respectivo. Antigamente, quando havia esse pedido, o chefe local (ixỹwèdu) Karajá

autorizava uma luta ritual entre os moradores de duas aldeias. Só os vencedores da aldeia

vizinha tinham direito ao uso do território solicitado.

Sempre que se funda uma aldeia nova, há uma discussão entre os membros de

aldeias vizinhas para se discutir o direito de uso dos recursos econômicos e os limites

territoriais entre as duas comunidades locais. Em 2002, por exemplo, os fundadores da

aldeia Javaé Boa Esperança, muito próxima à nova aldeia Wariwari, tiveram que pedir

autorização ao cacique desta última para utilizar os recursos ao redor de Boa Esperança,

localizada no território reservado até então aos moradores de Wariwari. E os moradores da

aldeia Karajá Nova Tytema, cuja fundação em 2000 decorreu de sérios conflitos na antiga

Tytema, no Rio Tapirapé, tiveram que pedir autorização aos Karajá de Santa Isabel para se

instalar dentro da micro-região controlada por estes últimos. Tal rearranjo não foi feito sem

desconforto por parte das duas comunidades, uma vez que os moradores da grande aldeia

Santa Isabel dispõem cada vez menos de fontes de riquezas naturais na área em que vivem.

Com o crescente aumento da população, a redução dos recursos pesqueiros e o

impedimento de pescar e caçar nas áreas controladas por fazendas, cada vez mais têm

havido desavenças entre os moradores de diferentes aldeias no que se refere ao uso das

respectivas micro-regiões, em desacordo com o ideal tradicional de convivência pacífica

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entre aldeias. É comum que os Karajá que moram na margem oeste do Araguaia, como os

moradores de Lago Grande ou das terras indígenas São Domingos e Tapirapé/Karajá, que

estão confinados em pequenas áreas cercadas por grandes fazendas, pesquem na Ilha do

Bananal, o que tem causado desavenças, às vezes mais sérias, com os moradores de

Macaúba e Fontoura, que se consideram os legítimos detentores do direito de controlar a

área em questão.

Conflitos internos podiam levar à fundação de novas aldeias ocasionalmente, mas

idealmente, tanto no caso Karajá como Javaé, os membros do grupo deveriam viver juntos

nas aldeias populosas, onde ainda há uma vida ritual intensa que depende da participação

de grande número de pessoas e vários mecanismos formais de redução das tensões internas.

Como já foi dito, assim como entre os Bororo (Crocker, 1985) e alto-xinguanos (Frachetto

& Heckenberger, 2001), as aldeias Javaé mantinham relações pacíficas entre si e com as

aldeias Karajá, o mesmo ocorrendo entre as aldeias Karajá (Krause, 1940-1944, Donahue

1982, Toral 1992).

Os Javaé dizem que, antes do contato, não era comum o processo de “fundação” de

aldeias, no sentido de se morar em um lugar novo, sem qualquer referência anterior, como

ocorre entre os praticantes do nomadismo ou semi-nomadismo. As mudanças ocorriam em

decorrência de conflitos internos, mas na maioria dos casos as pessoas mudavam-se apenas

para outras aldeias já constituídas. Mais raramente, podia ocorrer de um homem decidir

fundar um lugar novo ou retomar um sítio antigo, em razão de algum conflito no lugar de

origem. As grandes aldeias de origem imemorial tinham uma estabilidade e permanência

que contrastava, ao que parece, com a menor durabilidade das pequenas aldeias formadas

por motivos diversos. Foram citados exemplos de três aldeias antigas (Kyrysa Hãwa,

Làràtxi e Karalu Hãwa) que foram fundadas a partir de conflitos acontecidos na antiga

aldeia Wariwari, todos envolvendo acusações de feitiçaria.

Quando ocorria ou ocorre a fundação de uma aldeia ou a retomada de um antigo

sítio, apenas os homens mais poderosos conseguem realizar esse objetivo, pois ele precisa –

antes de tudo – convencer os afins a se mudarem junto. Os Javaé explicam que a fundação

de novas aldeias era muito difícil justamente porque os homens estavam presos aos

compromissos de prestação matrimonial uxorilocal e as famílias das esposas não aceitavam

que elas fossem embora. Mesmo assim, os afins concordavam em acompanhar um homem

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apenas quando eles próprios estavam envolvidos em algum conflito na aldeia, do contrário

sendo muito difícil tirá-los do lugar. Além dos afins, um fundador convidava também seus

próprios parentes, em especial as famílias de seus irmãos e irmãs reais e classificatórios.

Atualmente, os homens que conseguem retomar antigos sítios devem ter os talentos de

liderança necessários aos contatos com a sociedade envolvente, o que estimula os afins a

segui-los. Com o andar dos anos, o prestígio e a generosidade de um líder tendem a atrair

mais pessoas para o novo lugar.

As aldeias tradicionais eram compostas da parentela bilateral (e afins respectivos)

do fundador da aldeia e de sua esposa (ou esposas), idealmente uma prima cruzada distante.

Com o passar do tempo, os moradores transformavam-se nos descendentes do grupo

original, um grande e único sỹ (grupo de parentes), dentro do qual se praticava a endogamia

de parentela e de aldeia. Para ser considerado uma “aldeia” propriamente dita, segundo os

próprios Javaé, um lugar deve conter pelo menos três casas. Toral (1992) define uma aldeia

como um grupo local formado por uma facção de pelo menos 40 pessoas. Alguns Javaé

dizem que a vida em uma “aldeia pequena” (hãwa kija), com poucas pessoas, não é boa

porque todos são parentes relativamente próximos, de modo que os conflitos, as relações

sexuais condenadas e os mexericos tendem a surgir dentro de uma mesma parentela,

causando um impacto muito maior e tornando mais difícil a convivência. Além disso, em

aldeias muito pequenas ou sem xamãs não ocorrem os rituais associados à Casa dos

Homens. Já nas “aldeias grandes” (hãwa hakỹ), os conflitos e o sexo impróprio também

acontecem com igual intensidade, mas se diz que eles têm um efeito desestruturante bem

menor, pois, além de estarem associados com mais freqüência a relações entre parentes

distantes, as tensões podem ser diluídas através do convívio com outras famílias.

Um levantamento sobre os moradores das aldeias Javaé atuais mostra que a maioria

delas, embora não tão grandes como as aldeias do passado, é um retrato bastante fiel do

modelo antigo, no sentido de ser constituída pela parentela bilateral do grupo de fundadores

ou pelos descendentes desse grupo original, como as que foram re-fundadas mais

recentemente, como São João, a nova Wariwari, Cachoeirinha, Imotxi, Txukòdè e Inỹhija

(Boa Esperança). Mesmo em Barreira Branca e Boto Velho, pequenas aldeias fundadas por

volta da metade do século passado pelos remanescentes das aldeias interioranas dizimadas,

esse foi o padrão que se impôs com o tempo.

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Já Canoanã, a aldeia para onde foi o maior número de sobreviventes da época, desde

o início sempre foi um aglomerado de parentelas das antigas aldeias interioranas, o que

contribuiu para a existência de um clima de conflitos e rivalidades políticas que não era tão

comum antes. Txuiri tem uma história um tanto atípica, descrita por Bonilla (1997, 2000),

pelo fato de ter sido fundada onde havia um povoado de brancos, situado em um antigo

sítio Javaé; e ter tido como mentor da sua reocupação e retirada dos não-índios um líder

Karajá, embora alguns Javaé tenham tido participação fundamental, o que atraiu para a

aldeia os Javaé que tinham algum parentesco com os Karajá.

Quando nos voltamos para as aldeias Karajá atuais, embora eu não tenha um

levantamento mais detalhado sobre as relações de parentesco entre seus moradores, a

história de formação das aldeias no século 20, já narrada, também revela que, apesar de

suas peculiaridades históricas, por razões diversas, ainda permanece a tendência geral e

tradicional das pessoas morarem nos lugares aos quais estão ligadas em razão dos vínculos

de parentesco próximos com os fundadores ou com os moradores mais antigos da aldeia.

Toral (1992:61) descreve a formação das aldeias dos três grupos de língua Karajá

como “grupos de descendência” ou parentelas, de 3 ou 4 gerações apenas, reconhecidos

pelos nomes dos fundadores dos grupos locais. O autor descreve cada aldeia como um

conjunto de parentelas formadas por famílias extensas uxorilocais articuladas em facções

políticas, em que as famílias pioneiras têm precedência cerimonial e política. As facções

convivem de forma nem sempre pacífica nas grandes aldeias, dando origem a rupturas e

fundações de novas aldeias, enquanto nas aldeias pequenas uma única facção predominaria.

Tal modelo, no que diz respeito à existência de rupturas estruturais nas aldeias, que teriam

curta duração, deve ser visto com algumas restrições no caso Javaé.

Em seu estudo sobre a dinâmica de formação das aldeias, o autor (op.cit:73-74)

reconhece que os primeiros registros históricos sobre os Karajá revelam a existência de

grandes aldeias, com mais de 2.000 pessoas, e que circunstâncias específicas do contato

favoreceram o “fracionamento” da população e a “fragmentação” das grandes aldeias

antigas. Em 1888, Ehrenreich (1948:34) já havia notado uma distinção entre as

“comunidades mais numerosas” dos Karajá da Ilha do Bananal, com um mínimo de 150 a

200 pessoas, distintas dos “pequenos bandos” amazônicos, e os pequenos grupos Karajá

meridionais forçados a se espalhar pela “escassez dos meios de subsistência”. Krause

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(1941b), por sua vez, conclui que a expansão do grupo para o sul, em pequenos grupos,

iniciada no fim do século 19, foi fortemente influenciada pela busca de um contato mais

próximo com os presídios e aldeamentos para onde foram levados outros Karajá, o que

parece ser verdadeiro.

Por outro lado, de modo um tanto contraditório, Toral (1992:75) descreve a

existência de um “mecanismo” ou “tendência físsil” estrutural, relacionado ao intenso

faccionalismo interno dos três grupos de língua Karajá: “famílias extensas tendem a se

separar dos grupos de descendência de que fazem parte e, coligadas com outras, tornam-se

independentes em outros locais”. Segundo o autor, essa tendência à dispersão e mobilidade

de pequenos grupos teria sido em parte neutralizada a partir dos anos 60, principalmente no

caso Karajá, em razão do impacto aglutinador da sociedade envolvente, cujas diversas

agências estatais ou não propiciaram a formação de “médias” e “grandes” aldeias

sedentárias. Paralelamente, a intensa vida cerimonial das grandes aldeias, através da qual os

homens se unem em oposição às mulheres, e assim transcendem as disputas políticas

faccionais, seria um fator interno de relativa neutralização desse potencial dispersivo.

Não se chega, portanto, a uma resposta definitiva. O contato teria produzido a

mobilidade de pequenos grupos ou o sedentarismo em grandes aldeias? A tendência ao

sedentarismo atual dos Karajá é uma retomada de padrões antigos ou uma influência

exógena? A retomada atual de locais antigos pelos Javaé dá continuidade a uma mobilidade

estrutural ou é uma resposta ao contato? Os Karajá teriam uma maior propensão estrutural à

dispersão que os Javaé?

No caso Javaé, tanto os primeiros registros escritos, ainda que esparsos, quanto a

memória nativa apontam para a existência muito antiga de grandes e estáveis aldeias

interioranas. Outros mecanismos internos de controle formal e esvaziamento das tensões

estruturais, além da oposição entre homens e mulheres, garantiam a convivência de facções

e oponentes em um mesmo espaço por tempo indeterminado, como a atuação dos

conciliadores formais (os iòlò), as lutas, os choros e os jogos rituais. Tem-se ainda uma

forte ênfase na supressão simbólica e ritual da afinidade, a grande geradora de tensões

internas, e uma série de comportamentos e falas formais nas relações cotidianas entre afins

que ajudam a minimizar o potencial de ruptura.

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No caso dos Karajá, culturalmente similares aos Javaé, há também uma referência a

grandes e estáveis aldeias do passado pela memória oral. E os primeiros registros escritos

também falam de imensas aldeias no trecho livre de cachoeiras do médio Araguaia, onde os

Karajá sempre estiveram morando desde então. A estabilidade das aldeias maiores, nos dois

casos, parece ter convivido, sempre, com a fundação de pequenas aldeias satélites de menor

durabilidade em razão de conflitos internos. Além disso, quando uma aldeia era extinta,

seja em decorrência de conflitos internos ou, mais recentemente, por causa de conflitos com

os não-índios e as novas doenças, sempre havia a possibilidade de retomada posterior dos

antigos sítios de ocupação imemorial, que nunca eram definitivamente abandonados. Como

já foi mostrado, várias das aldeias Javaé, em especial, e Karajá do século 20 foram

fundadas em sítios de antiqüíssima ocupação que estavam temporariamente abandonados.

Pode-se concluir, com base nos dados históricos e antropológicos levantados até

agora, que os dois grupos partilhavam de um modelo de ocupação territorial sedentário,

com ênfase na agricultura, embora associado a uma alternância sazonal de aldeias, em

função, principalmente, das pescarias. Como já foi dito, apesar da relativa mobilidade, as

grandes aldeias históricas permaneciam como importante referência durante séculos e não

eram abandonadas definitivamente. A chegada do colonizador europeu produziu uma série

de modificações nesse padrão tradicional, em grande parte por causa das consideráveis

perdas populacionais, mas o pano de fundo do sedentarismo, em que as grandes aldeias

funcionam como o centro de várias micro-regiões emendadas, que juntas compõem o

território de ocupação total, ainda se mantém.

Nas últimas décadas, os Karajá e Javaé reinventaram o tradicional padrão territorial

de alternância sazonal de aldeias. A pescarias de verão têm sido feitas principalmente por

pequenos grupos de homens com o objetivo de vender seu produto a compradores externos.

E as famílias de grandes aldeias, como Macaúba, ainda mantêm o hábito de acampar nas

praias de verão, mas agora para vender artesanato ou outros produtos para os turistas que

freqüentam o Araguaia, principalmente no mês de julho.

Em razão das grandes mudanças no século 20, a defesa da terra em relação aos

invasores não-índios tornou-se um importante critério de ocupação territorial. Algumas

aldeias Javaé, como Wakòtyna, foram fundadas com o objetivo explícito de controlar o

território das invasões de não-índios. Atualmente, há grande preocupação tanto dos Javaé

Page 51: II – Segunda Parte - aprender.ead.unb.br · funcionavam como pontos de encontro, para variados fins, entre os Karajá, os Xambioá e os Javaé. A “foz do Rio Javaés” (Bero

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quanto dos Karajá em fundar novas aldeias em pontos vulneráveis à entrada de pescadores

brancos na Ilha do Bananal, em especial na sua porção setentrional, que permanece

abandonada e sem fiscalização por parte do órgão ambiental devido aos conflitos da

população indígena com o IBAMA. Os dois grupos manifestaram o desejo de voltar a

morar em lugares de antigas aldeias na Terra Indígena Utaria Wyhyna (Karajá) / Iròdu

Iràna (Javaé) em caso de reconhecimento oficial da terra indígena pelo Estado.