ii. Éthos e psiquÊ iii. necroÉtica iv. princÍpios da ... · naquela noite, um pouco antes de o...

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AVANÇARSUMÁRIO[»»]

PRELÚDIO

INTRODUÇÃO

I.TÉCNICASETÁTICAS1.Metodologiasdoambientehostil2.GenealogiadoPredator3.Princípiosteóricosdacaçaaohomem4.Vigiareaniquilar5.Análisedasformasdevida6.Killbox7.Contrainsurgênciapeloar8.Vulnerabilidades

II.ÉTHOSEPSIQUÊ1.Dronesecamicases2.“Quemorramosoutros”3.Crisenoéthosmilitar4.Psicopatologiasdodrone5.Mataradistância

III.NECROÉTICA1.Aimunidadedocombatente2.Aarmahumanitária3.Precisões

IV.PRINCÍPIOSDAFILOSOFIADODIREITODEMATAR1.Osassassinosindelicados2.Aguerraforadecombate3.Licencetokill

V.CORPOSPOLÍTICOS1.Tantonaguerracomonapaz2.Militarismodemocrático3.Aessênciadoscombatentes4.Afábricadosautômatospolíticos

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EPÍLOGO:Daguerra,adistância

NOTAS

SOBREOAUTOR

EXIT

CRÉDITOS

REDESSOCIAIS

COLOFÃO

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EmmemóriadeDaniel

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Prelúdio

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Naquelanoite,umpoucoantesdeodianascersobreasmontanhasafegãs,eleshaviamobservadonochãoumcomportamentoinabitual.

–Vocêpodedarumzoom?Querodarumaolhada.–Pelomenosquatroatrásdapicape.–Eessecara,debaixodaflechanorte,parecequeeletemumacoisanopeito.–É,émeioestranhaamanchafriaqueelestêmnopeito.–Éoqueelestêmfeitoaquiultimamente:elesembrulhamasporrasdesuasarmasnasroupaspra

queagentenãopossafazeridentificaçãopositiva.

Opilotoeooperadorescrutamacenaemummonitor.Elestrajamuniformedebrimcáqui,comumbrasãonoombro–umacorujadeasasabertas,sobrefundovermelho,comraiosentreaspresas.Estãosentadosladoalado,comfonesdeouvido,emcadeirasdecourosintético.Portodaparte,painéiscombotõesluminosos.Masolugarnãopareceumcockpitcomum.

Avigilânciaocorreamilharesdequilômetrosdali.Asimagensdosveículos,captadasnoAfeganistão,sãotransmitidasporsatéliteaqui,nabasedeCreech,pertodeIndianSprings,emNevada.

Nosanos1950,eraláqueeramfeitosostestesnuclearesnorte-americanos.Erapossível,então,deLasVegas,vererguer-seaolongeocogumeloatômico.Hoje,osmotoristasquepassampelaRoute95podemavistarsilhuetasdeoutrotipoacimadesuascabeças:umaformaoblongadecabeçaarredondada,comoumagrandelarvabrancacega.

AbasedeCreechéoberçodafrotadosdronesdaUSAirForce.Osmilitaresaapelidamde“olardoscaçadores”–thehomeofthehunters.AorganizaçãoantiguerraCodePink,porsuavez,adescrevecomo“umlocaldeincredulidade,confusãoetristeza”.[1]

Otrabalhoédeumtédioextremo.NoitesadevorarDoritosouM&M’snafrentedatela,paraverquasesempreasmesmasimagensdeumoutrodeserto,dooutroladodoplaneta,esperandoquealgumacoisaaconteça:“Mesesdemonotoniaporalgunsmilissegundosdealvoroço”.[2]

Amanhãdemanhã,viráoutra“tripulação”pararevezarnocomandodoaparelho.Opilotoeooperadorassumirãodenovoovolantedeseu4×4paraencontrar,a45minutosdali,mulherefilhosnoambientetranquilodeumsubúrbioresidencialdeLasVegas.

OspassageirosdostrêsveículosquesaíramhápoucashorasdovilarejonaprovínciadeDaikundinãosabem,masjáfazbastantetempoquedezenasdepupilasosobservam.Entreessesespectadoresinvisíveis,opilotoeo“operadordesensores”,mastambémum“coordenadordemissão”,um“observadordesegurança”,umaequipedeanalistasdevídeoeum“comandantedasforçasterrestres”queacabarápordarsinalverdeparaoataqueaéreo.Essarededeolhosestáemcomunicaçãopermanente,elesfalamentresi,e,nessanoitede20defevereirode2010,comodecostume,aconversaégravada.

0h45GMT–5h15noAfeganistãoOpiloto:Seráaporradeumfuzilali?

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Ooperador:Talvezsóumamanchaquentedeondeeleestavasentado,nãodáparadizeragora,masparecemesmoumobjeto.

Opiloto:Euesperavaqueagentepudessedetectarumaarma,masnãoimporta.

1h05Ooperador:Essecaminhãodariaumbeloalvo.OK,éum4×4Chevrolet,umChevySuburban.Opiloto:É.Ooperador:Temrazão.

1h07Ocoordenador:Oscreenerdissequehápelomenosumacriançapertodo4×4.Ooperador:Putamerda…Onde?Ooperador:Envie-meumaporradeumclichê,masnãoachoqueelestenhamcriançasaessa

hora,seiqueelessãobarra-pesada,masnãoprecisaexagerar.[…]Ooperador:Bom,talvezumadolescente,masnãovinadaqueparecessetãobaixo,eelesestão

todosagrupadosali.Ocoordenador:Elesestãoverificando.Opiloto:Entãoverifiquemessamerda…Porqueelenãodisse“possívelcriança”então?Por

quetêmtantapressadefalardeporrasdecriançasmasnãodeporrasdearmas?Ocoordenador:Duascriançasatrásdo4×4.

1h47Ocoordenador:Parecequesãocobertores.Elesestavamorando,elestinham…Opiloto:Jag25,Kirk97,acontaestácertaouaindanão?Ooperador:Elesestãoorando,estãoorando.

1h48Ooperador:Éessa,afinal,aforçadeles.Orar?Ésério,éissoqueelesestãofazendo.Ocoordenador:Elesestãomaquinandoalgumacoisa.

1h50Ocoordenador:Adolescentepertodatraseirado4×4.Ooperador:Ah,bom,adolescentespodemlutar.Ocoordenador:Comumaarmanamãovocêéumcombatente,éassimquefunciona.

1h52Ooperador:Umhomemaindaorandonafrentedocaminhão.Opiloto:ParaJag25eKirk97,todososindivíduosestãoacabandodeoraresereúnemagora

pertodostrêsveículos.Ooperador:Quebeloalvo.Eutentariapassarportrásparaacertaremcheio.

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Ocoordenador:Ah,seriaperfeito!

2h41Ooperador:Senhor,seimportariaseeudesseumaparadarápidaprairaobanheiro?Opiloto:Não,dejeitonenhum,cara.

3h17Umdesconhecido:Eaí,qualéoplano,pessoal?Opiloto:Nãosei,esperoqueagentepossaatirarnessecaminhãocomtodososcarasdentro.Ooperador:É.

[UmavezqueodronePredatortemapenasumúnicomíssilabordo–insuficienteparaatingirtrêsveículos–,édadaordemadoishelicópterosKiowa,nomedecódigo“BamBam41”,queseponhamemposiçãoparaoataque.Umplanoéaprovado:

oshelicópterosatirarãoemprimeirolugar,depoisodroneterminaráotrabalhoatirandoseumíssilHellfirenossobreviventes.]

3h48Ocomandante[falandoaopilotododronearespeitodoshelicópteros]:[…]Aosinaldo

comandantedasforçasterrestres,poderemosmandá-losvir,ativarosalvosedeixarvocêutilizarseuHellfireparaumtirodelimpeza.

Opiloto:Kirk97,recebido,parecebom.

4h01Ooperador:Operadorpronto,queafestacomece![…]Ooperador:Quersaber?Poderiatertodaumafrotade“Preds”aqui.Opiloto:Ah,quemdera,cara…

4h06Opiloto:Assimquetivermosaordemdeataque,cara,agentevaiprovavelmenteficar

perseguindopessoasqueseespalhamportodososlados.Nadescida,nãosepreocupecomqualquerorientaçãodaminhaparteoudeJaguar,bastaseguiroquefizermaissentidopravocê.Fiquecomaquelequevocêacharquenosdámaischancedeatirar.Estoucontigonisso.Tepassareiinformaçõessobreoperfildetiro,nósteremosinstruçõesdeataqueassimquesoubermosnoquevamosatirar.

4h11Oshelicópteros:Kirk97,BamBam41orecebealtoeclaro.Opiloto:Ok,BamBam41,Kirk97orecebealtoeclarotambém.Entendoquevocêestá

caçandonossostrêsveículos,precisaquedigamos,oujáosalcançou?

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Oshelicópteros:41osalcançoudoladosuldapassagemdagradeindicada,umaHighlandbrancaseguidadedois4×4.

Opiloto:Kirk97,recebido.Sãoosseustrêsveículos,saibaquetemoscercade21homensemidadedecombate,cercadetrêsfuzispositivamenteidentificadosatéagoranogrupoe,ah,sãoosseustrêsalvos.

4h13Opiloto:Otiroparecelegal.Ooperador:Magnífico![…]Oshelicópteros:[inaudível]armasecomunicaçõescommanobratática.Corta.Hmm,

entendemosquetemossinalverdeparaoengajamento.Opiloto:Ok,eletemsinalverdeparaoengajamento,portantoeletemosujeito3.Vourodar

nossosmísseistambém.

4h16Ooperador:Roger.E,oh…aívai![Oshelicópterosatiramsobreocomboio.][…]Ooperador:Tenhoumoutrocara…Elesoacertaramtambém?Sim.Opiloto:Elesdespacharamoprimeiroe,hmm,oúltimo.Estãodandoavolta.

4h17Ocoordenador:Queremqueagentepasseparaoutrafrequência?Opiloto:Eutentei,ninguémfalavacomigolá…Ooperador:Parecequeestãoserendendo.Ooperador:Nãoestãocorrendo.

4h18Ooperador:Essecaratádeitado?Elesnãoestãocorrendo.Oobservador:Oscaras,éestranho.Ooperador:Elesestãosóseafastando.[…]Oobservador:Querversehápessoasatrás?Umdesconhecido:Sim…[incompreensível]Oobservador:Pertodesseterceiromontededestroços…Ooperador:Alguns,doisoutrês.Ooperador:Sim,elesestãoassustados.Opiloto:Dêumzoomláemcimaumsegundopramim.Oterceiro,lá.Ooperador:Oterceiro?Opiloto:Sim.Elesexplodiram?Explodiram,não?

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Oobservador:Explodiram,sim!Ooperador:Não,nãoexplodiram.Opiloto:Nãoexplodiram.Ooperador:Nãoexplodiram.Ooperador:Não,elesestãobemali.Opiloto:É,masessenegócioparecebemdestruído,não?Oobservador:É,oatingiram.Temfumaça.Ooperador:Oatingiram.Vocês…[incompreensível]Essaspessoasestãosó…[Umfoguete

atingeoveículodomeio.]Umdesconhecido:Oh!Opiloto:Putamerda!

4h22Ooperador:Identifiquempositivamenteasarmas,nãovejonenhuma…Ooperador:Pegueiumacoisaquebrilhasobreaqueleàdireita.Ooperador:Certo.Ooperador:Éestranho…Opiloto:Nãotenhoamínimaideiadoqueelesestãofazendo.Ooperador:Provavelmenteseperguntandooqueaconteceu.Oobservador:Temumoutroàesquerdanatela.Ooperador:Sim,estouvendoosdois.Oobservador:Elesvestemburcas?Ooperador:Éoqueparece.Opiloto:Maselestinhamsidotodosidentificadospositivamentecomohomens.Nenhuma

mulhernogrupo.Ooperador:Essecarapareceusarjoiasecoisascomoumamoça,masnãoéumamoça…Se

essapessoaéumamoça,éumamoçagrande.

4h32Oobservador:Umadessaspessoasnoaltoàesquerdaestásemovendo.Ooperador:É,estouvendo.Achoquejáovisemexerantes,masnãoseiseestá…seestáse

mexendoousetemespasmos.Oobservador:É,achoqueelesemexeu.Nãomuito,mas…Ooperador:Nãoconsigo,nãoconsigoseguirosdois.Ocoordenador:Temumcarasentado.Ooperador[dirigindo-seaumindivíduoemterra]:Comoquevocêestábrincando?Ocoordenador:Comoossodele.

4h33Oobservador:Quemerda.Dápraversanguebemlá,aoladodo…

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Ocoordenador:Sim,viagorahápouco.

4h36Ocoordenador:Sãodois?Umhomemqueseapoianooutro?Oobservador:Parece.Ooperador:Parece,sim.Ocoordenador:Oresgatevememsocorro.Oobservador:Esqueci,comomesmovocêtrataumferimentocomastripasparafora?Ooperador:Nãoponhadevoltaparadentro.Embrulhenumatoalha.Emgeral,funciona.

4h38Opiloto:Merda,elesestãotentandoserender,não?Achoquesim.Ooperador:Tenhoessaimpressãotambém.Ocoordenador:É,achoqueéissoqueestãofazendo.

4h40Ooperador:Oquesãoaquelesali?Elesestavamnoveículodomeio.Ocoordenador:Mulheresecrianças.Ooperador:Pareceumacriança.Oobservador:É.Aquelequeestáagitandoabandeira.

4h42Oobservador:Estãoagitandosua…Ooperador:É,agoraaíeunãoestaria…nãoestaria,pessoalmente,àvontadeparaatirarnessas

pessoas.Ocoordenador:Não.[3]

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Introdução

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Oléxicooficialdoexércitonorte-americanodefineodronecomoum“veículoterrestre,navalouaeronáutico,controladoadistânciaoudemodoautomático”.[1]Apopulaçãodedronesnãosecompõeapenasdeobjetosvoadores.Podehavertantostiposdedronequantofamíliasde

armas:dronesterrestres,dronesmarítimos,dronessubmarinoseatédronessubterrâneos,imaginadossobaformadegrandestoupeirasmecânicas.Qualquerveículo,qualquermáquinapilotadapodeser“dronizada”apartirdomomentoemquenãohámaistripulaçãohumanaabordo.

Umdronepodesercontroladosejaadistância,poroperadoreshumanos–princípiodetelecomando–,[2]sejadeformaautônoma,pordispositivosrobóticos–princípiodepilotagemautomática.Naprática,osdronesatuaiscombinamessesdoismodosdecontrole.Osexércitosaindanãodispõemde“robôsletaisautônomos”operacionais,embora,comoveremos,existamprojetosavançadosnessesentido.

“Drone”é,antesdetudo,umapalavradalinguagemleiga.Emseujargão,osmilitaresrecorremaoutraterminologia.Costumamfalarde“veículoaéreonãotripulado”(unmannedaerialvehicle,UAV)–oude“veículoaéreodecombatenãotripulado”(unmannedcombatairvehicle,UCAV),conformeamáquinasejaounãomunidadearmas.

Estelivroenfocaocasodosdronesvoadoresarmados,aquelesquehojeservemparaconduzirosataquesqueaimprensaregularmentenoticia,oschamadosdrones“caçadores-matadores”.Suahistóriaéadeumolhoconvertidoemarma:

“ComoReaper,passamosdeumusodosUAVcentradooriginalmenteemtarefasdeinformação,vigilânciaereconhecimento[…]paraumaverdadeirafunção‘caçador-matador ’”–emportuguês,“oceifeiro”–,umnomeque,acrescentavaessegeneraldaAirForce,“captabemanaturezaletaldessenovosistemadearmas”.[3]

Dispositivosdevigilânciaaéreaconvertidosemmáquinasdematar,amelhordefiniçãodosdronesé,semdúvida,aseguinte:“Câmerasdevídeovoadoras,dealtaresolução,armadasdemísseis”.[4]

UmoficialdaAirForce,DavidDeptula,enunciouamáximaestratégicafundamental:“Averdadeiravantagemdossistemasdeaeronavesnãopilotadaséquepermitemprojetarpodersemprojetarvulnerabilidade”.[5]“Projetarpoder”deveserentendidoaquinosentidodeestenderaforçamilitarparaforadasfronteiras.Éaquestãodaintervençãomilitarnoestrangeiro,problemadopoderimperial:como,apartirdocentro,fazerirradiarsuaforçanomundoqueconstituisuaperiferia?Pormuitotempo,nahistóriadosimpériosmilitares,“projetarpoder”foisinônimode“enviartropas”.Maséprecisamenteessaequaçãoquesetrataagoraderomper.

Apreservaçãopelodronesedápelaremoçãodocorpovulnerável,deixando-oforadoalcance.Pode-severaíaconcretizaçãodeumdesejoantigo,queanimatodaahistóriadasarmasbalísticas:aumentaraextensãodemodoquesepossaatingiroinimigoadistância,antesqueesteestejaemcondiçõesdefazeromesmo.[6]Masaespecificidadedodronedeve-seaofatodeelejogaremoutrosegmentodedistância.Entreogatilho,queodedoaperta,eocanhão,deondeabalavaisair,intercalam-seagoramilharesdequilômetros.Àdistânciadoalcance–distânciaentreaarmaeseualvo–acrescenta-seadotelecomando–distânciaentreooperadoresuaarma.

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Mas“projetarpoder”étambémumeufemismo,queencobreoatodeferir,dematar,dedestruir.Efazertudoisso“semprojetarvulnerabilidade”implicaqueaúnicavulnerabilidadeexpostaàviolênciaarmadaseráadeuminimigoreduzidoaoestatutodesimplesalvo.Sobasatenuaçõesdaretóricamilitar,oqueseafirma,narealidade,é,comoodecifraElaineScarry,que

aestratégiavencedoraéaquelanaqualacapacidadedeferirsóseexerceemumadireção[…].Adefiniçãoinicial,quepareceopornãoferiraferir,encobre,narealidade,umasubstituição:trocaracapacidadebidirecionaldeferirporumarelaçãodeferidaunidirecional.[7]

Aoprolongareradicalizartendênciaspreexistentes,odronearmadooperaumapassagemlimítrofe:paraquemfazusodeumaarmadessas,éaprioriimpossívelmorrermatando.Aguerra,deassimétricaquepodiaser,torna-seabsolutamenteunilateral.Oquepodiaaindaseapresentarcomoumcombateconverte-seemsimplescampanhadeabate.

ÉnosEstadosUnidosqueousodessanovaarmaseapresentahojeemsuaformamaissignificativa.Porisso,emprestodessepaísamaioriadosfatoseexemplosqueservemaquidebaseameudesenvolvimento.

Asforçasarmadasnorte-americanasdispõem,nomomentoemqueescrevoestelivro,demaisde6mildronesdediferentesmodelos,entreosquaismaisde160dronesPredatornasmãosdaAirForce.[8]Paraosmilitares,assimcomoparaaCIA,oempregodosdronescaçadores-matadoresbanalizou-senodecorrerdestesdezúltimosanos,apontodesetornarrotineiro.Essesaparelhossãoenviadosazonasdeconflitoarmado,comooAfeganistão,mastambémapaísesoficialmenteempaz,comoaSomália,oIêmenesobretudooPaquistão,ondeosdronesdaCIAconduzememmédiaumataqueacadaquatrodias.[9]Émuitodifícildeterminarascifrasexatas,mas,paraesseúnicopaís,estimam-sede2.640a3.474mortosentre2004e2012.[10]

Essaarmateveumdesenvolvimentoexponencial:onúmerodepatrulhasdedronesarmadosnorte-americanosaumentou1.200%entre2005e2011.[11]NosEstadosUnidos,formam-sehojemuitomaisoperadoresdedronesdoquepilotosdeaviãodecombateebombardeirojuntos.[12]EnquantooorçamentodaDefesaestavaembaixaem2013,comcortesemnumerosossetores,osrecursosalocadosaossistemasdearmasnãotripuladastiveramumaumentode30%.[13]Essecrescimentorápidoilustraumprojetoestratégico:adronizaçãoamédioprazodeumapartecrescentedasforçasarmadasnorte-americanas.[14]

Odronetornou-seumdosemblemasdapresidênciadeObama,oinstrumentodesuadoutrinaantiterroristaoficiosa–“mataremvezdecapturar”:[15]emvezdatorturaeGuantánamo,oassassinatoseletivoeodronePredator.

Essaarmaeessapolíticasãoobjetodedebatescotidianosnaimprensanorte-americana.Movimentosmilitantesantidronessurgiram.[16]AONUabriuumapesquisasobreousodosdronesarmados.[17]Trata-se,emoutraspalavras,segundoaexpressãoconsagrada,deumaquestãopolíticapolêmica.

Opropósitodestelivroésubmeterodroneaumtrabalhodeinvestigaçãofilosófica.Conformo-meaíaopreceitodeCanguilhem:“Afilosofiaéumareflexãoparaaqualqualquermatériaestranha

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serve,oudiríamosmesmoparaaqualsóserveamatériaquelheforestranha”.[18]

Seodroneseprestamuitoparticularmenteaessegênerodeabordagem,éporqueeleéum“objetoviolentonãoidentificado”:apartirdomomentoemquesetentapensá-lonascategoriasestabelecidas,umaperturbaçãointensacomeçaaafetarnoçõestãoelementaresquantoasdezonaoudelugar(categoriasgeográficaseontológicas),devirtudeoudebravura(categoriaséticas),deguerraoudeconflito(categoriasaumsótempoestratégicasejurídico-políticas).Paracomeçar,sãoessascrisesdeinteligibilidadequeeugostariadetentardescrever,trazendoàluzascontradiçõesqueelasmanifestam.Naraizdetodas,háaeliminação,jádesmedida,masaquiabsolutamenteradicalizada,dequalquerrelaçãodereciprocidade.Issoconstituiriaaprimeiradimensão,analítica,desta“teoriadodrone”.Mas,paraalémdaformulação,oquepodeafinalsignificarfazerateoriadeumaarma?Emquepodeconsistirtalprojeto?

UmareflexãodafilósofaSimoneWeilmeserveaquidefiocondutor.“Ométodomaisdefeituosopossível”,elaadvertianosanos1930,seriaabordaraguerra,osfenômenosdeviolênciaarmada,“pelosfinsperseguidosenãopelocaráterdosmeiosempregados”.[19]Nosentidooposto,“ométodomaterialistaconsisteantesdetudoemexaminarqualquerfatohumanolevandoemcontamuitomenososfinsperseguidosqueasconsequênciasnecessariamenteimplicadaspeloprópriojogodosmeiosempregados”.[20]Emvezdeseapressarembuscareventuaisjustificativas,emvezde,emoutraspalavras,fazermoral,elaaconselhavafazeralgototalmentediverso:começarpordesmontaromecanismodaviolência.Verasarmas,estudarsuasespecificidades.Fazer-se,portanto,decertamaneira,técnico.Masapenasdecertamaneira,poisoobjetodapesquisaé,narealidade,menosumsabertécnicoqueumsaberpolítico.Maisdoqueapreenderofuncionamentodomeio,importadeterminar,combaseemsuascaracterísticaspróprias,quaisserãoassuasimplicaçõesparaaaçãodequeéomeio.Aideiaseriaqueosmeiossãorestritivos,equeacadatipodemeiosãoassociadosconjuntosderestriçõesespecíficas.Elesnãoservemsóparaagir;tambémdeterminamaformadaação,eéprecisoexaminarcomoissoacontece.Nolugardeindagarseofimjustificaosmeios,importaindagar-seoqueaescolhadessesmeios,porsimesma,tendeaimpor.Àsjustificativasmoraisdaviolênciaarmada,preferirumaanalítica,tantotécnicacomopolítica,dasarmas.

Eisnoquepoderiaconsistirateoriadeumaarma:exporoqueimplicaadotá-la,procurarsaberquaisefeitostendeaproduzirsobreseususuários,sobreoinimigoqueéseualvoesobreaprópriaformadesuasrelações;comumaquestãocentral,queseria:quaissãoosefeitosdosdronessobreasituaçãodeguerra?Oqueelesprovocam,narelaçãocomoinimigo,mastambémnarelaçãodoEstadocomseusprópriosindivíduos?Implicaçõestendenciais,amiúdeentremescladas,quesedelineiamcomoesboçosdinâmicosmaisdoquesededuzemcomoresultadosunívocos.“Desmontaromecanismodalutamilitar”,ouseja,analisardemodoestratégico“asrelaçõessociaisqueelaenvolve”,[21]seriaeste,enfim,oprogramadeumateoriacríticadasarmas.

Masfazerisso,ouseja,estudarumarelaçãodedeterminação,nãoimplicarenunciaràanálisedeumaintencionalidade,ouseja,esforçar-sepordiscernirosprojetosestratégicosquecomandamasescolhastécnicasaomesmotempoquesão,porsuavez,determinadosporelas.Contrariamenteaoquepostulamosdualismossimplistas,determinismotécnicoeintencionalidadeestratégica,mecanismoefinalidade,aindaqueopostoscomoconceito,nãosãoincompatíveisnaprática.Ambospodem,aocontrário,searticulardeformabastanteharmoniosa.Omeiomaisseguroparagarantira

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perenidadedeumaescolhaestratégicaéoptarpormeiosqueamaterializemapontodefazerdela,emrigor,aúnicaopçãopraticável.

Poiséprecisotambémindicaroseguinte:afavordaincertezageralqueessasituaçãodecriseprovocadaalimenta,há,emboscadosnanévoadaguerra,grandesmanobrasintelectuaisquesepreparam,golpesdeforçasemânticosquesetramam,todoumconjuntodeofensivasteóricaslançadasparaseapropriar,distorcereredefinirosconceitosquepermitem,nomeando-aepensando-a,exerceraviolêncialegítima.Afilosofiaé,maisdoquenunca,umcampodebatalha.Éprecisoentrarnocombate.Minhaintençãoéabertamentepolêmica:paraalémdeseuseventuaisaportesanalíticos,oobjetivodestelivroéfornecerferramentasdiscursivasaquemquiserseoporàpolíticaqueusaodronecomoinstrumento.

Começareiporestasperguntas:deondevemodrone?Qualésuagenealogiatécnicaetática?Quaissão,combasenisso,suascaracterísticasfundamentais?

Essaarmaprolongaeradicalizaosprocedimentosexistentesdeguerraadistância,resultandonasupressãodocombate.Mas,comisso,éanoçãomesmade“guerra”queentraemcrise.Umproblemacentralcoloca-seentão:sea“guerradosdrones”nãoémaisexatamenteaguerra,aque“estadodeviolência”[22]corresponde?

Essatentativadeerradicaçãodequalquerreciprocidadenaexposiçãoàviolênciaquandoháhostilidadereconfiguranãosóacondutamaterialdaviolênciaarmada,deformatécnica,táticaepsíquica,mastambémosprincípiostradicionaisdeuméthosmilitaroficialmentefundadonabravuraenoespíritodesacrifício.Segundoascategoriasclássicas,odroneseriaaarmadocovarde.

Issonãoimpedequeseusdefensoresaproclamemaarmamaiséticaqueahumanidadejamaisconheceu.Operaressaconversãomoral,essatransmutaçãodosvaloreséatarefaàqualseatrelamhojefilósofosquelidamcomopequenocampodaéticamilitar.Odrone,dizemeles,éaarmahumanitáriaporexcelência.Seutrabalhodiscursivoéessencialparagarantiraaceitabilidadesocialepolíticadessaarma.Nessesdiscursosdelegitimação,os“elementosdelinguagem”própriosdecomerciantesdearmasedeporta-vozesdasforçasarmadasveem-sereciclados,pormeiodegrosseirosprocessosdealquimiadiscursiva,emprincípiosnorteadoresdeumnovotipodefilosofiaética–uma“necroética”,cujacríticaéurgente.

Masaofensivatambémavança,etalvezsobretudo,noterrenodateoriadodireito.A“guerrasemrisco”,quetemcomoinstrumentomaisperfeitoodrone,põeemcriseosprincípiosmetajurídicosconstitutivosdodireitodematarnaguerra.Àsombradessadesestabilizaçãofundamentalformulam-seprojetosderedefiniçãodopodersoberanodevidaedemorte.Trata-sededarlugaraumdireitode“assassinatoseletivo”,correndooriscodedinamitar,naoperação,odireitodosconflitosarmados.

Masissonãoétudo.Aoinventarodronearmado,descobriu-setambém,quaseporacaso,outracoisa:umasoluçãoparaacontradiçãoprincipalqueafetavaemseucentrohaviaváriosséculosateoriamodernadasoberaniapolíticaemsuadimensãoguerreira.Ageneralizaçãodessaarmaimplicaatendênciaaumamutaçãodascondiçõesdeexercíciodopoderdeguerra,eissonarelaçãodoEstadocomseusprópriossujeitos.Seriaumerroreduziraquestãodasarmasàesferadaviolênciaexterna.Oqueimplicaria,paraumapopulação,tornar-seosujeitodeumEstado-drone?

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I.TÉCNICASETÁTICAS

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Osprogressosdamedicinanãosãoosúnicosmeiosderealizarumaguerracomzeromortos.RobertL.Forward,MartianRainbow[1]

1.Metodologiasdoambientehostil

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Comointervirsemriscoemmeiostãoinóspitosquantozonasirradiadas,grandesfundosmarinhosouplanetasdistantes?Em1965,oengenheiroJohnW.Clarkfaziauminventáriodas“metodologiasdoambientehostil”:[2]

Quandosepreveemoperaçõesnessesambientes,emgeralsãoconsideradasapenasduaspossibilidades:colocarumamáquinanolocalouenviarumhomemprotegido.Masexisteumaterceiravia:[…]utilizarumveículoqueoperenoambientehostilsobocontroleadistânciadeumhomemsituadonumambienteseguro.[3]

Emvezdeescafandristasoumáquinasautônomas,utilizardispositivostelecomandados,ouoqueClarkdenominava,forjandoumneologismodeseleganteapartirdeantigasraízesgregas,máquinastelequíricas–para“tecnologiademanipulaçãoadistância”.[4]

Amáquinatelequírica,escreviaele,

podeserconsideradacomoumalteregoparaohomemqueaopera.Suaconsciênciaéefetivamentetransferidaaumcorpomecânicoinvulnerável,comoqualécapazdemanipularinstrumentosouequipamentosquasecomoseosestivessesegurandocomsuasprópriasmãos.[5]

Aúnicacoisaquefaltanessesegundocorpoéacarnevivadoprimeiro.Masaíresideprecisamentetodaavantagem:retirarocorpovulneráveldoambientehostil.

Essedispositivoimplicaumatopografiaespecífica,umacertamaneiradepensaredeorganizaroespaço,cujoesquemafundamentalClarktraçavaapartirdoexemplodobatiscafo:

Atopografiadotelequir.OexemplodobatiscafosegundoJ.Clark(1965).[6]

Oespaçosedivideemdois:zonahostilezonasegura.Éaimagemdeumpoderprotegido,queintervémnumaexterioridadearriscadaapartirdeumespaço“santuarizado”.Essepoder,quetambémpodeserchamadoteleárquico,[7]implicaumafronteira.Masestaéassimétrica:devebloquearasintrusõesexternaseaomesmotemposercapazdeseentreabrirparadeixarocampolivreaospseudópodesmecânicosencarregadosdeintervirnoambientehostil.[8]

Azonahostilpermaneceumespaçodeixadodesamparado,masquepodesercontroladoporserfocodeameaçaspotenciais,eatéexploradocomofontederecursos,masnãopropriamenteocupado.

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Intervém-senela,patrulha-seolocal,masestáforadequestãoirmorarali–anãoserparadelimitaralinovaszonas,basesouplataformassegurasconstruídassegundoomesmoesquematopográfico.

Paraosapóstolosdotelecomando,essainvençãoseriaoremédioporfimencontradoparaocalváriodaquelesquetrabalhamemcondiçõesextremas.Poisenquantoseprevia,naerado

átomoedaconquistaespacial,“umanecessidadecrescentedeefetuartarefasemambienteshostis”,tinha-setambémasatisfaçãodeanunciaraboa-nova:“Comosprogressosatuaisdatecnologia,nãoémaisnecessárioexigirqueumhomemseexponhaaoperigofísicoparaganharavida[…]nãohánenhumatarefaperigosaefetuadahojeporhomensquenãopossa,emprincípio,serefetuadapormáquinascontroladasadistância”.[9]

Otelecomando,instrumentofilantrópico,conseguirialivrarohomemdetodasasocupaçõesperigosas.Mineradores,bombeiros,trabalhadoresdoátomo,doespaçooudosoceanos,todospoderiamseconverteremoperadoresremotos.Osacrifíciodoscorposvisnãoémaisnecessário.Comadissociaçãodecorpovitalecorpooperatório,sóosegundo,integralmentemecanizadoesacrificável,seriadoravantedeixadoemcontatocomoperigo:“Nãohámaisninguémparaserferido.Umdesmoronamentoouumaexplosãosóprovocariamessareação:‘Émuitotriste.Perdemosseisrobôs’”.[10]

Nalistaentusiastadasaplicaçõespossíveisparaotelequir,Clarkhaviaesquecidoumadelas,quenoentantoeraevidente,equeumleitornãohesitouemobservar:

Asmentesdostelequiristasestãosedebatendocomosproblemasdeempregarmáquinastelecomandadascapazesderealizartarefaspacíficasdehomensexpostosaosperigosdocalor,daradiação,doespaçoedoleitooceânico.Seráqueelestêmnoçãodasprioridades?Seusprimeirosesforçosemrelaçãoàsegurançahumananãodeveriamsedirigiràprofissãomaisperigosadahumanidade–aindústriadaguerra?[…]PorqueoshomensdoséculoXXdeveriamcontinuaraserassoladospelasbalaseestilhaçosdeobusquandoumsoldadotelequíricopoderiafazeromesmonolugardeles?[…]Todasasguerrasconvencionaispoderiamserconduzidastelequiricamente,porexércitosderobôsmilitaresqueseenfrentariamembatalhasporcontroleremoto.Asvitóriaseasderrotasseriamcalculadasearbitradasporcomputadoresneutros,aopassoqueoshumanosestariamemsegurançaemcasaassistindopelatelevisãooóleolubrificantemanchandoaareianumsímilesensíveldeseuprópriosangue.[11]

Eraautopiadeumaguerraconvertidaemtorneiodemáquinas–batalhassemsoldadoseconflitossemvítimas.Masoleitor,quenãoeraimbecil,concluíanumcenáriocompletamentediverso,infelizmentebemmaisverossímil:

AsgrandesconquistasimperiaisqueforamasnossasnooutroextremodaTerraporquepossuíamosametralhadoraMaximeelestinhamalança[knobkerry]serãolembradasàvistadosnovostriunfossemsangueporquetemostropastelequíricas,enquantoeles,ospobrescoitados,sótêmnapalmegásmostarda.[12]

Quandoodispositivotelecomandadotorna-semáquinadeguerra,oinimigoéqueétratadocomomaterialperigoso.Eliminam-nodelonge,observando-omorrernatelaapartirdocasuloaconchegantedeumasafezone[zonasegura]climatizada.Aguerraassimétricaseradicalizaparase

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tornarunilateral.Poiséclaroqueaindasemorre,massódeumlado.

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Ahumanidadenecessitavadelaelogoelaestavalá.Hegel[1]

2.GenealogiadoPredator

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Ajovemqueposavanestafotografia,em1944,segurandoumahélicededrone,aindasechamavaNormaJeaneDougherty.ElafoiimortalizadaporumfotógrafoquevierafazerumareportagemsobreaRadioplaneCompany,fundadaemLosAngelesporReginaldDenny,um

atordecinemamudoconvertidoaoaeromodelismo.AssimfoidescobertaaquelaoperáriaqueviriaasetornarMarilynMonroe.OdronenasceemparteemHollywood.Forçosamente,portanto,sobosignodahipocrisia.

UmaoperáriadaRadioplaneCompany…(1944).

Naorigem,eminglês,otermosignificava“zangão”–oinsetoeseuzumbido.FoisónocomeçodaSegundaGuerraMundialquecomeçouaadquiriroutrosentido.Osaprendizesdeartilheironorte-americanosempregaramentãoaexpressão“targetdrones”,“drones-alvos”,paradesignarospequenosaviõesradiocomandadosqueusavamcomoalvoparatreinar.Ametáforanãosereferiasomenteaotamanhodessesaparelhosouaozumbidodeseumotor.Oszangõessãomachossemferrão,queasabelhasacabampormatar.Atradiçãoclássicafezdelesosemblemasdofactícioedodispensável.[2]Ora,éexatamenteissotambémqueeraotargetdrone:umamaquetefeitaparaserabatida.

Masfoiprecisoesperaraindamuitotempoparaverosdronesplanaremsobreoscamposdebatalha.Aideiacomcertezaeraantiga:houveo“Curtiss-Sperryaerialtorpedo”eo“KetteringBug”nofinaldaPrimeiraGuerraMundial.Edepois,obviamente,osV-1eV-2nazistaslançadossobreLondresem1944.Masessesantigostorpedosvoadorespodemserconsideradosmaiscomoos

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ancestraisdomíssildecruzeiroquedodroneatual.Adiferençaessencialéque,enquantooprimeirosóserveumavez,osegundoéreutilizável.[3]Odronenãoéumprojétil,masumdispositivoportadordeprojéteis.

FoinoVietnãqueaAirForce,pararesponderaosmísseisterra-arsoviéticosquelhehaviaminfligidoperdas,investiuemprogramasdedronesdereconhecimento:os“LightningBugs”daempresaRyan.[4]Esses“veículospilotadosadistância”,explicavaumoficialnorte-americano,“evitamqueastripulaçõessejammortasoufeitasprisioneiras[…]graçasaeles,asobrevivêncianãoémaisumfatordeterminantealevaremconta”.[5]

Depoisdofimdaguerra,essesdispositivosforamdeixadosdelado.[6]Nofinaldosanos1970,odesenvolvimentodosdronesmilitaresfoipraticamenteabandonadonosEstadosUnidos.Masprosseguiuemoutroslugares.Israel,quehaviaherdadoalgumasdessasmáquinas,soubepercebersuasvantagenstáticaspotenciais.

Em1973,oTsahal,oexércitoisraelense,enfrentouporsuavez,diantedoEgito,oproblematáticodosmísseisterra-ar.DepoisdeperdercercadetrintaaparelhosduranteasprimeirashorasdaGuerradoYomKippur,aaviaçãodoEstadohebreumudoudetática.Decidiu-seenviarumaondadedronesparaenganarasdefesasadversárias:“Depoisqueosegípciosatiraramsuaprimeirasalvacontraosdrones,osaviõesdecombatepuderampassaraoataqueenquantooinimigoserecarregava”.[7]OardilpermitiuaIsraelgarantirocontroleaéreo.Omesmotipodetáticafoirecicladocontraossírios,em1982,naplaníciedoBekaa.TendopreviamentelançadosuafrotadedronesMastiffeScouts,osisraelensesenviaramemseguidaaviões-chamarizesnadireçãodosradaresinimigos,queativaramseusmísseisterra-arempurodesperdício.Osdrones,que,docéu,observavamacena,puderamfacilmentedeterminaralocalizaçãodasbateriasantiaéreaseindicá-lasaosaviõesdecombate,queasaniquilaramnasequência.

DoisdiasdepoisdeumatentadoterroristaterdestruídoocampodefuzileirosestacionadoemBeirute,emoutubrode1983,ogeneralnorte-americanoP.X.Kelleyvoousecretamenteaolocal.Nãovazounenhumapalavrasobresuachegada.Noentanto,dooutroladodafronteira,osoficiaisdainteligênciaisraelenseobservavam,aovivonumateladetelevisão,asimagensdesuachegadaedesuainspeção.Puderamatémesmoaproximá-lasecentraracabeçanovisordamira.Algumashorasdepois,emTelAviv,osisraelensesmostraramofilmeaogeneralestupefato.Acena,explicaram-lhe,foratransmitidaporumdroneMastiffquepatrulhavaaoabrigodosolharesacimadoacampamento.[8]

Essefoiumdospequenosacontecimentosqueconcorreramparaorelançamentodosprogramasdedronesnorte-americanosnosanos1980.“Tudooqueeufiz”,confiouAlEllis,opaidosdronesisraelenses,“foipegarumaviãodemodelismo,equipá-locomumaparelhofotográficoetirarfotos[…]masissodeuorigematodaumaindústria.”[9]

Naépoca,entretanto,osdronesnãopassavamdedispositivosde“informação,vigilânciaereconhecimento”.Eramapenasolhos,nãoarmas.Ametamorfosedeu-sequaseporacaso,entreoKosovoeoAfeganistão,nomomentoemqueseiniciavaumnovomilênio.AGeneralAtomicshaviaconcebidodesde1995umnovoprotótipodeavião-espiãotelecomandado–oPredator.Apesardoqueesseinquietantenomejádeixavapressagiar,aferaaindanãoeramunidanemdegarrasnemde

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dentes.NoKosovo,ondefoiutilizadoem1999,odroneselimitavaafilmare“iluminar”alvoscomlaserparaindicá-losaosataquesdosaviõesF16.

“Foiprecisotodaaimprevisibilidadedeum‘novotipodeguerra’paraqueoPredatorsetornasserealmenteumpredador”.[10]Algunspoucosmesesantesde11desetembrode2001,oficiaisqueotinhamvistoemaçãonoKosovotiveramaideiadeequipá-loatítuloexperimentalcomummíssilanticarro:

Em16defevereirode2001,porocasiãodetestesconduzidosnumabasedaAirForce,emNellis,umPredatorlogrouatingirseualvocomummíssilHellfireagm-114C.OPredatortornara-seumpredador.MasninguémaindapodiaimaginarquenofinaldomesmoanoeleestariausandoalvosvivoscomopresasnoAfeganistão.[11]

Quasedoismesesdepoisdocomeçodashostilidades,GeorgeW.Bushdeclarava:“OconflitonoAfeganistãonosensinoumuitomaissobreofuturodonossoexércitoqueumadécadadecolóquiosdealtoníveledesimpósiosthinktankjuntos.OPredatoréumótimoexemplo[…]éclaroqueoexércitoaindanãopossuiquantidadesuficientedeveículossempiloto”.[12]

UmdronePredatorlançandoummíssilHellfire.

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Ofertadeemprego:Analistaparaprogramadecaçaaohomemnoâmbitodeoperaçõesespeciais.Perfildocargo:trabalharparaodesenvolvimentodeumaformaçãoinovadoraparaosoperadoresdecaçaaohomem.Pré-requisitos:níveldepós-graduaçãonumadisciplinaassociada.Habilitaçãodenível“secret”equalificar-separaonível“topsecret”.Anúncioclassificadopublicadopelaempresamilitardesegurançasaicem2006

3.Princípiosteóricosdacaçaaohomem

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Em2004,JohnLockwoodabriuumsitenainternetchamado“live-shot.com”.Oconceitoeraaumsótemposimpleseinovador:inscrevendo-seon-lineporalgunsdólares,ointernautapodiasetornarum“caçadorvirtual”.Pormeiodeumacâmerafixadanumaarmadefogomóvel,

ligadaaumtelecomandovirtual,erapossível,semsairdecasa,abateranimaisvivossoltosparaaocasiãoemumranchodoTexas.

Assimqueainiciativaficouconhecida,areaçãofoigeral.OredatorchefedarevistaOutdoorLife,nãoescondendoosprofundos“problemaséticos”queelevianesseempreendimento,propôsumabeladefiniçãodosignificadodecaçar:acaça“paramim,nãoésimplesmenteapertarogatilhomirandooanimal.Éumaexperiênciatotal[…]éestarali,aoarlivre–nãosóapertarogatilhoclicandoummouse”.[1]UmparlamentardoWisconsinretomouemcoroessadefinição,matizando-ademodo,aliás,muitoestranhamenteambientalista:“Paramim,caçaréestaraoarlivre[…]fazer-seumcomanatureza”.[2]MesmoaultraconservadoraNRA[NationalRifleAssociation],[3]aliando-seassim,excepcionalmente,àSociedadeProtetoradosAnimaisemumcombatecomum,anunciousuaoposição:“Pensamosquecaçardeviaseraoarlivre,equesentarnafrentedeumcomputadorsituadomuitolongeemoutroestadonãosequalificacomoatode‘caçar ’”.[4]UmoficialdepolíciadeHoustonfoiaindamaiscategórico:“Issonãoécaça,éassassínio.Alguémsesentanafrentedeumcomputadorealgumacoisamorresemrazão”.[5]

FoiemvãoqueLockwoodprofessousuaboa-fé,clamandoqueseuobjetivoprimeiroerapermitirquepessoasdeficientesapaixonadaspelacaçapraticassemseupassatempofavorito,oucitandootestemunhodeumsoldadonorte-americanonoIraquequelheagradeciaporter-lheproporcionadoumaoportunidadetãoboadizendo-lhenãosaber“quandopoderiairdenovoàcaça”.Desalentado,LockwoodtentouseadaptarpropondoaseusclientesqueatirassememalvosdepapelãocomaefígiedeOsamaBinLaden,masosinternautaspassaramaseinteressarporoutrasformas,semdúvidamaisexcitantes,deprazeresinterconectados.Emconsequência,apequenastart-up,tãopromissora,periclitou.

Osdiferentesmóbeisdaindignaçãomoraltêmseusmistérios.Enquantoacaçavirtualaosanimaissuscitavaescândaloquaseuniversal,acaçaaohomemtelecomandada,namesmaépoca,prosperavatranquilamente,emformassimilares,semqueninguém,entreessesmesmosatores,encontrassenadaaobstar.

Desdeosprimeirosdiasqueseseguiramao11deSetembro,GeorgeW.Bushprevenira:osEstadosUnidosiamselançaremumnovotipodeguerra,“umaguerraquerequerdenossaparteumacaçaaohomeminternacional”.[6]OqueaprincípiosoavasimplesmentecomoumsloganpitorescodecaubóitexanofoidepoisconvertidoemdoutrinadeEstado,comespecialistas,planosearmas.Emumadécadaconstituiu-seumaformanãoconvencionaldeviolênciadeEstadoquecombinaascaracterísticasdísparesdaguerraedaoperaçãodepolícia,semrealmentecorrespondernemaumanemàoutra,equeencontrasuaunidadeconceitualepráticananoçãodecaçaaohomemmilitarizada.

Em2001,DonaldRumsfeldhaviaseconvencidodeque“astécnicasutilizadaspelosisraelensescontraospalestinospodiamsimplesmenteteraescalaampliada”.[7]Elepensavasobretudonosprogramasde“assassinatosseletivos”cujaexistênciaIsraelacabavadereconheceroficialmente.Uma

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vezqueosterritóriosocupadoshaviamsetornado,comoexplicaEyalWeizman,“omaiorlaboratóriodomundoparaas‘tanatotáticas’aerotransportadas”,[8]nãoeradesurpreenderqueestasfossemexportadas.

Masrestavaumproblema:“ComoorganizaroDepartamentodeDefesaparacaçasaohomem?Obviamente,confessavaRumsfeldem2002,nãoestamosmuitobemorganizadosnomomentopresente”.[9]OaparelhomilitardosEstadosUnidosnãoestavapronto,nocomeçodosanos2000,paragarantiremescalamundialecomeficáciamissõesemgeraldesempenhadaspelapolícianoespaçodoméstico:aidentificação,orastreamento,alocalizaçãoeacaptura–massobretudo,nocaso,aeliminaçãofísica–deindivíduossuspeitos.

Internamente,osoficiaissuperioresqueeraminformadosdessasnovasorientaçõesnãoacolhiamtodosessesplanoscomentusiasmo:“Muitos”,relatavaSeymourHershnaocasião,“receiamqueotipodeoperaçãoproposta–oqueumconselheirodoPentágonobatizoude‘caçaaohomempreventiva’–setransformeemumnovo‘programaPhoenix’”;esseeraonomedosinistroprogramaclandestinodeassassinatosetorturaslançadoemsuaépocanoVietnã.[10]

Adificuldadesedesdobravaobviamenteaindaemoutrosregistros,entreosquaisodajustificativalegaldessasoperaçõeshíbridas,enfantsterriblesdapolíciaedoexército,daguerraedacaça,queseaparentam,tantonoplanodateoriadaguerracomododireitointernacional,amonstrosconceituais.Masvoltaremosaissomaisadiante.

Dequalquermaneira,foiprecisotentardefinireimporumanovadoutrinaestratégica.Pesquisadorestrabalharamparaenunciaros“princípiosteóricosdacaçaaohomem”[11]destinadosaservirdereferênciaaessasoperações.GeorgeA.Crawfordosresumiuemumrelatóriopublicadoem2009pelaJointSpecialOperationsUniversity.Essetexto,quesepropunha“fazerdacaçaaohomemumdosfundamentosdaestratégiadosEstadosUnidos”,[12]instavaacriaruma“agêncianacionaldacaçaaohomem”,[13]instrumentoindispensávelpara“construirumaforçadecaçaaohomemparaofuturo”.[14]

Adoutrinacontemporâneadaguerracinegéticarompecomomodelodaguerraconvencionalbaseadanosconceitosdefrentesdecombate,debatalhalinearedeoposiçãofaceaface.Em1916,ogeneralPershinglançouumavastaofensivamilitarnoMéxicoparacapturarorevolucionárioPanchoVilla.Essedestacamentomaciçodeforçafoiumfiasco.Paraosestrategistasnorte-americanos,quemencionamesseprecedentehistóricoatítulodecontraexemplo,trata-sedeinverterapolaridade:peranteas“ameaçasassimétricas”quepequenosgruposmóveisde“atoresnãoestatais”apresentam,empregarpequenasunidadesflexíveis,humanasou,depreferência,telecomandadas,emumalógicadeataquesseletivos.

ContrariamenteàdefiniçãoclássicadeClausewitz,essaguerranãoémaispensada,emsuaestruturafundamental,comoumduelo.Oparadigmanãoéodedoislutadoresqueseenfrentariam,masdeumcaçadorqueavançaeumapresaquefogeouseesconde.Asregrasdojogonãosãoasmesmas:

Nacompetiçãoentredoisinimigoscombatentes,oobjetivoévencerabatalhafazendooadversárioperder–osdoiscombatentesdevemseconfrontarparaganhar.Umroteirodecaçaaohomemédiferente,poisaestratégiadecadajogadorédiferente[sic].

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Ofugitivoprocuraevitaracaptura,enquantoaquelequeoperseguequeralcançarecapturarseualvo–ocaçadorprecisadoconfrontoparaganhar,enquantoofugitivotemdefugirparaganhar.[15]

Arelaçãodehostilidadereduz-seentão,comonumesconde-esconde,a“umacompetiçãoentreosqueseescondemeosqueprocuram”.[16]Aprimeiratarefajánãoéimobilizaroinimigo,masidentificá-loelocalizá-lo.Issoenvolvetodoumtrabalhodedetecção.Aartedorastreamentomodernobaseia-senousointensivodasnovastecnologias,combinandovigilânciaaéreaporvídeo,interceptaçãodesinaisetraçadoscartográficos.Aatividadedoscaçadoresdehomemtemhojeseujargãotecnocrático:“Atopografiadasconexõeséumaextensãodapráticageneralizadadaanálisedasredessociaisutilizadaparadesenvolverosperfisdosindivíduosdegrandevalor[…].Osmapastopográficosdasconexõestraçam‘fóruns’sociaisouambientesqueligamosindivíduosunsaosoutros”.[17]

Nessemodelo,oindivíduoinimigonãoémaisconcebidocomoumelonacadeiadecomandohierárquico:éumnóouum“node”inseridoemredessociais.Deacordocomoconceitodeguerraemrede(NetworkCentricWarfare[NCW])edeoperaçõesbaseadasnosefeitos(EffectsBasedOperations[EBO]),postula-seque,aoapontareficazmenteosnodes-chavedeumaredeinimiga,estapodeserdesorganizadaapontodeserpraticamenteaniquilada.Osproponentesdessametodologiaafirmamque“aidentificaçãodeumúniconode-chave[…]temefeitossecundários,terciários,decategorianequeessesefeitospodemsercalculadoscomexatidão”.[18]Énessapretensãodecálculopreditivoquesebaseiaapolíticadeeliminaçãoprofiláticaquetemnosdronescaçadores-matadoresseusinstrumentosprivilegiados.Poisaestratégiadacaçaaohomemmilitarizadaéessencialmentepreventiva.Nãosetratatantodereplicarataquesdeterminados,massimdepreveniraeclosãodeameaçasemergentespelaeliminaçãoprecocedeseuspotenciaisagentes:“Detectar,inibir,quebrar,prenderoudestruirasredesantesquepossamcausarprejuízos”.[19]Eissoindependentementedequalquerameaçadiretaiminente.[20]

Aracionalidadepolíticasubjacenteaessetipodepráticaéadadefesasocial,comseuinstrumentoclássico,amedidadesegurança,quenãoé“destinadoapunir,massomenteapreservarasociedadecontraoriscoqueelacorrecomapresençadeseresperigososemseuseio”.[21]Nessalógicadesegurançabaseadanaeliminaçãopreventivadeindivíduosperigosos,a“guerra”tomaaformadevastascampanhasdeexecuçõesextrajudiciais.PredatorouReaper–avesderapinaeanjosdamorte–,osnomesdosdronessãobemescolhidos.

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ÉumpoucocomoterDeussobreasuacabeça.Eoraioabate-sesobaformadeummíssilHellfire.CoronelTheodoreOsowski[1]

BuscandooolhodeDeus,sóviumaórbitavaga,Vasta,negraesemfundo,deondeanoitequevagaCintilasobreomundoeencheasformasvaziasGérarddeNerval[2]

4.Vigiareaniquilar

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Doalto,oolhodeDeusabraçacomseuolharomundointeiro.Suavisãoémaisqueumavisão:elapodesondar,sobapeledosfenômenos,osrinseoscorações.Nadalheéopaco.Porqueelaéeternidade,elaabraçatodootempo,opassadoeofuturo.Seusaber,porfim,nãoésó

umsaber.Àonisciênciacorrespondeaonipotência.

OolhodeDeus(1551).[3]

Emmuitosaspectos,odronesonharealizar,pelatecnologia,umpequenoequivalentedessaficçãodoolhodeDeus.Comoescreveummilitar:“Utilizandooolho-que-tudo-vê,vocêpodedescobrirqueméimportantenumarede,ondeelesvivem,quemossustenta,quemsãoseusamigos”.[4]Emseguida,bastaesperar“queessaspessoascheguemaumtrechodeestradaisolado,paraeliminá-lascomummíssilHellfire”.[5]

Ospromotoresdosdronesinsistemnesseponto:essesdispositivos“revolucionaramnossacapacidadedemanterumolharconstantesobreoinimigo”.[6]Aíestariaacontribuiçãofundamental:umarevoluçãonoolhar.Dequemodo?Essasinovaçõespodemseragrupadassobváriosgrandesprincípios.

1º)Princípiodeolharpersistenteoudevigíliapermanente.Emancipadodaslimitaçõesqueocorpodopilotorepresentavaparaoavião,odronepodeficarnoarpormuitotempo.Seuolharpodepermanecerconstante,24horaspordia–oolhomecâniconãotempálpebras.Enquantoodispositivopatrulha,osoperadores,emterra,trabalhamemturnosnafrentedatela.Atransferênciadatripulaçãoparaforadeseucockpitpermitiuumaprofundareorganizaçãodotrabalho,e,narealidade,éisso,alémdasproezastecnológicasdamáquina,quegarante,porforçadamultiplicaçãosocializadadaspupilashumanas,a“vigíliageoespacialconstante”[7]doolharinstitucional.

2º)Princípiodetotalizaçãodasperspectivasoudevistasinóptica.Osegundograndeprincípioassociaàpersistênciadoolharsuatotalização.Éanoçãodevigilânciadeamplaextensão(widearea

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surveillance).Vertudo,otempotodo.Essaextensãodocampodevisãoestáemviasdeserconfiadaanovosdispositivosópticosrevolucionáriosqueaindaestãoemfasededesenvolvimento.Equipadocomtaissistemasde“imagenssinópticas”,umdronedisporianãomaisdeuma,masdedezenasdemicrocâmerasdealtaresoluçãoorientadasemtodosossentidos,comoasmúltiplasfacetasdeumolhodemosca.Umsoftwareagregariaemtemporealessasdiferentesimagensemumaúnicavistadeconjunto,detalhávelàvontade.[8]Oqueseobteriaseriaoequivalentedeumaimagemdealtaresoluçãoporsatélite,naescaladeumacidadeoudeumaregiãointeira,mastransmitidaemvídeoeaovivo.Atodomomento,asdiferentesequipesdeoperadorespoderiam,sequisessem,darumzoomsobredeterminadobairroouindivíduo.Equipadocomessesistema,umúnicoaparelhoemvooestacionárioforneceriaoequivalentedascapacidadesdeumarededecâmerasdevigilânciadisseminadaportodaumacidade.Odronesetornaria“onividente”.

Naprática,entretanto,aindaestamosmuitolongedisso.Umrelatóriomilitarconsideraodispositivoatualnãooperacional:nemeficaz,nemadaptado–temresoluçãoinsuficiente,emespecialparaseguircomeficáciaaspessoas,efalhaspreocupantesemseusistemadelocalização.[9]Masoquemeimportaporenquantoédeterminarosprincípiosorientadoresdessaracionalidade,semfazernenhumprejulgamentosobresuaefetividadeatual.

3º)Princípiodearquivamentototaloudofilmedetodasasvidas.Avigilânciaópticanãoselimitaàvigíliaemtemporeal.Elaseredobracomumafunçãomuitoimportantedegravaçãoedearquivamento.“Aideia,portrásdanoçãodevigilânciapersistente,éfazerumfilmedeumaáreadotamanhodeumacidadeparapoderseguirosdeslocamentosdetodososveículosepessoasqueláseencontram”.[10]Depoisderealizado,essefilmedetodasasvidasedetodasascoisaspoderiaserrepassadomilharesdevezes,focalizandocadavezumpersonagemdiferente,aproximandodeleparareverahistóriaapartirdesuaescala.Seriapossívelescolhertrechos,voltar,reverouadiantarascenas.Navegarabel-prazer,nãosónoespaço,mastambémnotempo.Comaocorrênciadeumacontecimento,seriapossívelvoltarpararetraçarsuagenealogia:“Seumacidadeinteirapudesseservigiadadeumasóvez,oscarros-bombaspoderiamserrastreadosatéseupontodeorigem”.[11]Oarquivototalgarantiriaantecipadamente,nummodoprovisório,arastreabilidaderetrospectivadetodosositineráriosedetodasasgêneses.

Masissosuporiacapacidadesdeestocagem,indexaçãoeanálisequeossistemasatuaisnãopossuem.[12]Aimprensareportaqueem2009osdronesnorte-americanosgeraramoequivalentea24anosdegravaçãoemvídeo.[13]EonovosistemaARGUS-ISpromete“gerarváriosterabytesdedadosporminuto,ouseja,cemvezesmaisqueossensoresdageraçãoanterior”.[14]Masaíestájustamenteoproblema,quesetornouonipresente,odadataoverload,deumasobrecargaouumaavalanchededadosqueacabaportornarainformação,porsuaprofusão,inexplorável.

Pararemediaresseproblema,oPentágonovaiaoestádio.Ofutebolnorte-americano,espetáculotelevisionadoporexcelência,éumcampodeinovaçãoavançadonodomíniodotratamentoemvídeo.Emcadapartida,dezenasdecâmerasfilmamosjogadoresemseusmínimosdetalhes.Cadasequênciaéinstantaneamenteindexadaemumabasededados.Pormeiodeumsoftwaredealtaperformance,orealizadorpode,aomesmotempoqueasestatísticassãoexibidasnatela,repassarqualqueraçãodequalquerjogosobdiferentesângulos.ComoexplicaLarryJames,quedirigeoramo“informação,

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vigilânciaereconhecimento”daAirForce,“emmatériadecompilaçãoeanálisedosdados,oscanaisesportivosestãomaisavançadosqueosmilitares”.[15]Oexércitonorte-americano,depoisdeterenviadoemissáriosaosestúdiosdocanalesportivoESPN,decidiuadquirirumaversãomodificadadosoftwareporelesutilizado.[16]Apreocupação,afinal,éamesma:“Oslocutoresesportivosqueremcoletarecatalogarvídeossobreumjogadorespecíficoouumbomarremesso;osmilitaresqueremdispordecapacidadesemelhanteparaseguirinsurgentes”.[17]Aguerrafutura,preveniahámuitotempoWalterBenjamin,apresentará“umaspectoesportivoquesuperaráascategoriasmilitaresecolocaráasaçõesguerreirassobosignodorecorde”.[18]

Aetapatecnológicaseguinteseriaautomatizaraindexaçãodasimagens.Emvezdeterdeentrarmanualmentenastagsounosmetadados,confiaressatarefafastidiosaàmáquina.Masparaissoseriamnecessáriossoftwarescapazesdedescreverascoisaseasações,ouseja,traduzirautomaticamenteagregadosdepixelsemnomes,verboseproposições.ADarpa[DefenseAdvancedResearchProjectsAgency]financiapesquisasnessesentido,destinadasaconstruir“sistemascognitivosintegradosparavideovigilânciaautomatizada”,dasquaisparticipampesquisadoresemciênciascognitivas.[19]

Éprecisoimaginarnofuturomáquinas-escribas,escrivãosvoadoreserobotizadosqueelaborariamemtemporealaatadasmínimasatividadesdomundosituadoabaixodeles.Comose,emparaleloàvidadoshomens,ascâmerasquejácapturamsuasimagensanimadassepusessemaredigirsimultaneamenteseurelatóriocircunstanciado.Masessaslinhasdetexto,essacrônicameticulosadetodososfatosedetodososgestos,constituiriamtambém,aomesmotempo,umgrandeíndice,ocatálogoinformatizadodeumaimensavideotecaemquetodasasvidassetornariam,emcadaumadascenasroubadaspelacâmera,retrospectivamente“pesquisáveis”.

4º)Princípiodefusãodedados.Osdronesnãotêmsóolhos,têmtambémorelhasemuitosoutrosórgãos:“OsdronesPredatoreReaperpodeminterceptarascomunicaçõeseletrônicasemitidasporrádios,telefonescelularesououtrosaparelhosdecomunicação”.[20]Odesafio,parafinsdearquivamento,consisteemfundiressasdiferentescamadasdeinformação,remetê-lasumasàsoutrasparacombinaremumsóitemasdiversasfacetasinformacionaisdeummesmoacontecimento.Associar,porexemplo,determinadachamadatelefônicaadeterminadasequênciaemvídeoeadeterminadascoordenadasGPS.Éoconceitode“fusãodosdados”[datafusion].[21]

5º)Princípiodeesquematizaçãodasformasdevida.Essacapacidadede“visualizardadosprovenientesdediversasfontes,combinandoo‘onde’,o‘quando’eo‘quem’emumtraçadoemtrêsdimensões,observaDerekGregory,lembraosdiagramascronogeográficoselaboradospelogeógrafosuecoTorstenHägerstrandnosanos1960”.[22]Essacorrentebastanteinventivadageografiahumanasepropunhadesenharmapasdeumnovotipo,gráficosespaçotemporaisquemostrariampercursosdevidaemtrêsdimensões,comseusciclos,itinerários,mastambémacidentesederivas.Crueldesvio,esseprojetodeumacartografiadasvidasconstituihojeumdosprincipaissuportesepistêmicosdavigilânciaarmada.Oobjetivoépoder“seguirváriosindivíduosatravésdediferentesredessociaisafimdeestabelecerumpadrãoouum‘esquemadevida’[patternoflife],emconformidadecomoparadigmada‘informaçãobaseadanaatividade’queconstituihojeonúcleoda

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doutrinadacontrainsurgência”.[23]

Aocontráriodoquesepoderiapensar,oobjetivoprincipaldessesdispositivosdevigilânciapersistente,maisdoqueseguirindivíduosjáconhecidos,éversurgiremelementossuspeitosquechamamaatençãoporseuscomportamentosanômicos.Comoessemodelodeinformaçãoestá“baseadonaatividade”,istoé,emumaanálisedascondutasmaisdoquenoreconhecimentodeidentidadesnominais,elepretende,paradoxalmente,“identificar”indivíduosquepermanecemanônimos,ouseja,qualificá-lospelatipicidadedeseucomportamentorelacionadoaumperfildeterminado:identificaçãonãomaissingular,masgenérica.[24]6º)Princípiodedetecçãodasanomaliasedeantecipaçãopreventiva.Asimagenssãoescaneadasparaidentificar,nomeiodetodasasatividades,osacontecimentospertinentesparaoolharseguro.Esteschamamaatençãoporsuaanomia,porsuairregularidade.Qualquercomportamentoquealtereatramadasatividadeshabituaisassinalaumaameaça.SegundoumanalistadaAirForce,

hoje,analisarasimagenscapturadaspelosdroneséumaatividadeameiocaminhoentretrabalhopolicialeciênciassociais.Ofocoestánacompreensãodos“esquemasdevida”enosdesviosdessesesquemas.Porexemplo,seumapontenormalmentecheiadegenteseesvaziaderepente,issopodesignificarqueapopulaçãolocalsabequealguémcolocouumabombaali.Agora,vocêsestãocomeçandoafazerumtrabalhodeestudocultural,estãoobservandoavidadaspessoas.[25]

Oessencialdatarefa,resumeGregory,consisteem“distinguirentreatividade‘normal’e‘anormal’emumaespéciederitmanálisemilitarizadaquetomaformascadavezmaisautomatizadas”.[26]

Adetecçãoautomáticadoscomportamentosanormaisprosseguepormeiodaprediçãodeseuspossíveisdesenvolvimentos.[27]Umavezqueostraçoscaracterísticosdeumasequênciaconhecidasãoidentificadosemumadeterminadasituação,osanalistaspretendeminferircomousodaprobabilidade,prolongandoaslinhas,suastrajetóriasfuturas,eintervirantecipadamenteparaimpedirqueocorram.Éafunção“avançorápido”dodispositivo:“Oreconhecimentoautomáticodecertoscenáriospodeforneceralertasprecocesdeumaameaça”.[28]Aprevisãodofuturoseapoianoconhecimentodopassado:osarquivosdasvidasformamabasesobreaqual,pormeiodaidentificaçãodasregularidadeseantecipaçãodasrecorrências,sepretendeconseguirdeumasóvezpredizerofuturoemodificarseucursoporumaaçãopreemptiva.Essaspretensõesseassentamevidentementeembasesepistemológicasbastantefrágeis,oquenãoimpedeemnada–pelocontrário–quesejammuitoperigosas.

Onomedadoaessesdispositivostambémérevelador:Argus,[29]eGorgonStare,[30]oolhardaGórgona.Namitologiagrega,Argos,opersonagemdecemolhos,eratambémchamadoPanoptes,“quemtudovê”.Opan-ópticodeBentham,analisadoporFoucault,começavapelaarquitetura.Nacontinuidadedesseesquema,osmurosdascidades,nestasúltimasdécadas,serechearamdecâmerasdevideovigilância.Avigilânciapelodroneémaiseconômica:nãoimplicanemadaptaçõesespaciaisnemafixaçõesnasconstruções.Oareocéulhebastam.ComonofilmeEyeborgs,[31]ascâmerassedesprendemdosmurosenelascrescemasasearmas.Entramosnaeradospan-ópticosvoadoresearmados.JáoolhardaGórgonapetrificavaaquelesquetinhamainfelicidadedecruzá-lo.Éoolharquemata.Nãomais,portanto,“vigiarepunir”,masvigiareaniquilar.

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DavidRohde,jornalistadoTheNewYorkTimessequestradoem2008edetidonoWaziristãodurantesetemeses,foiumdosprimeirosocidentaisadescreverosefeitosqueessavigilâncialetalpersistenteproduziunaspopulaçõesaelasubmetidas.Evocandoum“infernonaTerra”,eleacrescenta:“Osdroneseramaterradores.Dochão,éimpossíveldeterminarquemouoqueelesestãorastreandoenquantodescrevemcírculossobresuacabeça.Ozumbidolongínquodomotorsoacomoalembrançaconstantedeumamorteiminente”.[32]

Ostestemunhoscoletadosnessaregiãopelosautoresdorelatório“Viversobosdrones”,elaboradoem2012,seguemamesmalinha:

Elesestãosemprenosvigiando,estãosempreemcimadenós,eagentenãosabenuncaquandovãoatacar.[33]

Todomundotemmedootempotodo.Quandonosencontramosparafazerumareunião,temosmedodequehajaumataque.Quandoouvimosodronegirandonocéu,pensamosqueelepodeatacar.Estamossemprecommedo.Temossempreessemedoemnossacabeça.[34]

Osdronesestãosemprenaminhacabeça.Issomeimpedededormir.Sãocomoummosquito.Mesmoquandoagentenãovê,dáparaouvir,agentesabequeestãolá.[35]

Ascrianças,osadultos,asmulheres,estãotodosaterrorizados…Eleschoramdeterror.[36]

UmhabitantedeDattaKhel–umalocalidadeatacadamaisdetrintavezespelosdronesnostrêsúltimosanos–acrescenta,sobreseusvizinhos:“Muitosestãomentalmentedesequilibrados[…]ficamfechadosnumquarto.Assimcomoquandopessoassãotrancadasnaprisão,elesficamfechadosnumquarto”.[37]

Osdrones,comefeito,petrificam.Elesproduzemumterrordemassa,infligidoapopulaçõesinteiras.Éesse,alémdosmortoseferidos,dosescombros,dacóleraedoslutos,oefeitodeumavigilâncialetalpermanente:umisolamentopsíquico,cujoperímetronãoémaisdefinidoporgrades,barreirasoumuros,maspeloscírculosinvisíveisquetraçamemcimadascabeçasosrodopiossemfimdemirantesvoadores.

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Oschefesinimigosseparecemcomumapessoaqualquer;oscombatentesinimigosseparecemcomumapessoaqualquer;osveículosinimigosparecemveículoscivis;asinstalaçõesinimigaspareceminstalaçõescivis.ConselhocientíficodaDefesanorte-americana[1]

5.Análisedasformasdevida

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“Éomaisestranhodosrituaisburocráticos:todasassemanas,maisdecemmembrosdotentacularaparelhodesegurançanacionalsereúnemporteleconferênciaseguraparadissertarsobreasbiografiasdesuspeitosterroristaserecomendaraopresidenteaquelesquedevemserospróximosamorrer.”[2]Essareuniãosemanalfoiapelidada,emWashington,de“terça-feiradoterror”[TerrorTuesday].Depoisdeelaborada,alistadosindicadossegueàCasaBranca,ondeoprópriopresidenteaprova,oralmente,cadanome.Validadaakilllist,osdronesseencarregamdoresto.

Oscritériospertinentesparaaelaboraçãodessaslistasdecondenadosàmortesemprocessopermanecemdesconhecidos.Aadministraçãoserecusaaoferecerqualquerprecisãonamatéria.Noentanto,HaroldKoh,oconselheirojurídicodaCasaBranca,tranquiliza:“Nossosprocedimentosenossaspráticasparaaidentificaçãodosalvoslegítimossãoextremamentesólidos,eosavançostecnológicoscontribuíramparatorná-losaindamaisprecisos”.[3]Emsuma:confiememnós,deolhosfechados.

Porém,alémdesses“ataquesdepersonalidade”nominativos,hátambémos“ataquesdeassinatura”–“assinatura”aquinosentidodetraço,índiceoucaracterísticadefinidora.Estessãodirigidosaindivíduoscujaidentidadepermanecedesconhecida,mascujocomportamentolevaasupor,indicaouassinaopertencimentoauma“organizaçãoterrorista”.

Nessecaso,então,ataca-se“semconheceraidentidadeprecisadosindivíduosselecionados”,combaseapenasnofatodequeseusmodosdeagir,vistosdocéu,“correspondemauma‘assinatura’decomportamentopré-identificadaqueosEstadosUnidosassociamaumaatividademilitante”.[4]Osataquesdessetipo,contrasuspeitosdesconhecidos,constituiriamhojeamaioriadoscasos.[5]

Paraidentificaressespresumidosmilitantesanônimos,toma-secomobase

aquiloqueosoficiaisdescrevemcomouma“análisedasformasdevida”(patternoflifeanalysis),[6]quefazusodoselementosfactuaiscoletadospelascâmerasdevigilânciadosdronesedeoutrasfontes[…].Asinformaçõessãoemseguidausadasparaapontarmilitantessuspeitos,mesmoqueaidentidadeexatadelessejadesconhecida.[7]

ComoexplicaumoperadordedroneReaper:“Podemosdesenvolveressasformasdevida,determinarquemsãoosmaus,pedirautorizaçãoedepoislançartodoociclo:encontrar,fixar,seguir,mirar,atacar”.[8]

Cadaumdevocêstemumaformaouumpadrãodevida.Suasaçõescotidianassãorepetitivas,seucomportamentotemsuasregularidades:vocêselevantamaisoumenosàmesmahoraefazregularmenteomesmoitinerárioparairaotrabalhoouaoutrolugar.Encontrafrequentementeosmesmosamigosnosmesmoslugares.Seévigiado,todososseusdeslocamentospodemserobservadose,assim,éelaboradoummapacrono-espacialdeseuspercursosfamiliares.Pode-setambém,analisandoseusregistrostelefônicos,superporaessemapaodesuaredesocial,determinarquaissãoseusvínculospessoais,e,paracadaumdeles,estimaraimportânciarelativaqueocupaemsuavida.Comoexplicaummanualdoexércitonorte-americano:“Enquantooinimigosedeslocadeumpontoaoutro,oreconhecimentoouavigilânciaosegueeanotacadalugarecadapessoavisitados.Estabelecem-seassimasconexõesentreoalvo,esseslugareseessaspessoas,eosnodesda

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rededoinimigoemergem”.[9]Depoisdetecidaessaduplarede–adeseuslugaresedeseusvínculos–,pode-sepreveroseucomportamento:senãochove,éprovávelquesábadovocêváfazeroseujoggingemtalparqueatalhora.Mastambémpoderãoaparecerirregularidadessuspeitas:hoje,vocênãofezomesmocaminhoqueodecostume,teveumencontroemumlugarinabitual.Qualquerdesviodanormaquevocêmesmoestabeleceupormeiodeseushábitos,qualquerafastamentodasregularidadesdeseucomportamentopassadopodefazersoaroalerta:algoanormal,eportantopotencialmentesuspeito,estáocorrendo.

Aanálisedasformasdevidasedefinemaisprecisamentecomo“afusãodaanálisedosvínculosedaanálisegeoespacial”.[10]Paraterumaideiadoquesetrata,éprecisoimaginarasuperposição,nummesmomapanumérico,deFacebook,GoogleMapseumcalendárioOutlook.Fusãodosdadossociais,espaciaisetemporais;cartografiaconjuntadosocius,dolocusedotempus–istoé,dastrêsdimensõesqueconstituem,emsuasregularidadesmastambémemsuasdiscordâncias,oqueéumavidahumananaprática.

Essemétodoinscreve-sena“informaçãobaseadanaatividade”[ActivityBasedIntelligence,ABI].Damassadedadoscoletadossobreumindivíduo,umgrupoouumlugar,emergemprogressivamentepatterns,padrõesdetectáveis.Aatividadeconstituiumaalternativaàidentidade.Umavezindicadoumalvonominativo,emvezdetentarlocalizá-lo,fazeroinverso:começarporvigiar,reunirdados,traçargráficosemgrandeescala,paraemseguida,pelaanálisedebigdata,fazeremergirospontosnodularesque,pelaposiçãoepelotamanhoquesuaspastilhasdecorcomeçamaocuparnodiagramageral,podemseridentificadoscomoameaçasaneutralizar.“Aocompilardadosassociativosbaseadosnaatividadecomseusmetadadosnotempo[…]seráformadoumricoarquivoquepermitirárecolherformasdevida,redeseanormalidadesque,deoutromodo,poderiamsernegligenciados”.[11]Asferramentasdageografiahumanaedasociologiadasredesseencontramentãoreunidasemproldeumapolíticaerradicadoraemquea“vigilânciapersistente”permiteadespistagemdosindivíduosperigosos.Umpacientetrabalhodearquivamentodasvidasreúneprogressivamenteaspeçasdeumdossiêanônimoque,umavezatingidacertaespessura,valeráumacondenaçãoàmorte.

Osoficiaisalegamqueessesmétodosgarantemadistinçãonodirecionamentodoalvo:“Vocêpodeseguirindivíduose–compaciênciaecuidado–construirumaimagemdomodocomoelessedeslocam,ondevãoeoqueveem”.[12]Aquelesquesãomortos“sãopessoascujosatosdeixaramevidente,nocorrerdotempo,queconstituemumaameaça”.[13]

Masoproblematodo–problemaepistemológico,problemapolítico–residenessacapacidadereivindicadadequeumaimagemconstruídaporcompilaçãodeindíciosprováveispossaadquirirestatutocertodealvolegítimo.

Odispositivoeametodologiaapresentam,defato,limitesevidentes.Acomeçarpelaóptica.ComoconfessaumantigooficialdaCIA,“aumaaltitudede6milmetros,vocênãopodevergrandecoisa”.[14]Odronedistingueapenasformasimprecisas.Atítulodeexemplo,emabrilde2011,dronesnorte-americanosforam“incapazesdediferenciarouniformedecombatededoisfuzileiros(comoequipamentodecombatecompleto)quenoentantoerabastantecaracterístico,douniformedeinimigosirregulares”.[15]Odronevêsilhuetasindistintas.Umapiadareveladorasobreesseassunto

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circulanoscorredoresdaadministraçãonorte-americana:“QuandoaCIAvêtrêspessoasfazendoaeróbica,elaachaqueéumcampodetreinamentoterrorista”.[16]

Em17demarçode2011,umataquenorte-americanodizimouumgrupodehomensreunidoemDattaKhel,noPaquistão,combasenoargumentodeque“ocomportamentodelescorrespondiaaomododeaçãodemilitantesligadosàAl-Qaeda”.[17]Aformadeagrupamentodaqueleshomenscorrespondiaàmatrizpredefinidaparaumasuspeitadecomportamentoterrorista.Masareuniãoobservadadocéuera,narealidade,umaassembleiatradicional,umajirga,convocadapararesolverumconflitonacomunidadelocal.Estima-seentredezenoveetrintaonúmerodecivisquemorreramnoataque.Vistodocéu,nadaseassemelhamaisaumareuniãodemilitantesdoqueumareuniãodevilarejo.

Em2desetembrode2010,asautoridadesnorte-americanasanunciaramaeliminaçãodeumimportantechefetalebanemTakhar,noAfeganistão.Masosmísseistinhammatado,narealidade,ZabetAmanullah,umcivilemcampanhaeleitoral,eoutrasnovepessoas.Seaconfusãotinhasidopossível,foipelaféexcessiva(masnecessáriacomessetipodedispositivo)depositadanaanálisequantitativa:osanalistastinhamseconcentradonoscartõesSIM,nosregistrosdechamadastelefônicasenosgráficosderedessociais:“Elesnãoperseguiamumnome,rastreavamostelefones”.[18]

Noquedizrespeitoaoestabelecimentodaprova,nãohaveriacomoconverteraquantidadedosindíciosemqualidade.Ora,aíéqueestáoproblema,considerandoque,comoexplicaGarethPorter:

Ométododeanálisedosvínculosempregadopelainteligênciaéincapazdefazerdistinçõesqualitativasentreasrelaçõesdescritasemseusmapasdevínculosentrenodes.Essemétodooperasomenteapartirdebasededadosquantitativos,comoonúmerodechamadastelefônicasoudevisitasaumalvopreexistente,ouaumcertonúmerodeoutrosindivíduosemcontatocomessealvo.Oresultadoinevitáveléqueumaquantidadecrescentedenúmerosdetelefonedecivisnãocombatentescomeçaprogressivamenteaaparecernodiagramadarededosinsurgentes.Seosregistrostelefônicosmostramvínculosmúltiploscomnúmerosquejáfiguramnalistakill/capture,éprovávelqueoindivíduoemquestãosejaadicionadoàlista.[19]

Emsuma,nessalógicaemqueopertencimentoeaidentidadesãoinduzidospelonúmeroepelafrequênciadosvínculosindependentementedesuanatureza,éfatalque,comoresumeumoficial:“Umavezquetivermosdecididoqueumindivíduoéumamápessoa,aspessoasqueofrequentamtambémserãomás”.[20]

Essemétodoparaestabeleceroperfilnãotemacessoanadamaisqueesquemas.Ora,nummesmoesquemapodempordefiniçãocorresponderdiversosfenômenosheterogêneos.Éoproblemaepistemológicodasombrachinesa:aimagemdocachorropareceadeumcachorro,mascomosabercomcertezaqualobjetoaengendra,sesótemosacessoasuasombraprojetada?Podeserquesejamapenasmãos.

Aindaassim,ésobreessasbasesepistemológicasquesãoconduzidoshojeos“ataquesdeassinatura”dosdronesnorte-americanos.Asautoridadesconstruíramparasiumteatrodesombras:“Oresultado,comdemasiadafrequência,consisteemumtirocegobaseadoemindicadoresde‘formasdevida’semconfirmaçãodiretadequeosalvossão,defato,aquelesquepensamosquesão

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–matandoinocentesnamanobra”.[21]

Éoquediztambémumjovempaquistanêsquefoivítima,comsuafamília,deumataquededrones:

–Porquevocêachaqueelesosatacaram?–Elesdizemquehaviaterroristas,maseraaminhacasa…Nãoháterroristas.Sópessoascomunscombarba.[22]

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NadadoqueohomempodefazernasuperfíciedaTerraécapazdeentravarovoodeumaviãoquesedeslocalivrementeemumaterceiradimensão.GiulioDouhet[1]

6.Killbox

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Comoconceitoda“guerraglobalcontraoterror”,aviolênciaarmadaperdeuseuslimitestradicionais:aguerratorna-seindefinidanãosónotempo,mastambémnoespaço.[2]Omundointeiro,diz-se,éumcampodebatalha.Massemdúvidaseriamaisexatodizerterrenodecaça.

Poisseoraiodaviolênciaarmadaseglobaliza,éemnomedosimperativosdorastreamento.Seaguerraé,emúltimainstância,definidapelocombate,acaçaédefinidaessencialmentepela

perseguição.Duasgeografiasdistintascorrespondemaessasatividades.Ocombateexplodenolugarondeasforçasseenfrentam.Acaça,porsuavez,sedeslocaconformeapresa.NoespíritodoEstado-caçador,olugardaviolênciaarmadanãosedefinemaissegundooscontornosdeumazonadelimitável,maspelasimplespresençadoinimigo-presa,que,porassimdizer,transportacomeleportodaparteseupequenohalomóveldezonadehostilidadepessoal.

Paraescaparaseusperseguidores,apresaprocuratornar-seindetectávelouinacessível.Ora,ainacessibilidadenãoésófunçãodosrelevosdageografiafísica–matadensaouantrosprofundos–,mastambémdasasperezasdageografiapolítica.Comolembramosteóricosdacaçaaohomem,“asfronteirassoberanassãoosmelhoresaliados”[3]deumfugitivo.ACommonLawinglesaautorizavaoutrora,nasregiõesrurais,a“caçarosanimaisdepresanocivos,taiscomoasraposaseasdoninhas,aténapropriedadedeoutrem;porquedestruiressascriaturaseraconsideradodeinteressepúblico”.[4]ÉessetipodedireitoquehojeosEstadosUnidosqueremsearrogar,masparapresashumanaseemescalamundial.[5]Épreciso,resumiaPaulWolfowitz,“negarossantuários”àspresas.[6]

Oquesedelineiaéumpoderinvasivobaseadomaisnodireitodeperseguiçãodoquenanoçãodedireitodeconquista.Umdireitodeintrusãooudeintervençãouniversalqueautorizariaairatrásdapresaondequerqueelaserefugie,passandoporcimadoprincípiodeintegridadeterritorialclassicamenteligadoàsoberaniadoEstado.Pois,nessaconcepção,asoberaniadosoutrosEstadostorna-se,emrigor,contingente.Estessópodemdesfrutarplenamentedesuasoberaniaaopreçodeconsentiracaçaimperialemseuinterior.Casocontrário,senãopuderem–“Estadosfalidos”–ounãoquiserem–“Estadoscriminosos”–,seuterritóriopodeserlegitimamentevioladopeloEstado-caçador.

Àsformasterrestresdesoberaniaterritorial,baseadasnadelimitaçãodasterras,odroneopõeacontinuidadeaérea.Eleprolonga,assim,asgrandespromessashistóricasdopoderaéreo.Indiferenteàsasperidadesdosolo,aarmaaérea,escreviaDouhet,“sedeslocalivrementenumaterceiradimensão”.[7]Elatraçanocéusuasprópriaslinhas.

Tornando-seestratosférico,opoderimperialmodificasuarelaçãocomoespaço.Nãoémaisquestãodeocuparumterritóriomasdecontrolarpeloaltogarantindoasiodomíniodocéu.EyalWeizmanexplicanessestermosgrandepartedaestratégiaisraelensecontemporânea,queeledescrevecomoumapolíticadaverticalidade.Nessemodelo,“tecnologiaemvezdeocupação”,[8]trata-sede“manterodomíniosobreaszonasevacuadasporoutrosmeiosquenãoocontroleterritorial”.[9]Aessaverticalizaçãodopodercorrespondeumaformadeautoridadeforadosolo,emquetudo,cadaindivíduo,cadacasa,cadarua,“atéomínimoacontecimentonoterrenopodesermonitorado,policiadooudestruídoapartirdocéu”.[10]

Aquestãodasoberaniaserevesteentãodeumadimensãoaeropolítica:[11]quemdetémopodersobreoaresobreasondas?[12]AlisonWilliams,queinsistenaimportânciadepensarhojea

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geografiapolíticacomoumfenômenoemtrêsdimensões,evocauma“crisedasoberaniaaérea”.[13]Asrepetidasviolaçõesdosespaçosaéreosdosestadossubalternospelosdronesnorte-americanossãoumadesuasmanifestaçõesatuaismaisevidentes.Umavezqueasoberanianãoémaisplana,superficialmenteterritorialesimvolumétricaetridimensional,omesmosedácomosatentadosàsoberania.

Asdoutrinasmilitaresclássicas,explicaStephenGraham,procediampor“projeçãohorizontaldopodersobreumespaçogeopolíticoessencialmente‘plano’esemrelevo”.[14]Essemododeprojeçãoéatualmentesubstituídooucompletadoporoutro.Muitoesquematicamente,passa-sedohorizontalaovertical,doespaçobidimensionaldosantigosmapasdeestado-maioraumageopolíticadosvolumes.

Nasdoutrinascontemporâneasdopoderaéreo,oespaçooperacionalnãoémaisconcebidocomoumaáreahomogêneaecontínua.Torna-se“ummosaicodinâmicoemqueosobjetivoseastáticasdosinsurgentespodemvariardeumbairroaoutro”.[15]Éprecisoimaginarumpatchworkdequadradoscoloridosaosquaiscorrespondem,acadavez,regrasdeengajamentoespecíficas.

Masessesquadradossãotambémcubos.Éoconceitocentraldekillbox,imperfeitamentetraduzidopor“caixaletal”ou“cubodemorte”,quesurgiunodebatedosanos1990:“Akillboxérepresentadagraficamenteporumalinhapretacontínuaquedelimitaumaáreaespecífica,atravessadapordiagonaispretas”.[16]Imaginemos,numatelaem3d,umasériedecubosalinhadosnumterrenoquadriculado.Oteatrodasoperaçõesécobertodecaixastransparentes.

Akillboxtemumciclodevida:éaberta,ativada,congeladaefechada.Pode-seseguiressaevoluçãonatela,maisoumenoscomoumadesfragmentaçãodediscorígido:pequenosaglomeradosqueseativamemudamdecoràmedidaquesãotratados.

“Quandoumakillboxéestabelecida,seuobjetivoimediatoéautorizarasforçasaéreasaconduzirinterdiçõescontraalvosdesuperfíciesemnenhumacoordenaçãocomocomando”.[17]Sabendoque“aestruturaemmosaicodacontrainsurgênciaatornaparticularmenteadaptadaaumaexecuçãodescentralizada”,[18]cadacubotorna-seentãouma“áreadefogolivre”[19]paraasunidadescombatentesaqueestádesignado.Paradizerdeformaexplícita:emumdadocubo,fogoàvontade.Umakillboxéumazonaautônomatemporáriademassacre.

Nessemodelo,azonadeconflitoaparececomoumespaçofragmentadoemumamultiplicidadedecaixasdemorteprovisórias,ativáveiscomflexibilidadeeburocraciaaomesmotempo.ComoexplicacomentusiasmonãodissimuladoogeneralFormicaemume-mail:

Askillboxesnospermitemfazeroquequeríamosfazerháanos[…]ajustarrapidamenteocontornodocampodebatalha;agora,comastecnologiasautomatizadaseousodaskillboxespelaUSAirForce,épossíveldelimitarocampodebatalhademodobastanteflexível,tantonotempocomonoespaço.[20]

Emummemorandoenviadoem2005aDonaldRumsfeld,opresidentedaRANDCorporationlheaconselhavaa“adotarumsistemanãolineardekillbox”[21]paraasoperaçõesdecontrainsurgência.Thomsonressaltavaessepontoessencial:“Otamanhodaskillboxespodesermoduladoparaseadaptaraumterrenoabertoouàguerraurbana;elaspodemserabertasefechadasrapidamenteem

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respostaaumasituaçãomilitardinâmica”.[22]

Esseduploprincípiodeintermitênciaedemodulaçãoescalardakillboxécapital:permitepensaraextensãodessemodeloparaforadequalquerzonadeconflitodeclarado.

Emqualquerpartedomundo,segundoascontingênciasdomomento,microcubosdeexceçãoletaltemporáriospoderiamserabertos,tãologosetenhalocalizadoumindivíduoqualificávelcomoalvolegítimo.

Quandoosestrategistasdoexércitonorte-americanoseperguntamcomoserãoosdronesdaquia25anos,começamencomendandoaoinfografistadeplantãoumretrato-robôdeumacidadeárabetípica,comsuamesquita,seusedifíciosesuaspalmeiras.Nocéu,libélulasesvoaçando.Trata-se,narealidade,denanodrones,robôs-insetosautônomoscapazesdesaquearemenxameede“navegaremespaçoscadavezmaisconfinados”.[23]

Comaparelhosdessetipo,aviolênciaarmadapoderiaseexerceremespaçosbastanterestritos,emmicrocubosdemorte.Emvezdedestruirumimóvelinteiroparaeliminarumindivíduo,miniaturizaraarma,entrarpelosvãoserestringiroimpactodaexplosãotelecomandadaaumsócômodo,emesmoaumsócorpo.Oquartoouoescritóriotornam-seumazonadeguerra.

Semesperaressasmicromáquinasdofuturo,osdefensoresdosdronesjáexaltamaprecisãotecnológicadesuaarma.Masoparadoxoéqueessesupostoganhoemprecisãoserve,narealidade,comoargumentoparaestenderoraiodeaçãodaarmaaomundointeiro.Tem-seaíumduplomovimentoque,criandoumimpasseparaanoçãoespacialejurídicade“zonadeconflito”armado,tendeadesagregá-laquasecompletamente.Osdoisprincípiosdessedesmembramentoparadoxalsãoosseguintes:1º)Azonadeconflitoarmado,fragmentadaemkillboxesminiaturizáveis,tendeidealmenteasereduziraopurocorpodoinimigo-presa–ocorpocomocampodebatalha.Éoprincípiodeprecisãooudeespecificação.2º)Masessemicroespaçomóvelétransferívelparaqualquerlugarondeapresaestiver,emnomedanecessidadedaperseguiçãoedocaráter“cirúrgico”doataque–omundocomoterrenodecaça.Éoprincípiodeglobalizaçãooudehomogeneização.Emsubstância,dizemoexércitoeaCIA,sepodemosatacarnossosalvosondebemnospareça,emesmoforadequalquerzonadeguerra,éporquepodemosvisá-loscomomáximodeprecisão.

Convergindoparaessaposição,todoumgrupodejuristasnorte-americanosafirmahojequeanoçãode“zonadeconflitoarmado”nãodevemaisserinterpretadaemsentidoestritamentegeográfico.Aessaconcepçãogeocentrada,supostamenteultrapassada,elesopõemoutra,alvo-centrada,ligadaaoscorposdosinimigos-presas,segundoaqualazonadeconflitoarmado“vaiaondeelesvão,semnenhumarelaçãomaiscomageografia”.[24]Éatesesegundoaqual“asfronteirasdocampodebatalhanãosãodeterminadasporlinhasgeopolíticas,maspelalocalizaçãodosparticipantesdeumconflitoarmado”.[25]

Umdosprincipaisargumentosdessesjuristas,deordemmaispragmáticaquejurídica,éemprestadodiretamentedosdiscursosdaadministraçãonorte-americana.Seéprecisodescartarainterpretaçãogeocentradadodireitodaguerra,éporqueprorrogá-laseria,naprática,repetemelesdocilmente,“criarsantuáriosparaasorganizaçõesterroristasemtodoEstadonoqualasforçasdepolíciasãoconhecidasporsuaineficácia”.[26]Masesseargumentotraitambém,sobodebatesemântico,umaquestãopolíticacrucial:trata-sedejustificaroexercíciodeumpoderletaldepolícia

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foradasfronteiras.Umdosproblemas,certamente,éque,comoapontaDerekGregory,“alógicajurídicapelaqualo

campodebatalhaéestendidoparamuitoalémdazonadeclaradadecombateé,elaprópria,extensívelaoinfinito”.[27]Aoredefiniranoçãodezonadeconflitoarmadocomolugarmóvelligadoàpessoadoinimigo,acaba-seporreivindicar,sobacoberturadodireitodosconflitosarmados,oequivalentedeumdireitoàexecuçãoextrajudicialestendidoaomundointeiro,inclusiveemzonadepaz,contraqualquersuspeito,foradoprocedimentoregular,inclusivecontraseuspróprioscidadãos.[28]

Aondeissovaiparar?Éaperguntaqueem2011aONGHumanRightsWatchfaziaaBarackObama:

Écontráriaaodireitointernacionalanoçãosegundoaqualomundointeirosetornaautomaticamente,eporextensão,umcampodebatalhaemqueseaplicamasleisdaguerra.Comoaadministraçãodefineo“campodebatalhaglobal”[…]?Empregaessaexpressãonosentidoliteral?Issoimplicariaqueousodaforçaletalfossepermitido,deacordocomasleisdaguerra,contraumsuspeitoterroristaemumapartamentodeParis,emumagaleriacomercialemLondresouemumpontodeônibusemIowaCity.[29]

Contraosperigosdessetipodeinterpretação,algunsjuristascríticosdefendemumaconcepçãomaisclássicadanoçãodezonadeconflitoarmado,insistindonaideiafundamentaldequeaviolênciaarmadaesuasleistêmcontornosbemdefiníveisetraçáveisnoespaço;queaguerra,comocategoriajurídica,éedeveserumobjetogeograficamentedelimitado.Umconflitoarmadoteriacomopropriedadeocuparumlugar,umazonadelimitável?Apesardesuaaparenteabstração,essaquestãoontológicatemhojeimplicaçõespolíticasdecisivas.Respondendoafirmativamente,enuncia-sedesaídaumasériedetruísmos:existeumageografialegaldaguerraedapaz,concebidasnãosócomoestadosquesesucedemnotempo,mastambémcomoespaçosdelimitáveis.Umazonaéumazona–umaporçãocircunscritadeespaço,comlimites,uminterioreumexterior;eumconflitoarmadoéumconflitoarmado–ouseja,algoquesedefineapartirdeumníveldetectáveldeintensidadedaviolência.Masessasdefiniçõessimplestêmimplicaçõesnormativasmuitoimportantes,acomeçarporesta:seasleisespeciaisdodireitodaguerraseaplicamexclusivamentealiondeháguerra,então,foradaguerra,ninguémtemodireitodesecomportarcomoguerreiro.

ComolembraajuristaMaryEllenO’Connell,declarandoilegaisosataquesatuaisdedronesnoPaquistão,naSomáliaounoIêmen:“Osdroneslançammísseisousoltambombas–tiposdearmasquenãopodemserutilizadasdemodolícitosenãoemcasodehostilidadesrelacionadasaumconflitoarmado”.[30]Ora,

nãohaviaconflitoarmadonoterritóriodoPaquistãoporquenãoexistiamcombatesarmadosintensosentregruposarmadosorganizados.Odireitointernacionalnãoreconheceodireitodematarcomarmasdeguerraforadeumconflitoarmadoefetivo.A“guerracontraoterror”nãoéumconflitoarmado.[31]

Logo,essesataquesconstituemgravesviolaçõesdodireitodaguerra.Osprojetosdecaçaaohomemglobalizadaentramimediatamenteemcontradiçãocomessaleitura

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tradicionaldodireito.Porisso,seuspromotoresfazemintensosesforçosparacontestaressavisãodascoisas,paraanularatesesegundoaqualodireitodosconflitosarmadospressupõeumaontologiageográficaimplícita.[32]Osjuristasestãoemprimeiralinhanessalutaatualpelaextensãododomíniodacaça.Eaontologiaaplicadaéseucampodebatalha.[33]Aquestão“oqueéumlugar?”torna-seumaquestãodevidaoumorte.Talvezvalhaapenarecordarque,aodelimitargeograficamenteoexercíciolícitodaviolência,oobjetivofundamentaldodireitoeracircunscrevê-la.

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Opoderaéreocontémosgermesdenossaprópriadestruição.Senãoousarmosdemaneiraresponsável,poderemosperderessecombate.GeneralMcChrystal[1]

7.Contrainsurgênciapeloar

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“Umadasarmasfavoritasdoexércitoéaaviação,masestanãotemnenhumaaçãorealnaprimeirafasedaguerrilha,quandooshomenssãopouconumerosos,dispersosemregiõesacidentadas.Aaviaçãoéeficazquandodestróisistemáticamentedefesasorganizadasevisíveis,oquenãoéabsolutamenteocasoemnossotipodeguerra.”[2]QuandoErnestoCheGuevaraescreviaessaslinhas,em1960,elasaindaeramverdadeiras.

Atérecentemente,noqueantessechamavao“campoimperialista”,osestrategistasdaguerradecontrainsurgênciaalinhavam-seaseupontodevista.Contragruposdecombatentesfurtivos,hábeisaseenfurnarnosmeandrosdoterrenoenaspregasdasociedade,aarmaaérea,pensava-se,eraperfeitamenteimpotente–pior,contraproducente.Porfaltadeconcentraçõesdetropasquepudessemserlocalizadasdocéu,bombardearimplicavanecessariamentebanhosdesanguenapopulaçãocivil.Masseadoutrinaserecusavaaisso,eranaverdademenosporrazõesmoraisdoqueestratégicas:enquantooobjetivodeclaradodaguerradecontrainsurgênciaeratrazerapopulaçãoparaseulado,oempregodeumaviolênciacegaameaçava,aocontrário,lançá-lanosbraçosdoinimigo.Daíamarginalizaçãoteóricadaarmaaéreanessaformadeestratégia.Em2006ainda,o“CounterinsurgencyFieldManual”doexércitonorte-americanoconsagravaaesseassuntonãomaisdoquealgumaspáginas,enviadascomoanexo.

Masnapráticaascoisasjáestavamsealterando.Ousodosdronessegeneralizavarapidamente,aaviaçãotornou-sedefacto,apartirdofinaldosanos2000,umadasarmasessenciaisnasoperaçõesdecontrainsurgêncianorte-americanas.Certosestrategistascomeçaramateorizaressamutaçãosilenciosa:tornarapráticamilitarconscientedesimesma,aindaqueàcustadeumgrandeabalodoutrinário.

Lamentandoumatrasodateoriaemrelaçãoàprática,algunsestrategistasafiliadosàAirForceinstamhojeàadoçãoexplícitadeumadoutrinadacontrainsurgênciapeloar.Essesdefensoresdo“poderaéreo”opõem-sefrontalmenteaosteóricosortodoxosdaguerradecontrainsurgência“centradanosolo”–um“paradigmaultrapassado[…]demasiadoestreito”,lamentamosprimeiros,que“relegaopoderaéreoafunçõesauxiliares,aopassoquesóasforçasterrestresfazemo‘verdadeiro’trabalho”.[3]Contraessemodeloarcaico,seriaprecisorender-seàevidênciaeassumirplenamenteanovaestratégiaaerocentradadaqualodronejáéhácertotempooinstrumentoprivilegiado.Pormaisqueoguerrilheiroaindaseja,segundoaformulaçãodeSchmitt,essencialmentetelúrico,[4]ocontraguerrilheirocontemporâneotemdeserestratosférico.

Aguerradeguerrilhasemprecausouproblemasàsgrandespotênciasregularmenteenredadasemconflitosassimétricos.Paramelhorcompensarsuafraquezaprovisória,osguerrilheirospreferem,emvezdoconfrontodireto,aescaramuçaeaemboscada.Atacarelogorecuar,fazer-seinapreensíveis.Odroneaparececomoarespostatardiaaesseproblemahistórico:devolveàguerrilha,massobumaformaradicalmenteabsolutizada,seuvelhoprincípio:privaroinimigodeinimigo.Umguerrilheiroconfrontadoaumexércitodedronesnãodispõemaisdenenhumalvoparaatacar.“RogamosaAláquenosdêsoldadosnorte-americanosparamatar.Essasbombasquedescemdocéu…nãotemoscomocombatê-las.”[5]Osoficiaisnorte-americanosgostamdeinseriremsuasapresentaçõesemPowerPointsobreosdronesfrasescomoessas,atribuídasaumaldeãoafegãopeloTheNewYorkTimes.Veemnelasaconfirmaçãodaimplacáveleficáciadesuanovaarma.

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Aotornarocombateimpossível,aotransformaraviolênciaarmadaemexecução,éavontademesmadoscombatentesadversáriosquesetratadeaniquilar.Poisse“aperspectivadamortenãopoderiaporsisóesgotaravontadedelutar[…]omesmonãoacontececomaimpotênciaengendradapelainevitabilidadedeumamorteadministradaporumafontequenãosepodecombater”.[6]Odrone,assimexplicaomajor-generaldaAirForceCharlesDunlap,“criaaoportunidadededesmantelarapsicologiadosinsurgentes”.[7]Aideianãoénova.SirJohnBagotGlubbjáaformulavaquasepalavraporpalavraarespeitodosbombardeiosaéreosempregadospelosbritânicosparasufocarasrebeliõesnativasnoentreguerras:“Seutemívelefeitomoral,escreviaele,deve-seemgrandemedidaàdesmoralizaçãoengendradanohomemtribalporseusentimentodeimpotênciaesuaincapacidadederesponderefetivamenteaoataque”.[8]

Trata-sedecombaterpeloterror,eissonãoéocultado:“Opoderaéreodeprecisãonorte-americanoéanálogo(numaescalamuitomaioremaiseficaz)aosefeitosqueosinsurgentestentamproduzir[…]pormeiodedispositivosexplosivosimprovisados”.[9]Nãoseriapossíveldizê-lomaisclaramente:noplanotático,osataquesdedronesequivalem–deixandodeladoasofisticaçãotecnológica–acampanhasdeatentadosàbomba.SãoasarmasdeumterrorismodeEstado.

OsestrategistasdaAirForceconhecem,obviamente,asobjeçõesqueosteóricosdacontrainsurgência“canalhistórico”nãohesitamemlhesopor.Lembrem-sedasliçõesdopassado,éoqueelesdizem,emsubstância.Oquevocêsapresentamcomonovidadeestratégicajáfoitentado,ecomqueresultados.Suadoutrinado“controlepeloar”emnadadiferedaquelaquemotivavaaestratégiadosbombardeiosaéreosdefinidapelaRoyalAirForce,depoisdaPrimeiraGuerraMundial,comofimde“desorganizaredestruirasaldeiasparaobrigarapopulaçãolocalaaderiraomandatobritânico”.[10]Umapolíticaque,lembrameles,acabouemamargofracasso.Bastaria,aliás,citarobalançoqueumoficialbritânicofazia,em1923,paraobterumadescriçãoestranhamentecontemporâneadosefeitosperversosdomesmotipodeestratégiaempregadohoje,trêsgeraçõesmaistarde,nasmesmasregiõesdomundo:

Forçandooshabitantesdaszonasbombardeadasafugirdesuascasasemestadodecompletaexasperação,dispersando-osnosclãsenastribosvizinhas,comocoraçãocheiodeódiopeloqueelesconsiderammétodosdeguerra“desleais”,essesataquesproduziramexatamenteotipodeefeitopolíticoqueemnossoprópriointeresseimportariaevitar,asaber,apermanenteanimosidadeealienaçãodastribosdafronteira.[11]

ComoobservademodosibilinoAngelinaMaguinness,oficialdainteligêncianocomandodasoperaçõesespeciais,dadas“asliçõeshistóricasdaimplementaçãopelaRoyalAirForcedocontrolepeloar,éinteressantequecertosproeminentesteóricosdopoderaéreoapresentemessaopçãocomoalternativaaoenormecontingentedeforçasterrestresnaestratégiadecontrainsurgência”.[12]Emseguida,emtermosmaisincisivos,elaacusaosdefensoresdomodeloaerocentradodecometerumcontrassensofundamentalsobreaprópriaessênciadaestratégiadecontrainsurgência:

Meilingerfracassaemreconheceranaturezadainsurgênciaedacontrainsurgência.Seocentrodegravidadedasoperaçõeséapopulação,eseapopulaçãoreside,operaeseidentificanadimensãoterrestre,éevidentementeestúpidopensarqueosEstadosUnidospoderiammodificara

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naturezadaguerradecontrainsurgêncianosentidopretendidoemesmoassimterêxito.[…]Asinsurgênciassão,pornatureza,primordialmenteorientadasparaochão;ascampanhasdecontrainsurgênciatambémsãonecessariamenteorientadasdessamaneira.[13]

Debatequasemetafísicoentreochãoeocéu:acontrainsurgênciapodesealçaràcategoriadeaeropolíticasemperdersuaalma?Oriscoobviamenteseriaque,naoperação,aestratégia–ecomelaapolítica–sepercanasnuvens.

Osdefensoresdacontrainsurgênciapelodronealegam,noentanto,queconseguemescaparaosantigosobstáculos;eissograçasaosprogressosdatecnologia.Éfatoque,nopassado,“osefeitosnegativosproduzidosporarmasimprecisas,comseusdanoscolaterais,parecemtermaisdoquecontrariadoasvantagenstáticas”daaviação.Seriamessasexperiênciashistóricasadversasqueteriamdadocréditoao“truísmosegundooqualacontrainsurgênciaéumaquestãode‘botasnochão’equeopoderaéreoécontraproducente”.[14]Mastudoissoficouparatrás:odroneéuminstrumentodealtatecnologia.Aduplarevoluçãodapersistêncianoolharedaprecisãonalocalizaçãoteria,segundoeles,jogadoasantigasobjeçõesnaslatasdelixodahistória.

Oproblemadamentirapolítica,advertiaHannahArendt,équeomentirosoacabanofinalacreditandonaprópriamentira.[15]Ébemessaaimpressãoquedominaaqui:umfenômenodeautointoxicaçãodiscursiva.Àforçaderepetirqueosdroneseoutrosataquescirúrgicossãoprecisosapontodenãocausaremnadaalémdedanoscolateraisnegligenciáveis,seusdefensoresparecemtercomeçadoaacreditarquepodemrealmenteconcluirapartirdaíodesaparecimentodequalquerefeitoadversodeimportância.Masosfatossãoteimosos,edizemcoisacompletamentediferente.

DavidKilcullennãotemnadadeumpacifista.EsseantigoconselheirodogeneralPetraeusnoIraqueéhojeconsiderado,nosEstadosUnidos,umdosmaiseminentesespecialistasdadoutrinadacontrainsurgência.Em2009,coassinoucomAndrewMcDonaldExumumacolunanoTheNewYorkTimesparaexigirumamoratóriasobreosataquesdedronesnoPaquistão.[16]Odiagnósticodosautoreserasimples:essasoperaçõessãoperigosamentecontraproducentesparaosinteressesnorte-americanos.Orgulhamo-nosdossucessostáticosacurtoprazosemcompreenderqueseupreçoseráaltonoplanoestratégico.

Emprimeirolugar,afirmavameles,essesataquesnãofazemmaisdoquejogarapopulaçãocivilnosbraçosdegruposextremistasquelhesparecem,emsuma,“menosodiososqueuminimigosemrostoquetravaguerraadistânciaeemgeralmatamaiscivisdoquemilitantes”.[17]Acrescentavam:

AestratégiadodroneésimilaràdosbombardeiosaéreosfrancesesnaArgéliaruralnosanos1950edosmétodosde“controlepeloar”empregadospelosbritânicosnosanos1920noquehojesãoaszonastribaispaquistanesas.Essefenômenoderessonânciahistórica[…]encorajaaspopulaçõesdaszonastribaisavernosataquesdedronesacontinuaçãodepolíticascoloniais.[18]

Emsegundolugar,atendênciaàiraeàradicalizaçãodasopiniõespúblicasnãoélimitadaàregiãodosataques:emummundoglobalizado,aviolênciaarmadatemrepercussõestransnacionais.Ora,apercepçãoaltamentepartilhadaéadeumpoderodioso,aumsótempocovardeedesprezível.Cuidadocomasconsequências.

Emterceiro,etalvezsobretudo:“Ousodosdronesapresentatodasascaracterísticasdeumatática

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–ou,maisprecisamente,deumelementotecnológico–quesubstituiumaestratégia”.[19]

Taleraodiagnósticofundamentaldosautores:aorecorrermaciçamenteaumgadgettecnológicoenãoaumaverdadeiraestratégia,oaparelhodeEstadocorreoriscodeumaalienaçãopolíticaacelerada.

Algodemuitoprofundoestáemjogo,efetivamente,nessesdebatesinternosdoaparelhomilitardosEstadosUnidos:nadamenosqueacompreensãodapolítica.Paraentenderoquesepassa,éprecisoesboçarumagenealogiamuitobreveemuitoparcialdasdoutrinasqueestãoemconfrontoaqui.

Aquelesqueseesforçaram,acomeçarporcertosestrategistasfranceses,emelaborarumaestratégiacontrarrevolucionáriatinhamfolheadoasobrasdeMaoTse-Tung,CheGuevaraemuitosoutros.Desuasleiturascursivasdasteoriasdaguerrarevolucionária,haviamretido,paraseusprópriosfins,essatesefundamental:alutaéantesdemaisnadapolítica.Galula,quelecionounasescolasmilitaresnaAméricadoNortedepoisdeservirnaArgélia,condensouessasliçõesemumafórmulacanônica:“Abatalhaparaapopulaçãoéumacaracterísticafundamentaldaguerradecontrainsurgência”.[20]Comoaguerrilha,aguerradecontrainsurgênciaéantesdetudopolítica.Seucentrodegravidadeéapopulação,eéprecisocortarseuslaçoscomoinimigoeaomesmotempoganhá-laparaaprópriacausa.Oobjetivoestratégicoémarginalizaroinimigo,negando-lhesuabasepopular.[21]Issofeito,avitóriaécerta.

Paraaquelesqueaderemaessaconcepção–Kilcullen,porexemplo–,oantagonismoentreinsurgênciaecontrainsurgênciaéconcebidocomo“umalutaparacontrolarumespaçopolíticocontestado”.[22]Ora,issonãopodeserfeitodefora.Pararetomaroterreno,queétantogeográficocomopolítico,éprecisoestarpresente.Umterrenonãosecontrola,verticalmente,docéu,mashorizontalmente,nochão.Tantomaisqueoverdadeiro“terreno”éhumano,éaprópriapopulação,acomeçarpeloqueelapensa,crêepercebe.Sendoaartedacontrainsurgênciaaartedeuma“‘guerrapolítica’naqualapercepçãodaaçãoeseusresultadospolíticosimportammaisqueossucessostáticosnocampodebatalha”,[23]sãoosefeitospolíticospercebidosdasoperaçõesmilitaressobreaprópriapopulação,objetodoconflito,quedeterminamapertinênciadastáticasedasarmasempregadas.Conquistar,segundoafórmulaconsagrada,“oscoraçõeseasmentes”supõeademaismobilizartodoumvastolequedemeios“militares,políticos,econômicos,psicológicosecívicos”,[24]entreosquaisaforçaabertanãoésemprenecessariamenteoprincipalcomponente.Essasbelaspalavrasdevem,éclaro,sercomparadascomaspráticashistóricascorrespondentes.

Ofatoéqueessacompreensãofundamentalmentepolítico-militardacontrainsurgência,paradoxalmenteherdadadeumacompreensãomarxista-revolucionáriadaviolênciaarmada,équefazhojequeosdefensoresdadoutrinaortodoxacentradanapopulaçãoecentradanosolonãoaceitemqueodronesejaerigidocomoarmamaisoumenosexclusivadacontrainsurgênciaàamericana.QuandoKilcullenseopõeaofetichismotecnológicododrone,ofazemnomedessaconcepçãoestratégica,namesmalinhadeGalula:“Noníveloperacional,acontrainsurgênciaaindaéumacompetiçãoentrediferentescampos,cadaumtentandomobilizarapopulaçãoparasuacausa.Oqueestáemjogoaindasãoaspessoas”.[25]

Oqueestáseproduzindo,aosolhosdosespecialistasdacontrainsurgência,éumaperigosamudançadeparadigma,quefragilizatantoaestratégiadasforçasarmadasnorte-americanascomo

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suaprópriaposiçãoinstitucionalnointeriordestas:naopiniãodeles,adronizaçãodasoperaçõesaponta,narealidade,paraapreeminênciadoparadigmadoantiterrorismosobreodacontrainsurgência.

Naorigem,explicameles,asduasexpressõeseramquasesinônimas,diferindo-seapenaspelouso.Aetiqueta“antiterrorismo”erautilizada,devidoasuasconotaçõesnegativas,sobretudoparafinsdepropaganda,comomeioretóricoparadeslegitimarosmovimentosdeinsurgênciaadversários.[26]Foinosanos1970,naEuropa,diantedasaçõesdaFraçãodoExércitoVermelhoedasBrigadasVermelhas,queoantiterrorismoprogressivamentesetornouautônomoparaseconstituircomoumparadigmaindependente,baseadoemoutrosprincípios,emrupturacomoquadrodoutrinárioclássicodacontrainsurgência.Asdiferençassãonotáveis.

Enquantoacontrainsurgênciaéessencialmentepolítico-militar,oantiterrorismoéfundamentalmentepolicial-securitário.Essadivergênciadeorientaçãoessencialsetraduzporváriosoutrostraçosdistintivos.

Diferença,antesdemaisnada,nomododeconceberoinimigo.Seoprimeiroparadigmaconsideraosinsurgentescomoos“representantesdereivindicaçõesmaisprofundasnoseiodeumasociedade”,[27]eque,paracombatê-losdeformaeficaz,éprecisoempenhar-seementendersuarazãodeser,osegundo,etiquetando-oscomo“terroristas”,concebe-osantesdetudocomo“indivíduosaberrantes”,personalidadesperigosas,senãocomosimplesmenteloucos,oupuraencarnaçãodomal.

Nessarecategorização,osalvosjánãosãoadversáriospolíticosaseremcombatidos,mascriminososaseremapreendidosoueliminados.Enquantoaestratégiadecontrainsurgênciavisaacimadetudo“fazerfracassaraestratégiadosinsurgentesmaisdoqueapreenderosperpetradoresdeatosespecíficos”,[28]oantiterrorismoadotaoprocedimentoinverso:sualógicapolicialindividualizaoproblemaereduzseusobjetivosàneutralização,casoacaso,domáximodesuspeitos.Enquantoacontrainsurgênciaécentradanapopulação,aaçãoantiterroristaécentradanoindivíduo.Nãosetratadesepararoinimigodapopulação,masapenasdecolocá-lopessoalmenteforadecondiçõesdecausardanos.Asolução,porconseguinte,passapelorastreamentodessesindivíduos,umaum,nãoimportandoasrazõessociaisougeopolíticasdoantagonismoqueelesexprimem.Dissoluçãodaanálisepolíticanascategoriasdoentendimentopolicial.

Moralizadoremaniqueísta,oantiterrorismoignoraqualqueranáliseverdadeira,tantodasraízesdahostilidadecomodeseusprópriosefeitossobreela.Obinarismodobemedomalnãoémaissomenteummotivoretórico,masimpõe-secomoumacategoriadeanáliseemvezdeselevaremcontaacomplexidadedasrelaçõesestratégicas.Enquantoaestratégiadecontrainsurgênciaimplica,alémdaforçabruta,compromisso,açãodiplomática,pressõeseacordoscoercivos,oantiterrorismoexcluitodotratamentopolíticodoconflito.“Nãosenegociacomterroristas”éapalavradeordemdeumpensamentoradicalmentea-estratégico.

Acaçaaohomemcomdronesrepresentaotriunfo,aumsótempopráticoedoutrinário,doantiterrorismosobreacontrainsurgência.Nessalógica,acontagemdosmortosealistadostroféusdecaçasubstituemaavaliaçãoestratégicadosefeitospolíticosdaviolênciaarmada.Ossucessostornam-seestatísticos,esuaavaliaçãosedesconectadeseusefeitosreaissobreoterreno.

Osdefensoresdadoutrinaortodoxaestãopreocupados;paraeles,essareorientaçãosópode

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produzir,amédioelongoprazo,efeitosestrategicamentecatastróficosparaosinteressesnorte-americanos.Écertoqueosdronessãoexcelentesparapulverizarcorposadistância,massãoincapazesdeganharos“coraçõeseasmentes”.ComoescrevePeterMatulich:

OempregoatualdosdronesemataquesantiterroristasnoPaquistãoécontrárioàdoutrinadaeficáciadaguerradecontrainsurgênciaqueosEstadosUnidosdesenvolveramnestasúltimasdécadas[…]asoperaçõesdedronesconduzidasatualmentesãodeutilidadelimitada,senãocontraproducentes.Osdronesporsisósãoincapazesderealizarosobjetivoscentradosnapopulação,quesãoosobjetivosdaguerradecontrainsurgência.Seuusoemoperações“delimpeza”produzefeitosnegativos,incluindodanoscolateraiseamilitarizaçãodaspopulaçõeslocais.Issopodenãosónosafastardaspopulações,comotambémalimentarnovasinsurgências.[29]

Otestemunhodeumdirigentetalebanpaquistanês,BaitullahMehsud,ilustraaverossimilhançadessatese:“Passeitrêsmesestentandorecrutarpessoalesótinhaconseguidoencontrardezouquinzepessoas.Apósumúnicoataquenorte-americano,consegui150voluntários”.[30]Esseesquemadaação-repressão,queestánobe-a-bádatáticadeinsurgência,parecetersidoesquecidopelasforçasnorte-americanas.Issoétantomaissurpreendentenamedidaemqueestefigura,pretonobranco,emseusmanuais:“Oconfrontoexclusivopelaaçãomilitarécontraproducentenamaioriadoscasos;correoriscodegerarressentimentopopular,criarmártireseproduzirumciclodevingança”.[31]Masserádefatoumesquecimento?

Talvez,amenosquesejaoutracoisa.Poisépossível,comotememosdefensoresdadoutrinaortodoxa,queareformulaçãopropostapelosestrategistasdopoderaéreosejadefatomuitomaisradical:acabarpuraesimplesmentecomopostuladopolíticodateoriadacontrainsurgênciaclássica.Dunlapsublinhacominsistênciaqueadoutrinaoficialdáumlugarmuitodesproporcionalaosesforçospara“ganharoscoraçõeseasmentescomtropasdeocupação”.[32]Ora,alegaele,nãosedeve“subestimarafunçãodaforçaparasuprimirinsurgentesintratáveis”.[33]“Mesmoquemuitosetenhadiscutidohistoricamentearespeitodosefeitos[…]dopoderaéreosobreaspopulaçõescivisdenaçõeshostis,hojeaquestãoédiferente:elaseconcentranoimpactopsicológicosobreosprópriosinsurgentes,enãosobreapopulaçãocivil”.[34]

Estamosassistindoaumaredistribuiçãodasprioridades,emumesquemanoqualorendimentodeumapolíticaquevisaaterrorizareerradicarpassariaaprevalecersobreaconsideraçãodeseusefeitospolíticosnapopulação.Osdronesnosafastamdapopulação–edaí?Queimportamos“coraçõesementes”dosaldeãosdoWaziristãooudequalqueroutrolugar?Dequalquermaneira,àdiferençadasantigasguerrascoloniais,oobjetivonãoémaisconquistarumterritório,masapenaseliminar,adistância,a“ameaçaterrorista”.

Aessaluz,orecursointensivoaosdronesadquireoutrosentido.Olimitetáticodasantigasarmasaéreas,segundoindicaoconselheiroespecialnaAirForceRichardAndres,eraqueelas“nãopodiammatarousuprimirosinsurgentesrápidoobastanteparasuperarorecrutamentoinimigo”.[35]Éprecisocompreender,nasentrelinhas,queumafrotadedronescaçadores-matadoresdisporiahoje,enfim,dessacapacidade:venceracorridadecurtadistância,eliminarosindivíduospelomenosnamesmavelocidadeemquesãorecrutados.Oesquemaestratégicodacontrainsurgênciapeloarse

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esclareceentão:assimqueressurgeumacabeça,cortá-la.Epoucoimportaseessamedidaprofiláticatemporefeitoperverso,emumaespiraldificilmentecontroláveldeataqueserepresálias,suscitarnovasvocações.Nessaperspectiva,caducariaaobjeçãosegundoaqualosataquesseriamcontraproducentesporpermitiremqueoinimigo,emumesquemaclássicodeação-repressão,recrutemaisadeptos.Poucoimportaseasfileirasadversáriasaumentam,poisserásemprepossívelneutralizarperiodicamente,àmedidaqueemergem,osnovosrecrutados.Atosquiaseráperiodicamenterecomeçada.Esseesquemaédeumaerradicaçãoinfinita.Quandooantiterrorismoprevalecesobreacontrainsurgência,oúnicoobjetivo,éprecisocompreender,torna-seeliminarcomregularidadeasameaçasemergentes,àmaneiradeumacolheitaperiódica.“Matemmuitosdeles,eaameaçadesaparecerá.Masakilllist[…]nuncadiminui,osnomeseosrostossãosimplesmentesubstituídosporoutros.”[36]Enredadanumaespiralsemfim,aestratégiadeerradicaçãoéparadoxalmentedevotadaanuncaerradicar.Adinâmicamesmadeseusefeitosperversosaproíbedejamaisdecapitarumahidra,poiselaseregeneracontinuamentepelosefeitosprodutivosdesuapróprianegatividade.

Osdefensoresdodronecomoarmaprivilegiadado“antiterrorismo”prometemumaguerrasemperdasnemderrota.Elesomitemqueserátambémguerrasemvitória.Oroteiroqueseperfilaédeumaviolênciainfinita,desoluçãoimpossível.Paradoxodeumpoderintocávelquetravaguerrasinvencíveis.Rumoàguerraperpétua…

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Essesimpostoresvendiamfeitiçosquedavaminvulnerabilidadeàguerra,quelevavamafazercaçadasfavoráveisepreservavam-nosdequalquerperigo.BrasseurdeBourbourg[1]

8.Vulnerabilidades

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Osgrandesmitosdeinvulnerabilidadesãoquasetodosrelatosdeumfracasso.Osheróissãoinvulneráveis,excetoemumponto.Aquileséportodaparte“impenetrávelaoferro”,excetoobviamentenocalcanhar.Siegfried,quesebanhounasentranhasdodragão,temocorpo

coberto“deumapeletãoduraquantoaescama,insensívelaosgolpesdomachado”,[2]excetonoombrodireito,ondepousouumafolhadetília.HéraclesenvolveÁjax,aindacriança,napeledoleãodeNemeia,oquetornaseucorpoinvulnerável,anãosersobasaxilas,quenãotiveramcontatocomapelagemdafera.Namitologiapersa,ZoroastroverteáguaencantadanacabeçadeIsfendiar,masestefechouosolhoseRustampoderáabatê-loatirandoumaflechafatalemsuaórbitadireita.Nasfábulasnórdicas,Frigga,mãedeBalder,faztodososseres,inanimadoseanimados,jurarempouparseufilho.Todosprestamjuramento,excetoumaplantafrágil,oazevinho,quefoiomitidanaconsulta…

Oqueessesmitosdizeméqueainvulnerabilidadeé,precisamente,ummito.Hásempreumpontofraco,umimprevisto,umafalha.Eleabateuodragão,masmorreráporcausadeumafolhamorta.Aliçãoénãosóqueainvulnerabilidadenãopodesertotal,masaindaquetodatentativadetornarinvulnerávelengendracomocontrapartidasuavulnerabilidadecorrespondente.ÉsegurandoocorpodeAquilesparamergulhá-lonorioqueTétisotornainvulneráveleaomesmotempoproduzseupontodevulnerabilidadejustamentenolocalemqueosegurou.Longedeseexcluirem,invulnerabilizaçãoevulnerabilidadeatraemumaàoutra.

Essaadvertênciatambémpodeserlidacomopreceitodemétodo:anteuminimigodeaparênciainvulnerável,ouqueassimsequer,encontrarafalha,procurarocalcanhar.Osegredoédescobrirporondeeaque“oinvulnerável”évulnerável.Ocombatepressupõeumapesquisa,eessapesquisadizrespeitoaocorpodoinimigo.

NaIdadeMédia,antesdoadventodapólvora,quealterouascondiçõessociotécnicasdavidaedamortenocombate,oscavaleiros,diz-se,tinhamconseguido“tornar-sequaseinvulneráveispeloexpedientequeimaginaramdeapertardetalformatodasaspeçasdesuaarmadura,quenemalança,nemaespada,nemopunhalpossampenetraratéseucorpo,etorná-lastãofortes,queelasnãopossamserperfuradas”.[3]Emconsequência,“umapartedotreinamentodoscombatentes,nasbatalhasounoscombatesparticulares,eraencontrarodefeitodacouraça”.[4]

Entreaimagemqueosoperadoresdedronesveemnatelaeoquesepassanochão,háumadefasagem:éoproblemada“latênciadosinal”.Oespaço,quesepretendeupoderignorarpelatécnica,voltasoboaspectodeumlapsodetempoincompressível.Tudoqueosoperadorespodemvisarnãopassadaimagemligeiramentedesatualizadadeumasituaçãoanterior.OTheNewYorkTimesreportaqueosalvospassaramajogarcomessaassincronia:quandoosindivíduosacreditamestarsendocaçadosporumdrone,deslocam-seagoraemzigue-zague.[5]

Longedaimagemdeonipotênciaquecostumaveicular,odroneéumaarmafrágil,cheiadefalhasecontradiçõesprofundas.Asvulnerabilidadesqueapresentasãomúltiplas.Antesdemaisnada,técnicas.

Seuusopressupõeemprimeirolugarodomíniodoespaçoaéreoemquesedesenvolve.Seessacondição,espontaneamenteadquiridaemcontextodeguerraassimétrica–quandooinimigonão

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dispõededefesasantiaéreaseficazes–,vieradesaparecer,amaiorpartedosdronesatuaiscomeçaria,comoconfessatambémDeptula,a“cairfeitomoscas”.[6]

Alémdodomínioaéreo,éprecisotambémodomíniodasondas.Em2009,aimprensanoticiouqueinsurgentesiraquianostinhamconseguidointerceptarossinaisdevídeotransmitidospordronesPredator.[7]Pararealizaressaproeza–nadamenosquequebrarajoiadatecnologiamilitardosEstadosUnidos–,bastaram-lhesumaantenasatéliteeumsoftwarevendidosnainternetpormenosdetrintaeuros.Segurosdesuasuperioridadetecnológica,osmilitaresnorte-americanosaparentementenãotinhamtomadoaprecauçãoelementardecriptografardeformaeficazsuastransmissões.Oexércitoisraelense,porterdadoprovadamesmanegligência,deu-secontarecentementedequeoHezbollahhaviadesenvolvidofaziamaisdedezanosacapacidadedeinterceptarosvídeosemitidosporseusdrones–oquepermitiaqueaorganização,entreoutrascoisas,localizasseosbatalhõesdoTsahalnosoloparamelhoremboscá-los.[8]Avigilânciaarmadaemprestava,semosaber,seusolhosaoinimigo.Umdosprincípiosclássicosdaguerrilhaéseproverdearmasnocampooposto.Essaregravaleigualmentehojeparaocomponenteeletromagnéticodoarsenal.

Seossinaisemitidospelosdronespuderamserpirateadoscomtantafacilidade,nãoéimpensávelqueosfluxosdedadosqueoscomandamtambémopossamser.Ospiratasdoardofuturoserãoespecialistaseminformática:quebrarocódigoetomarcontrole,adistância,doaparelho.ArevistaWiredrevelourecentementequeumvírusinformáticohaviainfestadooscomputadoresdabasedeCreech,inclusiveaquelesempregadospelosoperadoresdedrones.[9]Eraumsoftwareespiãodotipokeylogger,capazdegravarasteclasdigitadasedetransmiti-lasaumterceiro,demodoquesepossamrecuperarassenhas.

Aameaçapermaneciarelativamentebenigna,maséevidentequesepodemconsideraroutrosroteiros.Comotodosistemainformáticoconectado,odroneévulnerávelaintrusões.Émaiscertoqueumexércitoinformatizadopossaserparalisadoporumataqueviraldoqueporbombas.

Semdúvida,aopçãopordronesintegralmenterobotizadosresolveriaoproblemadeumeventualdesviodefeixesdiretoresdecomando.Masissodeixariaescancaradaoutrafalhadesegurança.Poisessesdispositivossãodependentes,parasuaorientação,dascoordenadasGPS,istoé,dedadosdesatélites,quetambémpodemserdesvirtuadosoumanipulados.Porocasiãodeumtesteorganizadopelasautoridadesnorte-americanasemjunhode2012,umgrupodepesquisadoresdaUniversidadedoTexasdemonstrouafacilidadecomqueumdronepodeserabatidoporessavia.Pormeiodeumaparelhomontadoporunspoucosmilharesdedólares,aequipepôdeenviarumfalsosinalGPSaodispositivo:“Fizemosqueodroneacreditassequeestavasubindobruscamente”.[10]Opilotoautomático,encarregadoderetificaraaltitudedevoo,compensoudeimediato,projetandoaaeronaveparaochão.Seninguémtivesseintervido,eleteriaseestatelado.

Masasfalhasnãosãosótécnicas.Sãotambémpolítico-estratégicas.Apredileçãonorte-americanapor“zeromortos”,diagnosticavamdoisestrategistaschinesesem1999,ofereceaosadversáriosdosEstadosUnidosummeiorápido,fácilebaratodefazerfracassaraprimeirapotênciamundial:

Ossimplessoldadosnorte-americanos,quedeveriamsercombatentesnumcampodebatalha,representamatualmenteovalormaispreciosodaguerra,comosefossemvasosdeporcelanaquereceamosquebrar.Todososadversáriosquejáterçaramarmascomoexércitonorte-americano

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compreenderamsemdúvidaosegredodoêxito–senãoforpossívelvenceresseexército,seráprecisomatarseussoldados.[11]

Adronizaçãodasforçasarmadasradicalizamaisaindaessafalhaestratégica.Comaretiradadosmilitaresdocampodebatalha,aviolênciaadversáriatenderáaseredirigiraalvosmaisfáceisdeatingir.Seossoldadosestãoforadealcance,restamoscivis.Comoexplicaummilitarnorte-americano,

Precisamoscompreenderqueastentativasdeblindarnossaforçacontraqualquerameaçainimiga[…]resultamnatransferênciada“cargadorisco”:estanãopesamaissobrenossosombrosmasexclusivamentesobreodaquelesquenãopossuemosrecursosmateriaisparasuportá-la–apopulaçãocivil.[12]

Oparadoxoéqueahiperproteçãodopessoalmilitartendeacomprometeradivisãosocialtradicionaldosriscosentresoldadosexpostosecivispreservados.Aomaximizaraproteçãodasvidasmilitareseaofazerdainviolabilidadedesuasafezoneamarcadesuaforça,atendênciaéqueoEstado-droneorienteasrepresáliasparasuaprópriapopulação.[13]

Essetipoderoteiroémaisprovávelnamedidaemqueaviabilidadedomodelodesegurançaassociadoaoprincípio“projetarpodersemprojetarvulnerabilidade”repousaempostuladosfrágeis.Estepressupõe,comefeito,quesejapossívelumasantuarizaçãoefetivadasafezonedoméstica;[14]queoperigo,aameaçaeoinimigopossamserabsolutamenteconfinadosnoespaçoexteriordazonahostil;quenuncaentrem.Essapretensãoesbarranoproblemadairredutívelporosidadedasfronteiras.Nãoexistemuroaltoobastante,barreiraimpermeávelosuficienteparagarantiroisolamentoabsolutodeumagatedcommunity[comunidadefechada]nacional.

Odronemilitaréumaarmalowcost[debaixocusto]–aomenoscomparadocomosaviõesdecombateclássicos.Aíestá,ehámuitotempo,umdosprincipaisargumentosdevendadosindustriaisdoarmamentoaosresponsáveispolíticos.Masacontradiçãoéqueobviamenteanaturezadeumaarmacomoessaéproliferar.

OquefazFrancisFukuyamadepoisdeOfimdahistória?Emseutempoocioso,montapequenosdronesemsuagaragem,edepoisosexpõeorgulhosamenteemseublog.[15]Elefazpartedeumasubculturaemcrescimentoexponencial,adoDIYdrone,odronefeitoemcasa.Àmaneiradosaficionadosdemodelismodosanos1960,existehojeumapequenacomunidadedeamadoresquecompramouconstroemdronesdelazerporalgumascentenasdeeuros.Equipadoscommicrocâmeras,essesdispositivospermitemrealizarpequenosfilmesselvagens,algunsdosquaissãodeumabelezatocante.PensoprincipalmentenumatravessiadocéudeNovaYork,emqueseadotaopontodevistadopássaropara,depoisdesobrevoarapontedoBrooklyn,darrasantenasfachadasdoskylineeporfimroçarachamadaestátuadaLiberdade.[16]ProvainequívocadavalidadedatesedeWalterBenjaminsegundoaqualatécnica,hojeaserviçodefinsmortíferos,podeencontrarsuaspotencialidadesemancipatóriasrecuperandoaaspiraçãolúdicaeestéticaqueaanimasecretamente.

Masseodronepodeedeveserdesmilitarizado,tambémétotalmentepossívelconverteracustosbaixosessesdispositivosdefabricaçãocaseiraemterríveisarmasnãoconvencionais.OpesquisadorrussoEugeneMiasnikovvênosdronesamadoresapotencialidadedeuma“armadeatentadosuicida

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àbasedeesteroides”:aocontráriodeumhomem-bomba,umdroneamadorpodecommuitafacilidade“introduzir-senumperímetrodesegurança,comprometerzonasaltamentesegurasdotipo‘zonasverdes’ouacederaespaçospúblicostãodensamentepovoadosquantoestádiosesportivos”.[17]

Emnovembrode2006,umrelatórioconfidencialdosserviçosnorte-americanosdavacontadeumanovatécnicautilizadapelosinsurgentesnoIraque.Ohomem-bombaeraequipadocomumacâmeraquetransmitiaasimagensaovivoaseussuperiores.Graçasaesseequipamento,

umoutromembrodacélulaterroristapodiaobservarasatividadesdocandidatoaoatentadosuicidamedianteumacâmeraminiaturainstaladaemsuaroupa.Ooutromembropodiaassimseassegurardequeoindivíduotinhachegadopertodoalvodesignadoequehaviadefatodetonadoabomba.Senãoofizesse,oobservadorpodiaapertarodisparadoradistância.[18]

Éainvençãododronehumano:umhomemtelecomandadoporoutros,quepodem,pormeiodeumdispositivodedetonaçãoadistância,fazê-loexplodiraqualquermomento.Aironiaéqueoutroscomandantes-chefes,nooutrolado,verãotalvez,emseusprópriosmonitores,graçasàscâmerasdevídeoigualmenteinstaladasnocapacetedeseussoldados,umindivíduoaproximar-seeesboçarumgestosuspeito.Comanevequeaomesmotempoinvadirásuastelas,todossaberãonomesmoinstantequeseushomensmorreram.Atingidoesseestágio,apróximaetapanoaperfeiçoamentodaartedoatentadoconsisteemfazeraeconomiadohomem-bomba:passardoguerrilheirodronizadoaodronepuraesimplesmente.

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II.ÉTHOSEPSIQUÊ

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Paramim,orobôénossarespostaaoatentadosuicida.BartEverett[1]

1.Dronesecamicases

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WalterBenjaminrefletiusobreosdrones,osaviõesradiocomandadosqueospensadoresmilitaresimaginavamjáemmeadosdosanos1930.[2]Esseexemplolheserviuparailustraradiferençaentrea“segundatécnica”,característicadasindústriasmodernas,ea“primeira

técnica”,queremontaàartedaPré-História.Oqueasdistinguia,aseuver,nãoeratantoainferioridadeouoarcaísmodeumaemrelaçãoàoutra,massima“diferençatendencial”entreelas:“Aprimeiratécnicautilizaaomáximoohomemeasegundaoutilizaomínimopossível.Ograndeatodaprimeiraé,emcertamedida,osacrifíciohumano,odasegundaestánalinhadosaviõescontroladosportelecomandos,quenãoprecisamdetripulaçãohumana”.[3]

Deumlado,astécnicasdosacrifício;dooutro,asdojogo.Deumlado,oengajamentointegral;dooutro,odesengajamentototal.Deumlado,asingularidadedeumatovivo;dooutro,areprodutibilidadeindefinidadeumgestomecânico:

Ode-uma-vez-por-todasvaleparaaprimeiratécnica(alisetratadafalta,quenuncapoderáserreparada,oudamortesacrificial,enquantosubstituiçãoeterna).Ouma-vez-é-vez-nenhumavaleparaasegundatécnica(estatemavercomoexperimentoesuaincansávelvariaçãodaordenaçãoexperimental).[4]

Deumlado,ocamicase,ouoautordoatentadosuicida,quesedestróideumavezportodasnumaúnicaexplosão;dooutro,odrone,quelançaseusmísseistranquilamenterepetidasvezes.

Enquantoocamicaseimplicaafusãocompletadocorpodocombatentecomsuaarma,odronegarantesuaseparaçãoradical.Camicase:meucorpoéumaarma.Drone:minhaarmanãotemcorpo.Oprimeiroimplicaamortedoagente.Osegundo,aexcluidemodoabsoluto.Oscamicasessãooshomensdamortecerta.Ospilotosdedrone,oshomensdamorteimpossível.Nessesentido,representamdoispolosopostosnoespectrodaexposiçãoàmorte.Entreosdois,estãooscombatentesclássicos,oshomensdoriscodemorte.

Fala-sedesuicidebombing,de“atentadosuicida”,masqualseriaoantônimodisso?Nãoexisteexpressãoespecíficaparadesignaraquelesquepodemmatarpelaexplosãosemjamaisexporsuaprópriavida.Nãosónãoénecessáriomorrerparamatar,mas,sobretudo,éimpossívelsermortoduranteoatodematar.

ContrariamenteaoesquemaevolucionistaqueBenjaminsugere,para,narealidade,melhorsubvertê-lo,camicaseedrone,armadosacrifícioearmadaautopreservação,nãosesucedemdemodolinearmentecronológico,umexpulsandoooutrocomoaHistóriasubstituiaPré-História.Elessurgemdemodoconjunto,comoduastáticasopostasrespondendohistoricamenteumaàoutra.

Emmeadosdosanos1930,umengenheirodaempresaderadiocomunicaçãoRCAleuumartigosobreoexércitojaponês,queoinquietouprofundamente.Segundootexto,osjaponesestinhamformadoesquadrõesdepilotosparaaviõessuicidas.MuitoantesdatrágicasurpresadePearlHarbour,Zworykinhaviacaptadoaamplitudedaameaça:

Aeficáciadessemétodo,obviamente,aindaprecisaserdemonstrada,masseumtreinamentopsicológicodastropas,comoelespropõem,foipossível,essaarmaserevelarádasmaisperigosas.Comodificilmentepodemosesperarquemétodoscomoessesejamintroduzidosneste

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país,devemoscontarcomnossasuperioridadetécnicapararesolveroproblema.[5]

Naépoca,jáexistiamnosEstadosUnidosprotótiposde“aviõescontroladosporrádio”quepodiamservirdetorpedosaéreos.Masoproblemaeraqueessesdispositivostelecomandadoseramcegos:eles“perdemaeficáciaassimqueérompidoocontatovisualcomabasequeosdirige.Osjaponeses,evidentemente,encontraramasoluçãoparaesseproblema”.Asoluçãoeraocamicase:comoopilototemolhoseestádispostoamorrer,elepodeguiaroaviãoatéatingiroalvo.

MasZworykineratambém,naRCA,umdospioneirosdatelevisão.Elá,semdúvida,estavaasolução:“Ummeiopossívelparaobterpraticamenteosmesmosresultadosqueopilotosuicidaconsisteemequiparotorpedocomandadoporrádiocomumolhoeletrônico”.[6]Ooperadorestariaentãoemcondiçõesdeenxergaroalvoatéofimeguiarvisualmenteaarmaatéopontodeimpacto.

Nacabinedoavião,nadaalémdaretinaelétricadopiloto,poisseucorpoestaráemoutrolugar,foradoalcancedasdefesasantiaéreasinimigas.Comesseprincípiodeacoplamentodatelevisãoaoaviãotelecomandado,Zworykindescobriaafórmuladoqueviriamaserasmartbomb[bombainteligente]eodronearmado.

OtextodeZworykinénotávelporqueeleconcebe,eissodesdesuasprimeirasformulaçõesteóricas,oancestraldodronecomoumanticamicase.Nãosódopontodevistalógico,desuadefinição,mastambémesobretudonoplanotático:éaarmaquerespondeaomesmotempocomoantídotoegêmeo.Droneecamicaseconstituemduasopçõespráticasopostaspararesolverumproblemaidêntico:guiarabombaatéoalvo.Oqueosjaponesespretendiamrealizarpelasuperioridadedeseusacrifíciomoral,osnorte-americanosfarãopelasupremaciadesuatecnologiamaterial.Oqueosprimeirosesperavamatingirpelotreinamentopsicológico,pelamoraldosacrifícioheroico,ossegundosbuscavamalcançarporprocedimentospuramentetécnicos.Agêneseconceitualdodronetemlugaremumaeconomiaético-técnicadavidaedamorteemqueopodertecnológicosubstituiumaformadesacrifícioinexigível.Deumlado,haverácombatentesvalorosos,dispostosasesacrificarpelacausa,dooutro,sómáquinas-fantasmas.

Hoje,retomamosesseantagonismodocamicaseedotelecomando.Atentadossuicidascontraatentados-fantasmas.Essapolaridadeéantesdetudoeconômica.Opõeaquelesquepossuemocapitaleatecnologiaaosquecontamapenascomocorpoparacombater.Aessesdoisregimesmateriaisetáticoscorrespondemtambémdoisregimeséticos–éticadosacrifícioheroicodeumlado,éticadaautopreservaçãodooutro.

Droneecamicasesecorrespondemcomodoismotivosopostosdasensibilidademoral.Doiséthosfrenteafrenteespelhando-se,cadaumaantíteseeopesadelodooutro.Oqueestáemjogo,nessadiferença,aomenoscomoaparecenasuperfície,écertaconcepçãodarelaçãocomamorte,aprópriaeadeoutrem,darelaçãocomosacrifícioouapreservaçãodesi,comoperigoeacoragem,comavulnerabilidadeeadestrutividade.Duaseconomiaspolíticaseafetivasdarelaçãocomamorte,aqueseprovocaeaquelaàqualseéexposto.Mastambémduasconcepçõesopostasdohorror,duasvisõesdehorror.

RichardCohen,editorialistadoTheWashingtonPost,manifestousuavisãosobreotema:“Nocasodoscombatentestalebans,alémdenãoprezaremavida,desperdiçam-nagratuitamenteematentadossuicidas.Édifícilimaginarumcamicasenorte-americano”.[7]Einsiste:

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Umcamicasenorte-americano,issonãoexiste.Nósnãoexaltamososautoresdeatentadossuicidas,nãofazemosqueseusfilhosdesfilemdiantedascâmerasdetelevisãoparaqueoutrascriançasosinvejempelamortedeumparente.Issoéestranhoparanós.Éassustador.Éfrancamenterepugnante.

Eacrescenta,complacente,“mastalvezsejamosnósqueprezamosdemaisavida”.[8]

Oqueéentão“estranho”,“assustador”,“repugnante”éestardispostoamorrernalutaeglorificar-secomesseato.Ovelhotemadosacrifícioguerreiro,caídodeseupedestaldiretamentenasmãosdoinimigo,tornou-seopiordosatos,ocúmulodohorrormoral.Aosacrifício,incompreensíveleignóbil,interpretadoimediatamentecomodesprezopelavida,massemlevaremcontaquepodeimplicar,antes,odesprezopelamorte,opõe-seumaéticadoamoràvida–cujaexpressãomaisbem-acabadaésemdúvidaodrone.Coquetismoderradeiro,“nós”prezamostantoavidaqueàsvezesaprotegemosatédemais.Umamortãodesmedidoqueseriaatéperdoávelsetantaautocomplacêncianãofizessesuspeitardoamor-próprio.Pois,contrariamenteaoqueoautorexpõe,sãonossasvidas,nãoavidaemgeralque“nós”prezamos.Seocamicasenorte-americanoéinconcebível,impossíveldeserpensado,éporqueseriaumoximoro.Avida,nessecaso,nãosaberianegarasimesma.Arazãoésimples:elasónegaadosoutros.

Questionadoporumjornalistaparasaberseera“verdadequeospalestinosnãosepreocupamcomavidahumana,nemmesmoadeseuspróximos”,EyadEl-Sarraj,diretordoprogramadesaúdementaldeGaza,respondeu:“Comovocêpodeacreditaremsuaprópriahumanidadesenãoacreditanahumanidadedoinimigo?”.[9]

Horrorporhorror,emqueaspectoseriamenoshorrívelmatarsemseexporaperderaprópriavidadoquematarcompartilhandoasortedesuasvítimas?Emqueaspectoumaarmaquepermitematarsemnenhumriscoseriamenosrepugnantequeooposto?JacquelineRose,surpreendendo-secomofatodeque“lançardoaltobombasdefragmentaçãonãosóéconsideradomenosrepugnante,mastambém,paraosdirigentesocidentais,moralmentesuperior”,interroga-se:“Nãoéclaraarazãopelaqualmorrercomsuavítimadeveriaserconsideradoumpecadomaiorquepouparasimesmoaofazê-lo”.[10]Um“antropólogovindodeMarte”,acrescentaHughGusterson,

poderianotarquemuitos,noOrienteMédio,consideramosataquesdedronesnorte-americanosexatamentecomoRichardCohenconsideraosataquessuicidas.Osataquesdedronessãotidoscomocovardes,porqueopilotodedronematapessoasemterra,apartirdoespaçosegurodeumabrigoclimatizadoemNevada,semomenorriscodesermortoporaquelesqueestáatacando.[11]

TalalAsadsugerequeohorrorsuscitadopelosatentadossuicidasnassociedades“ocidentais”estánofatodeoautordoatentado,comseugesto,impediraprioriqualquermecanismodejustiçaretributiva:aomorrercomsuavítima,aofundiremumúnicoatocrimeecastigo,tornaapuniçãoimpossíveledesativaassimomotorfundamentaldeumajustiçapensadadopontodevistapenal.[12]Elenãopoderánunca“pagarpeloquefez”.

Ohorrorqueaideiadeumamorteadministradapormáquinassempilotosuscitadeve-sesemdúvidaaalgosimilar:“Ooperadordedrone”,acrescentaGusterson,“éigualmenteumaimagemespelhadadoatentadosuicidanosentidoemqueeletambémseafasta,aindaqueemdireçãooposta,

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denossaimagemparadigmáticadecombate”.[13]

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Vocêssemprepodemcorrer,masmorrerãocansados.CamisetaostentandoaglóriadodronePredator

2.“Quemorramosoutros”

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Umautormilitarapresentava,nocomeçodoséculoXX,umavisãogeraldoestadodeespíritoqueanimavaatripulaçãodosprimeirossubmarinosmilitares,emumaépocaemque,pornãoconhecerosonar,osnaviosemsuperfícieeramabsolutamenteincapazesdedetectarsua

presença:

Eleseraminvulneráveis.Aguerradeviaserparaelesumjogo,umesporte,umaespéciedecaça,emque,depoisdedispensaredistribuiramatança,sólhesrestariasecomprazercomoespetáculodaagoniadesuasvítimas.Duranteessetempoestariamaoabrigodosataques,e,devoltaaoporto,seocupariamemnarrarsuasproezascinegéticas.[1]

Atravésdenovosmeios,odroneforneceumsentimentodeinvulnerabilidademuitomaisforteaseusoperadores.Hoje,assimcomoontem,odesequilíbrioradicalnaexposiçãoàmortelevaàredefiniçãodaestruturadarelaçãodehostilidade,osentidomesmodoquechamamos“fazeraguerra”.Esta,afastando-seporcompletodomodelodocombate,torna-seum“estadodeviolência”deoutraespécie.Degeneraemabateouemcaça.Nãosecombatemaisoinimigo,eleéeliminadodamesmamaneiracomoseatiraemcoelhos.

NoséculoXVI,olivrodasimagensdamorterepresentavaumguerreiroemarmaslutandocontraumesqueleto–aprópriamorte:alegoriadeumalutaderrisória,inutilidadedeumcombateperdidodesaída,poisamortenãomorrenunca.Otempolhepertence,eosolhosdosoldadoqueaenfrentajáparecemvazios.

Hoje,osoperadoresdedronesseapossaramdessasimagensclássicas.ObrasãododroneMQ9Reaperfiguraaceifeira,sorrisoinquietanteepérolasdesanguenafoice,comolema:“Quemorramosoutros”.

Amortenocombate(1555),[2]e,aolado,obrasãododroneReaper,“aceifeira”.

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Isso,comcerteza,nãotemnadadeinédito.Cadavezque,pordisparidadeseconômicas,comoescreveuVoltaire,“qualquerricotornou-sequaseinvulnerávelnaguerra”,[3]estasetransformouemmatançademãoúnica.Apartirdomomentoemqueumdoscampos,graçasàesmagadorasuperioridadematerialdesuasarmas,setornapraticamenteintocável,avidaeamorteseinstalamdeformaexclusivacadaumadeumladodalinhadehostilidade.

Mastodavezqueseapresentamsituaçõescomoessa,algunscontemporâneosacabamficandoperturbadoselogoindignadosanteoespetáculodeumaviolênciaarmadaquecontrariatãomanifestamentea“concepçãoconvencionaldaguerracomoatividadenaqualamorteeoassassinatodesereshumanosseintercambiam”.[4]Quandoessaspessoasexpressamseudesacordodeformademasiadoexplícita,pode-sesemprerecorreraumaestratégiadiscursivabastanteantigaparatranquilizarasconsciênciasinquietasefazercalarasmaisacusadoras:mobilizarodiscursoasseguradordapermanênciahistórica.Ocorreentãoumesforçoparamostrar,comgrandesuportedeexemploshistóricos,queessegênerodesituação,nãotendonadadefundamentalmentenovo,éportantocompletamenteaceitável.

Emumartigointitulado“Emdefesadosdrones,umargumentohistórico”,DavidBellcriticaaquelesqueveemnessasarmas“algototalmentenovo–umasinistrafantasiadeficçãotornadarealidade”elembraque“senossatecnologiaatualénova,odesejodeeliminarinimigosadistâncianãoé”.[5]Isso,semdúvida,éverdade,masomaismisteriosoécomoumainvocação“histórica”poderiaconstituiruma“defesadosdrones”.

PoisBellpoderiateracrescentadoqueo“desejodeeliminarinimigosadistância”nuncafoitãobemsatisfeitocomonosgloriososepisódiosdasguerrascoloniais,emqueosnativoscaíamemmassaenquantoosexércitosdosbrancossofriamapenasarranhões.Nanoiteda“batalha”deOmdurman,noSudão,nodia2desetembrode1898,contavam-se48mortosdoladodasforçasanglo-egípciascomandadasporKitchenercontramaisde10mildervixesceifadospelasrajadasmetálicasdametralhadoraMaxim.Poderíamosmultiplicarosexemplos.

Ousoatualdosdronesinscreve-se,àsuamaneira,nacontinuidadedessas“guerrasassimétricas”,fuzis-metralhadorascontraazagaiasouvelhasespingardas–essas“pequenasguerras”quejánãoerammaisheroicas,tampoucorealmente“guerras”nosentidonobrequeumOcidentequesesonhavaaindagregohaviaacreditadopoderdaraessapalavra.Searepugnânciaemfazerusodemeiosnãonobresexistia,elasóencontravalugarnassituaçõesdeconflitosentreiguais,emoposiçãoaosimplesfatodesuprimirinferiores.ComolembraJünger:

Emtodosostemposdistinguiram-sedoisestilos,umaformasuperioreumaformabárbaradodireitodaguerraedasconvenções[…].NaIdadeMédia,asfrotascristãssópodiamabrirfogocontraosnaviosturcos.NoséculoXX,asbalasdundum,proscritasnosteatrosdeoperaçãoeuropeus,eramutilizadasnasguerrascoloniais,ejustificava-sequeosprojéteistradicionaisdechumbonãodetinhamoelãdos“selvagens”.[6]

Seriacuriosoapresentaressesantecedenteshistóricoscomoumajustificaçãopossívelparaseuúltimoavatarcontemporâneo.Noentanto,esseéosubtextodosargumentosdotipo“nadadenovosobosol”.Suafunçãoéacalmarainquietaçãoatualfazendoreferênciaaumpassadoquesupostamentefazjurisprudência.Masainvocaçãotranquilizadoradahistóriaéfeitaaquiaopreçode

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umamutilaçãodosentidoautênticodacontinuidadehistórica.ComoexplicaTalalAsad,issosignifica,narealidade,jogarnosdoispartidos,poisdeumlado“oefeitopsicológicodessasituaçãodematançadesigualémitigadopelofatodequeexisteumatradiçãomuitoantigadebatalhascontrapovosmilitareetnicamenteinferiores,naqualseadmitequeestesúltimosmorramemnúmeromuitomaior”,deoutro,todavia,“aliteraturacrescentesobreasnovastecnologiasmilitaresdámuitopoucaatençãoàscontinuidadesentreessasnovasguerraseasguerrascoloniaisanteriores”.[7]Oespectrodaviolênciacolonialétacitamenteconvocadopararelativizaraviolênciapresente,inscrevendo-anacontinuidadetranquiladeumatradiçãopassada,maslogoocultada,vistoquenãohápreocupaçãoemapontarcomprecisãoemqueconsisteoconteúdorealdessatradição.Odroneéaarmadeumaviolênciapós-colonialamnésica.

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Osprogressostécnicos,aodesenvolveraesperançadematarcomsegurançaesemperigo,podemfazeresquecerqueaprimeiraqualidadenecessáriaaosoldadoéodesprezodamorte.CapitãoBoucherie,LeSpectateurmilitaire,abrilde1914[1]

3.Crisenoéthosmilitar

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Giges,umpastordaLídia,encontraporacasosobreocadávernudeumgigante,numafenda,umaneldeouroqueotornainvisível.Graçasaseunovopoder,certodeescaparaosolharesdoshomens,elemultiplicaatrocidades,mataoreieseapossadotrono.Seusadversáriosnão

podemnemevitarseusgolpesnemsedefenderdele.Ainvisibilidadelheconfereumaformadeinvulnerabilidade.Comoelepodeagirsemdeixartestemunhas,essainvisibilidadelhegarantetambémaimpunidade.

OqueaRepúblicadePlatãopropunhapelodesviodeumaexperiênciadepensamento,odronerealizatecnicamente.SegundoKaageKreps,considerandoque“máquinastelecomandadasnãopodemassumirasconsequênciasdeseusatos,equeossereshumanosqueasacionamofazemagrandedistância,omitodeGigessurgehojemuitomaiscomoaparáboladoantiterrorismomodernoquedoterrorismo”.[2]Livresdoconjuntoderestriçõesimpostopelasrelaçõesdereciprocidade,poderãoossenhoresdosdronesaindamostrar-sevirtuosos,resistiràtentaçãodecometerumainjustiçaquedoravantenadamaisviriasancionar?Éaquestão,queretomaremosadiante,doriscomoral.

Mashaveriatambémoutramaneiradecolocaroproblema.Seécertoque“omaisfortenuncaésuficientementeforteparasersempreosenhor,senãotransformandosuaforça”emvirtude,[3]restasaber:ohomeminvisívelpodeservirtuoso?Mas,seelequiserpersistiremsedizervirtuoso,emseconsiderarcomotal,mesmoaseusprópriosolhos,dequeredefiniçãodavirtudeeleprecisará?

Oéthosmilitartradicionaltinhasuasvirtudescardinais:coragem,sacrifício,heroísmo…Esses“valores”tinhamumafunçãoideológicaclara.Tornaromassacreaceitável–melhorainda,glorioso.Eosgeneraisnãooescondiam:“Éprecisoencontrarummeiodeconduziraspessoasàmorte,casocontrário,nãohaverámaisguerrapossível;eeuconheçoessemeio,eleestánoespíritodosacrifícioesónele”.[4]

Estar“dispostoamorrer”apareciatambém,nessasconcepções,comoumdosprincipaisfatoresdavitória,ocernedoqueClausewitzchamaraa“forçamoral”.Eraumhorizonteintransponível:

Nãodevemosesquecerquenossamissãoématareaomesmotemposermosmortos.Éumpontoquenuncadevemosignorar.Fazeraguerramatandosemsermortoéumaquimera;fazeraguerramorrendosemmataréumainépcia.Éprecisoportantosabermatar,estandodispostoaperecer.Ohomemquesevotouàmorteéterrível.[5]

Nacontinuidadedosideaisfilosóficosclássicos,aguerraapareciacomoaexperiênciaéticaporexcelência:guerreareraaprenderamorrer.

Masrestavaumproblema:“Comosejustificaoencorajamentoaosacrifícioheroiconaguerra?Issonãoestaráemcontradiçãocomaexigênciade‘conservarasprópriasforças’?”,perguntavaMao.Não,eleprópriorespondia,

osacrifícioeapreservaçãodasprópriasforçassãocontráriosquesecompletammutuamente.Aguerraépolíticacomderramamentodesangueeexigeopagamentodeumpreço,oqualéextremamenteelevadoalgumasvezes.Osacrifícioparcialetemporário(nãopreservação)éexigidopelaconservaçãogeralepermanentedasprópriasforças.[6]

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Énessadialéticadaexposiçãopreservadoraoudadestruiçãoconservadoraquetinhalugarovalordosacrifício,consideradoheroicoporquepermitia,pelaabnegaçãodaspartes,queotodoperdurasse.Pois“averdadeiracoragem”,adoshomenscivilizados,professavatambémHegel,reside,muitomaisdoquenosimplesdesprezodamorte,nofatodeestar“prontoasacrificaraprópriavidaaoserviçodoEstado”.[7]

Masoqueacontecequandotudoissonãoémaispreciso?Quandonãosetemmaisnecessidadedeexporasprópriasforçasvivasparainfligirperdasaoinimigo?Adialéticadosacrifíciodissolve-seentãoemimperativodesimplesautoconservação.Comaconsequênciadequeoheroísmo,eacoragemcomele,tornam-seimpossíveis.

Essediagnósticonãotemnadadeoriginal:hámaisdeduasdécadasouvimosqueentramosnaeradaguerrasemvirtude–virtuelesswar,[8]ounaera“pós-heroica”.[9]Seaquiealiperduramresquíciosépicos,sãoapenasnostalgiasantiquadas,resíduosideológicosemviasdedecomposiçãoavançada.Excetoqueosantigosvalores,tornadosobsoletos,podemcomeçaraprotestarcontraseuenterroanunciado.Enquantoassuperestruturassobreviverem,elaspoderãosemostrarincômodase,porinérciaprópria,seempenharemdesaceleraraprogressãodainfraestruturaquetrabalhaativamenteparapuxarseutapete.

Oproblema,nessecaso,éque,consideradosoboprismadosvalorestradicionais,matarpormeiododrone,esmagaroinimigosemjamaispôremriscoaprópriapele,aparecesemprecomoosumodacovardiaedadesonra.Adiscordânciaentrearealidadetécnicadacondutadaguerraesuaideologiaremanescenteconstituiumacontradiçãopoderosa,inclusiveparaosmembrosdasforçasarmadas.Oque,segundoeles,produzacolisãoentreessasnovasarmaseosantigosquadros,talvezultrapassadosmasaindaempartepregnantes,éumacrisenoéthosmilitar.

Sintomarevelador,asprimeirascríticasmaisvirulentasdosdronesnãovieramdepacifistasinveterados,masforamformuladaspelospilotosdaAirForce,emnomedapreservaçãodeseusvaloresguerreirostradicionais.[10]Hoje,essesdecaídoscavaleirosdocéu,últimosrepresentantesdeumacastamilitaremdeclínio,entoamaosomdaguitarracantosvingadorescontraseuconcorrentemecânico.OgrupoDosGringos,um“duodepilotosdecombatequefazreviverogênerotradicionaldocantodepilotos”,compôsesseréquiem:

AbateramoPredatorJáéumamenosparamimAbateramoPredatoremeucoraçãoseencheudealegria[…]

AbateramoPredatorImaginooquesepassanacabeçaDooperadorqueperdeuseubrinquedoderodinhasEledevesesentirtãoimpotentePobrebebêfocaqueespancamatésangrar.[11]

Apesardesuasbravatas,ospilotosperderam.TopGunmorreu,eotenenteMaverick,quejásabiaháalgumtempoqueestavanobancoejetável,estáacabandodesearrebentardefinitivamentenosaresemproldeoutrotipodepersonagem,semdúvidamuitomenosfácildeidealizar.

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Paradizer“aviãonãotripulado”,oinglêstemumaexpressãointraduzível:unmannedaerialvehicle.Operigoassociadoédefatotornar-seunmannedemtodosossentidosdapalavra–literalmente“des-homenado”,mastambémdesvirilizadoeatéemasculado.ÉporessarazãotambémqueosoficiaisdaAirForcenoinícioresistiramtantoàgeneralizaçãodosdrones,queobviamenteameaçavasobretudoseuemprego,suaqualificaçãoprofissionalesuaposiçãoinstitucional,mastambém,etalvezmaisprofundamente,seuprestígioviril,emgrandeparteligadoàexposiçãoaosriscos.[12]

Massomosobrigadosalembrarqueesseheroísmoguerreiro,cujocantodocisneestamosouvindo,jáestavaumtantoquantomoribundomuitoantesdeosdronesdaremsinaldevida.Benjaminjáironizava,emsuaépoca,aglorificaçãoilusóriaeinconsequentedo“heroísmo”dasguerrasimperialistaspelospensadoresreacionários:“Osautoresomitiramofatodequeabatalhadematerial,naqualalgunsdelesvislumbramamaisaltarevelaçãodaexistência,colocaforadecirculaçãoosmiseráveisemblemasdoheroísmo,queocasionalmentesobreviveramàgrandeguerra”.[13]Assim,quandoLuttwakchamade“pós-heroica”essaformadeguerracontemporâneaemqueseexigequenãoseponhamaisnenhumsoldadonacionalemperigonasintervençõesexternas,épertinentequestionar:antesdeproclamarofimdaeraheroica,conviriaseindagarse“nós”algumavezchegamosaserheroicos.Sejacomofor,oidealjádegradadodosacrifícioheroicoseencontrahojetãoabertamentedesmentidopelosfatosquesefazurgenterepudiá-locomovaloroficial.Éprecisodescartá-loeprocurarsubstituí-loporoutrasnoçõesdavirtudeguerreira.

Seodroneéconsideradovirtuoso,éprimeiroporqueelepermitesuprimirqualquereventualidadedeperdanoprópriocampo.Oargumentofoiresumidorecentementeporumrelatóriobritânico:namedidaemquea“aeronavenãotripuladaimpedeapotencialperdadasvidasdatripulação,elaéemsimesmamoralmentejustificada”.[14]Bastacompararessatesedosdronesvirtuosos,quepoupamaseusagentesqualquerconfrontocomamorte,àssentençasclássicas,segundoasquaisavirtudemilitaréprecisamenteocontrário,paraquesetenhaamedidadarevoluçãoatualnoterrenodosvalores.

Écertoqueapreocupaçãoemconservarasprópriasforças,emevitarasperdasinúteisnãotememsimesmanadadenovonemdeespecífico.“Desprezaramorte”nãoimplicava,noéthosmilitartradicional,nãoseesforçarporconservaraprópriavida.AespecificidadeaquiéqueconservaravidadeseusprópriossoldadossejaestipuladocomoimperativodeEstadoquaseabsoluto,excluindo,nolimite,qualquersacrifício.Umexércitoqueexpõeavidadesuastropaséruim,eoqueapreservaaqualquerpreçoébom.Aexposiçãoaoriscoécondenável,matarsemperigoéapreciável.Morrerpelapátriaeradecertobonito,masmatarporela,elaquenosdispensadoravantedessepesadotributo,émuitomaisbonito.

Oqueestáseproduzindoantenossosolhoséatendênciaàpassagemdeumaéticaoficialaoutra,deumaéticadosacrifícioedacoragemaumaéticadaautopreservaçãoedacovardiamaisoumenosassumida.Nessegrandemovimentodeinversãodosvalores,éprecisopassarporcimadoqueseadoravanopassadoeexaltaroque,aindaontem,sediziadesprezar.Oquesechamavacovardiatorna-sebravura,oquesechamavaassassinatotorna-secombate,oquesechamavaespíritodesacrifício,portersetornadooprivilégiodeuminimigoacuadoaumamortecerta,converte-seemobjetoderepugnância.Abaixezadevesererigidacomograndeza.Nessesentido,émenosao

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espetáculodeuma“guerrasemvirtude”queseassistedoqueaumavastaoperaçãoderedefiniçãodasvirtudesguerreiras.

Masaviolênciaarmadapoderealmenteprescindirdesuadosedemoralinaheroica?Odesmameédifícil.Asolução,pararenunciaràsubstânciamasmanterosefeitos,passapeloprodutodesubstituição.Nessecaso,manteraspalavras,masmudarseusentido.

OPentágonoestudava,emsetembrode2012,aoportunidadedeconcedermedalhasmilitaresaosoperadoresdedrone.[15]Oproblematodoerasaberemquebaseestespoderiammerecê-las,jáqueessascondecoraçõesdevemsupostamenterecompensarabravuranocombate.Mas,afinal,oqueéabravura?Tudodependedadefiniçãoquesedá.PerguntemosaosLaqueseaosNíciasdehoje.

OcoronelEricMathewson,eméritopilotodedrone,deusuainterpretaçãopessoaldessanoção:“Abravura,paramim,nãoéarriscaraprópriavida.Abravuraéfazeroqueécerto.Abravuratemavercomasmotivaçõeseosfinsaquevocêvisa.Éfazeroqueécertoporrazõescertas.Éisso,paramim,abravura”.[16]Comessetipode“definição”,queaumsótemposedesviadoassunto,étautológicaesereduzaumajustificaçãosuperficialmentejesuíticadosmeiospelosfins,omínimoquesepodedizeréquenãoseavançoumuito.

LutherTurner,umcoronelaposentadoquehaviapilotadoaviõesdecombateedepoisdrones,sugereoutradefinição,quejápermiteenxergardeformaumpoucomaisnítida:“Acreditofirmementequeéprecisobravuraparapilotarumdrone,emespecialquandovocêéobrigadoatiraravidadealguém.Emcertoscasos,vocêvêacoisasedesenrolaraovivoeemcores”.[17]

Éprecisocoragemparaserassassino.Aideia,emtodocaso,équehaveriaumaformadebravuraligadaaoatodematar,edematarobservandograficamenteseusefeitos.Oindivíduoprecisafazerumesforçoparasuplantararepugnânciainicialdecometereveresseato,etalvezsobretudodeverasiprópriofazendo-o.

Secondensarmosopensamentodessesdoispilotosdedrones,chegaremosaessaideiadequepodeservalorosofazeralgoquedeinícioparecerepugnante,nãovaloroso,desdequesejafeitopordever,emnomedefinssuperiores,bonsejustosemsimesmos.Emoutraspalavras,abravuraconsisteaquiemfazerotrabalhosujo.[18]

Aosqueseinsurgiamcontraessaperversãodovocabulário,denunciandoumainversãoorwellianadosentidodaspalavras,aobradeumanovlínguamilitarquecomeçavaachamar“bravura”oqueosséculoshaviamsemprechamadocovardiaouignomínia–matarsemnuncaarriscaraprópriapele–,podia-seresponder:

Nãoachoqueospilotosestejamrealmente“emsegurança”.AsrevistasWiredeNPRrelatamqueospilotossãosubmetidosaaltosníveisdeestresseedetranstornosdeestressepós-traumáticoquepesamsobresuasvidasfamiliares.Ossoldadosestãoemsegurançanoquetocaaosdanosfísicoseàmorte,masasferidaspsicológicasnãopodemserapagadas.[19]

Quantoaotranstornodeestressepós-traumático,veremosdoquesetratanocapítuloseguinte,masoutraideiaimportanteapareceaqui,equeprolongaecompletaaanterior:seosoperadoresdedronesnãosão“bravos”nosentidoclássicodeexporsuavidafísicanocombate,emcompensaçãooseriampelofatodealiexporemindiretamentesuavidapsíquica.Oqueelesarriscamnasoperações

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nãosãoseuscorposesimasaúdemental.Haveriaaíumaformadebravuraespecífica,quenãosedefiniriamaispelaexposiçãodesuavulnerabilidadefísicaaumaviolênciaadversamaspelaexposiçãodesuavulnerabilidadepsíquicaaosefeitosindiretosdoespetáculodesuaprópriadestrutividade.

Essaredefinição,aodeslocaroobjetodosacrifíciodofísicoaomental,permitiriarestituiraosoperadoresdedronessuacotadesaparecidadeheroísmo.Éatendênciaàinvençãodeumanovavirtudemilitar,oheroísmopuramentepsíquico.

“Ohomemdosoldo[l’hommesoldé],osoldado,éumpobreglorioso,vítimaealgoz”,escreviaVigny.[20]Osoldadoexerceaviolênciaeaelaseexpõe;eleéambos,algozevítima.Masoqueocorrequandoésuprimidaatéapossibilidadedeserexpostoàviolência?Aconclusãoéfatal:elepassaaserapenasalgoz.Maséporissotambémqueéprecisoqueelesejaainda,emalgumsentido,vítima,sequisermanteronomedesoldado.Noentanto,adificuldadeésaberdoqueelepoderiaservítima.Sórestaessapossibilidade:queelesejapsiquicamentevítimadeterdeagircomoalgoz.Essaéacondiçãoparaque,adespeitodasevidências,aindasepossadefini-lo,tantoaseusolhoscomoaosdasociedade,comoocombatentequejánãoé.

Masdeondevemessetemadavulnerabilidadepsíquicadosagentesdaviolência?Qualésuagenealogia?Eleaparece,historicamente,nocomeçodoséculoXX,emreaçãoaograndemassacrede14-18[Tamines],nosdiscursospacifistasefeministas,comomotivocentraldeumacríticadainstituiçãomilitar:osexércitosimpõemaseussoldadosquecometamviolênciasqueosenlouquecem,devastam-nospsiquicamente,equeosbrutalizametraumatizam.JaneAddamsdesenvolveessetemacríticonoCongressoInternacionaldasMulheresdeHaia,em1915,emumaintervençãointitulada“Arevoltacontraaguerra”.Elacitaotestemunhodeumaenfermeirarelatandoospesadelosde“soldadosemdelírio[…]possuídospelamesmaalucinaçãoqueretornaincessantemente–elesseveemarrancandosuasbaionetasdocorpodoshomensquehaviammatado”.[21]Addams,namesmaperspectiva,interessa-sepeloscasosderecusadeatirarporpartedossoldados:“Escapeidohorrordemataralguém”,dizumdeles.[22]Elamostratambémcomoosexércitosprocuramneutralizaressasresistênciasamatardistribuindoestimulantesantesdoassaltopara“inibirasensibilidadedessaespéciedehomens”[23]etornaramatançapossível.Essetemadossoldadosvítimasdaviolênciaqueeramobrigadosacometerserviaantesdemaisnadaparacriticarfrontalmenteainstituiçãoqueproduziaessesefeitos.Ora,oqueeraumargumentoantimilitaristaestásendohojereciclado,deformamodificada,paraservirdeauradelegitimaçãoaohomicidadronizado.Poiséexatamenteessemotivoque,invertido,émobilizadopararecuperaroprestígiodosoperadoresdedronesperanteaopiniãopública.Enquanto,nopassado,aevidenciaçãodasferidaspsíquicasdossoldadosvisavacontestarseualistamentoforçadopelaviolênciadoEstado,estaserveagorapararestituiraessaformadeviolênciaunilateralumacoloraçãoético-heroicadesaparecida.

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Nasneurosesdeguerra,[…]oquesetemeé,afinal,uminimigointerno.Freud[1]

4.Psicopatologiasdodrone

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Omotivomidiáticodeum“traumadospilotosdedrones”tornou-seumverdadeirolugar-comum.Propagou-seapartirdeumdespachodaAssociatedPress,em2008,intitulado“Osguerreirosdocomandoremotosofremdoestressedeguerra:osoperadoresdedrones

Predatorsãosuscetíveisdetraumaspsicológicoscomoseuscolegasnocampodebatalha”.[2]Apesardachamadaespetacular,orestodoartigonãofornecianenhumelementoquepermitissecorroboraressatese.Muitopelocontrário,poisojornalistarelatavaquenasdiferentesentrevistasfeitascomoperadoresdedrones“nenhumdelesafirmouterficadoparticularmenteperturbadoporsuasmissões”.[3]Encontramosomesmoprocedimento–títuloimpactantediscretamenteseguidodeumvagodesmentido–namaioriadosartigosdeimprensasobreaquestão.

Emreaçãoaessasmanchetes,ossoldadosnorte-americanosnãohesitaramemdespejarseudesprezoesuaraivanosfórunsmilitaresdosEstadosUnidosnaweb:“Quedrogadebandodechorões[…].Mandemelesemboraeponhamoutrosnolugar,senãosãocapazesdesuportaroestressedepassarosdiasnumtrailerclimatizadoevoltarpracasatodasasnoites”.[4]Ouainda,nomesmoregistro:

Quesedaneessebandodenerdsinformáticosquevêmchoramingarsobresua“fadigadocombate”ouseu“transtornodeestressepós-traumático”[…]eelesnemsequerestãoemcampolevandotiros.Éuminsultoparaaquelesquerealmenteentramemação,querealmenterecebemtirosequetêmrealmentedeenfrentarosefeitospsicológicosdaguerra.[5]

Essesporta-vozesdosmilitares“clássicos”tinhamcomopontodehonradiferenciar-sedaquelesqueconsideravamumbandodefracotes,eassiminformavamindiretamentesobreafunçãoqueessetemamidiáticodesempenhavanodebate.Aênfasenossupostostraumatismosdosoperadorespermitiaassimilá-los,porintermédiodeumavulnerabilidadepsíquicacomum,aossoldadosclássicos(oscombatentessofremdeestressedocombate,osoperadorestambém,portantosãocombatentescomoosoutros),eaomesmotempohumanizá-loscomoagentesdaviolênciaarmada(apesardatecnicidadedesuaarma,nãosãomatadoresfrios).

Insistirnostormentospsíquicosdosoperadorespermitiatambémdeitarporterraoargumentoditoda“mentalidadePlayStation”,segundooqualodispositivodoassassinatonatelaacarretaumavirtualizaçãodaconsciênciadohomicida.Poishouveumtempo,quandoosdronesaindanãoeramobjetodedebatescotidianosnaimprensanorte-americana,emqueospilotosdedronesaindapodiamresponderdeformamaisoumenoscândidaàsperguntasquelheseramdirigidas.Comovocêsesenteaomatarcomumatelainterposta?Breveflorilégio:

Oh,éumtesãoparaumjogador.[6]

ÉcomojogarovideogameCivilization,emqueagentecomandaunidadesecorposdeexércitonabatalha.[7]

Écomoumvideogame.Podeficarumpoucosanguinário,mas,puta,comoélegal.[8]

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Depoisdesemelhantesdesastresemtermosderelaçõespúblicas,osassessoresdeimprensativeramdefazerajusteseorientarsuastropassobreoconteúdodesuasdeclarações,poishojenãoencontramosmaisnenhumtraçodessetipodeenunciadonasentrevistas.Aocontrário,quandoumrepórterdoTheNewYorkTimesvisita,em2012,umabasededrones,eleobserva:“Comoospilotosmedisserammaisdeumavez,umpouconadefensiva,‘Aqui,nãoestamosjogandovideogame’”.[9]

OsitedeinformaçãoAirforceTechnology,ligadoàindústriadadefesa,mencionaessareviravoltanodiscurso:

Enquantonocomeçosepensavaqueosoperadoresdedronesseriammaiscalejadosemrelaçãoaseusatosdoqueaequipepresentenocampodebatalha,hojerevela-sequeéocontrário.Algunsanalistasalegamqueosoperadoresdedronespreocupam-sequasedemaisesofremníveisdeestressedecombatemaisaltosquecertasunidadesnoAfeganistão.[10]

Assim,odebatedeuavoltaeoquadroinverteu-se.Longedeviverumaexperiênciadedesrealizaçãodoassassinato,osoperadoresestão,aocontrário,bastanteafetados,apontodenosindagarmosseriamenteseoproblemaverdadeironãoseriaqueeles“quasesepreocupamdemais”comsuasvítimas.

Compreendemosque,seelesnãosofressemnada,seriamoralmenteproblemático.Mascomomatamcomsensibilidade,eatémaisqueisso,comcare,podementãocontinuarafazê-locomnossabênção.Oparadoxoéqueessapreocupaçãoeessecuidado,essasupostaempatiacomasvítimas,sãodoravanteoquepermitereabilitarempúblicoohomicidapelodrone.Omotivodaempatiasofreaquiumdesviodamesmaordemqueodavulnerabilidadepsíquicaantesmencionada.Enquantoaempatiacomoinimigoeraclassicamentetematizadacomoumfermentodepossívelresistênciaaoassassinato,comoapossívelpremissadeumarecusadematar,elaservenessesdiscursosparaaplicarumvernizdehumanidadeemuminstrumentodehomicidamecanizado.Porém,diantedessavastaoperaçãodeinstrumentalizaçãodascategoriasético-afetivasparafinsmilitares,háoutraimagemquevemàmente:adocrocodilo,quesóderramalágrimasparamelhordevorarsuapresa.

Umúnicosenãoemtodoessequadro:essatesemidiáticadotraumapsíquicodospilotosdedronesnãoseapoiaemnenhumfundamentoempírico.OpsicólogomilitarHernandoOrtegaconduziurecentementeumvastoestudosobreotema.Submeteuoperadoresdedronesatestespsicológicosparadeterminarseusníveisdeestresseeidentificareventuaistranstornosdeestressepós-traumático(Post-TraumaticStressDisorder–PTSD).Suasconclusõessãoclaras:seencontramoscasosbastantenumerososde“distúrbiosdosonoligadoaotrabalhoemequipe”,emcompensação,nenhumpilotopôdeserdiagnosticadopositivoaotestedePTSD:“Tivemos,acho,umoperadordesensoresquepoderiasertestadopositivo–masoqueéumúnico?[…].Aprincipaldescobertadessapesquisaéque,contrariamenteàsideiasrecebidas,assistiraocombatenãoé,demodoalgum,oqueengendraomáximodeestressenodiaadia”.[11]Poroutrolado:

Otrabalhoemequipe,asmudançasdehorário,sãoessesosfatoresdeestressenúmeroum[…].Éumaatividaderealmenteentedianteficarvigiandoamesmacoisadiasafio.Érealmenteentediante.Éterrível.Emanterrelaçõescomsuasfamílias–esseéotipodecoisaqueelesrelataramcomosendoestressanteparaeles.Eseexaminarmostudoisso,elesnãodizemqueé

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porqueeuestavanocombate.Nãodizemqueéporquetivemosdeexplodirumedifício.Nãodizemqueéporquevimospessoassendoexplodidas.Nãoéissoquecausaoestressedeles–aomenossubjetivamenteparaeles.Étodooresto,asquestõesdequalidadedevidasobreasquaistodomundosequeixa.Seobservarmosasenfermeirasquetrabalhamnoturnodanoite,ouquemquerquetrabalheporturnos,elessequeixamdasmesmascoisas.[12]

Aguerratorna-seumteletrabalhocomhoráriosdefasadosetodososseusagentesapresentamsintomasdisso.

Alémdisso:

Elestêm,naverdade,algocomoumconflitoexistencial.Étalvezmaisumsentimentodeculpa:seráquetomeiadecisãocerta?[…]Logo,muitosquestionamentos,emcontrastecomadescriçãoclássicadotranstornodeestressepós-traumático,queestárealmenteassociadoaumeventodeameaçafísica.[…]Émaisosentimentodeumaespéciedeculpa,deterassistidoaodesenrolardeumabatalha,edepodervê-lanosmínimosdetalhes.[13]

Masopsicólogomilitarnãoestudaessa“culpa”porsimesma.Paraele,issofogedeseucampodecompetência.Noplanoteórico,elaéremetidaaodomíniodas“questõesexistenciais”,foradoâmbitodoestudopsicológico.Noplanoprático,éconfiadaaoscuidadosdecapelãesmilitaresespecialmenterecrutadosnasbasesdedronesparaseencarregardessetipodetormentomoral.[14]Assassinatocomoproblemaespiritual.

Oalvoroçomidiáticoeraportantoinfundado.Apsicologiamilitarnãoencontranenhumsinaldetranstornodeestressepós-traumático.Maséprecisoressaltarque,dequalquermaneira,nãopodiarealmenteencontrar,eissoporumasimplesrazão,quetemavercomascategoriasnosográficasdequeeladispõe.Consultemossuabíblia,oDSM.[15]OqueéumPTSD?Essedistúrbio,segundoomanualpsiquiátrico,supõequeopacientetenhasidoexpostoa“umextremoestressortraumático,envolvendoaexperiênciapessoaldiretadeumeventorealouameaçadorqueincluimorte,sérioferimentoououtraameaçaàprópriaintegridadefísica”.[16]Osoperadoresdedronessão,pordefinição,excluídosdessetipodesituação:nãohánenhumaameaçaasuaintegridadefísica.Diremostalvezque,noentanto,osoperadoresestãonaposiçãode“tertestemunhadoumeventoqueenvolvemorte,ferimentosouameaçaàintegridadefísicadeoutrapessoa”,[17]mas,narealidade,sãomuitomaisdoquesósimplestestemunhas:sãoosautoresdessamorte,dessaferidaedessaameaça.Acategoriaéindeterminadademaisparaseradequadaàformadeexperiênciadessesoperadores.Maisumavez,odroneperturbaascategoriasdisponíveisapontodetorná-lasinaplicáveis.Quantoànoçãomaisgeralde“estressedecombate”–definindo-secomoumestresse“resultantedaexposiçãoduranteaaçãomilitaraessasmesmascondiçõesquecausamferimentosfísicosedoençasnabatalha”oua“condiçõespróximasdocombateemoperaçõesoutrasquenãoaguerra[…]emzonasdeoperaçõescaracterizadasporumaaçãocontínuaeumgranderisco”–,[18]éforçosoconstatar,anãoserquesedecidamudar,tambémaí,nãosesabemuitobemcomo,osentidodaspalavras,quetambémnãoseaplicamais.

Ospsicólogosmilitarespodempoupartempoedinheiro.Nãohánecessidadedeelaborarlongasecustosaspesquisasparasabersepatologiasassimdefinidaspodemserencontradasnosoperadoresde

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drones.Issoépordefiniçãoimpossível:odispositivotécnicoanularadicalmenteoumodificasubstancialmenteosúnicosfatoresdeestresseprevistospelascategoriasnosográficasexistentes.

Nessamatéria,paratermaisclareza,ecomoocorrequasesempre,ganha-seaorelerumpoucodepsicanálise.Depoisdoprimeiroconflitomundial,porocasiãodeumaconferênciainternacionalsobreasneurosesdeguerraquereuniaamaiorpartedosgrandesnomesdaépoca,KarlAbrahamfezessaobservaçãocapitalarespeitodossoldados:

Elessãoobrigadosnãosóatolerarsituaçõesperigosas–istoé,aserpuramentepassivos–,masháumasegundaexigênciaquechamoumuitopoucoaatenção.Refiro-meàsagressõesqueosoldadodeveestarpreparadopararealizaratodoinstante,poisalémdeestardispostoamorrertambémprecisaestardispostoamatar.[19]

Abrahamseindagasobretudosobreocasodepacientessoldadosemquem“aangústialigadaaofatodematartemamesmasignificaçãoqueaquelaligadaaofatodemorrer”.[20]Aquestãotendeentãoasetornaraseguinte:oqueofatodematar,desetornarummatador,ameaçafazermorrer,matarnoprópriosujeito?Freud,queredigeoprefácioàsatasdaconferência,propõeumaresposta:“Nasneurosesdeguerra,[…]oquesetemeé,afinal,uminimigointerno”.[21]Aquiloqueosujeitoviolentovêdesenvolver-senelenaguerra,comoparasita,comoduploinquietanteéumnovoeu,um“eudeguerra”.Aameaçanãoéexterna,masinterna,poisoqueesseeuemergentepõeemperigoéoantigo“eudepaz”.Aneurosedeguerraéarespostaaesseconflitointerno:atentativadetrazer,demodopatológico,umaformaderesolução.[22]

Maispertodenós,apsicólogaRachelMacNairpropôscompletaranoçãodemasiadorestritadePTSDpelade“estressetraumáticoinduzidopelaperpetração”(Perpetration-InducedTraumaticStress–PITS).[23]Constatandoquealiteraturarecenteconcentrou-sedemaneiraquaseexclusivaemtraumasinfligidosavítimaspassivasporforçasexternas,elaprocuraisolarocomponenteativodosdistúrbios,aquelequesedeveaofatodetersidooagentedaviolência,detersidoumperpetrador.Édifícildistinguirascoisasnaexperiênciacomplexadeumsoldado,masMacNairestudacasosdeperpetraçãopura,porexemplodospesadelosdecarrascosassombradospelasimagensdosúltimosinstantesdeseuscondenados.Elanãocitaocasodosoperadoresdedrones,seulivroéantigodemaisparatal;masessedispositivopareceserumbomcandidatoparaprovarseuconceito:eleofereceumcasodeperpetraçãopura,deviolênciaarmadareduzidaexclusivamenteasuafaceativa,desprovidadequalquerameaçavitalparaapessoaqueaopera.ÉessacategorianosológicaemergentedePITSqueseriaprecisotentarprovarempiricamenteparailuminarosdebatessobreostraumatismosdosoperadores.

Orápidodesenvolvimentodenovastécnicasdeviolênciaadistânciadeveráreorientarosmodosdeproblematizaçãopsicoéticosdaexperiênciadeguerranassociedadesocidentais.Osprimeirossinaisdessareorientaçãojáaparecem.EmumEstadodotadodeforçasarmadasaltamentedronizadas,oprocessosedariainexoravelmentepassandodeumestudodostraumaspsíquicosligadosàviolênciasofridaaoestudodosferimentospsíquicosligadosàviolênciacometida.Assim,desenvolveria-seumaespéciedeclínicadosalgozes,àqualseagregariampsicoterapiasparaassassinos,destinadasalivrá-losdomal-estar.

Oquenosdeixa,porenquanto,comduashipótesesarespeitodavidapsíquicadospilotosde

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drones:sejaqueessaarmafabricamatadoresinsensíveis,sejaqueproduzpsiquismosatormentadospelaculpa,potencialmenteatéaneurose.Naprática,averdadeindividualésemdúvidadistribuídadeformadistintaentreessesdoispolos.Quantoasaberqualdessasduasopçõeséamaisdesejável,aquestãoficaemaberto…

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–Querido,vocêpareceestaraquilômetrosdaqui[…]–Sintomuito.Nãotãolonge.Sabe,àsvezesédifícilalternarconstantemente,irevoltar.Écomoviveremdoislugaresaomesmotempo.Universosparalelos…Relatodavidadeumpilotodedrone,2010[1]

5.Mataradistância

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Astecnologiasdavisãomilitar,comoindicaHarunFarocki,produzemmenosrepresentaçõesque“‘imagensoperativas’dasimagensquenãorepresentamumobjeto,masquesão,antes,partedeumaoperação”.[2]Avisãoéaquiumavisada:nãoservepararepresentarobjetos,mas

paraagirsobreeles,paraapontá-los.Afunçãodoolhoéadaarma.[3]

Aligaçãoentreamboséaimagemnatela,quemaisqueumarepresentaçãofigurativaéumafiguraçãooperativa.Pode-seclicar,equandoseclica,mata-se.Masoatodematarsereduzaquiconcretamenteasituarocursorouaflechaemcimadepequenas“imagensacionáveis”,[4]figurinhasquetomaramolugardovelhocorpoemcarneeossodoinimigo.

Ogestoevocaaantigapráticaqueconsisteem

cravarpregosouagulhasnaimagemdeceradeumapessoacontraaqualafeitiçariaeradirigida.Noinício,provavelmente,essesobjetospontiagudoseramespetadosefetivamentenocorpodoindivíduo[…];mascomoessaoperaçãosemdúvidaeraacompanhadademuitosinconvenienteseperigosparaooperador,concebeu-seummétodomaisfácilemaisseguro:substituirohomememcarneeossoporumproxydecera.Essapráticaeraconhecidapelonomelatinodedefixio.[5]

Essahipótesesobreaorigemdosbonecosdeceraédecertofantasista,masdáoquepensar.Emtodocaso,asmetáforasdalocalizaçãodoalvoemusonovocabuláriodosoperadoresapresentamressonânciasperturbadorasemrelaçãoaessapráticaarcaica:topinpoint(alfinetar),tonail(pregar)…Oqueeraumapráticamágicaconverteu-seemprocedimentodealtatecnologia.Jáofeitiço,estetalveznãotenhadesaparecidoporcompleto.

Opsicólogoeex-militarDaveGrossmanelaborouumateoriadarepugnânciadematar.Quantomaispróximooalvohumano,haveriamaisresistênciainicialavencerparamatar,einversamente,quantomaioradistância,menosdifícilseriapassaraoato.Combasenessahipótese,eleconstruiuumdiagramapsíquicodosdiferentestiposdearmas.

OespectrodaagressãosegundoDaveGrossman[6]

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Emsituaçãodedistânciamáxima,escreveGrossman,quandonãoveemsuasvítimas,osmilitares“podemfazerdecontaquenãoestãomatandosereshumanos”.[7]Razãopelaqualospilotosdebombardeiro,tendomassacradomilharesdecivis,podemnuncatersentidonenhumremorso.[8]Àmedidaqueadistânciadecresce,apossibilidadedeumanegaçãopsíquicadiminui:

Acurtoalcance,aresistênciaamataréenorme.Quandovocêolhaumoponentenosolhos,esabequeeleéjovemouvelho,queestácommedooucomraiva,nãoémaispossívelnegarqueoindivíduoquevaisermortoéidênticoavocê.Énessetipodesituaçãoqueencontramoscasosderecusaamatar.[9]

Essateoriaécriticávelpormuitosaspectos,masmeinteressoaquiporseuescopoheurístico.Ouseja,ondesituarodronenesseesquema?Segundoocritériodoalcancedaarma,dadistânciafísica,deveriafigurarnaextremadireita,nopolodadistânciamaior.Masascâmeraspermitemqueooperadorvejaoalvo,eovejacomoseestivessepróximo.Deacordocomessesegundocritério,odaproximidadeperceptiva,odronedeveriasealinharmaisàesquerdanoeixodadistância.Oproblemaéqueoquechamamos“distância”abrangeváriasdimensõesqueaexperiênciaordináriaconfunde,masqueasteletecnologiasdesarticulameredistribuemespacialmente.Pode-seagoraestaraumsótempopróximosedistantes,segundodimensõesdesiguaisecombinadasdecopresençapragmática.[10]Adistânciafísicajánãoimplicanecessariamenteadistânciaperceptiva.Parasituarodronenesseesquema,seriaprecisodecomporoqueotermounitáriode“distância”encerraedifratarumeixohorizontalquesetornoudemasiadorudimentar.

Osoperadoresveemsuasvítimas:aíestáaprimeiraespecificidadedesuaexperiênciadeviolênciaadistância.Quandocomeçamavigiá-las,aatividadepodeàsvezesdurarsemanas.Elesseguemsuasvítimasemtodassuasocupaçõescotidianasatéàsvezesdesenvolverumestranhosentimentodeintimidadecomelas:“Agenteosvêacordardemanhã,iraotrabalho,voltarparadormirànoite”;[11]“vejoasmãescomseusfilhos,vejoospais

comseusfilhos,vejoospaiscomasmães,vejoascriançasjogandofutebol”.[12]

Oolharpelovídeopermitequeelesvejamdepoisosefeitosdoataque.Essaéumadiferençamuitoimportanteemrelaçãoàexperiênciadospilotostradicionais:

Quandovocêvoaa800-900km/h,jogaumabombade200kgevaiembora,nãovêoqueacontece[…]masquandooPredatorlançaummíssil,vocêosegueatéoimpactoe,oqueestouquerendodizeréqueéalgoimpressionante,acoisaestálá,nasuafrente,eépessoal.Portantoficanasuacabeçadurantemuitotempo.[13]

Essacombinaçãooriginaldedistânciafísicaeproximidadeocularfazaleiclássicadadistânciamentir:[14]ograndealcancejánãotornaaquiaviolênciamaisabstrataoumaisimpessoal,aocontrário,torna-amais“gráfica”emaispersonalizada.

Essesfatores,noentanto,sãocontrabalançadosporoutros,igualmenteinscritosnaestruturatécnicadodispositivo.Seosoperadoresveemoqueestãofazendo,essaproximidadeperceptivaaindaéparcial.Elaéfiltradapelainterface.Alémdeagamasensorialseverreduzidaàdimensãoóptica,[15]aresolução,suficientementedetalhadaparapodermirar,nãoédetalhadaobastantepara

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poderdistinguirosrostos.[16]Éumavisãodegradada.Tudooqueosoperadoresdiscernemsãopequenosavataressemrosto.Umex-oficialdaCIAconta:“Vocêpodiaveressasfigurinhasfugindo,aexplosãoacontecendoe,dissipadaafumaça,sóhaviaescombrosepedaçoscarbonizados”.[17]Essefenômenodereduçãofigurativadosalvoshumanoscontribuiparatornarohomicídiomaisfácil:“Nãotemcarneemseumonitor,sócoordenadas”.[18]Elenãoficasujopelosanguerespingadodoadversário.Aessaausênciadesujidadefísicacorrespondesemdúvidaummenorsentimentodesujidademoral.

Outropontoimportante:ooperadorvêsemservisto.Ora,comosugeriaStanleyMilgram:“Épossívelquesejamaisfácilfazermalaumapessoaquandoestaéincapazdeobservarnossasaçõesdoquequandopodeveroquefazemos”.[19]Ofatodeomatadoresuavítimanãoestareminscritosem“camposperceptivosrecíprocos”facilitaaadministraçãodaviolência.Issopoupaaoagenteoincômodoouavergonhaquepodenascerdeseveragirnosolhosdooutro.Grossmanacrescenta:“Opreçoqueamaioriadosmatadorestemapagarporumhomicídiodecurtoalcance–alembrançadesse‘rostoterrível,contorcidodedoredeódio,sim,deumtalódio’–essepreçonuncaserápagosepudermossimplesmenteevitarolharorostodenossavítima”.[20]Ora,issoodronepermite.Elesómostraosuficienteparamirar,poucodemaisparaverdefato,e,sobretudo,garantequeooperadornuncavejaooutrovendo-ofazeroqueeleestáfazendo.

EssemenordesconfortopsíquicoéaindafavorecidopeloqueMilgramchamavaderupturada“unidadefenomenológicadoato”.Apertoobotãoaquieumasilhuetadesaparecenumaexplosãolálonge:

Háumaseparaçãofísica,espacialentreoatoesuasconsequências.Osujeitoapertaummaneteemumasalaegritossãoouvidosemoutra.Osdoisacontecimentossãocorrelatos,masfalta-lhesumaunidadefenomenológicaconvincente.Aestruturaprópriadeumatosignificante–estouferindoumhomem–rompe-seemvirtudedosarranjosespaciais.[21]

Odesmembramentodoatoentredoispontosdistantes,comoentreasduaspontasdeumcompassogigante,cindindoaunidadedesuaapreensão,destróiseusentidofenomenológicoimediato.Parapensaroatoemsuaunidade,seriaprecisoqueosujeitoconseguissereunirasduasfacesdeumfenômenodividido.Comoescreveumpilotodedronearespeitodeseuprimeiroataque:“Demoroucertotempoparaquearealidadedoquetinhaacontecidotãolongedaquiacabasseporaterrissar,paraqueo‘real’setornassereal”.[22]Paraqueoataque,queintelectualmentesabemosserreal,assumaparasiarealidadedeumatounitário,éprecisoessetempo,necessárioaotrabalhoderealização.Aunidadedaaçãonãoédada,mas,paraqueelasefaça,deveconstituiroobjetodeumtrabalhomentaldereunificação,desíntesereflexiva,comadificuldade,semdúvidaredibitória,dequesóumafacedesseatohemiplégicoédoravanteacessívelàconsciênciavividadooperador.

Caráterfiltradodapercepção,reduçãofigurativadoinimigo,nãoreciprocidadedoscamposperceptivos,desmembramentodaunidadefenomenológicadoatosãofatoresque,combinados,produzemefeitospotentes“deamortecedoresmorais”.[23]Emcontrapartidaàproximidadeóptica,portanto,odispositivoofereceespontaneamenteaseusoperadoresmeiospotentesdedistanciamento.Masessaformadeexperiênciaapresentaumasegundacaracterísticaimportante:ofatodeexerceraviolênciadeguerraapartirdeumazonadepaz.

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Paraossoldadosclássicos,atransiçãodaguerraàpazéumafasenotoriamentedelicada.Éaí,nessapassagemdeummundomoralaoutro,quepodemsurgirdificuldadesdeadaptaçãooude“reintegração”–oretornoàvidacivilnecessitandoderegiõesde“descompressão”.Ora,mesmoquenuncadeixemopaís,osoperadoresdedronesquese“teleprojetamnazonadeguerra”[24]têmdeefetuaroequivalentedessaoscilaçãoduasvezespordia,demodoexpresso,quasesemtransição.Oproblemaestánessevaivémpermanenteentredoismundosquetudoopõe:“Éestranho”,dizocoronelMichaelLenahan,umpilotodePredatorediretordasoperaçõesdo196ºesquadrãodereconhecimento.“Émuitodiferente–vocêlançaummíssiledepoisvaiacompanharseumeninoaojogodefutebol”.Matadordemanhã,paidefamíliaàtarde.Oscilaçãocotidianaentreo“eu-de-paz”eo“eu-de-guerra”.[25]

Essesentimentodedualidadeéfrequenteemseustestemunhos:

Háumadissonânciacognitiva[…]numaviãofísico,nossamentefazautomaticamenteamudança.Paranós,achoqueeramaisumaquestãodeescolhacognitiva–estouemguerraagora.Portanto,amobilizaçãoserviacomoummurodeseparação–nãosófísicamastambémcognitivamente,eumdosproblemasquenosperseguiameraque,narealidade,precisávamoscriarparanósesseespaçocognitivocomoumfatordevontade.Nuncaestávamosrealmenteempaz.Estávamosapenaspermanentementeemalgumlugarentreguerraepaz.[26]

Outrooperador,descrevendoacolisãoentrevidadefamíliaemcasaeviolênciadeguerranoescritório,bemcomoseusesforçosconstantesparamanterumacompartimentaçãomentalentreasduasesferas,explica:“Àsvezes,édifícilalternarconstantemente,irevoltar.Écomoviveremdoislugaresaomesmotempo.Universosparalelos[…].EradedeixaresquizofrênicoumpilotodePredator”.[27]

Acondiçãodeviabilidadepsíquicadessaformadeexperiênciaresidenacapacidadedeseusagentesdecompartimentar.Comoconfiaaindaumdeles:“Vocêprecisasercapazdeligaredesligarointerruptor”.[28]Masessacapacidadeétambémamaisfragilizadapelorepatriamentodosagentesdaviolênciadeguerraemzonadepaz.Comoescreveummilitarvindoaosocorrodeoperadoresdedronesqueseuscolegassoldadosatacavamnumfórumdediscussãotratando-osdefracoteseoutrosnomesofensivos:“Estar‘athome’édifícilhoje.OshippiestêmódiodoquefazemosedoquefizemosnoIraqueeoexpressamcadavezmaisruidosamente.Pensemnaquantidadedeadesivosantiguerraqueospilotosdedronesveemtodososdiasnaestradaquandovãoaotrabalhoouvoltamparacasadecarro”.[29]Eleapontaaquiumacontradiçãocentralnodispositivo.Aorelocalizarosagentesdaviolênciaarmadanoespaçodomésticodazonadepaz,estessãocolocadosemumambientesocialepolíticoquepodenãocompreendê-los,equepodetambémcontestarativamente,nafrentedeles,aviolênciadequesãoagentes.

Oshomensemguerratêmnecessidadedeforjarparasiummundomoralespecial,ondemataré,aocontráriodomundocivil,umavirtudeenãoumaproibição.[30]Acontradiçãoentreessesregimesnormativosestásemprelatente,masaquificamanifestaepermanentedevidoàsobreposiçãonumamesmazonadedoisuniversosquetudosepara.Osoperadoresestão,emcertosentido,aomesmotempoatrásenafrente,pegosemdoisregimesmoraisbastantediferentes,entreosquaissuasvidasestãopressionadas.Porelespassaacontradiçãodesociedadesemguerraexternamasquevivem

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internamentecomoseestivessemempaz.Sóelesestãonosdois,nolimiarexatodacontradição,divididosnomesmolugarentreosdoispolos.VivemaduplicidadedoregimemoraldeEstadosditosdemocráticosquesãotambémpotênciasmilitaresimperiais.ÉpossívelqueoqueKeeganescreviaarespeitodorecrutamodernotambémacabechegandoaooperadordedrones,asaber,queeleseponhaporsuavez“apensar,diantedasarmasqueoEstadolheimpõe,queseucódigodecondutahumanistatestemunhaouumarepugnantehipocrisia,ouumacapacidadepsicóticadefazeraconexãoentreosatosesuasconsequências”.[31]

Issoestácomeçandoaocorrer.BrandonBryant,operadordedronespormaisdecincoanos,decidiusairdaAirForce.Eletestemunhahojepublicamente.Alembrançadeumdia,emparticular,opersegue:

Faltavamentãodezesseissegundosparaoimpacto.“Essesmomentospassamemcâmeralenta”,lembra-seBrandonhoje.[…]Nesseponto,

Brandonpoderiaaindadesviaromíssil.Trêssegundos.AsensaçãodeBrandoneracomosetivessequecontarcadapixelnatela.Derepente,umacriançaviroucorrendoumaesquina.[…]Brandonviuumclarãonatela–aexplosão.Pedaçosdoedifíciodesabaram.Acriançatinhadesaparecido.Brandonficoucomoestômagoembrulhado.

“Matamosomenino?”,perguntouaseucolegasentadoaolado.“Sim,achoqueeraummenino”,respondeuopiloto.[…]Foientãoquealguémquenãoconheciaminterveio,alguémqueseencontravaemalgumlugardomundonumpostodecomandodoexércitoequetinhaobservadooataque:“Não,eraumcachorro”.“Duranteessesseisanos,vihomens,mulheresecriançasmorrerem”,eleconta.“Nuncapenseiquematariatantagente.Naverdade,euachavaquenuncaconseguiriamatarninguém.”Nosdiasemquenãoacontecianadanocockpit,eleescreviaemseudiáriocoisascomo:“Nocampodebatalhanãohánenhumlado,sósangue.Guerratotal.Vitodososhorrores.Queriaquemeusolhosapodrecessem”.Depois,acertaaltura,elenãosentiamaisprazeremencontrarseusamigos.Ajovemcomquemelesaíaqueixou-sedeseusacessosdemauhumor.“Nãoconsigosimplesmentedesligarointerruptorevoltarparaavidanormal”,elelhedisse.Quandovoltavaparacasaenãoconseguiadormir,faziamusculação.Começouaresponderaseussuperiores.[…]Certavez,desmaiounoescritório,contorcendo-seecuspindosangue.[…]

Umbelodia,compreendeuquenãoassinariaopróximocontrato–foiquandoeleentrounocockpiteseouviudizendoaseuscolegas:“Ei,qualdessesfilhosdaputavaimorrerhoje?”.[32]

Essetipodetestemunhoémuitoraro.Émaiscomumencontraroutrotipodediscurso,completamentediverso,porpartedosoperadoresematividade:“Nãosintonenhumaligaçãoemocionalcomoinimigo[…].Tenhoumdeverecumpromeudever”.[33]Essemilitar,comentavaojornalista,“compartimenta”.

OpsicólogomilitarHernandoOrtegainsistenaimportânciadessesprocedimentosdecompartimentação:

AchoqueemBealeelestêmumcartaznaportaquediz“Bem-vindoàzonaderesponsabilidade”e

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estánumpainelemcamuflagemdedeserto.Assimquepassampelaporta,teminícioojogo,elesentramnazonadecombate.Quandosaem,voltamparacasa.Portanto,mesmorituaissimplescomoessepodemajudá-los,mashaveriatambémcritériosdeseleçãoquepoderíamoselaborar,assimcomoelaboramospadrõesmédicosparaaseleçãodospilotosonzeanosdepoisdainvençãodoavião.[34]

Seriapreciso,norecrutamento,selecionaragentesqueapresentassemespontaneamentefortescapacidadesdecompartimentar,de“desligarointerruptor‘trabalho’epassarparaomodo‘casa’”.[35]Recrutaragentescapazesdecompartimentar,deseparar,denãopensarmaisnoassunto,denãopensar.

Eseapsicopatologiadodronenãoestivesseláondeacreditamos,istoé,noseventuaistraumasdosoperadoresremotosesim,aocontrário,naproduçãoindustrialdepsiquismoscompartimentados,imunizadoscontraqualquerpossibilidadedereflexãosobresuaprópriaviolência,talcomoseuscorposjáosãocontraqualquereventualidadedeexposiçãoàdoinimigo?

AminhaperguntaéqualseriaavirtudenecessáriaaosGigesmodernos.Apsicologiamilitarforneceumaresposta.Seriaumavirtudeprática:acapacidadedecompartimentar,deseparar.

NosanosmaissombriosdoséculoXX,SimoneWeildeuumainterpretaçãomuitobonitadomitoplatônico,aomesmotempoquesuareformulaçãodefinitivaparaopresente.Oqueéinvisível,diziaela,nãoéoportadordoanel,masopróprioanel:“AinvisibilidadedoaneldeGigesconsisteprecisamentenoatodeseparar.Separarasiprópriodocrimequesecomete.Nãoestabelecerarelaçãoentreosdois”.[36]Giges:“Tornei-mereieooutroreifoiassassinado.Nenhumarelaçãoentreasduascoisas.Eisoanel”.Separa-se,compartimenta-se–“essafaculdadedesepararpermitetodososcrimes”.[37]

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III.NECROÉTICA

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AguerraaéreasobreaSérviaofereceuaosaviadoresumavisãopanorâmicadofuturo.RelatóriodaAirForce[1]

1.Aimunidadedocombatente

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“Nobodybags”[semsacosdecadáver],“fobiadasperdas”,“aversãoaorisco”…Tantasexpressõessurgidasemmassanofinaldosanos1990nosEstadosUnidosparasignificaramesmaideia:atendênciaaumasubordinaçãodousodaforçamilitaraumimperativopolíticodepreservaçãodasvidasmilitaresnacionais.Oqueaviolênciaimperialcontemporâneatemdeespecíficonãoestátantonaassimetriadasforçasenaconsequentedistribuiçãodesigualdavulnerabilidade–umtraçoclássicodetodasassmallwarsqueahistóriaconheceu–massimnotipodenormasquepassaramaformarsuascondiçõesdeexercíciopelasgrandespotências“democráticas”ocidentais.Seexistenovidade,serianesteaspecto:queaquaseinvulnerabilidadepráticadocampodominantetenhasidoerigidaporessemesmocampo,nofinaldoséculoXX,comonormaético-políticadominante.

FoisemdúvidanomomentodaintervençãodaOtannoKosovo,em1999,queseoperouatomadadeconsciênciamaisclaradessefenômeno.ComoexplicouemseguidaogeneralWesleyClark,quedirigiaaoperaçãoAlliedForce,aprimeirapreocupaçãodosestrategistasfora“nãoperderaparelhos,minimizaraperdadeaeronaves”:

Euestavamotivadoporumacausapolítico-militarmaisampla.Sequiséssemosqueessacampanhadurasseindefinidamente,seriaprecisoprotegernossafrotaaérea.Nadanosprejudicariamaisanteaopiniãopúblicaquemanchetesdejornaisdotipo:“AOtanperdedezaviõesemdoisdias”.[2]

Dezoitomortospodembastarparafazerperderumaguerra:foialiçãodeMogadíscio,e,namentedaadministraçãoClinton,asíndromeBlackHawkDownhaviaressuscitadoadoVietnã.Oreceioeradequeperdas,pormínimasquefossemnoplanoestritodarelaçãodeforçamilitar,custassem,porseussupostosefeitossobrea“opiniãopública”,umpreçopolíticoexorbitante.

Éissoqueseriaabsolutamenteprecisoevitar.Paratal,ospilotosforamproibidosdevoarabaixodeumaaltitudede15milpés(cercade5milmetros),umadistânciadesegurançaqueosdeixavacompletamenteforadoalcancedasdefesasantiaéreasinimigas,queostornavapraticamenteintocáveis.WilliamCohen,osecretáriodeDefesadeBillClinton,declaroudepois:“Oprincipalensinamentodaoperação‘AlliedForce’équeasegurançadenossastropasdevesernossapreocupaçãoprimordial”.[3]Defato,osaparelhosdaOtanefetuaram38.004saídasem78diassemregistrarumaúnicaperdaentreosmembrosdesuastripulações.[4]Conseguira-se,naprática,inventaraguerradezeromortosemseuprópriocampo.

Masissonãoocorriasemcontradições.Poisessamesmaaltitudequegarantiaanãoexposiçãodasvidasdospilotospodiatambémacarretarumaperdanaacuidadedosataquesaéreos.OsresponsáveisdaOtan,interrogadosaesserespeitopelaAnistiaInternacional,oreconheceram:

Umatripulaçãovoandoa15milpésestáemcondiçõesapenasdeidentificaroobjetivoesecertificardequeelecorrespondeaoquefoidesignadonafasepreparatória,maséincapazdedizerse,porexemplo,nomeio-tempoapareceramcivisnaproximidade.Logo,aregrados15milpés,concluíaaONG,tornavaastripulaçõesdaOtanincapazesderespeitaraobrigaçãodesuspenderoataquenocasoemque,alteradasascircunstânciasemterra,oobjetivonãofossemaislegítimo.[5]

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Seriacertoarriscaravidadoscivisquesepretendiasalvarpeloúnicomotivodenãohaverdisposição,nesseatode“ingerênciahumanitária”,aarriscaros“nossos”pelos“deles”?Ocasoapresentavatodosostraçosdeumaquestãodeconsciência,namaispuratradiçãodafilosofiamoral.UmatensãoqueMichaelIgnatieffresumiadaseguintemaneira:“Aguerrahightechégovernadaporduasobrigações–evitarasperdasciviseevitarosriscosparaospilotos–queestãoemcontradiçãodireta.Paralocalizareficazmenteoalvo,éprecisovoarbaixo.Sevocêvoaalto,farávítimascivis”.[6]Entreessesdoisimperativos,qualteriaprecedência?Questãodeprioridade,dehierarquiaentreasnormas.Aessedilema,aOtanhaviarespondido,e,abemdaverdade,semmuitohesitar,dandoaprioridadeàsalvaguardadavidadospilotos,aindaqueaumentandoorisco“colateral”deferirematarcivis.Emnomedapreservaçãodasvidasmilitares,corria-seportantooriscodegerarmaisvítimasentreoscivis,aquelesmesmosqueaditaoperaçãoentendiaproteger.Issoequivaliaaadmitirque,nobalançodarazãomilitar-política,avidadeumcivilkosovarvaliamenosqueadeummilitarnorte-americano.

Osfilósofosfamiliarizadoscomasteoriasda“guerrajusta”ficaramaturdidosanteesseaspectotãodesconcertanteda“guerrasemrisco”.Entreaquelesquepercebiamamudançanormativafundamentalqueestavaseoperando,asreaçõesforamintensas,nãoraroescandalizadas.Équeessaescolhaderrubavaosprópriosprincípiosdaéticadaguerraemsuaversãopadrão.OqueJeanBethkeElshtaincolocavanestestermos:

Osoficiaisnorte-americanosdescreveramessaintervençãocomoumimperativomoral.Noentanto,antesmesmodofimdoconflito,osobservadoresseindagavamseosEstadosUnidosnãotinhaminvertidoatradiçãomoraldecidindoatribuirantesacombatentesdoqueanãocombatentesaimunidadedosefeitosdocombate.[7]

Emsuaindignação,elacaptavaalgoessencial.Oquehaviasurgidoealisemanifestavaeraapreeminênciadeumprincípionormativotácito,alheioaodireitodosconflitosarmadosmasimplicitamenteapresentadocomosuperioraele–asaber,umprincípiosuigenerisdeimunidadedocombatenteimperial:

Aoqueparece,violamosoprincípiodediscriminaçãoaoformularumnovocritério:oprincípiodaimunidadedocombatentecolocadamaisalta,nahierarquiadasconsiderações,doqueaimunidadedosnãocombatentesparaoscivissérvios–oukosovaresalbaneses.ComanossadeterminaçãoamanterossoldadosdaOtan–emoutraspalavras,ossoldadosnorte-americanos–foradeperigo,abraçamosadoutrinadaimunidadedocombatenteparanossospróprioscombatentes.[8]

Essenãofoiumparêntese.Umadécadadepois,AlexJ.Bellamyfazumdiagnósticosimilar,dessavezarespeitodasformasdeintervençãoemterraconduzidaspeloexércitonorte-americanonoAfeganistãoenoIraque:

Parecequesurgiuumesquemaclaroemqueaproteçãodoscombatentesnorte-americanostemprioridadesobreaproteçãodosnãocombatentesnaszonasdeoperação[…]osnãocombatentessóserãopreservadosnamedidaemquesuasalvaguardanãoimpliquetomarprovidênciasque

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poderiampôrasvidasdossoldadosemrisco.

Oquevemaser,defato,“atribuirmaisvaloràvidadoscombatentesqueàdosnãocombatentes”.[9]

Esseprincípio,quehaviaseapresentadodemaneirapragmática,maisoumenosimplícita,nosanos1990,recebeudesdeentãoumaformalizaçãoteóricatãosistemáticaquantoreivindicada.Aracionalidadepráticadaimunidadedocombatenteimperialencontrouhojesuadoutrina.EstafoielaboradaemIsrael.

QuandoosoficiaisdasforçasmilitaresisraelensessãointerrogadossobreoassassíniodecentenasdecivispalestinosduranteaofensivanafaixadeGaza,todosdãomaisoumenosamesmaresposta:ousomaciçodaforçaeradestinadoaprotegeravidadossoldados,e,seforprecisofazerumaescolhaentreprotegeravidadossoldadosis-raelenseseadoscivisinimigos[…]ossoldadostêmaprioridade.[10]

Umarespostaque,comoobservaHaaretz,nãotemnadadeimprovisado,massebaseiaem“umateoriaéticadesenvolvidahámuitosanosequejustificaessasações”.Paraqueserveafilosofiamoral?Entreoutrascoisas,parafazeraguerra.

AsaKasher,professordefilosofianaUniversidadedeTelAviv,trabalhaemrelaçãoestreita,hámuitosanos,comoexércitoisraelense,tendoelaboradoseu“códigoético”emmeadosdosanos1990.Justificouascampanhasde“assassinatosseletivos”eseusinevitáveis“danoscolaterais”sobreapopulaçãopalestinaemzonasdensamentepovoadas.ElepromoveusessõesdeformaçãoàsuaéticamilitarrevisadaparaaequipedoTsahaledoShinBeth.[11]Orgulha-se,nãosemrazão,emsuasentrevistas:“Oquenósfazemosestásetornandolei”.[12]

Em2005,coassinoucomomajor-generalAmosYadlinumartigosobre“aéticamilitarnocombateaoterror”.[13]Osdoisautoresnãofaziammistériodesuasambições:nadamenosquerevisardepontaapontaosprincípiosestabelecidosdaéticaedodireitodosconflitosarmados.

Nessetexto,seusataquesconceituaissãomúltiplos,masosmaisradicaisreferem-seaoprincípiodeimunidadedosnãocombatentes:

Segundoaconcepçãousualqueestáportrásdadistinçãoentrecombatentesenãocombatentes,oEstadotemumconjuntodedeveresmaisfracoemrelaçãoaosprimeirosdoqueemrelaçãoaossegundos.Odeverdeminimizarasperdasentreoscombatenteschega,consequentemente,emúltimonalistadasprioridades[…].Nósrejeitamostaisconcepções,porqueasconsideramosimorais.Umcombatenteéumcidadãodeuniforme[…].Seusangueétãovermelhoetãoespessoquantoodoscidadãosquenãoestãodeuniforme.Suavidaétãopreciosaquantoadequalqueroutrapessoa.[14]

DaíseriaprecisoconcluirqueapreservaçãodavidadoscidadãosdoEstado-naçãoéumdeversupremo,quedeveemtodocasosersituado,naordemdasprioridades,acimadodeverdeminimizaçãodasperdasparaosnãocombatentesdooutrocampo.Paraserclaro,segundoessahierarquizaçãodosdeveresdoEstado,emumasituaçãodeguerra,minimizarosriscosparaumsoldadoisraelenseprevalecesemdiscussãosobreodeverdeminimizaros“riscoscolaterais”para

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umacriançadeGaza.Avidadoprimeiro,mesmoarmadoatéosdentes,prevalecedemaneiranormativamenteabsolutasobreadosegundo.Eissoédoravantefilosoficamentefundado,istoé,implacavelmente,querodizercomesseestilodeviolênciafriaprópriaaessaespéciedediscurso“ético”quemimetizaorigorformaldafilosofiaanalítica.

Oargumento,paradoxalmenteapoiadonumaevocaçãoretóricadoigualvalordasvidas(mas,observe-se,somenteentrecidadãos),acaba,narealidade,porhierarquizaressemesmovalorconformeosangueemquestão,quenoentantoésempreigualmente“vermelho”,sejaodecorposquesãoounãosãodoscidadãosdoEstado-nação.Aoperaçãoconsisteemsubstituiraprimaziadadistinçãoestruturalentrecivisecombatentesporoutra,quearedefineeprevalecesobreela,ecujademarcaçãopertinentesereduzemúltimainstânciaàdeumapartilhahierárquicaentreonacionaleoestrangeiro.Issoemnomedeuma“ética”quenãoénadamaisqueadesignaçãocortêsdomaisferoznacionalismo.

OsdeveresdoEstado-naçãoprevalecementãosobreasobrigaçõesuniversaisenunciadaspelodireitointernacionalhumanitário.Oumelhor,pretende-sepoderrevisarasobrigaçõesuniversaisqueessedireitoimpõeapartirdeumfoconormativofundamentalcujohorizontesereduziuaodosdeveresparticularesdoEstadoparacomseuspróprioscidadãos.Enquantoodireitodosconflitosarmadosfixalimitesaoexercíciodaviolênciaarmadaapartirdosdireitosuniversaisdoscivisquaisquerquesejameles,aarquitetônicarevisionistadeKashereYadlinredefineomapadascategoriaspertinentesfazendodafronteiradasoberaniadoEstadoalinhadivisóriaaquémdaqualcertasvidasdevemserprioritariamentepreservadas,mesmoqueaopreçodemassacresdecivisforadela.Eissoatéamaiscompletadesproporção,jáqueapreservaçãodavidadeumúnicosoldadonacionalpodejustificarummúltiploindefinidodecivisestrangeiroseliminados:“Deacordocomnossanormadeprioridadesdosdeveres,oEstadodeveconcederaprioridadeàsalvaguardadavidadeumúnicodeseuscidadãos,mesmoseosdanoscolateraisocasionadosforemmuitomaisaltos,oquepodeparecerinaceitável”.[15]OataqueteóricodeKashereYadlinnãovisaapenasaoprincípiodedistinção,mastambémaoprincípiodeproporcionalidade,carregadoaseureboqueparaoaltardapreservaçãodasvidasnacionais.

Ospensadoresdaguerrajustaconsideraramessadoutrinaumamonstruosidadesempar.MichaelWalzereAvishaiMargalitiniciaramapolêmicacontraKashereYadlin,recusandoenergicamenteaposiçãodessesautores:

Atesedessesautores,paradizê-locruamente,éque[…]asegurançade“nossos”soldadosprevalecesobreasegurançadoscivis“deles”.Nossoprincipalpontodedesacordoéqueessateseéfalsaeperigosa.Elacorróiadistinçãoentrecombatentesenãocombatentes,que,noentanto,édeimportânciadecisivaparaateoriadajustiçanaguerra(jusinbello).[16]

Lembrandoque“omeiocrucialparalimitaraextensãodaguerraconsisteemtraçarumalinhadedemarcaçãonítidaentrecombatentesenãocombatentes”,elesacrescentam:

ParaKashereYadlin,nãoexistemaisdistinçãocategóricaentrecombatentesenãocombatentes.Ora,essadistinçãodeveriasercategóricapoisoqueestáemjogoélimitarasguerrasàqueles–eexclusivamenteàqueles–quetêmacapacidadedeferir[…].Esteéofiocondutorque

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defendemos:conduzasuaguerraempresençadosnãocombatentesnooutrocampocomomesmocuidadoqueteriaseelesfossemseuscidadãos.[17]

OpresidentedaAcademiadasCiênciasisraelense,MenahemYaari,vindoemdefesadeWalzereMargalitnumapolêmicaquecomeçavaainflar,permite-sedizerascoisascommenosprudência:

Umcódigomilitarquediscrimina,emcasodeperigosimpostosacivisinocentes,conformeessescivissejamos“nossos”ouos“deles”,étantomaisinquietantequandovistoemumcontextoemqueseafirmamatitudesetnocêntricasexenófobasnoestablishmentisraelensetradicional.Estamosassistindoaumaderivadouniversalismoedohumanismoparaoparoquialismoeotribalismo.[18]

Éprecisomediroataqueaquilançado:oprojetoénadamenosqueumadinamitaçãododireitodosconflitosarmadostalcomohaviaseestabilizadonasegundametadedoséculoXX.Umaevisceraçãodosprincípiosdodireitointernacionalporumnacionalismodaautopreservaçãovital.Ora,esseétambém,comoveremos,oprimeiroprincípiodiretivodanecroéticadodrone.

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Háumaguerraemcurso,eosdronessãoomodomaisrefinado,maisprecisoemaishumanodeconduzi-la.JeffHawkins,USStateDepartment’sDemocracyandHumanRightsBureau[1]

Nuncanosdissemos:“Construamosumaarmamaishumana”.HenryA.Crumpton,diretoradjuntodoCounterterrorismCenterdaCIA[2]

2.Aarmahumanitária

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Odronecaçador-matador,comoafirmamseusdefensores,representaum“progressoimportantenatecnologiahumanitária”.[3]Elesnãoqueremdizercomissoqueessamáquinapoderia,porexemplo,servirparaencaminharvíveresoumedicamentosazonasdevastadas.Queremdizer

umacoisacompletamentediversa:queodroneéhumanitáriocomoarma,comomeiodematar.Osentidodaspalavrassofreumatalinversãonessetipodediscursoqueaquelesqueassustentam

parecemnemsedarcontadaestranhezadesuasformulações.Comosepodepretenderquemáquinasdeguerraunmanned,semmaisnenhumserhumanoabordo,sejammeios“maishumanos”detiraravida?Comosepodequalificarde“humanitários”procedimentosdestinadosaaniquilarvidashumanas?Seaaçãohumanitáriasecaracterizapeloimperativodecuidardevidashumanasdesamparadas,édifícilentendercomoumaarmaletalpoderia,emqualquersentido,serreputadadeacordocomesseprincípio.

AveryPlaw,professordeciênciaspolíticasnaUniversidadedeMassachusetts,dásuaresposta:“Osdronessalvamvidas,deamericanosedeoutros”.[4]Paraaquelesque,perplexos,seindagariamcomoépossíveldizerqueuminstrumentodemortesalvavidas,éprecisoexporalógicatortuosaquetornaessateseenunciável.

Estáclaroque,aodeixardeexporvidasnorte-americanasnocombate,odroneaspoupa.Menosclaro,emcompensação,ésabercomoele“salvaria”aomesmotempooutrasvidasalémdestas.Vamosvê-lodaquiapouco,mascomecemosporexaminaroprimeiropontodoargumento.

Osdrones,antesdetudo,salvam“nossasvidas”.Esóaí,dizem-nos,jásão“morais”.Tesequeumarevista,nofinaldosanos1990,haviaresumidodemodoaindamaiseficaz,comessesubtítuloàmaneirapublicitária,entreduasfotografiasdedronesdelinhaselegantessobreumfundoazulceleste:“Ninguémmorre–excetooinimigo”.[5]Segundoessaconcepçãodamoralmilitar,daramorteexpondosuaprópriavidaéruim,tirarvidassemnuncaarriscarasuaébom.Oprimeiroprincípiodanecroéticadodroneéparadoxalmentevitalista.Eésegundoessamesmalógicaqueodronepodeserreputadoemumprimeirosentidocomoumaarma“humanitária”:oimperativohumanitárioésalvarvidas.Ora,odronesalvanossasvidas.Portanto,éumatecnologiahumanitária.C.Q.D.

OprincipalarautodatesedodronecomoarmamoralsechamaBradleyJayStrawser.Seusdoisartigosescritossobreaquestãolhepermitiramserrecrutadocomoprofessordefilosofianumaescolamilitarnorte-americana.[6]OTheGuardianenxergaaíumindício:ainstituiçãomilitarnorte-americanaestáconvencidadeque“essasquestõesdedronesedeéticamilitarestãocomeçandoasetornartópicoscadavezmaisviolentos”.[7]Strawsercomenta:“AEscolaqueriaterumavoznessedebate,entãomecontrataram[…].Euqueriaserfilósofo,eaquiestoueu.Quesorte”.[8]

Segundoele,odronenãoéapenasumaarmamoralmentepermitida,mas,melhorainda,“moralmenteobrigatória”.[9]Sevocêquermataremconformidadecomaleimoral,deveutilizarodrone.Suatesesebaseianoqueelechamade“princípioderisconãonecessário”[10](eminglês,PUR,paraPrincipleofUnnecessaryRisk),segundooqual“ordenaraalguémquecorraumriscopotencialmenteletalémoralmenteinadmissível”.[11]Seuraciocínioéoseguinte:

Temosodeverdepreservaromáximopossívelumagenteenvolvidoemumaaçãojustificada,na

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medidaemqueessaproteçãonãointerfiranacapacidadedesseagentedeatuardemodojusto.Osveículosnãotripuladosgarantemessaproteção.Logo,temosaobrigaçãodeempregartaissistemasdearmassepuderserdemonstradoqueseuusonãoreduzdemaneirasignificativaacapacidadeoperacionaldobeligerante.[12]

Reencontramosaquioprincípiodeautopreservaçãovital,masdotadodestavezdeumacondiçãolimitadora:sóexisteobrigaçãomoraldesubstituirosaviõesdecombatepordronesseissonãoacarretar“perdasignificativadecapacidade”.[13]Colocaressacondiçãosignificaadmitirque“oaumentodaproteçãodoguerreirojusto(fornecidapelodrone)nãodeveriaseradquiridoàcustadoaumentodeumriscoparaosnãocombatentes”.[14]Emoutraspalavras,àdiferençadeKashereYadlin,Strawsersubordinaoprincípiodepreservaçãodocombatentenacional,senãoimediatamenteaumprincípiodeminimizaçãodosriscosparaosnãocombatentes,aomenosaumprincípiodenãoagravamentodessesmesmosriscosemcomparaçãocomossistemasdearmasanteriores.

Se,aoinverso,severificassequeessaarma“nos”tornava“incapazesdeaderiradequadamenteaosprincípiosdojusinbellodediscriminaçãoedeproporcionalidade,nessecasoosdronesnãodeveriamserutilizados”.[15]MasStrawseréconfiantedocontrário,poiseleleunadocumentaçãopublicitáriadeumcomerciantedearmasisraelensequeessetipodetecnologia“aumentaacapacidadedopilotodediscriminar”:“Abelezadacoisa[…]équeaimagemtorna-semaisclaraàmedidaqueomíssilseaproximadoalvo[…].Poressarazão,émuitomaisfácilfazeradistinçãoentrealvoslegítimosenãolegítimos”.[16]

Amoraldodronenãofazaquinadamaisdoquereciclarovelhodiscursodos“ataquescirúrgicos”.Paraela,essaantigaideiamilitartornou-seenfimrealidade.Nessesentido,pensaterselivradodacontradiçãoquetornavaaguerradoKosovoimoralaosolhosdosteóricosdaguerrajusta.Poisseriadecerto“inteiramentejustificado”,admitiaWalzernaépoca,queumexércitoadotasse“tecnologiasditassemriscoparaseusprópriossoldados[…]seessasmesmastecnologiasfossemigualmentesemriscoparaoscivisnaoutraextremidade”.[17]Essajáeraapretensãodassmartbombs[bombasinteligentes]–umaambiçãoque,acrescentavaWalzer,“é,pelomenosporenquanto,extremamenteexagerada”.[18]

Masrestava,evidentemente,umaquestãosubsidiária:oqueaconteceriase,peloprogressodatécnica,essatensãopudessesermaterialmenteultrapassadapornovasarmasqueconciliassemadistânciaeaprecisão?Nahipóteseemqueavidadossoldadosnacionaispudesseserpreservadasemriscoadicionalparaosnãocombatentesdooutrocampo,acontradiçãodesapareceria.Àimunidadedeunsresponderiaentãoharmoniosamenteasalvaguardadosoutros.Odilemamoralsedissiparia,resolvidopelomilagredatécnica.Ora,taléhojeapretensãodosdefensoresdodrone.Seooperadorsituadoadistâncianãoimplica,segundoeles,nenhumaperdadecapacidadeoperacional,atensãoseriadefactodesativada.EssaéarazãopelaqualessesdiscursossupõemnãohavernecessidadedesubscreveraoassaltoteóricodeKashereYadlin,queconsisteemsubordinaroprincípiodeimunidadedosnãocombatentesaodasalvaguardadasvidasmilitaresnacionais:seseadmitirqueoproblemafoiresolvidonaprática,simplesmentejánãohánecessidadedequestionarateoria.

Étambémnessesentidoquesepodepretenderqueodronenãosalvesomente“nossas”vidas,mastambém“asdeles”:devidoamaiorprecisão.Aocausarmenos“danoscolaterais”queoutrasarmas,

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eleseria,portanto,potencialmentemaisético.Oqueemergeaqui,maisfundamentalmente,éumregimedeviolênciamilitarcompretensãohumanitária.[19]Oquesepoderiatambémchamarpoderhumilitar.Umpoderqueaomesmotempomataesalva,quefereecuida,equerealizaessaduplatarefaemumúnicogesto,deformaintegrada.Sínteseimediatadapotênciadedestruiçãoedapotênciadecuidado,doassassinatoedocare.[20]

Salvam-sevidas.Masdequê?Desimesmo,desuaprópriapotênciademorte.Minhaviolênciapoderiaserpior,ecomoprocurei,deboa-fé,limitarseusefeitosfunestosfazendoisso,quenãoeranadamaisdoquemeudever,agimoralmente.

ComomostrouEyalWeizman,essetipodejustificativabaseia-seessencialmentenumalógicadomalmenor:nosso“presentehumanitário”,escreveele,é“obcecadoporcálculosecalibragensqueprocurammoderar,mesmoquedemodobastanteleve,osmalesqueeleprópriocausou”.[21]HannahArendt,comoeletambémrecorda,alertavacontraessetipoderaciocínio:“Politicamente,afraquezadoargumentosemprefoiqueaquelesqueescolhemomalmenoresquecemmuitorapidamentequeescolhemomal”.[22]

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Seissonãoéservirtuoso,gostariadesaberoqueé.DeQuincey,Del’assassinatconsidérécommel’undesbeaux-arts[1]

3.Precisões

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“Émuitopreciso,osdanoscolateraissãomuitolimitados”,declaravaarespeitodosdronesarmadosoex-diretordaCIA,LéonPanetta.[2]Oargumentocorresolto:odrone,devidoasua“precisão”,reduziriaos“danoscolaterais”epermitiriamaiorrespeitodoprincípiodediscriminação.[3]Esselugar-comuméumafalsaevidência,quesebaseia,narealidade,emumverdadeironinhodeconfusõesconceituais.Convémapontá-lasmetodicamente,querodizer,comprecisão.

Podeodroneserapresentadocomoumaarmamaisprecisa?Tudodepende,antesdemaisnada,decomoqueeleécomparado:“Osdrones”,escreveStrawser,“apresentamumprogressomoralpotencialextraordinárioemrelaçãoaosbombardeiosaéreosdaserasanteriores”.[4]UmagentedaCIAconcordacomele:“VejamobombardeioincendiáriodeDresdenecomparem-nocomoquefazemoshoje”.[5]MasseDresden,ou,porquenão,Hiroshima,sãoconsideradospadrõespertinentesemmatériadeprecisão,qualqueroutroprocedimentomilitarpassaránotestecomsucesso.[6]Narealidade,háaquiumaconfusão,quantoàescolhadostermospertinentesdacomparação,entreformaefunçãodaarma.Pelofatodeodroneserumobjetovoador,devido,portanto,asuaforma,écomparadoespontaneamentecomasaeronavesmilitaresqueoprecederam.E,evidentemente,serelacionadoaobombardeirodaSegundaGuerraMundial,odroneapresentauminegávelganhoemprecisão.Salvoqueaordemdecomparaçãoéerrônea:paraavaliá-lo,écomasarmasdisponíveisparaamesmafunçãotáticaqueéprecisoconfrontá-lo.AopçãoparaliquidarBinLadeneraentreodroneeocomando,nãoentreodroneeobombardeiodeDresdensobreAbbottabad.Aordemdecomparaçãocorreta,anãoserquenosdeixemosenganarporumatributoexterno,nãoéindexadaapartirdeumasimilaridadedeformasmasapartirdeumaequivalênciadefunções.Odronenãoéummeiodecarpetbombing[tapetedebombas]eosbombardeirosnãoeramarmasdeassassinatoseletivo.Acomparaçãoadequadanãoéentrearmavoadoraatualearmaaéreadopassado,masentreessaarmaeoutrosmeiosatuaisparafunçõesdemesmaordem.

Masaquestãotambémécomplicadadevidoaoutraconfusão,estasemântica.Nessesdiscursos,confunde-setranquilamente,sobotermo“precisão”,trêsnoçõesque,emborapróximas,nãosãosinônimos:aacuidadedotiro,ocarátermaisoumenoslimitadodeseuimpactoeaidentificaçãoadequadadeseualvo.

Umataqueguiadoporlaseréaltamenteprecisoemtermosdeacuidadedetiro:odispositivobalísticovemexplodirnopontoexatoquelhefoidesignado.Masissonãoquerdizerqueseuimpactosejanecessariamentereduzido.Tudodependedo“raioletal”oukillradiusdoprojétil,istoé,doperímetrodaexplosão.Umataquepodeserprecisoaomáximonoprimeirosentidosemoserabsolutamentenosegundo.Éadiferençacrucialentreatingirseualvoesóatingiraele.

Odrone,comodizumjogodepalavrasmilitarintraduzívelparaoportuguês,permite“toputwarheadsonforeheads”,[7]“cravarogivasnomeiodastestas”–adisparidadeéeloquente.Estima-sequeomíssilagm-114HellfirelançadopelodronePredatorpossuaumakillzonedequinzemetros–oquesignificaquetodosaquelesqueseencontramnumraiodequinzemetrosemtornodopontodeimpacto,mesmoquenãosejamoalvodesignado,morrerãocomele.Jáseuraiodeferimentoséestimadoemvintemetros.[8]

Substituiroenviodetropasterrestrespordronesequipadoscommísseisacarretamanifestamenteuma“perdasignificativadecapacidadesoperacionais”,sabendoque,porcontraste,oraioletalde

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umagranadaédetrêsmetros,semfalardoraiodeumamuniçãoclássica.Indagamo-nosemquemundodeficçãopodeserconsiderado“maispreciso”matarumindivíduocomummíssilanticarroqueaniquilatodoservivoqueseencontrarnumraiodequinzemetroseferetodososoutrosnumraiodevinte.“SeterroristasinvadissemumaescolanosEstadosUnidosetransformassemosalunosemreféns”,explicavammilitantestransexuaispaquistanesesentrevistadosemumamanifestaçãocontraosataquesdedrones,“osEstadosUnidosnãoenviariamdronesparalançarmísseisnaescola;elesencontrariamumamaneiramaisseguradedeteroumatarosterroristassempôrascriançasemperigo.”[9]

Masatesedodronecomodispositivoéticodeprecisãoapoia-seaindasobreoutraconfusão,destavezentrea“precisão”técnicadaarmaeacapacidadedediscriminaçãonaescolhadosalvos.Essaconfusãoacarretaumparalogismocujagrosserianãoimpedeemnadaquesejarepetidoatortoeadireito.Ou,melhor:foitãorepetidoquenemnotamosmais.Eisumexemplo,tiradodeumdiscursodoex-conselheiroemantiterrorismodaCasaBrancaenovodiretordaCIA,JohnBrennan,queaimprensanorte-americanaapelidou“tsardoassassinato”porseupapel-chavenaimplementaçãodosprogramasdedrones:

Graçasàcapacidadesemprecedentesquetêmosaviõespilotadosadistânciadeapontarcomprecisãoumobjetivomilitarminimizandoosdanoscolaterais,sepoderiaargumentarquenuncaantesexistiuumaarmaquenospermitissedistinguirmaiseficazmenteentreumterroristadaAl-Qaedaecivisinocentes.[10]

Essaverdadeoficialdaprecisão-maior-que-faria-do-drone-uma-arma-ética-pois-mais-apta-para-discriminar-entre-civis-e-combatentesérepetida,semomenorexamecrítico,emdezenasedezenasdeartigosdeimprensaedepublicaçõesacadêmicas.Porém,martelá-laporpáginasafionãobastaparatorná-lalogicamenteconsistente.

Ofatodesuaarmalhepermitirdestruircomprecisãoquemvocêquisernãogarantequevocêtenhaumacapacidademelhordedistinguirqueméounãoéumalvolegítimo.Aprecisãodoataquenãodiznadadapertinênciadadeterminaçãodoalvo.Issoseriaomesmoquedizerqueaguilhotina,emvirtudedaprecisãodesualâmina,queseparacomnotávelnitidezacabeçadotronco,permiteporissomesmodistinguirmelhorentreoculpadoeoinocente.OsofismaéflagranteeocondicionaldeprecauçãoempregadoporBrennanpareceindicarqueaquelesqueescreveramseudiscursosãoconscientesdoparalogismo,queselimitamaquiemsugerirsemchegaraafirmá-lo.Insinuá-lonamentedopúblicoé,semdúvida,suficiente.

Existe,noentanto,umaversãomaissutildessemesmoargumento,naqualjánãosesustentaqueaprecisãodoataquetornaaidentificaçãodoalvomaisexata,oqueémanifestamenteabsurdo,masque“ofatorrealquepermiteadiscriminaçãonousodaforçaestánaidentificaçãovisualadequadadoalvo”,eque,“namedidaemqueumaimagemmelhortornapossívelumusomaisdiscriminadodaforça,ousodatecnologiadodronearmadodeveemgeralserummododeguerraeticamentesuperior”.[11]

Issoquantoàteoria.Naprática,omínimoquesepodedizeréqueametodologiadedeterminaçãodoalvobaseadanascapacidadesdevigilânciapersistentedosdronesnãoprimaparticularmente,comoseviuantes,porsuascapacidadesdeseadequaràsexigênciasdedistinção.Masaindaé

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necessárioprecisaraquioargumentodefundo.Aquestãoconsistenoseguinte:baseadoemquepodemosreconhecervisualmentequeumindivíduotemounãooestatutodecombatente?Baseadoemqueumoperadordedronepodeveradiferençanomonitor?

Quandoosoperadoresdedrones,comoéocasohojeemcontextodeoperaçõesdecontrainsurgência,visamainimigossemuniforme(enãoraroforadezonasdeconflitoarmado),oestatutodecombatentejánãopodeserconstatadopornenhumsinaldistintivoconvencional.Quantoaoportedearma,essecritérioéinoperanteempaísesondecarregarumaarmaécorrente.Comoresumeumoficialiemenita:“NoIêmen,todososhabitantessãoarmados.Logo,comoéqueelespodemdiferenciarentresupostosmilitanteseiemenitasarmados?”.[12]

Odireitodosconflitosarmadosproíbevisardiretamenteacivis.Aúnicaexceçãotemporáriaqueessaregraprevêéocasoemqueumcivil“participadiretamentedashostilidades”.[13]Essehomemvestidodecivilderepenteapontasuaarma.Comoficaevidentequeeleparticipadocombateerepresentaumaameaçaiminente,constituiumalvolegítimoparaosmilitaresdooutrocampo.

Masousoexclusivododronetornaessesdoiscritérios,departicipaçãodiretanashostilidadesedeameaçaiminente,absolutamenteinoperantes:participaçãodiretaemquehostilidade,senãoexistemaiscombate?Ameaçaiminentecontraquem,senãohámaisnenhumatropaemterra?Aoprivaroinimigodequalquerpossibilidadedeparticipaçãodiretaemhostilidadesnãomaisdiscerníveis,privamo-nostambémdomeiomaissegurodereconhecê-lo.Oparadoxoéqueodrone,cujasgrandescapacidadesdemelhordiferenciarentrecombatentesenãocombatentessãolouvadas,abolenapráticaoqueconstituiacondiçãomesmadessadiferenciação,asaber,ocombate.Umpoucocomosedispuséssemosdeummicroscópiomuitopotentequeteriaoinconvenientededesativar,pelosefeitosdesuatécnicadevisualização,ofenômenoquedeveriaobservar.

Comoenxergarcombatentespormeiodeumaarmaqueanulaocombate?Issoéumacontradiçãoprofunda.Aoprivarosmilitaresdoscritériosmanifestosquepermitemconstatardefactoadiferençaentrecombatentesenãocombatentes,éaprópriaaplicabilidadedoprincípiodedistinçãoqueessaarmapõeemrisco.

Comonãosepodemaisprocederporconstataçãoflagrante,éprecisomobilizaroutrastécnicasdeidentificaçãoeoutrascategoriasparaadesignaçãodoinimigo.Assiste-seentãoaumamilitantização[militantisation]eaumaprobabilização[probabilisation]técnico-jurídicadoestatutodocombatente.

Umavezqueaconstataçãodeumaparticipaçãodiretanashostilidadestorna-sequaseimpossívelpelaboaesimplesrazãodequenãohámaiscombate,oestatutodecombatentetendeadeslizarparaumestatutoindireto,suscetível,pordiluição,deabarcarqualquerformadepertencimento,decolaboraçãooudesimpatiapresumidacomumaorganizaçãomilitante,sejaounãocomseusegmentoarmado.Éapassageminsidiosadacategoriade“combatentes”àde“militantespresumidos”(suspectedmilitants).Essaequaçãocombatente=militanteserveparaestenderodireitodematarparamuitoalémdoslimitesjurídicosclássicos,eoconceitodealvolegítimoadotaentãoumaelasticidadeindefinida.

Alémdisso,paraadeterminaçãodesseestatuto,passa-sedeumaepistemologiadaconstataçãomanifesta,dojulgamentodefatoaumaepistemologiadasuspeitanaqualadecisãodedeterminaçãodoalvoseapoianaidentificaçãodeumacondutaoudeumperfildevidaquedenotaumestatutopresumidodepertencimentoaumaorganizaçãohostil.Combasenoquenosdizoseupatternoflife,

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há,digamos,70%dechancesdequevocêsejaummilitante,istoé,umcombatente,portantotemosodireitodematá-lo.

Adespeitodessediagnósticoinquietante,ficamosporfimtranquilizadosaosaber,emjunhode2011,pelabocadeJohnBrennan,queosdronesnorte-americanoshaviamconseguidovencersuaslimitaçõesestruturaispararealizaroqueera,nahistóriadaguerra,semprecedentes:“Possodizerquepraticamente[…]noanopassadonãohouvenenhumamortecolateral,issograçasàexcepcionalcompetência,àexcepcionalprecisãodascapacidadesqueconseguimosdesenvolver”.[14]

Oseticistasmilitarespodiamcomemorar.Atecnologiamilitarsouberamantersuaspromessas.Ahoradaarmaperfeitamentehumanitáriaeplenamenteéticahaviaporfimchegado.Umanovafaçanha:depoisdaguerradezeromortosemseuprópriolado,aguerradezerocivismortosnocampoadversário.ApesardosclamoresdasCassandras,alógicadomalmenor,seguindoseucurso,haviaacabadopordaràluzobemabsoluto.

Mascomoerapossíveltalprodígio?OTheNewYorkTimesforneceuaexplicação,algunsmesesdepois.Omilagreestatísticoresidia,comoamiúdeemcasossemelhantes,nométododecontagemempregado.Aastúciaerasimples,masterrível.Asautoridades,revelavamBeckereShane,contam,porpredefinição,“todoindivíduomasculinoemidadedecombater[15]presenteemumazonadeataquecomoumcombatente[…]anãoserqueexistaminformaçõesexplícitasqueprovempostumamentequeeleerainocente”.[16]Comohaviaconfiadoaosjornalistasumoficialanônimo:“Elescontamoscadáveres,masnãotêmrealmentecertezadequemsetrata”.[17]

Eisaí,sobasmiragensdaéticamilitarizadaedasmentirasdeEstado,oprincípio,porcertobastantehumanitárioeético,dodrone:osalvossãopresumidosculpadosatéquesejamprovadosinocentes–atítulopóstumo,porém.

Enquantoaéticaclassicamentesedefiniucomoumadoutrinadobemviveredobemmorrer,anecroéticaconstitui-secomoumadoutrinadobemmatar.Eladissertasobreosprocedimentosdehomicídioparadelesfazerobjetosdeumaavaliaçãomoralcomplacente.

Umavezimpostanasmentesafalsaevidênciasegundoaqualodroneéfundamentalmenteumaarma“maisprecisa”,eporissosupostamentemaisconformeaoprincípiodedistinção,anecroéticadodronedispensaqualquerdiscussãodefundoeremeteascríticasaumdebatedenúmeros,noqualcabeaeles,porinversãodoônusdaprova,estabelecerempiricamentequeessaarma,quenoentantoelesacabamdeadmitiremteoriacomosendoapriorimaisética,terianapráticaproduzidoosresultadosopostos–oque,enquantoengolimosopostuladoinicial,permaneceabsolutamenteinexplicávelsenãopelacontingência:usosimprópriosouerroshumanosnautilizaçãodeuminstrumentoque,aliás,continuabomemsimesmo.

Devidoàopacidadetantodedeterminaçãodoalvocomodosbalançosreaisdosataques,asreivindicaçõesdoscríticostendementãoaseconcentrarnumaexigênciadetransparência.Pedem-senúmerosexatoseinformaçõesprecisassobreosprocedimentos.Adiscussãojurídicaseprolongaemargúciastécnicasdeestatísticosedemédicoslegistasque,desviandooolharpúblicodarealidadehumanadosefeitosconcretosdaviolênciaarmada,contribuemparaobjetificaredesencarnarmaisaindaaexistênciadasvítimas.Ondehaviasereshumanosvivos,sórestammemorandosdejuristas,

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colunasdenúmeroserelatóriosdeanálisebalística.[18]

Tenteimostrarcomoatesedaprecisão-distinçãoseapoiaemconfusõesesofismasemcascata,quepodemedevemantesdetudocontestá-laemseuprincípio.Contrariamenteàlendatãogeneralizada,odroneaparenta-se,narealidade,aumaarmanãodiscriminadoradeumnovotipo:aosuprimirapossibilidadedocombate,elesolapaapossibilidademesmadeumadiferenciaçãomanifestaentrecombatentesenãocombatentes.

Acreditoquesejaimportantefazeressesajustes,examinaratentamenteapertinênciadosargumentosadversáriosàluzdesuasprópriascategorias.Masesseprocedimentocomportaumrisco.Anecroéticanãosecaracterizaapenasporcertonúmerodeteses,mastambém,etalvezsobretudo,porcertoestilo.Umestilodepensamentoedeescrita.Esseestiloquecombinaasecuradaescritaacadêmicacomoformalismojurídico-administrativodaracionalidadeburocrática,engendra,acomeçarpelovocabulárioqueemprega,efeitosincontáveisdeeufemizaçãoededesrealizaçãodaviolênciaque,noentanto,éseuobjeto.Comoéum“danocolateral”?Oquefazconcretamenteuma“armahumanitária”?Quecorpossãosepultadossobessaspalavras?

–Qualéosonho?–Sonhoqueminhaspernasforamcortadas,queperdimeuolho,quenãopossofazernada…Àsvezes,sonhoqueodronevai

atacar,eficocommedo.Tenhomuitomedo.Terminadaaentrevista,SadaullahWazirpuxaaspernasdesuacalçaporcimadoscotosdeseusjoelhosatécobrircompletamente

asprótesesdecordeosso.–Vocênãoouviuquandoelechegava?–Não.–Oqueaconteceu?–Eudesmaiei.Estavaatordoado.EnquantoSadaullah,inconsciente,eratransferidoaumhospitalmaisbemequipadoemPeshawar,ondesuaspernasquebradas

seriamamputadas,asmídiasanunciavamque,comtodaprobabilidade,umaltoresponsáveldaAlQaeda,IlyasKashmiri,haviasidomortonoataque.Ainformaçãoserevelariafalsa.EraaprimeiradastrêsvezesemqueKashmiriseriareputadomorto.Sadaullaheseusparentes,porsuavez,eramenterradossobdetritosdepalavras:“militante”,“foradalei”,“lutacontraoterrorismo”,“compound”(umtermoglacialparadesignarcasa).

Circulem,intimaramasmídiasnorte-americanasasuaaudiência,nãohánadaparaver.Cercadequinzediasmaistarde,muitotempodepoisqueomundohaviaesquecido,Sadaullahdespertouparaumpesadelo.–Vocêselembradaprimeiravezquepercebeuquesuaspernasnãoestavammaislá?–Euestavanacama,ecobertodeataduras.Tenteiremovê-las,masnãoconseguia,entãoperguntei:“Vocêscortaramminhas

pernas?”Elesdisseramquenão,masachoqueeusabia[…]QuandovocêperguntaaSadaullah,ouaKarim,ouaHussein,eamuitosoutroscomoeles,oquequerem,elesnãodizemque

querem“transparênciaenúmerosverdadeiros”.Dizemquequeremqueamatançaacabe.Queremparardemorrer.Dizemquenãoqueremmaisiraenterros–nemseremmaisbombardeadosemplenoluto.“Transparênciaenúmerosverdadeiros”,paraeles,sãoproblemasabstratos,quenãotêmnadaavercomofatoconcreto,regular,sistemáticodamorte.[19]

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IV.PRINCÍPIOSDAFILOSOFIADODIREITODEMATAR

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Essedireitodematarsemcrimesóestáconfiado,entrenós,aocarrascoeaosoldado[…]suasfunçõessóseaproximamafastando-se;elassetocamcomooprimeirograunocírculotocao360°,precisamenteporquenãoexistegraumaisdistante.JosephdeMaistre[1]

1.Osassassinosindelicados

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Odireitoeafilosofiadodireitosãoleiturasáridas.Masnumaépocaemqueodiscursojurídicofazpartedasarmasdeguerra,seriaimprudenteignorá-losporcompleto.

Muitasdasinterrogaçõesqueosdronesarmadoslevantamhojenessedomínioprolongamemlinhadiretaaquelassuscitadasemseutempopela“guerrasemrisco”conduzidapeloarnoKosovo.Naépoca,MichaelWalzerquestionava:aguerrasemrisco(paraaquelequeaconduz)épermitida?

Nãoencontramosnada,começaeleporresponder,nalongatradiçãodateoriadaguerrajusta,queproíbaosprocedimentosdeguerraadistância:“Namedidaemqueossoldadospodemvisaraalvosmilitarescomprecisão,elestêmtodososdireitosdecombateraumadistânciadesegurança”.[2]MasWalzerprosseguecomumareferênciaaCamus,quedesencadeiaoutratese.Seumovimentoésutiledialético:

Emsuasreflexõessobreohomemrevoltado,AlbertCamusexplicaquenãosepodematarsenãoestiverdispostoamorrer[…].Masesseargumentonãopareceseaplicaraossoldadosnabatalha,ondeoobjetivoéprecisamentematarevitandosermorto.E,noentanto,existeumsentidomaisamplosegundooqualCamustemrazão.[3]

Compreende-sequeesse“sentidomaisamplo”dizrespeitoaosprincípiosmesmosdaguerra,consideradosemumnívelmoraloumetajurídico.Nasequênciadotexto,WalzerretornaàmáximadeCamus–aqualveremosqueeleemprega,senãodeformainversa,aomenosdeformainapropriada–paraformularsuatese:

Elesdevemestar,comosugereCamus,dispostosamorrer,porémissoécompatívelcomofatodetomarmedidasparapreservaravida.[…]Masoquenãoépermissível,parece-me,éoqueaOtanfezporocasiãodaguerradoKosovo,emqueseusdirigentesdeclararamdeantemão:nãoimportaoqueacontecesse,nãoenviariamforçasterrestresaocombate.[4]

Ereforça:“Nãosetratadeumaposiçãomoralpossível.Vocênãopodematarsenãoestiverdispostoamorrer”.[5]Portanto,odireitodematarnaguerraestaria,porprincípio,condicionadoaofatodeaceitarexporavidadeseussoldadosparaofazer,oupelomenosdenãoexcluiraprioriaexposiçãodessasvidas.

Note-sequeaposiçãoaquidefinidaporWalzerencerraoschefesdeguerraemumaespéciedejogodeduploimperativo:deumlado,émoralmenteobrigatórioqueminimizemosriscosparaseusprópriossoldados,mas,deoutro,paraelesémoralmenteproibidofugirtotalmentedorisco.Adequando-seplenamenteaoprimeiroimperativo,alcançandoograudoriscozero,chega-seaofundo,emtodosossentidosdotermo,poisaminimizaçãovirtuosaconverte-seemseucontrárioparasetornarocúmulodoescândalomoral.Haveriaaíumaespéciedepassagem,dealgumamaneira,proibida.MasnãoéexatamenteissoqueWalzerdiz.Aquiloque,literalmente,nãoconstituiparaele“umaposiçãomoralpossível”émenosfazê-loquedeclará-lo(eisso,respectivamente,paraossoldadoseparaseusdirigentes)–oquedeixaabertaaquestãodesabersefazersemdeclararseriamaisadmissível.Dequalquermaneira,oproblemaconsiste,aseuver,eminstituiroprincípioda

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guerradezeromortosemseupróprioladocomonormamoral.Masporquê?Seissoéinadmissível,éporquesignificaconsiderar“queessasvidassãodispensáveiseaquelasnão”.[6]Aíresidearaizdoescândalo:aosustentarqueasvidasdoinimigosãocompletamentedispensáveiseasnossasabsolutamentesagradas,introduz-seumadesigualdaderadicalnovalordasvidas,issoemrupturacomoprincípioinvioláveldaigualdignidadedasvidashumanas.

CreioqueWalzertemrazãoemdizerquetaléopressupostodesseimperativo,eigualmenterazãoemseescandalizar,mascreiotambémqueelenãovaiatéofimnaanálise.Porqueseriainadmissível,inaceitáveldesvinculardemodoabsoluto(apriori)opoderdematardoriscodemorrermatando?Oautorinvocaarupturadeumprincípiofundamentaldeigualdadeontológica.Opesodostermosqueeleempregaindicaumaresistênciaessencial.Oqueeleintuiéumcaso-limitequeeledeverecusar.Masarazãodoescândalonãoéapenasmoral,étambémteórica:éareaçãoepidérmicadeumateoriaanteumfenômenoqueameaçaria,seelaoadmitisseemseusistema,fazê-lanaufragar.Como?

Walzerdáimplicitamenteachavedoproblema,eissonaformadeumlapsodecitaçãooudeumsubtextodisfarçado,comsuareferênciaaoHomemrevoltado.PoisnãoésobreaguerraqueCamusrefleteemseutexto,massobreoutracoisa.Ocapítulo“Osassassinosdelicados”nãotratadascondiçõesdaguerra,esimdoatentadoterrorista.Oquesecolocaéoproblemadaéticadoassassinatopolítico.OspersonagensdeCamus,jovensidealistasdaRússiadoiníciodoséculoXX,tencionamcometeratentadosemrepresáliaàferozrepressãodoregimetsarista.Ora,elesdeparamcomumacontradição,comumcasodeconsciência:

Necessárioeindesculpável,assimlhespareciaoassassinato.Mentesmedíocres,confrontadascomesseterrívelproblema,podemrefugiar-senoesquecimentodeumdostermos.[…]Masessescoraçõesextremadosnadaesqueciam.Desdeentão,incapazesdejustificaroque,noentanto,consideravamnecessário,imaginaramquepoderiamoferecerasipróprioscomojustificaçãoerespondercomosacrifíciopessoalàquestãoquesefaziam.Paraeles,assimcomoparatodososrevoltadosantesdeles,oassassinatoidentificou-secomosuicídio.Logo,umavidasepagacomoutravidae,dessesdoisholocaustos,surgeapromessadeumvalor.Kaliaiev,Voinarovskieosoutrosacreditamnaequivalênciadasvidas.[…]Aquelequematasóéculpadoseconsenteemcontinuarvivendo[…].Morrer,aocontrário,anulaaculpabilidadeeoprópriocrime.[7]

AocontráriodainterpretaçãodeWalzer,queentendequeéprecisoarriscaravidaparaterodireitodematar,segundoatesedotexto,oassassinato,derestoindesculpável,sóéconcebível,paraeles,se,nosegundomesmoemqueseconcretiza,oassassinoéinstantaneamentenegadocomsuavítima.Nalógicaniilista,nãosetratadearriscaramorte,masdemorrercomcerteza.

ÉcuriosoofatodeWalzermobilizaressareferênciaparadelafazerabasedeumacríticamoraldaimunizaçãodocombatentenacionalnaguerraadistância:umatesequesereportaàéticadoassassinatoenãoàéticadaguerra.Nasuperfície,obviamente,oqueelequerdizeréqueaceitaroprincípiodesuaprópriaexposiçãoaoriscoémoralmentenecessárioparapodermatarnaguerra.Massuacitação-palimpsesto,narealidade,émuitobemescolhida.Poisoproblemaéexatamenteeste:comojustificarohomicídioemumasituaçãoquenãoémaisadocombate?Aquelesquequisessemjustificaressaatividadedeveriamseremeteràsdoutrinasdoassassinatopolítico.Essaéaliçãode

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WalzerleitordeCamus.Nasuperfície,oteóricodaguerrajustaparecedecertocometerumcontrassensomanifesto,poiseledistorceamáximaniilistaparadelafazerolemamoraldaguerraclássica:“Nãosepodematarsenãoseestádispostoamorrer”.Mas,demaneiralatente,eleindicaoutracoisa:osagentesda“guerrasemrisco”encontram-se,narealidade,naposiçãodeautoresdeatentadosàbombaqueteriamfeitoaescolhacontráriaàdosterroristasidealistas:sóestardispostoamatarsetivercertezadenãomorrer.

“Depoisdessesvirãooutroshomensque”,preveniaCamus,“animadospelamesmafédevoradora,irãonoentantoconsideraressesmétodossentimentais,recusando-seaadmitirquequalquervidasejaequivalenteaqualqueroutra”.[8]Virá,então,advertiriaeleainda,“otempodoscarrascosfilósofosedoterrorismodeEstado”.[9]

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Nãoseioqueéodireitodaguerra.Ocódigodoassassinatomepareceumaestranhaimaginação.Esperoquelogonosdeemajurisprudênciadossalteadores.Voltaire[1]

2.Aguerraforadecombate

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Ahistóriadafilosofiadodireitodaguerraémarcadapornumerososdebatessobreasarmaslícitasouilícitasesobreoscritériospertinentesquantoasuadistinção.Umadiscussãoclássicasereferiaaousodosvenenos:considerandoquesãoummeiodeassassinato,será

quepodemosnosservirdelescomoarmadeguerra?AquestãopareceembaraçosaparaHugoGrotius,querespondedeformatortuosa,emdois

tempos.Deumlado,senosreferirmosapenasao“direitodanatureza”,apartirdomomentoemqueépermitidomatar,logo,apartirdomomentoemquealguémmereceuamorte,poucoimportaomeio,sócontaoresultado.[2]Oveneno,noentanto,apresentaumadificuldadeparticular.Aarmaéinsidiosa.Nãoavemoschegar.Elamataoinimigoàsuarevelia.Nesseaspecto,priva-odesua“liberdadededefesa”.[3]Razãopelaqual,poroutrolado,segundoo“direitocomumdasnações,nuncafoipermitidoempregarvenenoparasedesfazerdoinimigo”.[4]

Narealidade,averdadeiramotivaçãodessaproibiçãoeragrosseiramentematerial:seospríncipestinhaminteresseemproibiroveneno,eradecertoporque,àdiferençadeoutrasarmas,estalheseradiretamentedestinada.[5]Masocritériopropostoparaaracionalizaçãodessainterdiçãonãodeixadesermenosinteressante:éproibidaumaarmaque,pornatureza,privaoinimigodaliberdadedesedefender.

Umhistoriadordedireitofezumcomentárioinstrutivosobreessetexto:

Pode-seempregaroveneno?Grotiusnãohesitaemresponderque,combasenodireitodanatureza,issoélícito:apartirdomomentoemqueoinimigomereceamorte,dizele,queimportaqualmeioseempregaparainfligi-la?Maselelogoacrescentaqueodireitodasgentesacabouporreprovaroenvenenamento,econfessaqueémaisgenerosomatardemaneiraqueoadversáriotenhaafaculdadedesedefender.Maselenãodizqueoenvenenamentoéilícito.OquefezGrotiusseperderemtodaessadiscussãofoiumafalsaideiadejustiça.Aguerra,aseuver,éumjulgamento,aspartesbeligerantessãojuízes,ovencidoéumculpadoquemereceamorte;logo,qualquermeioélegítimo,tantoovenenopeloqualpereceSócratescomoaespadaouacorda;sepreciso,pode-seinclusiverecorreraumassassino[…].Nósrechaçamosessadoutrina,tãofalsaquantoperigosa.Não,ovencedornãoéumjuiz,nemovencidoumculpado.Aguerraéumduelo,noqualdevereinaramaisperfeitaigualdadededireito.Nenhumadasparteséjuiznemculpado,ouseráprecisoadmitirqueumaeoutrasãoaomesmotempojuízeseculpados;oqueéabsurdo.Apossibilidadedesedefenderé,portanto,maisqueumaquestãodegenerosidade,éumdireito,etodomeiodematarqueimpeçaoexercíciodessedireitoéilícito.Senão,odueloeaguerradegeneramemassassinato.[6]

Existemhistoricamentedoisparadigmasradicalmenteopostosparaaconceituaçãojurídicadaguerra.Oprimeiro,deordempenal,aassimilaaumapuniçãolegítima.Oinimigoéumculpadoquemerecesercastigado.Aviolênciaarmadaésuasentença.Essarelaçãoécompletamenteunilateral:aideiadequeumcondenadopossaevocarumdireitodedefesaparecerisível.Osegundomodelo,queanimaodireitoatual,fundamenta-se,aocontrário,noprincípiodeumaigualdadedodireitodematar,eseconecta(massemseconfundircomele),peloviésdanoçãodeigualdadejurídicadoscombatentes,aomodelododuelo.Éoprincípiofundadordojusinbello,odeumdireitoigualase

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entrematarsemcrime.Ora,essesegundoesquemaimplica,segundonossoautor,orespeitodeumdireitoàpossibilidade

desedefender,cujosatributospositivosnãosabemosquaisseriam,masqueaomenos,negativamente,proibiriaousodearmasquesuprimamaprioriessapossibilidade.Seriaalgocomoumdireitodenãoserprivadodecombate.Logo,nãoumdireitocavaleirescoaocombatecomarmasiguais,mas,antes,algocomoumdireitoàchancedecombater.

Aguerraéumadessasrarasatividadesemquesepodematarsemcrime.Elaseapresenta,eéfundamentalmenteissoquesignificaessapalavranoplanonormativo:comoummomentoemque,sobcertascondições,ohomicídioédescriminalizado.Aumcombatentequematarespeitandoascláusulasdojusinbelloéconcedidaimunidadelegal.

Masháumaquestãofundamental:emnomedequeprincípiooudequemetaprincípioodireitodosconflitosarmadospodedescriminalizarohomicídio?Sobrequebasenormativapodesefundamentaressasuspensãodaproibiçãodematar?

Senos“absolvermosreciprocamentedosmalefíciosedasperdasquecausamosunsaosoutros”naguerra,explicaPufendorf,éporquenosconsideramos“autorizadosatalporumaconvençãotácita”.[7]Éatesedeumaespéciedepactodeguerraentreosbeligerantes:“Háumaconvençãosemelhanteentreaquelesqueseenfrentamemduelo[…]poisumeoutrotinhaidoporseupuromovimento[sic]aumencontro,emqueeraquestãodematarousermorto”.[8]

Logo,odireitodematarimpunementenaguerrasebasearianumapremissaestruturaltácita:sesetemodireitodematarsemcrime,éporqueessedireitoémutuamenteconcedido.Seaceitoconferiraooutroodireitodemematarimpunemente,amimouaosmeus,éporquecontobeneficiar-meporminhavezdessaisençãoseeuomatar.[9]Adescriminalizaçãodohomicídioguerreiropressupõeumaestruturadereciprocidade.Sópodemosmatarporquenosentrematamos.

Issotemumaimplicaçãoimportante:sejaqualforalegitimidadedadeclaraçãodeguerrainicial,semlevaremcontaorespeitoliminardojusadbellum,mesmo,portanto,queoataqueseja“injusto”(masquemdecidirá?),osbeligerantestêmreconhecidooigualbenefíciodojusinbello,e,comele,umdireitoigualdesematarsegundoasformalidades:“‘Aigualdadededireito,garantidaacadaumdosbeligerantespelasleisdaguerra’,escreveumjuristadoséculoXIX,retomandoaimagemclássica,‘éemrelaçãoaelesoqueeranopassadoaigualdadedasarmasparaoscampeõesnoscombatessingulares’”.[10]Naausênciadecombatecomarmasiguais(aguerranãoéumesportedecombate),aigualdadedoscombatentesconsistenaigualdadedeseudireitomútuodeseentrematar.

Masoqueocorrecomessedireitoquandoaelenãocorrespondemais,nosfatos,nenhumapossibilidadedereciprocidade?Oqueseproduz,naprática,éque“aigualdadefundamentaldoriscomoral–matarousermorto”–[11]daguerratradicionalésubstituídaporalgoqueseassemelhamais“aumacaçada”.[12]Aguerradegeneraemabate.Éasituaçãoinstauradapelousodosdronesnaguerraassimétrica.

Épossívelretrucarque,apesardesseestadodefato,odireitopermanece.Masdeve-seconcordartambémqueodireito,emcasossemelhantes,sóérecíprocodopontodevistaformal.Dequevaleodireitodesematarmutuamentesemcrimequandoapenasumdosdoisprotagonistasaindapodedesfrutardoconteúdorealdessapermissãofundadora?Essedireito,privadodesuasubstância,sótemagoraumaexistênciafantasmagórica,tãovaziaderealidadequantoocockpitinacessíveldoalvo

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humanoaseratingido.Noregistrodafalsaconsciência,aviolênciaarmadadesentidoúnicoinsiste,noentanto,emse

chamarde“guerra”,sendoqueelapôsaguerraforadecombate.Elapretendepodercontinuaraaplicarasituaçõesdeexecuçãooudeabatecategoriasanteriormenteforjadasparasituaçõesdeconflito.Masassimfazendo,projetandoemsituaçõesdeunilateralidadeabsolutaumjusinbellopensadoeprevistopararelaçõesdereciprocidaderelativa,elacaiinevitavelmenteemerrosdecategorias.

Nodiscursoda“éticamilitaraplicada”,adiscussãotodasereduzàquestãodesaberseousodosdronesarmadospodeounãoseamoldaraosprincípiosdodireitodosconflitosarmados:ousodessaarmaestáounãopotencialmenteconformeaosprincípiosdedistinçãoedeproporcionalidade?Masesquecemosqueessaarma,porsuprimirqualquerrelaçãodecombate,portransformaraguerra,deassimétricaquepodiaser,emrelaçãounilateraldematar,privandoestruturalmenteoinimigodequalquerpossibilidadedecombater,deslizasubrepticiamenteparaforadoâmbitonormativoinicialmenteprevistoparaconflitosarmados.Aplicarnormasprevistasparaumconflitoaumapráticadeabate,aceitarconduziradiscussãoseminterrogaropressupostosegundooqualéexatamentenesseâmbitonormativoqueessaspráticasaindasebaseiam,significaratificarumafatalconfusãodosgêneros.Dessemodo,aéticadocombatesedeslocaparasetornarumaéticadoabate,umanecroética,queutilizaosprincípiosdojusinbelloparaconvertê-losemcritériospertinentesdoassassinatoaceitável.Umaéticadecarrascosoudeexecutores,enãomaisdecombatentes.

Masaesseprimeirofenômeno,quejávimoscomofunciona,correspondetambémumacriseprofundanateoriadodireitodaguerra.Adificuldade,deordemmetajurídica,équecomaperdadetodareciprocidadeefetivaesvai-setambém,paraaquelequepretendedoravantefazerusoapenasdele,ofundamentoclássicodeseudireitodematarsemcrime.

Emumartigosobreo“paradoxodaguerrasemrisco”,PaulKahnalertavaqueessaformade“guerra”ameaçavasolaparofundamentotradicionaldodireitodematar.[13]Apartirdomomentoemquesaímosdeuma“situaçãoderiscosmútuos”,apartirdomomentoemqueéquebradaa“condiçãodereciprocidade”,explicavaele,aguerranãoémaisguerra:transforma-senumaespéciedeoperaçãodepolíciaforadocontexto.Kahnacrescentavaqueodireitodematarimpunementenaguerraderivava,alémdessarelaçãodereciprocidade,deumdireitoorigináriodelegítimadefesa.[14]Setemosodireitodematarnaguerrasemcrime,issosedeve,segundoele,aumdireitodenosdefendercontraperigosiminentes.Seosriscosfísicosdesaparecemparanós,essedireitosevolatiza.

Talveznãosejanecessáriointroduzir,comoelefaz,anoçãodelegítimadefesaparadarumabaseracionalàdescriminalizaçãodohomicídioguerreironodireitodaguerra.Comolembreianteriormente,ateseclássicaédiferente:ofundamentoracionaldaisençãodocrimedeassassinato,aomenosparaumapartedatradição,nãoéalegítimadefesa,masopactotácitodeguerraevocadoporPufendorf.Naquelaperspectiva,odireitodematarsemcrimebaseia-seapenasemseucarátermútuo,nareciprocidadedesuaaplicação.Oquenãoimpedeemnada,nesseesquemamínimo,queacrisemetajurídicasemantenha:quandoareciprocidadetorna-sepuramenteformal,ofundamentodoassassinatosemcrimetendeavirarfumaça.

Como,nessasituação,manter,paraseusdefensores,apossibilidadedeumdireitoaoassassinatopeloar?Asoluçãoconsisteemnadamenosqueumgolpedeforçanodireitodaguerra.Poissó

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haveriaumaúnicapossibilidadeteóricaparaembasaressedireitoaoassassinatounilateral:rebaterojusinbellosobreojusadbellum,condicioná-loaooutro,demodoquesereserveao“guerreirojusto”,deformamonopolística,segundoummodelopolicial-penaldeaparêncianãoconvencional,odireitodematarsemcrime.

ÉsimplesmenteaquiloqueStrawsereMcMahanpropõem,masrejeitandoemblocoatesedoqueeleschamam“aigualdademoraldoscombatentes”parasubstituí-laporumdireitounilateraldematarbaseadoemumconceitodejustacausa:“Oguerreiroquecombateporumajustacausaémoralmentejustificadodetiraravidadoinimigocombatente,aopassoqueocombatenteinjusto,mesmoquesigaosprincípiostradicionaisdojusinbello,nãoéjustificadodemataroguerreirojusto”.[15]Tenhoodireitodematá-lo,evocênão.Porquê?Porquesoujustoevocê,injusto.Eusoubom,vocêémau,esóosbonstêmodireitodematarosmaus.Eis,grossomodo,aqueseresumealógicapuerildessetipoderaciocínio.Aoqueoinimigoresponderáquenão,obviamente,eleéqueéobomeooutro,omau,equeportantosóeletemodireitodematá-lo,eassimpordianteatéqueumdosdoisacabeporprevalecer,trazendoaprovaincontestável,pelaforça,deseuplenodireito.Comoomatei,vocêvêbemqueeuéqueeraobom.Ateseoposta,adaigualdadejurídica–enão,sublinhemos,moral(essecritérionãotemnadaaveraqui)–doscombatentes,aquelaque,deformaacessória,comandaodireitoexistentedosconflitosarmados,reconheceplenamenteessaaporiaconstitutivadaguerrajusta,eemconsequênciaconcededireitosedeveresiguaisaosbeligerantes,independentementedesuaautoproclamada“moralidade”(daqual,éclaro,ninguémduvida).

Emsuma,nãosatisfeitosemprivaroinimigodapossibilidadematerialdecombater,osdefensoresdodronepretendemtambémprivá-lo,masdestavezexplicitamente,dopuroesimplesdireitodecombater,mesmoquecomeleexterminemodireito.Issoaomenostemoméritodacoerência.“Semoigualdireitodematar,alertavaWalzer,aguerra,comoatividaderegidapornormas,desapareceriaeseriasubstituídapelocrimeecastigo,porconspiraçõesmalévolasepelaimposiçãodaleipelosmilitares.”[16]

Issoconstituiumaofensivateóricaconscientenolawfare[17]emcurso.Mas,aomesmotempo,étambémumatendênciainscritanamaterialidadedaarma.Emsuaépoca,Schmittjáhaviadetectadoosefeitostendenciaisdaverticalizaçãodopoderaéreosobreacategorizaçãopolítico-jurídicadoinimigo.Suaanálisedosefeitosda“guerraaéreaautônoma”[18]emque“torna-seabsolutaaausênciaderelaçãodobeligerantecomosoloeapopulaçãoinimigaqueneleseencontra”valeaindahojeparaodronearmado:

Osaviõesdebombardeioeosdeataquerasanteusamsuasarmascontraapopulaçãodoterritórioinimigodeummodovertical,assimcomoSãoJorgeusavasualançacontraodragão.Namedidaemqueaguerrasetransformaemumaaçãopolicialcontraperturbadoresdapaz,criminososeelementosdaninhos,tambéméprecisoincrementarajustificaçãodosmétodosdessepolicebombing.Comisso,adiscriminaçãodoadversárioéforçosamentelevadaaumextremoabissal.

Averticalizaçãodaviolênciaarmadaimplicaatendênciaàhostilizaçãopolítico-jurídicaabsolutadoinimigo.Estenãoestámaissituado,emnenhumsentidodotermo,nomesmoplanoquenós.[19]

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Sevocêfazalgumacoisaduranteumtemposuficientementelongo,omundoacabaráporaceitá-la.[…]Odireitointernacionalprogrideporviolações.Nósinventamosatesedoassassinatoseletivoefoiprecisoimpô-la.DanielReisner,ex-diretordodepartamentojurídicodoexércitoisraelense[1]

3.Licencetokill

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Emquecontextolegalosataquesdedronesseproduzemhoje?NoquetocaaosEstadosUnidos,éimpossíveldizer.Ficamosnoescuro.Aadministraçãoserecusaaresponderaessapergunta,mesmodiantedostribunais.[2]Bastantesintomáticodessaopacidadecalculadaéodiscursoque

HaroldKoh,conselheirojurídiconoDepartamentodeEstado,proferiuem2010naAmericanSocietyofInternationalLaw.Elepraticaaíadançadoventre,mantendoaambiguidade,oscilandoentreregistrosdiversos,empregando-osjuntos,emrevezamento,umeoutro,massemnuncasedecidiraescolher,comoseadecisãofinalfossereservadaparamaistarde.Detodomodo,afirmaele,osataquesdedronessãolícitos,eissoquerseestejaengajado“emumconflitoarmadoouemumatodeautodefesalegítima”,[3]massemespecificaremqueexatamentesepensaestarengajado,nememqueospadrõeslegaisparaousodaforçaletaldifeririamconformeapessoaseencontrassenaprimeiraounasegundadasduassituações.

“Oqueeledizcommuitanegligência”,comentaorelatorespecialdasNaçõesUnidassobreasexecuçõesextrajudiciais,PhilipAlston,“éque,bem,ounósaplicamosodireitodosconflitosarmadosouasregrasdodireitodelegítimadefesadeEstado.Ora,essesdoisregimesderegrassãoradicalmentediferentes”.[4]

Essaimprecisãosuscitouaperplexidadedenumerososjuristas.[5]Oqueelesintimamaospolíticoséquesepronunciem:guerraoulegítimadefesa,éprecisoescolher.Masseaadministraçãoserecusanesseponto,éporqueexporasambiguidadesquantoaoquadrodereferênciaresultariaemproibirosataquesdedronesatuaisoulimitardrasticamentesualicitude.

Poisoproblemaéqueessasambiguidadesentrammalnosâmbitosjurídicosestabelecidos.Paraquemprocurarjustificá-lasnoplanolegal,sóhádoiscandidatospossíveis,eapenasdois:sejaodireitodosconflitosarmados,sejaodolawenforcement[6](quesepodetraduzir,deformaimperfeita,por“direitodepolícia”,masvalemaisamplamenteparaas“forçasmilitaresedesegurançaqueoperamemcontextosondeaviolênciaexiste,masnolimiarqueaqualificariacomoconflitoarmado”).[7]

Paraapreendernumaprimeiraaproximaçãoadiferençaentreessesdoismodelos,éprecisopensarnoquesepara,nousodaforçaletal,asprerrogativasdeumsoldadoemcampodebatalhadasdeumoficialdepolíciaempatrulha.Enquantooprimeiropodeimpunemente“atirarparamatar”emqualqueralvomilitarlegítimo,osegundosópodeabrirfogocomoúltimorecurso,somenteatítuloderespostaproporcionalaumaameaçaiminente.

Vejamosessesdoispontosdemodomaisdetalhado:

1º)Antesdemaisnada,paraqueserveodronecaçador-matadorutilizadocomoarmadelawenforcement?Nessedomínio,éprecisoprimeirotentarcapturaroindivíduo,dar-lheapossibilidadedeserender,eatélheofereceressachance,sepossível.Asautoridades“nãopodemempregarmaisforçaqueoestritamentenecessárioparaprocederaumadetenção,defender-seelasprópriasoudefenderoutremdeumataque”.[8]Ousodaforçaletaldeveaquipermaneceraexceção:elasóépermitidaquandorepresentaoúnicomeiodisponívelanteumaameaça“real,esmagadora,quenãodeixanenhumoutromeionemnenhummomentodedeliberação”.[9]Todousodaforçaletalquenãorespeiteessascondiçõesépordefiniçãoconsideradouma‘execuçãoextrajudicial’”.[10]

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Seosataquesdedronesseproduzemnessequadrojurídico,argumentarquetudoéefetuadoparaque“osdanoscolateraissejammínimos”[11]nãotempesonenhum.Maisoumenoscomoseumpolicialhomicida,paraseisentardesuafaltagrave,explicassequeeletomoubastantecuidadoparaseadequaraosprincípiosdedistinçãoedeproporcionalidadeemvigornodireitodosconflitosarmados.Seriaumpuroesimpleserrodecategoria.

Aoproibirqualquergradaçãonousodaforça,odroneéinaptoparaseadequaraoprincípiodeproporcionalidadebastanteespecíficoqueestáemvigornoparadigmadolawenforcement.ComoexplicaMaryO’Connel:“Oqueosdronesnãopodemfazeréseadequaràsregraspoliciaisparaousodaforçaletalquevalemforadocampodebatalha.Nolawenforcementdeveserpossíveladvertirantesdeempregaraforçaletal”.[12]

Osdrones,dizemalgunsdeseusdefensores,sãoanálogosaoscoletesàprovadebalascomqueseequipamasforçaspoliciais.[13]SãomeioseficazesparaprotegerosagentesdaforçadoEstado,eessaproteçãoélegítima.Talvez,maselesesquecemumadiferençaessencial:usarcoleteàprovadebalasnãoimpededefazerprisioneiros.Jácomumdronecaçador-matador,essaopçãoéimpossível.Étudoounada:sejaatirarparamatar,sejaabster-sedequalqueração.Essaarmafazdaforçaletalaúnicaopçãooperacionaldisponível.Aperdadecapacidadeoperacionalesclarece,aliás,aafinidadedessaarmacomadoutrina“mataremvezdecapturar”hojeoficiosamenteemvigornaCasaBranca:“Osr.Obama”,analisaoTheNewYorkTimes,“evitouascomplicaçõesligadasàdetençãoaodecidir,narealidade,nãofazernenhumprisioneirovivo”.[14]Odrone,nesseaspecto,éoinstrumentosonhado.Sempresepoderáexplicar,apósoataque,queacaptura,poressemeio,era“impraticável”,esquecendodeespecificarqueessaincapacidadetécnicafoideliberadamentepensada.“TrocadeGuantánamoporPredator”,diriaoanúncioclassificado…

2º)Nocasodeobstruçãodessaprimeiravia,pode-sesempretentarpartirparaoplanoB:sediráentãoqueosataquesdedronebaseiam-senodireitodaguerra.

Éclaroquesoavamelhor,emtermosderelaçõespúblicasjurídicas,dizerquenossosalvoseram“combatentes”.Masoqueasadministraçõessucessivasparecemteresquecidodelevaremcontaéqueostratadosdodireitodaguerra[…]quedefinemosconflitosarmadoscomportam,narealidade,condiçõesformaiselimiaresaalcançarantesqueasdisposiçõesprevistaspelodireitopossamseraplicadas.

Condiçõesque,nocasodeumconflitoarmadocomumatorigualmentenãoestatal,requeiram“umcombatesustentadoepersistente,etambémumlugar,aindaquedefinidodemaneiracovarde,enãosimplesmenteoplanetainteiro.”[15]

Problemasuplementar:considerandoqueosagentesdaCIAquepilotamumapartedosdronesnorte-americanossãocivis,suaparticipaçãoemumconflitoarmadoconstituiriaumcrimedeguerra.Nessequadro,aequipedaagência“poderiaserperseguidaporassassinatosoboregimedaleidomésticadequalquerpaísondesãocometidosassassinatosseletivospelodrone”.[16]

Emresumo,asduasúnicasviasimagináveisrevelam-seigualmentesemsaída:1º)sejaqueosataquessebaseiamnolawenforcement,masdeveriamentãoseadequaràsrestriçõesdessalei,entreasquaisoimperativodegradaçãodaforça,oqueodronenãotemcondiçõesdefazer;2º)sejaque

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osataquessebaseiamnodireitodaguerra–masestenãoseaplicaàszonasforadeconflitoarmadotaiscomoPaquistãoouIêmen,onde,noentanto,atualmenteocorrem.

Compreendemosmelhorosilêncioembaraçadodaadministraçãonorte-americana,queestáemsituaçãojurídicamuitodesconfortável,emumdilemalegal:“porumlado,osassassinatosseletivossãojuridicamenteproibidosforadoâmbitolegaldeumconflitoarmado,e,poroutrolado,naprática,nenhumassassinatoseletivojánãoémaispermitido,mesmonocontextodeumapretensa‘guerra’comaAl-Qaeda”.[17]

KennethAnderson,juristaassociadoàHooverInstitutionegrandedefensordoassassinatopeloar,estáinquieto.Seudiagnósticoéque,àfaltadeelaborardesdejáumadoutrinalegalapropriada,apráticadosassassinatosseletivoscorreoriscodeseverembrevecomprometida.Segundoele,háurgênciaparaqueaadministraçãose“defrontecomesseproblemaenquantoaindadispõedeumcampodemanobraintelectualelegal”nesseterreno.[18]

Enquantoapráticadoassassinatopolíticopermaneciaclandestina,aquestãodeseuâmbitojurídicopodia,defato,continuarsecundária,masosataquesdedronesprovêmagoradossegredospúblicos.Assimrevelados,tornam-sevulneráveis,principalmenteemummundoonde“apercepçãopública,influenciadaporumemaranhadocomplexodeorganizaçõesmilitantes,governamentaiseinternacionais,adquireumaimportânciaconsiderável”.[19]

Asoluçãoqueelepreconizapassariapelaelaboraçãodeumaterceiravialegal.Escaparaobinarismodosparadigmasnormativoscriandoumnovoregimededireitoadhocparaessasoperaçõesletais:oqueelechama“aautodefesanua”–nua,postoquedespojadadasrestriçõeslegaisquenormalmenteatolhem.AndersonevocaumanoçãodedireitoconsuetudinárioàautodefesadoEstadobaseadonosantecedentesdeumatradiçãonacional[20]–aquela,semdúvida,dosbarbouzes,[21]dosblackops,dos“conselheirostécnicos”,dosesquadrõesdamorteedosinstrutoresdetortura.Oqueelepropõe,hoje,paraosdrones,nabasedaantiguidadedessaspráticasclandestinasquevalemtítulosdenobreza,énadamaisnadamenosqueoficializá-los.

Suareferêncianaquestãoéadoutrinaelaboradanofinaldosanos1980peloex-conselheirojurídiconoDepartamentodeEstado,AbrahamSofaer:“Osassassinatosseletivosemsituaçãodelegítimadefesaforamdeterminadospelaautoridadedogovernofederalcomosendoexceçõesàproibiçãodoassassinato”.[22]Paraserclaro:seosassassinatos“seletivos”nãosãocrimes,éporqueogovernoodiz.

Nasceria,então,entreguerraepolícia,umcuriosohíbridojurídico,quepoderiasebeneficiardasliberalidadesdecadaumdosdoisregimessemterdesedobraràsrestriçõesdenenhumdeles.Acaçamilitarizadaaohomemteriaenfimencontradosuaexpressãolegaladequadanaformadeumdireitodepolícialetalglobalizada.OsEstadosUnidosteriam,assim,“acapacidadediscricionáriadeatacaremqualquerlugardomundoondehajaumalvo,semterdepostularumestadodeconflitoarmadopermanenteemescalamundial”.[23]Umasoluçãoelegante,quePhilipAlstonsepermitetraduzirdaseguintemaneira:licencetokill.[24]

SeaposiçãodeAndersonéinstrutiva,éprincipalmenteporqueelarevelafragilidadesjurídicasdessapolítica,mastambémpelainquietudecrescentequecomeçaadominaralgunsdeseusagentes:

OsoficiaisintermediáriosdaCIA,peloquesei,estãohojecheiosdedúvidas–estãovendotoda

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essaatividadetomaromesmocaminhoqueadetençãoeointerrogatóriodepoisdo11deSetembro[…].Osmilitantesdosdireitosdohomemgostariamdetornarosataquesdedronestãoincertosnoplanojurídicoquantoaspráticasdedetençãoedeinterrogatório.

Ora,“bastapoucacoisa,aomenospelaminhaexperiência,emtermosdeincerteza[…]comaeventualidadedeacusaçõesoudedetençõesnaEspanhaouemoutrasjurisdições[…]parainduzirmudançasdeatitudeentreopessoaldosEstadosUnidos”.[25]Parabomentendedor,meiapalavrabasta.

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V.CORPOSPOLÍTICOS

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Osoberano,portanto,cuidadaconservaçãodosdiasdohomem,começandoaguerraassimqueelasefaznecessáriaàsegurançadopovo.Fazeraguerra!Mascomofalardeconservaçãodavidahumanafalandodaguerra,elaquetemporobjetivodestruí-la,ouaomenosnaqualamorteéinevitável!Coisaespantosa,eàprimeiravistaincompreensível!AbadeJoly[1]

1.Tantonaguerracomonapaz

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Aoinventarodronearmado,tambémsedescobriu,aomesmotempoqueumaarmatemível,outracoisa,massemosaber,quaseporinadvertência:asoluçãotécnicaparaumatensãofundamentalquepesavadesdeoséculoXVIIsobreateoriaeapráticadasoberaniapolítica.É

essarevoluçãosilenciosaqueeugostariade,nestemomento,pôremperspectiva.Logo,nãomaisindagaremqueaspectoodrone,comonovaarma,transformaasformasdaviolênciaarmadaouarelaçãocomoinimigosobsuasdiferentesfacetas,mas,antes,emqueaspectoeletendeamodificararelaçãodoEstadocomseuspróprioscidadãos.Paraisso,éprecisofazerumdesviopelahistóriadafilosofiapolítica.

Seoshomensformamsociedadespolíticas,sesedotamdeumEstado,éantesdetudoparaquesuasvidassejamconservadas,dizia-senasteoriasdocontratosocial.Masosoberanonãodeixadedetersobreelesumdireitodevidaedemorte,emvirtudedoqualpodeexporavidadelesnaguerra.Adificuldadeteóricanascedessadistânciaentreessesdoisprincípios,entreoimperativofundadordeprotegerasvidaseodireitoeminentedefazê-lasmorrer.[2]Emconsequência,nessasteorias,asoberaniapareceafetadaporumaespéciedesíndromedepersonalidadesmúltiplas.Doestadodepazaoestadodeguerra,asrelaçõesqueentretémcomseussúditosmudamporcompleto.

Hádoisesquemasdiferentes.Oprimeirocorresponderiaaoestado,digamos,“normal”dasoberaniaprotetoraousecuritária–oquesepoderiachamardeprotetorado.AautoridadepolíticaaíestáestruturadapeloqueHobbesnomeiaa“mútuarelaçãoentreproteçãoeobediência”.[3]Osoberanomeprotegee,porqueelemeprotege,eletemodireitodemeobrigaraobedecê-lo.OqueSchmittcondensouemumafórmula:“Protegoergoobligo”.[4]Protejo,logoobrigo.Opoderdeproteçãoembasaodireitodecomandar.Arelaçãopolíticaseapresentacomoumatroca:enquantoaproteçãodescedosoberanoparaossúditos,aobediênciasobedossúditosparaosoberano.Éessaduplaflechaquecaracterizaaautoridadepolíticalegítima,emdiferençacomoutrasrelaçõesdepoder,unilaterais,queexigemaobediênciasemfornecer,emcontrapartida,proteção.

MasoqueocorrequandooEstadoentraemguerra?Nessecaso,escreveHobbes:“Todohomeméimpelidopelanatureza,namedidaemqueissolheépossível,aprotegernaguerraaautoridadepelaqualéprotegidoemtempodepaz”.[5]Arelaçãodeproteçãoinverte-se.Napaz,osoberanomeprotege,naguerra,euprotejoosoberano.Fenômenodereversãodarelaçãodeproteção.Nessenovoesquema,asduasflechasseimantam,emsentidoúnico,dossúditosparaosoberano.Sãoagoraosprotegidosquedevemprotegerumprotetorquenãoosprotegemais.Tãologoaguerraexplode,amáximadasoberaniajánãoémais,aomenosnãomaisdiretamente,“protegoergoobligo”,masoinverso:“Obligoergoprotegor”–obrigo,logosouprotegido.

EssainversãodamáximadeSchmittevidenciaoprincípioocultodadominaçãopolítica,queoestadodeguerratraiaoexpô-loàluzdodia.Sobseutextoaparente–“euosprotejo,logodevoserobedecido”–existe,narealidade,outro:“Vocêsdevemmeobedecerparaqueeusejaprotegido”,eissoaindaqueeujánãoosprotejadenada,esobretudodemimmesmo.Émedianteessegesto,odeumareviravoltainterpretativa,quecomeçamtodasasteoriascríticasdospoderesprotetores.

Massenosrestringirmosàsfilosofiasdocontrato,logovemosadificuldadequeelasnostrazem.Sabendoquequandoosoberanoexpõeavidadeseussúditosnaguerranãoosprotegemais,emquebaseaindasepodefundarodeverdeobediênciadeseussúditos?

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Umarespostaconsisteemdizerqueoquesedeve,apesardetudo,proteger,quandoseprotegeoprotetorvencido,éapossibilidademesmadaproteçãoquehaviasidopostuladacomofimorigináriodasociedadepolítica.[6]Instala-se,então,historicamente,umadialéticadosacrifício,segundoaqual,comoescreveRousseau,“Quemdesejaosfins,tambémdesejaosmeios,etaismeiossãoinseparáveisdealgunsriscose,até,dealgumasperdas”.[7]Nãoéqueaproteçãodasvidasimpeçasuaexposição,mas,aocontrário,éelaqueafundamenta,sobamodalidadedeumadívidadeproteçãooudeumadívidavital,contratadadesdeonascimentoepassíveldecobrançaaqualquermomentopelosoberanoprotetorseascircunstânciasoexigem.SuavidanãoéalgoquevocêpoderiasubtrairaoEstadocomoseelafosseanterioraele:suavidaé,aocontrário,produtodoEstado,eelesóaregalouavocêdemodocondicional.[8]

Apesardessasrespostas,aarticulaçãoentresoberaniaprotetoraesoberaniaguerreiracontinuavasendoograndeobstáculodafilosofiapolíticamoderna.Sinaldaradicalidadedessatensão,Hegel,deseulado,serecusavaatorná-ladialética.Pretenderjustificaraexposiçãodasvidasporumimperativodeproteçãodessasmesmasvidaslhepareciaumsofismainsuperáveltantoquantoum“cálculomuitofalso”.Aquestãonãoerasaberseosacrifícioerajustificável–eleera–,massepodiaaindasê-loumavezpostuladooprincípiodeproteçãodasvidascomofundamentoessencialdopoderdeEstado,“poistalgarantianãoéatingidapelosacrifíciodaquiloquesedevegarantir,antespelocontrário”.[9]Acontradição,insuperávelnessestermos,manifestavaaseuvertodaafalsidadedasteoriasdoEstadodesegurança.Atribuindo-lhecomofimúnicoa“segurançadosbensedaspessoas”,enganávamo-nossobreodestinodoEstado,sobreseuprópriosentido.Paraapreendê-lo,erapreciso,aocontrário,iratéasúltimasconsequências:exporasvidasàmortenãoeraumdesviodaracionalidadedoEstado,era,aocontrário,essemomentocontingenteemqueelaserevelavaemtodoseuesplendor,poissuaverdade,longederesidirnasimplesreproduçãodeumavidareduzidaaumconceitoeconômico-biológico,sósemanifestava,talcomoaliberdade,noconfrontocomamorte;nãonaconservaçãodasvidassensíveis,masemsuanegação,emseupossívelsacrifícioaosmaiselevadosfins.

UmEstadoemconformidadecomsuadefiniçãoestiolada,liberal-securitária,concebidocomosimplesagentedesegurançadasociedadecivil,poderiaapelarsemcontradiçãoparaosacrifícioguerreiro?Hegelnosensinaquenão.Dessatese,poderíamostirarumainterpretaçãocompletamentedistintadoqueLuttwakchamoudecontradiçõesdaerapós-heroica:seasdemocraciasliberaisdesenvolvemsíndromes“deaversãopelasperdas”,nãoéporque,comoseacredita,elasatribuemumvalorpordemaiselevadoàvidadeseuscidadãos,mas,aocontrário,porquejánãodispõemsenãodeumconceitomuitopobredoqueéavida,segundooqualpreservaravidafísicaprevaleceriaaqualquerpreço,mesmoemdetrimentodanaturezadosmeiosempregados,sobreasalvaguardadeumavidaético-políticasuperioraesta.

Masarecíprocaésemdúvidaverdadeira:poisseumEstadoliberaldesegurançaencontrasseummeiodeprescindirdosacrifícioguerreiro,elepoderia,adespeitodeHegel,pretenderenfimterrealizadosemcontradiçãoaparenteseuprogramaanunciado.Ora,éissoquepossibilitaatendênciaàdronizaçãodasforçasarmadas.Apreendemosassimtodoseudesafiopolítico:conciliararestriçãoliberal-securitáriadasfinalidadesdasoberaniadeEstadocomamanutençãodesuasprerrogativasguerreiras.Fazeraguerra,massemsacrifício.Exercerasoberaniaguerreirasempercalçosnas

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condiçõespolíticasinternasdasoberaniasecuritário-protetora.Suprimiracontradição.Riscardomapaosegundoesquema,aquele,tãoproblemático,emqueasrelaçõespolíticasoficiaisseinvertiamesetornavamunilateraisdemaneiraflagrantedemais.Exerceropoder,noplanointerno,tantonaguerracomonapaz.

Mashátambémoutracoisaque,emconsequência,seencontratendencialmentedesativada:certosmodosdecríticadopoderdeguerraquehaviamigualmentesurgido,nabasedessacontradiçãofundamental,noperíodomoderno,equehaviamsobrevividoaténós.

Poiscertascorrenteshaviamseapropriadodessatensãopolíticaparadesenvolver,apartirdela,apartirdafalhaqueelaconstituíaequeadeixavaexposta,estratégiasdiscursivasvisandolimitaraautonomiadedecisãodo“reideguerra”.

Emquaislimitespodeosoberanoexerceressedireitodeguerraqueelepossui?Aprimeiragrandeestratégialimitadorasesituavanoterrenodaeconomiapolítica.Apopulaçãoé,antesdemaisnada,umariqueza,eessariquezavivanãodeveserdilapidada.Osdebatessobreaguerravãoaoencontroentãodosdebatessobreoimposto:nãorecolherdemais,proporcionarestritamenteosencargosàsnecessidadespúblicas.[10]Princípiodepoupançanadespesavital.Contraosmausreisque,cedendoamotivosfúteisdeglóriapessoal,sacrificamlevianamente“osangueeostesourosdeseussúditos”,lembra-seque“osanguedopovonãopodeserderramadosenãoparasalvaressemesmopovonasnecessidadesextremas”.[11]Oexercíciolegítimodasoberaniaguerreiradeveselimitaraumestritoprincípiodenecessidade.

Asegundagrandemodalidadecríticapassavapelafilosofiadodireito.Comquedireito,perguntavaKant,oEstadopodeseservirdeseusprópriossúditos,deseusbens,mesmodesuasvidas,parafazeraguerra?[12]

Umaprimeiraresposta–que,dizele,seapresentasemdúvidadeformaconfusaàmentedossoberanos–seriaque,assimcomoumcriadordegalinhasoudeovinos,jáqueestes

são,noquetocaàsuacopiosidade,umprodutohumanoqueelepodeutilizar,consumiredestruir(matar),parecequetambémpodemosafirmar,vistoqueamaioriadeseussúditossãoseupróprioproduto,queasupremaautoridadenoEstado,osoberano,temodireitodeconduzi-losàguerracomoosconduziriaaumacaçadaeabatalhascomoaumaviagemderecreio.[13]

Nessaconcepçãozoopolíticadasoberania,arelaçãodepropriedadecruzaarelaçãodecriação.Odireitodeguerracomodireitopolíticoapareceaícomoumdireitodeproprietário,permitindo,segundoseusatributosclássicos,usareabusardessedireito,mastambémcomoumdireitomaisespecíficodecriador-produtor,emqueossúditosdopodersãoseusprodutos,soboaspecto,dizKant,daabundância:écertoqueocriadornãoéogenitordosanimaisdeseurebanho,maselegaranteascondiçõesdomésticasdeseucrescimentoereprodução.Seocriador-soberanopodeenviá-losaoabatequandobementender,éporquesãosuaobraviva.

Aoarbitráriodeumasoberaniazoopolítica,[14]Kantopõeumprincípiodecidadania:osoberanonãopodedeclararaguerraanãoserqueoscidadãos,quenelavãoarriscaravida,tenhamexpressadoseu“livreassentimento”porumvotorepublicano.[15]Seoscidadãostêmaquiumapalavraadizer,nãoéporseremdecisoresemgeral,masespecificamenteporque,nessadecisão,sua

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vida,aexposiçãodeseuscorposvivosaumriscodemorteoudeferimento,éenvolvida.Háaíalgomuitoimportantequesedelineia:certaformadesubjetividadepolítica,contrapostaàsoberaniaguerreira;oquechamareiacidadaniadosvivosoucidadaniadasvidasaseremexpostas.Éavozdaquelesquetêmumapalavraadizernadecisãoporquecorremoriscodemorrer.Umavezqueasoberaniaguerreiraexpõeavidadeseussúditos,equeestessãovivos-cidadãos,abre-separaelesumdireitodecontrolesobreessepoderquepodeferi-losouacarretarsuamorte.Umavezqueelepodenosdestruir,devemosterumpodersobreele.

Tem-seaíumanovainversãonoesquemadasrelaçõesconstitutivasdasoberaniaguerreira.Emcontextorepublicano,comooprecisaKantarespeitododireitodeguerra,énecessário,defato,“originaressedireitododeverdosoberanocomopovo(enãooinverso)”.[16]Arelaçãodeobrigaçãoinverte-se.Enquanto,emsuaversãoinicial,aqueSchmittemprestavadiretamentedarelaçãodevassalagemuniversalizando-aparadelafazerumaespéciedetranscendentalpolítico,osoberanoprotetordizia:“Euteprotejo,logoeucomando”,ocidadãorepublicanorespondeagora,comKant:“Tu,osoberano,meexpões,logoésobrigadoameobedecer”.

Todopoderprotetorprecisadavulnerabilidadedeseusprotegidos–admitindoapossibilidade,nafaltadela,comotodososchantagistasbemsabem,deeleprópriomantê-laativamente.[17]Mas,àdiferençadodiscursodasoberaniaprotetora,quecomeçaporcolocaropostuladodavulnerabilidadeontológicacomoestadoorigináriodossúditos,parte-seaqui,nessediscursocrítico,daquestãodavulnerabilizaçãopolítica,daexposiçãovitaldossúditospelopoder,parafundamentarapossibilidadedesuacríticaoudesualimitação.Avulnerabilidadequeoprotetoradopostulacomosuacondiçãofundadoravolta-secontraelenoplanopolíticopara,namedidaemqueestaéativamenteexpostapeladestrutividadesoberana,ser-lheopostacomoprincípiolimitador.Anteaspretensõesdemobilizaçãoincondicionaldocorpoedavidadeseussúditos,elevam-seentãoasvozesdacidadaniadosvivos:nãoiremosfazê-la,nãoqueremosmorrerporisso,nãoporessaguerra,nãoporessecombate,quenãoénosso.

Ora,essacidadaniadasvidasaseremexpostasformouumabaseimportante–masnãoaúnica–paraacríticademocráticadopoderdeguerra.NãosónoregistroinstitucionalprevistoporKant,odosufrágio,mastambémcomovetordemobilizaçãoextraparlamentarnosmovimentosantiguerradoséculoXX.Ora,adronizaçãodasforçasarmadas,aomesmotempoquereduzazeroaexposiçãomilitardasvidasnacionais,tendeadesativarquaseporcompletoessaposturacrítica.Noentanto,oerroseriaacreditarque“aaversãopelasperdas”éoúnicomóbilpossível,equeocálculocusto/benefícioéaúnicaracionalidadepertinenteparadesenvolverumavozcríticadiantedaviolênciadeEstado.

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NósnãoqueremosiràguerraMas,porDeus,seforprecisofazê-la,FicaremosaquecidosemcasaDeixando-aserfeitapornossosbravosindianos.Cançãobritânica,1878[1]

2.Militarismodemocrático

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Osoberano,pelofatodenuncaseexporaorisconaguerra,pode“decidirsobreaguerraporcausasinsignificantescomoumaespéciedejogoderecreação”,[2]ou,tambémescreveKant,comoumacaçada.Aguerra-caçanãosedefineapenasporcertotipoderelaçãocomo

inimigo,mastambém,antesdisso,porcertomododedecisãomarcadopelodesengajamentovitaldodecisor.

Emumregimerepublicano,ascoisassãodiferentes:postoque“oconsentimentodoscidadãosérequerido,[…]nadaémaisnaturaldoque,jáquetêmdedecidirparasiprópriossobretodasasafliçõesdaguerra,elesreflitammuitoparainiciarumjogotãograve”.[3]Quandooscustosdadecisãosãoassumidosporaquelequeatoma,seuinteresse,obviamente,olevaàcircunspecção.Nessecaso,hácomoqueumaastúciadarazãopacifista:aorespeitarosprincípiosfundamentaisdodireitopolítico,optandopelarepública,édesencadeadoummecanismodedecisãoquetende,pelojogodeseuscálculospróprios,alimitarorecursoàguerra,até,tendencialmente,acabarcomela.Oprincípiodemoderaçãoque,defora,aeconomiapolíticatentavaimporàsoberaniaguerreiraencontra-seaquimecanicamenteintegradoaseumododefuncionamento.OqueKantchamavarepúblicaequehojechamamosprecipitadamente“democracia”teriaessavirtudedeserporessênciaumaformaderegimequetendeparaapaz.

Demodosignificativo,essetextodeKantfoiredescobertopelaciênciapolíticanorte-americananosanos1990.Extraiu-sedele,adespeitodasliçõessangrentasdoséculoXX(acomeçarpelaPrimeiraGuerraMundial),umateoriaotimistado“pacifismodemocrático”.Traduziu-seoalemãodeKönigsbergparaovocabulárioeconômicomaisfamiliardateoriadaescolharacional:enquantoumditadorpodeexternalizaroscustosdaguerraauferindotodososseusbenefícios,oscidadãosdeumademocraciadevemlevaremconta,emseucálculo,tantoosbenefícioscomooscustos.Jáqueainternalizaçãodoscustoshumanosefiscaisdaguerrapeloscidadãoseleitoresacarreta,indiretamente,adoscustoseleitoraiscorrespondentespelosdirigentespolíticos,asdemocraciastendemaevitarorecursoàforçaarmada,atéseabstercompletamentedela,salvoemcasodeforçamaior.

Oscientistaspolíticosnorte-americanoscontemporâneostinhamasurpresadedescobrir,emumfilósofodoséculoXVIII,oquesoavacomoumaexplicaçãoplausíveldesuaprópriasituaçãopós-Vietnã.Masafinal,podia-sedizer,sendoosEstadosUnidosaencarnaçãomesmadademocraciaoudoqueKantchamavarepública,nãoeratãosurpreendentequesuaprofeciatenhaescolhidoessepaísparaseconcretizarnaTerra.

Masseofilósofoalemãoacreditarapoderencontrarrazõesdeteresperança,algunsviam,aocontrário,osinaldeumasituaçãopreocupante.MadeleineAlbright,irritadanaépocapelashesitaçõesdoPentágonoemdestacarforçasterrestresnaBósnia,perguntou,ácida,aColinPowell:“Paraqueserveessamaravilhosaforçamilitarsenãopodemosnuncanosservirdela?”.[4]

Ademocracia,pensava-se,acabaratolhendooexército.Eraurgenteencontrarumaportadesaída.Felizmente,Kant,emsuahipótese,haviaesquecidoumcenário:oqueocorreriasefosse

encontradoummeiodesubstituirossoldados-cidadãosporoutrosinstrumentosdeguerra?Essaopçãoimprevistaeraapreservaçãoporsubstituição.

Acoisadecertojáhaviasidotentada,mascommeiosaindarudimentares,nofinaldoséculoXIX.

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Hobson,ograndeopositordoimperialismobritânico,explicava,em1902,comoregimesparlamentaresecoloniaisselivravamacustosbaixosdos“dilemasdomilitarismo”.Emvezdesacrificarvidasnacionaisnoaltardoimpério,bastava,paradefendê-lo,ampliaresseimpério,ousimplesmentesufocarasrebeliõesquecomeçavamaabaularojugo,confiarotrabalhosujoaforçasnativas.Transferindoosencargosparaos“bravosindianos”,asclassespopularesbritânicaspodiamescaparaosrigoresdaconscrição.O“novoimperialismo”passava,assim,àsexpensasdas“raçasbaixas”doimpério,umcompromissodeclassedentrodoespaçometropolitano–oquetinhaavantagemadicionaldeafastarquasequalquerriscointernodecontestaçõespopularesdasaventurascoloniais.

Mas,alertavaHobson,essapráticaseacompanhavadeoutrotipoderiscopolítico:“Aindaqueacargadomilitarismosealivieparaapopulaçãodametrópole,osriscosdeguerrasaumentameestastendemasetornarmaisfrequentesebárbarasnamedidaemqueasvidasinglesasestãomenosimplicadas”.[5]Emsuma,comohaviadeclaradoalgunsanosanteslordeSalisbury,écertoqueaÍndiapodiaserviràGrã-Bretanhade“casernainglesanosmaresorientais,deondesepodiaextrairaquantidadedetropasdesejadasemnuncaterdearcarcomseucusto”,masissoeraumapolíticamuitoruim,pois,nessecaso,nadamaiscontinha“atentaçãodeconduzirpequenasguerras,quenãopodesercontroladasenãopelanecessidadedeterquearcarcomocusto”.[6]

Apartirdomomentoemque,tambémparaoscidadãos,oscustosdaguerraseexternalizam,omesmomodeloteóricoqueanunciavaavindadopacifismodemocráticocomeçaapredizeroseucontrário:omilitarismodemocrático.[7]Oscidadãos,porestaremporsuavezimunesaosencargosvitaisdaguerra,seveem,quantoàdecisãodeaprová-laourecusá-la,maisoumenosnamesmaposiçãoqueochefedeguerrafrívolocujainconsequênciaassassinaKantdenunciava.Quantoaseusdirigentes,elestêmfinalmenteasmãoslivres.

Desvencilhadodasrestriçõesligadasàmobilizaçãodecombatenteshumanos,osoberanopodeentãofazerexatamenteoqueKantqueriaevitar:ir“àguerracomoosconduziriaaumacaçadaeabatalhascomoaumaviagemderecreio”.[8]Umavezqueaguerrasetornaumfantasmaepassaaserteleguiada,oscidadãos,porseulado,aonãoarriscarmaisavida,jánãoteriam,nolimite,umapalavraadizer.

Sejamosriscostransferidosparanativosouparamáquinas,asliçõesdeHobsoncontinuamválidas.Adronizaçãodasforçasarmadasaltera,comoqualquerprocedimentodeexternalizaçãodosriscos,ascondiçõesdadecisãoguerreira.Olimiardorecursoàviolênciaarmadabaixadrasticamente,eestatendeaseapresentarcomoumaopçãoautomáticaparaapolíticaexterna.

Demaneiratotalmentecoerente,encontramoshojeasversõesmodernizadasdeumargumentoanti-imperialistaàmaneiradeHobsonemtodaumasériedeautoresqueempreendemacríticadosdronesdeumpontodevistaliberalecomasferramentasdateoriaeconômicadadecisão.Seocomandante-chefedemocráticoforporhipóteseumagenteracional,quaisserãoosefeitosdessaarmalowcostemseucálculo?

Oefeitoprincipaléintroduzirumaspectoimportanteemsuadecisão.Oagentequepodeatuarcomriscosmenoresparasimesmoouparaseucampotendeaadotarumacondutamaisarriscada,naocorrência,paraooutro.Interpretadonoâmbitodasteoriasdaracionalidadeseguradora,odroneaparececomoumfatortípicodoriscomoral[moralhazard],emqueofatodepoderagirsemcorrer

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riscosnemassumircustosconduzadesresponsabilizarosagentesdosefeitosdesuadecisão.[9]

E,maisprecisamente,explica-sequeosdronesoperamumatriplareduçãodoscustostradicionalmenteligadosaousodaforçaarmada:reduçãodoscustospolíticosassociadosàsperdasdevidasnacionais,reduçãodecustoseconômicosassociadosaoarmamentoereduçãodoscustoséticosoureputacionaisassociadosaosefeitossentidosdaviolênciacometida.[10]

Esseúltimopontoémuitoimportante.Paraqueservemosdiscursosdanecroéticadodrone?Suafunçãoéreduziroscustosreputacionaisassociadosaousodessaarma.Daísuafunçãoestratégicanaeconomiapolíticadaguerra.Quantomaisaarmaaparececomo“ética”,maiselasetornasocialmenteaceitável,emaisserápossívelservir-sedela.Essaobservaçãopermiteidentificarduasnovascontradiçõesnessediscurso.

Aprimeiraseriaadanulidadedacomparaçãocondicional:alega-sequeousododroneéjustificadoporfazermenosvítimascolateraisqueoutrasarmasquepoderiamtersidoempregadasemseulugar.Masoqueesseargumentopostula–semoqualacomparaçãonãoseriaválida–équeesses“outrosmeios”teriamsidoutilizadoscomoalternativa,istoé,queaaçãoarmadateriaocorridodequalquermaneira.Ora,éprecisamenteissoquetornaduvidosooriscomoralassociadoaessaarmalowcost.Osofismaaparecequandoseconsideraqueessemeio(odrone)terásupostamentefeitomenosvítimascolateraisdoqueoutrosmeiosque,justamenteporqueteriamfeitomuitomaisvítimas,talvezsimplesmentenãopudessemtersidoutilizadosemseulugardevidoaoscustosreputacionaisproibitivos.Emoutraspalavras,emsituaçãoderiscomoral,aaçãomilitarcorreumgrandeperigodeserconsiderada“necessária”sóporqueelaépossível,epossívelacustosmenores.[11]Ora,nessecaso,énecessariamenteerradodizerqueodronecausoumenosdanoscolaterais:comoresumeHammond,onúmerodevítimascivisnãoé,comefeito,“maisbaixodoquesenãotivessehavidoataquesdedrones,enessecasoosnúmerosdecivismortosporelesseriazero”.[12]

Asegundaobjeçãoéadacumulatividadedosmalesmenores.ComomostrouEyalWeizman:

Aténostermosdeumaeconomiadeperdaseganhos,oconceitodoriscodemalmenortorna-secontraproducente:asmedidasmenosbrutaissãotambémaquelasquepodemsermaisfacilmentenaturalizadas,aceitasetoleradas–eemconsequência,utilizadascommaisfrequência,daídecorrendoqueummalmaiorpodeseralcançadocumulativamente.[13]

Pretenderfazermenosvítimascivisemcadaataquepermite,pelareduçãodoscustosreputacionaisunitários,aumentaraprodução.Emoutraspalavras,aárvoredoataquecirúrgicoescondeaflorestadostúmulos.

Oriscomoralproduzaindaoutroefeitoperverso,destaveznoplanoestritamentemilitar.Comovimos,ousoexclusivodosdrones,umavezquesuasubstituiçãoàstropasemterraéinsatisfatória,acarretaefeitosaltamentecontraproducentesemtermosdeestratégiadecontrainsurgência.Masseissoéverdade,porqueaindaassimsãoutilizados?Oraciocínioeconômicopodeexplicaressaincoerênciaaparente.Asarmaslowcost,indicaCaverley,fazemgrandepressãoparaquesesubstituaotrabalhomilitarporforçasarmadasdegrandeintensidadeemcapital(maisclaramente:substituirhomenspormaterial),eissomesmonocasoemqueacapacidadedesubstituiçãosejafraca(maisclaramente:quandoasmáquinassãomenoseficazesquesoldados),poisaprobabilidadereduzidadevencerécontrabalançadapelafortereduçãodoscustosassociadaàescolhadecombaterportais

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meios.Daíoemprego,emdetrimentodaeficáciamilitar,demeioscertamentesubotimizáveismaspoucocustosos.

Masqualseriaentão,dessepontodevista,aalternativa?AmitaiEtzioni,fervorosodefensordosataquesdedrones,pergunta:“SeráqueaspopulaçõesdosEstadosUnidos,doAfeganistãoedoPaquistãoestariammaisavançadasseosterroristasfossemmortosasangue‘quente’–digamos,esfaqueadospelasForçasEspeciais,comorostorespingadodesangueedemassaencefálica?”.[14]AoqueBenjaminFriedmanresponde:

Narealidade,sim.Oargumentoéquenósfazemosjulgamentosmaisrefletidossobreatosletaisquandoantecipamosmaiscustosparanossastropas.Guerrasgratuitas[…]têmtodasaschancesdeserguerrasestúpidas.Issonãoquerdizerquedeveríamospôrdeliberadamentenossastropasemperigoearriscarapeledelassóparaelevaroníveldodebate.Masdeveríamosnospreocuparcomofatodequeaausênciadeconsequênciasdiscerníveisdenossoladonoslevaabombardearpovosdemaneiraimpensada.Issonãoésociologiapopular,masamaisortodoxateoriadospreços,quenosdizquereduziroscustosaumentaademanda.[15]

Homoeconomicusvaiàguerra.Nocaminho,elerefutaodrone.

Massemudarmosdelentesteóricas,trocandoasdaeconomiaortodoxaporumaanáliseemtermosderelaçõesdeclasses,ofenômenoadquireoutrafisionomia.Oqueestáemjogonatendênciaàsubstituiçãodotrabalhomilitarpelocapitalnãoéapenasumabalodascondiçõesdocálculopolíticodosoberanodemocrático,mastambém,emaisfundamentalmente,maiorautonomizaçãosocialematerialdoaparelhodeEstado.BeverlySilverpropôsumesboçodesseprocessohistórico.

Nomodeloqueprevaleceuatéadécadade1970,explicaela,[16]aindustrializaçãodaguerra,combinadacomaimportâncianuméricaeacentralidadedaclasseoperáriabemcomocomamanutençãodeumaconscriçãoemmassa,acabavadeixandoosdirigentesocidentaisemposiçãodeestreitadependênciasocialparaoexercíciodopodermilitar.

AcrisedoVietnãtrouxeàtonatodososperigospolíticoslatentesassociadosaessarelaçãodedependência.Asclassesdirigentesnorte-americanastiveramaoportunidadededimensionarasfortesdinâmicasderadicalizaçãosocialqueumaguerraimperialistaimpopularpodeengendrar.Tambémpuderamveremaçãoassinergiasexplosivasqueomovimentoantiguerrafoicapazdeativaraoentraremressonânciacomtodososmovimentossociaisqueagitavamasociedadedaquelepaís.

Fazerconcessõesfoiaprimeiraresposta:aomovimentodosdireitoscívicoseàsreivindicaçõessindicais.Masessacrisemultiformeprecipitoutambémumareorientaçãoestratégicadegrandeamplitude.Houveempenhoemacelerarastransformaçõesjáemcursodo“mododeguerra”.[17]Anovaestratégiaaumentouopesodaguerradealtaintensidadeemcapital:rupturadefinitivacomomodelodaconscrição,recursocrescenteaempresasparticularesdesegurança,desenvolvimentodearmasaperfeiçoadasdeguerraadistância.Oantigomodelodo“exércitodecidadãos”definhaemproldeumexércitodemercado.[18]

Achavedessamutaçãoerafundamentalmenteeconômica,poisestáclaroque“quandoacapitalizaçãomilitarcresce,tornandoaconscriçãoeasperdasmenosprováveis,oarmamentoeaguerraevoluemparaexercíciosdemobilizaçãomaisfiscaisquesociais”.[19]Maséóbvioqueessa

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dinâmicadecapitalizaçãonãoeraindependentedeescolhaspolíticas,elasprópriasextremamenteimbricadascomosinteressescruzadosdocomplexomilitar-industrial.NiklasSchörnigeAlexanderLembckemostraramaesserespeitocomoodiscursoético-políticodas“perdaszero”foilevadoadianteepropagadocommuitaeficáciapelosindustriaisdoarmamento.[20]Graçasanossonovodronedecombate,proclamavaumapublicidadeparaoX-45AdaBoeingem2002,“nãohámaisnecessidadedepôrastripulaçõesemriscopararealizaramaisperigosadasmissões”.[21]Asduaspreocupações–paraoindustrial,vendernovasarmas,paraopolítico,preservarseucapitaleleitoral–convergiamesearticulavam,umasobredeterminadaàoutra.

Oefeitoestruturaldessasmutaçõesdomododeguerrafoi,explicaSilver,reduziradependênciamaterialdoaparelhodeEstadoparacomotrabalhomilitar,epormeiodissosuadependênciasocialparacomoscorposqueconstituíamessaforçadetrabalho:“Ocrescentepoderdebarganhadostrabalhadoresedoscidadãosvis-à-visseusEstados–umefeitosecundárioimprevistodasrivalidadesinterimperialistasedaGuerraFriadoséculoXX–estásendoderrubado,juntocommuitasdasvantagenseconômicasesociaisobtidas”.[22]

Nosfatos,contrariamenteaoqueprofessaootimismomecanicistadasteoriasdo“pacifismodemocrático”,oenvolvimentodasvidaspopularesnadecisãodeguerranãoconstituía–muitopelocontrário–garantiasuficienteparaimpedirascarnificinasmilitares.Masseesseinstrumentodecontestaçãotinhahistoricamentefalhadoemevitarascatástrofes,seusefeitosestavamlongedesernulos.Adependênciacorporaldasoberaniaguerreirahaviatambémpermitidoqueasclassespopularesestabelecessem,nessabase,eentreoutrosfatores,relaçõesdeforçasociaisduráveis.OEstadosocialfoiemparteprodutodasguerrasmundiais,opreçopagopelabuchadecanhão,acontrapartidaaoimpostodosangue,arrancadapelaluta.O“custo”aserpostonabalançadasarmasparaos“decisorespolíticos”secalculatambémimplicitamentecombasenessetipodedespesas.

AhistóriadoWelfareStatearticula-seàdoWarfareState.ComoexplicaBarbaraEhrenreich:[23]

Os“Estados-providência”modernos,pormaisimperfeitosquesejam,sãoemgrandeparteprodutodaguerra–istoé,dosesforçosdosgovernosparatranquilizarossoldadosesuasfamílias.NosEstadosUnidos,porexemplo,aGuerraCivillevouàinstituiçãodas“pensõesdeviúvas”queforamosancestraisdoauxíliosocialàsfamíliaseàinfância.[…]Inúmerasgeraçõesmaistarde,em2010,osecretáriodaEducaçãodosEstadosUnidosindicavaque“75%dosjovensamericanosdehoje,comidadeentre17e24anos,sãoincapazesdesealistarnoexércitohoje,sejaporquenãoobtiveramdiplomadeestudossecundários,sejaporquetêmumregistrocriminalouporquesãofisicamenteinaptos”.Quandoumanaçãonãoestámaisemcondiçõesdeengendrarquantidadesuficientedejovensaptosaoserviçomilitar,essanaçãotemduasopções:pode,comopreconizamhojecertonúmerodegeneraisaposentados,reinvestiremseu“capitalhumano”,especialmentenasaúdeeeducaçãodospobres,oupodeseriamentereconsiderarsuaabordagemdaguerra[…].Umaabordagemalternativaconsisteemeliminaroureduzirdrasticamenteadependênciadoexércitodetodaespéciedesereshumanos.[24]

Éessasegundaopçãoqueestáprevalecendo.OdesafiodadronizaçãoéconciliarodepauperamentodobraçosocialdoEstadocomamanutençãodeseubraçoarmado.Aísecompreendeconcretamenteoqueestáimplicadonaspromessasde“perdaszero”edepreservaçãoabsolutadasvidasnacionais…

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Superficialmente,odroneaparececomoasoluçãoparaacontradiçãocentraldodiscursodasoberaniaprotetora.Fazeraguerrasempôremriscoavidadeseusprópriosindivíduos.Conservarsemperder.Proteger,sempre.Mánotícia:apromessadepreservaçãodasvidasnacionaisseconjugadeformanãocontraditóriacomavulnerabilizaçãosocialdeumagrandepartedessasvidas,quesetornammaisprecárias.

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Lutaréumacoisa,masmatarumhomeméoutra.Ematá-lodessejeitoéassassiná-lo[…]Olhesó,nãovoudarumtironumhomemsozinho,assim.Vocêquer?EmilioLussu[1]

3.Aessênciadoscombatentes

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Asarmas,escreviaHegel,“nãosãooutracoisaqueaessênciadospróprioslutadores,aqualsósurgeparaambosdemodorecíproco”.[2]Sedefatoasarmassãoaessênciadoscombatentes,qualéaessênciadaquelesquecombatempormeiododrone?

Eusouminhaarma.Essateseécontraintuitiva.Elavainadireçãocontráriadasconcepçõesinstrumentais:contraaideiadeumaindependênciadanaturezadosujeitoemrelaçãoaosmeiosdesuaação,elaafirmasuaidentidadeessencial.Impossível,nessecaso,pretenderdissociaroqueeusou,porexemplo,segundominhasintençõesoumeusfins,dosmeiosqueempregopararealizá-los.Oqueeusoueticamenteseexpressaesedefinepelanaturezadasarmasquemobilizo.Seaescolhadasarmasimporta,éporquepõeradicalmenteemjogooquesomos–aoriscodeperdernossaalma,ounossaessência.

Masessaessência,acrescentaHegel,sóéexperimentada“demodorecíproco”:paratomarconsciênciadoquesoucomocombatente,manejaraarmanãobasta,éprecisotambémqueeusaibaoquesignificaserobjetodisso.Osujeitoviolentonãopodeapreendersuaprópriaessênciasemexperimentarsuaviolênciaespelhadanaarmadooutro.

Noentanto,comodrone,essapequenamecânicafenomenológicadescarrilacompletamente.Eissoaomenosporduasrazões.Primeiro,porqueessaarmadispensaseu“combatente”decombater:aarmadeumcombatentesemcombateréaessênciadequem?Emseguida,porqueelaprivaosujeitoviolentodequalquerrelaçãoespecularoureflexivacomsuaprópriaviolência:seumsujeitoarmadonãopodeapreendersuaessênciaanãoserdemodorecíproco,oqueocorrequandoaarma,comoéocasoaqui,aboleapossibilidadedessarelação?

Arespostavemempoucaspalavras:“Elesqueremtransformaressescarasemassassinos”–talfoi,segundoSeymourHersh,areaçãosinceradeumaltograduadoanteoanúnciodosplanosqueRumsfeldreservavaparaasforçasarmadasdosEstadosUnidosapóso11deSetembro.[3]

“AumEstadocontraoqualumaguerraestásendotravadaépermitidoousodequaisquermeiosdedefesa”,escreviaKantemDoutrinadodireito,

salvoosquetornariamosseussúditosinaptosaseremcidadãos[…].Meiosdedefesanãopermitidosincluem:ousodosprópriossúditos[…]comoassassinosouenvenenadores(entreosquaisestariamclassificadososchamadosfranco-atiradores,queaguardamescondidosafimdeemboscarosindivíduos).[4]

OprincípioteóricododireitopolíticoqueKantenunciaaquirefere-seàquiloqueumEstadoéproibidodeobrigarseussúditosafazernacondiçãodecidadãos.Ordenaraseussoldadosqueassassinemuminimigo,empregandoarmasquelheretiremaprioriqualquerchancedecombater,issoéoqueoprincípiodecidadaniaproíbe.HáaíaideiasubjacentesegundoaqualoqueumEstadopodeobrigarosindivíduosafazerélimitadoporaquiloqueelessetornariamaoobedecer.Oquesomosobrigadosafazernosobrigaaser.MasparaoEstadohámetamorfosesproibidas.UmEstado,dizKant,nãotemodireitodetransformarseusprópriossúditosemassassinos.Emcombatentes,sim,emassassinos,não.

Maspode-setambémproblematizardeoutramaneiraessetipoderecusa,segundouma

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abordagemfilosóficatotalmentediversa,quenãoseriamaisjurídico-política,nemmesmoexatamente,comoveremos,“ética”–comcertezanão,pelomenos,naacepçãoqueessetermoadquiriunas“éticasaplicadas”contemporâneas.

Ahistóriaémaisoumenossempreamesma:umsoldadomiraumcombatenteinimigo,mas,quandoelepoderiaatirar,algoodetém,amiúdeumdetalhe,umaposição,umgesto,umcomportamento,umaroupa,queofazdecidirnãopuxarogatilho.Oinimigoacendeumcigarro,corredeformaengraçadasegurandoascalças,vagueiasonhadorsobumsoldeprimaveraouésurpreendidonutomandobanho.Então,ocombatentequesepreparavaparaatirarnelerenuncia.Afastandoseufuzil,vira-separaseucolegadetrincheiraediz:“Lutaréumacoisa,masmatarumhomeméoutra.Ematá-lodessejeitoéassassiná-lo[…].Olhesó,nãovoudarumtironumhomemsozinho,assim.Vocêquer?”.[5]

Essescasos,queMichaelWalzerrelatanocapítuloixdeseuGuerrasjustaseinjustas,nãoenvolvem,comoemKant,aformulaçãodeumprincípioético-jurídicoquevirialimitarapriorioqueumEstadopodelegitimamenteimporaseussoldados.Aquestãonãosecolocanemnesseníveldegeneralidade,nemnesseregistro.Aperguntasurgeindividualmente,subjetivamente,paraopróprioindivíduo:vouatirar?

Nessescasos,seossoldadosnãoatiram,explicaWalzer,nãoéporrepugnânciaaoatodemataremgeral.Oqueosdetémnessespequenossinaisderrisóriosqueperceberamnooutroéqueesteslheslembraram,comumanitidezextraordinária,queoalvoéumdosseus,umsemelhante,enãoumsimples“inimigo”.AimagemdosoldadonuéemblemáticadoqueWalzerquerdizeraqui:quandoosoldadotiraseuuniforme,quandosedespojadesuapeleartificialdecombatente,suahumanidadenuavemàtonaatésaturartodoocampodevisão.Aodeixardeatirarnaquelequelheapareceentãocomoumsimplesserhumano,osoldadoreconheceintuitivamenteseudireitoprimordial,seudireitoàvida,essemesmodireitoquefundamentaaimunidadedoscivisparanuncaseremalvosdiretosdaviolênciaarmada.

AfilósofaCoraDiamondcontestaessainterpretação.Nãoéissoqueossoldadosdizememseusrelatos,respondeelaaWalzer.Elesdizemoutracoisa,quenãoquerematirar,quenãotêmvontadedeatirar.Masnuncaoexprimemnalinguagemdeumdireito.Nãoempregamumvocabuláriomoral.Mobilizam,antes,certas“concepçõesdoqueéservircomosoldado”,[6]doquesignifica“serimplicadoemumconflitoarmadocomoutroshomens,umaconcepçãodetudoaquiloqueteriaavercomosentimentodequenãosedeveabalarahumanidadequesecompartilhacomoutroshomens”.[7]Oqueelacontestavigorosamenteéque,pararelataraexperiênciadessessoldados,sejanecessário“introduziràforçanessescasosumreconhecimentodedireitossubjacenteàrepugnânciadeatirarnosoldadonu”.[8]

CreioqueDiamondtenharazão,emboraaabordagemextramoralqueelasepropõeaquiseja,talvez,emcertosentido,muitomaisprofundaeautenticamenteética(istoé,narealidade,emoutrosentido,político)doqueelaindica.Oproblemacomodiscursododireito,explicacommuitapropriedade,équeelenãoraromutilaacompreensãomesmadoqueéimportanteparanós.Nãoatirarnosoldadonunãotemmuitoavercomo-respeito-do-princípio-de-distinção-e-de-proporcionalidade,equereraplicaraíatodaforçaessagradedeleituraéamaneiramaisseguradenadacompreender.Ossoldadostêmodireito,segundoasleisdaguerra,dematarsoldadosinimigos

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fumandoumcigarro,nus,malvestidos,desarmadosemesmotalvezdormindo,eelessabemdisso.Suaabstenção,quandoseproduz,nãoédeordemjurídica;eodireito,assimcomoaéticamilitaraplicadaquelheésubserviente,sãoincapazesdecaptarsuasignificação.

Mas,então,porqueserecusamaatirar?AcreditoquenemWalzernemDiamondprestamsuficientementeatençãonafrasedosoldadoLussuàqual,noentanto,ambossereferem.Seelenãoatira,nãoéobviamenteporquerecusariaaguerraemgeral.Nãoé,emoutraspalavras,aposiçãodeumpacifistaoudeumobjetordeconsciência.Elenãoserecusaamataroutroshomensnocombate.Nãoéesseoproblemaparaele.Pelocontrário,até,poisseeleseabstémdeatirarnessecasoprecisoéjustamenteporquefazquestãodemanteradiferença,parasimesmoeparaseuscolegas,entre“lutar”e“matarumhomemdessejeito”.Essadiferença,queelefazquestãodemanterequeeletemrazãoemfazerquestãodemanter,éaqueseparaaseuverumcombatedosimplesatodematar.Permanecerumcombatenteenãosetornar,aseusprópriosolhos,umassassino.

Aqui,maisdoqueoreconhecimentoabstratodeum“direitodohomem”,oqueconta,paraele,éoqueofatode“fazerisso”implicaria.Seeleofaz,sabequeterádevivercomesseato.Eéissoqueelerecusadeantemão:tornar-sealguémquefezisso.Nãoéumaquestãodedever,masdedevir.Aquestãopertinente,decisiva,nãoé“oquedevofazer?”,mas“oquevoumetornar?”.

Tem-seaí,acredito,nessaquestãododevirdosagentesdaviolênciaarmada,algomuitoimportante:umlugarouumaposiçãosubjetivapossívelparaumacríticadaviolência.

Olimitedesseprimeiroposicionamentoé,obviamente,quearecusaéantesdetudoindividual,autocentrada,parasipróprio.Éoobstáculo“subjetivista”.Osoldadonãoquerelepróprioatirar,mas,emumdostestemunhoscitadosporWalzer,deixaqueseucolegafaçaacoisaqueelerecusaparasi:“Faça-ovocê,sequiser”.Éolimitedeumarecusaestritamenteautocentrada:nãotenhovontadedefazê-lo,masnãovejonenhuminconvenientequeoutroofaça.

Comopassardeumarecusaparasipróprioaumarecusacomum,istoé,política?OprimeirogestonessesentidoincluisemdúvidaaperguntaqueLussufazaseucolega:nãoquerofazerisso,evocê?“Tambémnãovouquerer,não.”Ainterpelaçãointerrogativajáéumapeloàidentificação,àsolidarizaçãopossívelemumarecusacomum.

Aquestãoseria,emseguida,adesabercomoindivíduosquenãoseencontramnaposiçãodeagentesdiretosdaviolênciaarmadapoderiamparticipardessetipoderecusa,muitoemboranãohajaimplicaçãoparasipróprioeseudevirnãoestejaessencialmenteenvolvido.Tudodependedeesse“sipróprio”sergenéricooupessoal.Dequemo“sipróprio”éo“eu”?Queextensãopodetomar?Dizrespeitoapenasamim,quemepreparoparafazerisso,outambémaoutrosalémdemim?

Umaprimeirarespostaconsistiriaemdizerque,nosatoscometidos,sóéenvolvidooeudeseusagentesimediatos,eque,enquantoestessãoemnúmerolimitado,ousimplesmenteenquantonãosãonós,poucoimporta.Issonãonostoca.ÉoquedizhojecomcinismoAmitaiEtzionisobreoperadoresdedrones.Evocandoapossibilidadedequeoquesãoobrigadosafazerprovocanelesumainsensibilizaçãoinquietadora,umaperdadosentidomesmodoquequerdizermatar,Etzioniresponde:“Épossívelqueissotenhaosefeitostemidos.Masestamosfalandoaqui,afinal,desóumapequenacentenadepilotosdedrones;oqueelessentemounãosentemnãotemnenhumefeitodiscernívelsobreanaçãoousobreosdirigentesquedeclaramaguerra”.[9]

Sartre,porsuavez,tinhaumamaneiratotalmentediversadeverascoisas:

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[…]nãoexisteumdenossosatossequerque,criandoohomemquequeremosser,nãocrieaomesmotempoumaimagemdohomemconformejulgamosqueeledevaser.[…]Assim,souresponsávelpormimeportodosecrioumadeterminadaimagemdohomemqueescolhoser;aoescolheramim,estouescolhendoohomem.[10]

TalvezsejaissotambémqueDiamondqueiradizerquandoobservaqueoqueestáemjogonofatodeatirarounãoatirarnosoldadonuéodevirdenossa“humanidadecomum”.Elaacrescenta:“FoiomedodequeessesentidodahumanidadecomumviesseaseratenuadopelaguerradoVietnãquefezdessaguerraumatalfontededivisõesparanossopaís”.[11]Nãosó,portanto,porque“osnossos”morriamnessaguerra,nãosópor“aversãoàsperdas”,mastambém,etalvezsobretudo,porqueodevirdeumahumanidadecomumestavaenvolvidonoacontecimento,eeraissoqueestavaameaçadodeseperder.

UmdosslogansbrandidosnaépocaporalgunsmanifestantescontraaguerradoVietnãproclamava:“Nósnãosomosumanaçãodematadores”.Issosignificavarecusaressaguerraemnomedecertaideiadoqueéramos“nós”ou,emtodocaso,doque“nós”nãopensávamosser,esobretudodaquiloaque“nós”nãoqueríamosserassimilados.Essaposição,quecontestaaviolênciadeEstadoapartirdaessênciadeseusujeitoconstituinte,aquiidentificadoaum“nós”nacionaloupopular,constituisemdúvidaumapotenteposiçãocrítica.

Decertamaneira,encontrou-seumeconosmovimentosantiguerraquesedesenvolveramnosanos2000nosEstadosUnidossoboslogan“notinourname”,nãoemnossonome.Essaposiçãosubjetivaeraadeum“nós”constituinte(“nós,opovo…”)querecusava,emrepúdiopúblicoaseusdirigentes,massegundoumaformulaçãodestaveznãonacionalista,tornar-secúmplicedeumaviolênciaarmadadaqualsupostamentedeveriaserocomanditário:

Nãoéemnossonomequevocêsvãoinvadirpaísesbombardearcivis,matarmaiscriançasahistóriasegueseucursorolandosobreostúmulosdemortossemnomes.[12]

Essesdoisslogans,entretanto,nãosãoosmesmos,e,sobumarfamiliar,adiferençaqueosseparareveste-sedeumaimportânciapolíticadecisiva.PoisoqueestáemjogonacontestaçãodaviolênciadeEstadonãoésóoqueela“nos”faznostornar,mastambémotipode“nós”queelapressupõe.[13]

Oslogan“Nósnãosomosumanaçãodematadores”endossaaidentificaçãofundadorado“nós”comanação,noregistrodapreservaçãodesuaessênciaverdadeiraoudareafirmaçãodesuaidentidadeconstitutiva,forçosamentemaismíticaquereal,ecorreoriscodepronunciaraqui,naverdade,comoumanegação,umatesecontrafactual,contestávelpelasimplesconstataçãodequeoatofundadordanaçãoemquestãopassapelogenocídiodaspopulaçõesameríndias.

“Nãoemnossonome”opera,nessepontodevista,umgestoinverso:emvezdereafirmaraidentidadecomumnósmíticoepredeterminado,constitui,aocontrário,um“nós”queseopõeaum“vocês”porumatodesecessão,eque,noobjetodesuarecusapresente,nãoesquecedepercebera

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continuidadedeumahistóriacujocursojámuito“rolousobreostúmulosdemortossemnomes”.

“EnquantoosBrancossemanifestavamcomfaixasproclamando‘nósnãosomosumanaçãodematadores’,osNegrosnorte-americanos”,escreveumhistoriadordomovimentoantiguerra,

faziamumaconexãoentreosmassacresnoVietnãesuaprópriaexperiência.Em3dejaneirode1966,omilitantedosdireitoscívicosSamuelYoungefoiabatidonoAlabamaquandotentavausarbanheirosreservadosaosBrancos.Emumcomunicado,oSNCC(StudentNon-violentCoordinatingComittee)insistianofatodequeesseassassinatonãoera“diferentedaqueledopovodoVietnã[…]nosdoiscasos,ogovernonorte-americanotemumagrandepartederesponsabilidadenessesmortos”.[14]

Seaguerraerarecusadapelosmovimentosnegrosquenelaviamuma“guerradohomembrancocontrapessoasdecor”,nãofoiapartirdaposiçãodeumautorqueteriasedessolidarizadodeseuato,masapartirdeoutraposição,combasenaqualsereconheciaeserecusavaaquelaviolência,tantolácomoaqui:aposiçãodaquelesquesãoseusalvos.

Essalembrançaseestendecomumaliçãomaisgeralparaopresente:nãoesquecerqueumanovaarma,quandoequipaasforçasnãosómilitares,mastambémpoliciaisdoEstado,também“nos”transforma,pornossavez,emalvospotenciais.

Comosempre,começacomaperiferia,oestrangeiroeasfronteiras.Saiunaimprensa,naprimaverade2012:“Umsistemadevigilânciadeúltimageração,chamadoKestrel,foitestadoesteanoduranteoperaçõesconduzidasnafronteiraentreosEstadosUnidoseoMéxico”.[15]Trata-sedeumbalão-drone,umaespéciedezepelimequipadocomcâmeras,que“nãoserestringeafornecerimagensemtemporealaosoperadores,mastambémgrava,paramemória,todososeventos”.[16]Depoisdeummêsdetestes,apolíciadasfronteirasanunciousuaintençãodesecandidataràaquisiçãodoaparelho.Umdirigentedaempresaconcluiu:“Consideramosqueexisteumimportantemercadodoméstico”.[17]Soube-sequeoCongressonorte-americanoordenourecentementeàFAA(ainstânciaresponsávelpelotráfegoaéreo)queintegreosveículosnãotripuladosaoespaçoaéreonorte-americano.[18]

Outrocomunicadodeimprensa,nomesmoperíodo:ogabinetedoxerifedeMontgomeryCounty,nonortedeHouston,Texas,anunciateradquiridoumdroneShadowHawkesedeclara“abertoàideiademuniroaparelhocomarmasnãoletais,taiscomogaseslacrimogênios,balasdeborrachaearmasdotipoTaser”.[19]ÉoqueMarxchamavacenárioda“guerradesenvolvidaantesdapaz”:[20]certasrelaçõessociaisoueconômicassedesenvolvemprimeironosassuntosmilitares,antesdeseremreintroduzidasegeneralizadasnofuncionamentoordináriodasociedadecivil.Oexércitocomofocodeinvenção,laboratóriodeexperimentaçãoparanovastecnologiaspolíticas.

Umadasquestõesésabersesociedadesou“opiniõespúblicas”,queporenquantofracassaramemconterousodessetipodetecnologiapara“guerras”conduzidasnooutroextremodomundo,conseguirão,talveznumsobressalto,quandoperceberemquetambémelaspodemacabarsendoalvodessesprocedimentos,mobilizar-separabarrarageneralizaçãodedronespoliciais.Poiséprecisoterconsciênciadequeéessefuturoquenoséprometidosenãooimpedirmos:dispositivosde

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videovigilânciamóveisearmadoscomopolíciaaéreadeproximidade.Comoalternativa,restaráapossibilidadedeobterostrajesantidronescriadospeloartistaAdam

Harvey.[21]Fabricadoscomumtecidometalizadoespecial,permitem,esfriandoasilhuetadocorpohumano,torná-lo,ànoite,quaseinvisívelparaascâmerastérmicasdosdrones.

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Somenteodesenvolvimentodesoldadosrobôsqueeliminassem[…]ofatorhumanoporcompletoepermitissemaumsóhomemcomumbotãodecomandodestruiraquemlheaprouvessepoderiamudaressasupremaciafundamentaldopodersobreaviolência.HannahArendt[1]

4.Afábricadosautômatospolíticos

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QuandoAdornoredigeseusMinimamoralia,em1944,osV-1eosV-2,aviões-fogueteslançadospelosnazistassobreLondres,constituemumdosobjetosdesuasreflexões.[2]Emumlongofragmentointitulado“longedostiros”,eleescreve:

SeafilosofiadahistóriadeHegeltivesseincluídoanossaépoca,asbombas-robôsdeHitlerteriamencontradonelaumlugar[…]entreosfatosempíricosselecionadosnosquaisseexprimeimediataesimbolicamenteoestadoatingidopeloespíritodomundo.Comooprópriofascismo,osrobôssãolançadosaomesmotempoedesprovidosdesubjetividade.Comoele,aliamamaisextremaperfeiçãotécnicaàcegueiratotal.Comoele,despertamumterrormortíferoesãointeiramentevãos.–“Euvioespíritodomundo”,nãoacavalo,massobreasasesemcabeça,eistoéaomesmotempoumarefutaçãodafilosofiadahistóriadeHegel.[3]

UmV-1antesdolançamento(1944).[4]

RefutaçãodeHegel,poisahistóriaficouacéfalaeomundo,semespírito.Amecânicapulverizouateleologia.Osujeitodesapareceu.Jánãohápilotonoavião,eaarmajánãoéaessênciadeninguém.

Mas,algumaslinhasadiante,Adornotrazumanuançadialéticadecisivaaessaprimeiraafirmação.Depoisdesublinharque,nessaviolênciaarmadasemcombate,oinimigopassaaestarconfinadono“papeldepacienteedecadáver”,sobreoqualamorteéaplicadaemformade“medidastécnico-administrativas”,acrescenta:“Nissoháalgodesatânico,ofatodeque,decertomodo,agoraéprecisomaisiniciativadoquenaguerraàmaneiraantiga,dequeaosujeitoparececustartodasuaenergialevaracaboaausênciadesubjetividade”.[5]

Oqueseperfilanohorizonteéopesadelodequeasarmassetornemelasprópriasosúnicosagentesdiscerníveisdaviolênciaqueconduzem.Masantesdeseprecipitarmaisumavezparaproclamaramortedosujeito,éprecisomeditarsobreessareflexãoqueosaviões-fantasmaslançadosporumTerceiroReichcrepuscularinspiraramaAdorno:aosujeitoparececustartodasuaenergialevaracaboaausênciadesubjetividade.

Oerropolíticoseria,narealidade,acreditarqueaautomatizaçãoéelaprópriaautomática.

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Organizararenúnciaàsubjetividadepolíticatorna-sehojeatarefaprincipaldessasubjetividade.Nessemododedominação,queprocedepelaconversãodesuasordensemprogramasedeseusagentesemautômatos,opoder,quejáeradistante,passaaserinapreensível.

Ondeestáosujeitodopoder?Aquestãotornou-sehojeobcecantenocontextodoneoliberalismoedapós-modernidade.AfrasedeAdornodáumaboaindicaçãoparaencontrá-lo:essesujeitoestáprecisamenteemqualquerlugaremqueeleseempenheativamenteparasefazeresquecer.Éinclusiveessaintensaatividadedeapagamentodesimesmoqueoanunciainevitavelmente.Todaumaagitaçãosubjetiva,comesforçoseinvestimentosenormes,paraconfundiraspistas,apagarosrastros,escamotearqualquersujeitodiscerníveldaação,comofimdetravestiressaaçãoempurofuncionamento,umaespéciedefenômenonatural,dotadodeumtipodenecessidadesimilar,sóquedirigidoporadministradoresdesistemasquevezporoutracorrigemseusbugs,efetuamatualizaçõeseregulamosacessos.

NosEstadosUnidos,oDepartamentodeDefesaprevêhoje“reduzirgradualmenteapartedocontroleedadecisãohumana”nofuncionamentodosdrones.[6]Se,numprimeiromomento,trata-sedapassagemparauma“autonomiasupervisionada”,tem-seemvistaalongoprazoaautonomiatotal.Osagenteshumanosnãoestariammais,então,nemdentro,nemsobre,mascompletamenteforadocircuito.Éaperspectivade“robôscapazesdeexerceraforçaletalsemcontrolenemintervençãohumana”.[7]

OroboticistaRonaldArkinéhojeumdosmaisativospromotoresdessa“robóticaletalautônoma”.[8]Seuprincipalargumentoé,maisumavez,deordem“ética”:osguerreiros-robôs“vãosetornarpotencialmentecapazesdeagirnocampodebatalhadeformamaiséticaqueossoldadoshumanos”.[9]Melhor:vãopoder“secomportardeformamaishumanaqueossereshumanosnessascircunstânciasdifíceis”.[10]

“Minhaesperançapessoal”,confiaeleparajustificarsuaspesquisas,“équenãotenhamosnuncanecessidadedisso,nemhojenemamanhã.Masatendênciaquelevaohomemàguerrapareceesmagadoraeinevitável.”Infelizmente,senãopudermosevitaraguerra,procuremosaomenos,mediantenossascompetênciastécnicas,torná-lamaisética.Pois,comefeito,seconseguíssemos,“teríamosrealizadoumafaçanhahumanitáriasignificativa”.[11]Éóbvio…Mascomoosguerreiros-robôspoderiam“sermaishumanosnocampodebatalhaqueoshumanos”?[12]Portodaumasériederazões,emespecialgraçasasua“precisão”,massobretudoporquepode-seprogramá-lospararespeitaralei.

Essesrobôsseriammunidosdoqueelechamaum“governadormoral”,umaespéciede“‘consciência’artificial”oudeSuper-Eumaquínico.[13]Quandoumaaçãoletalépropostaporoutroprograma,essesoftwarededeliberaçãoasubmeteriaàprovadasleisdaguerratraduzidasemlógicadeôntica“paragarantirqueelaconstituaumaaçãoeticamentepermissível”.[14]

Osrobôs,isentosdeemoçõesedepaixõesparaperturbarseujulgamento,aplicariamessasregrastextualmente,comomatadoresdesangue-frio.Eéporquenão“mostramnemmedo,nemraiva,nemfrustração,nemvingança”,[15]porque,emoutraspalavras,sãoprivadosdessaspropriedadeshumanasessenciaisquechamamosafetos,quesesupõequeessasmáquinaspossamsermaishumanasqueoshumanos,istoé,maiséticas,ereciprocamente.Pararealizarahumanidadeautêntica,épreciso

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sedesvencilhardossereshumanos.Liquidá-los.Masessediscursoparadoxalsóéabsurdonaaparência.Paraexplicá-lo,éprecisoespecificarque

elejogacomosdiferentessentidosdotermo“humanidade”,umapalavraquedesignaclassicamenteaomenosduascoisas:deumlado,oquesãoossereshumanos,suaessência,edeoutro,umanormadeconduta,omododeagir“humanamente”.Sentidoontológicoesentidoaxiológico.Aprópriapossibilidadedohumanismoresidenessadiferençasemântica,eleque,deformabizarra,exortaoshumanosaseremhumanos,ouseja,narealidade,aadotarcertasformasdecondutamoraisemconformidadecomseuideal.Mas,enquantoogestoconstitutivodohumanismofilosóficoconsisteemligaressesdoissentidosumaooutro,opós-humanismoroboéticosalientaessadiscordânciaatéoperarumdesligamentoreal.Seoshumanospodemàsvezesmostrar-seinumanos,porqueosnãohumanosnãopoderiamsefazermaishumanosqueeles,istoé,seadequarmelhoraosprincípiosnormativosquedefinemomododeseconduzir“humanamente”?Ahumanidadeaxiológicapoderia,então,tornar-seapropriedadedeagentesnãohumanos,desdequeesses“agentesmoraisartificiais”sejamprogramadossegundoasboasregras.Atéaí,tudovai(quase)bem.Masoproblemaemergeperigosamentequandoaaçãoconsideradaéohomicídio.Osdefensoresdaroboéticaletaldizememsubstância:poucoimportaquesejammáquinasquedecidemmatarsereshumanos.Desdequeosmatemhumanamente,istoé,deacordocomosprincípiosdodireitointernacionalhumanitárioqueregeousodaforçaarmada,nãohánenhumproblema.Mas,ondeestariaoproblemadefato?Dopontodevistadafilosofiadodireito,pode-sedeprontodetectardoisdelesmuitoimportantes–narealidade,redibitórios.

Emprimeirolugar:dotaragentesmaquínicoscomodireitodematarqueoscombatentesnaguerradesfrutamentresiequivaleriaacolocarohomicídionomesmoplanoqueadestruiçãodeumapuracoisamaterial,oquedecertoconstituiriaumanegaçãoradicaldadignidadehumana.Odireito,constatando-o,poderiaentãomobilizar,paraaproibiçãodetaisarmas,umterceirosentidodanoçãodehumanidade,entendidadestavezcomogênerohumanoqueéobjetodesuaproteçãosuprema.

Emsegundolugar:odireitoatualdosconflitosarmados,aofocarnousodasarmas,[16]postulaqueépossíveloperarumadistinçãorealentreaarma,concebidacomoumacoisa,eocombatente,concebidocomoumapessoa,queautilizaequetemaresponsabilidadesobreesseuso.Ora,orobôletalautônomofazessaontologiaimplícitavoarpelosares.Éocasoimprevistodeumacoisaquefazusodelaprópria.Armaecombatente,instrumentoeagente,coisaepessoacomeçamcuriosamenteasefundiremumaúnicaentidadesemestatuto.

Esseproblemaseexpressariadeinícioporumacrisedascategoriasjurídicas:certascoisaspodemserconsideradaspessoas?Massetraduziriatambém,deformapuramentepragmática,porumacriseradicalqueafetariaaaplicabilidadedodireito.Tudogirariaemtornodaquestãodaresponsabilidade,e,pormeiodela,daprópriapossibilidadedeumajustiçaretributivaassociadaaodireitodaguerra.

Umrobôcometeumcrimedeguerra.Queméresponsável?Ogeneralqueoenviou?OEstadoqueéseuproprietário?Oindustrialqueoproduziu?Osanalistasdesistemasqueoprogramaram?Háumgranderiscodequetodoessepequenomundopasseajogararesponsabilidadedeumparaooutro.Ochefemilitarpoderásemprealegarquenãodeuordemaorobôeque,detodamaneira,nãoocontrolavamais.OEstadoproprietáriodamáquina,emsuaqualidadejurídicade“guardiãoda

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coisa”,veriasemdúvidasuaresponsabilidadeenvolvida,maspoderia,alegandoqueodanoocasionadovemdeumvíciodefabricação,voltar-secontraoindustrial,que,porsuavez,poderiatentardescontarnosprogramadores,acusando-osderiscoscausadosaoutrem.Restariaoprópriorobô:nessaúltimahipótese,aúnicacoisaafazerseriaprenderamáquina,vesti-lacomroupasdegenteparaseuprocessoeexecutá-laempraçapública,talcomoocorreucomumaporcacriminosacondenadaem1386porinfanticídioemumvilarejodoCalvados.[17]Oque,semdúvida,fariaquasetantosentidoeteriaquasetantaeficáciaquantobateremummóvelnoqualsetropeçou,ouinsultá-lo,paraqueelenãotenhavontadederecomeçar.

Emsuma,teríamosaítodoumcoletivoderesponsáveisirresponsáveisaoqualseriamuitodifícilatribuirapaternidadedeumcrime.Comonãohaveriamaisninguémapertandoobotão,seriaprecisoempenhar-seemencontrar,nosmeandrosdaslinhasdecódigo–jurídico,bemcomoinformático–apistadeumsujeitoemfuga.

Oparadoxoéque,emrigor,comtalautonomizaçãodadecisãoletal,oúnicoagentehumanodiretamenteidentificávelcomosendoacausaeficientedamorteseriaaprópriavítima,queterátidoainfelicidade,pelosmovimentosinapropriadosdeseucorpo,comojáéocasocomasminasantipessoais,dedetonarsozinhaomecanismoautomáticodesuaprópriaeliminação.

Alémdenãohavermaisatribuiçãosimplesderesponsabilidade,esta,aosedifratarnessaredeacéfaladeagentesmúltiplos,tendetambémasediluiremsuaqualificação,passandodointencionalaonãointencional,docrimedeguerraaoacidentemilitar-industrial.Umpoucocomonocasodos“títulos-lixo”sabiamenteelaboradospelosistemafinanceiro,ficamuitodifícilsaberqueméquemouquemfezoquê.Éumdispositivotípicodefábricadairresponsabilidade.

Masparaquesepreocuparemencontrareventuaisculpados,replicamemuníssonoosroboeticistas,jáqueocrimeterásetornadoimpossível?Pormaisestranhaquepareçaessaobjeção,éprecisofazerumaavaliaçãocompletadoprojetoqueelamanifesta.Oqueestáemjogoéomododeimplementaçãodanormajurídica.Parafazerrespeitaraslimitaçõesdevelocidadedocódigorodoviário,podem-seestabelecermultasecolocarradaresouentãoinstalarlimitadoresautomáticosdevelocidadeemcadaveículo.Essessãodoismodosmuitodiferentesdeinstanciaçãodanorma:texto-sançãooucontroletécnicointegrado.Ouenunciarodireitoesancionaraposteriori,ou“incorporarasnormaséticaselegaisaodesigndasprópriasarmas”.[18]Masaanalogiaacabaaí,poisumavezqueorobômatadornãotemmaisnenhumcondutorabordo,nãohaverámaisnenhumresponsáveldiretoaquestionarcasoalgoocorra.

Ora,issoosdefensoresdoswarbots,robôsdeguerra,sabemmuitobem.Mas,entrejustiçapenalinternacionalerobôsmatadoreséticos,elesfizeramsuaescolha.Pois,atenção,acrescentam,umaexcessiva“devoçãoàresponsabilidadecriminalindividualcomomecanismopresuntivoderesponsabilidadecorreoriscodebloquearodesenvolvimentodemáquinasquepoderiam,emcasodeêxito,reduzirosdanosefetivosparaoscivis”.[19]Sealeiprometetornar-semáquina,ajustiçahumanapodedesaparecer.

Maséprecisoacrescentaroseguinte:pretender,comoelesfazem,poderintegraralei“aodesigndasprópriasarmas”éumabusogrosseirodelinguagem.Tudooqueosroboeticistaspodemfazeréintegrarcertasregrasaodesigndecertosprogramas,que,evidentemente,podemsempreserdesinstaladosoureprogramados.Sevocêécapazdefazerissoemseucomputador,estejacertode

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quequalquerexércitodomundotambémé.Aoperaçãodiscursivaconsisteaqui,narealidade,emjustificarodesenvolvimentodeumhardwarealtamenteperigosopelaperspectivacontingentedeumsoftwarevirtuosooferecidocomoopção.Parabéns:aocompraroautomóvel(oumelhor,otanque-robô)vocêganhouummagníficochaveiro.

Éumprocedimentotípicodo“cavalodeTroia”:fazeraceitar,emnomedaperspectivaeventualderobôsmatadoreséticos,odesenvolvimentodosrobôsmatadoressimplesmente,cujosdefensoressabembem,aliás,que“aopinião”aindaosrejeitaemmassahoje.Aoapresentaroprocessodeautomatizaçãocomosendoelepróprioautomático,inevitável,eaoseproporgenerosamentemoderardeantemãoseusexcessos,Arkineseuscomparsasescondemofatodequesão,narealidade,osagentesbastanteativosdessemesmoprocesso,[20]queelesopromovemcomeficáciafornecendoasjustificaçõesabsolutamentenecessáriasparaquepossaprosperar.Quantomaisseespalhaalendadorobôético,maiscedemasbarreirasmoraisparaaimplementaçãodorobômatador.Quaseesqueceríamosqueamaneiramaisseguradeimpossibilitaroscrimespotenciaisdosciborguesdofuturoconsisteaindaemmatá-losnoovo,desdejá–enquantoaindaétempo.[21]

LosAngeles,2029.Acimadasruínasdacidade,nanoiteazul-petróleo,océuérasgadoporraiosfluorescentes.Nochão,umcombatentehumanocaiatingidopeloraiolaserdeumaviãorobô.Aslagartasdeumtanquefantasmarolamsobreumamontanhadecrânioshumanos.Éafamosacenada“guerradasmáquinasparaexterminarahumanidade”queabreoExterminadordofuturodeJamesCameron,umadasprimeirasfugazesapariçõescinematográficasdeumdrone,aindacomoficçãocientífica,em1984.

Asutopiaseasdistopiasdorobôsãoestruturadaspelomesmoesquemafundamental,simplista,dedoistermos,homem/máquina:amáquinacomoaextensãoservildeumsujeitohumanosoberano,e,aoinverso,amáquina,ganhandoemautonomia,começandoaescaparaocontroledeseusantigossenhoresparavoltar-secontraeles.EsseéoroteirodeExterminadordofuturo.

Nessetipodenarrativa,depoisdedescreveraposiçãoinicialdopilotooudooperadorremotocomoadeumagentetodo-poderoso,anuncia-sesuadecadênciapróxima.“Ohomem”logovaiperderseulugarcentral.Osdronesvãosetornarrobôs.Aliás,essapassagemaoautomatismointegral,acrescenta-se,estáinscritanofuturonecessáriododispositivo:“Alongoprazo,qualquerpassorumoàtelepresençaéumpassorumoaosrobôs”,profetizavaMarvinMinskyem1980.[22]Aomodeloinicialcentradonosujeitosegue-seamorteanunciadadosujeito,queperderiaassimoque,acredita-se,eledetinhadeformaplena:ocontrole.Aíestáoparadoxodessemodelo:radicalmenteantropocêntricoemseupontodepartida,éafetadoporummovimentotendencialqueseconcluicomaexclusãodosujeitohumano.Masessasduasvisõessãoerrôneas.

WalterBenjamin,aoanalisaremsuaépocaaposiçãodopilotodebombardeiro,ofereciaumaabordagemmaisrealistadoprimeiromomento:

Nopilotodeumúnicoaviãocarregadocombombasdegásconcentram-setodosospoderes–privarocidadãodaluz,doaredavida–quenapazestãodivididosentremilharesdechefesdeescritório.Omodestolançadordebombas,nasolidãodasalturas,sozinhoconsigoecomseuDeus,temumaprocuraçãodoseusuperior,oEstado,gravementeenfermo.[23]

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Paracompreenderquetipodeagenteoudesujeitoéopiloto,éprecisopensá-lonarelaçãoqueelemantémcomoutraespéciedemáquina–nãooavião,masoaparelhodeEstado,cujospodereseleconcentramomentaneamente,emboraemlugarsubordinado.Aindaquedispondotalvezdeumafracamargemdemanobrapessoal,sónaaparênciaopilotoéesseindivíduosolitárioetodo-poderosoqueasimagensdo“homemsenhordamáquina”postulam.Narealidade,elejánãoéquasenadaalémdoavatarfetichizadodamáquinaburocráticadoEstadomoderno,suaconcreçãoprovisóriaemumponto,emumamãoouemumdedo.OqueadronizaçãodoaviãodecombatesepropõerealizartecnicamenteéapenassuprimiroudeslocaresseeloimperfeitoqueaindaligavaoaparelhodeEstadoasuasmáquinasdeguerra.

EmWiredforWar,PeterW.Singerrelataaseguintecena:umgeneralquatroestrelasquepassaváriashorasolhandodeseuescritórioasimagenstransmitidasporumdronePredator,antesdedesligarotelefoneparadarpessoalmenteaordemdeatirar,chegandoatéaespecificaraopilotootipodebombaaserutilizadoparaoataque.Exemplodeumaconfusãocompletadosníveisdecomando,emqueoestrategistacomeçaaseimiscuir,atéomaisbaixonível,nasescolhastáticas.[24]Singeralarma-se,emnomedaeficáciamilitar,comessetipodeconfusãodospapéis.Emtodocaso,sualiçãoéclara:enquantoosteóricosda“guerraemrede”pensavamqueessasnovastecnologiaspermitiriamumacertadescentralizaçãodocomando,“nosfatos,aexperiênciadossistemassempilotoprovaatéaquiocontrário”.[25]

Emvezde“ohomem”emgeralperderocontroleemprolda“máquina”,aquisãoosoperadoressubalternosqueperdem(maisumavez)emautonomiaemproldosescalõessuperioresdahierarquia.Umarobotizaçãointegralreforçariamaisaindaessatendênciaàcentralizaçãodadecisão,aindaquesobumamodalidadediferente,maisdiscreta,decertomaiseconômica,masnãomenoshipertrofiada.

ComoexplicaoroboticistaNoelSharkey(opositorconvictododesenvolvimentodetaisprogramas),osoftwarededeliberaçãodeum“robôético”devenecessariamente,alémdasregrasqueintegra,ecomotodoprograma,receberespecificações.[26]Tradução:oimperativode“sóvisaraalvoslegítimos”emlinhasdecódigoéumaoperaçãovaziaenquantonãoseespecificaoqueavariáveltargetacoberta.Domesmomodo,pode-sesempretentarcodificarumaexpressãoformalizadadoprincípiodeproporcionalidade(boasorte!),[27]masseráprecisosempreespecificaraoprogramamedianteumvalor,diretoouindireto,oqueconstituiolimiardeproporçãoaceitávelentrevidascivismortasevantagensmilitaresesperadas.Emsuma,osparâmetrosdadecisãodevemserespecificados,eessaespecificaçãonãoéoperadapelopróprioprograma.Issorequerumaescolhaprévia,umadecisãosobreosparâmetrosdedecisão–umadecisãosobreadecisão.

Acentralizaçãodocomando–mesmoqueestepassasseaoperarmaisporespecificaçõesprogramáticasdoqueporordens–adquireentãoproporçõesdesmesuradas,poisdecidirsobreovalordeumaúnicavariávelpermite,emumaúnicadecisãosobreadecisão,fixandoosparâmetrosdetodasasdecisõesautomáticasporviremumasequênciadada,decidiremumaúnicavezsobreodesenvolvimentodeumamiríadeindefinidadeatosfuturos.Fixarovalordeumaespecificaçãodoprogramaequivale,demodomuitomaiseficazmentecentralizadoqueumconjuntodeordenssingulares,aassinarumasentençademortereplicávelaoinfinito.

Umavezqueosexércitosmodernosjáfazemusodesoftwaresdeauxílioàdecisãoquesupostamentedevemgarantirsuamelhoradequaçãoàsexigênciasdodireitodaguerra–epormeio

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dissotorná-losmais“éticos”–,épossívelterumapequenaideiadamaneiracomo,naprática,podemserfixadososvalorespertinentes:

NosprimeirosdiasdainvasãodoIraque,ossoftwaresforampostosparafuncionar.Chamaramaissoprograma“insetoesmagado”[bug-splat].Esseprogramainformáticoestimavaonúmerodecivisqueseriammortosemumataqueaéreodeterminado.OsresultadosapresentadosaogeneralTommyFranksindicavamque22dosbombardeiosaéreosprevistosiamacarretaroqueeleshaviamdefinidocomosendoumaaltataxadeinsetosesmagados–maisdetrintacivismortosporataque.Franksdiz:“Emfrente,rapazes,estamosfazendotodosos22”.[28]

Aatrocidademilitarnãoéaqui,contrariamenteaoquepostulaArkin,oresultadodedesviosdecondutasubalternos,desoldadosperturbadospelanévoadaguerraoulevadospelapaixãodocombate.Essaatrocidadenãotemnadadeespetacularemseupontodeorigem.Elaconsiste,muitosimplesmente,emfixarolimiardeumavariávelpertinente.Qualseráovalorcorrespondenteàvariávelminimumcarnage[carnificinamínima]?Nãosesabe.Maisdetrintacivismortos?Ok.Masessapequeninadecisãosobreadecisão,efetuadacomumapalavraoucomumatecladigitada,temefeitosmultiplicados,muitoconcretos–concretosdemais.

Noentanto,ébastantesurpreendentequeissoaindapossasurpreender:queocrimemaissubstancialnãoresidaemumatransgressãoabertadalei,masnasdobrasdesuaaplicaçãosoberana.Aatrocidademilitarordináriaestádentrodeseudireito,tranquilamentealojadanelecomoemumasólidacarapaçadepalavras.Salvonecessidadeimperiosa,elanãosaidaí.Amaiorpartedotempo,nãoprecisasair.Asformascontemporâneasdeatrocidadesãomaciçamentelegalistas.Funcionammaisnoestadoderegraquenoestadodeexceção.Seacabamchegandoaoequivalentedeumaexceção,émenospelasuspensãodaleidoqueporsuaespecificação,precisando-asegundoseusinteressesatéqueelacapitulesemmuitaresistência.Essaatrocidadeéformalista,fria,tecnicamenteracionaleapoiadaemcálculos,nessemesmogênerodecálculosquesupostamentedevemtornarbastanteéticososrobôsmatadoresdofuturo.

Nomomentoemqueainsurreiçãodejulhode1830estavaemseuaugeeficavacadavezmaisevidentequeopovodeParisconseguiriaporfimderrubaroregime,conta-sequeoduquedeAngoulêmedirigiu-senessestermosaseuajudantedeordens:

–Mandedestruirasbarricadas.–Monsenhor,háinsurgentesdentroqueseopõem.–Mandeaguardanacionalatirarnosinsurgentes.–Monsenhor,aguardanacionalserecusaaatirar.–Elaserecusa!Éumarebelião;mandeatropaatirarnaguardanacional.–Masatropaserecusaaatirarnaguardanacional.–Entãomandeatirarnatropa.[29]

Maséclaroquenãorestavamaisninguémparafazê-lo…Em2003,quandoaempresaNorthropGrummanapresentavaamilitaresoprotótipodeseudrone

decombateX-47A,umoficialteveessareaçãoespontânea:“Ah,pelomenosesseaviãonãovaimecontradizer”.[30]

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Aocontráriodoquesugeremosroteirosdeficçãocientífica,operigonãoéqueosrobôscomecemadesobedecer;éjustooinverso:quenuncadesobedeçam.

Pois,nalistadasimperfeiçõeshumanasqueosrobôsmilitaresdispensariam,Arkinesquecedemencionarumadelas,que,noentanto,édecisiva:acapacidadedeinsubmissão.[31]Écertoqueosrobôspodemapresentardefeito[bugs]oudisfunção,masnãoserebelam.Arobotizaçãodosoldado,indevidamenteapresentadacomoganhoético(maséfatoqueredefinira“ética”pelacapacidadedeseadequarmecanicamentearegraséfazerdelaosinônimodadisciplinaoudadocilidademaisdescerebrada),constitui,narealidade,amaisradicaldassoluçõesaovelhoproblemadaindisciplinanosexércitos.Acabarcomaprópriapossibilidadedadesobediência.Tornarainsubmissãoimpossível.Comoriscodesuprimirtambém,aomesmotempoqueapossiblidadedeumdesviodeconduta,oprincipalmotordalimitaçãoinfralegaldaviolênciaarmada–aconsciênciacríticadeseusagentes.[32]

Oproblemanãoésaberquem,o“homem”oua“máquina”,temocontrole.Essaéumaformulaçãoinsuficientedoproblema.Odesafiorealéodaautonomizaçãomaterialepolíticadesse“bandodehomensarmados”queéantesdetudooaparelhodeEstado.

Asteoriasàsvezesseresumemeficazmenteemumaimagemouumdesenho.OfrontispíciodoLeviatãmostraumgigantecujotorsoseergueacimadopaís.Reconhecemososoberanocomseusatributosclássicos:espada,coroa,cetro.Masésuaroupaquechamaaatenção.Acotademalhasqueoveste,seuprópriocorpo,étecidadepequenoscorposdehomens.OEstadoéumartefato,umamáquina–a“máquinadasmáquinas”–,masaspeçasqueoconstituemsãooscorposvivosdeseussúditos.

FrontispíciodoLeviatã(1651),detalhe.

Oenigmadasoberania,desuaconstituição,mastambémdesuapossíveldissolução,resolve-sepelaquestãodeseumaterial:dequeéfeitooEstado?

OqueHobbesfez,LaBoétiequisdesfazer,epelomesmoexpediente:pois,enfim,essesenhorquevosoprime,“porquemidestãovalorosamenteàguerra,paraagrandezadequemnãovosrecusaisaapresentarvossaspessoasàmorte[…].Deondetiroutantosolhoscomosquaisvosespia,senãooscolocaiaserviçodele?Comotemtantasmãosparagolpear-vos,senãoastomadevós?”.[33]Aíresidiaacontradiçãomaterialfundamental:seopodersótomacorpopormeiodenossoscorpos,

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podemosentãosemprefurtá-losaele.Étambémporessarazão,explicavaArendt,porcausadessadependênciacorporalfundamental,

queopoderdeEstado–inclusivenosregimesmaisautoritários–deve,apesardetudo,serpoderenãopuraviolência.[34]Nãohápodersemcorpo.Mas,comoelatambémimaginava,emcertosentido,arecíprocaéverdadeira:semmobilizaçãodoscorpos,nãohámaispoder.

Outrostempos,outraimagem.Umarevistacientíficapopularanunciava,em1924,umanovainvenção:oautômatopolicialradiocomandado.Orobocopdosanosloucosseriamunidodeolhos-faróis,pésdelagartadetanquee,paraservirdepunhos,matracas-flagelosrotativosinspiradosnasarmasdaIdadeMédia.Nobaixoventre,umpequenopênismetálicolhepermitiriaborrifargáslacrimogênioparadispersarcortejosdemanifestantes.Comoânus,umcanodeescapamento.Esserobôridículo,queurinagáslacrimogênioepeidafumaçasnegrasagredindoamultidão,ilustraàperfeiçãooidealdeumEstado-drone.

Nadiferençaentreessasduasvinhetasexpressa-seaquestãopolíticadadronizaçãoedarobotizaçãodosbraçosarmadosdoEstado.Osonhoéconstruirumaforçasemcorpo,umcorpopolíticosemórgãoshumanos–emqueosantigoscorposarregimentadosdossujeitosteriamsidosubstituídosporinstrumentosmecânicosqueseriam,emrigor,seusúnicosagentes.

“Ocontroleadistânciaporrádiotornapossívelotiramecânico”(1924).[35]

OaparelhodeEstado,tornando-seassimdefatoumaparelho,disporiafinalmentedeumcorpocorrespondenteasuaessência:ocorpofriodeummonstrofrio.Elerealizariaenfim,tecnicamente,suatendênciafundamental:adeum“poder,nascidodasociedade,maspostoacimadelase

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distanciandocadavezmais”,comoescreviaEngels.[36]Noentanto,alcançadoesseestágio,épossíveltambémqueseudestinocadavezmaisevidentesejaserpostodeladocomoumavelhapeçadeferragem.

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EPÍLOGO:Daguerra,adistância

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Otextoaseguirdatade1973.Naépoca,oexércitonorte-americano,começandoatirarasliçõesdoVietnã,trabalhavaemprojetosdedronesarmados.Jovenscientistasengajadosnomovimentoantiguerraproduziamumapequenarevistamilitante,ScienceforthePeople.Eles

conheciamessesprogramasdepesquisamilitar.Nocalordahora,emformadeantecipação,escreveramumartigoparadenunciarseusperigos:

Assimcomoaguerraaéreasucedeuaguerraterrestre,umanovaformadeguerravaisubstituiraguerraaérea.Nósachamaremosdeguerraadistância.[…].Aguerraadistânciabaseia-senoconceitofundamentaldesistemapilotadoadistância[…]ooperadordoveículo,situadonumlocaldistante,recebeinformaçõespormeiodossensorescolocadosabordo.[…]Paracorposhumanoscomhabilidadesnecessariamentelimitadas,mesmoquetenhamarmas,qualquerdefesatorna-seinútilantetaismáquinas,quenãoconhecemoutroslimitessenãoosmecânicos.Aguerraadistânciaéumaguerrademáquinashumanascontraocorpohumano.Écomoseoespíritohumanotivessedecididoalojar-seemmáquinascomopropósitoexpressodedestruirocorpohumano.[…]Umladoperdepessoas;ooutroladoperdebrinquedos.Sórestaatiraremorrer…ebrinquedosnãomorrem.[…]

Ascaracterísticaseconômicasepsicológicasdaguerraadistânciadeterminamquemdetémseucontrolefinal.Economicamente,aguerraadistânciaémuitomaisbarataqueaguerraaérea.[…]Anteessesbaixoscustos,oCongressonãofará,realisticamente,nenhumaobjeçãodeordemorçamentáriacontraasguerrasadistânciaqueoaparelhomilitardosEstadosUnidosquiserempreender.

Assim,dispensadodocontroledoCongresso,oexércitonorte-americanoserátotalmentelivreparaconduzirguerrasadistânciaondeequandoescolher.Tendoasmãoslivres,oexército(ouaCIA,nessecaso)terátodalatitudeparaestenderaesferadeinfluênciadoimpérionorte-americano,esmagandopelaforçaqualquermovimentonacionalconsideradocontrárioaosinteressesnorte-americanos.

Ascaracterísticaspsicológicasdaguerraadistânciadeterminamtambémquemteráseucontrolefinal.Osguerreirosportelevisãosecontamemmilhares,enãoemcentenasdemilharescomoossoldadosdaguerraaérea.Osguerreirosportelevisãonuncasãoconfrontadosàperspectivadeseremmortosnaação.[…]

Ascaracterísticasdaguerraadistânciapoderiamservirparacalarascríticasantiguerraquetentamdeterseudesenvolvimento.Osbrinquedosnãotêmnemmães,nemesposasparaprotestaremcontrasuasperdas.Aguerraadistânciaémuitobarata.Aquelesquecriticamasdespesasdeguerraeainflaçãonãoterãomaiscontraoqueprotestar.Comsuasprecisascapacidadesassassinas,aguerraadistâncianãofaránenhummalaomeioambiente.Osecologistasqueprotestamcontraadestruiçãodomeioambientenãoterãomaiscontraoqueprotestar…Eassimpordiante.Aúnicacoisaquerestaaprotestaréoassassinatoeasubjugaçãodessaspessoasqueoexércitonorte-americanochamade“comunistas”,gooks[vietcongues]ousimplesmente“oinimigo”.Mas,semdúvida,paraoexércitonorte-americano,emprincípioomundointeiroéuminimigopotencial.[…]

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Todadiferençaentreguerraepazsedissolverá.Aguerraseráapaz.Aguerratotaladistânciaviráprolongar,porumestadodeguerraperpétua,alongatradiçãode

guerraedegenocídioquemarcouahistóriadahumanidade.ParaaAmérica,maisdoquenunca,atradiçãosocialeculturaldoimpérioseráconvertidaemmáquinadegenocídio.Todososaspectosdaindústrianorte-americanadesempenharãoumpapelimportantenessaprodução.Todoprogressodaciênciaedatecnologianorte-americanaserápostoaserviçodeumamaioreficáciaassassina.[…]

Osguerreirosportelevisãonãosaberãomaisestabeleceradiferençaentrerealidadeeilusão.Aalienaçãoeaesterilizaçãoseaproximarãodaperfeição.Depoisdedarumbeijodedespedidaemsuamulhereenfrentarosengarrafamentosparairaotrabalho,oguerreiroportelevisãoseinstalaránafrentedatelevisãonoMinistériodaPaz.[…]

SeemtempodepazumcidadãonãoapoiaaguerracontraoInimigo,esseindivíduopassaaserumelementosubversivo.Éelequesetorna,então,oinimigo.OpróximopassoconsisteemtomarocontroledosnegóciosinternosdoImpério…SeráacriaçãodeumMinistériodoAmor.[1]

Essaslinhas,quejátêmmaisdequarentaanosdeidade,sãodeumaatualidadeinquietadora.Noentanto,ocoletivoqueaspublicouconsideravaindispensávelanexarasseguintesobservações:

Optamosporpublicaresteartigoporduasrazões.Emprimeirolugar,eleaumentaosconhecimentostécnicosdaquelesquelutamcontraaguerra,tornandonossasaçõesmaisbeminformadase,esperemos,maiseficazes.Emsegundo,elepintaumquadroconvincentedopensamentopolítico-militaremvigorentreaquelesquedirigemopaís.

Noentanto,nãocompartilhamossuavisãoapocalíptica,nemahipótesesegundoaqualaquelesquedominamatecnologiamaisavançadateriamfatalmenteasupremacia.

Pensamosqueasvisõespessimistaseaterradorasapresentadasnesteartigodevem-seessencialmenteaumafaltadeperspectivapolítica.Porisso,gostaríamosdeapresentaraquinossaanálisedopapelqueessatecnologiadeguerraadistânciadesempenhanoReichnorte-americano.

Épreciso,emprimeirolugar,sublinharqueodesenvolvimentodessatecnologiavemdafraqueza,enãodaforça,docapitalismonorte-americano.Eletraduzumdistanciamentoaindamaiordosistemaemrelaçãoàpopulação.Aguerraaéreafoidesenvolvidaporqueoexércitonorte-americanonãoeramaisdignodeconfiança.Seaguerraadistânciaseconcretiza,éporqueaguerraatual,assimcomotodasasguerrasfuturasconduzidaspelosimperialistasnorte-americanosparacontrolaromundo,jánãosãopoliticamenteaceitáveisparaopovonorte-americano.Assimcomoseinvestiunastecnologiasdevigilânciaedecontrolesocialparaenfrentararesistênciaouafaltadeapoiodapopulação,oexércitonorte-americanoviu-seobrigadoaencontrarsoluçõestecnológicasparaseusproblemaspolíticos.[…]

Emsegundo,aescaladatecnológicaparameioscadavezmaiscomplexos(emaisrentáveis)éumacaracterísticaendêmicadocapitalismonorte-americano.[…]Éimportanteanalisaressesprocessosdespojando-osdesuasjustificaçõesideológicas.Oqueosanimanãoénemo“progresso”,nemumamaioreficácia,nemumamelhorsatisfaçãodasnecessidadesdos

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consumidores.Noplanodefundoperfilam-sesempreasnecessidadesexpansionistasdosistema,asededelucroscadavezmaiores.Aguerraadistânciaéaaplicaçãodessemesmoprincípioaoutraindústria,aindústriadaguerra.

Existemoutrospontosnoartigoquemerecemalgunscomentários.Antesdetudo,époucoplausívelqueessanovatecnologiasetraduzaporumareduçãodo

orçamentoda“defesa”.Omaisprováveléqueosestratossucessivosdatecnologiamilitarcoexistamladoalado,umpoucocomofazemosmísseiseosbombardeiros.

Emseguida,existeaquestãodainvencibilidade,daprecisãosobre-humana,daonisciênciadossensoresembarcadosnosaviõesnãotripuladosligadosaredesdecomputadoresetc.Àquelesqueseimpressionamcomessaspretensões,recomendamosqueatentemàsafirmaçõessemelhantesqueforamfeitasnopassado.Háumaenormediferençaentreresultadosobtidosemcondiçõescontroladaseascondiçõesdecombatereais.Namaioriadoscasos,osresultadosobtidospelosEstadosUnidosimplicaramdestruiçõesmaciçaseindiscriminadas[…].Aimagemdadestruiçãoprecisaderesistentesindividuaiséfalsa[…]obombardeioéumaarmadeterror.Seuobjetivoprincipaléesvaziarazonaruraldospartidáriosreaisepotenciaisdaguerrilhaedestruirotecidosocialtradicionaldospaísesimplicados.[…]

Atecnologianãoéinvencível.Esseéummitoquelevaàpassividade.Essemito,bastantedifundidoentreostrabalhadorescientíficos,representaumaformadechauvinismotécnico-intelectual.Opoderdetransformaçãosocialresidenosamplossegmentosoprimidosdasociedade,eéaelesquedevemosnosjuntar.[2]

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NOTAS

PRELÚDIO1CodePink,“CreechAirForceBase:APlaceofDisbelief,Confusion&Sadness”.Comunicado,nov.2009.2Cf.GeraldKrueger&PeterHancock,HoursofBoredom,MomentsofTerror:TemporalDesynchronyinMilitaryandSecurityForceOperations.Washington:NationalDefenseUniversity,2010.3TodasasconversascitadasforamtiradasdetranscriçõesoficiaisobtidasporDavidS.Cloud,jornalistanoLosAngelesTimes,emvirtudedoFreedomofInformationAct.Apresentoaquialgunsdeseustrechos.Odocumentooriginalfoicensuradoemváriaspartesantesdesuadivulgação.Paraodocumentointegral:<http://documents.latimes.com/transcript-of-drone-attack/>.Vertambém,paraocontexto,oartigodeD.S.Cloud,“AnatomyofanAfghanWarTragedy”.LosAngelesTimes,10abr.2011.

INTRODUÇÃO1DepartmentofDefense,DictionaryofMilitaryandAssociatedTerms,JointPublication,1-2ago.2011,p.109.2Desdeosanos1970,utiliza-senessecasoaexpressão“veículoremotamentepilotado”–“RemotelyPilotedVehicle”(RPV).3SegundoogeneralTeedMichaelMoseley,apudTorinMonahan&TylerWall,“SurveillanceandViolencefromafar:ThePoliticsofDronesandLiminalSecurityscapes”.TheoreticalCriminology,15(3),2011[pp.239-54],p.242.4AexpressãoédeMikeMcConnell,diretornacionaldaInteligência,apudBobWoodward,inObama’sWars.NovaYork:SimonandSchuster,2010,p.6.5DavidA.DeptulanaemissãoCNN’sAmanpour,“TheUseofDronesinAfghanistan”,tematransmitidoem24denovembrode2009.Comoelediznumaoutraconferência:“Dispordeumtalalcancedeintervençãopermite-nosmanterospésaquecidosemcasaenviandoaomesmotempoefeitosecapacidadeparaqualquerlugardoglobo.Emoutrostermos,essesistemanospermiteprojetarcapacidadesemprojetarvulnerabilidade”.D.A.Deptula,“TransformationandAirForceIntelligence,SurveillanceandReconnaissance.RemarksGivenattheAirForceDefenseStrategySeminar,USAirForceHeadquarters”.Washington,27abr.2007.6Trata-sedeconstituir,pelatécnica,umpodernãoexposto,oumelhor,degarantiraopodercondiçõesdeimplementaçãoqueasseguremanãoexposiçãodavulnerabilidadedeseusagentes.Tendosidoutilizadaparadescreveravantagemestratégicadodrone,aexpressãoempregadaporDeptula,familiarnaretóricadosestrategistasdaAirForce,servia,demodomaisgeral,paraapresentarosprocedimentosde“guerraadistância”(remotewarfare)combasenoqueelesidentificavamcomoumatendênciahistóricaparaolongoalcance:“Oexamedatendênciadelongoprazoquenosfezpassardamaçaàlança,aoarcoeflecha,àcatapulta,aomosquete,aofuzileassimpordianteindicaumamotivaçãoespecífica.Oquesequerésercapazdeatingirumadversárioapartirdeumadistânciasuficienteparaevitarsersimilarmenteatingido.Emoutraspalavras,háumdesejoespecíficoeracionaldesercapazdeprojetarinfluênciaadistânciasemprojetarvulnerabilidadenamesmaproporção[…].Atendênciamilitardelongoprazoaprojetarinfluênciaadistânciasemprojetarvulnerabilidadenamesmaproporçãofavoreceuodesenvolvimentodascapacidadesaeroespaciais”.CharlesD.Link,majorgeneral,“MaturingAerospacePower”.Air&SpacePowerJournal,4set.2001.7ElaineScarry,TheBodyinPain:TheMakingandUnmakingoftheWorld.NovaYork:OxfordUniversityPress,1985,p.78.8DepartmentofDefense,ReporttoCongressonFutureUnmannedAircraftSystems,abr.2012.<https://www.fas.org/irp/program/collect/uas-future.pdf>9ChrisWoods,“DroneStrikesRisetoOneEveryFourDays”.TheBureauofInvestigativeJournalism,18jul.2011.<http://www.thebureauinvestigates.com/2011/07/18/us-drone-strikes-rise-from-one-a-year-to-one-every-four-days>10“Obama2013PakistanDroneStrikes”.TheBureauofInvestigativeJournalism,3jan.2013.<http://www.thebureauinvestigates.com/2013/01/03/obama-2013-pakistan-drone-strikes>11“FlightoftheDrones:WhytheFutureofAirPowerBelongstoUnmannedSystems”.TheEconomist,8out.2011.12ElizabethBumiller,“ADayJobWaitingforaKillShotaWorldAway”.TheNewYorkTimes,29jul.2012.13JohnMoe,“DroneProgramGrowsWhileMilitaryShrinks”.MarketplaceTechReport,27jan.2012.14Note-sequeaperspectivaimediatanãoétantodesubstituiçãointegraldasmáquinasclássicaspordrones,massimdeumlongoperíododecoexistênciaentrediversossistemasdearmas,numasituaçãomista:umamálgamados“modosdeguerra”,emqueosdronesocupariamposiçãopreeminente.Énecessáriotambémprecisaraesserespeitoqueotendencialnãoéoinexorável.Nãoéqueofuturojáestápresente–elesedecidenopresente,oqueédiferente.Issoemdesacordocomaapresentaçãoteleológico-fatalistaquePeterW.Singerfazdessefenômeno.Sobreasbarreirastécnicaseorçamentáriasqueseerguemcontraodesenvolvimentodosdrones,escreveele:“Ahistóriamostratambémqueelasnãopodemimpedirqueofuturoadvenha.Podemapenasretardarnossaadaptaçãoefetivaaofuturo”.P.W.Singer,“U-turn”.ArmedForcesJournal,9jun.2011.AhistóriadosprojetosdedronesnoséculoXXtenderia,antes,amostrarocontrário:umalongasucessãodeprojetosabortados.15Cf.JoBecker&ScottShane,“Secret‘KillList’ProvesaTestofObama’sPrinciplesandWill”.TheNewYorkTimes,29maio2012.VertambémSteveColl,“KillorCapture”.TheNewYorker,2ago.2012.

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16Cf.MedeaBenjamin,DroneWarfare:KillingByRemoteControl.NovaYork:ORBooks,2012.17RyanDevereaux,“UNInquiryintoUSDroneStrikesPromptsCautiousOptimism”.TheGuardian,24jan.2013.18GeorgesCanguilhem,LeNormaletlePathologique.Paris:PUF,1966,p.7[ed.bras.:Onormaleopatológico,trad.MariaTherezaRedigdeC.Barrocas.RiodeJaneiro:ForenseUniversitária,2009,p.10].19SimoneWeil,Réflexionssurlaguerre,Œuvres.Paris:Gallimard,1999,p.455.20Id.,ibid.21Id.,ibid.22SegundooconceitodeFrédéricGros,inÉtatsdeviolence.Essaisurlafindelaguerre.Paris:Gallimard,2006[ed.bras.:Estadosdeviolência:ensaiosobreofimdaguerra,trad.JoséAugustodaSilva.SãoPaulo:Ideias&Letras,2009].

I.TÉCNICASETÁTICAS

1.METODOLOGIASDOAMBIENTEHOSTIL1RobertL.Forward,MartianRainbow.NovaYork:DelRey,1991,p.11.2JohnW.Clark,“RemoteControlinHostileEnvironments”.NewScientist,v.22,n.389,abr.1964,pp.300-03.3Id.,ibid.,p.300.4Id.,ibid.Telequir,detele,distante,ekheir,mão.5Id.,ibid.,p.300,grifomeu.6Id.,ibid.7OtermoteleárquicofoiutilizadoporBurnetHersheyedefinidocomoo“controleadistância,ouotelecomandodemecanismosemcabo”:“Oteleárquico–ocontroleadistânciaporrádiodemecanismosnãotripulados–poderiaterumapublicidadeinesperadaantesdofimdaguerra.Comotodaumasériedeoutrosdispositivos,trata-sedeumasimplesaplicaçãodanovaciênciadaeletrônica,filhadorádioeparentedatelevisão.Aviões-robôs,guiadosporcontroleteleárquico,emunidosdecâmerasdetelevisão,podemserenviadosacimadasposiçõesinimigasetransmitirumaimagemaovivo”.B.Hershey,inSkywaysofTomorrow,ForeignPolicyAssociation.NovaYork,1944,pp.15-16.8Ousododronearmadoprossegue,noplanopolítico-estratégico,omesmotipodedelimitaçãoespacial,omesmotipodedivisãotopográficaentreo“safe”[seguro]eohostil.Princípiodezoneamentoede“santuarização”.Odroneeomurofuncionamjuntos.Articulam-sedeformacoerenteemummodelodesegurançaquecombinafechamentodoespaçodomésticoeintervençãoexternadesprovidadequalquerenvolvimentovital.OidealdaforçatelecomandadaéperfeitamentecongruentecomodeumEstado-bolha.Paraumafilosofiapolíticadomuro,cf.WendyBrown,Murs:LesPrairiesordinaires.Paris,2009.9J.W.Clark,op.cit.,p.300.10MarvinMinsky,“Telepresence”.Omni,v.2,jun.1980,p.199.11Anônimo,“LastWordonTelechirics”.NewScientist,n.391,14maio1964,p.405.12Id.,ibid.,p.41.OfimdotextofazumpastichedafamosafrasedeHilaireBelloc:“WhateverhappenswehavegotTheMaximGun,andtheyhavenot”[Oquequerqueaconteça,nóstemosaMaxim,eelesnão].H.Belloc,TheModernTraveller.Londres:Arnold,1898,p.41.

2.GENEALOGIADOPREDATOR1GeorgW.Hegel,Leçonssurlaphilosophiedel’histoire.Paris:Vrin,1963,p.309[ed.bras.:Filosofiadahistória,trad.MariaRodrigues.Brasília:EditoraUnB,1961,p.334].2“Oszangõesnãotêmferrão.Sãocomoabelhasimperfeitas:trata-sedeumaúltimageração,umaproduçãotardiadasvelhasmoscasdemelquecompletaramseuciclo.”Plínio,Histoirenaturelle,tomoIV.Paris:Desaint,1772,p.237.3“EmboraosmísseisdecruzeirosejamancestraismuitopróximosdosUCAVs,diferemdelesporquesãoplataformasdesentidoúnico,[…]acapacidadederetornaràbasedepoisdeconcluídaamissãoparapartirdenovonodiaseguinteéaprincipaldiferençaentreosUCAVseosmísseisdecruzeiro”,que,“sendoelesprópriosarmas,nãoretornamàbasedepoisdeconcluídaamissão.”RichardM.Clark,UninhabitedCombatAerialVehicles.AirpowerbythePeople,forthePeople,butnotwiththePeople,tese,SchoolofAdvancedAirpowerStudies,MaxwellAirforceBase,jun.1999,pp.4-5.4Cf.StevenZaloga,UnmannedAerialVehicles:RoboticAirWarfare1917-2007.Westminster:OspreyPublishing,2008,p.14.JacobVanStaaveren,GradualFailure:TheAirWaroverNorthVietnam1965-1966,AirForceHistoryandMuseumProgram,Washington,2002,p.114.5JohnL.McLucas,ReflectionsofaTechnocrat:ManagingDefense,Air,andSpaceProgramsduringtheColdWar,AirUniversityPress,MaxwellAirForceBase,2006,p.139.Odronesurgiacomoaarmalowcostporexcelência,segundoumaduplalógicadeeconomia,deacordocom“ovalordasvidashumanasemjogoeoscustosfinanceiros”.Astronautics&Aeronautics,v.8,n.11,AIAA,1970,p.43.Aimprensa,retomandoessesargumentos,vianosprojetosdedronesarmadosasoluçãoparaascontradiçõespolíticasda

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guerraqueestavaemcurso:“AintensificaçãodosbombardeiosdoVietnãdoNortedesdeocomeçodoanoengrossouasfileirasdossupostosmaisde1,6milsoldadosamericanosdetidosnaIndochina.TirarospilotosdosbombardeiroseliminaráumsérioobstáculoaosplanosdeclaradosdaadministraçãoNixondemanteropoderaéreonorte-americanonosudestedaÁsia”.RobertBarkan,“TheRobotAirforceisabouttoTakeOff”.NewScientist,10ago.1972,p.282.6Terminadaaguerra,abandonou-seessemodeloparavoltaraodosaviõesdecombateclássicos.Noexatomomentoemqueprojetosdedronesarmadoshaviamsidoteorizadoseexperimentados.Observem-seasexperiênciasconduzidaspelosisraelensesem1971paraarmarodroneFirebeecommísseisMaverick.Cf.DavidC.Hataway,GerminatingaNewSEAD,tese,SchoolofAdvancedAirpowerStudies,AirUniversity,MaxwellAirForceBase,jun.2001,p.15.7Id.,ibid.8JimSchefter,“StealthyRobotPlanes”.PopularScience,v.231,n.4,out.1987[pp.64-68],p.66.9Id.,ibid.,p.68.10BillYenne,AttackoftheDrones:AHistoryofUnmannedAerialCombat.St.Paul:ZenithPress,2004,p.85.11Id.,ibid.12“PresidentGeorgeW.BushAddressestheCorpsofCadets”,11dez.2001.

3.PRINCÍPIOSTEÓRICOSDACAÇAAOHOMEM1ToddSmith,“Cyber-Hunting”.OutdoorLife.<http://www.outdoorlife.com/articles/hunting/2007/09/cyber-hunting>2Cf.MarkMatthews,“StateLawmakersBagOnlineHunting”.Slate,28set.2005.3FamosaorganizaçãodedefesadodireitoaoportedearmasgarantidopelasegundaemendadaConstituiçãonorte-americana.4Cf.KrisAxtman,“HuntingbyRemoteControlDrawsFirefromAllQuarters”.TheChristianScienceMonitor,5abr.2005.5Id.,ibid.6“PresidentSpeaksatFBIonNewTerroristThreatIntegrationCenter”,14fev.2003.7EyalWeizman,“Thanatotactics”.Springerin,4jun.2006(variantedocapítulo“TargetedAssassinations:TheAirborneOccupation”,inHollowLand:Israel’sArchitectureofOccupation.Londres:Verso,2007,pp.239-58).<http://www.springerin.at/dyn/heft_text.php?textid=1861&lang=en>Vertambém,paraaestratégiaisraelensedosassassinatosseletivosesuadesmesura,ArielColonomos,“LesAssassinatsciblés:lachasseàl’homme”,inLeParidelaguerre:guerrepréventive,guerrejuste?.Paris:Denoël,2009,pp.202-40.8E.Weizman,op.cit.9RowanScarborough,Rumsfeld’sWar:TheUntoldStoryofAmerica’sAntiterroristCommander.Washington:RegneryPublishing,2004,p.20.10SeymourHersh,“Manhunt”.TheNewYorker,23dez.2002.11Cf.StevenMarks,ThomasMeer&MatthewNilson,Manhunting:AMethodologyforFindingPersonsofNationalInterest,tese,NavalPostgraduateSchool,Monterey,jun.2005,p.19.12KennethH.Poole,“Foreword”,inGeorgeA.Crawford,Manhunting:Counter-NetworkOrganizationforIrregularWarfare,JointSpecialOperationsUniversityReport,set.2009,p.VII.13G.A.Crawford,op.cit.,p.7.14Id.,ibid.15Id.,ibid.,p.19.16Id.,ibid.,p.13.17JohnR.Dodson,“Man-hunting,NexusTopography,DarkNetworksandSmallWorlds”.Iosphere,2006[pp.7-10],p.8.18Cf.SarahKreps&JohnKaag,“TheUseofUnmannedAerialVehiclesinContemporaryConflict:ALegalandEthicalAnalysis”.Polity,n.44,abr.2012[pp.260-85],p.282.19G.A.Crawford,op.cit.,p.12.20“Acaçaaohomem,alertam-nosseusteóricos,temimplicaçõeseaplicaçõesmuitomaisvastas.Acapacidadedeneutralizaralvoshumanosindividuaisoudedesintegrarredeshumanasforneceumacapacidadedecisivaparacombaterasameaçasapresentadasporatoresnãoestatais[…]ouorganizaçõescujosinteressessãoinamistososemrelaçãoaosEstadosUnidos.”Assimdefinida,alistacorreoriscodeserbastantelonga…Id.,ibid.,p.12.21JeanAndréRoux,LaDéfensecontrelecrime:répressionetprevention.Paris:Alcan,1922,p.196.

4.VIGIAREANIQUILAR1ApudBrianMockenhaupt,“We’veSeentheFuture,andIt’sUnmanned”.Esquire,14out.2009.2GérarddeNerval,LesChimères,ŒuvresI.Paris:Gallimard,1956,p.37[ed.bras.:AsQuimeras,trad.AlexeiBueno.RiodeJaneiro:Topbooks,2006].3Horapollo,OriApollinisNiliaci,Desacrisnotisetsculpturislibriduo.Paris:Kerver,1551,p.222.4JulianE.Barnes,“MilitaryRefinesa‘ConstantStareagainstOurEnemy’”.LosAngelesTimes,2nov.2009.

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5Id.,ibid.6Id.,ibid.7SierraNevadaCorporation,“Wide-areaAirbornePersistentSurveillance.TheUnblinkingEye”,apresentaçãonosimpósioOtan-Istar,nov.2012.8Cf.ArnieHeller,“FromVideotoKnowledge”.Science&TechnologyReview,LawrenceLivermoreNationalLaboratory,abr./maio2011.9Cf.DavidAxe&NoahShachtman,“AirForce’s‘All-SeeingEye’FlopsVisionTest”.Wired,24jan.2011.10DixitJohnMarion,diretordoprograma“PersistentSurveillance”naempresaLogosTechnologies,apudJoePappalardo,“TheBlimpsHaveEyes.24/7OverheadSurveillanceIsComing”.PopularMechanics,17maio2012.11D.Axe&N.Shachtman,op.cit.12Comoindicaumengenheirodecomputação:“Aarquiteturadetratamentodosdadosparaasegurançanacionalnãofoiconcebidaparaamassadeinformaçãodiversaqueégeradapelosdronesaéreosnãotripulados”.Emconsequência:“Háumanecessidadeurgentedetécnicasdeanáliseavançadaseprecisasparaaspessoasencarregadasdecategorizar,indexar,anotarospetabytesdedadoscoletadoscotidianamentenosteatrosdeoperaçãoedetirarconclusõesapartirdeles”.A.Heller,op.cit.13“TooMuchInformation:TamingtheUAVDataExplosion”.DefenseIndustryDaily,16mai.2010.14A.Heller,op.cit.15SharonWeinberger,“HowESPNTaughtthePentagontoHandleaDelugeofDroneData”.PopularMechanics,11jun.2012.16Id.,ibid.17Id.,ibid.18WalterBenjamin,“Théoriesdufascismeallemand”.ŒuvresII.Paris:Gallimard,2000,p.201[ed.bras.:“Teoriasdofascismoalemão”,inObrasescolhidas:Magiaetécnica,arteepolítica:ensaiossobreliteraturaehistóriadacultura.SãoPaulo:Brasiliense,1994,p.63].19Noâmbitodoprograma“OOlhardaMente”,“TheMind’sEye”.20J.E.Barnes,opcit.21DefenseIndustryDaily,op.cit.22DerekGregory,“FromaViewtoaKill:DronesandLateModernWar”.Theory,Culture&Society,v.28,n.7-8,2011[pp.188-215],p.208.23D.Gregory,“LinesofDescent”.OpenDemocracy,8nov.2011.<http://www.opendemocracy.net/derek-gregory/lines-of-descent>24ComoindicamWalleMonahan,“osdronestêmporbaseumaformadevigilânciaatuarialeaomesmotemposãoprodutoresdessavigilância.Sãoutilizadosparareunirdadossobreprobabilidadesderiscose[…]eliminarosnósdaredequeforemconsideradoscomoriscosqueexcedamolimitetolerável.Emparte,osdronessãoformasdevigilânciasegundoospreceitosdasuspeiçãocategóricaedatriagemsocialquedefinemoutrossistemascontemporâneosdevigilância”.T.Monahan&T.Wall,op.cit.,p.240.25S.Weinberger,op.cit.26D.Gregory,“FromaViewtoaKill”,op.cit.,p.195.27Comoindicamdoispesquisadoresemciênciascognitivasquetrabalhamemumprogramadeautomatizaçãodaanálisedasimagensemvídeo:“Adetecçãoautomáticadoscomportamentosanormaiseameaçadoressurgiurecentementecomoumnovocentrodeinteressenocampodavideovigilância:oobjetivodessatecnologiaé[…]infinepredizerseusresultados”.AlessandroOltramari&ChristianLebiere,“UsingOntologiesinaCognitive-GroundedSystem:AutomaticActionRecognitioninVideoSurveillance”,inProceedingsoftheSeventhInternationalConferenceonSemanticTechnologyforIntelligence,Defense,andSecurity.Fairfax,2012.28Cf.A.Heller,op.cit.29ARGUS-IS–oacrônimoparaAutonomousReal-timeGroundUbitiquitousSurveillanceImagingSystem–éumprojetodaDARPA,afamosaagênciadepesquisamilitardosEstadosUnidos.30OsistemaGorgonStare,desenvolvidopelaAirForcepormeiodeseu645ºgrupodesistemasaeronáuticos,maisconhecidopelograciosonomedecódigoBigSafari,retomaomesmoprincípioqueosistemaARGUS,multiplicando-o.Graçasaele,prometemseusautores,serápossívelobservar,tantonogeralcomonodetalhe,“umacidadeinteira,detalmodoquenãohaveránenhumamaneiradeoinimigosaberoqueestamosolhando,enóspodemosvertudo”.EllenNakashima&CraigWhitlock,“WithAirForce’sGorgonDrone‘WeCanSeeEverything’”.TheWashingtonPost,2jan.2011.OGorgonStarefoiconcebidocomoumsistemadevigilânciapersistenteparaequiparoMQ9Reaper,maspoderianofuturoproliferarnumamultiplicidadedeplataformas.31EyeborgséumincrívelfilmeB,dirigidoporRichardClabaughem2009.32DavidRohde,“TheDroneWar”.Reuters,26jan.2012.<http://www.reuters.com/article/2012/01/26/us-david-rohde-drone-wars-idustre80P11I2012012633StanfordInternationalHumanRights&ConflictResolutionClinic,LivingUnderDrones:Death,InjuryandTraumatoCiviliansfromUSDronePracticesinPakistan,set.2012,p.81ss.<http://livingunderdrones.org/wp-content/uploads/2012/10/Stanford-NYU-LIVING-UNDER-DRONES.pdf>34Id.,ibid.35Id.,ibid.,p.83.36Id.,ibid.,p.81

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37Id.,ibid.,p.87.

5.ANÁLISEDASFORMASDEVIDA1DefenseScienceBoard,2004SummerStudyonTransitiontoandfromHostilities,Washington,dez.2004,p.154,apudD.Gregory,“InAnotherTime-zone,theBombsFallUnsafely”.ArabWorldGeographer,2007,v.9,n.2,pp.88-112.2J.Becker&S.Shane,“Secret‘KillList’”,op.cit.3HaroldKoh,“TheObamaAdministrationandInternationalLaw”,discursodiantedaAmericanSocietyofInternationalLaw,Washington,25mar.2010.4HumanRightsClinicatColumbiaLawSchool,theCenterforCiviliansinConflict,TheCivilianImpactofDrones:UnexaminedCosts,UnansweredQuestions,set.2012,p.8.<http://civiliansinconflict.org/uploads/files/publications/The_Civilian_Impact_of_Drones_w_cover.pdf>5Id.,ibid.,p.9.VertambémDanielKlaidman,KillOrCapture:TheWaronTerrorandtheSouloftheObamaPresidency.Boston:HoughtonMifflinHarcourt,2012,p.41.6Aexpressãonãotemequivalenteevidenteemportuguês:eladesignaumaanálisemorfológica,“configuracional”ouestrutural.Poderíamostambémtraduzi-lapelaanálisedosmodelos,dosesquemasoudosmotivosdevida.7D.S.Cloud,“CIADronesHaveBroaderListofTargets”.LosAngelesTimes,5maio2010.8ApudAnnaMulrine,“UAVPilots”.AirForceMagazine,v.92,n.1,jan.2009.9USArmy,FieldManual3-60:TheTargetingProcess,nov.2010,B-3.10TonyMason,SuzanneFoss&VinhLam,“UsingArcGISforIntelligenceAnalysis”,EsriInternationalUserConference,2012.<http://proceedings.esri.com/library/user-conf/feduc11/papers/tech/feduc-using-arc-gis-for-intelligence-analysis.pdf>11KeithL.Barber,“NSGExpeditionaryArchitecture:HarnessingBigData”.Pathfinder,v.10,n.5,set./out.2012[pp.8-10],p.10.12ApudAdamEntous,“CIADronesHitWiderRangeofTargetsinPakistan”.Reuters,5mai.2010.13D.S.Cloud,op.cit.14ApudKenDilanian,“CIADronesMayBeAvoidingPakistaniCivilians”.LosAngelesTimes,22fev.2011.15WinslowWheeler,“FindingtheRightTargets”.Time,29fev.2012.16J.Becker&S.Shane,op.cit.17TheCivilianImpact,op.cit.,p.34.Cf.tambémS.Shane,“ContrastingReportsofDroneStrikes”.TheNewYorkTimes,11ago.2011.18KateClark,TheTakharAttack,TargetedKillingsandtheParallelWorldsofUSIntelligenceandAfghanistan,AfghanistanAnalystNetworkThematicReport,jun.2011,p.12,apudD.Gregory.<http://geographicalimaginations.com>19GarethPorter,“HowMcChrystalandPetraeusBuiltanIndiscriminateKillingMachine”.Truthout,26set.2011.20Id.,ibid.21JoshuaFoust,“UnaccountableKillingMachines:TheTrueCostofUSDrones”.TheAtlantic,30dez.2011.22SadaullahWazirapudMadihaTahir,“LouderthanBombs”.TheNewInquiry,v.6,16jul.2012<http://thenewinquiry.com/essays/louder-than-bombs>DanielHeller-Roazen,TheEnemyofAll:PiracyandtheLawofNations.NovaYork:ZoneBooks,2009.

6.KILLBOX1GiulioDouhet,LaMaîtrisedel’air.Paris:Economica,2007,p.57.2OgeógrafoDerekGregoryexplicaqueessefenômenodeveseranalisadosimultaneamentenotempoenoespaço,nãosócomoumaformade“guerraparasempre”,mastambémde“guerraportodaparte”.D.Gregory,“TheEverywhereWar”.TheGeographicalJournal,v.177,n.3,set.2011[pp.238-50],p.238.3S.Marks,T.Meer&M.Nilson,op.cit.,p.28.4Cf.Blackstone,CommentariesontheLawsofEngland.NovaYork:Garland,1978,V.III,p.213.5Noentanto,paralográ-loplenamente,seriaprecisopoderressuscitar,emcontradiçãocomodireitocontemporâneo,acategoriaarcaicadeinimigoscomunsdahumanidade.Cf.D.Heller-Roazen,op.cit.6“DeputySecretaryWolfowitzInterviewwithCNNInternational”,transmitidaem5nov.2002.7G.Douhet,op.cit.,p.57.8VerE.Weizman,HollowLand:Israel’sArchitectureofOccupation.Londres:Verso,2007,p.239.9Id.,ibid.,p.237.10E.Weizman,“ControlintheAir”.OpenDemocracy,maio2002.<http://www.open-democracy.net/ecology-politicsverticality/article_810.jsp>11Aexpressãoéutilizadaporumautoresquecidodosanos1940:BurnetHershey,TheAirFuture:APrimerofAeropolitics.NovaYork:Duell,Sloan&Pearce,1943.12Weizmanlembraassimque,duranteasnegociaçõesdeCampDavid,oEstadodeIsrael,aoconcederosolo,exigiumanter“ousodo

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espaçoaéreoeeletromagnéticoesuasupervisão”acimadosterritóriospalestinos.Concederosolo,masparasearrogarocéu.E.Weizman,op.cit.13AlisonJ.Williams,“ACrisisinAerialSovereignty?ConsideringtheImplicationsofRecentMilitaryViolationsofNationalAirspace”.Area,v.42,n.1,mar.2010,pp.51-59.14StephenGraham,“VerticalGeopolitics:BaghdadandAfter”.Antipode,v.36,n.1,jan.2004,pp.12-23.15JointPublication3-24,CounterinsurgencyOperations,5out.2009,VIII-16,s.p.16AirLandSeaApplicationCenter,FieldManual3-09.34Multi-ServiceTactics,TechniquesandProcedures(MTTPS)forKillBoxEmployment,13jun.2005,I-5,s.p.17Id.,ibid.,I-1.18JointPublication3-24,CounterinsurgencyOperations,5out.2009,II-19.19Em1996,umrelatóriodeprospectivamilitarsobreousofuturodosdronesarmadosescrevia,demaneiraclarividente:“Alongoprazo,osdrones(UAVS)poderãoreunirdadossobrealocalizaçãodosalvoseaomesmotempoatacá-losemáreasdefogolivre(killbox)”.Cf.AirForceScientificAdvisoryBoard(SAB),UAVTechnologiesandCombatOperations,3-4SAF/PA96-1204,1996,3-4,s.p.20ApudJamesW.MacGregor,“BringingtheBoxintoDoctrine:JointDoctrineandtheKillBox”.UnitedStatesArmySchoolofAdvancedMilitaryStudies,UnitedStatesArmyCommandandGeneralStaffCollege,FortLeavenworth,Kansas,AY03-04,p.43.21“JamesA.ThomsontoDonaldH.Rumsfeld,Memorandum”,7fev.2005,apudHowardD.Belote,“USAFCounterinsurgencyAirpower:Air-GroundIntegrationfortheLongWar”.Air&SpacePowerJournal,V.XX,n.3,outonode2006[pp.55-68],p.63.22Id.,ibid.23USArmy,UnmannedAircraftSystems,Roadmap,2010-2035,p.65.24KennethAnderson,“Self-DefenseandNon-InternationalArmedConflictinDroneWarfare”.OpinioJuris,22out.2010.<http://opiniojuris.org/2010/10/22/self-defense-and-non-international-armed-conflict-in-drone-warfare>25MichaelW.Lewis,“HowShouldtheOBLOperationbeCharacterized?”.OpinioJuris,3maio2011.<http://opiniojuris.org/2011/05/03/how-should-the-OBL-operation-be-characterized>26M.W.Lewis,“DronesandtheBoundariesoftheBattlefield”.TexasInternationalLawJournal,v.47,n.2,jun.2012[pp.293-314],p.312.27D.Gregory,op.cit.,p.242.28Éfatoconsumado,agorasabemos:ternacionalidadeamericananãopremunecontraoassassinatoseletivo.Masocidadãonorte-americanomortonoIêmenporumataquededronesemsetembrode2011,AnouarAl-Awlaki,nãoeraoujánãoera,aosolhosdaquelesquedecidiramsobresuamorte,plenamentecidadão,nemtampouconorte-americano.Seufilhodedezesseisanos,nascidoemDenver,emortoumasemanadepoisporumataquedestinadoacompletaroserviço,semdúvidatambémnãoera.Cf.TomFinn&NoahBrowning,“AnAmericanTeenagerinYemen:PayingfortheSinsofHisFather?”.Time,27out.2011.29HRW,LettertoObamaonTargetedKillingsandDrones,7dez.2010.<http://www.hrw.org/news/2010/12/07/letter-obama-targeted-killings>30MaryEllenO’Connell,UnlawfulKillingwithCombatDrones:ACaseStudyofPakistan,2004-2009,Abstract,NotreDameLawSchool,LegalStudiesResearchPaper,n.09-43,2009.31Id.,ibid.32ComoresumeKennethAnderson,ainquietaçãoentreoscríticosdeve-seaofatodeque“oaparecimentodastecnologiasdeassassinatoseletivopelosdrones[…]comportaapossibilidadedeafetaredeminarumfundamentotácitodasleisdaguerra:umageografiaimplícitadaguerra”.K.Anderson,“TargetedKillingandDroneWarfare:HowWeCametoDebateWhetherThereisa‘LegalGeographyofWar’”,inPeterBerkowitz(org.),FutureChallengesinNationalSecurityandLaw,HooverInstitution,Stanford,p.3.33Sobreesseconceito,cf.KatherineMunn&BarrySmith,AppliedOntology:AnIntroduction.HeusenstammbeiFrankfurt:OntosVerlag,2008.

7.CONTRAINSURGÊNCIAPELOAR1DexterFikins,“U.S.TightensAirstrikePolicyinAfghanistan”.TheNewYorkTimes,21jun.2009.2ErnestoCheGuevara,LaGuerredeguerilla.Paris:Maspéro,1966,p.34[ed.bras.:Aguerradeguerrilhas.SãoPaulo:EdiçõesPopulares,1982].3PhillipS.Meilinger,“CounterinsurgencyfromAbove”.AirForceMagazine,v.91,n.7,jul.2008[pp.36-39],p.39.4CarlSchmitt,LaNotiondepolitique,Théoriedupartisan.Paris:Flammarion,1992,p.223ss[ed.bras.:Oconceitodopolítico,trad.AlvaroL.M.Valls.Petrópolis:Vozes,1992].5Ohomemquepronunciouessasfrases,MaulviAbdullahHaijazi,eraumaldeãomanifestando-secontraosataquesnorte-americanos,apudBarryBearak,“DeathontheGround,U.S.RaidKillsUnknownNumberinanAfghanVillage”.TheNewYorkTimes,13out.2001.6CharlesJ.Dunlap,“Air-MindedConsiderationsforJointCounterinsurgencyDoctrine”.Air&SpacePowerJournal,invernode2007[pp.63-74],p.65.7C.J.Dunlap,“MakingRevolutionaryChange:AirpowerinCOINToday”.Parameters,verãode2008[pp.52-66],p.58.8ApudC.J.Dunlap,“Air-MindedConsiderationsforJointCounterinsurgencyDoctrine”,op.cit.,p.58.

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9Id.,ibid.10AngelinaM.Maguinness,“Counterinsurgency:Is‘AirControl’theAnswer?”.SmallWarsJournal,jun.2009.<http://smallwarsjournal.com/blog/journal/docs-temp/261-maguinness.pdf>11F.S.Keen,“ToWhatExtentWouldtheUseoftheLatestScientificandMechanicalMethodsofWaraffecttheOperationsontheNorth-WestFrontierofIndia?”.JournaloftheUnitedServiceInstitutionofIndia53,n.233,1923,p.400,apudAndrewRoe,“AviationandGuerillaWar:Proposalsfor‘AirControl’oftheNorth-WestFrontierofIndia”.RoyalAirForceAirPowerReview,v.14,n.1,2011,p.55.VertambémD.Gregory,“FromaViewtoaKill”,op.cit.,p.189.12A.M.Maguinness,op.cit,grifomeu.13Id.,ibid.14RichardAndres,“TheNewRoleofAirStrikeinSmallWars:AResponsetoJonCompton”.SmallWarsJournal,jul.2008.<http://smallwarsjournal.com/blog/the-new-role-of-air-strike-in-small-wars>15HannahArendtprevenira:“Nodomíniodapolítica,ondeosigiloeoembustedeliberadosempretiveramumpapelimportante,oautoembusteéoperigoporexcelência:oimpostorautoenganadoperdetodoocontato,nãosomentecomsuaplateia,mastambémcomomundoreal,quecontinuaráimportunando-o,poiselepodetirarsuamentedele,masnãopodetirarseucorpo”.H.Arendt,DuMensongeàlaviolence.Paris:Calmann-Lévy,1989,p.39[ed.bras.:“Amentiranapolítica,consideraçõessobreosdocumentosdoPentágono”,inCrisesdaRepública,trad.JoséWolkmann.SãoPaulo:Perspectiva,2004,p.39].16DavidKilcullen&AndrewMcDonaldExum,“DeathfromAbove,OutrageDownBelow”.TheNewYorkTimes,17maio2009.17Id.,ibid.18Id.,ibid.19Id.,ibid.20DavidGalula,Contre-insurrection.Théorieetpratique.Paris:Économica,2008,p.16.21D.Kilcullen,“CounterinsurgencyRedux”,Survival,v.48,n.4,dez.2006[pp.111-30],p.117.22Id.,ibid.,p.113.23D.Kilcullen,Counterinsurgency.Oxford:OxfordUniversityPress,2010,p.188.24“Counterinsurgency”,inJointPublication1-02DepartmentofDefenseDictionaryofMilitaryandAssociatedTerms,2010,p.69.25D.Kilcullen,“CounterinsurgencyRedux”,op.cit.,p.6.26Id.,ibid.,p.186.27Id.,ibid.,p.187.28D.Kilcullen,“CounteringGlobalInsurgency”.TheJournalofStrategicStudies,v.28,n.4,ago.2005[pp.597-617],p.605.29PeterMatulich,“WhyCOINPrinciplesDon’tFlywithDrones”.SmallWarsJournal,fev.2012.<http://smallwarsjournal.com/jrnl/art/why-coin-principles-dont-fly-with-drones>30ApudShujaNawaz,FATA,aMostDangerousPlace:MeetingtheChallengeofMilitancyandTerrorintheFederallyAdministeredTribalAreasofPakistan,CenterforStrategic&InternationalStudies,jan.2009,p.18.<http://csis.org/files/media/csis/pubs/081218_nawaz_fata_web.pdf>31JointPublication3-24,CounterinsurgencyOperations,5out.2009,p.xv.32C.J.Dunlap,“MakingRevolutionaryChange”,op.cit.,p.60.33Id.,ibid.34Id.,ibid.,p.59.35R.Andres,“TheNewRoleofAirStrike”,op.cit.36JoshuaS.Jones,“Necessary(Perhaps)ButNotSufficient:AssessingDroneStrikesThroughaCounterinsurgencyLens”.SmallWarsJournal,ago.2012.<http://smallwars-journal.com/blog/necessary-perhaps-but-not-sufficient-assessing-drone-strikes-through-a-counterinsurgency-lens>

8.VULNERABILIDADES1BrasseurdeBourbourg,HistoireduCanada,I.Paris:Plancy,1852,p.21.2LouisdeBaecker,Delalanguenéerlandaise.Paris:Thorin,1868,p.40.3Felice,EncyclopédieouDictionnaireuniverselraisonnédesconnoissanceshumaines,tomoIII,1781,Yverdon,p.570.4Id.,ibid.5MarkMazzetti,“TheDroneZone”.TheNewYorkTimes,6jul.2012.6“DoDNewsBriefingwithLt.Gen.DeptulaandCol.MathewsonfromthePentagon”,23jul.2009.7SiobhanGorman,YochiJ.Dreazen&AugustCole,“InsurgentsHackU.S.Drones,$26SoftwareIsUsedtoBreachKeyWeaponsinIraq;IranianBackingSuspected”.TheWallStreetJournal,17dez.2009.8UPI,“IsraelEncryptsUAVSasCyberwarWidens”,12jun.2012.9N.Shachtman,“ComputerVirusHitsU.S.DroneFleet”.Wired,10jul.2011.10LorenzoFranceschi-Bicchierai,“DroneHijacking?That’sJusttheStartofGPSTroubles”.Wired,6jul.2012.

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11QiaoLiang&WangXiangsui,LaGuerrehorslimites.Paris:Payot,1999,p.140.12TrentA.Gibson,Hell-BentonForceProtection:ConfusingTroopWelfarewithMissionAccomplishmentinCounterinsurgency,tese,MarineCorpsUniversity,Quantico,2009,p.6.13Cf.MikeDavis,PetiteHistoiredelavoiturepiégée.Paris:LaDécouverte,2007,p.242.14Oprincípiodenãoexposiçãodaforçavitalnolocaldashostilidadeséacrescidodeumprincípiodesegurançadabasedeoperações:“Apátriaestadounidensedevepermanecerumabasesegura,apartirdaqualaAirForcepodeprojetarpoderemescalaglobal”–oqueimplica“garantiraproteçãodoslocaisedasinfraestruturasdosEstadosUnidosutilizadosparaaprojeçãodopoder”.StevenM.Rinaldi,DonaldH.Leathem&TimothyKaufman,“ProtectingtheHomelandAirForce,RolesinHomelandSecurity”.AerospacePowerJournal,n.1,primavera2002,pp.77-86,p.83.15<http://blogs.the-american-interest.com/fukuyama/2012/09/20/surveillance-drones-take-two>16Verem<http://www.youtube.com/watch?v=M9cSxEqKQ78>eem<http://www.team-blacksheep.com>.17“Terrorists’UnmannedAirForce”,Defensetech,1ºmaio2006.<http://defense-tech.org/2006/05/01/terrorists-unmanned-air-force/Nºixzz2KA7CFbpu>ParaDennisGormley,oroteiromaisprovávelseriaaconversão“deaviõeskitoudeoutrasaeonavescivisclássicasem‘dronesdepobre’”.D.Gormley,“UAVSandCruiseMissilesasPossibleTerroristWeapons”.OccasionalPaper,CenterforNonproliferationStudies,n.12,2003,p.8.18RelatórioDIIRSCID010-07-0410,denov.2006.Cf.“IraqWarLogs:AlQaida’sNewSuicideBombingTactics”.TheGuardian,22out.2010.<http://www.guar-dian.co.uk/world/iraq/warlogs/C39190D3-0310-47E3-A50A-27B920C4A81B>

II.ÉTHOSEPSIQUÊ

1.DRONESECAMICASES[pp.96-102]1ApudP.W.Singer,WiredForWar:TheRoboticsRevolutionandConflictinthe21stCentury.NovaYork:Penguin,2009,p.62.2Comoradiocomandosonhava-seemsepararomecânicodoorgânico,aprecisãodoerro,avelocidadedomedo.Em1934,omajor-generalFullervianeleumprincípioteleológicoqueconduzianecessariamenteaexércitosdeaviõesfantasmas:“Adisciplina,otreino,otalentopodemreduziromedo,masnãopodemaniquilá-lo.Pensoentãoqueapróximagrandeinvençãomilitarseráoaeroplanoinabitado[…].Seumaondaelétricapodeconduzirumaviãosempiloto–esabemosquepode–,podetambémconduzirecomandarumcanhão,umtanqueouumsubmarinosemtripulação,ouqualqueroutraarma,estáticaoumóvel.Acapacidadedeenviararmasadistânciacontrolandoseucursosuprime,completamenteouemparte,oelofracodetodasasguerraspassadas–oelementohumano”.JohnFrederickCharlesFuller,“SpeedinModernWarfare”,inváriosautores,TheBookofSpeed.Londres:Batsford,1934,p.138.3W.Benjamin,L’Œuvred’artàl’époquedesareproductionmécanisée,Écritsfrançais.Paris:Gallimard,1991,p.148[ed.bras.:Aobradeartenaépocadesuareprodutibilidadetécnica,trad.FranciscoDeAmbrosisPinheiroMachado.PortoAlegre:Zouk,2012,pp.41-43].SougratoaMarcBerdetporessareferência.4Id.,ibid.5VladimirK.Zworykin,“FlyingTorpedowithanElectricEye”(1934),inArthurF.VanDyck,RobertS.Burnap,EdwardT.Dickey&GeorgeM.K.Baker(orgs.),Television,V.IV,RCA,Princeton,1947[pp.359-68],p.360.6Id.,ibid.7RichardCohen,“ObamaNeedsMoreThanPersonalitytoWininAfghanistan”.TheWashingtonPost,6out.2009.8R.Cohen,“IstheAfghanistanSurgeWorththeLivesThatWillBeLost?”.TheWashingtonPost,8dez.2009.9“SuicideBombers:Dignity,DespairandtheNeedforHope–InterviewwithEyadElSarraj”.JournalofPalestineStudies,v.31,n.4,verãode2002[pp.71-76],p.74,apudJacquelineRose,“DeadlyEmbrace”.LondonReviewofBooks,v.26,n.21,4nov.2004,pp.21-24.<http://www.lrb.co.uk/v26/n21/jacqueline-rose/deadly-embrace>10J.Rose,ibid.11HughGusterson,“AnAmericanSuicideBomber?”.BulletinoftheAtomicScientists,20jan.2010.<http://www.thebulletin.org/web-edition/columnists/hugh-gusterson/american-suicide-bomber>TalalAsadacrescentava:“Namedidaemqueasintervençõesmilitaresdaspotênciasocidentaiscontinuamessatradiçãocolonial,deveriaserevidentequeseuobjetivoprimeironãoéaproteçãodavidacomotal,masaconstruçãoeoencorajamentodecertostiposdesujeitoshumanosaomesmotempoqueobanimentodetodososoutros”.T.Asad,OnSuicideBombing.NovaYork:ColumbiaUniversityPress,2007,p.36.12“Oqueocorre,então,seoautordamortemorreporvontadepróprianomomentomesmoemquecometeseucrime?Oque,emoutraspalavras,ocorresecrimeepenasefundem?[…]Avingançasemprejustificaasimesmacomocontra-ataque,porissoéprecisoqueocrimeeapenasejamseparadosnotempo.Quandoissoéimpossível,comonocasodoatentadosuicida,umanoçãofundamentaldeidentidade–adastestemunhasqueseidentificamcomosmortosedependemdajustiçaretributivaparaterumsentimentodesatisfação–podeserradicalmenteameaçada,eelaspodemsertomadaspelohorror.”T.Asad,op.cit.,p.90.13H.Gusterson,op.cit.

2.“QUEMORRAMOSOUTROS”

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1RaoulCastex,Synthèsedelaguerresous-marine.Paris:Challamel,1920,p.121.2JeandeVauzelles,Imaginesmortis.Colônia,Birckmann:1555,il.40(detalhe).3Voltaire,Essaisurlesmœurs,Œuvrescomplètes.Paris:Garnier,1878,v.11,p.349.4T.Asad,op.cit.,p.35.5DavidBell,“InDefenseofDrones:AHistoricalArgument”.TheNewRepublic,27jan.2012.6ErnstJünger,LeNœudgordien.Paris:Bourgois,1995,p.57.7T.Asad,op.cit.,p.35.

3.CRISENOÉTHOSMILITAR1ApudR.Castex,op.cit.,p.125.2J.Kaag&S.Kreps,“TheMoralHazardofDrones”.TheStone,NYTblog,22jul.2012.3SegundoafamosaformulaçãodeJean-JacquesRousseau,DuContratSocial,I,cap.III.Paris:Flammarion,2001,p.49[ed.bras.:Docontratosocial,trad.LourdesSantosMachado(coleçãoOsPensadores),livroI,cap.III.SãoPaulo:NovaCultural,1999,p.59].4GénéralCardot,Hérésiesetapostasiesmilitairesdenotretemps,Paris/Nancy,1908,p.89,apudFrançoisLagrange,“LesCombattantsdela‘mortcertaine’.LesSensdusacrificeàl’horizondelaGrandeGuerre”.Culturesetconflits,n.63,2006,pp.63-81.5DixitogeneralDragomiroff,apudcondeP.Vassili,LaSainteRusssie.Paris:Firmin-Didot,1890,p.134.6MaoTse-Tung,“Delaguerreprolongée”,inÉcritsmilitaires,Éditionsenlanguesétrangères.Pequim,1968,p.261[ed.bras.:“Sobreaguerraprolongada”,inObrasescolhidasdeMaoTsetung,tomoII.Pequim:EdiçõesdoPovo,1952].7G.W.Hegel,Principesdelaphilosophiedudroit,§327add.Paris:Vrin,1982,p.327[ed.bras.:Princípiosdafilosofiadodireito,trad.OrlandoVitorino.SãoPaulo:MartinsFontes,1997].8AexpressãoédomarechaldaforçaaéreabritânicaBrianBurridge.9Cf.EdwardN.Luttwak,LeGrandLivredelastratégie:delapaixetdelaguerre.Paris:OdileJacob,2002.10Cf.J.L.McLucas,op.cit.,p.141.11Escutaraqui,comoclipartesanalqueacompanha:<http://www.youtube.com/watch?v=t8-knpknctg>.12VersobreessetemaFranckBarrett,“TheOrganisationalConstructionofHegemonicMasculinity:TheCaseoftheUSNavy”.Gender,WorkandOrganisation,v.3,n.3,1996,pp.129-42.13W.Benjamin,“Théoriesdufascismeallemand”,op.cit.,p.199[p.62].14JDN2/11:TheUKApproachtoUnmannedAircraftSystems,apudWalterPincus,“AreDronesaTechnologicalTippingPointinWarfare?”.TheWashingtonPost,24abr.2011.15AlKamen,“DronePilotstoGetMedals?”.TheWashingtonPost,7set.2012.Desdeentão,essamedalhafoicriada.Cf.AndrewTilghman,“NewMedalforDronePilotsOutranksBronzeStar”.MilitaryTimes,13fev.2013.16ApudGregJaffe,“CombatGeneration:DroneOperatorsClimbonWindsofChangeintheAirForce”.TheWashingtonPost,28fev.2010.17M.Mazzetti,op.cit.18Sobreessanoçãoeesseparadoxo,quehojeencontramosdeformassimilaresemmuitasoutrasatividadesprofissionais,cf.ChristopheDejours,SouffranceenFrance,labanalisationdel’injusticesociale.Paris:Seuil,1998,p.108ss.19“BraveEnoughtoKill”.<http://www.patheos.com/blogs/unequallyyoked/2012/07/brave-enough-to-kill.html>20AlfreddeVigny,“Souvenirsdeservitudemilitaire”,Œuvres,i.Bruxelas:Méline,1837,p.11.21JaneAddams,“TheRevoltagainstWar”,inWomenatTheHague:TheInternationalCongressofWomenandItsResults.Urbana:UniversityofIllinoisPress,2003,p.35.22Id.,ibid.,p.34.23Id.,ibid.,p.35.

4.PSICOPATOLOGIASDODRONE1SigmundFreud,“IntroductionàLaPsychanalysedesnévrosesdeguerre”,Résultats,idées,problèmes,I.Paris:PUF,1984,p.247[ed.bras.:“IntroduçãoàPsicanálisedasneurosesdeguerra”,inHistóriadeumaneuroseinfantil(“Ohomemdoslobos”),Alémdoprincípiodoprazereoutrostextos(1917-1920)–Obrascompletasv.14,trad.PauloCésardeSouza.SãoPaulo:CompanhiadasLetras,2010,p.388].2ScottLindlaw,“Remote-controlWarriorsSufferWarStress:PredatorOperatorsPronetoPsychologicalTraumaasBattlefieldComrades”.AssociatedPress,7ago.2008.3Id.,ibid.4Fórumdediscussãodacomunidademilitardosite<http://www.militarytimes.com/>,“Thread:UAVOperatorsSufferWarstress”,consultadoemmaio2011.5Id.,ibid.

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6BlakeMorlock,“PilotisinTucson;HisAircraft’soverIraqBattlefield”.TucsonCitizen,30ago.2007.7MattJ.Martin&CharlesW.Sasser,Predator:TheRemote-ControlAirWarOverIraqandAfghanistan.ZenithPrint,2010,p.31.8P.W.Singer,WiredForWar,op.cit.,p.332.9M.Mazzetti,op.cit.10“ComeinGroundControl:UAVSfromtheGroundUp”.AirforceTechnology,17nov.2010.<http://www.airforce-technology.com/features/feature101998>11HernandoOrtegaexpôsosresultadosdeseuestudoemumaconferênciaemjaneirode2012naBrookingsInstitution,comPeterW.Singer.Citoaquiatranscriçãodesuafala:<http://www.brookings.edu/events/2012/02/03-military-medical-issues>.12Id.,ibid.13Id.,ibid.14“Nãoestudamosdetalhadamenteemqueconsisteessaculpa.Sabemosqueelaexistequandoacontecemcoisasruins.Elescomeçamafalardecertascoisasinternamente.Narealidade,estamostentandopôrmaiscapelãestambémnointeriordoambienteseguro,emaistécnicosemmedicina.”Id.,ibid.15OfamosoDiagnosticandStatisticalManualofMentalDisorders(DSM),publicadopelaAmericanPsychiatricAssociation[ed.bras.:Manualdiagnósticoeestatísticodetranstornosmentais–DSM-IV-TR,trad.DayseBatista.PortoAlegre:ArtesMédicas,2000,pp.404-12].16DSM-IV,Diagnosis&Criteria,309.81.17Id.,ibid.18U.S.MarineCorps,CombatStress–ArmyFieldManual(FM)90-44/6-22.5,2000.19KarlAbraham,[Semtítulo],inErnestJones(org.),Psycho-AnalysisandtheWarNeuroses.Londres/Viena/NovaYork:InternationalPsycho-AnalyticalLibraryPress,1921[pp.22-29],p.25.20Id.,ibid.21Id.,ibid.,p.247[p.388].Note-seprovisoriamentequeatesedeFreudnãotemocaráterangelicalqueexistenadeDaveGrossman,daqualtratareimaisadiante,ada“repugnânciadematar”.Emvezdepostularumaresistênciaamatarcomodadoantropológicoprimeiro,Freuddestacaumconflitoentreversõescontraditóriasdoeu,eaameaçaqueapulsãodemorteliberadapelascondiçõesdaguerrarepresenta.22Oconflito“sedáentreovelhoeupacíficoeonovoeuguerreirodossoldados,etorna-seagudoassimqueoeu-de-pazenxergaoenormeperigodevidaquelhetrazemasaudáciasdeseuparasíticosósiarecém-formado.Tantopodemosdizerqueovelhoeuseprotegedoriscodevidamedianteafugananeurosetraumática,comoquesedefendedonovoeu,percebidocomoameaçadorparasuavida”.S.Freud,op.cit.,p.245[p.385].23Cf.RachelMacNair,Perpetration-InducedTraumaticStress:ThePsychologicalConsequencesofKilling.Westport:Praeger/Greenwood,2005.

5.MATARADISTÂNCIA1M.J.Martin&C.W.Sasser,op.cit.,p.85.2HarunFarocki,“PhantomImages”.Public,29,2004[pp.12-24],p.17.Oscineastasdosanos1920haviaminventado,paradesignarosplanosfilmadosdepontosdevistahumanamenteimpossíveis(porexemplo:verdebaixodeumtrematodavelocidade),anoçãodeplanos-fantasmas(“phantomshots”).Acâmeradodrone,fixadasobonarizdoaparelho,sótransmiteoequivalenteaoqueosantigospilotos,sentadosnafrentedopaineldecontrole,viam:elavisaaochão,naperpendicular,enãoàlinhadohorizonte.Opontodevistaadotado,vertical,decimaparabaixo,queébemmenosaréplicadopontodevistahorizontaldopiloto–oqueseteriadedentrodocockpit–,queodoantigoartilheiroinstaladoemsuacúpuladevidroventral.Nãosetrata,nessesentido,doequivalentedavistasubjetivaanterior.Paradesignaressaformaambígua,H.Farockipropõequeseforjeoutrotermo:“Podemosinterpretarosfilmesqueadotamaperspectivadeumabombacomoimagens-fantasmassubjetivas”,ibid,p.13.Essaexpressãoapreendeadequadamenteanaturezadasimagenscaptadaspelodrone:tambémelassão“imagens-fantasmassubjetivas”.3AtesedeH.FarockipermitetrazerumanuançaimportanteàtesedePaulVirilio:observandoque“paraohomemdeguerra,afunçãodaarmaéafunçãodoolho”,eleacrescentava:“Amáquinadeguerra[é]uminstrumentoderepresentação”.P.Virilio,Guerreetcinéma.Logistiquedelaperception.Paris:CahiersduCinéma,1984,p.26[Guerraecinema,trad.RobertoPires.SãoPaulo:Scritta,1993,p.12].4MathieuTriclot,Philosophiedesjeuxvidéo,“Zones”.Paris:LaDécouverte,2011,p.94.Masaquiosignoacionávelseduplicaemoutraespéciederealismoinstrumental,pois,umavezacionado,eleativatambémequipamentosperiféricosnomundo.5“Stáca”,AncientLawsandInstitutesofEngland,II,Glossary.Londres:Eyre&Spottis-woode,1840,s.p.6DaveGrossman,OnKilling:ThePsychologicalCostofLearningtoKillinWarandSociety.NovaYork:BackBayBooks,1995,p.98.7Id.,ibid.,p.59.8Id.,ibid.,p.107.9Id.,ibid.,p.118.10Eugostariadeinseriraquiumalongaobservaçãoteóricasobreoconceitodecopresençapragmáticaqueproponho.Enquantoa

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presençalocalsedefinepelarelaçãoentreumaentidadeeumlugar(relaçãodelocalização),acopresençasedefineapenasporumarelaçãoentreentidades(seresoueventos).Sercopresentessignificaestarempresençaunsdosoutros.Emregrageral,obviamente,acopresençapressupõeacolocalização–parasercopresentes,éprecisoestarnomesmolugar–,masnemsempreéesseocaso,eéexatamentenessepontoqueconsistearupturaprincipalintroduzidapelasteletecnologias.

Seacopresençasedefinecomoumapresençaem,elanãoénecessariamenteumapresençapara.Fazemosregularmenteaexperiênciadisso:podemossercopresentessemosaber.Ooutroestavalá,maseuaindanãootinhavisto.Emoutraspalavras,acopresençanãopressupõeaconsciênciadesercopresentes.Nãoéredutívelaumsentimentosubjetivo.Coisas,objetosmateriaisinanimadospodemsercopresentes.

Masacopresençatampoucoésimplescoexistência.Paraqueduasentidadessejamditascoexistentes,bastaqueelassejamaomesmotempo,queexistamdemodosimultâneo.Masacopresençasupõemaisqueisso,asaber,apossibilidadedeumtermoafetaroutroouserafetadoporele(relaçãodecausalidade).Acopresençasedefine,emoutraspalavras,porumapossibilidadeinstantâneamasnãonecessariamenteatualizadaderelaçãoreal.

Outramaneiraaindadedizê-loéqueacopresençasedefinepelaaccessibilidadedeumtermoaooutro.Parasercopresentes,éprecisoestaraoalcanceumdooutro.Doisexércitosestãoempresençaumdooutroquandoestãoaoalcancedetiro,eissomesmoquenenhumtiroaindatenhasidotrocado.Éessanoçãodealcancequedistingueacopresençacomoconceitopragmáticodasimplescoexistência.Acopresençasupõe,paraalémdasimplesexistênciasimultâneadeduasentidades,ainclusãodeumanocampodealcancedaoutra.Pode-sedestacar,sobreofundoindefinidodacoexistênciaobjetiva,adquiridadesdequeváriasentidadesexistemaomesmotempo,esferasdecopresençadeterminadas.Umcampodecopresençapragmáticaédefinidopelainclusãodeumaentidadenocampocausaldeoutra.Parasereshumanosouanimais,essecampocausalcorrespondeaocampodaaçãoedapercepção,ouaindaaseucampocinestésico.Elasedefinepelainclusãodeaomenosumdessesdoistermosnoperímetrodeaomenosumadimensãodocampocinestésicooucausaldooutro.

Operímetropragmáticodecopresençasedefinepelazonadeafeiçãoperceptiva(perceber,serpercebido)oudeação(produzirumefeito,sofrerumefeito)possível.Existemtantoscamposdealcancequantodimensõesdecopresençapossível.Podemosestaraoalcancedoolhar,aoalcancedoouvido,aoalcancedamão…Eoscamposdealcancecorrespondentesaessesdiferentesaspectosouaessasdiferentesdimensõesdecopresençatêmextensõesdiferentes.Emregrageral,quantomaisfracaéadistância,tantomaiscompletaéacopresençaemrelaçãoaseulequedisponível.Házonasdesobreposiçãooudeencavalamentovariávelentreasdiferentesdimensões.Demodoqueháexperiênciasdecopresençamaisoumenosricasconformecombinemmaisoumenosdimensõesdecopresença,conformedestaquemmaisoumenoscamposdealcance.Relacionadacomos“estratosdomundovivido”,adistâncianãoépuramentequantitativa,masconhecelimiaresqualitativosquecorrespondemaoslimitessuscetíveisdeextinçãodosdiferentesalcancescinestésicos.Oque,nessepontodevista,diferenciaagrandeproximidadedagrandedistânciaentredoiscorposéariquezadasdimensõesempilhadasdecopresença.Eleestavanaplataformadaestaçãoeeupodiafalarcomeleeabraçá-loumaúltimavez,masotremseafastaeagorasópossovê-lodelonge:acopresença,ricaemultidimensional,empobreceu-separasereduzirexclusivamenteaocampoóptico.Assim,anoçãodocampodealcancedeterminaqualitativamente,compassagenslimítrofes,asdedistânciaedeproximidade.Aproximidademaisestreitaencontra-senopontoondetodososcampossecruzam.Maspoucoapouco,emumasériedepassagens,afastando-me,saiosucessivamentedoslimitesdevárioscamposdecopresença.Háefeitosdelimiar,derupturaqualitativanadistância,osquais,noafastamento,setraduzemporumaperdaprogressivadegamasoudedimensõesdecopresença.Aextensãodessescamposvariasegundooaspectoconsiderado:ocampodepercepçãoóptica,porexemplo,éemgeralmaisextensoqueodapercepçãotátil.Oolhopodecomumentevermaislongedoqueamãopodetocar.Ocampocinestésicosedecompõe,narealidade,emdiversoscamposdeextensõesdiferentes,dealgummodoencaixadosunsnosoutrosemesferasconcêntricas.Arelaçãodecopresençapragmáticaémaisoumenosrica,maisoumenoscompletaemsuagama.Logo,adistânciaeaproximidadenãosãoapenasnoçõesmétricas:correspondempragmaticamentenãosóatemposdetrajetoparapercorreroespaçointermediário,mastambémserecortam,nazonadecopresençapragmática,segundolimiarescorrespondentesaosempilhamentosmaisoumenoscompletosdedimensõesdecopresença,conformeestejamosounãoaoalcancedooutroouooutroaoalcancedenóssobarelaçãoconsiderada(quesãotãonumerosasquantoosmodosderelaçõespossíveisentrecorpos,entreosquaiscorposvivos).Agamadasdimensõesdecopresençanãoselimita,portanto,àpalhetadosdiferentessentidos.Contatambém,porexemplo,comoquesepoderiachamar,equeécentralaqui,zonaletalou,reciprocamente,zonadevulnerabilidade,quesedelimitaoriginariamentepeloalcancedasgarras,dosbraçosoudosdentesearelaçãodevelocidadeederesistênciarelativaentrepresaepredador.Emoutraspalavras,épreciso,noplanoprágmatico,trocaranoçãoestritamentenuméricadedistânciaporumanoçãodealcanceoudeenvergaduracujoraiodeterminaoslimiteseaextensãodaesferadecopresençapossível.

Osraiosdoscamposdealcancevariamtambémemfunçãodosindivíduosoudasentidadesconsiderados.Tipicamente,ocampodevisãodeumpodesermaisvastoqueodooutro.Daíresultaessaconsequênciaparadoxal:que,sobesseaspecto,setenhoumavistamelhor,possodealgumamaneiraestarempresençadooutroantesqueeleestejanaminhapresença.Consequênciaparadoxal,poisissoequivaleadizerqueacopresençanãoénecessariamenterecíproca.Apresaeseupredadorescondidonasombrasãocopresentes,mesmoseaquelaaindanãopodevê-lo.Paraquehajacopresença,bastaqueumdostermossejaincluídoemaomenosumcampodealcancedooutro.Existemformasparadoxaisdecopresençaunilateral,emqueaentidadeApodeagirsobreaentidadeBouserafetadaporelasemquearecíprocasejaverdadeira.Oprefixo“co”aquinãoindicaareciprocidadedarelação,masofatodeumainclusãocomum.Hácopresençaseosdoistermossãoincluídosemumamesmaesferapragmática.Masbastaumasó.Falaremos,nessecaso,decopresençaunilateral,definidapelainclusãonãorecíprocadeumtermonocampodealcancedooutro.Acopresençaportantotemnãosódiferentescamposdealcancesvariáveissegundosuasdiferentesdimensões,mastambémestruturasdemorfologiasdiferentesconformearelaçãoconsideradasejaounãopassíveldereciprocidade.Chamoestruturadecopresençaarelaçãodeinclusãorecíproca

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ounãorecíprocadeumaentidadenoscamposdealcancedooutro.Aestruturadecopresençadeterminaoqueé,paracadaentidade,possívelouimpossíveldefazeraooutronarelação.Essaestruturafixaasregraspragmáticasconstitutivasdarelação(porexemplo:podemosnosversempodernosfalar,masseminhavoztemalcancemaiorqueasua,possofalar-lhesempoderouvi-lo).Estruturasecamposdecopresençasecombinamdemodovariáveleapartirdaípoderíamosfacilmentegerar,porcombinatória,gradesdeconfiguraçõesdecopresença,umatipologiadeformasdecopresençapossíveis,quefariaaparecercasosrarosouimprevistos.Ocasofictíciodohomeminvisível,porexemplo,terialugaremumataltipologia:casodecopresençanãorecíprocasegundoocampoóptico,maspassíveldereciprocidadesegundoocampotáctilouletal.Essasconfiguraçõesdecopresençaconstituemobjetodelutas,nasquaiscadaumpodetentarmodificarasregrasemseuproveito.Existetodoumconjuntodetáticasmaisoumenoseficazesparatornarnãorecíprocaumaestruturadecopresençaquenãooéimediatamente.Omundoanimal,mastambémahistóriadaguerraedoarmamentosãorepletosdessetipodetática.Podemosprocurar,porexemplo,estenderseuraiodealcanceparapoderatingirooutrosemqueelepossa,porfaltadeequipamentoequivalente,nosatingir.Podemostambém,aindaqueestandoinclusosnocampoperceptivoenazonadeoperaçãodooutro,tentarnostornarimperceptíveis:estratagemasdecamuflagem,ardisdeinvisibilização.Masháumadiferençaentresimplesardisque,umavezqueaestruturageraldacopresençafoideixadainalterada,trabalhamparaafetarsuascondições,etentativasdemodificaçãoradicaldaestruturadecopresençanosentidodetorná-launilateral.

Seemgeral,paracorposnãoinstrumentados,acopresençaimplicaacolocalização,nãoémaisnecessariamenteocasocomasteletecnologias.Oqueelaspermitemfazer,fundamentalmente,édissociarasrelaçõespragmáticasdecopresençadesuacondiçãodecolocalizaçãocorporal.Masasteletecnologiassãomuitomalnomeadas.Aocontráriodoqueessadenominaçãoindica,nãosedefinemfundamentalmentecomotécnicasdeoperaçãoadistância.Podemos,éclaro,telefonaraooutroextremodomundo,maspodemostambémnosfalarporintermédiodecelulares,comofrequentementeocorre,decostasumparaooutronamesmacalçada.Oprópriodasteletecnologiaséfuncionarindiferentementenopróximoenodistante.Éinclusiveessaparticularidadequeasdistinguedeoutrosprocedimentosmaisantigosebaseadosemoutrosprincípios.Podemosobservarobjetosdistantescomobinóculo,mastudoficaforadefocoseapontarmosoinstrumentoparaobjetospróximos.Domesmomodo,umtelefonenãoéumporta-voz:tentemterumaconversapormeiodemegafonesnomesmocômodo…Seasteletecnologiaspermitemignoraradistância,elasnãoimpedem,porém,ousodessesmesmosdispositivosdeperto,demodoqueoqueascaracterizaémenosadistânciaqueofatodeissoserindiferenteparaseufuncionamento.Adiferençaentretelefonecelularemegafone,ouentrebinóculosecâmeradevídeo,éaseguinte:temos,deumlado,técnicasquetrabalhamparaestenderoalcancenacontinuidadeespacialdeumazonadecolocalização(emrigor,sãotécnicasdadistância,nosentidodedistânciacontínua,queutilizamoespaçofísicodiretamentecomomeiomaterial),e,dooutro,técnicasdedeslocalizaçãodacopresençapragmática,quesuprimemacondiçãodecolocalizaçãocorporal.Éprecisodistinguirentredoistiposdetécnica:procedimentosdeextensãodoscamposdealcanceporamplificaçãodosfenômenos(aumentarovolume,aumentaraimagem,lançarmaislongeetc.)eprocedimentosdecopresençabaseadosemumprincípioderetransmissãodesinal(captação–transmissão–reproduçãodeumpontoaoutro).Nessesegundoesquema,ograudedistânciaoudeproximidadefísicaentreessesdoispontoséindiferenteaoêxitodoefeitodecopresença.Comosaparelhosteletecnológicos,aesferadecopresençaédeterminadapelazonadecoberturadosinalmaisdoquepeloalcancedoscampossensório-motoresdoprópriocorpooudeseusinstrumentos.Sócontaaconexão,apartirdecadaponto,comarededetransmissão.Oquecaracterizaasteletecnologiaséofatodeemanciparemacopresençadacondiçãodecolocalizaçãodeseustermosemumamesmaregiãocontínuadoespaçoqueservedemeiofísicoàsoperações:bastaquecadaumseencontreemumazonadecoberturadarede.Correlativamente,atelepresençasedefinirámenoscomopresençaadistânciaquecomocopresençaindependentedacolocalizaçãodeseustermos.Copresençaporconexão,demodoqueocontinuumdeumcampocinestésicoimediatonãosejanecessárioparaqueaoperaçãoocorra.

Pode-sedizerqueoprincipalefeitodasteletecnologiasédissociaracopresençadesuacondiçãodecolocalização.Elasproduzemequivalentespragmáticosmodificadosdacopresençacomum,dissociada,desmembradadesuascondiçõesdecolocalizaçãofísicadoscorpos.Ostermosnãosãomaiscopresentesnosentidodeumacolocalizaçãoemumamesmaregiãocontínuadoespaço.Elesnãosãocopresentessenãonosentidodeumasimultaneidadeinterconectada.Oqueasteletecnologiasproduzemparaseusoperadorespodeserqualificadocomoexperiênciadesmembrada,eissoemumduplosentido.Emprimeiro,dissociaçãoentreacopresençaeacolocalização.Desmembraré“desencaixar,desmantelar,desconjuntar,desarticular”(Littré).Produz-seaquiumdesencaixedapresençaedolugar,umadesarticulaçãodacopresençapragmáticaedacolocalizaçãofísicadoscorpos.Apresençanãoestámaisestreitamenteencaixadanolugardocorpo,neminteiramentealojadanele.Fenômenosdecopresençaforadosolo.Nãohámaisnecessidadedeestarfisicamenteemumamesmaregiãorestritadoespaçoparapodersefalar.Colocalizaçãofísicaecopresençapragmática,antesligadasumaàoutraemumarelaçãodecondicionamentonecessário,nãoosãomais.Porconseguinte,aquestãodolugardaação,antesmuitosimples,torna-semaiscomplicada.Ondeocorreaação?Ondeocorreumaconversatelefônica?Aaçãoquesedesenrolaemvárioslugaresaomesmotempo.Simultaneamenteaquielá.Oacontecimentonãoémaisatômico,édivididoentreasextremidadesdesuaefetuação.

Emsegundo,desmembramentonosentidodeumafragmentação,deumadissociaçãodedimensõesdecopresençaimediatamenteassociadasnaexperiênciaordinária.Experiênciadecopresençasparciais,desarticuladas.NocomeçodoséculoXX,oscontemporâneosqueassistiamàgeneralizaçãodosprimeirostelefonescaracterizavamaconversatelefônicacomo“presençadiminuída”ou“presençaparcial”.Aideianãoeraqueaofalaraotelefoneapessoaestavaparcialmentelocalizadadooutroladodofone,comoseumpedaçodesiestivesseali(cadaumsabeondeeleestá,emquelugar,quandotelefona),mas,antes,queacopresençaentreosdoisinterlocutoresestavadiminuída,parcialpoisreduzidaaumapartedesuasdimensões(ouvirefalar,massemver,semtocar,semsentir–vozessemrostosesemcorpos).Essaideiadepresençadiminuídasereferiaaessefenômenodereduçãodacopresença,istoé,dascapacidadesdeafetareserafetado,aumaúnicadessasdimensões,comperdadasoutras,queformavamnainteraçãofaceafaceumacopresençaplenaoucompleta.Encontram-seentãoradicalmentedesligados,separados,disjuntoselementosdaexperiênciaquecostumavamser

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associadosnasformasdaexperiênciaimediata.Podersefalarsempodersever.Poderatacarsempoderseratacado.Poderversempoderservisto…

Oqueseencontradesmembradosãoaspectosoriginariamenteindissociadosdapresençacorporal.Aspectosqueocorpoapresentasemprejuntosequevãopoderseapresentarseparados.Muitoesquematicamente,poderíamosdizerqueháaomenosquatroaspectosdapresençaqueocorporeúneemumúnicolugarnaausênciadeoutroequipamento:essecorpoéagente,esequisermosagiréporeleeaqui;essecorpoéperceptivo,eaítambém,naausênciadeequipamento,éláondeeleestáecomseusmeiosprópriosquepercebemos;essecorpoéigualmenteperceptível(visível,dotadodeodores…);essecorpoéenfimvulnerável,suscetíveldeserferido,desermorto,eissoporqueéumcorpovivo.Corpoagente,corpoperceptivo,corpoperceptívelecorpovitalestãotodososquatroencravadosnumúnicoemesmolugar,eesselugaréoquechamamoscorpo.“Ocorpo”éonomedessasínteseimediataaparentementeindissolúveldessasquatrodimensõesoudessesquatroaspectosdaexperiência,queseatraemunsaosoutros,que,literalmente,caminhamjuntos.Éessaunidadeimediataqueasteletecnologias,radicalmente,desfazem,agregandoàsínteseimediataumaoutra,duplicando-acomumasíntesetécnicaquereconfiguraradicalmenteasrelaçõesentreessesquatroaspectos.Deligadosqueestavam,algunsdelestornam-seindependents,dissociados.Corpodesmantelado,noqual,nareproduçãoparcialdocorpoorgânico,podemserdissociadoselementosqueocorpoassociavaemsuaunidadeimediata.

Essesdispositivos,portanto,agemaomesmotemponapalhetadasdimensõesdecopresençaeemsuaestrutura,demodoqueproduzam,segundoasescolhasquepresidemasuaarquiteturatécnica,formasdeexperiênciasnovas.Presençasmancas,presençascegas,copresençasnãorecíprocasetc.Elastransformamasformasdeco-presença,tornandonãosópossíveis,masnecessáriasouimpossíveis,configuraçõesquenãoosãonaexperiênciaimediata.Paratomardenovooexemplodotelefone:éporcertopossívelnaexperiênciaordináriafalarsemsever(deolhosfechados,atrásdeumaporta,noescuro…),masessaconfiguraçãonãoéinscritacomoumanecessidadenaestruturadaexperiência.

Ora,éissoqueotelefonemuda:odispositivotornaimpossívelseverporseuintermédioenquantosefala.Éaprópriaformadaexperiênciaqueémodificada,estruturalmente.Odesigndosdispositivosteletecnológicosdeterminaasformasdecopresençapossíveis.Elespermitemtambémreconfiguraçõesinéditasdasestruturasdaexperiência.Comoprocedem?Deduasgrandesmaneiras.Osdispositivosteletecnológicospodemprimeiro“filtrar”asdimensõesdecopresençaqueelesretransmitem.Fazerumatriagemnariquezaimediatadapalhetafenomenalparadelareterapenascertosaspectos.Porexemplo,fornecerapenasaimagem,ouosom.Maspodemtambém,munidosdesensoresadequadosnooutroextremodalinha,acrescentaràgamadenossascapacidadessensoriaisumadimensãodequenãodispúnhamossócomocorpo(porexemplo,avisãoinfravermelha).Issodependedeescolhastécnicas.Essesdispositivospodem,emsegundolugar,optar,nessasdiferentesdimensões,pordaràcopresençaumaestruturamaisoumenosrecíproca,desdeacompletaunilateralidadeatéaplenareciprocidade.Osdispositivosdetelecomunicaçãoadotamgeralmenteestruturasdetiporecíproco,masissonãoéumanecessidade.Trata-se,aítambém,deumadecisãonodesigndodispositivoteletecnológico.Osdispositivosdedrones,aocontrário,sãocomandadosporescolhasestruturaisdenãoreciprocidade.

Osdispositivosteletecnológicosdesmembrameaomesmotemporessintetizamoqueoprópriocorpo,emsuaunidadeimediata,apresentacomoinerente.Oqueessasnovassíntesesassimmodificamsãoasformaseasestruturasconstitutivasdaexperiência,quesãotambémascondiçõesdaexperiênciaintersubjetiva.Éissoqueateletecnologiadodrone,noquetocaàrelaçãodeviolência,reconfiguraradicalmente,introduzindoumarevoluçãonosmodosdecopresença,ecomela,naestruturadaintersubjetividade.11E.Bumiller,op.cit.12Id.,ibid.13S.Lindlaw,op.cit.14Há,nafilosofiadaguerra,umateseclássicaquedizrespeitoàsrelaçõesentrealcancedaarmaeenvolvimentoemocionaldosoldado.Estaseapresentanaformadeumalei,quepoderíamosrebatizardeleideClausewitz-Hegel.“Asarmaspormeiodasquaisoinimigopodeseratacadoadistância,escreviaCarlvonClausewitz,permitemqueossentimentos,oinstintodocombatepropriamentedito,permaneçammaisoumenosemrepouso,ealipermaneçamtantomaiscompletamentequantomaiorforoalcancedessasarmas.Comumaatiradeira,podemosimaginarumcertograudecóleraqueacompanhaolançamentodapedra;essesentimentointervémmuitomenosnadescargadeummosqueteeaindamenosnotirodocanhão.”Àselvageriadocombatesingular,implicandoafetosemãossujas,opunha-se,comoprogresso,aabstraçãobrumosadoscanhões.Nessegranderelato,ahistóriadasarmasaparecesolidáriadeumtriunfodarazão.Hegelacrescentava:“Aarmadefogoéadescobertadamortegeral,indiferente,impessoal”.Estranhoelogiodamorteprovocadaasangue-frio,porsujeitosdesapaixonados,noregistrodeumaabstraçãodemassa.Senossosouvidosnãoestãotalvezmaispreparadosparaouvi-lo,nomomentomesmoemqueodronerepersonalizaparadoxalmenteessarelação,ésemdúvidaporqueoséculoXXnosensinouaconhecersuafacesombria.EnquantoofilósofodeBerlimenxergavaumateleologiatriunfanterumoàracionalizaçãodaviolênciadeEstado,oséculoXXdescobria,horrorizado,outracoisa.QuandoJohnUlricNefretomaessetemadepoisdaSegundaGuerraMundial,énumregistromuitomenosconfiante:“Oprogressopurgouaguerracontemporâneadacóleraemocionalqueacompanhavaaslutasdostempospassados.Excetuando-seainfantaria,matartornou-seumacoisatãoimpessoalqueomatadorpareceummeninocomumrevólverdebrinquedo,ouumhomemmatandobaratasnobanheiro”.JohnU.Nef,“TheEconomicRoadtoWar”.TheReviewofPolitics,v.11,n.3,jul.1949[pp.310-37],p.330.Sobo“progresso”daviolênciaadistância,apontadoravanteabarbáriedohomicidaasséptico.Queoassassíniomecanizado,queohomicidadeescritóriosejamenosterrívelqueoderramamentodesangueapaixonado,édaquiemdiantealgodequesepodesuspeitar.15Pode,assim,haver“proximidade”óptica,mas“distância”absolutadofenômenonotocanteatodososoutrossentidos.Issodevesercomparadoàexperiênciaperceptivadastropasterrestres.Nohomicidaemcombate,todosossentidossãosolicitados.Ora,ohorroréumsentimentosinestésico:irrompemaisquandotodosossentidosseencontramaomesmotempoacometidosesaturados.

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16D.Grossman,op.cit.,p.128.17ApudJaneMayer,“ThePredatorWar”.TheNewYorker,26out.2009.18WilliamSaletan,“Joystickvs.Jihad,theTemptationofRemote-ControlledKilling”.Slate,12fev.2006.19StanleyMilgramcontinuava:“Afunçãomanifestadofatodeautorizarmosavítimadeumpelotãodeexecuçãoausarumavendanosolhosédeixaracoisamenosestressanteparaela,masépossíveltambémqueissotenhaafunçãolatentedereduziroestressedoscarrascos,comoexpressõespopularesotestemunham:porexemplo,émaisfácilfalarmaldealguém‘àssuascostas’”.S.Milgram,ObediencetoAuthority:AnExperimentalView.NovaYork:Harper&Row,1974,p.38.20D.Grossman,op.cit.,p.128.21S.Milgram,op.cit.,p.39.22M.J.Martin&C.W.Sasser,op.cit.,p.31.23Sobreosefeitosdemoralbufferingproduzidospelasinterfacesdeoperaçãoremota,cf.MaryCummings,“CreatingMoralBuffersinWeaponControlInterfaceDesign”.TechnologyandSocietyMagazine,v.23,n.3,outonode2004,pp.28-33;M.Cummings,“AutomationandAccountabilityinDecisionSupportSystemInterfaceDesign”.JournalofTechnologyStudies,v.32,n.1,pp.23-31.Vertambém,sobreanoçãoassociadade“desengajamentomoral”,AlbertBandura,“MoralDisengagementinthePerpetrationofInhumanities”.PersonalityandSocialPsychologyReview,v.3,n.3,pp.193-209.24“TelecommutetotheWarzone”,H.Ortega,op.cit.Ocasodefiguramaispróximodooperadordedroneésemdúvidaodofranco-atirador.Tambémeleassocia,emsuaexperiência,distânciafísicaeproximidadeocular.Mas,àdiferençadestaúltima,ooperadordedronenãoestámaisfisicamentepresentenazonadashostilidades.25Eugostariadeacrescentaraquiumanotasobreadimensãofenomenológicadessesentimentodeshift,deoscilação,ligadoàexperiênciadatelepresença.Aforma“deexperiênciainstrumentada”queosoperadoresdedronesviveméestranha.Éadeumestadointermediárioentredoisextremos.Comofalardessesentimento,queaparececomoumaespéciededistúrbionapresença?Asreflexõesdofilósofonorte-americanoDanielDennettpoderiamserviraquidepontodepartida:“Ostrabalhadoresdelaboratóriosefábricasquelidamcommateriaisperigosos,operandobraçosemãosdecontrolemecânico,sofremumamudançadepontodevistaqueémaisnítidaemaispronunciadadoquequalquercineramapodeprovocar.Elespodemsentiropesoeasoscilaçõesdoscontêineresquemanipulamcomseusdedosmetálicos.Elessabemperfeitamentebemquandosãolevadospelaexperiênciaafalsascrençasequandoissonãoocorre;todavia,écomoseestivessemdentrodeumacâmaradeisolamentoaseresquadrinhada.Comesforçomental,elespodemconseguirmudarseupontodevistaparaláeparacá,comoseestivessemfazendoumamudançadeorientaçãocomumcubotransparentedeNeckerouumdesenhodeEscherdiantedeseusolhos.Nãopareceexageradosuporque,aorealizaremessapequenaginásticamental,elesestejamsetransportandoparaláeparacá”.D.Dennett,“WhereamI?”,inBrainstorms:PhilosophicalEssaysonMindandPsychology.Cambridge:MIT,1981[pp.310-23],p.314[ed.bras.:“Ondeestoueu?”,inBrainstorms:ensaiosfilosóficossobreamenteeapsicologia,trad.LuizHenriquedeAraújoDutra.SãoPaulo:EditoraUnesp,2004,p.408].

Aoconcentraraatençãonosmovimentosdobraçomecânico,ooperadorpodedealgumamaneiraadotaropontodevistadodispositivoexecutor,imaginar-secomoseelepróprioestivesseláoperando.Maselenãoacreditadefatoqueestáemalgumoutrolugarquenãoondeseucorpoestásentado.Portanto,suaexperiêncianãoéadeumengodooudeumafalsacrençainduzidaporumailusãosensorial.Noentanto,é“comose”eleestivessenasalaemquesedãoasoperações.Éosentidodesse“comose”queseriaprecisoesclarecer.Um“comose”quenãoédaordemdeumacrença,mastampoucodeumailusão.AanalogiafinaldeDennettésutil:osexemplosqueeledásãocasosbastanteespecíficosdeobjetosparadoxais.QuandonosconcentramosnumcubodeNecker,podemosvê-losucessivamenteparafrenteouparatrás,suasfacesposteriorestornando-seanteriores,ereciprocamente,conformeasbasculamosmentalmenteaoprimeiroplanoouaoplanodetrás.Oqueimportanessaanalogiarelacionadacomaexperiênciadooperadorremotoémenosaideiadeumaindecidibilidadeinterpretativadoqueadeumavariaçãodaconfiguraçãoobjetaldofenômenoemfunçãodafocalizaçãomentaldosujeito.Ateseassociadanãoétantoqueosentimentodetelepresençaéoudeveserilusórioparaexistir,quantoesta:éumaquestãodefocalizaçãodaatenção,derecortecommúltiplasescolhas,ouaindadepriorizaçãodiferencialdoquevaivalercomoprimeiroplanoouplanodetrásemummesmofundoperceptivo.Comodarcontadessaexperiênciademudançadepontodevista?Quaissãoasoperaçõesfenomenológicassubjacentes?JackM.Loomisofereceumaexplicaçãoconvincentedessefenômeno:osoperadoresremotos,constata,“falamfrequentementedeumaimpressãocativantede‘telepresença’oude‘presençaadistância’(remotepresence)”.J.M.Loomis,“DistalAttributionandPresence”.Presence,Teleoperators,andVirtualEnvironments,V.1,n.1,1992[pp.113-18],p.113.Segundoele,oqueosoperadoresremotosexperimentamnãoéessencialmentediferentedoqueseproduzquandoutilizamosumabengalaouumbastãoparatatearumasuperfície:sentimo-nosentãocomonaextremidadedobastãoenãocomonamãoqueosegura.Adotamosopontodevistadobastão.Osoperadoresremotosnãofazemfundamentalmenteoutracoisaquandoadotamopontodevistadosbraçosmecânicosquecomandam.Essetipodefenômenodeoscilaçãodepontodevista,deadoçãodopontodevistadoinstrumento,quepodetambémserdescritocomoumfenômenodeprojeçãooudetranslocaçãodedadosperceptivos,nãotemnadadeespecíficoaessedispositivotécnico,nemmesmo,aliás,aousodeinstrumentos.Ofundocomumsobreoqualoperaéoqueapsicologiachama“projeção”.Essefenômenogeral,queseproduzcomosprópriosórgãosdossentidos,tambémfoiqualificadode“externalização”,de“translocação”oude“atribuiçãodistal”.Noentanto,assensaçõespercebidasaqui,emmeucorpo,sãoatribuídasalhures,referidasaumlugar.Paradescreveroqueseproduzentãonaconsciênciadosujeito,Loomismobilizaosconceitosdeconsciênciafocaledeconsciênciasubsidiária,aprimeiradesignandoumaatençãodeprimeiroplanoeasegundaumconjuntodepequenaspercepçõesremanescentes,noplanodefundodaconsciência.Quandoohábitodomanejodoinstrumentofaz“aconsciênciasubsidiáriadacadeiademediaçãoesmaecerapontodesetornartransparente”,osujeitopodeentãodesenvolveruma“consciênciafocaloudistal”.Noentanto,mesmoseelenãotemmaisnecessidadedeprestaratençãoparaagir,asensaçãodocontatodamãocomo

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bastãopersisteemsurdina.Emboraamediaçãoinstrumentaltenhasetornadocomoquetransparente,aindarestaalgodelaemteladefundo,pelomenosatítulodepequenaspercepçõesescondidasbemnofundodaconsciênciasubsidiária.Masbastaria,porexemplo,queapalmademinhamãoseferissecomumafarpaesquecidanasuperfíciedobastãoparaqueestainvadisseinstantaneamenteocampodeminhaconsciênciafocal,relegandoapedratocadaporseuintermédioaoespectrodaconsciênciasubsidiária.Énissoqueconsistea“mudançadepontodevista”mencionadaporDennett:mudançadeobjetoentreconsciênciafocaleconsciênciasubsidiária,conformeeufocalizonazonadecontatoentremeucorpoeamediaçãoinstrumental–porexemplo,obastão,ouapeçacujosmanetesaciono–ouconformeeuconfiroaesseselementosumaposiçãosubsidiáriaparadirigirminhaatençãoaoobjetoquevisoporesseintermédio.

Háumaformadeesquecimentodamediação,masestaédeordemapenaspragmática:nãotemosmaisnecessidadedepensarparaagir.Nãoaignoramos,então,nosentidoemqueseríamosincapazesdereconhecerseupapelouexistência(ignorânciaepistêmica),massónosentidoemquepodemosfazerabstraçãodamediaçãoparaagir(esquecimentopragmático).Esseesquecimentopragmáticodamediação,longederepresentarumfracassodosujeitoperceptivo,incapacidadedeperceber,dereconhecerseupapel,éaocontráriooprodutodeumlongoesforçoparaseapropriardoinstrumento,paraincorporá-loasi,paranãotermaisquepensarnele.Oesquecimentomomentâneodamediaçãoinstrumentaléumestadoqueéprecisoconseguiralcançar.Portanto,nãoumfracassoepistêmico,masumêxitopragmático.

Parapoderexperimentarumfortesentimentodetelepresença,éprecisoqueosujeitoconsiganãosósubsidiareficazmenteaconsciênciadamediaçãoinstrumental,mastambémadesuapresençalocal,oconjuntodosestímulosqueoafetamemseuambienteimediato(essacadeiraquefazmalasuascostas,essesruídosemvoltadele…).Ora,oquecaracterizaessetipodeexperiênciaconsisteemregrageralemque“osujeitoperceptivorecebeinformaçõessensoriaisconflitivas,algumassignificandooambientedistanteousimulado,eoutrasoambientefísicorealnoqualoobservadorestápresente.Épresumívelque,quandooestímuloéinsuficienteparacredenciarcompletamentea‘telepresença’(aconsciênciadeestaremoutrolugar),oobservadorexperimenteuma‘consciênciasubsidiária’doambienterealeumaatençãofocaldoambientedistanteousimulado[…]quandofalamoscomalguémaotelefone,porexemplo,temosaconsciênciasubsidiáriadeestarmosemumlugarcomunicando-nosatravésdeumaparelhoeaomesmotempoumaconsciênciafocaldapessoanooutroladodofio”,ibid.,p.117.Manteresseestadosubsidiáriorequeresforços.Étodooproblema,acruzdosergonomistasquetrabalhamnodesigndasinterfacesedospsicólogosqueestudamotrabalhodosoperadoresremotos,damanutençãodaatençãofocaldurantelongashoras,ou,novocabuláriodeles,dafacilitaçãoedamanutençãoda“consciênciasituacional”dosoperadoresremotos,semprefrágil.Concentrar-nosemumambienteenquantopercebemosdoisdelesdeumavez,fazerabstração-problemadeatenção,defocalizaçãomentalemumpontodevista.NocasodocubodeNecker,nãopodemosverasduasfigurasaomesmotempo.Quandovemosuma,aoutradesaparece.Éumaalternativaestrita,umaapagaaoutra.Aoscilaçãodepontodevistaétotal.Nocasodooperadorremoto,háoscilaçãoentreconsciênciafocaleconsciênciasubsidiáriamasoproblemaéqueumacontinuaaparasitaraoutra,emsurdina,poiselaéoquadroimediatonoqualaoutraéintercalada.Éprecisorecortar,selecionar,fazerabstraçãodaquelaquepermaneceequenãoédisjuntivamenteapagadapelaoutra.Oproblemadelesnãoé,anteumailusãoperfeitadetelepresença,saberondeestão,oqueérealeoquenãoseria,mas,aocontrário,anteexperiênciasmistaseimbricadasdepresençaaomesmotempolocaledistante,articulardeformacoerenteoshorizontesdessaexperiênciaderealidadeconfusa.Nãosetomaumapelaoutra,masumacomaoutraeumanaoutra.Hámenosconfusãoqueintercalação,sobreposiçãoparcialouarticulaçãoproblemática.Nãoé

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aexperiênciadesercapturadonumapresença,masadeterduaspresençasempilhadas.Sobreosdebatesontológicosefenomenológicosarespeitodatelepresença,vertambémLucianoFloridi,“ThePhilosophyofPresence:FromEpistemicFailuretoSuccessfulObservation”.Presence:Teleoperators&VirtualEnvironments,v.14,n.6,2005,pp.546-57.26DaveLara,inH.Ortega,op.cit.27M.J.Martin&C.W.Sasser,op.cit.,p.85.28B.Morlock,op.cit.29Fórumdediscussãodacomunidademilitardosite<http://www.militarytimes.com/>,“Thread:UAVOperatorsSufferWarStress”,consultadoemmaiode2011.30Aguerraéuma“ab-rogaçãooficaldospadrõescivilizados”,emqueseénãosóencorajado,mastambémobrigadoaadotarcondutasqueemoutrasituaçãorevoltariam“nossasdisposiçõesestéticasemorais”habituais.Porisso,ossoldados“sãosubmetidosaumreajustedegrandeamplitudedesuasatitudesmentaisedeseuspadrõesdecondutaanteriores[…]osantigospadrõesdemoralidadegeral,delimpezaedesentimentoestéticodevemtodossofrerumaalteraçãoconsiderável”.Elesvivemumpadrãoduplo.E.Jones,“WarShockandFreud’sTheoryoftheNeurosis”,inE.Jones(org.),Psycho-AnalysisandtheWarNeuroses,op.cit.,p.48.31JohnKeegan,TheIllustratedFaceofBattle.NovaYork/Londres:Viking,1989,p.284.32NicolaAbé,“DreamsinInfrared:TheWoesofanAmericanDroneOperator”.Spiegelonline,14dez.2012.Traduçãofrancesa:N.Abé,“UnAncien‘pilote’américainraconte”.Courrierinternational,3jan.2013.33E.Bumiller,op.cit.34H.Ortega,op.cit.35Id.,ibid.36S.Weil,LaPesanteuretlagrâce.Paris:Plon,1948,p.139.37Id.,ibid.

III.NECROÉTICA

1.AIMUNIDADEDOCOMBATENTE[pp.142-51]1ApudThomasG.Mahnken,TechnologyandtheAmericanWayofWar.NovaYork:ColumbiaUniversityPress,2008,p.187.2WesleyClark,WagingModernWar:Bosnia,Kosovo,andtheFutureofCombat.NovaYork:PublicAffairs,2002,p.183.3WilliamCohen&HenryShelton,JointStatementonKosovoAfter-ActionReviewbeforetheSenateArmedServiceCommittee,14out.1999,p.27.4AndrewBacevich&EliotCohen,WarOverKosovo:PoliticsandStrategyinaGlobalAge.NovaYork:ColumbiaUniversityPress,2001,p.21.5AmnestyInternational,“CollateralDamage”orUnlawfulKillings:ViolationsoftheLawsofWarbyNATOduringOperationAlliedForce,5jun.2000.6MichaelIgnatieff,VirtualWar:Kosovoandbeyond.Londres:Vintage,2001,p.62.7ApudNicholasKerton-Johnson,JustifyingAmerica’sWars:TheConductandPracticeofUSMilitaryIntervention.NovaYork:Routledge,2011,p.80.8JeanBethkeElshtainacrescentava:“Seaimunidadedocombatentesetornarnossonovoprincípiodiretivo,osEstadosUnidoscertamentedefrontarãonofuturosituaçõesemquevamosrecusarounãoconseguiremosfazernãosóoqueécerto,masoqueénecessárioparacumprirnossosobjetivosdeclarados,para,aocontrário,recorrerameiossuscetíveisdesolaparnãosóarealizaçãodessesobjetivos,mastambémváriosséculosdeesforçosparalimitaromáximopossívelaguerraaoscombatentes”.J.B.Elshtain,“JustWarandHumanitarianIntervention”.IdeasfromtheNationalHumanitiesCenter,v.8,n.2,2001,pp.14-15.9AlexJ.Bellamy,“IstheWaronTerrorJust?”.InternationalRelations,v.19,n.3,2005[pp.275-96],p.289,apudDanielBrunstetter&MeganBraun,“TheImplicationsofDronesontheJustWarTradition”.Ethics&InternationalAffairs,25,2011,pp.337-58.10AmosHarel,“ThePhilosopherWhoGavetheIDFMoralJustificationinGaza”.Haaretz,6fev.2009.11Id.,ibid.12Id.,ibid.13AsaKasher&AmosYadlin,“MilitaryEthicsofFightingTerror:AnIsraeliPerspective”.JournalofMilitaryEthics,v.4,n.1,2005,pp.3-32.14Id.,ibid.,p.17.15Id.,ibid.,p.20.16AvishaiMargalit&MichaelWalzer,“Israel:Civilians&Combatants”.TheNewYorkReviewofBooks,14maio2009.17Id.,ibid.18MenahemYaari,“Israel:TheCodeofCombat”.TheNewYorkReviewofBooks,8out.2009.

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2.AARMAHUMANITÁRIA1ApudM.Benjamin,op.cit.,p.146.2ApudS.Shane,“TheMoralCaseforDrones”.TheNewYorkTimes,14jul.2012.3K.Anderson,“RiseoftheDrones:UnmannedSystemsandtheFutureofWar”,WrittenTestimonySubmittedtoSubcommitteeonNationalSecurityandForeignAffairs,CommitteeonOversightandGovernmentReform,USHouseofRepresentatives.SubcommitteeHearing,23mar.2010,p.12.4AveryPlaw,“DronesSaveLives,AmericanandOther”.TheNewYorkTimes,26set.2012.5BillSweetman,“FighterswithoutPilots”.PopularScience,v.251,n.5,nov.1997,p.97.6AUSNavalPostgraduateSchoolemMonterrey,Califórnia.7RoryCarroll,“ThePhilosopherMakingtheMoralCaseforUSDrones”.TheGuardian,2ago.2012.8Id.,ibid.9BradleyJayStrawser,“MoralPredators:TheDutytoEmployUninhabitedAerialVehicles”.JournalofMilitaryEthics,v.9,n.4,2010[pp.342-68],p.342.10Id.,ibid.,p.344.11Id.,ibid.12Id.,ibid.,p.342.13Id.,ibid.,p.346,grifomeu.14Id.,ibid.,p.351.15Id.,ibid.16B.J.StrawsercitaaquiaargumentaçãodafirmaisraelensedearmamentosRafael,queafirmaque“comseunovomíssildeprecisãodelongoalcanceSpike,concebidoparaserutilizadopordrones,chegouaoestágioda‘guerraurbanadeprecisão’”,ibid.,p.351.17M.Walzer,“TheArgumentaboutHumanIntervention”,inThinkingPolitically:EssaysinPoliticalTheory.NewHaven:YaleUniversityPress,2007,p.245.18Id.,ibid.19Sobreessaideia,ver,alémdasreflexõesdeWeizman,asdeAdiOphir,“DisasterasaPlaceofMorality:TheSovereign,theHumanitarian,andtheTerrorist”.QuiParle,v.16,n.1,verãode2006,pp.95-116.20Caresignifica“cuidado”,“solicitude”e“atenção”.OstrabalhosdasfeministasCarolGilliganeJoanTrontocontribuíramparafazerdesseconceitoonúcleodeumaabordageméticarenovada.Comoanteriormenteasnoçõesdevulnerabilidadepsíquicaedeempatia,odiscursodeumaéticadasolicitudeencontra-seaquimobilizadoeintegradodeformaapologéticaapráticasmortíferas.21E.Weizman,TheLeastofAllPossibleEvils:HumanitarianViolencefromArendttoGaza.Londres:Verso,2012,p.6.22H.Arendt,“PersonalResponsibilityUnderDictatorship”,inJeromeKohn(org.),ResponsibilityandJudgment.NovaYork:SchockenBooks,2003[pp.17-48],p.36,apudE.Weizman,ibid.,p.27[ed.bras.:Responsabilidadeejulgamento,trad.RosauraEichenberg.SãoPaulo:CompanhiadasLetras,2004,pp.98-99].

3.PRECISÕES1ThomasDeQuincey,OnMurder.Oxford:OxfordUniversityPress,2006,p.84[ed.bras.:Doassassinatocomoumadasbelasartes,trad.HenriquedeAraujoMesquita.PortoAlegre:L&PM,1985,p.47].2LeonE.Panetta,Director’sRemarksatthePacificCouncilonInternationalPolicy,18maio2009.3Esseprincípiofundadordodireitodosconflitosarmadosproíbeosataquesindiscriminados:sóosalvosmilitaresdevemserdiretamentevisados,oqueimplicafazeradistinçãonaidentificaçãoentrepopulaçõescivisecombatentes.4B.J.Strawser,“TheMoralityofDroneWarfareRevisited”.TheGuardian,6ago.2012.5S.Shane,op.cit.6Cf.JeremyR.Hammond,“TheImmoralCaseforDrones”,16jul.2012.<http://www.jeremyrhammond.com/2012/07/16/the-immoral-case-for-drones>7A.Mulrine,“WarheadsonForeheads”.AirForceMagazine,v.91,n.10,out.2008,pp.44-47.8Cf.LivingunderDrones,op.cit.,p.10.9“TransgendersTaketotheStreetsagainstDrones”.TheExpressTribune,31jul.2012.10JohnBrennan,“TheEthicsandEfficacyofthePresident’sCounterterrorismStrategy”.WilsonCenter,30abr.2012.<http://www.wilsoncenter.org/event/the-efficacy-and-ethics-us-counterterrorism-strategy>11Emoutrostermos,oargumentoaquiéqueatecnologiadodronerompe,noquetangeàcapacidadedediscriminação,aligaçãotradicionalmenteestabelecidaentreacuidadevisualeproximidadefísica.Aproximidadedooperadornãoémaisumfatornecessariamentepertinenteparaaidentificaçãodosalvos.ChristianEnemark,“WarUnmanned:MilitaryEthicsandtheRiseoftheDrone”,intervençãonaInternationalStudiesAssociationConvention,Montreal,16-19mar.2011.12A.Entous,S.Gorman&J.E.Barnes,“usRelaxesDroneRules:ObamaGivesCIA,MilitaryGreaterLeewayinUseagainstMilitantsinYemen”.TheWallStreetJournal,26abr.2012,apudTheCivilianImpact,op.cit.,p.33.

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13“AspessoascivisgozamdaproteçãoconcedidapelopresenteTítulo,salvoseelasparticipamdiretamentedashostilidadeseduranteaocorrênciadessaparticipação”,ProtocoleadditionnelauxConventionsdeGenèvedu12août1949relatifàlaprotectiondesvictimesdesconflitsarmésnoninternationaux(ProtocoleII),7dez.1978,TítuloIV,artigo13-3.14J.Brennan,“Ensuringal-Qa’ida’sDemise”,PaulH.NitzeSchoolofAdvancedInternationalStudies,JohnsHopkinsUniversity,Washington,29jun.2011,emrespostaàperguntasdaassistência.<http://www.c-spanvideo.org/program/AdministrationCo>15“MilitaryAgeMale”(MAM).16J.Becker&S.Shane,“Secret‘KillList’”,op.cit.Issoestáevidentementeemcompletaviolaçãodoprincípiodedistinção:oestatutodecombatentenãoteriacomoinferirpreviamenteaidadeeosexoaparentedeumasilhueta.17Id.,ibid.18VersobreessetemaE.Weizman,“ForensicArchitecture:OnlytheCriminalCanSolvetheCrime”.TheLeastofAllPossibleEvils,op.cit.,p.99ss.19M.Tahir,“LouderthanBombs”,op.cit.

IV.PRINCÍPIOSDAFILOSOFIADODIREITODEMATAR

1.OSASSASSINOSINDELICADOS1JosephdeMaistre,LesSoiréesdeSaint-Pétersbourg,tomoII.Buxelas:Maline,1837,pp.8-9.2M.Walzer,“TheTriumphofJustWarTheory(AndtheDangerofSuccess)”,inArguingAboutWar.NewHaven:YaleUniversityPress,2006[pp.3-22],p.16.3Id.,ibid.4Id.,ibid.,p.17.5Id.,ibid.6Id.,ibid.,p.102.7AlbertCamus,L’Hommerévolté.Paris:Gallimard,1958,p.211[ed.bras.:Ohomemrevoltado,trad.ValeriRumjanek.RiodeJaneiro:Record,2008,pp.200-02].8Id.,ibid.,p.212.9Id.,ibid.,p.213.

2.AGUERRAFORADECOMBATE1Voltaire,“L’A,B,C”,inŒuvrescomplètes,MélangesVI.Paris:Garnier,1879,p.368.2HugoGrotius,LeDroitdelaguerreetdelapaix,tomoIII.Haia,1703,p.85[ed.bras.:Odireitodaguerraedapaz,2volumes,trad.CiroMioranza.Ijuí:Unijuí,2005].3Id.,ibid.4Id.,ibid.5OpróprioGrotiuscomenta:“Eéplausívelqueapessoadosreistenhasuscitadoessamáxima,poissedeumladoavidadelesestáaoabrigodaforçaaberta,maisdoqueadosoutroshomens,deoutrolado,estariamaisexpostaaovenenodoquequalqueroutrapessoa”,ibid.Umteóricodaguerracomenta:“Grotiustemrazãonesseponto:seosreissótivessemumachanceemcincodemorreremumacampanha,hámuitotempojánãoveríamosmaisguerraentreospovoscivilizados”.NicolasVilliaumé,L’Espritdelaguerre.Paris:Dumaine,1866,p.60.6FrançoisLaurent,Histoiredudroitdesgensetdesrelationsinternationales,tomeX,LesNationalités.Paris:LibrairieInternationale,1865,p.488.7SamuelvonPufendorf,LeDroitdelanatureetdesgens,segundotomo,livroV,cap.IX,§3.Lyon:Bruyset,1771,p.108.8Id.,ibid.9Emoutraspalavras,aincertezaestabeleceaquiapossibilidadeparadoxaldeumacordoconvencionalapesardahostilidade.Opactodemortesóépensávelporqueéumpactodeacaso.10ThéodoreOrtolan,Règlesinternationalesetdiplomatiedelamer,tomoI.Paris:Plon,1864,p.9.11M.Ignatieff,VirtualWar,op.cit.,p.161.12“Turkeyshoot”.Id.,ibid.13“OprincípiofundamentaldamoralidadedaGuerraéumdireitodeexerceralegítimadefesanascondiçõesdeumaimposiçãomútuaderiscos.”PaulW.Kahn,“TheParadoxofRisklessWarfare”.PhilosophyandPublicPolicyQuarterly,v.22,n.3,2002.<http://digitalcommons.law.yale.edu/fss_papers/326>14Id.,ibid.,p.3.15B.J.Strawser,“MoralPredators”,op.cit.,p.356.Ecf.JeffMcMahan,KillinginWar.Oxford:OxfordUniversityPress,2009.

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16M.Walzer,Guerresjustesetinjustes.Paris:Gallimard,2010,p.111[ed.bras.:Guerrasjustaseinjustas,trad.WaldéaBarcellos.SãoPaulo:MartinsFontes,2003,p.70].Otriunfodessetipodefilosofiadodireitodaguerrateriaimplicaçõesgravíssimas.Aonegarao“guerreiroinjusto”seuigualdireitodecombater,elaotransformaimediatamenteemumcriminoso,umforadalei.Dessemodo,excluindo-odojusinbello,elatambémsuprimequalquerestímuloparaqueelerespeiteosprincípios,pois,detodamaneira,elenãosebeneficiarámaisdasproteçõeslegaisassociadasaorespeitodocombatenasformas.Aviolência,então,dosdoislados,perdetodasasbarreiras.17Neologismoformadocombasenomodelodapalavrawarfare,acondutadaguerra,paradesignaradimensãojurídicadabatalha,agolpesdeadvogadosedememorandostantoquantodesoldadosedemísseis.18C.Schmitt,LeNomosdelaTerre.Paris:PUF,2008,p.319[ed.bras.:OnomosdaTerranodireitodasgentesdosjuspublicumeuropæum,trad.AlexandreFrancodeSáetal.RiodeJaneiro:PUCRio/Contraponto,2014,pp.349-51].19Haveriaumaalternativaaessaopção,queteriaavantagemdemanterohorizontedeumaregulamentaçãojurídicadosconflitosarmadosemvezdeconvertê-laemanexodeumdireitomonopolísticodepuniçãoletal.AsreflexõesdeCharlesChaumont,quefoi,dentrodaÉcoledeReims,umdospensadorescríticosmaisfecundosdateoriadodireitointernacionaldofinaldoséculoXX,seriamhojedeextremautilidadepararepensarumdireitodaguerraemcontextodeconflitosassimétricos.Umprincípoaconsiderar,aminima,seriaodeumdireitoàpossibilidadedocombate.Queodireitodaguerraresulteemqueumdoscamposseprivedapossibilidadedocombate,issopodeseproduzirsegundoduasmodalidadescomplementares,indiretaoudireta.

Demodoindireto,autorizando,emcontextoassimétrico,meios,armasetáticasqueprivemestruturalmenteoinimigodequalquerpossibilidadedecombater,comoéocasodosdronesarmadoshoje.Issocolocaaquestãodalicitudedousodetaisarmasemconflitosassimétricos.Segundoumamodalidadedireta,proibindotáticasque,noentanto,sãoosúnicosrecursosdequeumcampodispõeparacombater.Chaumonttomaoexemplodaguerrilha:dadas“asdesigualdadesexistentesentreosmeiosmilitareselogísticosdosocupantesedosresistentes,aguerrilhaesforça-seemcompensaressasdesigualdadesporprocedimentosdelutaespecíficos.Asurpresa,aemboscada,asabotagem,ocombatederuasouocombatenaflorestasubstituemaguerraemcampoabertoeoconfrontodeunidadesmilitarescomparáveis.Nessesprocedimentos,oportedearmasaparenteeosinaldistintivo[previstocomoobrigaçãopelodireitodosconflitosarmados]podemounãosersignificativos[…]oupodemserrealmenteincompatíveiscomaeficáciadaluta[…].Logo,recusaressesprocedimentosespecíficosérecusaraguerrilha”.C.Chaumont,“LaRecherched’uncritèrepourl’intégrationdelaguérillaaudroitinternationalhumanitairecontemporain”,inMélangesoffertsàCharlesRousseau.Paris,1974,apudCICR,Commentairedesprotocolesadditionnelsdu8juin1977auxConventionsdeGenèvedu12août1949,Kluwer,Dordrecht,1986,p.536.Teria,porexemplo,sidoabsurdoexigirqueoscombatentesdaResistênciasobaocupaçãonaFrança,em1943,sedeslocassempelasruasdeParisemuniformeparaseadequaremaodireitodosconflitosarmados.Tem-seaíumcasotípiconoqualaplicarumdireitoigual(aobrigaçãodeportarumsignodistintivo)emsituaçõesdesiguais(tantoaumexércitoregularquantoaforçasdepartisans)produziniquidade.Chaumontpropõeumprincípiodiretivopararemediaressetipodeefeitoperverso:“Odireitohumanitário,porserobjetivoedignodecrédito,devepermitiracadapartechancesiguaisnocombate:seumanormadedireitoéincompatívelcomesseprincípioetornaimpossíveldeantemão,paraumadaspartes,aperspectivadavitória,valemaisrenunciaraestabeleceranorma”,ibid.Oqueelepreconizaaquiémaisumdireitoigualaocombatedoqueumdireitoaocombateigual,oqueequivaleriaaexigirumalutacomarmasiguais.Que,pelasnormasqueimpõe,odireitonãodevatornar“aperspectivadavitóriaimpossíveldeantemãoparaumadaspartes”,issonãoimplicatransformaraguerraemtorneio–pistolacontrapistolaousabrecontrasabre–,masreconheceradisparidadedasforçasempresença,comapreocupaçãodecuidarparanãoaumentá-lacomnormascegasqueconfeririamaunsmaisvantagens,privandoosoutrosdapossibilidademesmadecombater.

Dessemodo,Chaumontrompecomaigualdadeformaldalógicajurídicaclássica.Nãosetratamaisdeumprincípiodeidentidadeabsolutadosdireitosparatodososbeligerantes,comonomodeloatualdojusinbello.Trata-se,aocontrário,deumprincípiodeassimetrizaçãodosdireitosemrazãoinversadadesigualdadedarelaçãodeforça.Esseprincípioseapoianumconceitofortedeigualdade–umconceitodeigualdadegeométricadosdireitos:aforçasassimétricas,direitosassimétricos.Decertamaneira,osdefensoresdodireitounilateraldematarnãodizemoutracoisa,excetoobviamentequesetrata,paraeles,nãodereequilibrararelaçãodeforçapelamodulaçãodosdireitos,masdeunilateralizarodireitoparaadequá-loàunilateralizaçãodaforça,comoriscodefazernaufragaroprópriodireitonaoperação.NãosetrataparaChaumontdeefetuarumretornoanacrônicoaumidealcavaleiresco,mas,aocontrário,deumatentativadeintegrardeformarealistaosparâmetrosdosconflitosassimétricoscontemporâneosaodireitodosconflitosarmados.Apreocupaçãocentraléaseguinte:combatentesprivadospelodireitodequalquerpossibilidadelegítimadecombaterjánãotêmnenhumestímuloparaseadequaraosprincípiosdeumdireitoqueosexcluideleexcetoatítulodealvosaseremabatidos.ApreocupaçãodeChaumontépragmática:seoobjetivodosdireitosdosconflitosarmadosélevaraspartesempresençaamoderarsuaviolência,esobretudoregularaviolêncianãoconvencional,nãosedeveimpor-lhes,paraincluí-losnodireito,regrasquedesaídaasexcluamdele.Oqueestáemjogosãoascondiçõespragmáticasdeefetividadedodireitocomoinstrumentoderegulamentaçãodaviolênciaarmadanaeradosconflitosassimétricos.Paraumaexperiênciacontemporâneanessesentido,verMichaelL.Gross,MoralDilemmasofModernWar.NovaYork:CambridgeUniversityPress,2010,p.199.

3.LICENCETOKILL1ApudM.Benjamin,op.cit.,p.123.2AdamLiptak,“SecrecyofMemoonDroneKillingIsUpheld”.TheNewYorkTimes,2jan.2013.3H.Koh,op.cit.

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4“UNSpecialRapporteurPhilipAlstonRespondstoUSDefenseofDroneAttacks’Legality”.DemocracyNow,1oabr.2010.<http://www.democracynow.org/2010/4/1/drones>5Juristasqueenxergamaíumaimprecisãoperigosa:servindo-se“aumsótempodacategoriadoconflitoarmadoedacategoriadaautodefesacomojustificativaslegaisparaataquesseletivosforadazonadecombateativo”,escreveLaurieR.Blank,“osEstadosUnidoscorremoriscodeembaçarafronteiraentreessesdoisparadigmas,bemcomoasproteçõesaelesassociadas”.L.R.Blank,“TargetedStrikes:TheConsequencesofBlurringtheArmedConflictandSelf-DefenseJustifications”.WilliamMitchellLawReview,v.38,2012[pp.1655-700],p.1659.6Cf.NilsMelzer,TargetedKillinginInternationalLaw.Oxford:OxfordUniversityPress,2008,p.89ss.7PhilipAlston,ReportoftheSpecialRapporteuronExtrajudicial,Summary,orArbitraryExecutions,Addendum,Studyontargetedkillings,ONU,28maio2010,p.11.8Note-se:issodefineoprincípiodeproporcionalidadepróprioaolawenforcement–bastantediferentedaquelequeprevalecenodireitodosconflitosarmados.Cf.L.R.Blank,op.cit.,p.1690.9P.Alston,Report,op.cit.,p.25.10Cf.L.R.Blank,op.cit.,p.1668.11H.Koh,op.cit.12M.E.O’Connell,“LawfulUseofCombatDrones”,CongressoftheUnitedStates,HouseofRepresentatives,SubcommitteeonNationalSecurityandForeignAffairsHearing:RiseoftheDronesII:ExaminingtheLegalityofUnmannedTargeting,28abr.2010,p.2.13Cf.B.J.Strawser,“MoralPredators”,op.cit.,p.357.14J.Becker&S.Shane,op.cit.15K.Anderson,“PredatorsOverPakistan”.TheWeeklyStandard,v.15,n.24,8mar.2010[pp.26-34],p.32.16P.Alston,Report,op.cit.,p.22.Enaoutrahipótese:“Foradocontextodeconflitoarmado,osassassinatosconduzidospelaCIAconstituiriamexecuçõesextrajudiciaisnahipótesedenãoseconformaremàleidosdireitoshumanos”,ibid.,p.21.17K.Anderson,TargetedKillinginU.S.CounterterrorismStrategyandLaw,BrookingsInstitution,11maio2009.<http://www.brookings.edu/research/papers/2009/05/11-counterterrorism-anderson>18K.Anderson,TargetedKilling,op.cit.,p.27.19K.Anderson,“MorePredatorDroneDebateintheWallStreetJournal,andWhattheObamaAdministrationShouldDoasaPublicLegalPosition”.TheVolokhConspiracy,9jan.2010.<http://www.volokh.com/2010/01/09/more-predator-drone-debate-in-the-wall-street-journal-and-what-the-obama-administration-should-do-as-a-public-legal-position>20“OsEstadosUnidosadmitiramhámuitotempoaexistênciadeumespaçolegal,políticoeregulamentarparaumusodaforçaquenãosesituenemnoâmbitodeoperaçõesdelawenforcementsupervisionadaspelasautoridadesjudiciaisnemnodeconflitosarmadosabertos,emgrandeescala,emconformidadecomasdefiniçõesdostratadosinternacionais.”K.Anderson,TargetedKilling,op.cit.21Barbouze:gíriapejorativaparaagentesecreto.[N.T.]22AbrahamD.Sofaer,“ResponsestoTerrorism/TargetedKillingisaNecessaryOption”.SanFranciscoChronicle,26mar.2004.23K.Anderson,“MorePredatorDroneDebate”,op.cit.24“Essamisturadegênerostemporconsequênciaembaçareexpandirasfronteirasdosquadroslegaisaplicáveis[…]oresultadoéumdeslocamentodospadrõeslegaisclarosemproldeumalicençaparamatarvagamentedefinida.”P.Alston,Report,op.cit.,p.3.25K.Anderson,“MorePredatorDroneDebate”,op.cit.

V.CORPOSPOLÍTICOS

1.TANTONAGUERRACOMONAPAZ1A.L.H.M.Joly,LeSouverain.Considérationssurl’origine,lanature,lesfonctions,lesprérogativesdelasouveraineté,lesdroitsetlesdevoirsréciproquesdessouverainsetdespeuples.Paris:Renault,1868,p.262.2MichelFoucaultassimresumiaadificuldade:“Nãoéavidaqueéfundadoradodireitodosoberano?Enãopodeosoberanoreclamarefetivamentedeseussúditosodireitodeexercersobreelesopoderdevidaedemorte,ouseja,puraesimplesmente,opoderdematá-los?”.M.Foucault,“Ilfautdéfendrelasociété”.Paris:HautesÉtudes/Gallimard/Seuil,1997,p.215[ed.bras.:Emdefesadasociedade,trad.MariaErmantinaGalvão.SãoPaulo:MartinsFontes,2003,pp.287-88].3ThomasHobbes,Léviathan.Paris:Dalloz,1999,p.721[ed.bras.:Leviatã,oumatéria,formaepoderdeumestadoeclesiásticoecivil,trad.JoãoPauloMonteiroeMariaBeatrizNizzadaSilva.SãoPaulo:NovaCultural,1997,p.492].4C.Schmitt,LaNotiondepolitique,op.cit.,p.94[p.78].5T.Hobbes,op.cit,p.714[p.410].6ParaHobbes,asobrigaçõesdossúditosnãosededuzemapenasdaletradaconvençãoquetrocaobediênciaporproteçãoefetiva,mastambém“doprópriofimdainstituiçãodasoberania”,queéapazentreossúditoseadefesacontraoinimigocomum.Ibid.,p.229[p.185].7J.-J.Rousseau,op.cit.,p.74[p.58].8OsoradoresdaFrançarevolucionárianãoesqueceramessaretórica;assim,Barrère,em1791,emumalongaprosopopeiadapátriaem

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perigo:“Cidadão,soueu,dizaPátria,quemeencarregodeprotegertuasegurançapessoal,teurepousoetuaspropriedades.Oquemedarásporessebenefícioconstante?Seocorrerdeeuestaremperigo[…]meabandonarásnosmomentostempestuososaopreçodeminhaproteçãoinvariável[…]?Não,semdúvida:hácasosemquetepedireiosacrifíciodessesmesmosdireitos,dessasmesmaspropriedades,atédetuavidaqueprotegiconstantemente”.Réimpressiondel’ancienMoniteur,tomoIX.Paris:Plon,1862,p.82.9“Cálculomuitofácil,quandoseexigeestesacrifício,éodeconsideraroEstadoapenascomosociedadecivil,dando-lheporfimúltimoagarantiadavidaedapropriedadedosindivíduos,poistalgarantianãoéatingidapelosacrifíciodaquiloquesedevegarantir,antespelocontrário.”G.W.Hegel,Principesdelaphilosophiedudroit,op.cit.,p.324[pp.296-97].10“ComoossúditossãoobrigadosasuportarossubsídioseosoutrosencargosqueselhesimpõemtãosomenteporqueissoénecessárioparasubvencionarasdespesasdoEstadoemtemposdepazeemtemposdeguerra,ossoberanosnãodevemexigirmaisdoqueasnecessidadespúblicasdemandam.”S.Pufendorf,LeDroitdelanatureetdesgens,op.cit.,livroVII,cap.ix,p.425.11LouisdeJaucourt,“Guerre”,inEncyclopédie,tomoVII.Livorno,1773,p.967.12ImmanuelKant,Doctrinedudroit.Paris:Vrin,1971,p.227[ed.bras.:Ametafísicadoscostumes–contendoAdoutrinadodireitoeDoutrinadavirtude,trad.EdsonBini.Bauru:Edipro,2008,p.187].13Id.,ibid.,p.229[p.188].14Azoopolíticasedefiniriacomoumramodabiopolítica,especificadaaomesmotempopelatransposiçãoàrelaçãopolíticadarelaçãodecriação,massobretudo,emsuadimensãojurídica,porumrebatimentododireitopolíticosobreascategoriasfundamentaisdodireitoprivado,emaisespecificamentedapropriedadeprivada.Tipicamente,opoderescravagistarepresentaazoopolíticaporexcelência.15“SerásomentesobestacondiçãolimitadoraquepoderáoEstadodirigi-losaumserviçorepletodeperigos.”Id.,ibid.,p.229[p.188].16Id.,ibid.17Sobreessetema,verCharlesTilly,“WarMakingandStateMakingasOrganizedCrime”,inPeterEvans,DietrichRueschemeyer&ThedaSkocpol(orgs.),BringingtheStateBackIn.NovaYork:CambridgeUniversityPress,1985.

2.MILITARISMODEMOCRÁTICO1ApudJonathanD.Caverley,“DeathandTaxes:SourcesofDemocraticMilitaryAggression”,tese,UniversityofChicago,2008.2I.Kant,Verslapaixperpétuelle.Paris:Vrin,2007,p.26[ed.bras.:Àpazperpétua,trad.MarcoZingano.PortoAlegre:L&PM,2008,p.27].3Id.,ibid.4ApudBarbaraEhrenreich,“WarWithoutHumansModernBloodRitesRevisited”.<http://www.tomdispatch.com/blog/175415>5JohnA.Hobson,Imperialism:AStudy.Londres:Nisbet,1902,p.145.6Hansard’sParliamentaryDebates,ThirdSeries,1867-1868,V.1.Londres:Buck,1868,p.406.Hoje,porémsoboutrasformas,asdacontrataçãoedasubcontratação,essapráticaestálongedeterdesaparecido.OsEstadosUnidosrecrutamatualmenteumapartenãodesprezíveldesuamãodeobramilitardescartávelnaÁfricasubsaariana,pormeiodassociedadesmilitaresprivadassobcontratocomoPentágono.Sobreesseassunto,lerareportagemedificantedeAlainVicky,“Mercenairesafricainspourguerresaméricaines”.LeMondeDiplomatique,maio2012.7Cf.J.D.Caverley,op.cit.,p.297.8I.Kant,Doctrinedudroit,op.cit.,p.229[p.188].9J.Kaag&S.Kreps,op.cit.10RosaBrooksexplicitaesseúltimoponto:“Aoreduzirasperdascivisacidentais[oumaisexatamenteaopretenderfazê-lo],astecnologiasdeprecisãodosdronesreduzemoscustosmoraisereputacionaissentidosassociadosaousodaforçaletal”.R.Brooks,“TakeTwoDronesandCallMeintheMorning.ThePerilsofOurAddictiontoRemote-ControlledWar”.ForeignPolicy,12set.2012.11ComoexplicaWalzer,referindo-se,nesseponto,aopensamentodeYehudaMelzer:“Aproporcionalidade[é]umaquestãodeajustarosmeiosaosfins,[…]emtemposdeguerra,[…]háumatendênciairresistívelde,pelocontrário,ajustarosfinsaosmeios;ouseja,redefinirobjetivosinicialmentereduzidosparaqueseadaptemàstecnologiaseforçasmilitaresdisponíveis”.M.Walzer,Guerresjustesetinjustes,op.cit.p.238[p.204].12J.R.Hammond,op.cit.13E.Weizman,TheLeastofAllPossibleEvils,op.cit.,p.10.14AmitaiEtzioni,“TheGreatDroneDebate”.TheNationalInterest,4out.2011.15BenjaminH.Friedman,“EtzioniandtheGreatDroneDebate”.TheNationalInterest,5out.2011.16BeverlyJ.Silver,“HistoricalDynamicsofGlobalization,WarandSocialProtest”,inRichardAppelbaum&WilliamRobinson,CriticalGlobalizationStudies.NovaYork:Routlegde,2005[pp.303-13],p.308.Retomosuasanálisesparatodoessetrecho.17Paraesseconceito,cf.MaryKaldor,New&OldWars.Cambridge:PolityPress,2006,p.17.18Cf.YagilLevy,“TheEssenceofthe‘MarketArmy’”.PublicAdministrationReview,v.70,n.3,pp.378-89,maio/jun.2010.19J.D.Caverley,“ThePoliticalEconomyofDemocraticMilitarism:EvidencefromPublicOpinion”,InternationalRelationsWorkshop,UniversityofWisconsin,28mar.2012.20NiklasSchörnig&AlexanderC.Lembcke,“TheVisionofWarwithoutCasualties:OntheUseofCasualtyAversioninArmamentAdvertisements”.JournalofConflictResolution,v.50,n.2,2006,pp.204-27.

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21FlightInternational,v.161,n.4834,4jun.2002,p.2.22B.J.Silver,op.cit.,p.309.23B.Ehrenreich,op.cit.24Id.,ibid.

3.AESSÊNCIADOSCOMBATENTES1EmilioLussu,SardinianBrigade:AMemoirofWorldWarI.NovaYork:GrovePress,1970,apudM.Walzer,Guerresjustesetinjustes,op.cit.,p.270[p.241].2G.W.Hegel,Phénoménologiedel’esprit.Paris:Vrin,2006,p.344[ed.bras.:Fenomenologiadoespírito,partei,trad.PauloMeneses,comacolaboraçãodeKarl-HeinzEfkeneJoséNogueiraMachado.Petrópolis:Vozes,1992,p.239].3S.Hersh,“Manhunt”,op.cit.4I.Kant,Doctrinedudroit,op.cit.,p.73[p.190].5E.Lussu,op.cit.6CoraDiamond,L’Importanced’êtrehumain.Paris:PUF,2011,p.103.7Id.,ibid.,p.106.8Id.,ibid.9A.Etzioni,“TheGreatDroneDebate”,op.cit.10Jean-PaulSartre,L’Existentialismeestunhumanisme.Paris:Nagel,1970,pp.25-27[ed.bras.:Oexistencialismoéumhumanismo,trad.JoãoBatistaKreuch.Petrópolis:Vozes,2012,pp.27-28].11C.Diamond,op.cit.,p.108.12NotinOurName,PledgeofResistance,2001.<http://www.notinourname.net/in-dex.php?option=com_content&view=article&id=20&Itemid=5>13Cf.JudithButler&GayatriChakravortySpivak,L’Étatglobal.Paris:Payot,2011,p.57.14GeorgeN.Katsiaficas,VietnamDocuments:AmericanandVietnameseViewsoftheWar.NovaYork:Sharpe,1992,p.116.15J.Pappalardo,op.cit.16Id.,ibid.17Id.,ibid.18Id.,ibid.19HannahYi,“NewPoliceSurveillanceDronesCouldbeArmedwithNonLethalWeapons”.TheDaily,12mar.2012.20KarlMarx,“Introductiongénéraleàlacritiquedel’économiepolitique”(1857),inÉconomie,ŒuvresI.Paris:Gallimard,1994,p.264[ed.bras.:Grundrisse,trad.MarioDuayeretal.SãoPaulo:Boitempo,2011,p.61].21<http://ahprojects.com/projects/stealth-wear>

4.AFÁBRICADOSAUTÔMATOSPOLÍTICOS1H.Arendt,Dumensongeàlaviolence,op.cit.,p.151[p.128].Paraaexpressão“autômatopolítico”,cf.“Etvoustrouvezçadrone?”,p.141,Z,n.2,Marselha,outonode2009,p.141.2Essesaparelhossempilotonãoeramradiocomandados,masmecanicamenteprogramadosparasearrebentarnochãodepoisdepercorridadeterminadadistância.OVdeseunomeeraaabreviaçãoparaVergeltungswaffen–armasderepresálias.3TheodorW.Adorno,Minimamoralia.Paris:Payot,2008,pp.72-73[ed.bras.:Minimamoralia:reflexõesapartirdavidadanificada,trad.LuizEduardoBicca.SãoPaulo:Ática,1992,p.47].4Lysiak,“MarschflugkörperV1vorStart”,BundesarchivBild146-1973-029A-24A.5Id.,ibid.,p.73[p.48].6TheUnmannedSystemsIntegratedRoadmapFY2011-2036,p.14.7GaryE.Marchantetal.,“InternationalGovernanceofAutonomousMilitaryRobots”.ColumbiaScienceandTechnologyLawReview,v.12,2011[pp.272-315],p.273.OrobôcoreanoSGR-1éhojeumprecursordessasmáquinasdofuturo.DispostosnafronteiraentreasduasCoreias,nazonadesmilitarizada,essesrobôsestacionáriospodemdetectarapresençahumanapormeiodeseussensores(câmera,mastambémdetectoresdemovimentoesensorestérmicos),miraroindivíduo,e,seooperadorremotooautoriza,abrirfogocomum5milímetrosouumlançadordegranadasautomático.8LethalAutonomousRobotics(LAR).Autônomasignificandoqueaplataformaécapazdetomarelamesmaasdecisõesnecessárias,semaintervençãodeumhumano.9R.Arkin,“TheCaseforEthicalAutonomyinUnmannedSystems”,2010.<http://hdl.handle.net/1853/36516>10R.Arkin,“EthicalRobotsinWarfare”.TechnologyandSocietyMagazine,v.28,n.1,primaverade2009[pp.30-33],p.30.11R.Arkin,“GoverningLethalBehavior:EmbeddingEthicsinaHybridDeliberative/ReactiveRobotArchitecture”,2007,p.98.<http://hdl.handle.net/1853/22715>

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12R.Arkin,“EthicalRobotsinWarfare”,op.cit.13R.Arkin,AnEthicalBasisforAutonomousSystemDeployment,Proposal50397-CI,finalreport,200914R.Arkin,PatrickUlam&BrittanyDuncan,AnEthicalGovernorforConstrainingLethalActioninanAutonomousSystem,TechnicalReportGIT-GVU-09-02,2009.15R.Arkin,“EthicalRobotsinWarfare”,op.cit.16Cf.VivekKanwar,“Post-HumanHumanitarianLaw:TheLawofWarintheAgeofRoboticWarfare”.HarvardJournalofNationalSecurity,v.2,2011.17Cf.MichelPastoureau,UneHistoiresymboliqueduMoyenÂgeoccidental.Paris:Seuil,2004,p.33.18K.Anderson&MatthewWaxman,“LawandEthicsforRobotSoldiers”.PolicyReview,n.176,dez.2012.19Id.,ibid.20R.Arkintrabalhaháanosemseudesenvolvimentograçasaosgenerososfinanciamentosdocomplexomilitar-industrialqueincluemaDARPA,oUSArmy,oSavannahRiverTechnologyCenter,HondaR&D,Samsung,csDraperLaboratory,SAIC,NAVAIReoOfficeofNavalResearch.<www.cc.gatech.edu/~arkin>21Emsetembrode2009,ofísicoJürgenAltmann,ofilósofoPeterAsaro,oroboticistaNoelSharkeyeofilósofoRobertSparrowfundaramoComitêInternacionalparaoControledasArmasRobóticas,“CommitteeforRobotArmsControl”(ICRAC),quepedeainterdiçãodosrobôsmatadores.<http://icrac.net>22M.Minsky,op.cit.,p.204.23W.Benjamin,“Théoriesdufascismeallemand”,op.cit.,p.214[p.72].24AndrewCockburnrelatafatossimilares(BushdandoempessoaordemdeatirarnumcomboiodeautomóveisquesedirigemaKandahar),observandoqueastransmissõesporvídeoaovivodãoaosdirigentespolíticosum“sentimentoextraordinário–eilusório–decontroledireto”.A.Cockburn,“Drones,Baby,Drones”.LondonReviewofBooks,8mar.2012,p.15.25P.W.Singer,WiredforWar,op.cit.,p.349.26N.Sharkey,“KillingMadeEasy:FromJoysticktoPolitics”,inP.Lin,KeithAbney&GeorgeA.Bekey(orgs.),RobotEthics:TheEthicalandSocialImplicationsofRobotics.Cambridge:MITPress,2012[pp.111-28],p.123.27Poisseodireitodessesconflitosarmadosdefineoprincípiodeproporcionalidadecomoumaboarelaçãoentreosdanoscolateraisestimadoseaamplitudedavantagemmilitaratendida,nãofornecenenhumaescaladecálculo,nemevidentementenenhumaunidadedemedida:comolembraSharkey,“nãoexistenenhumamétricaconhecidaparamedirobjetivamenteosofrimentonãonecessário,supérfluooudesproporcional.Issorequerumjulgamentohumano.Nenhummeioobjetivoéfornecidopelodireitodaguerraparacalcularoqueéproporcional”,ibid.Converteroprincípiodeproporcionalidadeemcálculoequivaleaquerersomarmaçãseperassemdispordenenhummeioparareconhecê-las.Qualéacomensurabilidadeentretalnúmerodevidascivissuprimidaseumavantagemtáticaestimada?Qualéaunidadedemedidacomum?Maséverdade,comomostrouE.Weizman,queessetipodecálculo,tãonecessárioquantoimpossível,serveapenas,pelosimplesfatoqueocorre,paralegitimarosmortosquedaíresultam.Cf.E.Weizman,TheLeastofAllPossibleEvils,op.cit.,p.12ss.28AllanNairnapudRobertC.Koehler,“‘Bugsplat’:TheCivilianTollofWar”.BaltimoreSun,1º jan.2012.VertambémBradleyGraham,“‘Bugsplat’ComputerProgramAimstoLimitCivilianDeathsatTargets”.TheWashingtonPost,26fev.2003.29Ferdinandd’Esterno,DesPrivilégiésdel’ancienrégimeenFranceetdesprivilégiésdunouveau,tomoII.Paris:Guillaumin,1868,p.69.30ApudMatthewBrzezinski,“TheUnmannedArmy”.TheNewYorkTimesMagazine,20abr.2003.31Emumaentrevista,R.Arkinprevêaobjeção:“Elesnemsempreseguiriamasordens.Deveserpossívelparaorobôrecusarumaordem,seelaforjulgadanãoadequadaàética”,istoé,aojusinbelloadaptadoemsoftware.Massoldadosqueserecusamaatirareminsurgentes,comonoexemploanterior,nãoofazemporapegoaodireitodosconflitosarmados.Elessedessolidarizamdopoderqueoscomanda,nãonaformadesuasordens,masnoníveldoconteúdo,desuasignificaçãopolítica.Edissoosrobôséticossãototalmenteincapazes.<http://owni.eu/2011/04/25/ethical-machines-in-war-an-interview-with-ronald-arkin>32Essaéumadaspreocupaçõesdosautoresdeumrelatóriorecente:“Aoeliminaroenvolvimentohumanonadecisãodeusaraforçaletalnosconflitosarmados,armascompletamenteautônomascomprometeriamoutrasformasdeproteção,nãolegais,paraoscivis.Primeiro,osrobôsnãoseriamretidospelasemoçõeshumanasepelacapacidadedecompaixão[…].Robôssememoçãopoderiam,porconseguinte,servircomoinstrumentosparaosditadoresquequisessemreprimirseuprópriopovosemprecisartemerquesuastropassevoltemcontraeles[…]asemoçõesnemsempreconduzemaoassassinatoirracional”.HumanRightsWatch,LosingHumanity:TheCaseagainstKillerRobots,nov.2012,p.4.33ÉtiennedeLaBoétie,Discoursdelaservitudevolontaire.Paris:Vrin,2002,p.30[ed.bras.:Discursodaservidãovoluntária,trad.LaymertGarciadosSantos.SãoPaulo:Brasiliense,1999,p.16].34H.Arendt,op.cit.,p.151[p.128].35HugoGernsback,“RadioPoliceAutomaton”.ScienceandInvention,maio1924,v.12,n.1,p.14.36FriedrichEngels,L’Originedelafamille,delapropriétéprivée,etdel’État.Paris:ÉditionsSociales,1971,p.156[ed.bras.:Aorigemdafamília,dapropriedadeprivadaedoEstado,trad.LeandroKonder.SãoPaulo:Brasiliense,1984,p.191].

EPÍLOGO:DAGUERRA,ADISTÂNCIA

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1“ToysagainstthePeople,orRemoteWarfare”.ScienceforthePeopleMagazine,v.5,n.1,maio1973,pp.8-10e37-42.<http://socrates.berkeley.edu/~schwrtz/SftP/MagazineArchive/SPv5n1s.pdf>2Id.,ibid.,p.42.

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SOBREOAUTOR GrégoireChamayounasceuemParisem20desetembrode1976.Formou-senaÉcoleNormaleSupérieuremLyonem1997etornou-seagregéemfilosofiaem2000.Defendeuodoutoradosobreepistemologiaehistóriadasciênciasetécnicasem2007,naUniversidadedeParis7,publicadacomotítuloLesCorpsvils–ExpérimentersurlesêtreshumainsauxXVIIIeetXIXesiècles(LaDécouverte,2008).Desde2010épesquisadordoCentroNacionaldePesquisaCientífica(CNRS).EstudiosodaobradeKanteFoucault,étambémeditordaZones,cujocatálogoévoltadoparaacontracultura,ativismoenovasformasdecontestação.PublicoutambémLesChassesàl’homme[Ascaçasaohomem](LaFabrique,2010),eesteTeoriadodrone(LaFabrique,2013).

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COLEÇÃOEXIT

COORDENAÇÃOFLORENCIAFERRARIMILTONOHATA

ComopensarasquestõesdoséculoXXI?AcoleçãoExitéumespaçoeditorialquebuscaidentificareanalisarcriticamenteváriostemasdomundocontemporâneo.Novasferramentasdasciênciashumanas,daarteedatecnologiasãoconvocadasparareflexõesdepontasobrefenômenosaindapouconomeados,comoobjetivodepensarsaídasparaacomplexidadedavidadehoje.

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©CosacNaify,2015©LaFabriqueÉditions,2013

CoordenaçãoeditorialdacoleçãoMILTONOHATAeFLORENCIAFERRARIEdiçãoFLORENCIAFERRARIPreparaçãoRAFAELABIFFCERARevisãoCÁSSIALANDECRISTINAYAMAZAKIRevisãotécnicaRICARDOBONALUMEProjetográficooriginalELAINERAMOSEFLÁVIACASTANHEIRA

AdaptaçãoecoordenaçãodigitalANTONIOHERMIDAProduçãodeePubEQUIRETECH

Nestaedição,respeitou-seonovoAcordoOrtográficodaLínguaPortuguesa.

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DadosInternacionaisdeCatalogaçãonaPublicação(CIP)

Chamayou,Grégoire[1976-]

Teoriadodrone:GrégoireChamayouTítulooriginal:ThéoriedudroneTradução:CéliaEuvaldoSãoPaulo:CosacNaify,20159ils.

ISBN978-85-405-0948-1

1.Ciênciapolítica–Filosofiaeteoria2.Forçasaéreasedeguerra3.Operaçõesespecíficasdeguerrai.Título.

CDD320.01.58.4

Índicesparacatálogosistemático:1.Ciênciapolítica–Filosofiaeteoria2.Forçasaéreasedeguerra

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COSACNAIFYruaGeneralJardim,770,2°.andar01223-010SãoPauloSPcosacnaify.com.br[11]32181444atendimentoaoprofessor[11][email protected]

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Estee-bookfoiprojetadoedesenvolvidoemabrilde2015,combasena1ªediçãoimpressa,de2015.

FONTESEditaeKnockout