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Igrejas e capelas: a construção da sociabilidade confrarial negra nas Minas Dr. Renato da Silva Dias Universidade Estadual de Montes Claros Nas Minas setecentistas as igrejas foram o lugar por excelência da conviviabi- lidade social, constatação que se torna visível quando se analisa a farta documen- tação produzida no período em questão. Este artigo abordará, a partir da análise de documentos sobre edificação e reforma de igrejas e capelas, a construção da socia- bilidade confrarial nas Minas, com ênfase na sociabilidade negra. Ao redor dos templos religiosos desenvolveu-se a urbanização dos arraiais primitivos; no seu interior os devotos afirmavam sua fé, casavam-se, sepultavam seus entes queridos e comemoravam festivamente o dia de seus santos patronos; nos adros ouviam os sermões e organizavam as procissões, e se rejubilavam nas festas religiosas e cívi- cas – fatos que conferiam a tais santuários forte carga simbólica. Nesse ínterim, as fontes sobre edificações e reparos dos templos religiosos são reveladoras por nos dar a conhecer não somente os materiais e técnicas arquitetônicas empregadas, mas também por esclarecer a própria dinâmica social. Doutor em História pela Universidade Federal de Minas Gerais, professor da Universidade Estadual de Montes Claros, onde participa do Grupo de Estudos Literários.

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Igrejas e capelas: a construção da sociabilidade confrarial

negra nas Minas

Dr. Renato da Silva Dias� Universidade Estadual de Montes Claros

Nas Minas setecentistas as igrejas foram o lugar por excelência da conviviabi-lidade social, constatação que se torna visível quando se analisa a farta documen-tação produzida no período em questão. Este artigo abordará, a partir da análise de documentos sobre edificação e reforma de igrejas e capelas, a construção da socia-bilidade confrarial nas Minas, com ênfase na sociabilidade negra. Ao redor dos templos religiosos desenvolveu-se a urbanização dos arraiais primitivos; no seu interior os devotos afirmavam sua fé, casavam-se, sepultavam seus entes queridos e comemoravam festivamente o dia de seus santos patronos; nos adros ouviam os sermões e organizavam as procissões, e se rejubilavam nas festas religiosas e cívi-cas – fatos que conferiam a tais santuários forte carga simbólica. Nesse ínterim, as fontes sobre edificações e reparos dos templos religiosos são reveladoras por nos dar a conhecer não somente os materiais e técnicas arquitetônicas empregadas, mas também por esclarecer a própria dinâmica social.

� Doutor em História pela Universidade Federal de Minas Gerais, professor da Universidade Estadual de Montes Claros, onde participa do Grupo de Estudos Literários.

��30 - AtAs do IV Congresso InternACIonAl do BArroCo ÍBero-AmerICAno

O povoamento das Minas setecentistas: das cruzes às capelas

Desde os momentos iniciais da ocupação das terras minerais� – quando os bandeirantes com a sua “paixão ambulatória”3 vagavam por todo o território atra-vessando densas matas, charcos e cerrados, precisando vencer com suas carrega-ções a força dos rios, alguns deles caudalosos, na expectativa de prearem índios e na procura do ouro e pedras preciosas – já se fazia forte e constante a presença do sentimento religioso. Era bastante comum, quase uma necessidade natural, as tro-pas levarem consigo seus oragos de devoção,� acompanhadas também por um capelão para celebrar as descobertas, ministrar os sacramentos e ofícios divinos.

Costume também arraigado era o dos povoadores chantarem cruzes e cruzeiros pelos caminhos,� talvez no intuito de mapearem em seu imaginário as novas regiões descobertas – ou como disse Mircea Eliade, para transformar o “caos” em “cosmos”, o desconhecido, portanto temido, em um mundo ordenado.� Concomitantemente à construção de suas moradias, primeiramente casebres de pau-a-pique cobertos de palha, esses povoadores iniciavam a ereção de capelinhas, também rústicas, mas que se tornavam expressão da permanência e organização do espaço, em um processo inicialmente marcado pela efemeridade e desapego àquela região.�

Isto pode ser observado, por exemplo, no requerimento do padre Antônio de Amorim Pereira e moradores do Sumidouro, freguesia de Nossa Senhora da Con-ceição de Mato Dentro, comarca da Vila do Príncipe. Após obterem licença do ordinário de sua diocese, estes solicitaram a confirmação da licença régia para erigirem uma ermida com a invocação do Senhor dos Aflitos, “por lhes ser penoso vir à Matriz, de onde distam duas léguas”. Usando de apelos emotivos, a popula-ção reunida nas confrarias leigas buscava lograr êxito nesta empreitada, e, na ver-

� Apesar de várias expedições terem percorrido o território mineiro desde o século XVI, para a preação de índios, bem como na procura de “metais e pedras preciosas”, como atestou Sérgio Buarque de Holanda, a ocupação e exploração aurífera se deram nos finais do seiscentos, mar-cando a data ��93 como o início da ocupação. Conferir: as áreas de criação de gado; origens do bandeirismo; o bandeirismo pesquisador de riquezas. In: HOLANDA, Sérgio Buarque. História Geral da Civilização Brasileira, pp. ��8-���, �8�-�88 e �89-�9�, respectivamente. 3 A expressão é de BOXER, Charles R. A idade de ouro do Brasil, p. �8�. � ALVES, Rosana de Figueiredo Ângelo. A venerável Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo de Sabará, p. 33. � Segundo Cláudia Damasceno Fonseca “A simples cruz de madeira, e em seguida a rústica capelinha, eram o símbolo da sacralização do domínio, da posse de um território antes considerado profano, porque desconhecido”. O espaço urbano de Mariana: sua formação e suas representações, p. �9. Para Luiz Carlos Villalta à medida que entravam nas Alterosas e erigiam os arraiais, os moradores encravavam cruzes e construíam altares. O cenário urbano em Minas Gerais Setecentista, p. �9. Ver ainda o capítulo Cruzes e Cruzeiros. In: AZZI, Rio-lando. O catolicismo popular no Brasil, �9�8. � ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões, [s/d]. � ANASTASIA, Carla et all. Dos bandeirantes aos modernistas, p. 3�.

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dade, não poderia haver invocação mais apropriada, em região distante, nos ser-tões da colônia.8

Solicitações iguais a esta ocorreram em diversas regiões das Minas. Fernando Go-mes da Rocha e mais moradores das Barreiras da Freguesia de São Pedro, da Vila de N. Senhora do Bom Sucesso de Minas Novas do Arassuahy, por morarem distantes da igreja “não podiam ir comodamente ouvir o sacrifício da missa, e assistir aos ofícios divinos”. Por isso erigiram uma capela de pedra e cal com a invocação do Santíssimo Coração de Jesus e N. Senhora da Conceição e rogaram a autorização para a dita edi-ficação, estabelecimento do patrimônio e confirmação do provedor. Em janeiro, foi a vez dos irmãos da confraria de N. Senhora do Livramento da Freguesia de São Caetano, que desejando ter sua capela separada da Matriz, instaram à rainha para que esta “se digne conceder-lhes licença para se fazer a referida capela com a invocação de N. Senhora do Livramento, para na mesma louvarem a Deus e a Nossa Senhora”.9

Nas Minas, os fiéis não esperavam pelo apoio do Estado para edificarem cape-las e igrejas. Como atos de fé, iniciavam as construções às suas próprias custas e, mais tarde, dirigiam-se ao soberano, rogando-lhe por auxílio na edificação das mesmas ou instando permissão para esmolarem. Aos �� de julho de ��3�, o juiz e mais confrades da irmandade de Santo Antônio da freguesia de São Bartolomeu, comarca do Ouro Preto, por grande carência em sua capela, que “se achava desti-tuída de tudo”, ou seja, dos objetos necessários à celebração do culto divino, e porque “só poderia haver nela aumento se os fiéis com esmolas para isso concor-ressem” recorreram ao rei para que estes pudessem “ter um ermitão, como em al-gum tempo houve na dita irmandade, que peça para [o] ornato da capela do dito santo, visto se achar tão destituída de ornatos e fábrica”.�0

A partir da expansão das cidades e criação de novas vilas, às vezes distantes umas das outras, a população sentia a necessidade de construir novos templos re-ligiosos, e para isso solicitavam autorização régia. Apelando para a piedade do monarca estas irmandades obtinham as licenças, e até mesmo auxílio financeiro, ou permissões para esmolar. Os pedidos de autorização para edificação e reforma de capelas vinham de todas as partes da América portuguesa, ou mesmo de Portu-gal,�� demonstração viva de religiosidade. No período de ocupação da sociedade

8 O termo Sertão é aqui interpretado a partir de sua origem etmológica, isto é, derivado do latim vulgar Desertanus, região distante do mar, agreste, vazia ou pouco povoada. SC-�9, fl. ��8. Solicitação de parecer da rainha, D. Maria, ao governador. Sobre a solicitação do padre Antônio de Amorim Pereira e moradores do Sumidouro. �� de Outubro de ��88. 9 SC-�9, fl. ��� (�90), �0 de Fevereiro de ��88. �0 AHU, cx. �9, doc ��, rolo 0��, gav. f-�. Requerimento do juiz e mais irmãos de Santo Antônio da freguesia de São Bartolomeu . Lisboa, ��/0�/��3�. (grifo meu). �� SC-0�, fl. �3�v. Provisão de D. João concedendo licença ao Juiz e Irmãos da confraria de Nossa Senhora da Salvação da Vila de Ajuda para dispor de um ermitão para tirar esmolas a fim de irmandade reedificar igreja. Lisboa, �� de fevereiro de ����. SC-0�, fl. �9. Provisão régia permitindo a Confraria do Bom Jesus de Bouças, situada em Mattosos, “província de Entredouro e Minho”, enviar um ermitão às Minas a fim de ajuntarem dinheiro para adquirir os ornamentos para a “veneração do culto divino”. Lisboa, �� de março de ���9.

��3� - AtAs do IV Congresso InternACIonAl do BArroCo ÍBero-AmerICAno

mineradora as capelas figuravam como “expressão de permanência e assentamento no espaço em meio a um processo de ocupação marcado pelo efêmero e pelo desa-pego ao lugar”, além disto, serviam como meio de agregação das populações, orga-nizadas nas irmandades religiosas leigas.�� Assim, tornaram-se o núcleo em torno do qual gravitavam as pessoas. As construções tornaram-se verdadeiros símbolos da fé e os habitantes das Minas não se eximiam de fazer doações para construírem seus templos que, no andar do século, tornavam-se cada vez mais suntuosos, também porque: “A importância de um povoado e o espírito religioso de seus moradores era demonstrado pela imponência e suntuosidade ornamental das igrejas matrizes”.�3

Ao colonizar, a população não só produzia cultura material, como arar a terra, extrair o ouro, mas também trazia “nas arcas da memória” os modos de vida, as come-morações, os rituais de vida e de morte, costumes que não podiam ser esquecidos.�� Destes, um dos elementos que mais se destacam no setecentos mineiro foi a crença religiosa, definidora de todo um modo de vida, que se estabelecia concomitantemente à organização dos processos econômicos e à urbanização. Nesses primeiros tempos, as festas religiosas passaram a ser comemoradas ainda em torno das capelas primitivas, mas, quase em seguida, com o crescimento e desenvolvimento urbano, essas eram reerguidas ou alteradas, transformadas em templos maiores, edificações que definiram de forma marcante a ocupação e a vida nesse espaço geográfico.

Capelas e Matrizes: portais do sagrado

As primeiras capelas mineiras foram construídas de material pouco durável, retrato de uma ocupação desordenada. Assim sendo, com o andar do século, mui-tas começaram a ruir e, além disso, o crescimento do número de fiéis exigia tem-plos maiores, que surgiam como resultado de esforços de toda a comunidade. Em requerimento remetido ao rei, datado de ��3�, os irmãos do Santíssimo Sacramen-to da Igreja Matriz da freguesia da Vila de São José informaram que:

com grande despesa das suas fazendas fizeram uma Igreja nova de paredes mestras de taipa de pilão pela antiga ser de madeira e pequena e se achar arruinada em que tem gasto para cima de setenta mil cruzados e se acham hoje impossibilitados para poderem continuar a ornar a dita Igreja e se acha por forrar e assoalhar fazer Retábulos dourá-los e os ornamentos precisos para o culto e veneração do Santíssimo Sacramento o que se necessita de mais de outros sessenta mil cruzados.

�� ANASTASIA, Carla Maria Junho et al. Dos bandeirantes aos modernistas, p. 3�. �3 ÁVILA, Affonso. Iniciação ao Barroco Mineiro, �98�. �� Conferir. o capítulo Colônia, culto e cultura In: BOSI, Alfredo. Dialética da colonização, p. ��-�3.

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Os confrades confirmam que, estando a igreja sob o regime do padroado régio era dever do rei auxiliá-los, concorrendo com uma esmola para terminar de ornar e aparamentá-la.�� Aos dez de setembro daquele mesmo ano, buscando responder a este pedido, o monarca escreveu carta ao provedor da fazenda da capitania das Minas, Antônio Berquo Del Rio. Em resposta de �� de Abril de ��3� o provedor respondeu que a coroa não havia feito despesa com a obra desta igreja e concluiu: “parece-me que com a esmola de três ou mil cruzados (...) dará por satisfeita a Ir-mandade do Santíssimo Sacramento daquela freguesia para acabarem de ornar, e aparamentar a sobredita Igreja”.��

Devido à precariedade do material utilizado nas primitivas construções, os templos também requeriam constantes reparos. As obras de pau-a-pique, madeira ou adobe ruíam com as chuvas torrenciais e, além de não oferecerem a duração esperada, havia os riscos de acidentes e faltava a “decência” com o divino, além de segurança para os objetos sagrados. Essa foi a reclamação dos irmãos do Santíssimo Sacramento da Matriz do Pilar de Ouro Preto, que fizeram pedido de auxílio de custo para recuperação da igreja devido ao “miserável estado em que se acha”, isso “por ser das mais antigas, e por isso das menos fortificadas das ditas Minas, e como tal sujeita a repetidas invasões e latrocínios, que tem chegado até se atreverem a despojar as mesmas imagens”.�� Para sanar tal ruína, os irmãos recorreram ao sena-do da câmara, onde o provedor da fazenda, que acolheu o pedido de auxílio, re-meteu a carta ao Conselho Ultramarino, que aprovou o requerimento.�8

Exemplo semelhante do precário estado de conservação de muitos dos santu-ários mineiros foi relatado pelos sodalícios�9 fundados na Igreja de N. Senhora da Conceição de Vila Rica, que solicitaram ao senado da câmara “uma porção sufi-ciente para se dar princípio a fazer uma nova Igreja visto se achar a que presente existe incapaz não só de conservar porém de todo o conserto”, isto é, já não cabia mais uma reforma, a igreja deveria ser reconstruída. Por isso, reclamando a falta de

�� AHU, cx ��, doc.3�, rolo 0�8, gav. f-�. Requerimento de Irmãos do Santíssimo Sacramen-to das Igreja Matriz da freguesia da Vila de São José, solicitando ao Rei D. João V a atribuição de esmola para poder ornar e aparamentar a referida Igreja, �� de março de ��3� (Grifos meus). Nesse mesmo sentido, escreveram petição os moradores da freguesia de Santo Antô-nio da Piedade da Campanha do Rio Verde, onde informaram que a igreja estava arruinada, era pequena e os paramentos se achavam indecentes para a celebração do culto divino. SC-�9, fl. �3� (�9�), �0 de março de ��89. �� AHU, cx ��, doc. ��, rolo 0��, gav. f-�. Carta resposta de Antônio Berquo Del Rio, sobre ajuda de custo para ornamentação da Matriz de São José. Vila Rica, �� de abril de ��3�.�� AHU, cx �9, doc.�, rolo 0��, gav. f-�. Carta de Antônio Berquo Del Rio, provedor da Fa-zenda Real de Minas, informando o rei D. João V acerca da necessidade que há em a coroa contribuir, com uma ajuda de custo, na recuperação da Igreja Matriz de N. Senhora do Pilar. �0 de Julho de ��3�. �8 AHU, cx �9, doc.�, rolo 0��, gav. f-�. Cópia da deliberação do Conselho Ultramarino, aprovando despesa oferecida pela Câmara para recuperação de igreja. Lisboa, 0� de feve-reiro de ��3�. �9 Aqui se utilizam dos termos sodalícios, irmandades e confrarias como expressões sinonímicas.

��3� - AtAs do IV Congresso InternACIonAl do BArroCo ÍBero-AmerICAno

recursos, recorreram ao senado que lhes prometeu �.�00 oitavas de ouro, com a cláusula de informarem primeiro ao rei, que deveria dar o parecer final”.�0

Documento que ressalta bem o desgaste provocado pelos anos nas igrejas mi-neiras é demonstrado na carta dos oficiais da câmara da Vila do Ribeirão do Carmo, de ��3�. Nesta, os oficiais expuseram ao rei a difícil situação dos fiéis moradores da cidade, “em razão de ter já caído um lanço da parede de taipa da dita Matriz, con-correram os moradores da mesma Vila a reedificá-la com grande zelo e despesa”.�� Apesar de algumas igrejas de maior porte terem sido construídas de taipa, como o exemplo acima, esse tipo de construção carecia de constantes reparos e não estava imune a desmoronamentos. Como estes, vários outros templos mineiros ruíram total ou parcialmente, e foram reconstruídos graças ao zelo de seus habitantes.��

O que importa também esclarecer são os motivos que levaram estes morado-res a se dedicarem anos a fio para reconstruírem seus santuários. Esta indagação pode ser melhor compreendida se se analisar o imaginário escatológico cristão. Nos momentos últimos da vida, quando sentiam com maior veemência o perigo de perderem suas almas no inferno ou de sofrerem as tribulações imaginadas no pur-gatório, quando a consciência individual poderia acusar e rememorar atos, nem sempre dignificantes, os homens buscavam reforços que poderiam, no trasladar desta vida, servir como “moeda de troca” na expiação dos pecados praticados. Nesse sentido, a ação intercessora dos santos, o recurso aos sufrágios e às missas tinham um significado profundo, podendo reduzir a estada no purgatório, lugar transitório de expiação e castigo das almas pecadoras até o dia do juízo final.�3

O medo da morte revela traços característicos do imaginário da época. Por mais mundanos que fossem em suas vidas, muitos homens, sentido seus dias se esvaindo, ou temendo a morte, libertavam escravos, reconheciam filhos naturais, doavam quantias para o enxoval de moças pobres.�� Outros nem esperavam o fin-

�0 AHU, cx �, doc ��, rolo 00�, gav. F-�. Representação dos oficiais da Câmara de Vila Rica, dando conta do mau estado e perigo que corria a Igreja de N. Senhora da Conceição de Vila Rica e solicitando ordem para a sua obra. �3 de agosto de ����. �� AHU, cx 30, doc ��, rolo 0��, gav. f-�. Carta dos oficiais da Câmara da Vila do Ribeirão do Carmo, �9 de Dezembro de ��3�.�� Pode-se citar ainda a reconstrução da igreja paroquial da Vila do Carmo (atual Mariana) e a igreja matriz de Nossa Senhora do Pilar de Ouro Preto – local onde a câmara fazia todas as suas funções públicas. Conferir: AHU, cx 30, doc ��, rolo 0��, gav. f-�. Carta dos oficiais da Câmara da Vila do Ribeirão do Carmo, �9 de Dezembro de ��3�; AHU, cx �9, doc.�, rolo 0��, gaveta f-�. Carta de Antônio Berquo Del Rio, provedor da Fazenda Real de Minas. �0 de Julho de ��3�. �3 ARAÚJO, Ana Cristina. Despedidas triunfais : celebração da morte e cultos de memória, p. �-3.�� Exemplo desta atitude ocorreu largamente nas Minas do ouro. Para dar o “enxoval” a uma moça pobre que desejava tomar os votos perpétuos, entre ���0-��, foi remetida ao Bispo do Rio de Janeiro, D. Francisco de São Hyerônimo [Sic, Jerônimo], licença régia para que este enviasse um representante às Minas, para esmolar e assim formar um dote para uma “inglesinha” “que se criou e está para ser freira no Convento das Chagas de São Francisco de Vila Viçosa, e o estava esperando, com perigo de a lançarem fora se o não conseguisse”.

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dar de suas vidas para fazerem caridade: construíam templos religiosos,�� doavam terrenos para se erigir hospitais e abrigos para doentes, etc.�� Esse comportamento associava-se intimamente à estratégia de salvação da alma após a morte, portanto, as doações pias e os atos de caridade ultrapassavam o sentido caritativo e “visavam assegurar uma boa acolhida da alma no Além”.�� À guisa de expiar os seus pecados no instante de seu juízo particular, o testador (ou defunto) desejava fazer valer mais suas boas ações que seus delitos, por isso intercedia junto a seus santos de devoção.

Nos testamentos, a indicação do local desejado para o sepultamento era prá-tica comum e institucionalizada. O enterro, além de exteriorizar o lugar-social do defunto, estava envolto em uma teia de significados no imaginário religioso cristão. Para assegurar a redenção da alma, acreditava-se que o local de sepultamento era assaz importante. À guisa de dar continuidade aos seus credos, ao construir as ca-pelas, os novos habitantes das Minas davam suporte às liturgias redentoras divulga-das pelo catolicismo pós-tridentino, como os rituais da morte e local de enterro, de preferência próximo aos santos e no interior das igrejas, esta última relembrando constantemente aos vivos a efemeridade da vida.

AHU, cx. ��, doc �3, rolo 0�0, gav. f-�. Requerimento dos párocos das freguesias das Minas, Ribeirão do Carmo, Vila Rica, e da vila de São João Del Rei. �� de novembro (anterior a ����). A professora Adalgisa Arantes Campos explica que as doações testamentárias para ordens reli-giosas, órfãs, donzelas e a solicitação avultada de missas em sufrágio da alma teriam sua razão de ser porque a sensibilidade coletiva prendia-se ao julgamento particular e tais gestos eram considerados importantes para a salvação. A terceira devoção do setecentos mineiro, p. �8.�� Capitão das ordenanças do distrito da freguesia da Borda do Campo, José de Abranches, que “administrando por concessão de V. Majestade umas fazendas de Sesmaria”, assistindo em sua fazenda, distante quatro léguas da Matriz da Borda do Campo e sete léguas da Matriz do Bom Jardim, e sentindo a “falta das consolações espirituais, e sujeito a morrer; e ver-se acabar com a sua comitiva, sem sacramentos”, mandou construir com recursos próprios uma capela, em invocação à Nossa Senhora Mãe dos Homens, para a qual solicitou as licenças necessárias. Assim: “ornou a Capela de ricas, e decentíssimas alfaias, constituiu-lhe um considerável fundo, estabeleceu um capelão cura para celebrar o Santo Sacrifício da Missa, e ministrar todos os mais sacramentos as suas família [s] com cento e vinte mil réis de côngrua”. Deixou ainda um cavalo para que o padre pudesse socorrer seus paroquianos, obtendo do ordinário [a] licença para [que] o cura [pudesse] celebrar nas festividades de missas cantadas e novenas, e outros direitos; e, para ter efeito, solicitou licença régia para ser confirmado padroeiro da capela e oratório, independentemente do pároco da matriz. SC-�9, fl. �30 (�9�, numeração nova). Petição de Antônio José de Abranches registrada na Secretaria de Governo, Vila Rica, �� de novembro de ��89.�� Exemplo deste espírito foi Henrique da Paz (sic) de Araújo, que legou em testamento algu-mas casas “em sítio acomodado” para se fazer hospital e mais obras de caridade, necessida-de urgente em Vila Rica, pois, segundo o documento: “ainda as pessoas que possuem bas-tante riqueza morrem ao desamparo, (sic) por que ficam nas doenças sem mais assistência que a de escravos bárbaros e boçais”. SC-��, fl. ��. Carta régia participando ao governador Gomes Freire de Andrade as diligências para se construir hospital e casa de misericórdia. Lisboa, 0� de Janeiro de ��3�. �� DAVES, Alexandre Pereira. Cortejos fúnebres e cotidiano em Minas Gerais na primeira metade do século XVIII: as festas das almas, p. 3.

��3� - AtAs do IV Congresso InternACIonAl do BArroCo ÍBero-AmerICAno

A construção de capelas e santuários em geral continha na época colonial uma ampla gama de significados, zona de contato entre o sagrado e o profano. Esses lugares especiais propiciavam a aproximação do fiel do reino celeste, onde ele comungava os valores da fé, além de oferecer local decente para o enterro dos mortos. Para os crentes a salvação da alma era o fim último e primeiro a ser alcançado, pois:

Ele acreditava profundamente na existência do inferno, do purgatório e do céu, e, que sua alma iria alojar-se em um desses locais da ‘topografia do além’, de acordo com a sua conduta durante a vida e na hora da morte. Ele é um pecador e sente-se culpado diante de Deus. Entretanto, tem plena consciência de que, frente ao seu arrependimento e bons atos, pode aliviar a sua pena.�8

Nesse sentido, as boas obras deixadas em vida reverteriam em sufrágio da alma na economia divina.

A edificação de igrejas relacionava-se, entrementes, à religiosidade dos fiéis, além de assegurar aos paroquianos, que almejavam a salvação de sua alma, local de enterro digno. O ato de ser sepultado no interior dos templos religiosos toma um sentido fundamental no período colonial, pois esse local sagrado era percebido como uma das portas de entrada do paraíso.�9

Leitura e apropriação dos signos: os rituais da morte e os africanos

As Minas do ouro foram locais privilegiados de encontros de diversas culturas e grupos culturais. Não se trata, porém, de uma incidência livre e harmoniosa, uma vez que a escravidão importou parte significativa da população mineira. Não obstante, os africanos e seus descendentes mestiços se puseram a reconstruir, na medida das pos-sibilidades em que o “viver em colônias” permitia, as suas vidas, identidades e me-mórias. Deste modo, a participação nas confrarias religiosas leigas permitia a essas camadas desprivilegiadas recriarem suas identidades e laços de pertencimento.

Se para os portugueses e coloniais de enraizamento mais antigo no catolicis-mo as edificações religiosas estavam imbuídas de um aspecto metafísico – o sufrá-gio das almas, e as crenças no imaginário católico, não se podem dizer, contudo, que todos os estratos sociais compartilhavam desta mesma fé, ou da mesma forma. João José Reis observou, em relação ao culto dos mortos, uma convergência entre as práticas funerárias africanas e portuguesas e a incorporação das maneiras portu-guesas de morrer pelos negros, resultado da repressão das religiões africanas exer-

�8 ALVES, Rosana de Figueiredo Angelo. A venerável Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo de Sabará, p. 3�. �9 REIS, João José. A morte é uma festa, p. ���.

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cida pelo catolicismo e pela aproximação na dramaticidade de ambos os rituais. De outra parte, se os imigrantes portugueses permaneciam fiéis aos estilos funerá-rios do reino “Os brasileiros natos, fossem crioulos, brancos ou mestiços, continu-aram e provavelmente aprofundaram as sínteses culturais, mas o que a documen-tação escrita sugere é que prevaleceu entre nós o modelo funerário ibérico”.30

Se as práticas rituais convergiam, não se deseja, contudo, afirmar que houves-se total assimilação do catolicismo e de suas crenças de salvação pelos negros. Um dado que talvez ajude a relativizar a penetração do imaginário religioso entre os escravos está no gasto com as almas. Marcos Magalhães Aguiar notou que o gasto com as missas em sufrágio das almas dos irmãos falecidos variou conforme o esta-tuto social, pois essas eram pagas e, conforme o critério étnico, não eram iguais entre brancos, mulatos e negros. Se as irmandades de brancos consumiam cerca de 30 a �0% de sua receita com missas em benefício das almas dos defuntos, em suas similares negras esses números eram bem menos expressivos: no total, despen-diam-se menos de �0% dos rendimentos com esse item, ou menos de �%.3� Esse diferencial talvez se explique pela própria dinâmica do sistema escravista colonial, pois os irmãos provenientes da África haviam tido um recente enraizamento nas práticas do catolicismo, assim, o imaginário religioso estava sendo reconstruído concomitantemente à sua própria inserção no sistema social. Se o gasto com missas para almas era reduzido – o que poderia insinuar diferenças na percepção do cato-licismo – as irmandades negras tinham, nas construções, ampliações e reforma de templos, o seu principal objetivo, o que absorvia uma grande soma de recursos fi-nanceiros. A irmandade do Rosário da Cruz gastou �0% de seus ganhos durante quarenta anos em edificações.3� Além disso, a organização das confrarias leigas voltava-se para a implementação do culto religioso, as festas e a construção de templos.33 Acredita-se que os africanos buscavam participar das irmandades reli-giosas, desejando um lugar seguro, e longe dos olhares de seus senhores, para re-encontros e trocas de experiências, para refazerem a grande família africana, e mes-mo para resistência política.3�

Exemplo desta prática social entre os negros pode ser observado na carta régia datada de ��90, onde D. Maria ordenou ao governador que concedesse seu parecer a respeito do pedido da irmandade de N. Senhora do Rosário dos Pretos do Arraial da Piedade da Freguesia do Curral de el Rei que, em carta anexa, afirmava ter erigido capela e necessitava de licença régia para a conservação da mesma.3�

30 Ibidem, p. 9�. 3� AGUIAR, Marcos Magalhães. Festas e rituais de inversão hierárquica nas irmandades ne-gras de Minas colonial, p. �. 3� Ibidem, p. �. 33 Ibidem, p. 9. 3� Sobre este assunto conferir o capítulo: Para melhor viver: o catolicismo das “gentes de cor”. In: DIAS, Renato da Silva. Para a Glória de Deus, e do Rei? Política, religião e escra-vidão nas Minas do Ouro (1693-1745). Tese de doutoramento defendida na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG. Belo Horizonte, �00� 3� SC-�9, fl. �3� (�0�, numeração nova). Carta de D. Maria ao Governador das Minas. Lis-

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Outra irmandade, sob a mesma invocação, localizada na freguesia do Ouro Preto, também solicitou provisão para pedirem esmolas, no intuito de assim reerguerem a sua capela em decadência. Nesse caso, o rei concedeu a vênia, cuja provisão transcreve-se abaixo – assim esta confraria pôde dispor de dois homens para percorrerem as Minas com suas caixinhas de esmolas, excetuando-se as regiões diamantíferas.

Faço saber aos que esta minha Provisão virem, que atendendo os Devotos e Confrades da Capela de Nossa Senhora do Rosário de homens pretos filial da Matriz de Nossa Senhora do Pilar do Ouro Preto do Bispado de Mariana que pela total decadência em que se achava a Capela da mesma Senhora lhe fora Reino o fazê-la de novo com avultada despesa a qual não podia suprir os sobreditos confrades por viverem os mais deles sujeitos á escravidão (...) e por não haver outro algum Rendimento mais que as esmolas dos ditos Confrades (...) e porque se não podia conservar tão pia devoção, Continuação (?) da obra da dita Capela; me pedirão fosse servido conceder lhes Provisão para pode-rem pedir esmolas para continuação da dita obra.3�

Diversas edificações religiosas se encontravam “arruinadas” ao longo do século XVIII, como também a capela de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, filial da Matriz de Nossa Senhora do Pilar do Ouro Preto – atendida através de licença para esmolar.3� Esta também trazia o pires na mão, devido a “incapacidade, perigo e ruína que amea-çava a mesma Igreja por estarem suas madeiras podres, e com muita indecência a ve-neração do culto divino, com muita carência que havia de reparar este dano por ser uma obra tão pia, como necessária”. Aos �0 de julho de ���0, após analisar os pedidos dos irmãos do Rosário, D. José expediu provisão para que um esmoler da irmandade do Rosário de Campanha do Rio Verde pudesse recolher doações com sua caixinha pelo prazo de três anos, para também erigir novamente sua capela.38

As licenças para esmolar, que talvez possa parecer ajuda inexpressiva, na ver-dade, resultavam em bons rendimentos. Em ����, a irmandade do Rosário de Ca-choeira do Campo arrecadou �3� oitavas e um quarto, o equivalente a �0% do total de sua receita através dessa prática.39 O ermitão da irmandade de N. Senhora do Rosário da Vila de São Paulo, Domingos de Mello Tavares, arrecadou dez mil cruzados em ouro, entre ���8 e ����, o que foi revertido para a construção da

boa, 30 de janeiro de ��90. 3� SC-�3�, fl. ��v. Pedido de Provisão dos Confrades da Irmandade de N. Senhora do Rosário dos homens pretos da Freguesia do Ouro Preto para pedirem esmolas. �0 de novembro de ����. O pedido foi atendido em �� de fevereiro de ���� (grifos meus).3� SC-�3�, fl. ��v. Provisão Régia concedendo licença para que a irmandade de N. Senhora do Rosário possa dispor de dois homens para esmolar no intuito de reerguer capela. �� de fevereiro de ����. O pedido de provisão data de �0 de novembro de ����. 38 SC-�3�, fl. �0. Carta régia. Lisboa, �0 de Julho de ���0. 39 Livro de Receita e Despesa da Irmandade de N. Senhora do Rosário de Cachoeira do Cam-po (���3-���3). Cf. AGUIAR, Marcos Magalhães de. Negras Minas Gerais, p. 309.

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capela dos negros, sendo por isso nomeado administrador perpétuo e fundador da igreja.�0

Percebe-se que os fatores que levaram os africanos em seu conjunto a partici-par das atividades do catolicismo devem ser buscados nas memórias culturais afri-canas, bem como nas questões pertinentes à nova estrutura social, baseada no sis-tema escravista.�� Os africanos e descendentes desejavam recriar, no Novo Mundo, as estruturas perdidas com o tráfico; não obstante, o cristianismo estar intimamente associado ao sistema escravista, como religião universalista e nada tolerante com outras práticas religiosas, a recriação cultural deveria, necessariamente, orientar-se pela prática cristã. De tal modo, os escravos tinham poucas opções: ou “aceitar” a nova religião ou recusá-la e esperar sofrer as conseqüências. Mas o que deveria ser observado também é que a participação nos sacramentos e rituais do catolicismo, como o batismo, as procissões, as festas e as cerimônias de enterro, e a congrega-ção, nas irmandades, foram relidas à luz de suas culturas africanas, resultando, então, na dupla interpretação do catolicismo: visto pelas autoridades religiosas como controle social, dominação dos escravos e, por estes, como forma para me-lhor viver. Se os africanos e descendentes compartilhavam os mesmos rituais reli-giosos freqüentados pelos brancos, uma análise da vivência cotidiana do catolicis-mo das gentes de cor poderia suscitar novos significados conferidos pelos escravos àqueles signos religiosos.

Um elemento que se insinua como um padrão característico do catolicismo praticado por africanos e descendentes e que revela um comportamento destoante das práticas religiosas portuguesas, ou seja, de uma percepção própria da religião, trata da relevância dos rituais da morte, fato social e simbólico bastante importante nas culturas africanas. Nessas tradições culturais, acreditava-se que os espíritos vi-veriam no pós-vida, mas não em um local peculiar, como o céu, ou purgatório cristão, e, sim, retornaria à terra dos ancestrais, na África. Essa concepção escatoló-gica se diferencia sobremaneira da tradição cultural judaico-cristã, que, como já se expôs, esperava pela redenção das almas, que se elevariam ao “céu” ou o “paraí-so”, junto de Deus.�� Repare-se que os cristãos esperam os fins últimos e a salvação futura, quando as almas seriam pesadas.

Em documento anônimo de ����, em que se solicitava o estabelecimento de um seguro de escravos, o narrador clamava a falta de domínio sobre os escravos, que fu-giam e cometiam atrocidades. Caeté, Morro Vermelho, Curral Del Rei, Itabira, Parao-peba, Itatiaiuçu e outras regiões estavam infestadas de quilombos, destruídos por um capitão-do-mato, cognominado “Veloso”, que recebia uma contribuição do povo de setenta oitavas por cada mão direita entregue à câmara de Sabará. O mais importante,

�0 Ibidem, p. 3�0.�� Sobre este aspecto conferir: KARASCH, Mary. A vida dos escravos no Rio de Janeiro, p. 3�; BASTIDE, Roger. As religiões africanas no Brasil, p. �3-��; COSTA, Emília Viotti da. Da senzala à colônia, p. �3�-�3�; SOUZA, Marina de Mello e. Reis negros no Brasil escravista, p. ���; SOARES, Mariza de Carvalho. Devotos da cor, p. ��9.�� SOBEL, Mechal. The world they made together, p. ���.

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e que revela um exemplo da visão religiosa africana, seria o possível relato de um ne-gro. Afirma o anônimo:

diz todo negro que se costuma a fugir e ainda os que ficam, ‘fugir’, dizem eles, ‘fugir é bom’, porque se os matam lá no mato, dizem, “moré moré, mor-reu, acabou o cativeiro e foi descansar na sua terra.

E por isso “tem tomado tal modo os senhores medo de os castigarem que nem a doutrina lhes ensinam”.�3 Essa imagem se distancia bastante daquelas reproduzi-das pela historiografia, de escravos sofrendo castigos e senhores plenipotenciários, demonstrando também a capacidade de negociação, que impunha limites ao po-der escravista. Vivendo como escravos no Brasil, os africanos reinterpretaram o catolicismo e o ritual da morte, buscando garantir que, após o findar da vida, seu espírito pudesse fazer o kalunga, ou seja, retornar à terra de seus ancestrais, “des-cansar na sua terra”, segundo o relato. E esse dado explica a ênfase da comuni-dade escrava organizada nas irmandades de negros e mulatos na construção de templos. Além de disporem de local para socialização apartada dos senhores, os escravos buscavam garantir o local de sepultamento aos “parentes”, realizando os rituais propiciatórios para a boa morte africana.

Como se afirmou acima, Marcos Magalhães Aguiar demonstrou que a construção e a reforma de templos eram o principal objetivo das confrarias negras. Durante quase quarenta anos, a irmandade do Rosário do Alto da Cruz despendeu na média �0% dos seus recursos com construção e reforma.�� O que o autor não percebeu é que essa di-ferença nos gastos das irmandades revela também uma chocante diferença de propósi-tos e interpretação da instituição e dos signos religiosos: os africanos não acreditavam em céu, purgatório, demônio e, muito menos, que o ato de rezar missas poderia favo-recer as almas do purgatório!

Também era de fundamental importância ser enterrado junto aos seus e o ritu-al de sepultamento dos negros expressa bem os costumes africanos. O cortejo fú-nebre, que seguia em “fila indiana”, era acompanhado pela “família”, em alguns locais, em tom festivo, e pelo líder espiritual, nesse caso, o pároco. O ato de ser enterrado é expressão dos comportamentos africanos e as confrarias religiosas ne-gras garantiam o enterro adequado. O próprio ato de chorar com grande alvoroço e jogar um punhado de terra sobre os mortos, ocorrência imperceptível a muitos e incorporada às práticas fúnebres brasileiras, é um rito eminentemente africano.��

�3 Códice Costa Matoso, p. �3�. “Papel acerca do estabelecimento de um seguro de escravos e suas muitas utilidades”. Vila Real de Sabará, ����. (grifo meu). �� AGUIAR, Marcos Magalhães. Negras Minas Gerais, p. �90. Deve-se destacar que as do-ações às almas representavam aos africanos um elemento de integração à nova sociedade, por isso era importante que se constasse em seus testamentos. PAIVA, Eduardo França. Por meu trabalho, serviço e indústria, �999.�� Cf. BASTIDE, Roger. As religiões africanas no Brasil, p. ���-8; COSTA, Emília Viotti da. Da senzala à colônia, p. �33; GENOVESE, Eugene. A terra prometida, p. 300-303; SOUZA,

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A apropriação e a ressignificação do catolicismo pelos escravos e o etnocentris-mo dos senhores explicam como várias atitudes tomadas pelos mesmos foram perce-bidas como forma de controle e dominação pelas autoridades eclesiásticas – leitura feita por parte de nossa historiografia colonial. Embora a devoção aos santos, princi-palmente aos santos negros, como Nossa Senhora do Rosário, São Benedito, Santa Efigênia e São Elesbão,�� tenha sido uma forma encontrada para incorporar os africa-nos à crença cristã, e também para submetê-los, diminuindo as tensões latentes e as revoltas escravas, esse fato não explica sua ampla difusão entre os cativos, em toda a Iberoamérica. É nos fatos internos às culturas africanas que se encontra a chave que explica a divulgação da devoção aos santos entre os mesmos.

A participação nas irmandades religiosas, além de garantir a proteção, permi-tia também que os africanos refizessem a grande família perdida com o tráfico, importante elemento para as culturas africanas, forma de reconstruir sua identida-de. Com o esfacelamento das religiões e das famílias, vendidas separadamente, e na impossibilidade para a maioria de refazê-la diante da baixa porcentagem de mulheres nas minas, as irmandades permitiram aos africanos a formação de uma nova família e de parentes espirituais.

Os escravos devotos contribuíam para a construção dos templos de seus “santos” de devoção, e isso com grandes sacrifícios durante anos – fato que colaborou na cria-ção de uma lenda, de que as africanas transportavam ouro nos cabelos, lavados na pia batismal. Com um fundo de realidade ou não, isso já demonstra o interesse dos mancí-pios em ter um lugar próprio, onde pudessem se encontrar longe dos olhos dos senho-res. Evidencia ainda a sagacidade, a astúcia dos escravos que, com as dificuldades e risco de se baterem com as autoridades, procuravam viver da melhor forma possível, explorando os espaços.��

Os escravos desejavam ter maior independência e não, submeter-se aos párocos, o que nos parece claramente uma forma de releitura daquela instituição: de instrumento de submissão a local para ver amigos, de socialização. A construção dos templos religiosos dos negros, sua vontade de se separar das matrizes, revela-nos o desejo de terem um local onde poderiam viver sem a presença vigilante de seus senhores.�8

Marina de Mello e. Reis negros no Brasil escravista, p.���; SOBEL, Mechal. The world they slave together, p. ���, ��9 �� Estavam presentes, entre os patronos mais conhecidos das irmandades negras: Nossa Se-nhora do Rosário, Santa Efigênia, São Benedito, Santo Antônio da Catagerona, São Gonçalo, Santo Onofre e São Elesbão, todos considerados santos negros ou pardos. SCARANO, Julita. Devoção e escravidão, p. 38. �� BOXER, Charles R. A idade de Ouro do Brasil, p. �9�-8. �8 SCARANO, Julita. op. cit., p. 3�; AGUIAR, Marcos Magalhães. Negras Minas Gerais, p. 3�9.

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Considerações finais

Vivendo nos limites de um sistema sob rígida disciplina, não dispondo pratica-mente de direitos, os cativos poderiam, ao participar das associações religiosas, contar com um espaço fora do controle de seus senhores, onde refaziam a família, encontravam novos companheiros e lutavam por seus direitos. As irmandades ser-viam também para a formação de comunidades, e essa instituição oferecia local para os escravos darem vazão a angústias contidas, para “brincar e folgar”, manten-do um líder escolhido pelos mesmos, como na coroação dos reis do congo.

No período escravista, a astúcia dos africanos e descendentes se revelava nas táticas utilizadas para a sua sobrevivência física, moral e espiritual; estratégias mani-festadas também na busca de independência por meio das irmandades religiosas – local onde se viam cercados de “parentes”, construíam suas capelas, oravam diante de imagens, que remetiam a valores culturais africanos, e se congregavam fora do controle direto de seus senhores, mostrando-se como seres humanos – nas festas re-ligiosas e na formação de fortes laços, através do casamento e do parentesco espiri-tual. Para melhor viver no mundo colonial, era indispensável aos escravos recriar afinidades sociais. Além do enlace matrimonial, nem sempre possível, tornava-se necessário construir vínculos, para que pudessem recorrer em momentos de necessi-dade, para adquirir a liberdade para os filhos ou mesmo para facilitar a ascensão social. Nesse sentido, a participação nas irmandades religiosas, e a edificação de Igrejas e capelas permitiam a construção da sociabilidade confrarial nas Minas.

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