identidades de educadoras sociais: trajetórias de vida e formação

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  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    FACULDADE DE EDUCAO

    ISABEL CRISTINA BUCCINI

    Identidades de educadoras sociais:

    Trajetrias de vida e formao

    So Paulo,

    2007

  • ISABEL CRISTINA BUCCINI

    Identidades de Educadoras Sociais:

    Trajetrias de Vida e Formao

    Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de

    Ps-Graduao da Universidade de So Paulo para

    obteno do ttulo de Mestre em Educao.

    rea de Concentrao: Psicologia e Educao

    Orientadora: Prof Dr Teresa Cristina Rego

    So Paulo

    2007

  • FOLHA DE APROVAO

    Isabel Cristina Buccini

    Identidades de educadoras sociais:

    trajetrias de vida e formao

    Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de

    Ps-Graduao da Universidade de So Paulo para

    obteno do ttulo de Mestre em Educao.

    rea de Concentrao: Psicologia e Educao

    Aprovado em:

    Banca Examinadora

    Prof. Dr _______________________________________________________________________

    Instituio ___________________Assinatura: __________________________________________

    Prof. Dr _______________________________________________________________________

    Instituio ___________________Assinatura: __________________________________________

    Prof. Dr _______________________________________________________________________

    Instituio ___________________Assinatura: __________________________________________

    Prof. Dr _______________________________________________________________________

    Instituio ___________________Assinatura: __________________________________________

    Prof. Dr _______________________________________________________________________

    Instituio ___________________Assinatura: __________________________________________

  • DEDICATRIA

    memria dos meus pais, com meu amor e saudade,

    pela forma admirvel com que ensinaram

    a amar a vida e as pessoas.

  • AGRADECIMENTOS

    Agradece a todas as coisas do Cu e da Terra; pois quando agradeceres a todas as coisas

    do Cu e da Terra, tudo ser teu amigo, e, quando todo o universo tornar-se teu amigo, coisa

    alguma do universo poder causar-te dano... Sutra Sagrada.

    Ao Comunitria, pela oportunidade de realizao da pesquisa e todo apoio fornecido.

    Prof Dr Teresa Cristina Rego, pela dedicao, oportunidade de aprendizado e competncia

    profissional com que me apoiou durante todo o processo de desenvolvimento desta pesquisa.

    Aos meus familiares, pelo apoio e compreenso sobre a importncia da realizao deste

    trabalho para a minha vida.

    s minhas queridas amigas e amigos, que com todo carinho sempre me apoiaram e

    compreenderam todas as minhas ausncias neste perodo de pesquisa.

    A todos os amigos (as) da Ao Comunitria, que tanto me incentivaram e ajudaram em todos

    os momentos que necessitei.

    s educadoras sociais participantes desta pesquisa e a todas que elas representam, pelo

    trabalho que realizam, pelo aprendizado, disponibilidade, carinho e profissionalismo como me

    receberam.

    A Deus, pela oportunidade da vida e pelo amparo onipresente.

  • RESUMO

    BUCCINI, I. C. Identidades de educadoras sociais: trajetrias de vida e formao. 2007. 214 f. Dissertao (Mestrado) Faculdade de Educao, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2007.

    O presente trabalho objetiva investigar os impactos do processo de formao

    sistemtica em servio, a partir do estudo de um grupo de oito educadoras sociais que

    trabalham na Organizao No Governamental Ao Comunitria, localizada no bairro do

    Campo Limpo, extremo da zona sul de So Paulo. Partindo do princpio de que a formao e o

    desenvolvimento pessoal e profissional destas educadoras so pautados tambm no seu espao

    de atuao, procurou-se identificar as possveis contribuies do processo de formao

    permanente realizado pela instituio na constituio das identidades pessoais e profissionais

    das educadoras pesquisadas. Alm dos possveis impactos decorrentes da formao contnua,

    sero examinadas tambm as influncias exercidas pelas trajetrias de vida e as experincias

    pessoais que marcaram os ambientes familiares e escolares do grupo estudado. Por meio da

    produo de registros escritos significativos, depoimentos orais, entrevistas semi-estruturadas

    e registros de memria pessoal (fotos), as educadoras sociais, participantes desta pesquisa,

    puderam realizar um intenso exerccio autobiogrfico, propulsor de uma possvel tomada de

    conscincia dos processos que influram em suas trajetrias de vida pessoais e profissionais.

    Buscando aportes nos referenciais tericos da Psicologia Histrico-Cultural, foi possvel

    perceber que este processo de formao pode gerar mudanas significativas nas formas de ser,

    pensar, agir e relacionar-se daqueles que dele participam. Os processos psquicos de

    constituio identitria, podem muitas vezes passar despercebidos pelos sujeitos que vivem

    mergulhados nas exigncias da sociedade moderna, iminentemente imediatista, capaz de

    compreender o ser apenas em seu aqui e agora, desconsiderando o carter permanente de

    busca de si mesmo, de inconcluso, de devir ou vir a ser, inerentes constituio da

    identidade humana.

    Palavras-chaves: Identidade, Formao, Auto-Biografia, Educadoras Sociais.

  • ABSTRACT

    BUCCINI, I. C. Identities of socials educators: trajectories of life and formation. 2007. 214

    f. Dissertation (Masters degree) Faculty of Education, University of So Paulo, So Paulo,

    2007.

    The present work objective to investigate the impacts of the process of systematic formation

    in service, from the study of a group of eight social educators that work at no government

    organization Ao Comunitria located at Campo Limpo area, extreme southern zone of So

    Paulo. To coming from of the principle of that the formation and the personal and professional

    development of these educators are also methodicals in its space of performance, looked for

    identify the possible contributions of the process formation permanent realized by institution

    in the constitution of the personal and professional identities of the educators. Beyond the

    possible decurrent impacts of the continuous formation, the influences exerted for the personal

    trajectories of life and experiences will also be examined that marked in familiar and school

    environments of the studied group. By means of the production of written registers significant,

    verbal account through half-structuralized interviews and registers of personal memory

    (photos), the participant social educators of this research, had been able to carry through an

    intense autobiographical, exercise of a possible taking of conscience of the processes that had

    influenced in its personal and professional trajectories of life. Searching support in the

    theoretical reference of Historical-Cultural Psychology, was possible to perceive that this

    process of formation can generate significant changes in the forms in the forms of being,

    thinking, to act and to become related of that of it they participate. The phychic processes of

    identity constitution, can many times pass unobserved for the citizens that live dived in the

    requirements of the modern society, imminently immediate, capable to understand the being

    only in its here and now, disrespecting the permanent character of search of itself exactly,

    no conclusion of devir or coming to be inherent to the constitution of the identity

    human being.

    Keywords: Identity, Formation, Autobiographical, Social Educators

  • SUMRIO

    INTRODUO..............................................................................................................1

    Ensaio de um memorial: meu exerccio autobiogrfico..................................................1

    Em busca do objeto de pesquisa.....................................................................................5

    CAPTULO I. O TERCEIRO SETOR E AS ONGS PLURALIDADES E

    SINGULARIDADES....................................................................................................8

    1.1 Conceitos e papis do Terceiro Setor e ONGs.........................................................8

    1.2 Um breve histrico das ONGs.................................................................................11

    1.3 Caractersticas da ONG estudada............................................................................16

    1.4 O educador social e seu trabalho: uma identidade a ser desvelada.........................19

    CAPTULO II: A QUESTO DA FORMAO DE EDUCADORES E O

    PROCESSO DE CONSTITUIO DA IDENTIDADE

    PROFISSIONAL.........................................................................................................22

    2.1 A relao eu/ns e os processos de constituio da identidade no campo da

    psicologia histrico-cultural..........................................................................................22

    2.2 A formao da identidade profissional....................................................................31

    2.3 Identidade e afetividade: a busca da cognio pelo afeto........................................35

    CAPTULO III: METODOLOGIA: A PROPOSTA DE PESQUISA-

    FORMAO...............................................................................................................45

    3.1 A escolha e fundamentao do mtodo (auto) biogrfico.......................................45

    3.2 A busca de si pela busca de ns: experincias de vida em formao......................51

  • CAPTULO IV: OS RELATOS AUTOBIOGRFICOS: DANDO VOZES

    S EDUCADORES SOCIAIS E DIALOGANDO COM OS DADOS DAS

    SUAS HISTRIAS DE VIDA..........................................................................60

    4.1 Sobre o mtodo da pesquisa, as entrevistas, os instrumentos da coleta e suas

    protagonistas........................................................................................................60

    4.2 Relatos significativos sobre a identidade pessoal..........................................66

    4.3 Relatos significativos sobre a identidade familiar.........................................75

    4.4. Relatos significativos sobre a identidade escolar.........................................88

    4.5 Relatos significativos sobre a identidade profissional..................................98

    CONSIDERAES FINAIS: TECENDO ALGUMAS REFLEXES

    ACERCA DOS DADOS E ESTABELECENDO NOVO DILOGO COM

    OS REFERENCIAIS TERICOS.................................................................135

    REFERNCIAS..............................................................................................147

    ANEXOS...........................................................................................................154

    I. Ficha identitria..............................................................................................154

    II. Roteiro da entrevista.....................................................................................156

    III. Autorizaes para publicao......................................................................159

    IV. Materiais biogrficos secundrios (fotos e depoimentos escritos)..............168

    V. Entrevistas na ntegra em cd room................................................................214

  • 1

    INTRODUO

    A formao depende do que cada um faz do que os outros

    quiseram, ou no quiseram, fazer dele. Numa palavra, a

    formao corresponde a um processo global de autonomizao,

    no decurso do qual a forma que damos nossa vida se

    assemelha se preciso utilizar um conceito ao que alguns

    chamam de identidade (DOMINIC, 1985, p. 61).

    Ensaio de um memorial: meu exerccio autobiogrfico

    Pareceu-me bastante oportuno pensar na escrita inicial de um memorial neste

    momento da minha vida, visto encontrar-me mergulhada em teorias e reflexes sobre

    identidades, sobre as memrias destas identidades, sobre a vida das pessoas que me

    cercam e porque no dizer, sobre a minha prpria vida.

    A primeira lembrana que surgiu em minha mente foi o delicioso cheiro de

    pssego que sentia nos meus primeiros anos de vida escolar, o qual impregnava no s

    as minhas narinas como tambm meus cabelos, minha roupa, meus materiais escolares.

    como se eu pudesse senti-lo agora, neste exato momento, em paralelo a todas as

    sensaes de frescor e delcia que me proporcionava.

    Vivia pelos ptios daquela escola a procurar aquele pessegueiro, que imaginava

    ser enorme, coberto de frutos suculentos e rosados, prontos para o sabor de minha

    primeira mordida... Salivava, (e ainda salivo) s de pensar...

    No entanto, as minhas primeiras descobertas, aos sete anos de idade, naquela

    escola estadual, no foram to prazerosas assim.

    Contrariamente s demais crianas, no primeiro dia de aula, no chorei na

    entrada, mas sim na sada, quando tive a temvel surpresa de no encontrar minha

    me por l, esperando por mim. Senti-me esquecida naquele imenso prdio - na poca

    ele assim me parecia, no entanto, hoje sei que esta era a forma como eu o enxergava; at

    que minha me surgiu ofegante, rubra e molhada em suor para resgatar-me. Minha

  • 2

    querida mezinha havia cochilado e perdido a noo das horas, j apresentando os

    primeiros sinais de uma sade comprometida, mas recompensou-me prontamente com

    seu afeto, ontem, hoje e sempre to presente em mim.

    Apesar de no ter freqentado o pr-primrio, como era chamada naquela poca

    a educao pr-escolar, ingressei no ensino fundamental de certa forma j familiarizada

    com o universo da escrita atravs do programa televisivo Vila Czamo.

    Reconhecendo o alfabeto, j conseguia formar algumas palavras e escrever meu nome

    completo. Os contos de fadas, sussurrados baixinho por minha irm e meu pai na hora

    de dormir, tambm me fizeram querer aprender logo a ler e desvendar outras histrias.

    Acho importante falar um pouco sobre os meus primeiros educadores escolares.

    Minha primeira professora (Ligia Padilha), no me traz boas recordaes. Alm de

    trocar frequentemente meu nome (chamava-me sempre de Tereza Cristina), insistia aos

    berros em exerccios tenebrosos de coordenao motora, os quais eu nunca conseguia

    fazer e com certeza no conseguiria faz-los ainda hoje. Chorava exaustivamente.

    Trocaram-me de professora e daquela vez dei mais sorte, recebi um anjo dos

    cus. Seu nome era Clia, jovem, meiga, voz serena e pronta para receber todos seus

    alunos de uma forma muito acolhedora. Era tudo que precisava para poder exercitar os

    meus supostos dotes de aluna inteligente. Clia valorizava sempre minha disposio e a

    rapidez com que eu estabelecia as relaes cognitivas. Mas, como nem tudo so flores,

    na segunda srie, deparei-me com uma nova fera de mesmo nome, a professora Lygia

    Caricatti. Ela tinha o pssimo costume de quebrar pelo menos trs rguas ao dia nas

    cabeas de seus alunos. Novamente, a velha e exaustiva choradeira, at que me

    mudaram de sala.

    Da em diante, percebi que o mundo escolar deveria ser encarado de frente,

    mesmo que no me proporcionasse momentos de prazer com tanta freqncia, como

    quando pensava no pessegueiro. Esta passagem me faz lembrar dos ideais de Rubem

    Alves (1994):

    Que a aprendizagem seja extenso progressiva do corpo, que vai

    crescendo, inchando, no apenas em seu poder de compreender e

    conviver com a natureza, mas em sua capacidade de sentir o prazer, o

    prazer da contemplao da natureza, o fascnio perante os cus

  • 3

    estrelados, a sensibilidade ttil ante as coisas que nos tocam, o prazer

    da fala, o prazer das histrias e das fantasias, o prazer da comida, da

    msica, do fazer nada, do riso, da piada... Afinal de contas no para

    isto que vivemos, o puro prazer de estar vivos? (p.81).

    A partir de ento, enfrentei todos os sabores e dissabores naturais da vida de

    estudante, sempre apostando em mim mesma, em meu esforo pessoal de aprender o

    prazer em aprender. Sempre fui considerada pelos professores como uma boa aluna,

    dedicada, esforada em aprender e tirar as melhores notas da classe - tarefa imposta por

    mim mesma, pois nunca houve em casa um forte acompanhamento a respeito do meu

    desempenho escolar.

    Cursei o ensino mdio tambm em escola estadual, onde desta vez, o fantasma

    maior foi o processo de ingresso, o antigo vestibulinho. O colgio, E.E.P.S.G Ferno

    Dias Paes, escolhido por mim naquela poca, era muito concorrido, por ser reconhecido

    como uma escola forte. Foi l que comecei a descobrir minhas afinidades em relao s

    reas do conhecimento das humanidades. Encantavam-me as aulas e os professores de

    Literatura e de Histria. No optei por cursar o Magistrio pois os comentrios que

    circulavam entre os alunos era de que tal curso era fraco, no preparava para o

    vestibular, visto no contemplar as disciplinas de Fsica e Qumica em sua grade

    curricular. No terceiro ano colegial, fui contemplada com uma bolsa integral de

    cursinho pr-vestibular e sabia que precisava usufruir ao mximo desta oportunidade, j

    que a continuao dos estudos estava atrelada ao ingresso em uma universidade pblica.

    Em 1987 ingressei no curso de Pedagogia na Faculdade de Educao da

    Universidade de So Paulo. Instalei-me como moradora do Centro Residencial da USP -

    CRUSP, pois meus pais haviam mudado para o interior de Minas Gerais e confesso que

    no sabia ao certo aonde me levaria aquela escolha.

    Naquela poca eu j trabalhava em regime de perodo integral no Banco

    Bradesco, o que me impedia de participar plenamente da vida acadmica (dos centros

    acadmicos, movimentos estudantis, palestras ministradas durante o dia, etc.), e isto

    algo que lamento muito.

    Terminei minha graduao no ano de 1990, e naquela poca j trabalhava com

    formao de pessoas, atuando no Centro de Formao do Banco. Ocupava o cargo de

  • 4

    coordenadora pedaggica, cuja funo era de diagnosticar, encaminhar e avaliar os

    treinamentos tcnicos e comportamentais oferecidos aos funcionrios das agncias

    bancrias.

    Continuei a trabalhar nos anos seguintes na rea de Treinamento e

    Desenvolvimento de pessoas, passando por outras empresas at o ano de 1997 quando,

    finalmente, consegui realizar meu sonho de ingressar na rea educacional. Desde ento,

    venho me dedicando ao trabalho de formao continuada de professores e lideranas

    comunitrias dos programas scio-educacionais da ONG Ao Comunitria.

    Por questes familiares, s consegui retomar meus estudos no curso de ps-

    graduao no ano de 2003, quando procurei na Faculdade de Educao uma vaga como

    aluna ouvinte, a fim de inteirar-me novamente e de forma gradual dos discursos e

    discusses acadmicas. Busquei por vrios professores e a retrica era a mesma: aluno

    ouvinte s traz problemas. Numa ltima tentativa, tive a felicidade de ser ouvida e

    recebida por uma professora que no julga ser coerente a gerao de mais excluso em

    uma Universidade Pblica: a minha atual orientadora. Desse modo, no primeiro

    semestre de 2003, participei como aluna ouvinte do curso Cultura e Desenvolvimento

    Humano: o papel da escola na constituio de singularidades, ministrado pela Prof.

    Dr. Teresa Cristina Rego. Ao longo daquele semestre tive a oportunidade de

    amadurecer um projeto de pesquisa para inscrever-me junto ao processo seletivo do

    curso de Mestrado em Educao.

    Em 2004, iniciei, finalmente, meu percurso como aluna regular do Programa de

    Ps-Graduao da Faculdade de Educao na Universidade de So Paulo. Gostaria de

    enfatizar que as escolhas das disciplinas cursadas foram primordiais, na medida em que

    contriburam para que eu adquirisse os subsdios terico-metodolgicos necessrios a

    esta pesquisa.

    A competncia profissional/pessoal presente na singularidade de cada um dos

    professores doutores mostraram-me desta vez que os saberes podem ter muito mais

    sabores. Foram eles: Teresa Cristina Rego (Cultura e Desenvolvimento Humano: o

    papel da escola na constituio de singularidades); Marta Kohl de Oliveira

    (Desenvolvimento Cultural e Modalidades de Pensamento); Belmira A. Barros Oliveira

    Bueno (Etnografia aplicada pesquisa educacional); Denice Brbara Catani (Memria

  • 5

    e Histria da Profisso Docente); Jorge (A Viragem Lingstica e o Relanamento do

    Ofcio Historiogrfico); Flvia Schilling (Educao, poder e resistncia).

    O ingresso no curso de Mestrado em Educao e o exerccio do estgio docente

    proporcionado pelo programa PAE Programa de Aperfeioamento de Estudos - da

    Faculdade de Educao da Universidade de So Paulo, realizado no primeiro semestre

    de 2005, sob a superviso de minha orientadora, Prof Dr Teresa Cristina Rego,

    contribuiu de certa forma para o meu ingresso como professora universitria,

    ministrando as seguintes disciplinas no curso de Pedagogia: Psicologia Educacional,

    Didtica da Educao e Princpios e Mtodos de Administrao Escolar.

    Reconheo a importncia de todas as vidas que contriburam e contribuem

    para a constituio da minha identidade pessoal e profissional, e ainda continuo

    procurando por aquele pessegueiro recoberto de frutas em minha caminhada...

    Em busca do objeto de pesquisa

    Conforme mencionado anteriormente, o impulso de realizao desta pesquisa

    teve origem no primeiro semestre do ano de 2003, quando tive a oportunidade de

    participar como aluna ouvinte do curso de ps-graduao na rea de Psicologia da

    Educao, intitulado Cultura e Desenvolvimento Humano: o papel da escola na

    constituio de singularidades ministrado pela Prof Dr Teresa Cristina Rego, na

    Faculdade de Educao da Universidade de So Paulo. O acesso aos pressupostos da

    psicologia histrico-cultural e as principais idias do terico russo Levy Vygotsky, bem

    como as discusses proporcionadas no decorrer daquele semestre, revelaram-me que o

    reconhecimento do complexo processo de configurao das singularidades, pode

    contribuir significativamente para uma melhor compreenso do trabalho docente.

    Alm do impulso acadmico, inquietaes da vida profissional tambm

    fomentaram a realizao deste trabalho. Em minha trajetria profissional, venho

    atuando nos ltimos dez anos como formadora de um grupo de sessenta educadores

    sociais da ONG Organizao No Governamental, Ao Comunitria. A ONG realiza

    em sua sede encontros de formao sistemticos (mensais) com todo o grupo de

    educadores sociais para tratar das propostas pedaggicas a serem implementadas com o

    grupo de crianas e adolescentes atendidos. A instituio realiza tambm encontros

  • 6

    regionais (bimestrais) por rea de atuao em grupos menores (cerca de quinze

    pessoas), para trocas a respeito da prtica pedaggica.

    Estes profissionais tm como funo atender, a partir de um trabalho

    denominado de educao informal1, crianas e adolescentes da comunidade em que

    moram, em horrio alternativo ao da escola formal com atividades que complementem

    os contedos desenvolvidos no mbito escolar. O grupo composto, em sua maioria,

    por educadores do sexo feminino, moradores do bairro onde atuam, com diferentes

    nveis de formao e que demonstram uma forte identificao com a proposta scio-

    educativa que desenvolvem.

    Meus questionamentos tm sido direcionados para a compreenso da

    diversidade dos resultados pedaggicos apresentados por cada um destes profissionais,

    ou seja, tenho me preocupado em compreender como se revela, ou como tem sido

    apropriada, a formao contnua oferecida pela ONG aos educadores sociais, na

    constituio das suas identidades.

    Existem inmeros trabalhos que se dedicam s questes relacionadas formao

    de professores de escolas pblicas ou particulares e que discutem se estes espaos de

    atuao funcionam efetivamente como centros de formao. Apesar de ser crescente o

    nmero de ONGs no Brasil que realizam trabalhos scio-educativos, existem poucos

    estudos atuais que discutem o trabalho de formao profissional em servio levando em

    conta as caractersticas e a abrangncia dos resultados pedaggicos apresentados.

    A intencionalidade deste trabalho a de contribuir para um maior conhecimento

    e compreenso das aes de formao oferecidas a esses educadores. Espera-se tambm

    que os frutos desta pesquisa possam ultrapassar os limites do espao acadmico. Neste

    sentido, objetiva-se que este trabalho possa vir a tornar-se um instrumento de reflexo

    no s dos indivduos pertencentes ao universo externo pesquisa, como tambm dos

    prprios sujeitos- participantes desta investigao.

    Do ponto de vista terico recorri aos pressupostos da abordagem histrico-

    cultural, especialmente as idias de L. S. Vygotsky, por entender que este paradigma

    ajuda a compreender os aspectos relacionados ao complexo processo de constituio de

    singularidades. Procurei tambm ao longo desta jornada investigativa, estudar outros

    autores que se dedicam compreenso da temtica de formao de educadores, tais

    1 As ONGs normalmente utilizam-se deste termo para distinguirem a proposta pedaggica (ao e contedos)

    desenvolvida com suas crianas e adolescentes, daquelas realizadas pela escola formal.

  • 7

    como Antnio Nvoa, Marie-Christine Josso, Isabel Alarco, Franco Ferraroti, Pierre

    Dominic, Paulo Freire entre outros.

    O objetivo central desta pesquisa buscar subsdios que auxiliem a responder as

    seguintes questes:

    Em que medida o trabalho do educador social e a formao

    oferecida pela ONG tm contribudo para o processo de constituio da

    identidade destes educadores?

    Quais as influncias recebidas pelos educadores sociais em suas

    histrias de vida que contriburam significativamente para a constituio de

    sua(s) identidade(s) docente(s)?

    Em que dimenso a trajetria de vida se relaciona com a

    qualidade de atuao e formao profissional destes educadores?

    Na medida em que tais questes forem sendo respondidas, poderemos

    (re) conhecer os efeitos representados por este processo de ao educativa, tanto

    na vida profissional como pessoal destes profissionais.

  • 8

    CAPTULO I: O TERCEIRO SETOR E AS ONGS - PLURALIDADES E

    SINGULARIDADES

    1.1 Conceitos e papis do Terceiro Setor e ONGs

    A expresso Terceiro Setor que comumente utilizada para referir-se s

    organizaes da sociedade civil sem fins lucrativos, abriga alm das ONGs outros

    segmentos com identidades diversas, como entidades filantrpicas e institutos

    empresariais.

    O lugar que a expresso Terceiro Setor ocupa hoje no imaginrio social,

    mesmo que no intencionalmente, produz confuses significativas de interpretao. Na

    maior parte das vezes, atribui-se a estes outros segmentos um carter equivocado de

    homogeneidade. Apesar de aparecerem diludos sob o ttulo de Terceiro Setor, cada um

    destes segmentos se caracteriza por misses, histrias, trajetrias e, portanto,

    identidades polticas e sociais completamente diferenciadas.

    Se pensssemos em primeira instncia numa anlise semntica, diramos que a

    nomenclatura Terceiro Setor, sugere que ele esteja situado num estrato da esfera

    social abaixo ou subordinado a outras duas existentes, o Primeiro Setor (Empresas), e o

    Segundo Setor (Estado). Esta, porm no a melhor interpretao na realidade. O

    Terceiro Setor coexiste com os outros dois citados e vem assumindo cada vez mais um

    papel significativo em nossa sociedade.

    Conforme define o antroplogo Rubem Csar Fernandes (1997), o Terceiro

    Setor :

    composto de organizaes sem fins lucrativos, criadas e mantidas pela

    nfase na participao voluntria, num mbito no governamental,

    dando continuidade s prticas tradicionais da caridade, da

    filantropia, do mecenato e expandindo o seu sentido para outros

    domnios, graas sobretudo, incorporao do conceito de cidadania e

    de suas mltiplas manifestaes na sociedade civil (p. 27).

  • 9

    A criao do conceito de Terceiro Setor e sua confuso com o conceito de

    ONGs, traz a estas ltimas um constante questionamento a respeito das suas identidades

    e objetivos. Podemos compreender que as identidades das ONGs se constituem por

    meio do processo histrico das relaes que elas estabelecem e pelo delineamento dos

    seus objetivos no tempo e espao que atuam.

    Len e Coscio (1998) nos alertam para a seguinte questo:

    A confuso entre o conceito de organizaes no governamentais

    orientadas para o desenvolvimento social e o Terceiro Setor traz

    conseqncias no s estatsticas, mas tambm ideolgicas. As ONGs

    de desenvolvimento social haviam incorporado como parte essencial

    de sua identidade a busca de alternativas democrticas de

    desenvolvimento baseadas no conceito de justia social, o que as

    diferenciava de outras instituies meramente assistenciais. Nos

    ltimos tempos h uma tendncia das ONGs de redefinir seu universo

    de beneficirios e de ampliar sua aliana com outros setores sociais,

    o que tem levando muitas ONGs a se abrigarem debaixo do conceito

    de Terceiro Setor. As ONGs, confundidas com o movimento do

    Terceiro Setor, vm perdendo o espao conquistado nos anos 70 e 80

    enquanto expresso dos interesses dos excludos e

    marginalizados...(p. 374).

    O prprio termo Organizao No Governamental tambm tem sido objeto de

    disputa de significados em nossa sociedade pelo fato de esta terminologia agregar

    mltiplas e heterogneas organizaes com diferenas gritantes de trajetrias, misses,

    estrutura e mtodos de ao. A definio literal de organizaes sem fins lucrativos e

    que no fazem parte do mbito estatal no suficiente para revelar o que elas so, visto

    que nenhuma identidade pode ser definida por sua negao, neste caso o no-

    governamental, e sim pela afirmao da sua misso e atuao em sociedade.

    Alm disso, a sua definio textual, ou seja, organizao que no do governo,

    torna-se to ampla que capaz de admitir qualquer instituio de natureza no estatal.

    Sob o enfoque formal, uma ONG constitui-se pela vontade autnoma de homens e

    mulheres que reunidos tm a finalidade de promover objetivos comuns de forma no

  • 10

    lucrativa. Segundo Toro (1994), para que este processo de mobilizao social ocorra, o

    mesmo deve ser gerado a partir da vontade dos atores sociais em suprirem as

    necessidades do cotidiano de sua comunidade:

    A mobilizao ocorre quando um grupo de pessoas, uma comunidade

    ou uma sociedade decide e age com um objetivo comum, buscando,

    quotidianamente, resultados decididos e desejados por todos. Por

    isso, mobilizar convocar vontades para atuar na busca de um

    propsito comum, sob uma interpretao e um sentido tambm

    compartilhados. Sendo a mobilizao uma convocao ela um ato

    de liberdade, oposto da manipulao, um ato pblico de vontade, de

    paixo (p. 13).

    Algumas definies sobre as ONGs, que ultrapassam o sentido da mera negao.

    Landim (2005), por exemplo, conceitua as ONGs como:

    um conjunto de atores, que se articulam em redes e se situam dentro

    de um determinado plo do espectro poltico e social brasileiro, com

    densidade sociolgica e consistncia poltica construdas nas trs

    ltimas dcadas (p. 29).

    J Duro (2001) alm de mencionar os aspectos sociais e polticos destaca a

    dimenso econmica e ambiental das ONGs:

    as ONGs so marcadas pelo sentido pblico de sua atuao e pelo

    papel de agentes democrticos do desenvolvimento social, econmico

    e poltico, contribuindo para a construo de alternativas de

    desenvolvimento humano, social e ambientalmente sustentveis

    (p. 19).

    O socilogo brasileiro, Herbert Jos de Souza (1995), por sua vez enaltece os

    aspectos ideolgicos envolvidos na atuao das ONGs:

    uma ONG se define por sua vocao poltica, por sua positividade

    poltica: uma entidade sem fins de lucro cujo objetivo fundamental

  • 11

    desenvolver uma sociedade democrtica, isto , uma sociedade

    fundada nos valores da democracia liberdade, diversidade,

    participao e solidariedade. As ONGs so comits de cidadania e

    surgiram para ajudar a construir a sociedade democrtica que todos

    sonham (p. 3).

    Apesar das inmeras definies existentes, acreditamos que s elas no sejam

    suficientes para explicitar a construo identitria destas organizaes e, portanto, faz-se

    necessrio um resgate histrico para a contextualizao das ONGs em especial no

    Brasil, a fim de situ-las no tempo e espao em que foram constitudas.

    1.2 Um breve histrico das ONGs

    A denominao ONG apareceu pela primeira vez em 1945, em documento

    emitido pela Organizao das Naes Unidas, para caracterizar as iniciativas da

    sociedade civil compromissadas com a proposta de reconstruo da vida social, aps a

    Segunda Guerra Mundial. Na poca a denominao NGOs Non-Governamental

    Organizations - era usada para designar organizaes supranacionais e internacionais

    que no foram estabelecidas por acordos governamentais.

    No Brasil, o surgimento das ONGs deu-se no perodo da ditadura militar a partir

    dos anos 1960 e 1970, com uma postura explcita de resistncia e oposio conjuntura

    poltica vigente na poca, baseada na idia de busca de autonomia em relao ao Estado,

    ou melhor, uma conotao de anti-Estado, e portanto, uma oposio poltica ao regime

    autoritrio vigente. Estas organizaes eram frutos de movimentos sociais fortemente

    reprimidos e que buscavam uma alternativa contra o predomnio militar, uma vez que ao

    acreditarem na construo da democracia, sabiam que o nico caminho possvel seria

    por meio da participao dos atores sociais.

    Naquela poca estas organizaes no eram conhecidas pelo termo ONG, mas

    por centros de educao popular, promoo ou assistncia social.

    Segundo a antroploga Landim (2005), mesmo entre os seus agentes no havia a

    representao de pertencimento a um universo institucional particular, pois essas

    organizaes pregavam que estavam a servio de setores dominados da populao. A

  • 12

    falta de visibilidade social ou at mesmo um certo carter de clandestinidade das aes,

    era uma caracterstica da poca no s pela conjuntura autoritria, mas tambm pela

    crena de que os verdadeiros protagonistas das transformaes sociais eram os

    movimentos sindicais.

    O surgimento das ONGs com objetivos de promoo da cidadania, defesa pelos

    direitos humanos e luta por uma democracia social e poltica, desempenharam um papel

    bastante significativo nos processos de organizao, mobilizao e formao de

    diversos movimentos sociais, rurais e urbanos, bem como de lideranas sociais,

    trabalhadores rurais, oposies sindicais e populares. Foi no sindicalismo que se

    fortaleceu a idia de organizar as classes trabalhadoras.

    As primeiras ONGs nasceram juntamente com as demandas e dinmicas dos

    movimentos sociais onde eram enfatizados os trabalhos de educao popular e de

    atuao na elaborao e controle social das polticas pblicas. Elas contriburam para

    uma nova articulao da sociedade brasileira, para alm da Igreja progressista e dos

    partidos polticos, construindo uma identidade baseada no apoio e assessoria aos

    movimentos sociais e s organizaes de trabalhadores. Distinguiam-se, por isso, das

    entidades filantrpicas ou de assistncia social e das organizaes associativas como os

    sindicatos, associaes de moradores ou profissionais.

    No Brasil, as ONGs tiveram nos anos entre 1970 e 1980 perfis fortemente

    marcados pelos pressupostos marxistas, da educao popular de Paulo Freire e pelo

    movimento cristo da Teologia da Libertao. a partir dos anos de 1980 que as

    organizaes comeam a se espalhar e assumir a terminologia de ONG, diferenciando-

    se das demais organizaes da sociedade civil.

    Nesse perodo, as ONGs comearam a estabelecer relaes com agncias

    internacionais de cooperao com sede na Europa e Canad. So relaes de grande

    significado tanto pelo fornecimento de aportes financeiros, e que possibilitaram uma

    independncia e autonomia em relao ao Estado, diferenciando-as das entidades

    filantrpicas e assistenciais, como pela participao em debates sobre diversas questes

    relacionadas sociedade civil.

    Com a ecloso do processo de democratizao na dcada de 1980 e a proposta

    de elaborao de uma nova ordem constitucional, observa-se uma primeira crise de

  • 13

    identidade das ONGs. Afinal, elas eram constitudas por atores da sociedade civil com

    voz prpria ou eram organizaes auxiliares de apoio aos movimentos sociais?

    Na dcada de 1990, o cenrio scio-econmico brasileiro tem sua situao

    agravada pela globalizao neoliberal fundada no privatismo e na proposta de reforma

    do Estado.

    O cenrio de desmoronamento do aparelho estatal, de movimento de retrocesso

    nas polticas pblicas, de substituio do conceito de universalizao por focalizao, o

    que significava a desconstruo dos direitos sociais, e por ltimo, de desqualificao

    das organizaes de trabalhadores e do movimento sindical e popular enquanto

    entidades legtimas de representao.

    A crise do Estado usada como um argumento para difundir as idias de

    antiestadismo a favor das privatizaes, gerando uma postura de crescente desobrigao

    do mesmo em relao s polticas pblicas, por sua visvel incapacidade de atuar no

    atendimento s necessidades sociais de forma eficaz.

    Em meio a todas estas mudanas polticas, observa-se um aumento significativo

    de novas organizaes sem fins lucrativos, cujo objetivo de atuao no campo social.

    So entidades sociais, assistenciais, organizaes de aes solidrias e fundaes

    empresariais, que surgem, disputando o significado do termo ONG e comeam a ser

    vistas de formas diferenciadas, ora endeusadas, ora satanizadas como comenta-nos

    Haddad (2000):

    Muitas vezes, elas so tomadas com tamanha diversidade de olhares

    que acabam sendo responsabilizadas por tantos aspectos da

    interveno social, que nem sempre correspondem ao que

    efetivamente fazem ou so capazes de fazer (...) Para alguns, so

    motores de transformao social, uma nova forma de fazer poltica.

    Para outros, um campo propcio s aes do neoliberalismo, que

    busca repassar as responsabilidades sociais para o campo da

    sociedade civil (p. 9).

    Surge, neste contexto, a chamada teoria do Terceiro setor, a qual transfere a

    responsabilidade pela garantia da coeso social para as empresas e entidades sem fins

  • 14

    lucrativos. Segundo Rifkin (1997), um dos precursores desta teoria, devemos alertar

    para a seguinte questo:

    o governo est comeando a desaparecer da vida das comunidades,

    seu papel cada vez menos importante, est passando a delegar

    verbas e programas... e a responsabilidade da vida cvica passar a

    ser cada vez mais do Terceiro Setor, do setor no governamental (p.

    20-23)

    .

    Se por um lado esta teoria pode ser compreendida sem grandes indagaes, visto

    reafirmar um dos principais pressupostos da democracia, que o da participao da

    populao nos processos de ordem social, por outro cria uma separao estanque entre

    Estado e sociedade civil. Neste sentido, torna-se contraditria, visto que em pases ditos

    desenvolvidos como Estados Unidos, Frana e Alemanha, 50% do total de gastos do

    Terceiro Setor com atividades sem fins lucrativos so pagos com fundos pblicos

    oriundos dos impostos.

    tambm nos anos de 1990 que se inicia o processo de construo de

    legitimidade e uma maior visibilidade das ONGs. Segundo Landim (2002), vrios

    acontecimentos importantes marcaram este processo, como a fundao da ABONG

    (Associao Brasileira de Organizaes No Governamentais) em 1991, e a realizao

    do encontro internacional de ONGs no Rio de Janeiro promovido pelo Programa das

    Naes Unidas para o Desenvolvimento (Pnud). Em 1992, ocorre outro grande evento,

    o ECO-92, tambm no Rio de Janeiro, pela Unced (United Nations Conference on

    Environment and Development), com grande destaque na mdia.

    Tambm nesse perodo inicia-se a construo de uma identidade latino-

    americana das ONGs, que estimuladas pelas agncias de cooperao, realizam

    encontros e a formao de redes continentais como a Asociacin Latinoamericana de

    Organizaciones de Promocin (Alop), o Innovacin y Redes para el Desarrollo (Ired) e

    o Programa de Promocin de la Reforma Educativa em Amrica Latina y el Caribe

    (Pread).

    No decorrer da dcada de 90, ocorre uma srie de mudanas nas relaes de

    cooperao internacional que financiava o trabalho das ONGs, gerando uma reduo de

  • 15

    recursos e levando vrias organizaes a uma reestruturao interna e atuao como

    prestadoras de servios aos rgos pblicos, executando projetos, pesquisas ou

    consultorias. Se por um lado esta mudana de posicionamento em relao s esferas do

    governo representava uma alternativa de sobrevivncia, por outro colocava em xeque

    a preservao da identidade e autonomia poltica das ONGs brasileiras.

    Podemos dizer que a partir do final dos anos 90, o significado da terminologia

    ONG, perante a opinio pblica encontrava-se bastante vago e ambguo. Observamos

    frequentemente uma supervalorizao do papel das ONGs na mdia, enquanto

    substituio eficiente de aes do Estado, em atuaes exemplares, porm pontuais pela

    impossibilidade das mesmas em desenvolverem aes de grande escala e de massa. Em

    contrapartida, nota-se o no reconhecimento das ONGs como sujeitos polticos e

    autnomos da nossa sociedade.

    Na atualidade, em face deste cenrio de crise generalizada caracterizada por um

    descomprometimento do Estado; uma crescente criao de polticas neoliberais; uma

    crise no mercado de trabalho e fragilizao dos sujeitos coletivos e dos movimentos

    sociais, o grande desafio das Ongs est relacionado redefinio de sua identidade na

    sociedade: As Ongs tm como desafio crucial esclarecer se querem ser uma fora

    funcional ao esquema de dominao ou se acreditam ter um papel antisistmico, no

    funcional na sociedade (DURO, 2001, p.17).

    Atualmente, a legislao brasileira considera apenas trs formatos institucionais

    para a constituio de uma organizao sem fins lucrativos, sendo elas as associaes,

    fundaes e organizaes religiosas.

    Juridicamente, toda ONG uma associao civil ou uma fundao privada,

    porm nem toda associao civil ou fundao uma ONG.

    Se compararmos instituies como hospitais, universidades, clubes recreativos,

    associaes de bairro, creches, fundaes, institutos empresariais s ONGs

    perceberemos objetivos e atuaes distintas e muitas vezes at opostas.

    Segundo dados fornecidos pela ABONG, o estudo mais recente sobre o universo

    associativo do qual as ONGs fazem parte, foi lanado em dezembro de 2004 pelo IPEA

    Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada) e aponta que, em 2002, havia 276 mil

    fundaes e associaes sem fins lucrativos no pas, gerando um total de 1,5 milho de

    pessoas atendidas pelas mesmas.

  • 16

    Outros dados desta pesquisa apontam para a imensa pluralidade dessas

    organizaes e que, de um modo geral, o conjunto de associaes e fundaes

    brasileiras constitudo por milhares de organizaes muito pequenas e por uma

    minoria que concentra a maior parte dos empregados das organizaes. Deste total

    acima citado, cerca de 77% das ONGs no tm sequer um empregado, no entanto, 2500

    organizaes (1% do total), absorvem quase um milho de trabalhadores.

    Esse pequeno universo formado por grandes hospitais e universidades

    pretensamente sem fins lucrativos, na sua maioria, entidades filantrpicas, com isso, so

    portadoras do Certificado de Entidade Beneficente de Assistncia Social o que

    possibilita a iseno da cota patronal, em virtude da contratao de funcionrios e

    prestadores de servios.

    Grande parte destas ONGs, como o caso da Ao Comunitria dedicam-se

    atendimentos scio-educacionais, assumindo espaos de educao formal e informal em

    muitos bairros perifricos de nossa sociedade, onde a ineficincia do Estado tem

    deixado imensos vazios.

    1.3 Caractersticas da ONG estudada

    Acreditamos que situar o lcus de pesquisa e os sujeitos investigados, auxiliaro

    na compreenso a respeito dos objetivos a que se prope esta pesquisa.

    A Ao Comunitria uma organizao no-governamental fundada h 39 anos,

    no municpio em So Paulo, em plena efervescncia do regime militar.

    Sua histria comeou no ano de 1967, quando empresrios paulistas,

    sensibilizados com a crescente problemtica social, buscaram referncias em projetos

    sociais bem sucedidos de organizao humana na Colmbia e Venezuela, com o apoio

    tcnico da Action Internacional (Fundao Americana de Assessoria Tcnica a

    Organizaes No Governamentais). Replicaram tais idias no Brasil, escolhendo a

    cidade de So Paulo que, j naquele tempo, despontava como o maior plo industrial da

    Amrica do Sul.

  • 17

    Naquela poca a sua misso objetivava o desenvolvimento de trabalhos sociais

    voltados formao e articulao de lideranas comunitrias, apoio jurdico para a

    constituio de organizaes de bairro e mobilizao de moradores.

    Inicialmente foram implantados trs projetos pilotos, num cortio no bairro da

    Bela Vista, numa favela do Jaguar e em mais duas vilas operrias no Jardim Vernica e

    Jardim Ibirapuera. O atendimento social objetivava contribuir para uma mobilizao em

    busca de recursos sociais escassos ou inexistentes.

    Na dcada de 80 a sede da Ao Comunitria foi transferida para o bairro do

    Campo Limpo e o atendimento tornou-se diversificado. A ONG comeou a definir em

    sua misso, objetivos voltados formao profissional de educadores sociais e

    lideranas comunitrias. A partir de ento, este trabalho de parcerias com as lideranas

    comunitrias oficializado atravs de convnio que define as responsabilidades para

    ambas as partes. Este documento prev as formas de relao da parceria, cabendo s

    lideranas comunitrias oferecerem um espao adequado ao desenvolvimento dos

    trabalhos sociais, a responsabilidade de recrutarem os educadores e acompanharem a

    rotina de trabalho realizada pelos educadores sociais. A ONG responsabiliza-se pela

    assessoria e superviso pedaggica num trabalho de formao contnua, seleo dos

    educadores sociais, merenda e materiais pedaggicos necessrios ao atendimento

    oferecido.

    No ano de 1987, a ONG iniciou a implantao de diversos projetos sociais, a

    fim de atender aos propsitos da sua nova misso: contribuir para o processo de auto-

    desenvolvimento (educao, cultura e cidadania) de crianas e jovens atendidos em

    parceria com organizaes formalmente organizadas2:

    Projeto Sondagem de Aptides: promovia cursos profissionalizantes

    (manicura, artesanato e corte e costura) s mulheres moradoras do bairro,

    com o objetivo de contribuir para o aumento da renda familiar;

    Projeto Educao Infantil: atendimento destinado s crianas na faixa

    etria de 04 a 06 anos, cujo objetivo era suprir as demandas no

    atendidas pelas EMEIS locais;

    2 So consideradas formalmente organizadas as organizaes parceiras que possuem toda a documentao

    necessria aos trmites legais como CNPJ, inscrio estadual e um estatuto registrado em cartrio definindo o seu grupo de gestores (diretores, vice-diretores, tesoureiro, secretrios e conselheiros, etc).

  • 18

    Projeto Cultura e Lazer: cursos de teatro, esportes, bal e propostas de

    socializao aos grupos da terceira idade.

    A partir de 1990, o atendimento da ONG foi ampliado e expandido s outras

    comunidades carentes das regies de Santo Amaro e Capela do Socorro, com projetos

    que antes s eram oferecidos no bairro de Campo Limpo. Nessa fase, o trabalho de

    formao profissional dos agentes comunitrios3 e lideranas foi intensificado ainda

    mais.

    Com o surgimento do ECA ( Estatuto da Criana e Adolescente) ainda na dcada

    de 1990, a Ao Comunitria v-se obrigada a rever a sua misso e a reformular os seus

    projetos de atendimento. O Projeto Sondagem de Aptides passa a destinar seu

    atendimento aos jovens acima de 16 anos, passando a chamar-se de PPT Preparao

    para o Trabalho e nasce o Programa Cr-Ser, com o objetivo de educao

    complementar escola, atendendo s crianas e adolescentes de 07 a 14 anos.

    Hoje, a Ao Comunitria trabalha com vinte e quatro organizaes

    comunitrias parceiras e vem acentuando cada vez mais os investimentos na formao

    profissional daqueles que atuam diretamente com o seu pblico alvo (crianas e

    adolescentes), cerca de 120 educadores sociais e 66 lderes comunitrios.

    Suas aes so direcionadas essencialmente regio sul da cidade de So Paulo,

    nos bairros de Campo Limpo, Capo Redondo (distrito de Campo Limpo), Cidade

    Dutra, Graja, Socorro (distrito de Capela do Socorro), Cidade Ademar, Pedreira

    (distrito de Cidade Ademar), Santo Amaro, Jardim ngela, Jardim So Luiz (distrito de

    M Boi Mirim), Marsilac e Parelheiros (distrito de Parelheiros).

    A organizao mantm-se basicamente por meio de recursos prprios, gerados

    atravs da produo e comercializao de cartes de Natal e de outros produtos

    (camisetas, agendas, canetas, etc.), os quais contribuem para a divulgao do seu nome

    institucional, e tambm pelo recebimento de recursos financeiros (doaes em espcie)

    de empresrios contribuintes.

    3 Nomenclatura usada anteriormente para designar os educadores sociais.

  • 19

    1.4 O Educador social e seu trabalho: uma identidade a ser desvelada

    O termo educador social freqentemente usado nos dias atuais para designar

    profissionais que trabalham em projetos sociais diversos, porm, no encontramos

    referenciais bibliogrficos pontuais sobre esta designao na rea educacional.

    Encontramos o termo trabalhador social, usado de maneira recorrente por

    Paulo Freire para discutir o papel poltico deste profissional no processo de mudana

    social e por isso tambm considerado um educador:

    O papel do trabalhador social se desenvolve num domnio mais

    amplo, no qual a mudana um dos aspectos. O trabalhador social

    atua, com outros, na estrutura social. Na estrutura social, enquanto

    dialetizao entre a infra e a supra-estrutura, no h permanncia

    nem mudana da mudana, mas o empenho de sua preservao em

    contradio com o esforo por sua transformao. Da que no possa

    ser trabalhador social, como educador que , um tcnico friamente

    neutro. Silenciar sua opo, escond-la no emaranhado de suas

    tcnicas ou disfar-la com a proclamao de sua neutralidade no

    significa na verdade ser neutro mas, ao contrrio, trabalhar pela

    preservao do status quo. Da a necessidade que tem de clarificar

    sua opo, que poltica, atravs de sua prtica, tambm poltica.

    Sua opo determina seu papel, como seus mtodos de ao. uma

    ingenuidade pensar num papel abstrato, num conjunto de mtodos e

    de tcnicas neutros para uma ao que se d em uma realidade que

    tambm no neutra (FREIRE, 1987, p.38-39).

    Tendo como referncia as idias de Freire percebemos que a funo do educador

    social requer indubitavelmente a constituio de uma identidade permeada por uma

    crena no seu papel de agente de mudana, o que implica em conhecer com

    profundidade a realidade onde atua e mobilizar outros indivduos de sua comunidade

    para que este processo de mudana realmente ocorra.

    Como dissemos anteriormente, em 1990, quando o Programa Cr-Ser da Ao

    Comunitria iniciou as suas atividades, o educador social era chamado de agente

  • 20

    comunitrio ou professor leigo. Nessa poca, ele no possua necessariamente uma

    formao em Magistrio, tampouco em nvel superior. A exigncia era a de que ele

    fosse um morador do bairro, com formao em nvel fundamental ou mdio e que

    demonstrasse empenho e disponibilidade para realizar um trabalho social junto s

    crianas e adolescentes de sua comunidade.

    Quando concebido, o Programa Cr-Ser realizava atividades pedaggicas

    estritamente manuais e artesanais com as crianas e adolescentes atendidos. Hoje o

    programa possui pressupostos definidos e a sua proposta pedaggica no tem o carter

    de reforo escolar. Seus contedos visam ampliar aqueles oferecidos pela escola formal,

    por meio das reas de conhecimento de artes plsticas, leitura e escrita, jogos ldicos ou

    de raciocnio lgico, o que exige um outro perfil profissional dos seus educadores. Para

    isso, a formao mnima exigida atualmente para a atuao do educador social a

    habilitao em Magistrio ou estar cursando o nvel superior em reas afins.

    A funo do educador social concebida pela ONG, exige um perfil profissional

    bastante abrangente, embora a sua jornada de trabalho dirio junto s crianas e

    adolescentes seja de apenas trs horas, perfazendo um total de quinze horas semanais.

    O planejamento pedaggico mensal e dirio das atividades a serem

    desenvolvidas realizado pelo prprio educador social, a partir dos contedos sugeridos

    pela equipe pedaggica nos encontros de formao. H, portanto, a predominncia de

    uma certa dose de autonomia em relao prtica pedaggica implementada. Em sua

    atuao pedaggica, o trabalho realizado junto s crianas e adolescentes

    constantemente permeado por questes relacionadas aos valores ticos, de cidadania e

    mediado por afetividade.

    Faz parte da funo destes trabalhadores sociais desenvolverem outras atividades

    sociais de atuao em sua comunidade. Dentre elas, destacam-se o trabalho de parceria

    constante junto s famlias e a UBS (Unidade Bsica de Sade) para um

    acompanhamento em relao s condies de sade das crianas e adolescentes,

    acompanhamento do desempenho escolar por meio de propostas permanentes de

    parcerias com as escolas (em especial em relao aos contedos de lngua portuguesa e

    matemtica) e a busca pelo sucesso dos participantes nas atividades previstas pelo

    programa.

  • 21

    Alm de organizarem e conduzirem reunies sistemticas (mensais/ bimestrais)

    com os pais, os educadores sociais visitam regularmente todas as famlias das crianas e

    adolescentes atendidos, obedecendo a uma freqncia semestral (ao iniciar e finalizar o

    ano letivo). O objetivo destas visitas, alm de conscientizar os responsveis pelo

    acompanhamento escolar e de sade dos seus filhos conhecer a qualidade de vida

    scio-econmica dos atendidos e a forma pela qual se processam as relaes familiares.

    Todas estas atividades de acompanhamento externo aos participantes do

    programa, so realizadas pelo educador social em horrio alternativo ao trabalho que

    realizado com os atendidos, o que explica a ampliao da sua jornada profissional. As

    informaes referentes s crianas e adolescentes atendidos so coletadas e

    armazenadas em um sistema de banco de dados chamado SAMIS Sistema de

    Avaliao de Mudanas e Impactos Sociais. A partir da caracterizao das funes

    desempenhadas por estes profissionais, percebemos uma clara diferenciao entre a

    forma e a abrangncia de atuao dos educadores sociais e os professores da escola

    formal, cabendo aos primeiros um acompanhamento sobre o desenvolvimento das

    crianas e adolescentes que vai muito alm daquele realizado apenas dentro do espao

    de sala de aula.

    H sem dvida, uma grande diferena entre as formas de atuao desses

    profissionais: enquanto alguns educadores tm maior facilidade em explorar

    determinados contedos, outros se diferenciam pela forma de atuao pedaggica

    dentro de um carter de maior ou menor rigidez em relao s questes de disciplina,

    maior ou menor empenho na sua funo ampliada de trabalhador social.

    Tais variaes nas formas de atuao, nos remetem novamente questo central

    deste trabalho e geradora desta nossa pesquisa: em que medida o trabalho do educador

    social e a formao contnua oferecida pela ONG tm contribudo para a constituio da

    identidade destes profissionais?

  • 22

    CAPTULO II: A FORMAO DE EDUCADORES SOCIAS E O

    PROCESSO DE CONSTITUIO DA IDENTIDADE PROFISSIONAL

    2.1 A relao eu /ns e os processos de constituio da Identidade no campo da

    psicologia histrico-cultural

    Voc tem a individuao de um dia, de uma estao, de um ano, de

    uma vida (independente da durao); de um clima, de um vento, de

    uma neblina, de um enxame, de uma matilha (independentemente da

    regularidade). Ou pelo menos voc pode t-la, consegui-la

    (DELEUZE e GUATTARI apud ROSE, 2001, p. 141).

    Facilmente as expresses identidade ou carter identitrio remetem-nos

    figura singular vivida e representada pelo eu no conjunto de suas manifestaes

    individuais (bio-psico-sociais). No entanto, o sujeito individual constitui-se

    permanentemente atravs das relaes interpessoais que estabelece e, portanto, falar em

    identidade, falar no plural (CIAMPA, 1988 apud MATRICARDI, 2001).

    As inmeras discusses tericas em torno do conceito de identidade tm levado

    a uma certa crise da idia do eu, antes considerado universal, estvel, unificado,

    totalizado, individualizado, interiorizado. No atual cenrio chamado mundo ps-

    moderno, proliferam novas imagens subjetivadas do eu: como socialmente

    construda, como dialgica, como inscrita na superfcie do corpo, como espacializada,

    descentrada, mltipla, nmade, como resultado de prticas epsdicas de auto-

    exposio, em locais e pocas particulares. (ROSE, 2001, p.139-140) Tais imagens

    revelam-nos um sujeito demasiadamente fragmentado, multifacetado, suscetvel e,

    portanto, muito mais plural do que possamos imaginar.

    Refletir sobre a identidade nos dias de hoje, requer mais do que nunca que

    consideremos o seu carter fluido, descontnuo, plstico, provisrio e simultaneamente

    dinmico. Ao sujeito ps-moderno cabe a possibilidade de ocupar uma diversidade

    constante de papis e posies, conferindo-lhe uma variedade de pluralidades ou

    identidades. Desta forma, podemos dizer que o processo de constituio da

    identidade na ps-modernidade sempre marcado pelas incertezas, pela diferena e

  • 23

    conseqentemente pela excluso: ser fluido impede o sujeito de ser slido, ser

    descontnuo impede-o de ser linear, ser provisrio impede-o de ser permanente (HALL,

    2000). Todas estas rpidas e permanentes mudanas vividas pelos sujeitos ps-

    modernos geram a chamada crise de identidade e que segundo Marx j conferia

    modernidade um carter muito especfico:

    o permanente revolucionar da produo, o abalar ininterrupto de

    todas as condies sociais, a incerteza e o movimento eternos ...

    Todas as relaes fixas e congeladas, com seu cortejo de vetustas

    representaes e concepes, so dissolvidas, todas as relaes

    recm-formadas envelhecem antes de poderem ossificar-se. Tudo que

    slido se desmancha no ar...( MARX E ENGELS, apud HALL

    2005. p. 14).

    Na tentativa de compreender esta crise identitria, tm sido produzidas

    exaustivas e variadas discusses acerca do tema dentre as diversas reas do

    conhecimento. No campo da Psicologia parecem ser mais profcuas tais discusses,

    talvez pelo fato de esta cincia investigar mais a fundo as diversas formas de

    comportamento humano ou, em outras palavras, as manifestaes mais significativas da

    identidade humana.

    A psicologia histrico-cultural em especial, cujas razes ideolgicas encontram-

    se ancoradas nos princpios norteadores do materialismo dialtico, consegue

    aprofundar-se ainda mais nestas discusses, por apresentar como pressupostos

    fundamentais os ideais marxistas de intercmbio e transformao permanente entre o

    homem e o seu meio social, visto que para Marx (VI Tese de Feuerbach) , uma vida

    uma prxis que se apropria das relaes sociais (as estruturas sociais), interiorizando-

    as e voltando a traduzi-las em estruturas psicolgicas, por meio da sua atividade

    desestruturante-reestruturante. Portanto, toda vida humana se estrutura a partir de um

    processo de apropriao das experincias histrico-sociais e culturais herdadas. O

    homem considerado um indivduo (do latim, individum, ou aquele que no se divide),

    constitui-se e constitudo, transforma-se e transformado permanentemente a partir da

    pluralidade das relaes interpessoais que estabelece em seu meio scio-cultural.

  • 24

    Ao nascer, o indivduo apresenta-se como singular essencialmente por suas

    caractersticas naturais biolgicas ou genticas, no entanto, atravs de seu contato com

    a sociedade que ele vai se transformando num ser cada vez mais complexo:

    Somente na relao com os outros seres humanos que a criatura

    impulsiva e desamparada que vem ao mundo se transforma na pessoa

    psicologicamente desenvolvida que tem o carter de um indivduo e

    merece o nome de ser humano adulto. Isolada destas relaes, ela

    evolui, na melhor das hipteses, para a condio de um animal

    humano semi-selvagem. Pode crescer fisicamente, mas, em sua

    composio psicolgica, permanece semelhante a uma criana

    pequena (ELIAS, 1994, p. 27).

    Para o socilogo alemo Norbert Elias, os seres humanos pertencem

    concomitantemente a uma ordem natural e social, caracterizando assim um duplo

    carter de constituio. Esta ordem social, peculiar da natureza humana, confere ao ser

    humano uma mobilidade e uma maleabilidade que lhe permite diferir do

    comportamento dos animais. Os animais herdam da natureza uma forma padronizada

    e fixa de controle comportamental em relao aos outros seres e coisas, j no ser

    humano este comportamento produzido na companhia de outras pessoas e pela

    interao com estas. Assim, os humanos apresentam em determinados momentos aes

    regulares e automticas denominadas sociais, em outros momentos regularidades

    orgnicas e naturais, contribuintes constituio da sua individualidade.

    Segundo Elias (1994) a individualidade humana s se processa e vai se

    delineando em sociedade, seja ela mais simples ou mais complexa. No entanto, o grau

    de individuao dos sujeitos equivalente ao grau de complexidade proporcionado

    pelas relaes que estabelecem na sociedade onde esto inseridos e, portanto, a

    compreenso da historicidade dos indivduos um caminho obrigatrio para a

    compreenso da sociedade. De acordo com o autor, a sociedade atual tem difundido

    fortemente a idia de auto-imagem, o que leva o indivduo a pensar em sua

    singularidade quase que desvinculada dos outros com os quais convive e se relaciona.

  • 25

    O que se veicula atravs dela a autoconscincia de pessoas que

    foram obrigadas a adotar um grau elevadssimo de refreamento,

    controle afetivo, renncia e transformao dos instintos, e que esto

    acostumadas a relegar grande nmero de funes, expresses

    instintivas e desejos a enclaves privativos de sigilo, afastados do

    olhar do mundo externo, ou at aos pores de seu psiquismo, ao

    semiconsciente ou inconsciente. Numa palavra, esse tipo de

    autoconscincia corresponde estrutura psicolgica estabelecida em

    certos estgios de um processo civilizador (ELIAS, 1994, p. 32).

    Por outro lado importante ressaltar que neste processo de constituio da sua

    estrutura psicolgica, o indivduo no se posiciona de forma passiva em relao s

    influncias culturais recebidas por sua sociedade. Ele capaz de process-las

    internamente, selecion-las e ir delineando a sua constituio psicolgica individual:

    O indivduo no um epifenmeno do social. Em relao s

    estruturas e histria de uma sociedade, coloca-se como um plo

    activo, impe-se como uma praxis sinttica. Mais do que reflectir o

    social, apropria-se dele, mediatiza-o, filtra-o e volta a traduzi-lo,

    projectando-se numa outra dimenso, que a dimenso psicolgica

    da sua subjectividade (FERRAROTTI, 1988, p. 26).

    Desta forma, podemos dizer que a pluralidade do ser uma pluralidade

    permanentemente, mutante e subjetiva, concebida em dois momentos distintos: na

    relao dele com a sua sociedade e os outros indivduos e na prpria relao que

    estabelece consigo mesmo nos diversos momentos de sua vida presente, passada e

    futura. Mesmo dentre os indivduos nascidos e desenvolvidos num mesmo meio social e

    familiar, as formas como so subjetivadas e interiorizadas as relaes sociais, histricas

    e culturais permitem a cada pessoa escrever a sua histria de vida de modo

    essencialmente singular:

    H uma pluralidade no ser que no a pluralidade das

    partes (a pluralidade das partes estaria abaixo da unidade

  • 26

    do ser), mas uma pluralidade que fica acima desta

    unidade, porque a das fases do ser, na relao de uma

    fase de ser com outra fase de ser (SIMONDON apud

    PINEAU, 1988, p.66).

    no reconhecimento permanente das nossas singularidades que identificamos a

    pluralidade dos seres que compem as nossas identidades, e por meio deste

    conjunto de processos mutantes que recompomos constantemente os nossos processos

    de interao intrapessoal e interpessoal. Desta maneira, seria extremamente incoerente

    propor ao presente estudo embasamentos tericos ancorados em antigos referencias

    psicolgicos inatistas ou nativistas e ambientalistas ou

    comportamentalistas/behavioristas4 .

    A apropriao dos pressupostos da psicologia histrico-cultural ou scio-

    interacionista trazidas pelo terico bielo-russo Lev Semenovich Vygotsky, nos parece a

    mais apropriada para alimentar as reflexes geradas no decorrer deste estudo. Suas

    idias oportunizam um novo olhar sobre as funes psicolgicas humanas, levando em

    considerao os caracteres sociolgicos, biolgicos e culturais, aspectos essenciais ao

    estudo da individualidade e historicidade humana, sem gerar dicotomias (mente /corpo,

    objetividade /subjetividade, natural/ social, razo/ emoo) ou classificaes em

    possveis nveis hierrquicos, tal como previa a psicologia tradicional.

    Tais pressupostos, amplamente citados na atualidade pelos profissionais da rea

    educacional5, apontam para a necessidade de compreender a constituio do sujeito e

    sua subjetividade por meio de um conjunto de processos que contribuem para a

    individuao humana, levando em conta toda sua historicidade e cultura:

    De acordo com o modelo histrico-cultural, os traos de cada ser

    humano esto intimamente relacionados ao aprendizado,

    4 A abordagem inatista tem como razes as premissas da filosofia racionalista e idealista de Ren Descartes, do sculo

    XVII, definindo os traos de constituio humana como hereditrios, genticos e maturacionais, ou seja pr-determinadas e na dependncia apenas de um amadurecimento temporal para manisfestar-se, ignorando assim as influncias scio-culturais. J a abordagem ambientalista (sculos XVII e XVIII), cujos precursores foram os ingleses Francis Bacon, John Locke e Auguste Comte, atribua exclusivamente ao ambiente e as experincias vividas pelo indivduo a responsabilidade de definir a sua constituio psicolgica.

    5 Apesar do legado terico de Vygotsky ser muito debatido e considerado uma fonte valiosa de conhecimentos s

    atuais prticas pedaggicas, ainda pouco compreendido nas propores necessrias pelos profissionais do campo educacional, o que gera muitas vezes uma apropriao indevida ou equivocada de suas idias.

  • 27

    aproximao (por intermdio das pessoas mais experientes, da

    linguagem e outros mediadores) do legado de seu grupo cultural

    (sistemas de representao, formas de pensar e agir, etc.). O

    comportamento e a capacidade cognitiva de um determinado

    indivduo dependero de suas experincias, de sua histria educativa,

    que por sua vez, sempre tero relaes com as caractersticas do

    grupo social e da poca em que ele se insere. Assim, a singularidade

    de cada indivduo no resulta de fatores isolados (por exemplo,

    exclusivamente da educao familiar recebida, do contexto

    sciopoltico da poca, da classe social a que pertence), mas da

    multiplicidade de influncias que recaem sobre o sujeito no curso de

    seu desenvolvimento (REGO, 1995, p.25).

    O foco principal das pesquisas desenvolvidas por L.S. Vygotsky intencionava

    caracterizar os aspectos tipicamente humanos do comportamento e elaborar hipteses

    de como estas caractersticas se formaram ao longo da histria humana e de como se

    desenvolvem durante a vida de um indivduo (VYGOTSKY, 1984, 21). Tal interesse

    levou-o ao estudo do que ele denominou de processos psicolgicos tipicamente

    humanos ou funes psicolgicas superiores: controle consciente do comportamento,

    ateno e lembrana voluntria, memorizao ativa, pensamento abstrato, raciocnio

    dedutivo, capacidade de planejar e estabelecer relaes, imaginao etc. Tais funes,

    consideradas por Vygotsky como mecanismos psicolgicos mais sofisticados, no esto

    presentes no indivduo desde o seu nascimento. Elas necessitam de um processo de

    desenvolvimento e maturao, viabilizado atravs das interaes scio-culturais

    estabelecidas. A forma como se processam tais funes nos diversos momentos de

    constituio do sujeito carregada por uma grande carga de subjetividade e interpretada

    das mais diversas formas pelos estudiosos da obra vygotskyana.

    Dentre os seguidores de Vygotsky, existe uma variedade de perspectivas no que

    se refere ao estudo dos processos subjetivos de interao e sobre as implicaes destes

    processos na constituio do sujeito. As anlises realizadas proporcionam reflexes

    sobre as influncias dos aspectos intrapsicolgicos ou intra-individuais e os aspectos

    interpsicolgicos ou interindividuais no desenvolvimento e aquisio das funes

    psicolgicas superiores.

  • 28

    Valsiner por exemplo, analisa a constituio do sujeito tendo como ptica

    central os seus aspectos intrapsicolgicos, desenvolvendo uma proposta terica a qual

    denominou de perspectiva co-construtivista:

    A noo de cultura pessoal refere-se no somente ao fenmeno

    subjetivo internalizado (processo intrapsicolgico), mas s imediatas

    (centrado na pessoa) externalizaes destes processos (VALSINER,

    apud Molon, 2003, p.5).

    Para o referido autor no ocorre a dissoluo do sujeito no social. Todas as

    pessoas so co-construtoras de idias, contribuindo por entender e ajustar conceitos e

    significados de forma totalmente singulares:

    a pessoa constri uma cultura pessoal (anticorpus da cultura

    coletiva) atravs de sua experincia prvia; a pessoa em

    desenvolvimento pode estar imune as sugestes do meio social,

    utilizando uma variedade de estratgias: ignorando, neutralizando,

    trivializando, resistindo, rejeitando. Essas estratgias desenvolvidas

    permitiro a construo de uma cultura pessoal e a diferenciao da

    cultura coletiva. A relao da pessoa com a realidade social caminha

    em direo co-construo da individualidade da pessoa construindo

    a cultura pessoal (MOLON, 2003, p.51).

    Wertsch (1988) por sua vez privilegia em seus estudos os processos

    interpsicolgicos, que segundo ele possibilitam a transio aos aspectos

    intrapsicolgicos. Para ele, tal transio s se torna possvel por meio da utilizao dos

    instrumentos semiticos (linguagem e instrumentos). O autor utiliza como exemplos as

    situaes de aprendizagem compartilhada entre o adulto e a criana, em que os nveis de

    intersubjetividade vo se desenvolvendo. Num primeiro momento a forma como a

    criana vai definindo a situao que colocada pelo adulto to diferente deste, que

    no possvel que ela vivencie um processo intersubjetivo. Num segundo momento j

    existe para a criana um entendimento da situao que compartilhada. Num terceiro

  • 29

    momento ela j consegue interpretar e realizar inferncias em relao situao

    proposta pelo adulto e, num quarto momento a criana e o adulto conseguem estabelecer

    uma intersubjetividade completa; a criana j consegue dominar a situao que

    colocada pelo adulto tornando-se co-responsvel pela mesma.

    Autores como Smolka, Ges (1993) e Pino (1990) insistem na proposta de

    superao do dualismo entre os aspectos intrapsicolgicos e interpsicolgicos,

    enxergando a constituio do sujeito a partir do estabelecimento de processos dialticos

    entre ambos, sob o enfoque de uma dimenso semitica e subjetiva: no o plano do

    outro, mas o da relao com o outro. A intersubjetividade inter-relao,

    interao.[...] Dessa forma, o mundo o lugar de constituio de subjetividade (Ges,

    1993, p.8).

    Considerando a citao de Ges, que enxerga o mundo como o lugar de

    constituio de subjetividade (ibidem), no podemos deixar de considerar que nos

    processos de formao em servio so experienciadas, nas mais diversas formas e

    dimenses, as esferas intra e interpsicolgicas de aprendizado.

    Este carter subjetivo e intermitente entre os aspectos inter e intrapsicolgicos

    vividos pela pessoa na infncia continuam presentes nos processos de desenvolvimento

    e aprendizado durante todas as etapas da sua vida adulta.

    Reportando aos processos de formao em servio dos educadores sociais,

    podemos considerar que todos os contedos e vivncias experienciadas e as formas de

    interao, interpretao e interiorizao destes mesmos contedos e mtodos pertinentes

    prtica pedaggica contribuam para as formas subjetivas de constituio da identidade

    profissional e pessoal dos mesmos.

    Os estudos relacionados aos aspectos da mente humana no se constituem

    tarefas fceis de investigao, visto contarem com uma gama enorme de complexidade

    e subjetividade. Se atravs da mediao com o outro social que me constituo enquanto

    pessoa, atravs desta mesma mediao que poderei autoconhecer-me , desvelar-

    me, compreender melhor quais princpios valorizo, que desejos e aspiraes

    impulsionam minhas aes e de que forma o meu modo de ser, pensar, agir e sentir

    contribuem para o alcance das minhas realizaes pessoais e daqueles com os quais me

    relaciono. A identidade , portanto, sempre marcada pela diferena, visto que atravs

    do reconhecimento do outro que nos autoconhecemos: A identidade define, portanto,

  • 30

    nossa capacidade de falar e de agir, diferenciando-nos dos outros e permanecendo ns

    mesmos (MELUCCI, 1991, p.45), ou parafraseando Sartre (1960): para o homem

    conhecer-se necessrio primeiramente, que o outro o reconhea (informao

    verbal). Assim s vamos reconhecendo a nossa prpria identidade na medida em que os

    outros vo nos dizendo, ainda que tambm de forma subjetiva como eles nos vem:

    A construo da identidade depende do retorno de informaes

    vindas dos outros. Cada um deve acreditar que sua distino

    ser, em toda oportunidade, reconhecida pelos outros e que

    existir reciprocidade no reconhecimento intersubjetivo. (Eu

    sou para Ti o que Tu s para Mim) (MELUCCI, 2004, p. 45).

    Esta subjetividade, segundo Leite (1999) expressa primeiramente atravs da

    nossa conscincia individual, que se constitui a partir das influncias recebidas pela

    conscincia social. A conscincia social expressa toda a herana cultural de uma

    sociedade e atravs da apropriao deste legado social que a pessoa vai delineando a

    sua conscincia individual. Neste sentido, conseguimos reconhecer a nossa constituio

    identitria, se reconhecermos a constituio identitria daqueles com os quais nos

    relacionamos e vice-versa.

    Sendo assim, a subjetividade pode ser compreendida como o produto das

    relaes e mediaes emocionais que surgem no decorrer do desenvolvimento da

    pessoa, dessa articulao social-individual (LEITE, 1999).

    A subjetividade pode ser melhor compreendida pela intrnseca relao existente

    entre identidade e conscincia, decorrentes do prprio significado conceitual dessas

    palavras. Se recorrermos s explicaes propostas pelos dicionrios (FERREIRA,

    2004), encontraremos as seguintes definies para os conceitos acima: identidade -

    caracteres prprios e exclusivos duma pessoa; conscincia - percepo que um

    organismo tem de si e do que o cerca (Ferreira, 2004, p. 459, 259). A subjetividade,

    portanto, sugere a forma relativa como compreendemos nosso prprio eu e envolve os

    nossos pensamentos e emoes (HALL, 2000, p. 55).

    A definio terica de conscincia trazida por Damsio (2000) nos parece a mais

    oportuna para as reflexes que realizamos neste trabalho:

  • 31

    A conscincia, de fato, a chave para que se coloque sob escrutnio

    uma vida, seja isso bom ou mau; o bilhete de ingresso, nossa

    iniciao em saber tudo sobre fome, sede, sexo, lgrimas, riso, prazer,

    intuio, o fluxo de imagens que denominamos pensamentos, os

    sentimentos, as palavras, as histrias, as crenas, a msica e a

    poesia, a felicidade e o xtase. Em seu nvel mais simples e mais

    elementar, a conscincia permite-nos reconhecer um impulso

    irresistvel para permanecer vivos e cultivar o interesse pelo self. Em

    seu nvel mais complexo e elaborado, a conscincia ajuda-nos a

    cultivar um interesse por outras pessoas e a aperfeioar a arte de

    viver (p.20).

    Sendo assim, tudo aquilo que somos e sabemos, ou tudo aquilo que sabemos que

    somos, s possvel pelos acessos mentais proporcionados por nossa conscincia,

    levando em conta o carter subjetivo segundo o qual ela se constitui. Desta forma, a

    partir das relaes estabelecidas pelo homem com a sua realidade que vo sendo

    delineadas as formas subjetivadas dos pensamentos em sua mente, ou seja, a sua forma

    consciente de enxergar esta mesma realidade e de enxergar-se a si prprio.

    A identidade, portanto, sendo considerada como um estado permanente de

    inconcluso e devir conserva o seu carter mutante pelos sucessivos momentos de

    tomada de conscincia que a pessoa vai tendo das suas caracterstica pessoais e dos

    outros que o cercam. Portanto, no possvel discutirmos o conceito de identidade

    pessoal e profissional sem levarmos em conta o carter subjetivo e perceptivo inerente a

    este tema.

    2.2 A formao da Identidade Profissional

    A formao assemelha-se a um processo de socializao, no decurso

    do qual os contextos familiares, escolares e profissionais constituem

    lugares de regulao de processos especficos que se enredam uns nos

    outros, dando uma forma original a cada histria de vida. Na famlia

    de origem, na escola ,no seio dos grupos profissionais, as relaes

    marcantes, que ficam na memria, so dominadas por uma

  • 32

    bipolaridade de rejeio e de adeso. A formao passa pelas

    contrariedades que foi preciso ultrapassar, pelas aberturas

    oferecidas(DOMINIC, 1985, p.60).

    A crise da identidade docente j vem sendo discutida h algumas dcadas e tem

    sido pauta permanente de reflexes nas mais diversas reas no campo cientfico, como a

    sociologia, a filosofia, a histria, as cincias polticas e, inclusive, a psicologia. Mas, se

    estas discusses esto ficando cada vez mais acirradas, necessrio explicitarmos de

    qual crise estamos falando. Em cada uma destas cincias, o olhar sobre a constituio da

    identidade docente denota as especificidades da rea que privilegiam, no entanto, se

    valorizamos a formao integral do homem, devemos considerar os diversos pontos de

    vista relativos a esse assunto em cada uma destas reas.

    Neste trabalho o foco das reflexes sobre a temtica da identidade docente

    considera as questes relativas ao percurso histrico-cultural dos sujeitos, aos

    momentos de valorizao/desvalorizao profissional pelo qual passaram e considera a

    formao em servio como uma das possveis alternativas de reafirmao identitria.

    Dentro desta perspectiva, revisitar o passado pode ser um caminho importante

    para a compreenso do momento presente no mbito da identidade docente. Recorrendo

    aos estudos histricos da profisso docente realizados por Antnio Nvoa (1995, p. 27)

    em seu livro Profisso Professor encontramos descries sobre as trajetrias destes

    profissionais nas ltimas dcadas. Na Europa, no incio da histria docente a profisso

    de professor era muito pouco especializada e exercida por membros da Igreja Catlica

    ou outros profissionais leigos. No decorrer dos sculos XVII e XVIII a Igreja Catlica

    foi conferindo ao corpo docente uma srie de conhecimentos, tcnicas, normas e valores

    da profisso, configurando-lhe um carter mais uniforme. A partir do final do sculo

    XVIII inicia-se a interveno do Estado num processo de transformao, passando a

    conceber de forma coorporativa o ofcio da profissionalizao docente, sendo permitido

    ensinar somente queles que possuam licena ou autorizao do Estado. Na dcada de

    1960 os professores eram praticamente ignorados, reconhecidos apenas como nmeros

    estatsticos e por seus papis formalizados e a profisso docente era reduzida a um

    conjunto de competncias tcnicas. No decorrer dos anos 1970 eles eram vistos como

    viles e acusados de contriburem para acirrar a reproduo das desigualdades sociais.

  • 33

    A dcada de 1980 caracterizou-se por um aumento dos recursos de controle sobre os

    docentes e o desenvolvimento de prticas institucionais de avaliao.

    No Brasil o percurso histrico destes profissionais recebeu constantes

    influncias dos pases europeus dentre outros. Embora as discusses acerca dos aspectos

    de formao e profissionalizao docente tenham se iniciado no Brasil j no incio da

    dcada de 1970, elas s se intensificaram a partir do final dos anos de 1990, quando foi

    concretizada a aprovao da Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional (n

    9394/96), a qual reconheceu os professores e pedagogos como profissionais da

    educao (art.61 e 67). Foi justamente no decorrer dos anos de 1990 que se acentuaram

    os interesses pelas abordagens autobiogrficas, dando vozes aos professores como

    uma forma de valorizao destes profissionais.

    Pesquisas realizadas pela ANPED, no perodo compreendido entre 1995-2002

    constataram uma acentuada utilizao do termo profissionalizao nas produes

    acadmicas.

    Tomando como referncia este histrico, percebemos o quanto ainda recente a

    temtica da formao de professores no campo das reformas educativas:

    s a partir deste perodo que gradualmente as prticas de ensino

    comeam a ganhar maior ateno, complementadas,

    progressivamente, por um olhar sobre a vida e pessoa do professor.

    De fato, no parece ser mais possvel aos e pesquisadores deixarem

    de considerar como prioritrias as questes que afetam diretamente a

    vidas dos professores, entre os quais o desprestgio profissional e o

    desnimo que toma conta da maioria deles em decorrncia,

    principalmente, da perda de autonomia e da degradao salarial

    (BUENO, apud NVOA, 1994, p. 13).

    Para Nvoa esta falta de autonomia justifica o fato de os docentes se apoiarem

    cada vez mais na figura dos especialistas e desvalorizarem os conhecimentos e

    experincias prprias acumulados no decurso profissional, alm do que, a falta de

    estima profissional coloca por terra qualquer proposta de formao e desenvolvimento.

    Ao revermos a histria da profisso docente podemos identificar fortes paradigmas

  • 34

    culturalmente instalados na figura do professor em nossa sociedade, e que necessitam

    serem rompidos a fim de possibilitar uma nova reafirmao identitria.

    Atribui-se identidade docente uma srie de caracteres muito generalistas e na

    maioria das vezes pouco fundamentados, como por exemplo, a questo da formao

    bsica precria, a falta de envolvimento e motivao profissional, o baixo grau de

    identificao vocacional, pois:

    no imaginrio social, as professoras no tm histria porque repetem,

    repetem cursos, programas, conhecimentos, prticas, dia a dia, ano a

    ano, durante dcadas de sua carreira profissional ... necessrio

    propiciar a gerao de formas de contra-memria, ou seja, ao propor

    aos professores um trabalho de pesquisa e de reflexo a respeito de

    suas histrias de formao intelectual, desenvolve-se um tipo de

    anlise que no apenas ultrapassa os limites dos estudos centrados

    nas prticas docentes mais imediatas, mas os leva sobretudo a

    desenvolver um processo de desconstruo das imagens e esteretipos

    que se formaram sobre o profissional no decorrer da histria

    (CATANI, 1997, p. 29).

    A ruptura com estes paradigmas no pretende desconsiderar o passado histrico

    da carreira docente, nem tampouco fechar os olhos para a difcil realidade na qual esto

    inseridos estes profissionais, mas sim deflagrar contra um discurso comum inculcado

    neste imaginrio social.

    Os processos de formao em servio e pesquisas realizadas a partir das

    histrias de vida dos professores podem ser considerados como propulsores de reflexes

    acerca da construo da identidade docente, construtos de ruptura destes paradigmas e

    resgate da auto-estima profissional.

    Dumazedier (apud PINEAU 1985, p. 65), considera que o processo de formao

    alm de um processo de heteroformao (ao dos outros) e ecoformao (ao do

    meio ambiente) um processo de autoformao, num reforo do desejo e da

    vontade dos sujeitos de regular, orientar e gerir cada vez mais eles prprios o seu

    processo educativo.

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    Dentro deste conjunto de proposies, as histrias de vida remetem os

    indivduos para um processo de interioridade onde a prpria pessoa que se forma.

    Em virtude da inerente disponibilidade que lhes exigida de entrar em cont