identidade e transformação indígena

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Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=63019858005 Red de Revistas Científicas de América Latina, el Caribe, España y Portugal Sistema de Información Científica Ponte de Souza, Maximiliano Loiola; Ferreira Deslandes, Suely; Garnelo, Luíza Histórias-míticas e construção da pessoa: ambiguidade dos corpos e juventude indígena em um contexto de transformações Ciência & Saúde Coletiva, vol. 16, núm. 10, octubre, 2011, pp. 4001-4010 Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva Rio de Janeiro, Brasil Como citar este artigo Número completo Mais informações do artigo Site da revista Ciência & Saúde Coletiva, ISSN (Versão impressa): 1413-8123 [email protected] Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva Brasil www.redalyc.org Projeto acadêmico não lucrativo, desenvolvido pela iniciativa Acesso Aberto

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ANTROPOLOGIA

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  • Disponvel em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=63019858005

    Red de Revistas Cientficas de Amrica Latina, el Caribe, Espaa y PortugalSistema de Informacin Cientfica

    Ponte de Souza, Maximiliano Loiola; Ferreira Deslandes, Suely; Garnelo, LuzaHistrias-mticas e construo da pessoa: ambiguidade dos corpos e juventude indgena em um contexto de

    transformaesCincia & Sade Coletiva, vol. 16, nm. 10, octubre, 2011, pp. 4001-4010

    Associao Brasileira de Ps-Graduao em Sade ColetivaRio de Janeiro, Brasil

    Como citar este artigo Nmero completo Mais informaes do artigo Site da revista

    Cincia & Sade Coletiva,ISSN (Verso impressa): [email protected] Brasileira de Ps-Graduao emSade ColetivaBrasil

    www.redalyc.orgProjeto acadmico no lucrativo, desenvolvido pela iniciativa Acesso Aberto

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    4001

    1 Instituto Lenidas e MariaDeane, Fundao OswaldoCruz. Rua Terezina 476,Adrianlopis. 69057-070Manaus AM. [email protected] Insituto FernandesFigueira, Fundao OswaldoCruz

    Histrias-mticas e construo da pessoa: ambiguidade doscorpos e juventude indgena em um contexto de transformaes

    Mythical stories and the construction of the individual: ambiguityof the bodies and indigenous youth in a context of transformation

    Resumo As representaes sobre a juventude va-riam histrica e culturalmente. No Alto Rio Ne-gro, vivem grupos indgenas com mais de trs s-culos de contato com o mundo no-indgena. Nosltimos anos, os rituais de iniciao masculinaforam suprimidos e houve a introduo da escolaformal. Estes acontecimentos geraram ressignifi-caes nas formas de representar as diferentes fasesda vida. Neste trabalho objetivou-se compreendera construo das representaes sobre a juventudeindgena; como elas se correlacionam com as de-mais fases do ciclo vital e como contribuem paraconfigurar prticas sociais estruturadas em tornodeste grupo social. Analisaram-se diversas hist-rias-mticas que tratam das relaes intergeracio-nais; estas foram correlacionadas com os termosdesignativos das diversas da vida, com as outrasnarrativas nativas e com dados obtidos a partir daobservao participante. O estudo conclui que asrepresentaes sobre juventude so configuradaspelos papeis sociais de iniciandos/iniciados, fun-didos na atualidade, de modo contraditrio, numacategoria genrica e prolongada de estudante, des-provida de estatuto sociolgico prprio, alongan-do a condio liminar desta fase da vida.Palavras-chave ndios sul-americanos, Juventu-de, Mudana cultural

    Abstract Representations about youth vary his-torically and culturally. In the Upper Rio Negro,there are indigenous groups with over three cen-turies of contact with the non-indigenous world.In recent years, male initiation rites were sup-pressed and formal schooling was introduced.These events led to a redefinition of significancein forms of representation at different stages oflife. This work sought to understand the construc-tion of the Indian representation of youth; howthey correlate with the other life cycle phases andhow they contribute to configuring structuredsocial practices in this social group. Several myth-ical stories dealing with intergenerational rela-tionships have been reviewed; these were corre-lated with significant stages of life, with otherlocal narratives, and with data gathered from di-rect observation. The study concludes that therepresentations about youth have been config-ured by the social roles of the initiating/initiated,in a currently contradictory fashion, under a ge-neric and lengthy student phase, deprived of itsown sociological markers, prolonging the thresh-old condition of this phase of life.Key words South American Indians, Youth, Cul-tural change

    Maximiliano Loiola Ponte de Souza 1

    Suely Ferreira Deslandes 2

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    Introduo

    As formas atravs das quais so categorizadas asdiferentes fases da vida variam histrica e cultu-ralmente1,2, pois, como adverte Bourdieu3 a ida-de um dado biolgico socialmente manipulado emanipulvel. Um aspecto bem demarcado na li-teratura que o surgimento da escola formal,entre os sculos XVII e XVIII na Europa, influen-ciou de forma marcante a configurao das fasesda vida no ocidente. Este evento teria tanto re-configurado as representaes ocidentais a res-peito da infncia4, como criado condies de pos-sibilidade para o alongamento, ou mesmo parao surgimento, de uma categoria intermediriaentre esta fase inicial e a vida adulta, chamadapor vezes de juventude3.

    No Alto Rio Negro, noroeste amaznico, ha-bitam cerca de 30 mil indgenas5, distribudos aolongo de diversos cursos dgua. Junto ao rioUaups e afluentes habitam diferentes grupos dafamlia lingustica Tukano Oriental (Tukano, Des-sano, Uanano, Bar, dentre outros), os Tariano,da famlia Aruaque e os Hupda, da famlia Maku.Para os meninos, a passagem da infncia paraidade adulta dava-se pela iniciao ritual no cultomasculino das flautas sagradas, interditado smulheres6. Tal rito est em desuso em diversasreas do Uaups brasileiro, associando-se, pelomenos em parte, intolerncia dos missionriossalesianos7, que ali introduziram, a partir de 1914,internatos escolares em moldes europeus.

    Os grupos Tukano Oriental e os Tariano sounidades exogmicas, patrilineares e patrilocais8.Cada unidade subdividida em grupos consan-guneos (os sibs), nomeados e hierarquizados deacordo com a ordem de nascimento dos ances-trais mticos fundadores. Cada assentamentodeveria idealmente congregar homens (e seus fi-lhos e filhas) de um mesmo sib e suas esposasadvindas de outras unidades exogmicas, vindasde outras locais9.

    Iauaret, populosa localidade indgena mul-titnica, localiza-se s margens do Uaups. L re-sidem indgenas falantes, em sua maioria, da ln-gua Tukano e do Portugus, pertencentes a dife-rentes unidades exogmicas. Em 2007 sua popu-lao era estimada em 2.779 pessoas. Credita-seo crescimento desta localidade desativao, em1986, do internato salesiano que ali funcionavadesde 1930. Com seu fechamento, famlias intei-ras passaram a migrar para Iauaret buscandodar continuidade escolarizao dos filhos10.Iauaret possui algumas ruas acimentadas, trsescolas, um hospital, eletrificao, telefonia, agn-

    cia dos correios e acesso a internet, em um pelo-to do Exrcito Brasileiro.

    Iauaret encontra-se dividida em dez vilas.H vilas tradicionais e outras novas. As primei-ras se associam a antigas malocas de grupos Ta-riano, que l residiam antes da chegada dos mis-sionrios salesianos, no incio do sculo XX; assegundas se formaram posteriormente, com avinda de indgenas de diferentes locais. Cada vilase organiza de forma independente, buscandomanter seus ideais de autonomia e independn-cia em relao s outras. Cada uma delas possuisuas lideranas, seu agente de sade, seu centrocomunitrio, sua capela, seu campo de futebol, eseus times esportivos, compostos por jovens.

    O acesso terra cultivvel, aos locais de pescamais piscosos, bem como aos cargos polticos deprestgio, tende a ser prerrogativa dos tarianosdas vilas tradicionais. Tais questes evidenciamtanto a importncia que o pertencimento a de-terminado sib possui no contexto local, como arelevncia das bases scio-cosmolgicas na acon-coragem da compreenso da realidade e na ori-entao de prticas sociais por parte dos mora-dores de Iauaret.

    Sendo Iauaret um plo de atrao populacio-nal, a regra de residncia patrilocal no est ple-namente em operao. Mesmo no interior de cadavila no se vive exclusivamente com parentes. Lo-calmente os laos estabelecidos pela corresidnciamediam em larga medida as estratgias para ma-nuteno da coeso social no interior de cada vila.

    Estratgias como a realizao de festas, fei-ras, arraiais e outras situaes similares nas quaisse faz uso de bebidas alcolicas so recorrente-mente realizadas, sendo mecanismo para refor-ar a solidariedade entre os corresidentes, bemcomo para demarcar as diferenas em relaoaos moradores de outras vilas. Por outro lado,estas mesmas situaes de consumo de lcoolso culturalmente consideradas momentos pro-pcios para explicitao de tenses e diferenas11.

    Em Iauaret, uma afirmao corrente queos jovens bebem cada vez mais cedo, de modomais frequente e violento, e que haveria dificul-dades coletivas em se lidar com este comporta-mento. Uma pergunta inicial seria: em Iauaret,quando se fala dos jovens, sobre quem se estfalando? Bourdieu3 alerta que em cada contextocultural e histrico, dinmicas sociais complexasinteragem para configurar as formas atravs dasquais se realiza o recorte entre as diferentes gera-es. Assim, para compreender, neste contextoscio-cultural, a construo das representaessobre juventude; como elas se correlacionam

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    com as demais fases do ciclo vital e como contri-buem para configurar prticas sociais estrutura-das em torno deste grupo, objetivos deste traba-lho, teve-se que buscar referenciais tericos quepudessem dar sentido s especificidades indge-nas em geral, e rionegrinas em particular.

    Inicialmente partiu-se do reconhecimento deque a transformao pela qual Iauaret est pas-sando vem sendo necessariamente adaptada aoesquema cultural existente12. Transformaes,como a introduo da escola formal, e constru-es de sentido em torno delas se do a partir deinstituies, estruturas e lgicas prprias e pr-existentes. O segundo ponto que no contextoamerndio os rituais de iniciao tm uma im-portncia estrutural nas formas atravs das quaisse configuram as diferentes fases da vida1; o ini-ciando encontrar-se-ia em uma fase liminar, es-capando s classificaes sociolgicas, sendomarcado pela ambiguidade13. O ritual o encami-nharia para um status definido e pleno. Entende-se que estes rituais de forma recorrente incidiamsobre os corpos dos iniciandos, atravs de dife-rentes formas de flagelo e modificaes corpo-rais14. Tal processo ritual deve ser compreendidolevando-se em considerao que no contexto in-dgena sul-americano, a fabricao, decorao,transformao e destruio dos corpos so temasem torno dos quais giram as mitologias (...) e ritose que h a centralidade dos corpos nos processosde construo da pessoa15.

    Em sntese, partiu-se do entendimento inicialde que as representaes sobre a juventude e asdemais fases do ciclo vital seriam produtos dainterface entre as bases scio-cosmolgicas queordenam o viver indgena e as transformaeshistricas vividas ao longo dos anos. Levou-seem considerao a importncia estrutural dosritos de iniciao, que mediariam a construoda pessoa, enquanto ser social pleno, atravs demodificaes corporais, e a necessidade de re-ordenar o universo simblico com entrada des-tes rituais em desuso e com a introduo da es-cola formal, buscando sempre um dilogo coma literatura etnogrfica rionegrina clssica6,8,9,16,17

    e contempornea7,10,18,19.

    Metodologia

    Foi realizada uma pesquisa etnogrfica em Iaua-ret, com seis meses de durao. Em campo, bus-cou-se estabelecer relaes dialgicas com dife-rentes grupos. Um destes foi um grupo de qua-tro idosos, reconhecidos localmente como co-

    nhecedores das histrias e mitos indgenas. Elescoordenavam uma atividade extraclasse, minis-trando aulas sobre cultura para estudantes daescola local. To logo o primeiro autor deste tra-balho apresentou-se e lhes explicou o interesseem compreender sua cultura, eles recomenda-ram-no assistir suas aulas. Com o passar do tem-po estabeleceu-se um relao emptica entre opesquisador e os idosos, de forma que quandoos alunos iam embora, comeava uma descon-trada seo de conversa, na qual se abordavamassuntos diversos, e se narravam histrias.

    Parte dessas histrias tinha em comum o fatodos personagens no serem os ancestrais da hu-manidade, como nos mitos, mas serem os pr-prios homens, interagindo num mundo liminarcom o mtico, assemelhando-se s histrias-mti-cas, identificadas por Hill20 entre grupos indgenassul-americanos. Segundo este autor, atravs destetipo especfico de produo, os nativos buscariamatribuir sentidos aos eventos que ocorreram apartir do contato intertnico, reconstruindo, apartir dos mitos, uma interpretao das transfor-maes histricas. Nestas ocasies coletou-se umconjunto de quatorze histrias-mticas, que fo-ram interrompidas quando se percebeu que sehavia chegado a um ponto de saturao21.

    Aos narradores, solicitou-se que identificas-sem as etapas de vida dos diferentes persona-gens, atravs de termos em Tukano, e que os tra-duzissem para o Portugus. Assim, o acervo pdeser dividido em histrias de wimagi/wimago(menino/menina; criana), de mam/numi (jo-vem, moo/moa), e de biki/biki (velho/velha;idoso/idosa). Selecionaram-se para anlise his-trias-mticas nas quais foi possvel encontraraproximaes entre seus enredos e o contextosocial contemporneo de Iauaret, dando-se pre-ferncia quelas cujos prprios narradores fize-ram esta associao. As demais histrias, utiliza-das de forma secundria, foram teis na medidaem que serviram para evidenciar a importncia ea recorrncia dos temas destacados para umainvestigao em profundidade, sendo uma es-tratgia utilizada para minimizar os riscos de cen-tralizar as anlises em aspectos fortuitos e idios-sincrsicos de determinadas histrias.

    A ttulo de pr-anlise, se buscou evidenciarnas histrias os diferentes personagens, as for-mas de interao entre eles, a sequncia dos acon-tecimentos, o cenrio nos quais transcorreriam22.A seguir procedeu-se anlise atravs de trs es-tratgias complementares. A primeira partiu doreconhecimento que as palavras na lngua nativapossuem ideias e conceitos implcitos, passveis

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    de serem negligenciados no processo de tradu-o7. Com um informante-chave, investigou-seos diferentes sentidos das palavras utilizadas, nalngua nativa, para demarcar as etapas do ciclovital, cotejando com dados disponveis na litera-tura23, e com o uso cotidiano destas expresses,objetivando construir associaes entre estas in-formaes e as formas atravs das quais os per-sonagens eram representados nas histrias. Asegunda estratgia consistiu em cotejar as hist-rias-mticas a mitos rionegrinos, buscando entreeles aproximaes, distanciamentos, inverses desentidos e outras possveis correspondncias24.Por fim, utilizaram-se dados obtidos a partir deobservao e dilogos informais, no intuito decaracterizar as aproximaes feitas pelos narra-dores entre as histrias e o contexto contempo-rneo de Iauaret, operando como estratgia paracorrelacionar as representaes e as prticas so-ciais relacionadas juventude.

    Histrias de wimagi/wimago

    Estas histrias tinham como cenrio a roade mandioca; abordavam tentativas de transmis-so de ensinamentos entre me e criana, ligadasao processo de construo de corpos, tais comoregras alimentares ou, como no caso abaixo, deasseio corporal15.

    Uma criana no queria acompanhar sua mena ida para roa, para ficar brincando na maloca,alegando que l havia muitas cabas (Polystes sp).Com a insistncia da me a criana acabou indo,mas chegando l foi picada por este inseto. Ao ocor-rer este fato a me dirigiu-se a criana e comen-tou: Est vendo? Isso acontece porque voc notoma banho direito pela manh!.

    Para compreenso da histria acima, demar-ca-se que localmente, estimula-se a criana a to-mar banho cedo do dia, na gua gelada do rio. Ono cumprimento desta prescrio tornaria aspessoas fracas, moles e preguiosas. A ironia dahistria acima parece estar relacionada habili-dade da me em desmascarar a preguia da cri-ana, e a inabilidade desta ltima em escond-la.Durante a narrao de outra histria foi motivode riso a mordida que levou uma criana ao noconseguir comer um besouro conforme a orien-tao de sua me. Assim, um ponto recorrentenestas histrias a explicitao da inabilidade/desconhecimento infantil.

    Wimagi/wimago so palavras compostaspelo verbo wim, estar de pouca idade23, e pe-los sufixos, masculino (gi) ou feminino (go). J overbo wim significa efetuar a primeira etapa da

    torrefao da farinha23. Assim, a criana, enquantonefito seria um ser que est em processamento.Sua inabilidade correlaciona-se com sua incom-pletude. Neste contexto o processo de constru-o da pessoa no se restringe ao mundo uterinoe adentra no ambiente extratero, mediado pelaaquisio de habilidades sociais, que modelam eso modeladas pelos corpos.

    A criana seria de certa forma um ser pr-social. Sob uma perspectiva masculina, seria evi-dncia desta condio sua maior associao roae ao universo das mulheres, e no maloca e aouniverso masculino, dades que demarcam nocontexto rionegrino o campo da natureza e dacultura8. Ritualisticamente, esta condio era ex-plicitada pela excluso das crianas e das mulhe-res dos ritos associados ao culto das flautas sa-gradas. Apenas os j iniciados, j apresentadosaos saberes esotricos de seu sib, cujos corposforam singularizados pelo aoitamento ritual epelo uso de enfeites especficos para seus grupos,participavam ativamente dessas atividades6. E este corpo, diferenciadamente humano, cultural-mente construdo, que a criana ainda no possuiplenamente, e que demarca sua incompletude.

    Histrias de mam/numi

    Aprendizado/prescries/desobedinciaEste conjunto de histrias faz aluso ao ri-

    tual de iniciao masculina, relacionado ao com-plexo mtico-ritual do Jurupari6. Numa das his-trias coletada, o narrador explicita que este erao momento para se aprender aquilo que os anti-gos falavam-contavam-faziam. No processo nar-rativo da histria abaixo, o narrador fez umacomplexa mediao entre ela, o mito do Juruparie o contexto contemporneo de Iauaret.

    Numa maloca havia um jovem que estava napreparao para maturidade, e uma jovem queestava no isolamento da primeira menstruao.Para o jovem havia vrias comidas proibidas, comoo japur (Erisma japura). As mulheres saram pararoa. Seu pai e outros homens ao sarem para pes-car, chamaram o jovem. Este viu na situao umaoportunidade para comer o japur escondido. Dis-se ao pai que fosse frente. Esperou todos sarem eretornou para maloca. A jovem reclusa observavatudo por uma fresta. Os homens voltaram da pes-caria. O jovem usou de uma srie de estratgiaspara que no descobrissem que ele havia comidojapur, mas a jovem acabou contando. Ele saiupara evitar a reprimenda do pai. Depois voltou efoi discutir com a jovem. Ele a chamou de fofo-queira. Aproximou-se do cercado onde a jovem

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    estava e colocou seu olho numa fresta. A jovemcuspiu-lhe caldo de pimenta no olho.

    O narrador, como prembulo, informou queJurupari seria tipo um professor de trs jovens oualunos. Ele era bastante exigente, prescrevendo-lhes uma srie de restries alimentares. Ao tr-mino da histria, informou que no tempo an-cestral, os jovens que estavam sob os cuidadosde Jurupari tambm descumpriram restriesalimentares, e igualmente tentaram acobertar seudeslize. Mas ele puniu os jovens, engolindo-os.Seus pais vingaram-se do Jurupari, matando-o.Explica que no mito, as restries eram muitomaiores que na situao tratada na histria. Ain-da sim, os jovens no as teriam seguido. Con-cluiu, articulando a ancestralidade ao mundoatual: E hoje do mesmo jeito!.

    Nos rituais de iniciao, os corpos infantiseram singularizados, ao serem pintados e ador-nados com enfeites cerimoniais, inserindo os ini-ciandos no mundo dos adultos de seu grupo6.Mam compartilha seu radical com mamtihi,enfeitar-se e com mam, que significa novato numdeterminado lugar. Numi associa-se a numi,torna-se enfeitado, ou tornar-se moa.

    H um ponto convergente nas diferentes ver-ses do mito do Jurupari. Aps sua morte umasrie de desgraas surgiu no mundo25,26. As flau-tas usadas na iniciao masculina, que forma-vam o corpo de Jurupari, foram apropriadaspelas mulheres. O destino das flautas era perten-cer aos homens, mas isso quase no se deu, devi-do falha de um iniciando que deveria acordarcedo para banhar-se e ach-las na beira do rio.Como ele acordou tarde, suas irms acharam asflautas. Ento as mulheres se masculinizaram einverteu-se a diviso sexual do trabalho, que sfoi desfeita aps a captura das jovens e sua ex-pulso do mundo habitado pelos indgenas. Tan-to no mito, quanto na histria, havia restriesalimentares aos jovens, que ao serem desrespei-tadas trariam prejuzos.

    Os mitos so as bases sobre as quais se as-sentam diversos rituais, que tm, entre suas fun-es, o reforo das normas sociais27. No ritual deiniciao masculino, antes praticado no Rio Ne-gro, os corpos eram marcados pelo aoitamentoritual6; nesta situao, a sociedade imprimia suamarca no corpo do jovem, impedindo o esqueci-mento das normais sociais e proclamando seupertencimento ao grupo14.

    O processo colonizatrio introduziu a escolaformal, que se associa a mudanas no modo devida dos indgenas, como o cumprimento dehorrios fixos e avaliaes formais de desempe-

    nho. Surge tambm a relao mam/bug (estu-dante ou aluno), que, em parte, parece ter comoreferncia a condio mam/iniciando. Tais mu-danas trazem consigo novas prescries aos jo-vens indgenas. Estes deveriam evitar o consumoexcessivo de bebidas alcolicas e frequentar asfestas com moderao. Mas os jovens, s se pre-ocupam com bebida, s querem saber de diverso,conforme relata uma mulher adulta. No contex-to atual, a trade representacional aprendizado/prescries/desobedincia permanece associada ideia de juventude.

    Atualmente, compreende-se que desobedin-cia no teria seu contraponto na rememoraopromovida pelo ritual. Souza e Garnelo19 verifi-caram que os prprios jovens estabelecem umavalorao privilegiada aos conselhos de antigamen-te, que eram oferecidos de forma ritualstica; [semeles], a cabea fica fechada e os conselhos no en-tram. Para os autores, abolidos estes rituais nosurgiram outras estratgias igualmente eficazesem reafirmar as normas sociais.

    Ademais, o perodo escolar mais extensoque o perodo de iniciao, retardando o casa-mento: com 15 ou 17 anos, j era para casar, disseum informante. Assim, prolonga-se o tempo dajuventude, visto que para muitas pessoas o casa-mento demarcaria o fim desta fase.

    O trmino do perodo escolar no significa aentrada do jovem no mundo adulto. Desdewimgi/wimago frequentam a escola, que valo-riza a escolarizao progressiva, para alm da-quela ofertada em Iauaret, como meio de acessoa empregos assalariados, que ali so escassos. Asocializao escolar, diferentemente daquela queocorria na iniciao tradicional, prolonga o per-odo da juventude; desprovida de essncia rituale esotrica; cria expectativas, muitas vezes inal-canveis; e direcionada para exterior, e nopara o interior do grupo de parentesco.

    Ambiguidade/malandragemOutro conjunto de histrias aborda a capa-

    cidade dos jovens em dissimular e confundir osdemais membros de seu grupo. Numa destashistrias, em uma longa viagem de canoa umjovem que comia escondido a carne moqueadaque seu pai levava para presentear outro paren-te, convence que a mesma teria sido roubada poroutra pessoa em alguma local no qual pararam.Na histria abaixo, se apresenta de forma expl-cita esta representao do jovem que remete aideias de ambiguidade e malandragem.

    Todos os dias os homens e as mulheres de umamaloca saiam para cumprir seus afazeres. Nesta

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    situao, um rapaz que ficava sozinho com as cri-anas colocava uma mscara e pintava o corpopara assust-las e comer a comida delas. Quandoos pais voltavam, as crianas contavam o ocorri-do. Algumas mulheres resolveram se esconder namaloca para descobrir o que acontecia. Neste dia,o rapaz foi entrando na maloca todo enfeitado.Vendo aquele ser de aparncia indefinida, as mu-lheres pensaram se tratar de um esprito da flores-ta. Sabendo que estes no suportam cheiro de pi-menta comearam a queimar este condimento. Ocheiro comeou a entrar atravs de sua mscara.No conseguindo retir-la, o cheiro forte o fez cairno cho. As mulheres tiraram-lhe a mscara, des-cobriram que era um dos rapazes da maloca, e aca-baram com sua farsa.

    Nos mitos rionegrinos h uns seres chama-dos Diro. Eles se caracterizam pela sua ambi-guidade: eram pequenos e gostavam de brinca-deiras como crianas, mas possuam energiasexual e conhecimentos xamnicos. Diz-se queos Diro so muito malandros, dada suas habili-dades em dissimular26. Seus inimigos eram osya-masi (gente-ona). Em diversas ocasies,valendo-se da aparncia infantil, convidaram osfilhos de seus inimigos para brincar, mas trata-va-se de artimanha para mat-los. Valendo-sedo mesmo subterfgio, atraam as jovens filhasde seus inimigos para locais distantes, para man-terem relaes sexuais com elas.

    Comparando o rapaz da histria aos Diro,observa-se uma inverso simtrica da relaoentre essncia e aparncia. O rapaz ao vestir-secomo um outro ser, faz-se ver como poderoso.Os Diro, com seus corpos infantis escondiamos poderes que tinham.

    Durante o trabalho de campo, o pesquisa-dor, que observava um conjunto de jovens dan-ando, chamou-os de meninos. Um idoso ali pre-sente comentou, de forma irnica: ... so meni-nos que fazem meninos, alertando que as aparn-cias enganam. Uma mulher adulta, informou queas crianas ao ficarem sozinhas com jovens po-dem imaginar que so como eles. Confundindo-se com os jovens, tomam caxiri, fumam, brigame namoram, aprendendo suas malandragens.

    Observa-se que o cerne da questo est naambiguidade dos corpos e papeis juvenis, que seacirra no contexto de transformaes enfrenta-do pela populao de Iauaret. Os jovens escola-res podem aparentar serem crianas, mas detmpotencialidades (sexual, por exemplo) que estasno possuem. O uniforme escolar, que os distin-gue do velho, acentua esta ambiguidade, vistoque crianas tambm os usam. No h, como

    havia na poca em que se praticava o ritual deiniciao, uma clara definio do fim da infncia.V-se nessa ambiguidade uma espcie de malan-dragem, no qual os jovens escondem potenciali-dades de adultos, por trs de corpos infantis e deroupas de aluno.

    Contato com os outrosNeste terceiro conjunto de histrias, se abor-

    da de forma recorrente a relao entre os jovense o estabelecimento de contato com a alteridade.H histrias que relatam o encontro de jovenscom onas, com seres da floresta, com certo pajque faz errar o caminho, e tambm com outrostipos de gente, como no caso abaixo.

    Quatro jovens estavam procurando o buracoonde se escondia uma cobra. Um dos jovens subiunum buritizeiro (Mauritia flexuosa). A rvorevoou e caiu no rio. Quatro filhas do gente-peixeobservaram que havia uma pessoa em cima doburitizeiro, e comentaram com seu pai. O gente-peixe no tinha filhos homens. Ento disse s fi-lhas: Tragam-no para c. Ele ser nosso emprega-do. As filhas do gente-peixe pediram para ele des-cer, mas ele no descia. Isso porque escutara o queo gente-peixe falara. Seduzido pelas jovens, acaboudescendo. Passou a morar com a gente-peixe, tra-balhando para eles, at que conseguiu fugir e vol-tar para sua maloca e contou tudo o que viu eaprendeu por l.

    Na histria, o jovem se movimenta por ou-tro mundo, fazendo contato com uma sociedadeno humana; ficando implcito que no retornoao seu grupo de parentes traria consigo novasaquisies culturais.

    Observa-se aqui uma associao simblicaentre o jovem e o guerreiro. Esta afirmao sesustenta nos seguintes argumentos: tanto o jo-vem iniciado no casado quanto o guerreiro, ti-nham em comum o fato de estarem direciona-dos para os limites exteriores do grupo de paren-tesco; seja para o contato hostil, ou para a buscade mulheres16. Alm disso, os jovens iniciadoscostumavam ser recrutados como guerreiros17.

    Uma das motivaes das guerras era a captu-ra de crianas. As meninas poderiam se tornaresposas dos filhos dos raptores e os meninos po-deriam ser incorporados ao grupo de raptores,na condio de servos28. Afirma-se que no con-texto rionegrino, no se faziam guerras com afinsverdadeiros e que o estabelecimento desses laoscriava obrigaes recprocas de paz e proteo9.

    Na histria acima o sogro-peixe tinha o in-tento de transformar o jovem em empregado,servo de gente-peixe, ou seja, um tipo de gente-

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    peixe. Est tambm explcita a conotao sexualda relao entre o jovem indgena e as jovens wa-masa. Assim, nesta histria pode-se encontrar deforma implcita os elementos antes apontados, operigo imanente do contato com a alteridade, e apossibilidade de angariar vantagens, como obteresposas necessrias para a reproduo social ecultural.

    Ao terminar de contar a histria, o narradorfez uma articulao com o contexto atual de Iau-aret, e em tom que mesclava lstima e crtica,afirmou: e aqui existem muitos jovens que esque-cem dos pais, e ficam morando com o sogro. Estacolocao parece apontar para um entendimen-to que a quebra da regra de residncia patrilocalimpactaria de alguma forma no modo como osjovens so representados.

    Em Iauaret, dada a convivncia multitnica,os afins moram logo ali, e no em outras locali-dades, ou outros mundos. Isso dispensa os jo-vens de procurar futuras parceiras em outroslocais, como ocorre em muitos aldeamentos rio-negrinos. Assim torna-se compreensvel a asso-ciao comumente feita entre os jovens do sexomasculino e o envolvimentos dos mesmos emdisputas, por vezes violentas, por namoradas.Ademais, destaca-se que o namoro, ao que tudoindica prtica social nova entre os indgenas daregio7, no significa aliana matrimonial emcurto prazo, o que por sua vez amplia o tempodas disputas e da prpria juventude.

    Por outro lado, deve-se igualmente atentarpara o fato de que no contexto amerndio ficarcom os afins significa tambm ficar como osafins, tornando-se como um deles29. Por exem-plo, noutra histria coletada, um homem acom-panhou um conjunto de mulheres numa viagem.Durante o trajeto at a residncia das mesmas,elas iam se transformando em minhocas, flores,bichos; e o homem se transformava como elas.Finalmente chegando terra das mulheres, to-dos se transformaram em um tipo de fruto. Lresidindo sob a forma de fruto o homem se es-queceu de todos seus parentes.

    No contexto contemporneo h tambm ocontato mais prximo e constante com o mundodos brancos, atravs da escola, da televiso e dasviagens cada vez mais frequentes cidade. Comoocorrido nas histrias apresentadas nesta seo,o jovem pode sair e retornar do mundo no ind-gena, trazendo novos saberes a serem apropria-dos pelo seu grupo de parentesco. Mas tambmpodem nele ficar, tornando-se como os brancos.

    A associao com os brancos no um elo-gio. Referindo-se aos jovens, uma das informantes

    idosas disse: Briga, assassinato, estupro, roubo.Tudo o que os brancos fazem, eles querem fazeraqui. Ela tambm sustentava que com o casa-mento, esta agressividade seria subjugada; con-siderava que ao casarem as pessoas no pensammais em maldade, e passam a pensar como paren-tes. O estabelecimento de relaes reais de afini-dade disciplinaria e enquadraria o jovem no seugrupo de consanguneos, guiando-o para o cum-primento das regras de sociais, demarcando ofim da juventude.

    Histrias de biki/bikiNas histrias de biki/biki, o personagem

    principal era um homem casado e com filhos.Recorrentemente no enredo das mesmas se evi-denciava a representao do velho como algumque deveria proteger os mais jovens de seu grupo.Em algumas histrias, contadas como piadas, oelemento cmico era justamente a incapacidadede certo velho em proteger os seus, em compara-o a outros que executariam a contento esta ta-refa. Noutras, como na histria abaixo, se desta-ca como um elemento distintivo desta fase da vidaos conhecimentos que proporcionavam aos ve-lhos a capacidade de proteger seus parentes.

    Um velho estava caando com seu filho na flo-resta, utilizando cachorros. Os ces partiram emdisparada atrs de uma cotia. Mas a presa era umesprito da floresta, um wt. Filho e pai foramconferir; o primeiro frente e o segundo atrs. Ojovem acabou sendo capturado pelo wt, que exa-lava odores ftidos. O jovem tentou escapar esfa-queando o esprito da floresta, que acabou lhe sol-tando. Exposto aos odores, ficou como morto. Ovelho utilizou-se de recursos xamnicos e o trouxe vida.

    Biki significa velho, e se relaciona aos termosde parentesco de afinidade bik/biki, esposo/es-posa23. Ser esposo (a) e ter filhos so condiesnecessrias para se entrar nesta fase. Por exem-plo, em campo uma mulher de trinta anos, comdois filhos e emprego assalariado informou sernumi. Segunda ela, no poderia ser biki, por-que no tinha marido.

    Nesta histria o jovem mostrou-se intem-pestivo e o velho cauteloso. O primeiro optoupelo embate corporal; o segundo pelo uso depoderes xamnicos, estabelecendo-se entre elesuma relao de protegido-protetor. Em Iauare-t, diz-se que, atravs de seus conhecimentos xa-mnicos, os velhos podem proteger suas fam-lias, benzendo os netinhos quando ficam doentes,ou abrindo a cabea dos jovens para os conselhos.Os velhos, tm mais conhecimentos, porque ouvi-

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    ram os mais velhos do que eles. Entretanto, estesmesmos conhecimentos deixam os velhos emsuspeio, pois lhes conferem a capacidade defazer o mal: o velho amaldioou com fumaa decigarro; era a explicao recorrente em caso deadoecimento e/ou morte de algum.

    H tambm uma associao entre velho/ave o conhecimento dos antigos, algo que confereprestgio aos mais velhos. Porm, a posio hie-rrquica de cada seguimento sempre relativa.Entre os Uanano, Chernela9 identificou que ossibs so hierarquizados, em ordem decrescente,em grupos de netos, tios e avs, invertendo arelao de maior prestgio dos mais velhos frenteaos mais novos. Os estudos de Jackson8 entre osBar oferecem uma chave explicativa para estainverso. Analisando o mito de origem do gru-po, a autora informa que os ancestrais emergi-ram sequencialmente de uma cobra-canoa, sain-do para o mundo humano, a partir de diferentespartes do corpo do animal. Os que saram dacabea emergiram primeiro, dando origem aossibs de maior prestgio, e assim sucessivamente.Porm, os ancestrais que saam da cobra-canoaeram numerosos; ento, os ltimos a emergir(oriundos da cauda), j encontraram os netosdos que primeiro haviam desembarcado. Por estarazo, a hierarquia mtica da formao do pa-rentesco situa os sibs de netos em plano maisprivilegiado que os sibs dos avs.

    Entre os Dessano, o sib de avs tambm cha-mado de sib de kumua, xams-rezadores18. A falade um septuagenrio ilustra a permanncia destesistema classificatrio; ele informou que outrohomem mais jovem era seu av; porm evitavacham-lo assim, porque poderia subentender queo outro era cheio de veneno, de maldade.

    Na vida cotidiana av pode ser simplesmenteo pai do pai, um homem com mais idade, cujofilho teve descendentes. Hugh-Jones16 informa que medida que os homens vo envelhecendo e acu-mulando participaes nos rituais masculinos,que marcam seus corpos, eles tambm se tor-nam mais experientes, ampliando seus conheci-mentos e se aproximando mais do mundo deseus ancestrais.

    O av, classificatrio ou real, , portanto,aquele que est mais prximo do espao-tempodos ancestrais. No caso dos sibs de avs, estaaproximao dar-se-ia pelo menor distancia-mento que tm da cobra-canoa, da qual foramos ltimos a sair. J o outro tipo de av (o pai dopai), com sua idade mais avanada, pode acu-mular mltiplas participaes nos rituais mas-culinos, que lhe permitiram se reaproximar do

    mundo mtico. No contexto atual, no qual osrituais no so mais praticados, os velhos/avs,tambm esto mais prximos dos ancestrais,porque tiveram oportunidade de conviver comos antepassados, portanto conhecem melhor atradio.

    Consideraes finais

    Em Iauaret vive-se em um contexto de rpidas eimportantes transformaes, que como se bus-cou evidenciar, impactam de forma decisiva naforma como se representa as diferentes fases davida. Pode-se tambm demonstrar que poss-vel compreender essas novas configuraes re-presentacionais recorrendo a elementos estrutu-rais, como mitos e ritos, que fornecem a base desustentao para essa ordenao (e desordenao)do mundo em termos simblicos12.

    Observou-se que as modificaes corporaismediam o processo de construo da pessoa15, econsequentemente, a constituio representaci-onal das fases do ciclo vital. A incompletude docorpo infantil e sua associao ao carter pr-social da criana, tem seu contraponto no corporitualmente transformado do jovem. Porm, acompletude juvenil mostra-se relativa quandocomparada dos velhos, cujos corpos acumu-lam as marcas da participao nos rituais ao lon-go da vida, e a conhecimentos esotricos, estan-do associados a termos de afinidade, que eviden-ciam sua capacidade plena de reproduo cultu-ral e social do grupo.

    A anlise das histrias-mticas permitiu rati-ficar os pressupostos adotados, que para com-preender as representaes sobre a juventudecontempornea de Iauaret, far-se-ia necessrioconsiderar a importncia estrutural dos rituaisde iniciao1,13,14, mas tambm as ressignificaesrequeridas pela introduo da escola formal3,4.

    Neste processo de ressignificao, as repre-sentaes de etapas vida outrora separadas pelosrituais de iniciao, como a de iniciandos quese relaciona a aprendizado/prescries/desobedi-ncia, ambiguidade/malandragem e a dos jiniciados associados ao contato com os outros fundem-se contraditoriamente numa catego-ria genrica de juventude. Esta, por sua vez, estassociada ideia de estudante ou aluno que pa-rece no ter um estatuto sociolgico prprio, nocontexto investigado, fazendo com que um per-odo longo da vida permanea, de certa forma,no campo da liminaridade.

    Estas recomposies representacionais pare-

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    cem estar relacionadas compreenso/imputa-o de prticas sociais pelos jovens indgenascontemporneos. Estes so genericamente apon-tados como pessoas que se envolvem, de modorecorrente, em brigas relacionadas a disputas pormulheres. Ora, o que esperar de algum que representado como estando numa fase da vidacaracterizada pela desobedincia, ambiguidade epela busca de contatos com estranhos? A alter-nativa encontrada para o controle do compor-tamento disruptivo juvenil, que deixem de serjovens, casando-se e tendo filhos. S assim sairi-am desta situao liminar, potencialmente peri-gosa. Entretanto, as famlias no querem que osfilhos casem enquanto so alunos.

    Por fim, mas igualmente importante, preci-so atentar para o fato que nesta pesquisa as nar-rativas foram coletadas com pessoas mais velhas,

    que se reconhecem e so reconhecidos pelo co-nhecimento dos mitos e das histrias dos temposantigos. Pessoas como eles tm certa prerrogativano s para contar histrias, mas para reinter-pret-las a luz das modificaes do contexto noqual se vive, e interpretar o contexto sob o prismadas histrias recontadas. Haveria, at certo pon-to, algo de hegemnico nas formulaes destesnarradores, o que confere importncia s ques-tes aqui apresentadas. Por outro lado, um sabersupostamente hegemnico no necessariamen-te nico ou monoltico. bem possvel que secoletssemos histrias com mulheres idosas, oucom jovens, outras posies contra-hegemnicasemergiriam, o que poderia evidenciar distinese/ou tenses entre gneros e entre diferentes clas-ses de idade, algo que pode ser um caminho pro-missor para investigaes posteriores.

    Colaboradores

    MLP Souza participou de todas as etapas relaci-onadas elaborao do artigo. SF Deslandes e LGarnelo participaram da redao e reviso crti-ca do texto.

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    Artigo apresentado em 11/11/2009Aprovado em 19/01/2010Verso final apresentada em 25/01/2010

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