os des(caminhos) da identidade social das … · fundamental da identidade brasileira, a qual se...

12
Interletras, volume 3, Edição número 19. Abril, 2014/Setembro, 2014 - p 1 OS DES(CAMINHOS) DA IDENTIDADE SOCIAL DAS MULHERES INDÍGENAS Lilia Odete Nantes Oliveira* RESUMO: O tema identidade tem sido amplamente estudado por diversos segmentos acadêmicos, sobretudo pelas ciências sociais. Essa realidade investigativa traz uma ascensão incrivelmente positiva quanto ao encaminhamento da visão teórico-aplicada sobre os (des)caminhos da identidade; termo muito bem definido pelo antropólogo Roberto Cardoso de Oliveira, em seu artigo “Os des(caminhos da identidade), o qual inspirou a realização deste artigo que, em sua essência, trata da polêmica e ambígua questão da identidade, especialmente a da mulher indígena. Assim, buscamos, além das pesquisas teóricas quanto ao tema em questão, divulgar esse estudo no meio acadêmico a fim de destacar, novamente, a importância do papel social desempenhado pela mulher na defesa de uma cultura que des(caminha) rumo a uma possível extinção. Nesse sentido, acreditamos que a mulher indígena frente à sua comunidade e à sua realidade local tem o poder de re(construir) uma identidade atual e sólida. PALAVRAS-CHAVE: Identidade - Mulheres Indígenas - Função Social ABSTRACT: The theme of identity has been widely studied by several academic segments, especially the social sciences. This reality brings a rise investigative incredibly positive about the delivery of theoretical and applied vision about the (mis) direction of identity; term very well defined by the anthropologist Roberto Cardoso de Oliveira, in his article "The des (paths of identity), which inspired the realization of this article, in essence, deals with the controversial and ambiguous question of identity, especially of indigenous women. Thus, we sought, in addition to theoretical research on the subject in question, disseminating this study in academia to highlight again the importance of the social role played by women in the defense of a culture that des (walking) towards a possible extinction . We therefore believe that indigenous women face in their communities and their local reality has the power to re (building) a current identity and sound. KEYWORDS: Identity - Indigenous Women - Social Function INTRODUÇÃO Inserido nesse contexto de análise quanto à diferenciação cultural e consequente criação de fronteiras étnicas, pontuamos que, historicamente, o substrato da cultura brasileira foi composto durante o período de colonização, sobretudo quando a hibridização das

Upload: phamlien

Post on 15-Nov-2018

214 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: OS DES(CAMINHOS) DA IDENTIDADE SOCIAL DAS … · fundamental da identidade brasileira, a qual se caracteriza por possuir, em sua base, e ssa singularidade afro, indígena e luso -europ

Interletras, volume 3, Edição número 19. Abril, 2014/Setembro, 2014 - p

1

OS DES(CAMINHOS) DA IDENTIDADE SOCIAL DAS

MULHERES INDÍGENAS

Lilia Odete Nantes Oliveira*

RESUMO: O tema identidade tem sido amplamente estudado por diversos segmentos acadêmicos,

sobretudo pelas ciências sociais. Essa realidade investigativa traz uma ascensão incrivelmente positiva

quanto ao encaminhamento da visão teórico-aplicada sobre os (des)caminhos da identidade; termo muito

bem definido pelo antropólogo Roberto Cardoso de Oliveira, em seu artigo “Os des(caminhos da

identidade)”, o qual inspirou a realização deste artigo que, em sua essência, trata da polêmica e

ambígua questão da identidade, especialmente a da mulher indígena. Assim, buscamos, além das

pesquisas teóricas quanto ao tema em questão, divulgar esse estudo no meio acadêmico a fim de

destacar, novamente, a importância do papel social desempenhado pela mulher na defesa de uma cultura

que des(caminha) rumo a uma possível extinção. Nesse sentido, acreditamos que a mulher indígena

frente à sua comunidade e à sua realidade local tem o poder de re(construir) uma identidade atual e

sólida.

PALAVRAS-CHAVE: Identidade - Mulheres Indígenas - Função Social

ABSTRACT: The theme of identity has been widely studied by several academic segments, especially the

social sciences. This reality brings a rise investigative incredibly positive about the delivery of theoretical

and applied vision about the (mis) direction of identity; term very well defined by the anthropologist

Roberto Cardoso de Oliveira, in his article "The des (paths of identity)”, which inspired the realization of

this article, in essence, deals with the controversial and ambiguous question of identity, especially of

indigenous women. Thus, we sought, in addition to theoretical research on the subject in question,

disseminating this study in academia to highlight again the importance of the social role played by

women in the defense of a culture that des (walking) towards a possible extinction . We therefore believe

that indigenous women face in their communities and their local reality has the power to re (building) a

current identity and sound.

KEYWORDS: Identity - Indigenous Women - Social Function

INTRODUÇÃO

Inserido nesse contexto de análise quanto à diferenciação cultural e consequente criação

de fronteiras étnicas, pontuamos que, historicamente, o substrato da cultura brasileira foi

composto durante o período de colonização, sobretudo quando a hibridização das

Page 2: OS DES(CAMINHOS) DA IDENTIDADE SOCIAL DAS … · fundamental da identidade brasileira, a qual se caracteriza por possuir, em sua base, e ssa singularidade afro, indígena e luso -europ

Interletras, volume 3, Edição número 19. Abril, 2014/Setembro, 2014 - p

2

culturas indígena, europeia, portuguesa e africana ocorre, fomentando uma rica e

peculiar construção cultural. Assim, essa realidade cultural formada e produzida pela

linguagem, pelas crenças, pelos hábitos, pelos pensamentos e pela arte dos povos é traço

fundamental da identidade brasileira, a qual se caracteriza por possuir, em sua base, essa

singularidade afro, indígena e luso-europeia. Segundo Darci Ribeiro apud Luciana

Vasconcellos (2009, p.1), “nada do que aqui estava ou que aqui chegou preservou-se

como era antes. Criamos um povo mestiço, misturamos Deuses, definimos uma nova

realidade”. Ou seja, “o local na identidade exige ser compreendido no marco dos

processos de transformação rápida e permanente das sociedades modernas que

provocaram o descentramento, a pluralizacão e a fragmentação das identidades

culturais”. Ainda, “ [...]para Bhabha (1998, p. 245), “a cultura se torna uma prática

desconfortável, perturbadora, de sobrevivência e suplementaridade – entre a arte e a

política, o passado e o presente, o público e o privado”

Considerando que a construção da identidade é tanto social quanto simbólica e que essa

é marcada pelas diferenças, uma das formas que ela pode se constituir é por meio de

antecedentes históricos da sociedade a qual pertence. Além disso, na formação e

identificação do plano da identidade de um indivíduo, são considerados aspectos

referentes à história de vida, sonhos, fantasias, características de personalidade,

heranças parentais, etc... (BOCK, FURTADO, TEIXEIRA, 1998).

Além disso, o fato de a globalização fazer parte da sociedade contemporânea,

favorecendo a diversificação de identidades, faz com que os indivíduos, sujeitos ativos

dessa sociedade, tenham sua identidade, muitas vezes, fragmentada, tendo ou fazendo

parte de várias identidades. Casos que se assemelham a essa dissociação da identidade

consciente do “eu”, são os dos povos indígenas brasileiros que vivem um momento

especial da sua histórica no período pós-colonial, visto que após os 500 anos de

massacre, submissão, escravidão e repressão cultural, vivem mais livremente sua

cultura, de forma que possam reiniciar e retomar projetos sociais, éticos e identitários.

Assim, a cultura e a tradição estão, de certa forma, sendo resgatadas e valorizadas pelos

seus verdadeiros donos, possibilitando a preservação da sua identidade.

A identidade, segundo Strey (2008, p. 165), “é apreendida através da(s) representação

(ções) de si em resposta à pergunta ‘quem és’. [...] é resultado de uma articulação entre

a identidade pressuposta (derivada [...] do papel social), da ação do indivíduo e das

relações nas quais está envolvido concretamente”. Nessa perspectiva, o tema identidade

não é de fácil compreensão e tampouco de respostas simples, principalmente quando o

objetivo é traçar um viés cultural, consequentemente político do indígena, sobretudo,

acentua-se a dificuldade, em relação à questão da identidade feminina, objetivo deste

estudo.

Page 3: OS DES(CAMINHOS) DA IDENTIDADE SOCIAL DAS … · fundamental da identidade brasileira, a qual se caracteriza por possuir, em sua base, e ssa singularidade afro, indígena e luso -europ

Interletras, volume 3, Edição número 19. Abril, 2014/Setembro, 2014 - p

3

Mencionar o assunto identidade feminina implica, de forma mais geral, adentrar no

direito à cidadania e no direito de viver de forma plena como mulher, o que para a

indígena é uma questão urgente, pois essa situação está ligada com a sua própria

sobrevivência e a de seu povo, uma vez que ela é a geradora dos filhos e a responsável

pela transmissão de sua cultura, sendo esta uma função política de suma importância

para a sobrevivência e consolidação identitária das nações indígenas.

Pesquisar os des(caminhos) da identidade social da mulher é o objeto maior dessa

pesquisa que, além disso, pretende, respectivamente, divulgar essa reflexão teórica no

meio acadêmico a fim de destacar, novamente, a importância do papel social

desempenhado pela mulher indígena frente a sua comunidade e a sua realidade local.

1 REVISÃO DE LITERATURA

1.1 MULTICULTURALISMO, IDENTIDADE E DIFERENÇA: UM PANORAMA

TEÓRICO SOBRE A DIVERSIDADE

Falar em multiculturalismo significa lançar mão do conceito de identidade, ou seja,

reconhecer, para nós mesmos, o que de fato somos e a que comunidade sociocultural

pertencemos, ou seja, perceber nossos gostos, costumes, preferências, atitudes valores,

corpos e, ao mesmo tempo, como partilhamos, com os demais membros desta

comunidade, tais aspectos culturais. Assim, temos duas situações interessantes na

constituição da identidade do eu: de uma lado, como nos percebemos em meio aos

outros que também integram a comunidade a que pertencemos; de outro, como nos

vemos frente à comunidade em geral (fora do nosso grupo de convívio).

Nessa perspectiva, a identidade está sendo abordada como um processo

sociopsicológico e, por isso, falar em identidade cultural evoca a abordagem não apenas

de sua compreensão como conceito, mas também de outros temas que estão

profundamente conectados a este assunto e que aceitaram que a identidade cultural fosse

observada como categoria central de apreciação.

Essa perspectiva [a da identidade cultural] passa a ser evidente, sobretudo

como resultado da influência de reflexões em torno de temas como

identidade e cultura nacional, raça, etnia, gênero, modernidade/pós-

modernidade, globalização, pós-colonialismo, entre os mais importantes,

dentro do aspecto dos estudos culturais (ESCOSTEGUY, 2001 p. 139,

grifo do autor).

Page 4: OS DES(CAMINHOS) DA IDENTIDADE SOCIAL DAS … · fundamental da identidade brasileira, a qual se caracteriza por possuir, em sua base, e ssa singularidade afro, indígena e luso -europ

Interletras, volume 3, Edição número 19. Abril, 2014/Setembro, 2014 - p

4

Assim, quando se menciona a sociedade contemporânea, outros aspectos e ações

favorecem e estimulam outro enfoque da identidade social e cultural, sobretudo para a

comunidade jovem que esta a procura de sua “tribo”. Tal situação ocorre nem processo

de fora para dentro, ou seja, constitui-se de vivencias e preferencias que determinados

grupos assumem e acabam por construir uma identidade comum aos membros que o

compõem. Instaurando, assim, uma “raiz” que dá origem às tribos urbanas.

Essa situação ocorre em todos os segmentos em que a inter-relação social e,

consequentemente, cultural acontece. Nesse sentido, o mesmo ocorre com as “tribos

indígenas” e, nelas, com as mulheres que lá habitam.

Esse contexto de diversidades culturais traz à tona a questão que é o cerne desta seção, o

multiculturalismo, que é, em sua essência, o processo de reconhecimento das diferenças,

da individualidade de cada membro de uma comunidade, sociedade, país.

Seguinte esse viés, percebemos uma situação interessante, pois se defendemos a tese de

que todos os indivíduos têm o mesmo direito e, ao mesmo tempo, falamos em

diferenças, parece incoerente. No entanto, quando defendemos a igualdade, estamos nos

referindo ao direito perante a lei, ou seja, é a igualdade que temos assegurada na

Constituição de 1988. Quanto às diferenças, as quais o multiculturalismo menciona, são

referentes às diferenças de valores, de costumes etc., posto que se trata de indivíduos de

raças diferentes entre si. Conforme podemos verificar no discurso abaixo,

A ascensão do multiculturalismo no Brasil remonta ao período de

redemocratização política vivenciado pelo País no final da década de 80,

marco inaugural do Neoconstitucionalismo brasileiro (BARROSO, 2007, p.

206) e seus valores de sociedade plural. A derrocada do regime militar, o

movimento das diretas já, a eleição de Tancredo Neves para a presidência da

república e a instauração da Constituinte em 19877, gerou um forte clamor

social por valores democráticos e proteção aos direitos fundamentais da

pessoa humana, tão aviltados pela ditadura militar. Este panorama acabou por

dar voz às parcelas marginalizadas da sociedade, que viam a possibilidade de

lutar por seus interesses, exigindo condições de igualdade e de dignidade

(HOLTER; SILVA, ano, p.9).

As autoras acima referenciadas fazem menção ao direito que os diversos povos, que

vivem em situações culturais distintas e que trazem sua herança cultural consigo, se

autoidentificam como uma fração diferenciada da sociedade, tem. Dizem ainda que

todos os povos têm direito à

preservação de sua singularidade sociocultural, posto que sem ela, perderiam

sua identidade enquanto povo, fator indissociável da preservação de sua

dignidade humana. Neste aspecto particular, por volta da década de oitenta,

em reconhecimento dos direitos das minorias étnicas à diferença,

paulatinamente os países latino-americanos passaram a se auto-intitular

sociedades pluriculturais e multiétnicas, inserindo em seus textos

Page 5: OS DES(CAMINHOS) DA IDENTIDADE SOCIAL DAS … · fundamental da identidade brasileira, a qual se caracteriza por possuir, em sua base, e ssa singularidade afro, indígena e luso -europ

Interletras, volume 3, Edição número 19. Abril, 2014/Setembro, 2014 - p

5

constitucionais direitos e garantias em prol da conservação da singularidade

cultural dos povos indígenas que congregam (HOLTER; SILVA, ano, p.23).

É interessante destacar que o convívio multicultural não deveria apresentar dificuldade,

uma vez que a nossa sociedade brasileira deriva da mistura de raças, cada uma com suas

características. Como também é formada pela adaptação dessas culturas umas às outras,

numa fusão quase perfeita. Dessa combinação, surge o indivíduo que não é branco nem

índio, tampouco é negro, mas, sim, cidadão de um país, o Brasil.

Nesse sentido, a identidade é o conjunto de caracteres próprios e exclusivos com os

quais se podem diferenciar pessoas, animais, plantas e objetos inanimados uns dos

outros. Nessa afirmativa, urge que se lance mão, a fim de completá-la, do conceito de

identidade cultural, que se caracteriza pelo sentimento de identidade de um grupo ou

cultura, ou de um indivíduo, na medida em que ele é influenciado pela sua pertença a

um grupo ou cultura. Segundo Hall (2003, p. 54),

uma identidade cultural enfatiza aspectos relacionados a nossa pertença a

culturas étnicas, raciais, linguísticas, religiosas, regionais e/ou nacionais. Ao

analisar a questão, este autor focaliza particularmente as identidades culturais

referenciadas às culturas nacionais. [...] as culturas nacionais produzem

sentidos com os quais podemos nos identificar (grifo do autor) e constroem,

assim, suas identidades. Esses sentidos estão contidos em estórias, memórias

e imagens que servem de referências, de nexos para a constituição de uma

identidade da nação [...]. [...] vivemos atualmente numa “crise de identidade”

que é decorrente do amplo processo de mudanças ocorridas nas sociedades

modernas. Tais mudanças se caracterizam pelo deslocamento das estruturas e

processos centrais dessas sociedades, abalando os antigos quadros de

referência que proporcionavam aos indivíduos uma estabilidade no mundo

social. A modernidade propicia a fragmentação da identidade. [...] as

paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade

não mais fornecem “sólidas localizações” para os indivíduos. O que existe

agora é descentramento, deslocamentos e ausência de referentes fixos ou

sólidos para as identidades, inclusive as que se baseiam numa ideia de nação.

Assim, podemos dizer que identidade é a igualdade completa, e que a identidade

cultural é um adjetivo de e do saber. Logo, a junção das duas palavras produz o sentido

de saber se reconhecer. Muitas questões contemporâneas sobre cultura se relacionam

com questões sobre identidade. Assim, as reflexões sobre a identidade cultural acabam

influenciadas por questões sobre: lugar, gênero, raça, história, nacionalidade, orientação

sexual, crença religiosa e etnia.

Na percepção individual ou coletiva da constituição da identidade, a cultura exerce um

papel principal para delimitar as diversas personalidades, os padrões de conduta e ainda

as características próprias de cada grupo humano. Essas situações são recorrentes na

Page 6: OS DES(CAMINHOS) DA IDENTIDADE SOCIAL DAS … · fundamental da identidade brasileira, a qual se caracteriza por possuir, em sua base, e ssa singularidade afro, indígena e luso -europ

Interletras, volume 3, Edição número 19. Abril, 2014/Setembro, 2014 - p

6

comunidade indígena, sobretudo para as mulheres. Assim para este “grupo de mulheres

indígenas”, a questão de identidade é uma urgência, pois é ela que tem a função de gerar

seus filhos, e transmitir a cultura do seu povo de geração por geração; fato que traz uma

responsabilidade muito grande a estas mulheres. A mulher indígena luta pela

identidade, e pela transmissão dessa identidade para a sua comunidade.

Nessa perspectiva, Featherstone (1997) diz que, em contraste com as perspectivas de

assimilação ou a de mistura de raças e culturas – modelos estes em que a identidade era

vista como algo fixo, de essência individual –, existe um reconhecimento cada vez

maior de que as pessoas possuem múltiplas identidades.

Portanto, identidade nacional, direito de todo cidadão brasileiro, é o somatório de

valores culturais resultantes da vivência, ou seja, caracterizado por um traço que permita

a definição de um perfil multidimensional baseado em indivíduo, território, instituições,

línguas, costumes, religião, história e futuros comuns, como a situação dos indígenas do

país.

1.2 REPRESENTAÇÃO SOCIAL E IDEOLÓGICA DA MULHER

Inicia-se esta seção destacando a diferença e a oposição aos substantivos mulher e

homem. Destacando que o substantivo homem, considerado neutro, é utilizado para

nomear e definir humanidade. Assim, a mulher brasileira pode ser entendida como a

outra em relação ao homem brasileiro, tendo na sua base identitária esta relação.

Segundo Barbosa (2010, p. 45), pode-se traçar uma

trajetória histórica da construção cultural da mulher brasileira, [...] e nesse

contexto, pode-se dizer que cabia à mulher seguir papéis a ela destinados,

ajustando-se às características de sua cultura. Do início do processo de

colonização ao final do século XIX a mulher brasileira não tinha acesso ao

capital cultural, recurso de poder relacionado à posse do conhecimento e de

informações.

Nessa situação, “a identidade feminina é um processo” (Gardiner, 1981, p. 342) que

ajuda a iluminar as diferentes características de vida das mulheres. “Assim, podemos

dizer que uma parcela da formação da identidade da mulher brasileira acontece, de

forma recorrente, no seu discurso, uma vez que é nele que se constrói o sujeito”

(FOUCAULT, 1995, p. 244). Nesse sentido, temos que a formação discursiva

caracteriza-se por ser um conjunto de enunciados relacionados ao mesmo sistema de

regras, historicamente determinadas, que, para Foucault (1995), as coisas só passam a

existir quando são construídas pela sociedade que as concebe através do discurso.

Page 7: OS DES(CAMINHOS) DA IDENTIDADE SOCIAL DAS … · fundamental da identidade brasileira, a qual se caracteriza por possuir, em sua base, e ssa singularidade afro, indígena e luso -europ

Interletras, volume 3, Edição número 19. Abril, 2014/Setembro, 2014 - p

7

Assim, a mulher se constitui a partir de uma construção discursiva que a coloca sempre

como inferior, subalterna.

Contudo, há de se pontuar que o mesmo discurso que a coloca como inferior, pode

colocá-la numa esfera menos desprivilegiada. Assim, a mulher, ao longo dos anos, foi e

está construindo um discurso próprio, que resulta numa identidade positiva, o que pode

ser notado nas obras literárias ainda no período colonial que sempre retrataram a mulher

como submissa, obediente aos padrões culturais de sua época e que, neste momento,

pode ser identificado no especial “Gabriela Cravo e Canela”, de Jorge Amado. Nessa

obra, a imagem da mulher brasileira, em especial a nordestina, surge desejosa de sexo e

de agradar o masculino; é difundida com muita força mundo afora, já que Jorge Amado

teve seus livros traduzidos para diversos idiomas.

Nessa perspectiva, eis que surge necessidade de esclarecer alguns aspectos quanto à

diferença de gênero que determina, em algumas situações, a formação ideológica da

mulher e a sua função desempenhada na sociedade, principalmente no que se refere às

mulheres indígenas.

Dessa forma e considerando as diferenças que caracterizam os seres humanos, a

sociedade acaba tornando-se um mosaico plural, multicultural, em que o Estado,

enquanto instituição organizadora, busca gerir as diferenças e busca assegurar a coesão

social, conforme previsto no Art. 5º, da Constituição Federal de 1988: “todos são iguais

perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos

estrangeiros residentes no País, a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à

igualdade, à segurança e à propriedade”.

Nesse sentido, é possível perceber, a partir da histórica, que as relações de gênero e raça

têm uma estreita ligação com a cidadania, os quais tiveram uma ascendência,

juntamente com os movimentos sociais, na década de 70. Nesse período, foi projetada,

no cerne da sociedade, uma nova concepção de cidadania, baseada no trabalho, na vida

e na luta social (MORAES, 2005). Ou seja, uma sociedade que visa enfrentar os

problemas cotidianos da coletividade, da exploração, da miséria, da desigualdade social.

Acentuam-se, ainda, as lutas pelos direitos sociais e a palavra gênero passa a ganhar

espaço e a ser usada com mais frequência. Segundo Moraes (2005, p. 11-12), no

“Manual de Formação em Gênero da Oxfam” , “a palavra gênero foi usada na década de

70, por Ann Oakley e outros autores, no intuito de descrever aquelas características de

mulheres e homens que são socialmente determinadas, em contraste com aquelas que

são biologicamente determinadas”. Ou seja, nas palavras de Oakley (1972) apud

Moraes (2005, p. 11-12),

essencialmente, a distinção entre sexo e gênero é feita para enfatizar que

tudo que homens e mulheres fazem, tudo que é deles(as) esperado – com

Page 8: OS DES(CAMINHOS) DA IDENTIDADE SOCIAL DAS … · fundamental da identidade brasileira, a qual se caracteriza por possuir, em sua base, e ssa singularidade afro, indígena e luso -europ

Interletras, volume 3, Edição número 19. Abril, 2014/Setembro, 2014 - p

8

exceção das funções sexualmente distintas (gestação, parto, amamentação,

fecundação) – pode mudar, e muda, através do tempo e de acordo com a

transformação e a variação de fatores socioculturais.

Segundo a mesma autora, as pessoas tem a distinção entre gêneros, ou seja, são machos

ou fêmeas e aprendem com os grupos sociais a tornarem-se meninos e meninas, homens

ou mulheres. São ensinados, no dia a dia, comportamentos, atitudes e relacionamentos

adequados, papéis e atividades de meninas e de meninos.

2. A MULHER INDÍGENA E A SUA REPRESENTAÇÃO

Continuando nossas reflexões acerca da identidade da mulher indígena e da sua

representação frente a sua comunidade, pontuaremos novamente alguns aspectos

referentes à diferença de gênero na comunidade indígena, uma vez que este tema é de

extrema importância para os des(caminhos) da identidade da mulher, mas

especificamente para a mulher indígena que, de certa forma, parece ser menos

privilegiada quanto às mulheres não indígenas.

Percebemos que a discussão acerca da diferença de gênero é bastante ampla e, por isso,

focaliza-se para a discriminação da mulher indígena na sua sociedade e na sociedade em

geral, demonstrando como estes fatos prejudicam a manutenção da identidade desta

mulher indígena.

Muitos trabalhos vêm sendo desenvolvidos na Universidade Federal da Grande

Dourados, mais especificamente, pelo curso de História, na pós-graduação, mestrado.

Uma das pesquisas que versam sobre as imagens femininas mostradas nos jornais sul-

mato-grossenses, sobre sua identidade, traz dados interessantes sobre como as

informações divulgadas pelos jornais mostravam a mulher indígena como

biologicamente frágeis em relação aos homens, devendo, portanto, estar submetida a

eles. Considerando que estas possuem certas características inerentes ao sexo feminino,

como maior sensibilidade, ternura, intuição, o seu lugar é no aconchego do lar e suas

tarefas devem ficar restritas ao cuidado com os filhos e com as tarefas domésticas.

Esse modelo era reproduzido nos veículos de comunicação e parece que até hoje

continua sendo assim, basta que tomemos como exemplo o filme “Terra Vermelha”,

uma co-produção entre o Brasil e a Itália que concorreu ao Leão de Ouro no Festival de

Veneza em 2008, de Marco Bechis, é um drama ficcional que tem muito de documental,

ao retratar os dilemas dos índios guarani-kaiowás do Mato Grosso do Sul em sua luta

por território.

Na narrativa fílmica, chama a atenção o comportamento da mulher indígena, pois se tem

a impressão de que os mesmos aspectos relatados na pesquisa de Carlos Alexandre

Page 9: OS DES(CAMINHOS) DA IDENTIDADE SOCIAL DAS … · fundamental da identidade brasileira, a qual se caracteriza por possuir, em sua base, e ssa singularidade afro, indígena e luso -europ

Interletras, volume 3, Edição número 19. Abril, 2014/Setembro, 2014 - p

9

Barros Trubiliano (2007), oriundos da década de 40 e 50, são os mesmos, uma vez que a

história começa com a crise provocada pelo suicídio de duas jovens índias, devido ao

desespero de uma aldeia confinada a um território extremamente limitado, sem opções

econômicas ou profissionais para os seus habitantes.

Torna-se evidente, no decorrer do filme, que a mulher é a provedora do sustento

alimentar de sua família, enquanto que a ala masculina, em função de tradicionalismo

da comunidade, entende que deve proteger sua prole. O que se torna extremamente

interessante é que enquanto a mulher vem ganhando espaço na sociedade e

consolidando a sua identidade, a mulher indígena parece estar inerte nesse processo, ou

seja, não há evolução, não há valorização e consequentemente sua identidade, enquanto

mulher indígena, está comprometida.

Com o intuito de fortalecer a tese de que a mulher indígena parece estar inerte à

evolução social, ou seja, desencaminhada quanto a uma consolidação identitária, faz-se

importante pontuar alguns aspectos referentes à importância da cultura na construção

da identidade, sobretudo da mulher. Buscamos fazer, então, uma reflexão teórica sobre

aspectos que podem trazer à tona a necessidade de resgatar os costumes e as tradições

do grupo indígena e, consequentemente, da mulher indígena, que trata diretamente da

manutenção da identidade de sua comunidade.

Assim, retomando alguns aspectos quanto à questão cultural, na visão sociológica,

cultura é definida como os aspectos da sociedade humana que “são antes aprendidos do

que herdados. [...] são compartilhados por membros da sociedade e tornam possível a

cooperação e a comunicação. Formam o contexto comum em que os indivíduos numa

sociedade vivem as suas vidas” (GIDDENS, 2006, p.38). Ou seja, a cultura permite que

sejam divididas e compreendidas, em um contexto cooperativo, as ideias, as crenças, as

normas, as regras etc. de uma comunidade, de um povo. E as formas de organização

desse povo se constituem por meio da comunicação e do entendimento das tradições

transmitidas e incorporadas de geração em geração, possibilitando, dessa forma, a

consolidação de uma identidade.

Nesse sentido, a construção da identidade de um povo pode se constituir por meio de

antecedentes históricos da sociedade a qual pertence. Além disso, na formação e

identificação do plano da identidade de um indivíduo, são considerados aspectos

referentes à história de vida, sonhos, fantasias, características de personalidade,

heranças parentais etc. (BOCK; FURTADO; TEIXEIRA, 1998).

Ainda, o fato de a globalização fazer parte da sociedade contemporânea, favorecendo a

diversificação de identidades, faz com que os indivíduos, sujeitos ativos desta

sociedade, tenham sua identidade muitas vezes fragmentada, tendo ou fazendo parte de

várias identidades, como no caso dos povos indígenas que, atualmente, passam por um

momento especial da sua história, visto que está ocorrendo, de certa forma, uma

Page 10: OS DES(CAMINHOS) DA IDENTIDADE SOCIAL DAS … · fundamental da identidade brasileira, a qual se caracteriza por possuir, em sua base, e ssa singularidade afro, indígena e luso -europ

Interletras, volume 3, Edição número 19. Abril, 2014/Setembro, 2014 - p

10

dissociação da identidade consciente do “eu”, graças à inserção de novas culturas nas

reservas indígenas.

Um dos fatores da aculturação é o fato de, muitas vezes, as Reservas Indígenas serem

localizadas muito próximas aos grandes centros/cidades e, ainda, por vezes, de não

possuírem uma quantidade de terra suficiente para a sua população.

Outros fatores que afetam a interferência cultural das Reservas Indígenas são a falta de

condições econômicas enfrentadas pelos indígenas e as poucas perspectivas de ascensão

social na reserva ou fora dela. Em função da falta de estrutura econômica e devido ao

fato de os homens trabalharem como assalariados, em fazendas, no corte da cana-de-

açúcar, longe das reservas, as mulheres, muitas vezes, obrigam-se a vender produtos

(mandioca, milho etc.) ou, dependendo da situação, a pedir, de porta em porta no

perímetro urbano, comida, roupas e outras coisas que possam auxiliar na sua

sobrevivência econômica e a de sua família.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na busca por uma vida melhor, a população indígena sofre em função de não possuir

um direcionamento real para as suas vidas, além disso, precisa enfrentar o preconceito e

a discriminação oriundos da população não indígena, pois, para muitos, ao homem

indígena cabe as seguintes opções: ser cortador de cana ou ser “boia-fria” (grifo nosso).

À mulher, na melhor das perspectivas, estão reservados os serviços domésticos, uma

vez que é vista como suja ou ladra, não podendo servir as casas de alto padrão da

cidade. Com essa pequena descrição da situação enfrentada, muitas vezes, pela

população indígena, é possível pontuar alguns aspectos que culminam para a perda da

identidade cultural desse povo e, sobretudo, para a sua desestruturação social e

emocional.

Nesse conflituoso contexto, em que o choque cultural, aliado à falta de perspectivas e ao

confinamento das populações em pequenas áreas, são ingredientes eficazes para a

desestruturação emocional e, consequentemente, para a aquisição de hábitos não

saudáveis como o consumo de álcool, drogas e também para a prática de suicídios,

considerada caso de saúde pública devido ao excessivo número.

Segundo pesquisas, uma das causas mais evidenciadas para o suicídio é a solidão,

juntamente com os “sentimentos de vergonha que pode levá-los a se matar diante um

vexame público, uma humilhação. Essa reação é pouco comum em outras culturas, mas

na indígena é muito significativa” (Tribuna News, 2008, p. 1).

Assim, a miséria, o alcoolismo, o suicídio, a violência interpessoal afetam

consideravelmente a autoestima da população indígena e, nesse grupo, a mulher ganha

Page 11: OS DES(CAMINHOS) DA IDENTIDADE SOCIAL DAS … · fundamental da identidade brasileira, a qual se caracteriza por possuir, em sua base, e ssa singularidade afro, indígena e luso -europ

Interletras, volume 3, Edição número 19. Abril, 2014/Setembro, 2014 - p

11

destaque pelas suas responsabilidades frente à estruturação cultural, social e psicológica

da comunidade indígena, pois passa a maior parte do tempo na aldeia. Dessa forma,

podemos perceber, muitas vezes, que a sociedade indígena é governada pelos homens.

No entanto, cabe à mulher fomentar a harmonia cultural, por vezes sem preparo

psicológico, para a sua comunidade. Assim vemos que ainda são nebulosos os caminhos

na construção da identidade social da mulher indígena, provocando, com isso, os

des(caminhos), como bem definiu o antropólogo Roberto Cardoso de Oliveira.

REFERÊNCIAS

A cada 12 dias um índio se suicida em Mato Grosso do Sul. Disponível em

http://www.skyscrapercity.com/showthread.php?t=605053. Acessado em 08 de junho

de 2010, às 9horas.

BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 1998.

BOCK, Ana M.; FURTADO, Odair; TEIXEIRA, Maria de Lourdes T. Psicologias:

uma introdução ao estudo de psicologia. São Paulo: Saraiva 1998.

CARDOSO, R. de Oliveira. Os (des)caminhos da identidade. Revista Brasileira de

Ciências Sociais, 2000, 15(42), 7-21.

Constituição Federal de 1988: Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos.

FEATHERSTONE, M. O Desmanche da cultura: globalização, pós-modernismo e

identidade. São Paulo: Studio Nobel, Sesc, 1997.

FOUCAULT, Michel. “O Sujeito e o Poder”. In.: RAJCHMAN, John. Foucault: a

liberdade da filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.

GARDINER, Judith Kegan. “On Female Identity and Writing by Women” In.: Critical

Inquiry vol. 8, 1981, p. 347-361.

GIDDENS, Anthony. Sociologia. Porto Alegre: Artmed, 2005.

HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: DP & A

Editora, 2003.

Page 12: OS DES(CAMINHOS) DA IDENTIDADE SOCIAL DAS … · fundamental da identidade brasileira, a qual se caracteriza por possuir, em sua base, e ssa singularidade afro, indígena e luso -europ

Interletras, volume 3, Edição número 19. Abril, 2014/Setembro, 2014 - p

12

HALL, Stuart [et al]. Da diáspora: Identidades e mediações culturais. Belo Horizonte:

Editora UFMG; Brasília: Representação da UNESCO no Brasil, 2003a.

HOLDER, Julianne & SILVA, Maria dos Remédios Fontes. Proteção à identidade

indígena e quilombola: uma análise à luz do multiculturalismo e da abertura

constitucional. Disponível em

C:\Users\Márcia\AppData\Local\Microsoft\Windows\Temporary Internet

Files\Content.IE5\UITAHERV\149-1373-1-PB[1].pdf. Acessado em 25 de julho de

2012.

MINAYO,M.C.S. O Desafio do Conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 2. ed.,

São Paulo: Hucitec/ Abrasco, 1999.

MORAES, Eunice Lea de. Construindo identidades sociais: relação gênero e raça na

políca pública de qualificação social e profissional. Volume I, Coleção Social e

Profissional. Brasília, 2005. Disponível em

http://www.mte.gov.br/pnq/relacao_genero_raca.pdf. Acessado em 10 de novembro de

2009.

Mulheres Indígenas. Disponível em http://www.jovensindigenas.org.br/mulheres-

indigenas. Acessado em 08 de junho de 2010, às 15horas.

TRUBILIANO, Carlos Alexandre Barros. Imagens femininas nos jornais Mato-

Grossenses (1937-1945): identidade e controle social. 125 páginas. Dissertação –

Curso de História da Universidade Federal da Grande Dourados. Dourados, 2005.