ideias infantis sobre escrita

Upload: sandro-pina

Post on 17-Jul-2015

170 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

PARTE I

O que as crianas sabem

CAPTULO 1

Idias infantis sobre a escrita

Emilia Ferreiro e Ana Teberosky (1979) dedicaram-se pesquisa do pensamento infantil sobre a leitura e a escrita (tambm Ferreiro e Gmez Palacio, 1982). Evidentemente, elas tinham muitas e boas idias prvias sobre o tema. Para nos situarmos rapidamente, vejamos apenas duas delas: 1. A criana no se depara com a linguagem escrita no primeiro dia de escola. Na realidade em que se movimenta s vezes mais, s vezes menos , h, de qualquer forma, muita escrita. Que idias ela pode ter sobre isso? 2. Sempre avaliamos o que a criana sabe sobre a linguagem que lhe ensinada na escola. Por que no avaliar o que a criana sabe sobre a escrita independente do que a escola ensina? Para isso, as autoras situaram-se numa perspectiva gentica, evolutiva, considerando, tambm, o que se sabe sobre o pensamento infantil, a psicologia da educao, a lingstica e a psicolingstica, etc. Em sua pesquisa, descobriram o processo pelo qual as crianas constroem seu prprio sistema de escrita e de leitura. E esse processo universal no que se refere a escritas alfabticas como as nossas, independente dos mtodos escolares utilizados ou, inclusive, antes do ensino escolar. Essa pesquisa questionava profundamente os mtodos escolares tradicionais e levou a novas perguntas sobre como ensinar a linguagem escrita na escola, s quais tentaremos dar respostas na segunda parte e ao longo da apresentao destes Materiais. O processo de aprendizagem da escrita o seguinte:

ESCREVER NO A MESMA COISA QUE DESENHAR O mundo que rodeia a criana , tambm, um mundo grfico. Elas vem objetos reais e representaes e signos diversos. A primeira diferenciao que estabelecero refere-se distino entre os desenhos, por um lado, e outros signos, como letras, nmeros, grafias diversas, etc. Na

28

COMO AS CRIANAS APRENDEM E COMO O PROFESSOR PODE ENSIN-LAS A ESCREVER E A LER

realidade, a maioria das crianas, ao chegar escola, j estabeleceu a diferena entre desenhar e escrever, mas no todas.

Escrita de uma lista de animais (Gemma, trs anos)

GRAFISMOS PRIMITIVOS: RABISCOS, PSEUDOLETRAS As primeiras tentativas infantis ao escrever produzem alguns signos que j no so desenhos..., mas tampouco letras convencionais. So grafias que tentam se parecer com as letras, com maior ou menor sucesso:

ESCREVER E LER I

29

Escritas de listas de palavras (Mart, Mnica, Joan e Robert, trs e quatro anos)

DIFERENAS ENTRE LETRAS E NMEROS A criana logo notar que existem dois tipos de signos grficos, alm dos desenhos: letras e nmeros. No comeo, usam-nos indistintamente:

Escrita de uma lista de brinquedos (Carmen, quatro anos)

30

COMO AS CRIANAS APRENDEM E COMO O PROFESSOR PODE ENSIN-LAS A ESCREVER E A LER

A essa altura, a criana j sabe que para escrever so necessrios determinados signos, que no so desenhos nem nmeros. Sobre esses signos, ela pode ter determinadas idias adicionais. Essas idias podem referir-se forma das letras mais ou menos convencionais , ao alinhamento horizontal do que se escreve ou, ainda, orientao esquerda/direita. Esses aspectos convencionais da escrita vo sendo adquiridos ao escrever, paralelamente, aprendizagem das leis da escrita. So conhecimentos que se aprendem ao escrever.

ESCRITAS SEM CONTROLE DE QUANTIDADE Uma vez que as crianas j sabem que para escrever se usam signos especiais, propem-se o problema de como podem escrever diferentes coisas. Em algumas crianas no em todas , aparece um momento evolutivo em que as escritas ocupam toda a largura da pgina:

Escrita dos nomes dos personagens de um conto (Glria, quatro anos)

Ou, pelo contrrio, basta pr uma s letra por palavra, embora, s vezes, a fria de escrever leve-as a preencher a linha:

Escrita de listas de nomes (Eduard, quatro anos)

ESCREVER E LER I

31

ESCRITAS FIXAS Com esta bagagem, a criana j pode escrever qualquer coisa, ou seja, representar mediante signos especficos os nomes das coisas, das pessoas, etc. Trata-se de uma autntica escrita, com leis pessoais, no-comunicvel, a no ser com a ajuda da palavra. Mas que nossa escrita tambm no comunicativa para ela: escrevemos alguns signos incompreensveis para ela, mas que adquirem significado ao serem lidos: aqui diz... e ficam maravilhados ao ver que nossos rabiscos tm um significado. As crianas no se cansam de nos pedir: o que diz aqui?. Nestas primeiras tentativas de escrita, pode ser que a criana ainda no tenha percebido a diferenciao que ns, adultos, fazemos entre as palavras: escrevem o mesmo conjunto de signos para qualquer coisa:

Escrita de lista de nomes prprios (Lorena, quatro anos)

Algumas crianas, por exemplo, utilizam seu prprio nome para tudo, uma espcie de senha universal, que serve para escrever qualquer coisa imaginvel.

ESCRITAS DIFERENCIADAS As escritas das crianas adquirem rapidamente novas diferenciaes: as crianas escrevem palavras longas e curtas; letras grandes e pequenas, variando segundo critrios estabelecidos. Inclusive tm idias muito pessoais e interessantes sobre a gramtica do escrito.

As palavras se diferenciam segundo as caractersticas do objeto de referncia Assim, podem escrever partindo da idia de que o nmero de letras de uma palavra ou o tamanho das letras tem relao com o objeto que representam:

32

COMO AS CRIANAS APRENDEM E COMO O PROFESSOR PODE ENSIN-LAS A ESCREVER E A LER

Escrita de nomes de animais: Urso se escreve com mais letras, porque maior do que uma borboleta! (Josep, trs anos)

Ou ento, neste outro exemplo, duas bolas iguais so escritas da mesma maneira. Mas se a bola maior, merece mais letras. Uma lgica arrasadora:

Bolas pequenas e grandes (Pilar, trs anos)

ESCREVER E LER I

33

Ou, para escrever o plural, utilizam o recurso de repetir a palavra tantas vezes quanto o nmero de objetos ao qual o plural se refere:

Escrita de casa e seu plural casas (Alba, quatro anos)

Diferenciao na quantidade, na ordem ou na variedade de letras Ou podem ainda introduzir mudanas ao escrever diferentes palavras, mediante a variao do repertrio de letras utilizadas ou introduzindo mudanas e diferenciaes quanto ordem ou quantidade das letras em cada palavra. Na escrita de nomes, nota-se claramente. Vejamos este exemplo: Jordi (quatro anos) escreve todas as palavras com a mesma quantidade de letras, mas introduz mudanas na variedade e na ordem das mesmas:

34

COMO AS CRIANAS APRENDEM E COMO O PROFESSOR PODE ENSIN-LAS A ESCREVER E A LER

Algo parecido faz Ma. Dolors (trs anos): escreve sempre o mesmo nmero e variedade de letras mais ou menos , mas introduz mudanas na ordem das letras. Alm disso, sente uma verdadeira paixo pelo nmero cinco:

No entanto, Imma (quatro anos) vai-se entusiasmando medida que escreve, cada palavra tem mais letras que a anterior. O [M] e o [I] so naturalmente exclusivos para seu nome.

Neste outro exemplo, aps copiar o ttulo da receita e as primeiras letras dos ingredientes, Vernica lana-se a escrita criativa de palavras, mudando tanto a quantidade de letras como a ordem e a variedade do repertrio de letras de cada palavra. O resultado parece-se bastante com o que os adultos escrevem:

ESCREVER E LER I

35

Escrita da lista dos ingredientes de uma receita (Vernica, quatro anos)

ESCRITAS SILBICAS Tarde ou cedo geralmente em grande velocidade , as crianas vo descobrindo que nossa forma de escrever no regida por estes princpios ideogrficos. Isso as leva... a inventar a escrita silbica: cada letra representa um som. Como a unidade de som que se percebe a slaba, cada slaba representada por uma letra ou uma grafia. Em alguns casos, excepcionais em nossas escolas, a escrita silbica representada com desenhos esquemticos. Vimos crianas que escrevem assim: 0000 00 000 ma-ri-po-sa ti-gre ja-ne-la

Ou, em vez de crculos, podem pr traos como um I maisculo, letras ou outros signos, mas jamais se enganam em pr tantos signos quantas slabas tem a palavra. No o habitual, porque j viram e conhecem muitas letras. Quais so as letras que se usam para representar as slabas? Naturalmente, as crianas quase sempre escolhem as vogais. Apesar de nunca terem visto uma palavra assim, e apesar de que seu nome, e o dos colegas, e o de muitas outras palavras que conhecem se escreverem com mais letras e com consoantes, etc., elas escrevem assim: AIOA ma-ri-po-sa IE ti-gre EAA ja-ne-la (ventana, em espanhol) maravilhoso: podem escrever qualquer palavra que lhes propusermos ou que queiram escrever. Nabucodonosor? Faclimo: AUOOOO. Constantinopla? OAIOA. Mamfero? AIEO. Podem escrever, inclusive, longussimos contos na escrita silbica (Mara, cinco anos).

36

COMO AS CRIANAS APRENDEM E COMO O PROFESSOR PODE ENSIN-LAS A ESCREVER E A LER

TRANSCRIO DIRETAlA CapUtxEtA vArmELLa hI hAvIA UnAA nEnA CA eS dEIA CapUtxEtA / lA MarA lI vA dIr Ca pUrTeS Al mAnjAr a lAvIA / Se vA trUbAr Al llOP pAl Cam_/ I lI vA dIr CA Passs pAl Cam_/ I lA vA AnganyA / I eL llOp va ArrIbAr prIMer / Al llOp vA MenjAr lAvIA / eS vA pUSar A lA cAmA / I ArrIbA lA CapUtxEtA /I tAmb Al Llop vA mAnjAr CapUtxEtA.

TRADUOHavia uma menina que se chamava Chapeuzinho / a me lhe disse que levasse comida para a vov / ela encontrou o lobo pelo caminho / e lhe disse que passasse pelo caminho / e a enganou / e o lobo chegou primeiro / o lobo comeu a vov / se deitou na cama / e chegou Chapeuzinho / e o lobo tambm comeu Chapeuzinho.

ESCREVER E LER I

37

Ou pode-se escrever todo tipo de notcias, como esta dupla de meninos de quatro anos:

TRANSCRIO DIRETADIumEnjA As vA fEr eL mUndIAl fOrmUlA U / ManseLl vA gUanyAr/ vA plOUrA mOLt / FLIX / JOSEP MANEL

TRADUODomingo se fez o Mundial de Frmula Um / Mansell ganhou / Choveu muito / FLIX / JOS MANUEL

No entanto, cada um no seu ritmo, logo descobrem que a escrita no deve funcionar assim. Por um lado, quando vem e lem escritas adultas, contos, por exemplo, as palavras no esto escritas desse modo. Por outro lado, h conflitos que aparecem em seguida.

38

COMO AS CRIANAS APRENDEM E COMO O PROFESSOR PODE ENSIN-LAS A ESCREVER E A LER

Os problemas do escrever 1. O problema dos monosslabos Como escrever SOL? Pela lgica silbica, seria colocado apenas um O. Mas isso muito difcil de aceitar quando se est convencido de que se necessita de mais de uma letra para escrever uma palavra. um conflito cognitivo autntico, que pode ter vrias solues: OO so-ol (duplicar o som para evitar uma letra solitria que ofende o senso comum). Ou ainda OL so-l; ou SO s-ol. Este um dos caminhos possveis para superar-se a hiptese silbica. H outras que aparecem freqentemente. 2. Palavras com todas as letras iguais? BATATA, AAA? Isso no pode ser lido, porque so todas iguais! 3. Palavras diferentes so escritas da mesma maneira? Por exemplo, como possvel que SUCO (U O) seja escrita igual a TUBO, ou PESTANA (EAA) seja escrita igual a SEMANA? Isso tambm ofende o intelecto infantil e leva as crianas a pensar que preciso usar outros critrios. 4. Os nomes prprios no podem ser escritos pela metade Alm do mais, o que acontece ao se escrever o nome de um colega? ALEJANDRO fica furioso quando algum escreve seu nome assim: AEAO. No verdade! Faltam letras! E ANA de modo nenhum concorda com a perda do seu N. 5. As consoantes: uma soluo Finalmente, na slaba [TA] no se ouve apenas o [A]. Vai ver, na turma h uma Tamara ou Tatiana, cuja letra o [T]. De modo que s vezes escrevem o [T], e com isso se discriminam melhor algumas palavras de outras. Algumas crianas, mantendo a hiptese silbica, comeam a escrever com as consoantes. Dessa forma, ASPIRADOR pode-se escrever ADAD, ou AIRO, ou ainda... E pode ser que vejamos RINOCERONTE escrito apenas com consoantes: RNCRT. PLT significa, naturalmente, PELOTA (bola), embora tambm pudesse ser PALETO (grosseiro), mas o mundo no foi feito em um dia. H muitas lnguas no mundo que se escrevem silabicamente mas escrevendo s as consoantes. Por exemplo, o rabe e o hebraico.

ESCRITAS SILBICO-ALFABTICAS Quando se descobre que uma slaba pode ser escrita com a vogal ou com a consoante, acaba-se por escrever ambas. De qualquer forma, o certo que a hiptese silbica uma letra por slaba to potente e satisfatria para as crianas que lhes custa muito renunciar a ela. De modo que transcorre um perodo de tempo em que se combina o critrio silbico com escritas parcialmente alfabticas:

ESCREVER E LER I

39

Escrita de uma legenda de uma foto (Laia, quatro anos) [jULIO IgLESIAS CanTor]

Escrita de um anncio (Gerard, cinco anos)

TRANSCRIO DIRETAGERARD PASTes GALLO PAr FEr CANALOGS I MACaRrOnS

TRADUOGerard Massas Gallo para fazer canelones e macarres

40

COMO AS CRIANAS APRENDEM E COMO O PROFESSOR PODE ENSIN-LAS A ESCREVER E A LER

ESCRITAS ALFABTICAS Por esse caminho, chega-se a escrever todas as letras que ns, adultos, escrevemos para representar uma palavra. ESCOLA j definitivamente ESCOLA. No entanto, aparecem novos problemas de escrita. S/Z, J/G, H, maisculas ou minsculas, a separao de palavras, incluindo os acentos, etc.

[transcrio com ortografia corrigida] EL RUQUET VALENT El ruquet valent porta carga, porta carga. El ruquet valent, porta carga i no sen sent. PAU. [traduo] O burrinho valente leva a carga e no a sente. PABLO.

Escrita de uma cano (cinco anos)

ESCREVER E LER I

41

[transcrio corrigida] EL MANCHESTER PREN LA RECOPA. Jugaven a la ciutat de Roterdamm dHolanda. El Bara i el Manchester. El dimecres 15 de maig. El Bara va perdre 2-1. El Bara (a) la primera part, no reaccionava. En Zubizarreta i lAmor no van poder jugar. En Nando va fer una falta molt gran i el van expulsar. En Marc Hughes va marcar dos gols. En Koeman va fer el primer gol del Bara. [traduo] O MANCHESTER GANHA A RECOPA. Jogavam na cidade de Roterdamm da Holanda. O Bara e o Manchester. O Bara perdeu 2-1. O Bara no primeiro tempo no reagia. Zubizarreta e Amor no puderam jogar. Nando fez uma falta muito grande e foi expulso. Marc Hughes marcou dois gols. Koeman fez o primeiro gol do Bara.Escrita de uma notcia (seis anos)

Vamos repassar todo o processo, como foi-se produzindo em Ana.

ANA: A HISTRIA DE UMA ESCRITA Ana comeou a escolaridade no ano letivo 86-87, na classe de quatro anos. Em meados do ano, em fevereiro, escrevia seu nome corretamente. No entanto, escrevia todas as demais palavras borboleta [papallona]1, esquilo [esquirol], tigre [tigre], gato [gat] e o gato bebe leite [el gat beu llet] com muito pouca diferenciao: mais ou menos a mesma quantidade de letras por palavra, o mesmo repertrio de letras e uma ordem semelhante. Em maio, escrevia de forma muito diferenciada: ampliou muito o repertrio de letras que usa, introduz mudanas na quantidade de letras por cada palavra, etc. Este momento muito interessante, porque a menina comea a introduzir letras que correspondem a fonemas da palavra: papallona PPXTP, tigre TCX, gat CT...2, mas ainda no elaborou uma hiptese de correspondncia silbica entre as letras que escreve e os sons que ouve na palavra. Ao reler o escrito, segmenta a palavra em slabas, mas a cada slaba pode corresponder mais do que uma letra qualquer. Falta-lhe muito pouco para dar o salto para a hiptese silbica. Realmente, em junho, ao terminar o ano, escreve silabicamente e j usa muitas consoantes corretas, porque a discriminao j estava agindo antes. Observe como o monosslabo GAT escrito duplicando as letras: GA-AT GT. Uma rasteira na hiptese silbica que j no precisar ao escrever GAT na frase completa..., mas que repetir ao escrever LLET LLEET LLT.

42

COMO AS CRIANAS APRENDEM E COMO O PROFESSOR PODE ENSIN-LAS A ESCREVER E A LER

A conquista silbica irrevesrsvel, porque um conhecimento significativo que no se esquece. Ao comear o ano seguinte, j escreve as palavras de forma silbico-alfabtica. Observe a escrita de xocolata:3 XO X; CO U (em catalo, pronuncia-se [cu]) LA A e depois repete LA L e, por fim, TA T. No que faa uma inverso psicomotora, seno que repete a slaba e primeiro registra a vogal e, na repetio, registra a consoante, que tambm discrimina e conhece. A correspondncia som/grafia muito correta, com alguma exceo: Galetes parece como Calet(e)s. Em breve, Ana escrever com todas as letras, tal como so pronunciadas:

Notas1 2 3

Entre parnteses, temos as palavras em catalo que aparecem na ilustrao. Ver a escrita da crena na ilustrao. Acompanha a escuta da criana na ilustrao.