ideia, ser objetivo e realidade objetiva em descartes

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KRITERION, Belo Horizonte, nº 130, Dez./2014, p. 669-690 IDEIA, SER OBJETIVO E REALIDADE OBJETIVA NAS “MEDITAÇÕES” DE DESCARTES Raul Landim Filho* [email protected] RESUMO O objetivo deste artigo é responder à questão: a teoria cartesiana das ideias é realista direta ou representacionalista? Para responder a essa questão, analiso as noções de ideia, ser objetivo, realidade objetiva e essência nas “Meditações” de Descartes. Eu procuro mostrar que do ponto de vista da apreensão das essências das coisas externas, Descartes é um realista direto. Mas como algumas provas da existência são inferenciais, eu mostro também que deste ponto de vista a teoria cartesiana é representacionalista. Palavras-chave Realismo direto, representacionalismo, ideia, ser objetivo, realidade objetiva, essência. ABSTRACT My aim in this article is to answer the question: is the Cartesian Theory of Ideas a direct realist or a representationalist theory? To answer this question, I analyze the notions of idea, objective being, objective reality and essence in Descartes’s “Meditations”. I show that, from the point of view of the apprehension of the essences of external things, Descartes is a direct realist. However, since some proofs of the existence are inferential, I also show that, from this standpoint, the Cartesian theory is a representationalist theory. Keywords Direct Realism, Representationalism, Idea, Objective Being, Objective Reality, Essence. * Pesquisador 1A do CNPq e Professor do Programa de Pós-Graduação Lógica e Metafísica do IFCS/UFRJ. Artigo recebido em 17/09/2013 e aprovado em 08/10/2013.

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Ideia, Ser Objetivo e Realidade Objetiva Em Descartes.

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  • kriterion, Belo Horizonte, n 130, Dez./2014, p. 669-690

    IDEIA, SER OBJETIVO E REALIDADE OBJETIVA NAS MEDITAES DE DESCARTES

    Raul Landim Filho*[email protected]

    RESUMO O objetivo deste artigo responder questo: a teoria cartesiana das ideias realista direta ou representacionalista? Para responder a essa questo, analiso as noes de ideia, ser objetivo, realidade objetiva e essncia nas Meditaes de Descartes. Eu procuro mostrar que do ponto de vista da apreenso das essncias das coisas externas, Descartes um realista direto. Mas como algumas provas da existncia so inferenciais, eu mostro tambm que deste ponto de vista a teoria cartesiana representacionalista.

    Palavras-chave Realismo direto, representacionalismo, ideia, ser objetivo, realidade objetiva, essncia.

    ABSTRACT My aim in this article is to answer the question: is the Cartesian Theory of Ideas a direct realist or a representationalist theory? To answer this question, I analyze the notions of idea, objective being, objective reality and essence in Descartess Meditations. I show that, from the point of view of the apprehension of the essences of external things, Descartes is a direct realist. However, since some proofs of the existence are inferential, I also show that, from this standpoint, the Cartesian theory is a representationalist theory.

    Keywords Direct Realism, Representationalism, Idea, Objective Being, Objective Reality, Essence.

    * Pesquisador 1A do CNPq e Professor do Programa de Ps-Graduao Lgica e Metafsica do IFCS/UFRJ. Artigo recebido em 17/09/2013 e aprovado em 08/10/2013.

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    A anlise da teoria das ideias cartesiana tem vrias portas de entrada: as medievais como, por exemplo, a noo de ser objetivo, introduzida por Scotus e tematizada pelo seu discpulo Alnwick, a de conceito formal e de conceito objetivo, difundida por Suarez, e ainda mesmo as anlises modernas como a noo de inexistncia intencional ou de objetividade imanente de Brentano que, inspirada em concepes escolsticas, teve enorme influncia na filosofia do sculo XX.

    neste artigo, no pretendemos realizar um estudo histrico sobre as influncias medievais na teoria cartesiana das ideias nem sobre o impacto e a relevncia dela nos sistemas ps-cartesianos. fato que Descartes retomou e reinterpretou noes escolsticas e por isso mesmo foi fortemente influenciado por elas. Dessa maneira, sua teoria das ideias no s contribuiu para uma valorao retrospectiva de certas teses da filosofia medieval, como tambm trouxe tona questes que se tornaram determinantes para a filosofia moderna. Refiro-me, em particular, questo do acesso ou da percepo do mundo exterior. Quais seriam os objetos imediatos do conhecimento: seriam as coisas fora da mente ou as prprias ideias, no sentido cartesiano do termo ideia? O objeto imediato do intelecto seria o contedo da ideia, aquilo que a ideia exibe na mente? Ou seria a prpria coisa, isto , a coisa tornada objeto para o cognoscente em razo das operaes do intelecto? O Realismo Direto e o representacionalismo1 so interpretaes que do respostas alternativas a essas questes.

    em uma carta Descartes escreve:2

    Pois estando certo que eu no posso ter conhecimento algum do que est fora de mim seno atravs das ideias dessas coisas que tive em mim, eu me preservo [je me garde bien] de relacionar meus juzos imediatamente s coisas e de nada lhes atribuir de positivo que no perceba anteriormente em suas ideias [].3

    1 So diversos os significados que diferentes autores do aos termos Realismo Direto e Represen- tacionalismo. De uma maneira genrica, para o Realismo Direto as operaes envolvidas no ato de apreenso ou de percepo intelectual tm como termo a coisa mesma, que, por ser o termo dessas operaes, tornada, graas a elas, um objeto para o intelecto. Sob este aspecto, a apreenso de objetos seria uma relao didica cujos termos so [i] as operaes do cognoscente e [ii] a coisa mesma, apreendida ou percebida como objeto. Diferentemente do Realismo Direto, o Representacionalismo supe uma relao tridica entre [i] as operaes do cognoscente, [ii] o objeto mental, constitudo por essas operaes, e [iii] a coisa extramental, apreendida ou percebida pela mediao do objeto mental. Vide Michon (2007, p. 154, nota 40); Hoffman (2002, p. 163).

    2 Em geral, citaremos a obra de Descartes na edio standard de C. Adam e P. Tannery, 1964-1974. Ao citar os textos de Descartes, usaremos a seguinte abreviao: AT, seguida do nmero do volume, do ttulo da obra, da pgina e algumas vezes da linha.

    3 AT, III, Carta a Gibieuf de 19 de janeiro de 1642, p. 474.

  • 671IDEIA, SER OBJETIVO E REALIDADE OBJETIVA NAS MEDITAES DE DESCARTES

    primeira vista este texto parece sustentar a interpretao representa-cionalista: mediante as ideias seriam apreendidas as coisas fora da mente. no entanto, as ideias no so consideradas como objetos imediatamente cog-noscveis, mas como meios: se algo apreendido fora de mim, apreen-dido mediante uma ideia. Dessa maneira, o texto no exclui nem corrobora a interpretao representacionalista ou a realista Direta. ele apenas reitera uma tese inquestionvel para o cartesianismo: as ideias, imanentes ao pensa-mento (em mim), so ideias de coisas.4 Mas a questo da natureza das coisas das quais se tm ideias no fica esclarecida: elas seriam entes objetivos que existem intencionalmente no pensamento e permitem o acesso mediato s coi-sas fora da mente ou seriam as coisas mesmas, visadas e apreendidas pelo pensamento, que podem existir independentemente da mente?

    Ao formular uma objeo a Descartes, Caterus, autor das Primeiras ob-jees, explica, segundo sua perspectiva, o significado do termo ideia e o de ser objetivo: O que ser uma ideia? a prpria coisa pensada enquanto ela existe (est) objetivamente no intelecto. Mas o que ser objetivamente no intelecto? Apreendi h muito tempo: terminar o prprio ato do intelecto maneira de um objeto (AT, VII, Primae Objectiones, p. 92; AT, IX-1 Pre-mires Objections, p. 74).

    Na sua resposta, Descartes afirma que no concorda com o significado dado por Caterus noo de ser objetivo: E l ser objetivamente no in-telecto no significar terminar sua operao maneira de um objeto, mas ser no intelecto maneira que os seus objetos tm o costume de a existir (ser) [] (AT, VII, Primae Responsiones, p. 102; AT, IX-1, Premires Rponses, p. 82).

    Caterus parece assumir uma posio caracterstica de uma forma de realismo Direto. Descartes discorda de Caterus. estar discordando do Realismo Direto? Esclarecer as noes ser objetivo e realidade objetiva em Descartes e, em razo disso, responder s questes acima enunciadas, o ob-jetivo desse artigo.5

    4 Ver AT, VII, Meditationes de Prima Philosophia, pp. 35, 37, 41, 42; AT, IX-1, Les Mditations Mtaphysiques, pp. 28, 29, 31, 32; Principia Philosophiae, I, * 48; AT, III, Carta a Mersenne, julho de 1641, pp. 392-393.

    5 Note-se que intrpretes recentes de Descartes continuam a divergir sobre as respostas a serem dadas a essas questes. As divergncias se manifestam na defesa ou na rejeio da interpretao Realista Direta ou Representacionalista. Por exemplo, V. Chappell (1986), P. Hoffman (2002) e M. Ayers (1998) defendem uma interpretao representacionalista. S. Nadler (1998), A. Kermmerling (2004), D. Brown (2007) e Ong-Van-Kung (2012), assumem a interpretao Realista Direta como a mais correta em relao teoria das ideias cartesiana. D. Clemenson (2007) apresenta uma interpretao sui generis, prxima ao Realismo Direto. Essas divergncias de interpretao tm origem seja na ambiguidade da teoria cartesiana, seja

  • Raul Landim Filho672

    Respondendo a duas objees ao Discurso do mtodo, Descartes, no Prefcio edio latina das Meditaes, escreve:

    Mas, eu respondo que nesta palavra ideia h um equvoco, pois ou ela pode ser tomada materialmente por uma operao do meu intelecto e neste sentido no se pode dizer que ela seja mais perfeita do que eu, ou ela pode ser tomada objetivamente pela coisa que representada por esta operao, coisa que embora no se suponha que ela exista fora do meu intelecto, pode, entretanto, ser mais perfeita do que eu, em razo da sua essncia.6 (AT, VII, Meditationes, p. 8)

    Ao pretender eliminar a ambiguidade do termo ideia, Descartes parece ter engendrado uma nova dificuldade: segundo o texto acima citado, ou bem a noo de ideia um ato uno7 decomposto em duas relaes ou em dois aspectos complementares ou bem ideia teria dois sentidos distintos: a operao representativa do intelecto e a coisa pensada. note-se que o termo coisa pensada ambguo. Ele tanto pode significar a coisa fora da mente, visada e percebida pelo intelecto, como pode significar a coisa no intelecto (ser objetivo).8

    Na primeira interpretao do termo ideia, o ato representativo do intelecto pode ser analisado em um duplo aspecto: considerado materialmente, ele analisado em sua relao com o intelecto; considerado objetivamente, ele significa a coisa exibida pela ideia. a operao do intelecto ou a realizao do ato que representativo, pois ele exibe uma coisa que, dessa maneira, se torna uma coisa inteligida ou pensada, isto , um objeto para o intelecto. A coisa exibida pela ideia no precisaria existir fora do intelecto para ser representada como coisa. O que a ideia exibe como coisa, quer exista quer

    no clebre debate entre Arnauld (atualmente interpretado ora como um Realista Direto, ora como um Representacionalista) e Malebranche.

    6 Ver tambm AT, VII, Quartae Responsiones, p. 232; AT, IX-1, Quatrimes Rponses, p. 180. Nesse texto a expresso objetivamente, que ocorre no Prefcio edio latina, substituda pela expresso formalmente: A. Kemmerling, no entanto, distingue o sentido de ideia considerada objetivamente do sentido de ideia considerada formalmente: [...] Descartes introduces another distinction, namely between an idea taken materially and an idea taken formally. An idea is being taken in the formal sense when it is referred to something else, when it is taken to represent something real and positive. Ver A. Kemmerling, 2004, pp. 43-64, em especial, p. 54. No me parece correta esta afirmao de Kemmerling.

    7 Ver AT, III, Carta a Mersenne, 28 de janeiro de 1641, p. 295. Ver tambm Arnauld, 1986, c. 5, Definio 6, p. 44-45: Eu digo que eu tomava como a mesma coisa a percepo e a ideia. necessrio observar que esta coisa, embora nica, tem duas relaes, uma com a alma que ela modifica, outra, coisa percebida enquanto ela est objetivamente na alma [...] no so duas entidades diferentes, mas uma mesma modificao de nossa alma, que envolve essencialmente essas duas relaes.

    8 Vide a caracterizao de ideia numa nota da traduo latina, autorizada por Descartes, do texto original francs do Discurso do mtodo (AT, VI, Dissertatio de Methodo, p. 559): [...] o nome de Ideia tomado em geral por toda coisa pensada, enquanto ela tem somente algum ser objetivo no intelecto. Como se observa, essa caracterizao de ideia no ambgua.

  • 673IDEIA, SER OBJETIVO E REALIDADE OBJETIVA NAS MEDITAES DE DESCARTES

    no, pode ter uma essncia, num sentido minimalista de essncia: no um ente fictcio nem um ente de razo.

    Na segunda interpretao, ideia teria um duplo significado: poderia ser considerada ou bem como a operao representativa do intelecto ou bem como a coisa representada.9 Aparentemente, essa segunda interpretao em pouco difere da primeira. No entanto, por distinguir dois significados de ideia, ela traz tona a questo do estatuto da natureza da coisa pensada. ela seria uma entidade que independe da operao representativa? Obviamente, no h coisa pensada que no seja pensada pelo intelecto; portanto, que no seja exibida pelo pensamento. Mas o objeto do pensamento a coisa no pensamento ou a coisa mesma visada pelo pensamento?

    A segunda interpretao suscita de imediato uma srie de questes que alimentaram e ainda alimentam o debate entre as interpretaes realistas diretas e representacionalistas: qual seria a relao da ideia, enquanto coisa pensada, com a ideia considerada como operao do intelecto? Qual seria a relao da coisa pensada com a coisa, seja esta uma mera essncia ou uma coisa existente? A coisa pensada, a coisa no pensamento, um tertium quid, um intermedirio entre a operao representativa e a prpria coisa ou seria a prpria coisa, apreendida pela operao representativa?

    Na 3 Meditao, aps afirmar que todos os modos do pensamento envolvem ideias e que ideias so pensamentos de coisas,10 o que reala a intencionalidade do pensamento, Descartes caracteriza as ideias como imagens de coisas (AT, VII, Meditationes, p. 37; AT, IX-1, Mditations, p. 29), o que sublinha, desta vez, a funo representativa das ideias.

    Esta ltima caracterizao suscita uma pergunta: a operao ou a coisa no pensamento que exerce a funo representativa? Se a ideia um ato nico, decomposta em dois aspectos complementares, ento seria plausvel afirmar que a operao do intelecto exerce a funo representativa, pois, no seu termo ela exibe uma coisa que, dessa maneira, se torna um objeto para o intelecto. o ato que intelige que representativo e no a coisa inteligida. Sob este aspecto, representar significa exibir ou apresentar uma coisa-objeto para o intelecto. Assim, ao invs de ser considerada como uma espcie de um quadro pictrico ou de um quadro mudo, a ideia como imagens de coisas porque num nico ato visa e exibe coisas para o intelecto.

    9 Ver M. Ayers,1998, p. 1067.10 AT, VII, Meditationes, p. 35; AT, IX-1, Mditations, p. 28. Ver tambm AT, III, Carta a Mersenne de julho

    de 1641, pp. 392-393.

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    Se, no entanto, a ideia tem dois significados distintos, operao do intelecto e coisa no pensamento, seria plausvel, embora no necessrio, considerar a coisa pensada no intelecto como uma imagem inteligvel ou um substituto no intelecto da prpria coisa. A essa hiptese, poderia ser acrescentado outro passo decisivo: a coisa no pensamento poderia ser considerada o objeto imediato11 de cada um dos nossos pensamentos, uma espcie de intermedirio entre a operao do intelecto e a coisa mesma. A interpretao representacionalista estaria, nesse caso, sendo assumida.

    na 3 Meditao, Descartes dar uma resposta provisria s questes acima formuladas. A resposta provisria porque contextual: num quadro ctico e solipsista que na 3 Meditao analisada a noo de ideia. o que nesse contexto pode ser dito sobre as coisas das quais temos ideias? J que a realidade e a existncia de coisas fora ou independentes da mente esto postas em questo pelas dvidas formuladas na 1 Meditao, como explicar o que so as coisas das quais temos ideias? A resposta a esta pergunta tem que levar em conta o contexto em que ela formulada. A indubitabilidade do Cogito, provada na 2 Meditao, se propaga aos atos cogitativos ou aos modos do pensamento (AT, VII, Objectiones Tertiae, Objectio II, Responsio; AT, IX-1, objection ii, rponse). Dentre os diversos modos de pensar, a ideia um modo prioritrio (AT, VII, Meditationes, p. 37; AT, IX-1, Mditations, p. 29), pois todos os outros modos, como, por exemplo, as aes da vontade, envolvem uma ideia. Portanto, indubitvel e verdadeiro que penso em coisas ou que tenho ideias de coisas, mas dubitvel que as coisas das quais tenho ideias independam do pensamento. Da se segue que as coisas das quais temos ideias tm que ser provisoriamente consideradas como coisas no pensamento, pois a existncia delas fora do pensamento dubitvel.

    nesse contexto ctico e solipsista, Descartes explicita a caracterizao de ideia formulada no Prefcio edio latina das Meditaes. Consideradas do ponto de vista da sua realidade formal, as ideias so seres reais e positivos, modos do pensamento e todas parecem proceder da res cogitans da mesma maneira: elas so operaes da mente e, enquanto tais, elas no se diferenciam. Mas, diz o texto latino mas enquanto uma representa uma coisa, outra, outra coisa, evidente que essas mesmas ideias so bastante diferentes umas das outras. (AT, VII, Meditationes, p. 40). A traduo francesa desse texto acrescenta a palavra imagem: as ideias representam coisas porque so imagens de coisas: [] mas, considerando-as (as ideias) como imagens,

    11 Ver AT, VII, Objectiones Tertiae, Objectio V, Responsio; AT. IX-1, Troisimes Objections, Objectio V, Rponse. Nesse texto, Descartes afirma que ideia tudo aquilo que imediatamente percebido pela mente.

  • 675IDEIA, SER OBJETIVO E REALIDADE OBJETIVA NAS MEDITAES DE DESCARTES

    dentre as quais algumas representam uma coisa e as outras uma outra, evidente que elas so bastante diferentes entre si (Descartes, 1962, p. 143, grifo meu). Mas por que seriam imagens?12 em razo de exibirem coisas no pensamento?

    Analisada do ponto de vista do seu contedo ou ideato, a noo de ideia possibilita a introduo de duas noes decisivas: a noo de realidade objetiva e a de ser objetivo. Como j foi dito, as coisas exibidas pelas ideias permitem diferenciar as ideias entre si. Isso parece ser uma razo para afirmar que as coisas que no pensamento permitem diferenciar as ideias no so um puro nada, isto , so entes que esto ou existem no pensamento como objetos. Da serem denominados entes objetivos.

    Se as ideias se distinguem entre si pelos diferentes objetos que exibem e por isso eles so considerados entes objetivos, ento entes de razo tambm poderiam ser considerados entes objetivos, na medida em que so objetos de ideias. o que afirma, por exemplo, Eustachio de S. Paulo,13 escolstico que Descartes apreciou,14 que identificou esse objectivum com objeto do intelecto.15 Nesse caso, ser objetivo significa apenas ser objeto do intelecto, ou terminar o ato do intelecto, como escreve Caietano.16 Dessa maneira, entes de razo seriam os entes objetivos que no tm ser alm do pensamento.17 Mas, entes de razo devem ser considerados como um puro nada, pois fabricados pela razo, no podem ter realidade formal ou atual.

    A anlise imanente da ideia no contexto ctico da 3 Meditao no impede que os objetos das ideias sejam denominados entes objetivos, isto , objetos que esto no intelecto. Mas se a diferena entre as ideias se apoia

    12 Um texto crucial da 3 Meditao parece indicar que as ideias so uma espcie de quadro: De sorte que a luz natural me faz conhecer evidentemente que as ideias esto em mim como quadros ou imagens [veluti quasdam imagines] [...] Descartes, 1962, Meditaes, p. 143; AT, IX-1, Mditations, p. 31; AT, VII, Meditationes, p. 42. A propsito desse texto, ver o comentrio clssico de M. Gueroult (1953, v. I), sobre o Princpio de Causalidade e o de Conformidade (Correspondncia) entre a ideia e o seu ideato, pp. 194-203.

    13 Eustachio Sancto Paulo,1609, Quarta Pars, Quaestio III, pp. 17-20.14 Ver as seguintes cartas endereadas por Descartes a Mersenne em AT, III: [a] 11 de novembro 1640, pp.

    231-232; [b] dezembro 1640, p. 259; [c] 22 de dezembro 1641, p. 470.15 Eustachio, 1609, Quaestio III, p. 17: Esse objective in intellectu nihil aliud esse quam actu objici intellctui

    cognocenti sive illud quod objicitur cognoscendum vere sit in intellectu aut extra intellectum sive vere non sit.

    16 Ver o comentrio de Caietano ao De Ente et Essentia de Toms de Aquino. Caietano reinterpreta o sentido do termo ser objetivo de Scotus para adapt-lo a gnosiologia tomista: Esse in intellectu objective est terminare actum intellectus. Thomae de Vio Caietani,1907, c. IV, q. 7. Ver tambm a propsito da noo de ser objetivo, a crtica de Caietano a Scotus no seu comentrio da Summae Theologiae, de Toms de Aquino, t. Quartus, Pars Prima, q. 14, a. 6, comentrio, itens XI-XII. Segundo Caietano, ser objetivo em Scotus um ser real secundum quid.

    17 Eustachio 1609. Quaestio III, p. 18: At vero quaedam sunt quae nullum habent aliud esse praeter esse objectivum seu esse cognitum ab intellectu, et haec dicuntur entia rationis [...].

  • Raul Landim Filho676

    exclusivamente no fato de que as ideias exibem no intelecto diferentes objetos, no se pode extrair dessa afirmao que os objetos das ideias no so um puro nada, pois entes de razo so entes objetivos e so um puro nada.

    De fato, a tese cartesiana na 3 Meditao no a de que as ideias so diferentes somente em razo dos objetos que exibem, mas elas se diferenciam em razo dos graus de perfeio que os seus objetos tm no pensamento. Descartes constata, como se fosse um fato, que a ideia de substncia tem maior grau de perfeio do que as ideias de modo e a ideia de substncia infinita maior grau de perfeio do que a ideia de substncia finita.

    Mas, considerando-as (as ideias) como imagens, dentre as quais algumas representam uma coisa e as outras uma outra, evidente que elas so bastante diferentes entre si. Pois, com efeito, (Nam proculdubio, na verso latina) aquelas que me representam substncias so, sem dvida, algo mais e contm em si (por assim falar) mais realidade objetiva, isto , participam por representao [acrscimo da verso francesa] num maior nmero de graus de ser ou de perfeio do que aquelas que representam modos ou acidentes. (Descartes, 1962, Meditaes, p. 142; AT, VII, Meditationes, p. 40; AT, IX-1, Mditations, p. 32; grifo meu)

    nem sempre Descartes distingue a noo de realidade objetiva da de ser objetivo. A verso francesa da exposio Geomtrica (At, iX-1, Sconde Rponses, def. III) define Realidade Objetiva como a entidade ou o ser da coisa representada pela ideia, o que permitiria assimilar as noes de realidade objetiva e de ser objetivo. o texto latino mais conciso: realidade objetiva caracterizada como a entidade da coisa representada pela ideia, o que sugere a distino entre ser objetivo de realidade objetiva (AT, VII, Secundae responsiones, def. iii).

    o texto cartesiano no exclui a distino entre essas duas noes: a noo de ser objetivo referir-se-ia ao objeto da ideia que est ou existe no pensamento; a noo de realidade objetiva significaria o grau de perfeio ou de realidade do ser objetivo. Assim, em uma interpretao minimalista, ser objetivo significaria to somente o objeto do intelecto exibido ou representado pela ideia, pois sua noo no envolve nem dependente da noo de realidade objetiva. Certa tradio medieval considerou ser objetivo como um ser de razo, uma denominao extrnseca realidade da coisa. Ser objeto do intelecto no implicaria ter uma realidade ou uma perfeio no intelecto. Quais seriam, ento, as razes de Descartes para afirmar que certos objetos do intelecto tm graus de perfeio?

    Na Exposio Geomtrica (AT, VII, Secundae Responsiones, Axioma 6; At, iX-1, Secondes rponses, Axioma 6), Descartes sugere uma resposta a essa pergunta: parece evidente que a substncia infinita tem um grau de perfeio

  • 677IDEIA, SER OBJETIVO E REALIDADE OBJETIVA NAS MEDITAES DE DESCARTES

    maior do que a substncia finita e as substncias graus maiores do que os seus modos. essa tese, que remonta ontologia aristotlica, no suscita, ao menos no contexto da recepo medieval do aristotelismo, objees relevantes. Mas, Descartes extrai dela uma consequncia significativa: por isso (Ideoque no texto latino; Cest pourquoi segundo a verso francesa) a ideia de substncia infinita tem um grau maior de perfeio do que a ideia de substncia finita e esta um grau maior do que a ideia de modo. Segundo o Axioma 6, o grau de realidade ou de perfeio dos seres objetivos seria derivado do grau de realidade dos entes atuais ou formais (entes em si).

    este argumento suscita objees bvias: ele no pode ser vlido no contexto ctico da 3 Meditao, onde a dvida sobre o mundo externo e a dvida metafsica ainda no foram eliminadas. No entanto, do ponto de vista do sistema completo das Meditaes, quando as dvidas acima citadas j tiverem sido eliminadas, segundo uma teoria causal das ideias, o argumento poderia ser considerado plausvel condio que tenha sido demonstrado que os seres objetivos tm realidade e, por conseguinte, graus de perfeio. De fato, o argumento apresentado pelo Axioma 6 da exposio Geomtrica hierarquiza graus de perfeio, o que pressupe que seja correta a afirmao de que os seres objetivos, como os entes que tm uma realidade atual ou formal, tenham tambm realidade ou perfeio no pensamento.

    Nas Respostas s Primeiras Objees s Meditaes, formuladas por Caterus (AT, VII, pp. 101-121; AT, IX-1, pp. 81-95), Descartes procura esclarecer o significado e a funo do termo ser objetivo e justificar a tese de que as ideias contm uma realidade objetiva. O contexto desse debate no o mesmo da 3 Meditao. A dvida sobre a existncia do mundo exterior no levada em considerao. Questiona-se, inicialmente, se as ideias so submetidas ao princpio de causalidade. Se elas tm uma realidade objetiva, ento, em princpio, seria legtima a pergunta sobre a causa das ideias.

    A estratgia de Caterus a de assumir teses cartesianas e mostrar, em seguida, que estas teses conduzem a concluses que Descartes no poderia aceitar, pois se as aceitasse, a coerncia do seu sistema estaria comprometida. O ponto de partida do debate a definio de ideia, atribuda por Caterus a Descartes e que Descartes assume como sua, embora, ao que parece, jamais a tenha explicitamente formulado (AT, VII, Primae Objectiones, p. 92, l.13-14; AT, IX-1, Premires Objections, p. 74). A ideia, escreve Caterus, a coisa pensada enquanto existe (ou est) objetivamente no intelecto.18 Ser

    18 Vide a definio j citada de ser objetivo de Caietano semelhante a de Caterus: Esse in intellectu objective est terminare actum intellectus.. Thomae de Vio Caietani,1907, c. IV, q. 7.

  • Raul Landim Filho678

    objetivamente no intelecto terminar como objeto o prprio ato do intelecto.19 Assim, ser objetivo a prpria coisa enquanto objeto do intelecto. Caterus formula, dessa maneira, uma verso simples e talvez convincente do realismo Direto: a operao representativa ou perceptiva do intelecto termina ao apreender uma coisa, que se torna, graas a essa apreenso, um objeto para o pensamento. A noo de ser objetivo exprimiria apenas a intencionalidade do pensamento. Quando penso no sol, no penso na ideia do sol, mas no prprio sol, que se tornou objeto para o meu pensamento, graas operao representativa. Dessa maneira, a representao seria uma relao didica: de um lado as operaes representativas do sujeito cognoscente, de outro, a prpria coisa. obviamente, a coisa pensada pode ser pensada sem que exista atualmente ou formalmente.

    o ser objetivo uma relao extrnseca prpria coisa, explica Caterus. nada ocorre coisa pelo fato dela ser pensada. Assim, ser visto no altera a realidade daquilo que visto, ser pensado no modifica a coisa que pensada, embora seja uma modificao acidental do sujeito que pensa. Pode- -se, portanto, investigar a causa das coisas ou do sujeito pensante que tem a faculdade de apreender as coisas, mas no tem sentido investigar as causas do ser objetivo, que uma mera denominao, conclui Caterus, se opondo, dessa maneira, tese cartesiana.

    Alm disso, se o termo nada usado para designar as coisas que no tm ser atual ou formal, ser objetivo um puro nada, como so os entes de razo, na medida em que est no pensamento apenas como uma denominao extrnseca das coisas visadas ou percebidas pelo intelecto. no entanto, concede Caterus, se nada significa seres fictcios, o ser objetivo no pode ser considerado um mero nada, pois ele o termo de uma operao real do cognoscente.

    note-se que, segundo Descartes, porque pensamos em coisas, isto , porque temos ideias de coisas, somos imediatamente conscientes de nossos pensamentos. Da se segue que se pode conceber claramente a operao representativa e o seu termo, isto , o ser objetivo. Sobre este ponto, no h divergncia entre Descartes e Caterus. Mas, o que claramente concebido a operao representativa que exibe um objeto no termo da sua ao. Conclui, ento, Caterus, o ente objetivo pode ser claramente concebido enquanto termo

    19 Ser objetivo [...] est ipsum actum intellectus per modum objecti terminare. AT, VII, Primae Objectiones, p. 92, l. 15-16; AT, IX-1, Premires Objections, p. 74. Note-se que em Descartes, o termo objeto pode significar o que est no intelecto como coisa (pensada) ou a prpria coisa fora do intelecto: Nam quaecumque percipimus tanquam in idearum objectis, ea sunt in ipsis ideis objective. AT, VII, Secundae Responsiones, Definio III, l. 7-10; AT, IX-1, Secondes Rponses, definio III.

  • 679IDEIA, SER OBJETIVO E REALIDADE OBJETIVA NAS MEDITAES DE DESCARTES

    de uma operao representativa, que um modo do sujeito cognoscente. no entanto, pelo fato de poder ser claramente concebido, no se segue que no depende do pensamento, pois, enquanto denominao extrnseca, o seu ser de ser pensado, no tendo, portanto, realidade formal ou atual. Assim, o ser objetivo no necessita de causa, pois segundo o escolstico Caterus, s seres atuais so submetidos ao princpio de causalidade.

    As objees de Caterus, que partira de uma caracterizao de ideia cartesiana, retomam algumas anlises escolsticas, essencialmente tomistas, da noo de ser objetivo. elas atestam a ambiguidade dessa noo que, desde Scotus e do seu discpulo Alnwick, suscita uma diversidade de interpretaes.20

    A resposta de Descartes a Caterus vai se apoiar em duas consideraes complementares e mutuamente imbricadas:

    a) ser objetivo um modo de ser distinto do modo de ser formal ou atual. As ideias, enquanto operaes do sujeito cognoscente, tm uma realidade formal, a de ser um modo ou um acidente do sujeito cognoscente. As coisas que existem fora do pensamento so substncias ou afeces de substncias21 e tm, portanto, uma realidade formal ou atual. O ser objetivo, no entanto, embora seja um ens diminutum, tem outro modo de ser. Assim, mediante a noo de ser objetivo e de realidade objetiva, a ontologia cartesiana reconhece dois modos de ser independentes: uma coisa pode ter um ser formal e no ter um ser objetivo; por sua vez, um ser objetivo pode no ter um correlato formal, embora a sua causa ltima seja uma realidade formal.22

    b) o ser objetivo tem certa autonomia ontolgica em relao realidade formal da ideia que o exibe. De um lado, ele sempre exibido por uma ideia: se x um ser objetivo, existe uma ideia de x.23 Sob este aspecto, o ser objetivo depende da operao representativa. Por outro lado, em certos casos (o das essncias matemticas, por exemplo), ele independe de um correlato formal no mundo para ter uma natureza ou essncia. Ele contm, assim, propriedades necessrias que independem quer da realidade formal das ideias, quer da realidade atual das coisas. Analisando as essncias matemticas exibidas pelas ideias, H. Gouhier usa uma expresso que pode caracterizar certos gneros de entes objetivos: as ideias das essncias matemticas, escreve H. Gouhier,

    20 Ver o artigo pioneiro de R. Dalbiez(1929, pp. 464-472) e tambm os artigos de C. Normore(1986, pp. 223-241); N. Wells (1993, pp. 513-535); D. Perler (2001, pp. 203-226); M. Tweedale(2006, pp. 63-79).

    21 Princpios da Filosofia, I, 48; AT, VIII-1, Principia Philosophiae, I,* 48.22 Ver o artigo de M. Beyssade,1997, pp. 37-49. 23 Tendo em vista questo das ideias materialmente falsas e das ideias sensveis, que no sero analisadas

    neste artigo, no se pode afirmar, sem prvias justificaes, que toda ideia exibe um ser objetivo.

  • Raul Landim Filho680

    esto em mim sem serem de mim.24 a autonomia ontolgica do ser objetivo face realidade formal da ideia que torna compreensvel a afirmao cartesiana de que o sujeito cognoscente pode conter uma ideia (considerada objetivamente) mais perfeita do que ele.

    Ao contrrio do que objetara Caterus, ser objetivo, segundo Descartes, no significa terminar como objeto a operao do intelecto, mas existir no intelecto da maneira pela qual objetos tm o hbito de a existir. O que seria a ideia do sol?

    [] o prprio sol existindo no intelecto, no formalmente como no cu, mas objetivamente, isto , da maneira pela qual os objetos tm o costume de a existir; certamente esse modo de ser bem menos perfeito do que aquele pelo qual as coisas fora do intelecto existem, mas disso no se segue que sejam um puro nada, como j escrevi antes. (AT, VII, Primae Responsiones, pp. 102-103; AT, IX-1, Premires Rponses, p. 82; grifo meu)

    o ser objetivo da ideia do sol pode ser uma denominao extrnseca em relao ao prprio sol, pois nada ocorre ao sol, enquanto existe formalmente no cu, pelo fato de ser pensado. Mas, segundo Descartes, o ser objetivo da ideia do sol no significa apenas que o intelecto percebe ou apreende o sol como objeto, mas significa que prprio sol, visado e apreendido, tem uma existncia objetiva no intelecto. Nesse sentido, o ser objetivo do sol no pode ser considerado um puro nada nem ter o nada como origem. um modo de ser imperfeito, mas enquanto tal, est submetido ao princpio de causalidade.

    Afirmar que o ser objetivo, como faz Caterus, no um ser atual ou formal, no uma objeo, mas ao contrrio, uma corroborao da tese cartesiana sobre o significado de ser objetivo. Afirmar que o ser objetivo pode ser distintamente concebido, como vimos, tambm no uma objeo ao cartesianismo. Afirmar, em seguida, que embora seja distintamente concebido, o ser objetivo no precisa de uma explicao causal seria um contrassenso, caso o ser objetivo fosse, como Descartes pretende, uma realidade com graus de perfeio no pensamento.

    Se as crticas de Caterus a Descartes expressam as habituais concepes escolsticas sobre a noo de ser objetivo, a resposta de Descartes a Caterus ainda no conclusiva, pois ela no formula argumentos convincentes que mostrariam que o ser objetivo no pensamento um ente real que, sob certo aspecto, independe da operao representativa e, em certos casos, da existncia do seu correlato formal.

    24 H. Gouhier, 1987, p. 148.

  • 681IDEIA, SER OBJETIVO E REALIDADE OBJETIVA NAS MEDITAES DE DESCARTES

    Na 3 Meditao, a primeira prova da existncia de Deus, formulada num contexto ctico e solipsista, supe que as ideias exibam no pensamento coisas-objetos que tm graus de realidade ou de perfeio. O texto que introduz a noo de realidade objetiva deixa transparecer que se trata mais da constatao de um fato do que da demonstrao ou justificao de uma tese: [] aquelas [ideias] que me representam substancias so, sem dvida, algo mais e contm em si (por assim falar) mais realidade objetiva [] (Descartes, 1962, 3 Meditao, p. 143; AT, VII, Meditationes, p. 40; AT, IX-1, Mditations, pp. 31-32; grifo meu).

    Na 5 Meditao, a clebre prova ontolgica da existncia de Deus no recorre nem ao Princpio de Causalidade, usado habitualmente pelos filsofos medievais, nem noo de realidade objetiva, introduzida na 3 Meditao. Descartes faz economia de noes filosficas para adequar melhor sua prova forma argumentativa dos matemticos. Analisando as ideias de objetos matemticos, nota-se que dos objetos dessas ideias decorrem necessariamente certas propriedades. Por exemplo, decorre necessariamente do objeto tringulo que a soma dos seus ngulos internos seja igual de dois retos. A verdade dessa afirmao no depende nem do fato dessa propriedade ter sido apreendida pela operao representativa nem da existncia de um tringulo no mundo.25 Se da ideia de um objeto decorre necessariamente uma propriedade, essa propriedade constitutiva desse objeto.26 Assim, propriedades que decorrem necessariamente de objetos das ideias pertencem natureza verdadeira e imutvel desse objeto, pois essa natureza no fabricada pelo pensamento, no depende da vontade do sujeito cognoscente, nem precisa existir no mundo para ser considerada verdadeira e imutvel. elas no so fabricadas pelo intelecto nem adquiridas pelos sentidos; so representadas por ideias inatas. Isso significa que os objetos das ideias inatas tm necessariamente no pensamento uma natureza ou forma ou uma essncia determinada e, por

    25 Como, por exemplo, quando imagino um tringulo ainda que talvez no haja em nenhum lugar do mundo, fora do meu pensamento, uma tal figura, e que nunca tenha havido alguma, no deixa, entretanto, de haver uma certa natureza ou forma, ou essncia determinada dessa figura, a qual imutvel e eterna, que eu no inventei absolutamente e que no depende de maneira alguma de meu esprito; como parece, pelo fato de que se pode demonstrar diversas propriedades desse tringulo [...] as quais agora, quer queira, quer no, reconheo mui claramente e mui evidentemente estarem nele [...]. Descartes, 1962, 5 Meditao, p. 171; AT, VII, Meditationes, p. 64; AT, IX-1, Mditations, p. 51.

    26 Quando dizemos que algum atributo est contido na natureza ou no conceito de uma coisa, o mesmo que se dissssemos que tal atributo verdadeiramente dessa coisa e que se pode assegurar que se encontra nela. Descartes, 1962, Segundas Respostas, def. IX; AT, VII, Secundae Responsiones, def. IX; AT, IX-1, Scondes Rponses, def. IX. Ver tambm AT VII, Primae Responsiones, p. 115: Aquilo que clara e distintamente inteligimos pertencer a uma verdadeira e imutvel natureza ou essncia ou forma de alguma coisa, isto pode ser verdadeiramente afirmado sobre aquela coisa e AT, IX-1, Premires Rponses, p. 91. Ver tambm AT, VII, Secundae Responsiones, p. 150 e AT, IX-1, Secondes Rponses, p. 117.

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    conseguinte, no podem ser considerados um mero nada. A necessidade dessas propriedades no uma lei regulativa da operao representativa; ela imposta ao pensamento pela necessidade da natureza da prpria coisa pensada (AT, VII, Meditationes, p. 67; AT, IX-1, Mditations, p. 53). Por isso essas propriedades e os objetos que tm essas propriedades so no pensamento entes reais inteligveis.

    Embora restritas essncia dos objetos matemticos, essas anlises mostram que o ser objetivo tem uma realidade objetiva e da um grau de perfeio: as propriedades que decorrem necessariamente desses objetos independem tanto da operao representativa quanto da realidade formal de coisas extensas que existem fora do pensamento. E como so consequncias necessrias dos objetos dessas ideias, elas tm no pensamento uma natureza imutvel, um grau de perfeio. Portanto, elas esto em mim, mas no so de mim, como assinalou H. Gouhier.

    no passou despercebida a Caterus a relao entre as noes de realidade objetiva e de essncia. Para Caterus o que importa mostrar que as ideias no so submetidas ao princpio causal. Mas ao menos uma razo (e no uma causa) tem que ser dada para o fato de que uma ideia tem esta e no aquela realidade objetiva. o que explica que um pensamento seja um pensamento de x e no de y, de um homem e no de uma pedra, por exemplo? Caterus formula essa questo usando a expresso realidade objetiva: Algum talvez me dir: se no ds uma causa para as ideias, d ao menos uma razo pela qual esta ideia contm esta realidade objetiva ao invs de outra (AT, VII, Primae Objectiones, p. 93; AT, IX-1, Premires Objections, pp. 74-75; grifo meu).

    Uma interpretao tradicional da escola tomista tem uma resposta para essa pergunta: o conhecimento uma assimilao de formas e a forma apreendida uma forma intencional inteligvel (que est no intelecto em razo de uma operao abstrativa) e idntica forma que determina a essncia das coisas. Quando se pensa em x, pensa-se na forma intencional de x que especificou o ato de inteligir. Como a forma intencional de x a mesma forma que a forma de x, ao se pensar na forma intencional de x, pensa-se na forma real de x.

    Caterus, ao responder a questo que formulou, generaliza para todas as ideias o que Descartes aplicara s ideias dos objetos matemticos: as ideias representam essncias (entes inteligveis) e as essncias apreendidas so eternas e verdadeiras. Ao pensar em x penso na essncia de x que diferente, por hiptese, da essncia de y. Com erudio e ironia, conclui Caterus, Davus Davus e no dipo. Ora, as essncias (eternas e verdadeiras), imagina

  • 683IDEIA, SER OBJETIVO E REALIDADE OBJETIVA NAS MEDITAES DE DESCARTES

    Caterus, no precisam de causas. Assim, contra Descartes, Caterus teria mostrado que mesmo se a noo de realidade objetiva fosse assimilada noo de essncia, isto , se a noo de realidade objetiva significasse entes inteligveis (essncias) no intelecto, as ideias, que exibem essncias, no precisariam de causas, pois as essncias so eternas. Ora, para Descartes, as essncias so criadas e dependem somente da causalidade divina, ao contrrio do que pensava a tradio medieval, ancorada em Scotus e em Suarez.27

    A noo de essncia, como se sabe, exerce um papel fundamental no argumento ontolgico da 5 Meditao,28 assim como a noo de realidade objetiva exercera nas provas da existncia de Deus da 3 Meditao. Embora importante e com usos repetidos, so poucos os textos de Descartes, ao contrrio da tradio medieval, que procuram caracterizar a noo de essncia. Na Exposio Geomtrica (AT, VII, Secundae Responsiones, Axioma 10; AT, IX-1, Premires Objections, Axioma 10) afirmado29 que na ideia de cada coisa est contida uma existncia possvel ou necessria. Assim, a essncia de uma coisa, representada por uma ideia, contm ou inclui uma existncia possvel ou necessria. A essncia dos objetos matemticos no precisa ser instanciada no mundo para ser considerada verdadeira e imutvel. ela contm apenas uma existncia possvel. Mas Descartes, alm da expresso essncia verdadeira e imutvel, usa tambm a expresso essncia inventada ou natureza fictcia ou composta pelo intelecto.30 Dessa maneira, ocorre implicitamente uma hierarquizao das essncias das coisas que so objetos das ideias; preciso distinguir aquelas que contm uma existncia necessria das que contm uma existncia possvel. E dentre as que contm ou incluem uma existncia possvel, preciso distinguir aquelas que so verdadeiras e imutveis, das que so fabricadas ou compostas pelo intelecto.

    27 Wells, 1990, pp. 33-61.28 O subttulo da 5 Meditao da essncia das coisas materiais; e novamente de Deus, que Ele existe.29 Nas Respostas s Primeiras Objees, quer na edio latina, quer na verso francesa, algumas vezes

    esta tese formulada de uma maneira diferente (AT, VII, Primae Responsiones, p. 116; AT, IX-1, Premires Rponses, p. 92): a existncia possvel est contida em tudo aquilo que ns concebemos clara e distintamente. No Axioma 10 da Exposio Geomtrica no ocorre a expresso clara e distintamente: em toda ideia ou conceito est contida a existncia possvel ou necessria. A condio clara e distintamente, expressa na Resposta s Primeiras Objees, permite realar a diferena entre as ideias dos objetos matemticos e a ideia de Deus. A diferena entre elas no reside na clareza e na distino dessas ideias, pois ambas so inatas, clara e distintamente percebidas. No entanto, as ideias dos objetos matemticos contm apenas uma existncia possvel, ao contrrio da ideia de Deus, que contm uma existncia necessria. Ver tambm AT, III, Carta a Mersenne, maro de 1642, pp. 544-545.

    30 Ver a ocorrncia dessas expresses em AT, VII, Primae Responsiones, pp. 116-117; AT, IX-1, Premires Rponses, p. 92. Dessa maneira deve ser formulado um critrio para distinguir as essncias verdadeiras e imutveis das inventadas pelo intelecto. Descartes procurou formular esse critrio na sua resposta a Caterus. Sobre a natureza e a validade desse critrio, ver nosso artigo Argumento Ontolgico 2009, pp. 191-233, sobretudo pp. 206-214.

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    A hierarquizao das essncias tem uma contrapartida na classificao cartesiana das ideias em inatas, factcias e adventcias (AT, VII, Meditationes, pp. 37-38; AT IX-1, Mditations, p. 29). Em carta endereada a Mersenne, Descartes retoma a classificao formulada nas Meditaes e acrescenta: [] eu distingui trs tipos de ideias; [] certas so adventcias [] outras so fabricadas ou factcias, [] outras inatas como a ideia de Deus, da mente, do corpo, do tringulo e em geral todas aquelas que representam quaisquer essncias verdadeiras, imutveis e eternas.31

    em outra carta32 endereada a um destinatrio no identificado, analisando as distines que reconhece como legtimas, Descartes retoma a questo da noo de essncia. A essncia pode ser considerada no pensamento de dois modos diferentes: seja fazendo abstrao de que ela existe ou de que no existe, seja pensando-a como existente. Por exemplo, pensar em um tringulo e pensar em um tringulo existente. Do primeiro modo, pode-se distinguir essncia de existncia, pois se pode conceber algo que no existe atualmente, como seria o caso de pensar a rosa no inverno, como respondeu Descartes a uma pergunta de Burman.33 a essncia objetiva (essncia pensada) que pode ser distinguida da existncia, pois, do ponto de vista da existncia efetiva, a coisa existente a essncia existente dessa coisa.34 Nesse caso, essncia e existncia no podem ser distinguidas.35 Finalmente, conclui Descartes: a essncia objetiva (a essncia pensada) se distingue realmente da essncia existente: Como tambm quando por essncia inteligimos a coisa enquanto existe objetivamente no intelecto e por existncia a mesma coisa enquanto existe fora do pensamento, evidente que estas duas coisas so realmente distintas.36

    Essas afirmaes de Descartes realam a tese de que uma mesma coisa (ou a essncia de uma mesma coisa) pode ter um duplo modo de existncia:

    31 AT, III, Carta a Mersenne de 16 de junho de 1641, p. 383. 32 AT, IV, Carta a ***, janeiro de 1645-46, pp. 348-350. Sobre a teoria das distines de Descartes, ver o

    texto cannico dos Princpios da Filosofia (Descartes, 2002, I, * 60-62) e a carta citada, que foi escrita depois da publicao da edio latina de 1644 dos Princpios.

    33 Descartes, 1981, p. 76.34 AT, IV, Carta a ***, janeiro de 1645-46, p. 350: [...] no ocorre a mesma coisa com o tringulo realmente

    existente fora do pensamento, quando me parece evidente que essncia e existncia no podem de nenhuma maneira ser distinguidas. Ver tambm Descartes (1981): [...] a existncia no outra coisa seno a essncia existente, [...], p. 79.

    35 Note-se que a identificao entre essncia e existncia na coisa existente j est implicitamente afirmada na Resposta de Descartes a Caterus: [...] a ideia do sol o prprio sol existindo objetivamente no intelecto, certamente no formalmente, como no cu, mas objetivamente, isto do modo pelo qual os objetos tm o costume de existir no intelecto [...] AT, VII, Secundae Responsiones, p. 102; AT, IX-1, Premires Rponses, p. 82.

    36 AT, IV, Carta a ***, janeiro de 1645-46, p. 350.

  • 685IDEIA, SER OBJETIVO E REALIDADE OBJETIVA NAS MEDITAES DE DESCARTES

    uma existncia objetiva no pensamento pela ideia e uma existncia atual ou formal. obviamente, sem outras consideraes, no se pode deduzir da existncia objetiva de uma coisa o seu correlato atual ou formal e vice-versa.

    Se h um duplo modo de existncia, qual seria o tipo de relao entre o ser objetivo de uma coisa e o seu ser formal? Essa questo importante, pois, quer tenha ou no um correlato formal ou atual, o ser objetivo o objeto visado e percebido pelo cognoscente, graas operao representativa que o exibe. o que imediatamente percebido o ser objetivo. Se, como sugerem alguns textos de Descartes, ocorre uma relao de identidade entre o ser objetivo e o seu correlato formal, caso o correlato formal exista, ao se perceber o ser objetivo x, ipso facto percebe-se x na sua realidade formal ou atual.

    Descartes afirmou que pensar em um objeto (tringulo) e pensar sua existncia (tringulo existente) so dois pensamentos que se distinguem modalmente. Em uma coisa efetivamente existente, a essncia desta coisa no pode ser separada de sua existncia, pois a existncia da coisa a essncia existente da prpria coisa. Mas, entre a essncia objetiva de uma coisa e a existncia atual fora do pensamento dessa coisa, ou entre a essncia objetiva e a essncia existente, h entre elas uma distino real.37

    Se o ser objetivo e o seu correlato forem realmente distintos, eles no podem ser numericamente idnticos, pois a identidade numrica no parece ser compatvel com a distino real entre dois entes. Como aplicar o princpio dos indiscernveis, que caracteriza a identidade, ao ser objetivo e ao seu correlato formal, caso o correlato seja uma coisa extensa? A ideia do sol, por exemplo, no tem as propriedades da extenso e o sol na natureza no tem as propriedades do atributo pensamento. ora, duas coisas numericamente idnticas satisfazem ao Princpio dos Indiscernveis. Duas coisas realmente distintas (como, por exemplo, o sol e a ideia do sol) no satisfazem ao Princpio dos indiscernveis. Donde, duas coisas realmente distintas no so numericamente idnticas.

    Dessa maneira, implausvel considerar que a relao entre o ser objetivo e o seu correlato extenso seja uma relao de identidade numrica. talvez esta relao devesse ser interpretada como uma relao de similitude, pois as

    37 Sobre essa questo, ver as observaes de M. Ayers (1998, pp. 1067-68): It seems clear that, at least on ordinary realist assumptions, there cannot be one thing, the idea, which is really identical, both to the mode of thought and to the real object. Ver D. Clemenson (2007, pp. 47-76). Neste livro, Clemenson procurou mostrar que dois entes com identidade numrica podem ser realmente distintos. Apesar da erudio do livro, seus argumentos sobre essa questo no me parecem convincentes.

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    ideias, segundo a 3 Meditao, so como imagens de coisas.38 Mas a ideia uma representao na medida em que considerada como uma operao cognitiva que exibe um objeto. Alm disso, nos seus textos filosficos, Descartes no analisou a noo de similitude,39 ao contrrio, por exemplo, de Toms de Aquino que inmeras vezes usou este termo em sua obra e explicou o significado da expresso similitude por representao.40 De fato, no seria uma tarefa fcil dar um sentido preciso relao de similitude entre dois entes realmente distintos, tendo em vista que similitude uma relao simtrica, ao contrario de representao que, na maioria dos casos, uma relao assimtrica.

    Mas h outra via para explicar a relao entre ser objetivo e o seu correlato formal, caso ele exista. o intelecto percebe imediatamente tudo o que nele ocorre. Ao perceber imediatamente, atravs de uma ideia inata, a realidade objetiva (ou essncia) do ser objetivo, o intelecto apreende algo que no depende do pensamento humano, mesmo que no exista efetivamente fora do pensamento. Mas quando apreende por uma ideia inata a essncia de um ser objetivo e se esta essncia existe efetivamente, ele apreende a mesma essncia que est objetivamente no pensamento e que existe efetivamente fora do pensamento, caso a essncia seja considerada sem os seus modos diferentes de existir. De fato, a essncia do ser objetivo e a do seu correlato formal extenso so realmente distintas no em razo da sua natureza, que a mesma, mas em razo dos seus modos de existir: no pensamento e na realidade efetiva. Assim, perceber um ser objetivo, mediante uma ideia inata, perceber o que a prpria coisa, seja ela meramente possvel ou atual.

    Se x um ser objetivo e tem um correlato formal y, perceber x, mediante uma ideia inata, equivale a perceber y, pois ambos tm a mesma essncia; x e y se distinguem realmente e no so, portanto, idnticos numericamente. Mas so distintos, no em razo das suas essncias, que so idnticas quando

    38 M. Gueroult o mais notvel intrprete cartesiano que defende a tese de que a ideia na sua realidade objetiva um quadro. Ver, M. Gueroult, 1953, v. 1, pp. 140-141 e o captulo 5, pp. 154-247. Contra essa interpretao de Gueroult, ver Wells, 1990, pp. 34-38, especialmente p. 36: The image in question is the cognitive activity of representing and not the thing represented.

    39 M. Gueroult, 1953, p. 141: Do la ncessit de rechercher si ce que lesprit voit dans le tableu correspond effectivement la ralit de la chose. On pourrait, sans doute, se demander comment il se fait que lesprit aperoive le tableau comme une copie, comment est possible un tableau purement spirituel de ce qui exclut radicallement lesprit. Mais ce sont l des questions que Descartes na jamais estim devoir ni poser ni rsoudre, vraisemblabement parce quelles dpassent selon lui les capacits de notre connaissance. Cette proprit de lide de reprsenter par la ralit objective la ralit formelle comme um tableau est le caractre constitutif qui nous permet immdiatement de la distinguer des autres penses.

    40 Ver De Veritate, q. 2, a.3, ad 9 e q. 2, a. 5, ad 5 e ad 7.

  • 687IDEIA, SER OBJETIVO E REALIDADE OBJETIVA NAS MEDITAES DE DESCARTES

    abstratamente consideradas, mas em razo dos seus modos de ser diferentes: objetivo e formal.

    A percepo imediata do ser objetivo exibido por uma ideia41 acarreta a percepo imediata da essncia do seu correlato formal, caso ele exista, pois como vimos, a essncia representada por uma ideia inata idntica do seu correlato formal, caso seja deixado de lado o modo de ser, objetivo ou formal, da essncia. Dessa maneira, o ente objetivo no um intermedirio, um tertium quid, entre o sujeito cognoscente e a prpria coisa. Assim, a tese do acesso direto s coisas mesmas no incompatvel com a tese do acesso imediato ao ser objetivo. Sob este aspecto, a teoria cartesiana uma forma de realismo Direto.

    No entanto, preciso distinguir a questo da percepo da essncia de uma coisa externa da questo da prova da existncia de coisas.

    os entes objetivos so entes reais no pensamento. nesse sentido, como tudo o que real, eles so tambm submetidos ao princpio causal (AT, VII, Meditationes, p. 42; AT, IX-1, Mditations, pp. 32-33). Mas, em princpio, uma ideia pode ser causa de outras ideias (AT VII, Meditationes, pp. 43-45; AT, IX-1, Mditations, pp. 34-35). Esse nexo causal entre as ideias no pode se prolongar ao infinito, afirma Descartes (AT, VII, Meditationes, p. 42; AT, IX-1, Mditations, p. 33). preciso chegar a uma ideia cuja realidade objetiva tenha como causa uma realidade formal, que contenha, ao menos, tanta perfeio formal quanto a perfeio objetiva da ideia, pois da natureza das ideias, ao menos as primeiras e originais, terem como causa uma realidade formal.42

    As provas da existncia de Deus na 3 Meditao usam o princpio de causalidade aplicado realidade objetiva das ideias. na 6 Meditao, a prova da existncia dos corpos tambm uma prova inferencial de existncia. No entanto, tendo em vista a indeterminao do grau de realidade objetiva das ideias sensveis, no possvel inferir da sua questionvel realidade objetiva a realidade formal da coisa.43 O ponto de partida da prova da existncia dos corpos

    41 AT, VII, Objectiones Tertiae, Objectio V, Responsio: [...] eu tomo pelo nome de ideia tudo o que imediatamente concebido pela mente (AT, IX-1, Troisimes Objections, Objectio V, Rponse). Ver tambm AT, VII, Secundae Responsiones, Def. I e II; AT, IX-1, Secondes Rponses, Def. I e II; grifo meu.

    42 Ver Beyssade, 1997, pp. 46-48.43 interessante notar que na Exposio Geomtrica (Descartes. Obra Escolhida, Respostas s Segundas

    Objees, Axioma V), Descartes supe implicitamente que as ideias sensveis tm realidade objetiva. E cumpre notar que este axioma deve ser to necessariamente admitido que s dele depende o conhecimento de todas as coisas sensveis como insensveis Pois, como sabemos, por exemplo, que o cu existe? Ser porque o vemos? Mas essa viso no afeta de modo algum o esprito, a no ser na medida em que h uma ideia: uma ideia, digo, inerente ao prprio esprito, e no uma imagem pintada na fantasia; e, por ocasio dessa ideia no podemos julgar que o cu existe, a no ser que suponhamos que toda

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    a conscincia da receptividade e da coero que caracterizam a conscincia sensvel.44 Aps uma sequncia de argumentos que envolvem outras premissas e teses, dentre as quais a tese da distino real entre o pensamento e a extenso e a tese da Veracidade Divina, o princpio de causalidade usado para provar que algo exterior ao sujeito pensante (e de natureza diferente dele, em razo da distino real), os corpos extensos, so causas das ideias sensveis e, portanto, existem. Sob este aspecto, a teoria cartesiana poderia ser interpretada como um Representacionalismo inferencial, pois as provas de existncia da 3 Meditao e a prova das coisas extensas, usando o princpio de causalidade, inferem a partir de dados imanentes do pensamento a existncia de realidades formais atuais.

    Mas nem todas as provas de existncia das Meditaes so inferenciais: nem o Cogito nem o Argumento ontolgico recorrem, por exemplo, ao Princpio de Causalidade. Assim, o representacionalismo realista cartesiano est restrito nas Meditaes a algumas provas de existncia: a da existncia de Deus, formulada no contexto ctico da 3 Meditao, e prova da existncia dos corpos extensos.

    na teoria cartesiana, as interpretaes realista Direta e representacionalista inferencial, aplicadas a questes distintas, convivem harmonicamente. o reconhecimento de dois modos de existncia, objetivo e formal, so distines conhecidas e assumidas pelos medievais. Mas a superao do ceticismo e a prova da existncia de coisas extensas, graas ao princpio de causalidade, tendo como ponto de partida os dados intencionais e imanentes ao intelecto parece ser uma contribuio original e decisiva da filosofia primeira de Descartes.

    Referncias

    [A] DescartesADAM, C., TANNERY, P. uvres de Descartes. Paris: Vrin-CNRS, 1964-1974. 11 Vol.DeSCArteS, r. L entretien avec Burman. Edio, traduo e anotao de J.-M. Beyssade. Paris: PUF, 1981.______. Obra escolhida. Traduo de J. Guinsburg e Bento Prado Jnior. So Paulo: Difuso Europia do Livro, 1962.

    ideia deve ter uma causa de sua realidade objetiva que seja realmente existente; causa que julgamos ser o cu mesmo; e assim por diante (grifo meu). Ver tambm AT, VII, Secundae Responsiones, p. 135; AT, IX-1, Secondes Rponses, p. 107.

    44 Landim, 2009, pp. 261-267.

  • 689IDEIA, SER OBJETIVO E REALIDADE OBJETIVA NAS MEDITAES DE DESCARTES

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  • Raul Landim Filho690

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