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  • Edio especial

    ISSN 0100-3364

    Informe AgropecurioUma publicao da EPAMIG

    v.26 2005 Edio especialBelo Horizonte-MG

    Apresentao

    Editorial ........................................................................................................................... 3

    Entrevista ......................................................................................................................... 4

    O caf num outro retrato do Brasil rural: o lugar da agricultura familiar

    France Maria Gontijo Coelho .......................................................................................... 9

    Abordagem sistmica e pesquisa participativa na agricultura familiar:

    ferramentas para o desenvolvimento

    Carlos Armnio Khatounian e Dimas Soares Jnior ........................................................... 17

    Sistemas de produo agroecolgicos e orgnicos dos cafeicultores familiares

    da Zona da Mata mineira

    Paulo Csar de Lima, Irene Maria Cardoso, Helton Nonato de Souza, Waldnia de Melo

    Moura, Eduardo de S Mendona e Anr Fiorini de Carvalho ........................................... 28

    Pesquisas em sistemas agroecolgicos e orgnicos da cafeicultura familiar

    na Zona da Mata mineira

    Waldnia de Melo Moura, Paulo Csar de Lima, Helton Nonato de Souza,

    Irene Maria Cardoso, Eduardo de S Mendona e Josete Pertel ...................................... 46

    Tecnologias alternativas para o controle de pragas do cafeeiro

    Madelaine Venzon, Edmar de Souza Tuelher, Antnio de Pdua Alvarenga e

    Angelo Pallini ............................................................................................................... 76

    Manejo das doenas do cafeeiro para a cafeicultura familiar

    Vicente Luiz de Carvalho, Rodrigo Luz da Cunha e Sara Maria Chalfoun ........................... 86

    Desenvolvimento de tecnologias de colheita e ps-colheita

    para a cafeicultura familiar

    Roberta Martins Nogueira, Srgio Maurcio Lopes Donzeles e Juarez de Sousa e Silva ..... 102

    Certificao e comercializao de cafs da agricultura familiar

    Srgio Pedini ................................................................................................................... 118

    SumrioSumrioSumrioSumrioSumrio

    Informe Agropecurio Belo Horizonte v. 26 p.1-124 2005

    A agroecologia baseia-se nos elementos

    da cincia moderna e no conhecimento dos

    prprios agricultores. A partir da investiga-

    o participativa ocorre uma combinao de

    saberes que resulta em uma srie de prin-

    cpios, que se transformam em tecnologias.

    Os agricultores so to importantes nes-

    se processo quanto os pesquisadores. Isso

    implica em troca de paradigma cientfico, de

    prtica, de mtodos de trabalho, de relao

    com a terra e com o seu produto.

    Dentre as caractersticas mais marcantes

    dos cafeicultores familiares esto o baixo uso

    de insumos, a averso ao risco e a preocupao

    estratgica com a diversificao da produo.

    Essas caractersticas garantem estabilidade

    econmica e sustentabilidade da produo

    e da famlia. Grande parte deles desenvolve

    sistemas agroecolgicos e orgnicos de pro-

    duo. Essa perspectiva exige que os tcni-

    cos e pesquisadores repensem os conceitos e

    procedimentos de pesquisa e de extenso.

    Esta edio especial do Informe Agro-

    pecurio foi elaborada a partir de conceitos

    sobre agricultura familiar e das experincias

    dos trabalhos participativos com cafeiculto-

    res e cafeicultoras desenvolvidos por insti-

    tuies pblicas, ONGs, associaes e sindi-

    catos de produtores e agricultores rurais.

    Paulo Csar de Lima

    Waldnia de Melo Moura

  • I n f o r m e A g r o p e c u r i o , B e l o H o r i z o n t e , v . 2 6 , 2 0 0 5 . E d i o e s p e c i a l

    GOVERNO DO ESTADO DE MINAS GERAISAcio Neves da Cunha

    Governador

    SECRETARIA DE ESTADO DE AGRICULTURA,PECURIA E ABASTECIMENTO

    Silas BrasileiroSecretrio

    Empresa de Pesquisa Agropecuria de Minas GeraisPresidncia

    Baldonedo Arthur NapoleoDiretoria de Operaes Tcnicas

    Manoel Duarte XavierDiretoria de Administrao e Finanas

    Luiz Carlos Gomes GuerraGabinete da Presidncia

    Carlos Alberto Naves CarneiroAssessoria de ComunicaoRoseney Maria de Oliveira

    Assessoria de Desenvolvimento OrganizacionalRonara Dias Adorno

    Assessoria de InformticaRenato Damasceno Netto

    Assessoria JurdicaPaulo Otaviano Bernis

    Assessoria de Planejamento e CoordenaoJos Roberto Enoque

    Assessoria de Relaes InstitucionaisArtur Fernandes Gonalves Filho

    Auditoria InternaCarlos Roberto Ditadi

    Departamento de Transferncia e Difuso de TecnologiaCristina Barbosa Assis

    Departamento de PesquisaMaria Llia Rodriguez Simo

    Departamento de Negcios TecnolgicosArtur Fernandes Gonalves Filho

    Departamento de Prospeco de DemandasJlia Salles Tavares Mendes

    Departamento de Recursos HumanosFlvio Luiz Magela Peixoto

    Departamento de Patrimnio e Administrao GeralMarlene do Couto Souza

    Departamento de Obras e TransportesLuiz Fernando Drummond Alves

    Departamento de Contabilidade e FinanasCelina Maria dos Santos

    Instituto de Laticnios Cndido TostesGrson Occhi

    Instituto Tcnico de Agropecuria e CooperativismoMarcello Garcia Campos

    Centro Tecnolgico do Sul de MinasEdson Marques da Silva

    Centro Tecnolgico do Norte de MinasMarco Antonio Viana Leite

    Centro Tecnolgico da Zona da MataJuliana Cristina Vieccelli de CarvalhoCentro Tecnolgico do Centro-Oeste

    Cludio Egon FacionCentro Tecnolgico do Tringulo e Alto Paranaba

    Roberto Kazuhiko Zito

    A EPAMIG integra oSistema Nacional de Pesquisa Agropecuria,

    coordenado pela EMBRAPA

    A contribuio doagricultor familiar para o sucesso

    da cafeicultura brasileira Esta edio especial do Informe Agropecurio sobre Cafeicultura

    Familiar vem marcar os 30 anos desta publicao, com um tema de

    extrema importncia para a economia mineira e brasileira. abordado

    no s o produto de maior peso na agropecuria de Minas Gerais e

    na balana de exportaes do Brasil, mas tambm a importncia do

    agricultor familiar nessa cadeia produtiva.

    A cafeicultura brasileira constituda, em sua maioria, por pe-

    quenos agricultores, que correspondem a 75% dos produtores de caf.

    Desse total, cerca de 60% referem-se cafeicultura familiar, com

    rea de at cinco hectares. Esse segmento, que responde por 25% da

    produo brasileira, segundo dados do Programa Nacional de Forta-

    lecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), produzir, aproximadamente

    10 milhes de sacas de caf em 2005, contribuindo com R$2,5 bilhes

    para o PIB agrcola, nos preos atuais. A cafeicultura familiar emprega

    em torno de 1,8 milho de pessoas/ano e prioriza o desenvolvimento

    de sistemas agroecolgicos de produo.

    Dados recentes indicam que o aumento crescente da demanda

    por produtos livres de agrotxicos tem impulsionado a agricultura agro-

    ecolgica e orgnica no Brasil, que privilegia a preservao ambien-

    tal, a biodiversidade, os ciclos biolgicos e a qualidade de vida do

    homem.

    A partir desses dados, a EPAMIG lana esta edio, comemorativa

    de 30 anos, sobre Cafeicultura Familiar, com o objetivo de mais uma

    vez cumprir sua misso de levar aos produtores e a toda a sociedade

    conhecimento, tecnologia e informao gerados pela pesquisa agro-

    pecuria.

    Baldonedo Arthur NapoleoPresidente da EPAMIG

  • Governo do Estado de Minas Gerais

    Secretaria de Estado de Agricultura, Pecuria e Abastecimento

    Sistema Estadual de Pesquisa Agropecuria - EPAMIG, UFLA, UFMG, UFV

    Assinatura anual: 6 exemplares

    Aquisio de exemplares

    Setor Comercial de Publicao

    Av. Jos Cndido da Silveira, 1.647 - Cidade Nova

    Caixa Postal, 515 - CEP 31170-000 Belo Horizonte - MG

    Telefax: (31) 3488-6688

    E-mail: [email protected] - Site: www.epamig.br

    CNPJ (MF) 17.138.140/0001-23 - Insc. Est.: 062.150146.0047

    O Informe Agropecurio indexado naAGROBASE, CAB INTERNATIONAL e AGRIS

    1977 EPAMIG

    ISSN 0100-3364

    INPI: 006505007

    Informe Agropecurio. - v.3, n.25 - (jan. 1977) - . - BeloHorizonte: EPAMIG, 1977 - .

    v.: il.

    Cont. de Informe Agropecurio: conjuntura e estatsti-ca. - v.1, n.1 - (abr.1975).

    ISSN 0100-3364

    1. Agropecuria - Peridico. 2. Agropecuria - AspectoEconmico. I. EPAMIG.

    CDD 630.5

    CONSELHO DEDIFUSO DE TECNOLOGIA E PUBLICAESBaldonedo Arthur NapoleoLuiz Carlos Gomes GuerraManoel Duarte XavierCarlos Alberto Naves CarneiroMaria Llia Rodriguez SimoArtur Fernandes Gonalves FilhoJlia Salles Tavares MendesCristina Barbosa AssisVnia Lacerda

    DEPARTAMENTO DE TRANSFERNCIA

    E DIFUSO DE TECNOLOGIA

    Cristina Barbosa Assis

    DIVISO DE PUBLICAESEDITOR

    Vnia Lacerda

    COORDENAO TCNICA

    Paulo Csar de Lima e Waldnia de Melo Moura

    REVISO LINGSTICA E GRFICA

    Marlene A. Ribeiro Gomide e Rosely A. R. Battista Pereira

    NORMALIZAO

    Ftima Rocha Gomes e Maria Lcia de Melo Silveira

    PRODUO E ARTE

    Diagramao/formatao: Rosangela Maria Mota Ennes,Maria Alice Vieira e Fabriciano Chaves Amaral

    Capa: Letcia MartinezFotos da capa: Erasmo Pereira eAcarpa (Associao dos Cafeicultores da Regio de Patrocnio)

    PUBLICIDADEDcio CorraAv. Jos Cndido da Silveira, 1.647 - Cidade NovaCaixa Postal, 515 - CEP 31170-000 Belo Horizonte-MGTelefone: (31) [email protected]

    Informe Agropecurio uma publicao daEmpresa de Pesquisa Agropecuria de Minas Gerais

    EPAMIG

    proibida a reproduo total ou parcial, por quaisquer meios, sem

    autorizao escrita do editor. Todos os direitos so reservados

    EPAMIG.

    Os artigos assinados por pesquisadores no pertencentes ao quadro

    da EPAMIG so de inteira responsabilidade de seus autores.

    Os nomes comerciais apresentados nesta revista so citados apenas

    para convenincia do leitor, no havendo preferncias, por parte da

    EPAMIG, por este ou aquele produto comercial. A citao de termos

    tcnicos seguiu a nomenclatura proposta pelos autores de cada artigo.

  • I n f o r m e A g r o p e c u r i o , B e l o H o r i z o n t e , v . 2 6 , 2 0 0 5 . E d i o e s p e c i a l

    IA - O que motivou a criao da Amart

    e da Apat?

    Margarida Pinheiro A Amart sur-

    giu do movimento de mulheres rurais

    organizado em Tombos, em 1987.

    Inicialmente, o trabalho estava mais

    relacionado com o reconhecimento da

    profisso da mulher como agricultora

    e trabalhadora rural. A partir de 1992,

    com a criao da Apat, tambm passa-

    ram a ser estimuladas a produo agr-

    cola agroecolgica e o beneficiamento

    dos produtos, visando comercializao

    e gerao de renda para as mulheres.

    Em 1998, esse movimento teve parti-

    cipao ativa na construo do Plano

    Municipal de Desenvolvimento Rural

    A importncia do associativismona promoo da cidadania dos

    agricultores familiares

    Sustentvel do municpio de Tombos.

    Com a evoluo de seus trabalhos e

    com uma representao no Conselho

    Municipal de Desenvolvimento Rural

    do municpio, sentiu-se a necessidade

    de criar uma estrutura jurdica prpria,

    fundando-se, em 10 de dezembro de 2000,

    a Amart, para organizar e promover a

    cidadania das trabalhadoras rurais.

    Vanderli Pinheiro A Apat foi fun-

    dada em maro de 1992, com a finalida-

    de de trabalhar a produo, beneficia-

    mento e comercializao dos produtos

    da agricultura familiar, sem a utilizao

    de venenos. A criao da Associao

    foi fruto de um trabalho mais antigo que

    nasceu na dcada de 70. Os agriculto-

    res tornaram-se dependentes do mer-

    cado, deixaram de produzir o prprio

    alimento e dedicaram-se monocul-

    tura do caf. Outro problema srio na

    poca foi a perda da qualidade de vi-

    da e da sade desses agricultores, pela

    carncia alimentar e pelo uso intensi-

    vo de agrotxicos. Iniciamos o trabalho

    nas comunidades refletindo sobre esses

    problemas e propondo alternativas ao

    uso de venenos e dependncia da mo-

    nocultura do caf. Comeamos com as

    experincias de comercializao cole-

    tiva, com o apoio do Sindicato dos Tra-

    balhadores Rurais e, na dcada de 90,

    criamos a Associao como uma con-

    seqncia do desenvolvimento dessa

    Margarida Alves de Oliveira Pinheiro pedagoga,

    formada pela Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras

    (Fafile), de Carangola, MG. diretora da Associao

    das Mulheres Agricultoras e Trabalhadoras Rurais (Amart)

    e vice-presidente da Associao de Pequenos Agriculto-

    res e Trabalhadores Rurais (Apat). produtora de caf

    orgnico e agroecolgico no Stio Vista Alegre, no mu-

    nicpio de Tombos, MG. Coordena trabalhos do curso

    de extenso em Cincias Homeopticas, da Universida-

    de Federal de Viosa (UFV).

    Margarida exerce uma forte

    liderana entre os agricul-

    tores familiares da Zona da

    Mata de Minas Gerais, coor-

    denando o trabalho de g-

    nero daquela regio.

    Vanderli Pereira Pinheiro agricultor familiar e conduz uma

    pequena propriedade no distrito de Catun, MG, onde mantm,

    com sua famlia, uma produo diversificada, que inclui sistemas

    de lavoura de caf, banana, hortalias e criao de pequenos

    animais. Atuou como lder sindical at 1992, quando direcionou

    os trabalhos para a estruturao da Associao dos Pequenos

    Agricultores e Trabalhadores Rurais (Apat), de Tombos e Pedra

    Dourada e exerce, atualmente, sua presidncia. Participa de

    fruns regionais e estaduais de formulao de polticas pblicas

    para a agricultura familiar. Faz

    parte da coordenao do Frum

    Nacional da Economia Solidria,

    gestora da poltica nacional para

    o setor, executada pela Secretaria

    Nacional de Economia Solidria,

    rgo do governo federal.

  • I n f o r m e A g r o p e c u r i o , B e l o H o r i z o n t e , v . 2 6 , 2 0 0 5 . E d i o e s p e c i a l

    proposta de organizao dos agriculto-

    res, especialmente para a comerciali-

    zao dos produtos agroecolgicos da

    agricultura familiar.

    IA - Quais so os objetivos dessas duas

    Associaes?

    Margarida Pinheiro A Amart tem

    como objetivo construir uma poltica

    de cidadania para as mulheres rurais

    de Tombos, articulada com o Sindicato

    dos Trabalhadores Rurais de Tombos e

    Pedra Dourada, com a Apat, a Associa-

    o Regional dos Trabalhadores Rurais

    da Zona da Mata e o Centro de Tecno-

    logias Alternativas da Zona da Mata

    (CTA/ZM), em torno de um projeto

    solidrio para a agricultura familiar.

    A Amart atua no desenvolvimen-

    to de trabalhos nas seguintes linhas:

    formao e capacitao de agricultoras;

    incentivo produo agroecolgica e

    orgnica, com o uso de biofertilizan-

    tes e preparados homeopticos; promo-

    o da cidadania; beneficiamento e

    comercializao da produo; grupo de

    gerao de renda; sade e alimentao

    alternativas e promoo da eqidade nas

    relaes sociais de gnero e gerao.

    Vanderli Pinheiro A Apat desen-

    volve aes junto aos diversos grupos

    de produo dentro dos princpios agro-

    ecolgicos, principalmente eventos de

    formao, acompanhamento tcnico e

    experimentao participativa.

    Na rea de beneficiamento temos

    uma agroindstria que hoje conta com

    um laticnio, um setor de processamen-

    to de cana, para produo de cachaa e

    acar mascavo, um setor de beneficia-

    mento de arroz, uma cozinha comuni-

    tria e uma pequena torrefadora de caf.

    Atualmente, estamos buscando recur-

    sos para estruturar melhor o setor de

    processamento de caf.

    Na rea de comercializao mante-

    mos um mercado varejista no munic-

    pio de Tombos, o Mercado do Produtor,

    onde so fornecidos leite e derivados

    para os mercados locais, e exportamos

    produtos agroecolgicos para o mercado

    do Rio de Janeiro. Recentemente, entra-

    mos tambm no mercado institucio-

    nal e, atravs de uma parceria com a

    Companhia Nacional de Abastecimento

    (Conab) e com as prefeituras locais, esta-

    mos fornecendo produtos agroecol-

    gicos para escolas, creches e Apaes dos

    municpios de Tombos e Pedra Dou-

    rada.

    IA - Quais so os principais reflexos das

    aes empreendidas pelas Associa-

    es?

    Margarida Pinheiro As principais

    atividades econmicas do municpio de

    Tombos eram a produo de caf e de

    leite. O trabalho de formao e capacita-

    o da agricultura familiar fomentou a

    diversificao da produo. Com o for-

    talecimento da estratgia de comerciali-

    zao no varejo local, a partir da criao

    do Mercado do Produtor, pela Apat,

    organizao da qual as mulheres tam-

    bm participam, houve o incentivo

    diversificao da produo nas proprie-

    dades rurais. Essa diversificao deixou

    de ser apenas uma estratgia de segu-

    rana alimentar da famlia e passou a

    ser valorizada como estratgia de gerao

    de renda e sustentabilidade econmica,

    assegurando produtos e comerciali-

    zao ao longo de todo o ano e no ape-

    nas na safra do caf.

    Com isso, grupos de mulheres tm

    conquistado sua autonomia na famlia

    e nas organizaes locais. A vida das

    famlias melhorou em vrios aspectos,

    assim como a vida nas comunidades e

    nas organizaes da agricultura familiar.

    Vanderli Pinheiro Os principais

    produtos para o mercado da Agricultu-

    ra Familiar da regio so o caf, o leite

    e a cana-de-acar. Entretanto, com as

    aes empreendidas de incentivo di-

    versificao da produo junto s fam-

    lias participantes da Apat, outros sis-

    temas de produo passaram a ser va-

    lorizados nas propriedades dos agri-

    cultores. A diversificao da produo

    contribuiu para o aumento tambm da

    participao das mulheres, que em nos-

    sa regio, tradicionalmente, so mais res-

    ponsveis pela produo de verduras

    e pequenos animais. Nosso trabalho

    organizado em grupos de produo e,

    embora a diversificao seja uma reali-

    dade em muitas propriedades, a maioria

    ainda para o auto-abastecimento da

    famlia. Para o fornecimento de produtos

    para o Mercado do Produtor e para o

    mercado institucional, existe um plane-

    jamento da produo para a comer-

    cializao com os grupos de produ-

    o.

    IA - Por que a Amart e a Apat incen-

    tivam a diversificao de culturas

    e a utilizao de sistemas agro-

    ecolgicos e orgnicos?

    Margarida Pinheiro A diversifi-

    cao da produo com qualidade a

    sada para a agricultura familiar, pois

    com as oscilaes do preo do caf e

    do leite, os outros produtos garantem

    renda, sustentabilidade e melhoria na

    qualidade de vida da famlia.

    A preferncia por sistemas de pro-

    duo agroecolgico e orgnico deve-

    se ao fato de considerarmos a proprie-

    dade como um organismo vivo. Dessa

    forma, preservamos a biodiversidade,

    as matas, as nascentes e o solo. Esta-

    mos buscando sempre o manejo susten-

    tvel dentro da propriedade, garantindo

  • I n f o r m e A g r o p e c u r i o , B e l o H o r i z o n t e , v . 2 6 , 2 0 0 5 . E d i o e s p e c i a l

    a produo de alimentos saudveis, a

    manuteno da sade, a qualidade de

    vida e a tranqilidade da famlia, pois

    na agricultura tradicional a produo

    do agricultor fica muitas vezes compro-

    metida com a compra de insumos.

    Vanderli Pinheiro Acreditamos

    que no existe contradio entre a di-

    versificao e a qualidade da produo.

    Pelo contrrio, ao pensar a propriedade

    como um todo, na sustentabilidade do

    sistema e nas prticas agroecolgicas,

    buscamos a qualidade em todos os pro-

    dutos. Estamos profundamente envol-

    vidos com a comercializao desses

    produtos e entendemos que a questo

    da qualidade diz respeito tambm s

    exigncias do mercado. Como as terras

    da agricultura familiar so pequenas e

    na impossibilidade de determinar o

    preo de comercializao do caf, nem

    sempre produtividade e qualidade re-

    presentam garantia de renda para a

    famlia do agricultor. Tambm, por isso,

    a diversificao fundamental, sem des-

    cuidar da qualidade de cada produto.

    A produtividade do caf importante,

    mas a viabilidade econmica da lavoura

    e a sustentabilidade econmica do sis-

    tema da agricultura familiar devem ser

    constantemente avaliados. No adianta

    ter produtividade, se no cuidarmos da

    sade do ser humano, do futuro da ter-

    ra e da qualidade do produto e se no

    tivermos mercado diferenciado que

    garanta a melhoria da renda da agri-

    cultura familiar.

    Com relao adoo de sistemas

    agroecolgicos e orgnicos, acreditamos

    que a produtividade das lavouras no

    pode ser o nico parmetro para avaliar

    se um sistema bom para os agricul-

    tores. H muitos anos percebemos que

    temos outras medidas igualmente

    importantes para nossa vida e nosso

    futuro. Nossas terras e recursos so pe-

    quenos e temos que conserv-los para

    ns e para nossos filhos; temos que pro-

    duzir sempre e manter a sade da fam-

    lia. Muitos agricultores tm problemas

    de sade com o uso de agrotxicos.

    Assumimos tambm o compromisso

    com o consumidor, que deseja ter um

    produto de maior qualidade, livre des-

    ses insumos qumicos que tm trazido

    problemas para a sua sade. O merca-

    do, atualmente, valoriza o produto livre

    de agrotxicos e esta uma oportuni-

    dade que consideramos importante,

    oferecendo um produto diferenciado,

    socialmente justo e de qualidade ali-

    mentar.

    IA - Quais os principais produtos da

    agricultura familiar gerados pelo

    trabalho dessas Associaes?

    Margarida Pinheiro A Amart pos-

    sui grupos de gerao de renda que for-

    necem hortalias, frutas, frango, ovos,

    temperos, produtos de panificao, do-

    ces variados, multimistura, artesanatos

    em tecido e palha, picles e outros pro-

    dutos para a comercializao na Apat,

    os quais so fornecidos para a rede de

    intercmbio ecolgica do Rio de Janeiro,

    para o mercado local e para o projeto

    da Conab, que abastece entidades bene-

    ficentes, como a Apae, os asilos e as

    merendas escolares de Tombos e Pedra

    Dourada, MG.

    Vanderli Pinheiro A Apat no

    produz, mas incentiva a produo das

    famlias agricultoras, beneficia os prin-

    cipais produtos e organiza a produo

    para a comercializao. Os principais

    produtos so o caf, a cana e o leite.

    A diversificao para o mercado gran-

    de e inclui gros, hortalias, frutas, aves

    e ovos, alm de processados caseiros,

    como doces e produtos de padaria.

    IA - Qual a diferena entre os sistemas

    agroecolgico e orgnico?

    Margarida Pinheiro O sistema de

    produo agroecolgico considera a

    propriedade como um todo. Preocupa-

    se com a vida dos seres vivos e com a

    natureza. J o sistema orgnico, alm

    das preocupaes citadas, no diversi-

    fica a produo, pois pode-se certificar

    apenas uma cultura, desde que sejam

    cumpridas as exigncias legais.

    Vanderli Pinheiro A viso agro-

    ecolgica mais ampla, resultado de

    uma mudana de viso da maneira de

    produzir, de relacionar com a natureza,

    com os meios de produo e com os

    nossos semelhantes. O sistema org-

    nico, para ns, diz respeito a uma tc-

    nica, a uma forma de produzir sem a

    utilizao de insumos qumicos, que

    resulta em um produto de melhor qua-

    lidade nutricional. Um produtor pode

    ter um sistema orgnico em uma parte

    da propriedade, como uma horta por

    exemplo, mas manter outros sistemas

    convencionais de produo na mesma

    propriedade. Nesse caso o produtor tem

    um sistema orgnico, mas no agro-

    ecolgico.

    IA - Quais os ganhos obtidos pelos agri-

    cultores familiares com a adoo

    dos sistemas agroecolgico e org-

    nico de produo?

    Margarida Pinheiro Os ganhos,

    em termos de produtividade, ainda no

    podem ser quantificados. Agora, rea-

    lidade os ganhos em termos de preser-

    vao da natureza, da gua, das plantas

    medicinais, da qualidade do solo, devi-

    do ao reaparecimento de plantas nati-

    vas, aumento de microorganismos e da

    fauna, que contribuem de forma signifi-

    cativa para o equilbrio ecolgico. Outro

  • I n f o r m e A g r o p e c u r i o , B e l o H o r i z o n t e , v . 2 6 , 2 0 0 5 . E d i o e s p e c i a l

    ganho diz respeito sade, devido ao

    consumo de alimentos saudveis, pelo

    uso da fitoterapia e pela menor depen-

    dncia dos produtos alopticos e qu-

    micos.

    Vanderli Pinheiro Um ganho fun-

    damental para todos foi verificado na

    sade dos agricultores. H alguns que

    at hoje sofrem as seqelas do uso de

    venenos, inclusive aqueles que nunca

    usaram esses produtos, mas foram con-

    taminados pelos dos vizinhos.

    A nossa organizao e a valorizao

    dos produtos agroecolgicos da agri-

    cultura familiar levaram a um ganho

    importante da auto-estima dos agricul-

    tores e agricultoras. Em nosso munic-

    pio, isto evidente, pois, at bem pou-

    co tempo, ser da roa, do meio rural,

    era sinnimo de atraso, de ignorncia.

    Hoje, temos conhecimento e uma cultu-

    ra que tem seu valor reconhecido, no

    apenas pela sociedade local, mas tam-

    bm pelos prprios agricultores.

    Outro ganho fundamental a melho-

    ria da renda das famlias, resultado da

    diversificao da produo e da comer-

    cializao organizada dos produtos da

    agricultura familiar.

    IA - No caso especfico do caf, como

    ficou a produtividade com a ado-

    o de sistemas agroecolgico e

    orgnico?

    Margarida Pinheiro No incio do

    desenvolvimento desses sistemas ocor-

    reu um perodo de transio, no qual a

    produtividade caiu. Atualmente, com

    o maior ganho de conhecimento e com

    a melhoria da qualidade do solo, a pro-

    dutividade passou a crescer gradativa-

    mente.

    Vanderli Pinheiro A produtivida-

    de diminuiu, mas obtivemos outros re-

    sultados, outros ganhos que so impor-

    tantes. A reduo do custo da produo,

    por exemplo, com a diminuio das

    capinas, a melhoria na conservao do

    solo e a maior estabilidade da produo,

    em nossa avaliao, tem compensado a

    reduo de produtividade das lavou-

    ras.

    IA - Quais as principais dificuldades da

    cafeicultura familiar, desde a pro-

    duo at a comercializao?

    Margarida Pinheiro Existem difi-

    culdades em vrias fases: desde a produ-

    o e transporte de compostos orgnicos,

    at a falta de infra-estrutura adequada

    para secagem, armazenamento, benefi-

    ciamento e questes de logstica. Outro

    problema a inexistncia da certificao

    de produtos agroecolgicos. No sistema

    orgnico, h dificuldade na obteno

    de selos, dentro das condies da agri-

    cultura familiar, que sejam reconheci-

    dos nacional e internacionalmente.

    Finalmente, vem a comercializao, que

    bastante comprometida, devido a pro-

    blemas de infra-estrutura e de logstica,

    j mencionados.

    Vanderli Pinheiro - Com relao ao

    manejo agroecolgico, a principal dificul-

    dade a adubao orgnica da lavoura.

    As propriedades so muito pequenas

    e no produzem matria orgnica sufi-

    ciente para a adubao dos sistemas

    produtivos, obrigando o agricultor a

    importar de outras regies. O transporte

    desse material para as lavouras repre-

    senta um custo adicional para o sistema.

    Nossa regio tem dificuldades cli-

    mticas para obteno de um caf de

    qualidade. Chove muito e faltam estru-

    turas de secagem em nvel de proprie-

    dades.

    Na questo da comercializao, a

    dificuldade assegurar o mercado di-

    ferenciado do produto orgnico, por

    isso, estamos investindo em uma estru-

    tura para o beneficiamento e a indus-

    trializao do produto.

    IA - Quais so as estratgias que os

    agricultores familiares esto ado-

    tando para enfrentar essas dificul-

    dades?

    Margarida Pinheiro Ns agricul-

    tores e agricultoras familiares estamos

    nos organizando em associaes e coope-

    rativas, trabalhando a formao e a capa-

    citao, atravs de cursos desde a for-

    mao de mudas, passando pelo sistema

    de manejo, como adubao orgnica e

    verde, colheita, ps-colheita, armazena-

    mento, beneficiamento, industrializa-

    o e buscando desenvolver um sistema

    de comercializao conjunta.

    A principal estratgia fortalecer a

    agricultura familiar tornando-a inde-

    pendente. Para isso, estamos colocando

    nossos produtos em mercados locais

    de vrios municpios da Zona da Mata

    mineira com marcas prprias: Dapat,

    em Tombos; Dom Divino, em Divino;

    Cho Feliz, em Espera Feliz e Pedra

    Redonda, em Araponga.

    Vanderli Pinheiro Com relao

    adubao orgnica, temos buscado alter-

    nativas coletivas, como a do ano pas-

    sado, quando realizamos uma compra

    de torta de mamona da Bahia e conse-

    guimos reduzir o custo e a dificuldade

    de transporte para a lavoura, por ser

    um produto mais concentrado e usado

    em menor quantidade em relao ao

    composto ou esterco de gado.

    A obteno de um caf de bebida,

    para a maioria dos agricultores, um

    desafio e temos buscado desenvolver

    processos de formao com esse obje-

    tivo. Faltam ainda recursos para um

    trabalho mais ampliado nesse setor, que

    viabilizem, alm do conhecimento, as

  • I n f o r m e A g r o p e c u r i o , B e l o H o r i z o n t e , v . 2 6 , 2 0 0 5 . E d i o e s p e c i a l

    estruturas familiares e comunitrias

    para o beneficiamento e industrializao

    do caf.

    A comercializao do caf, com a

    criao da marca da Apat, uma das

    estratgias de insero no mercado, a

    qual busca tambm a superao das

    dificuldades prprias a toda cadeia

    produtiva desse produto da agricultura

    familiar.

    IA - Qual deve ser o papel do Estado na

    resoluo dos problemas enfrenta-

    dos pelos agricultores familiares?

    Margarida Pinheiro J existem li-

    nhas de crdito como o Pronaf do go-

    verno federal. Entretanto, essas linhas

    j so direcionadas. O papel do Esta-

    do apoiar e fomentar linhas de cr-

    dito, que contemplam a diversificao

    da agricultura familiar, e oferecer tec-

    nologias e assistncia tcnica gratui-

    ta, com profissionais qualificados, que

    atendam s necessidades dos agricul-

    tores e agricultoras no processo de pro-

    duo agroecolgico. O atendimento s

    necessidades da agricultura familiar

    deve ser feito via organizaes de agri-

    cultores e no vinculados a interesses

    polticos.

    Vanderli Pinheiro Um apoio fun-

    damental pode ser dado no campo da

    assistncia tcnica e da pesquisa, real-

    mente adequadas agricultura familiar,

    atendendo s demandas a partir da nos-

    sa realidade. O Estado deveria propor-

    cionar mais acesso formao tcnica

    e gerencial dos prprios agricultores,

    em especial dos mais jovens. Temos que

    ampliar o acesso ao crdito, ainda que

    reconheamos que o Pronaf represen-

    tou um avano muito importante nos

    anos recentes. Uma dificuldade em re-

    lao ao mercado quanto legislao.

    importante que haja um processo de

    desburocratizao da comercializao,

    e um apoio do Estado seria fundamental

    para multiplicar iniciativas de comercia-

    lizaes associativas da agricultura fa-

    miliar.

    Deveria tambm ser estudada uma

    reduo da tributao dos produtos

    industrializados da agricultura familiar,

    em especial do caf, e uma adequao

    da legislao sanitria, sem comprome-

    timento da qualidade final dos pro-

    dutos.

    IA - A pesquisa cientfica tem contri-

    budo para o desenvolvimento de

    sistemas agroecolgicos e orgnicos

    de caf?

    Margarida Pinheiro Tem contri-

    budo por meio de trabalhos de pes-

    quisa desenvolvidos em parceria com

    a EPAMIG, CTA e a UFV. Agricultores

    e agricultoras esto experimentando

    cultivares de caf adaptadas s condi-

    es edafoclimticas da nossa regio e

    resistentes ou tolerantes s doenas e

    s pragas; sistemas de adubao org-

    nica e verde; preparados homeopticos

    e biofertilizantes.

    Vanderli Pinheiro H mais de trs

    anos temos participado de uma pesquisa

    de variedades de caf. Nessa pesquisa,

    coordenada pela EPAMIG, foram plan-

    tadas 36 variedades em um campo de

    experimentao e, outras duas, em reas

    de agricultura familiar, com um nmero

    menor de variedades. Nessa atividade

    tem sido muito importante a formao

    do agricultor e a troca de conhecimento

    com os tcnicos que acompanham o tra-

    balho. Consideramos a pesquisa cien-

    tfica uma escola, na qual os agricultores

    tm aprendido muito. Nessa rea, temos

    tido conhecimentos novos sobre o ma-

    nejo do solo, o uso de leguminosas e

    outros. A lavoura das reas experimen-

    tais est muito bonita e ajudou a com-

    provar a viabilidade do manejo orgnico

    do caf, sendo uma experincia prti-

    ca muito vlida para os agricultores da

    regio.

    IA - O que vocs esperam da pesquisa

    cientfica alm do que j est sendo

    desenvolvido?

    Margarida Pinheiro O que espe-

    ramos que cresa a pesquisa participa-

    tiva no somente com o caf, mas com

    outras culturas como cana, arroz, milho

    e criao animal. Esperamos tambm a

    soma de esforos dos vrios rgos de

    pesquisa, que j trabalham para gerar

    tecnologias em conjunto com os agricul-

    tores, com a aplicabilidade adequada

    s nossas condies.

    Vanderli Pinheiro Nossa expecta-

    tiva a de que o que est sendo aprendi-

    do nesse trabalho possa ser difundido

    para um nmero maior de agricultores,

    a partir da comprovao que estamos

    tendo da viabilidade de produo de

    qualidade de um caf orgnico nas reas

    experimentais.

    importante que os rgos de pes-

    quisa continuem acompanhando os sis-

    temas da agricultura familiar e apiem

    os sistemas diversificados e todos os

    aspectos da cadeia produtiva, pois a

    sustentabilidade dos sistemas diz res-

    peito no s produo, mas tambm

    ao processamento e comercializao

    dos produtos. Acredito que, a exemplo

    do trabalho que est sendo realizado

    em nosso municpio, a pesquisa cient-

    fica deva ser realizada junto aos agricul-

    tores e s agricultoras de maneira par-

    ticipativa, respeitando o conhecimento

    e a cultura locais.

  • I n f o r m e A g r o p e c u r i o , B e l o H o r i z o n t e , v . 2 6 , p . 9 - 1 6 , 2 0 0 5 . E d i o e s p e c i a l

    9Cafeicultura familiar

    1D.Sc. Sociologia da Cincia e da Tecnologia, Prof. Adj. UFV-Depto Economia Rural, CEP 36570-000 Viosa-MG. Correio eletrnico: [email protected]

    O caf num outro retrato do Brasil rural:o lugar da agricultura familiar

    France Maria Gontijo Coelho1

    INTRODUO

    Quando se fala em agricultor familiar,ainda vem na mente de alguns pesquisado-res a imagem do personagem tpico do ladomais pobre do campo e que dele nada sepode esperar. De sol a sol, luta apenas pelasobrevivncia de sua famlia. Seu esforo,apesar de grande, rende to pouco que, como tempo, ocorrer descapitalizao natu-ral. Essa viso no permite que se penseno agricultor familiar como um cidado quetem um papel importante no desenvolvi-mento do Pas.

    Essa imagem e expectativa do que hoje denominado agricultura familiar a pre-sentificao do fracassado pequeno pro-dutor. Nos anos 80, ele foi contempladocom algumas polticas compensatrias emuito ocupou a mente de pesquisadores,que evidenciaram, nas estatsticas, uma ten-dncia perversa de desaparecimento dessemodo de fazer agricultura, considerado,ento, atrasado e pouco rentvel. A moder-nizao tinha um sentido indelvel e des-truidor para esses pequenos produtores,que, necessariamente, seriam engolidoscom o avano do capital no campo.

    Resumo - O que significa a cafeicultura familiar para a agricultura em Minas Gerais?O que significa agricultura familiar? Pequeno produtor, conceitualmente, equivale aagricultor familiar? O esclarecimento dessas questes, no contexto atual, deixou de serevidente. H necessidade de pensar as categorias conceituais e os procedimentos depesquisa que descrevem a paisagem socioeconmica agrria contempornea de MinasGerais e que, tambm, orientam polticas pblicas e pesquisas tcnicas na agricultura.

    Palavras-chave: Cafeicultura familiar. Economia. Sociologia rural.

    O processo de modernizao, com aintensificao no uso do capital na agricul-tura, trouxe grandes mudanas no espaoagrrio, mas algumas continuidades perma-necem. Conseqentemente, so exigidosnovos conceitos para compreender essanova realidade.

    O caso do caf exemplar. Como umproduto historicamente estratgico paraas exportaes brasileiras, mesmo que emrazo da diversificao das commodities,tenha cado em importncia relativa no qua-dro geral das receitas cambiais (de 50,64%em 1961, para 3,1% em 2001), ainda continuasendo um produto importante para o Pase, mais ainda, para a agricultura familiar(Quadro 1).

    A participao do caf nas exportaestem garantido ao Brasil o primeiro lugarcomo produtor e exportador no mercadomundial, em 2005, alm de ser o segundoPas consumidor desse produto no mundo.A importncia, a capacidade de resistnciae a persistncia do produto so notveis.

    Contudo, a maioria dos dados ou estu-dos sobre caf tem por base critrios no-diferenciadores das formas sociais de pro-

    duo. Os dados so, normalmente, apre-sentados de forma genrica, agrupando aproduo familiar com a patronal. Algunsmostram a produo por tamanho dos esta-belecimentos, o que no caracteriza neces-sariamente uma produo familiar. Essasanlises podem representar um quadroenviesado, se considerarmos outras cate-gorias tericas para a compreenso dasformas de produo na agricultura e espe-cificamente do caf, um produto intensoem sazonalidade do trabalho.

    Por isso, numa primeira questo,pergunta-se como as diferenas na formasocial de produo afetam os procedimen-tos analticos, os resultados das pesquisase mesmo a interpretao da sustentabili-dade do processo produtivo? Ao se consi-derar a distino entre agricultura familiare agricultura patronal, v-se que os dadosda Fundao Instituto Brasileiro de Geogra-fia e Estatstica (IBGE) ou de outras insti-tuies necessitam ser tratados de formadiferente para que possam revelar um outrosignificado para a agricultura familiar nacultura do caf. Teoricamente, as estruturassociais de produo, ou seja, as formas de

  • I n f o r m e A g r o p e c u r i o , B e l o H o r i z o n t e , v . 2 6 , p . 9 - 1 6 , 2 0 0 5 . E d i o e s p e c i a l

    10 Cafeicultura familiar

    trabalho (assalariamento, parceria, emprei-tada ou familiar) do ao caf, como a qual-quer produto agrcola, um gosto diferen-ciado.

    QUEM SO OSAGRICULTORES FAMILIARESE O QUE REPRESENTAM?

    Conforme pesquisa coordenada porGuanziroli e Cardim (2000), realizada pormeio do convnio Instituto Nacional deColonizao e Reforma Agrria/Organiza-o das Naes Unidas para Agricultura eAlimentao (Incra/FAO), na qual foramanalisados os dados do Censo Agropecu-rio 1995-1996, a forma familiar foi destaca-da do conjunto de microdados do Censo eapresentou um outro retrato surpreendentepara o Pas. Mas isso s foi possvel, quan-do se teve por base um outro quadro dereferncia terica. O desafio metodolgicofoi grande, na medida em que esse estudotornou operacional um conceito de agricul-tura familiar no tratamento diferenciado dabase de dados do Censo Agropecurio de1995-1996.

    Para melhor entender o que Guanzirolie Cardim (2000) chamaram de agricultoresfamiliares, necessrio admitir que os ter-mos agricultor familiar e pequeno produtor

    remetem a olhares bem distintos sobre omundo rural. Perceber essa diferena per-ceber o papel que desempenham e o sig-nificado poltico e histrico dessas duasdenominaes. Essa reconceitualizaoterica e emprica reorienta as aes depesquisa, pois coloca novos desafios, nos nas pesquisas socioeconmicas, mastambm nas pesquisas fitotcnicas. Essenovo contexto conceitual questiona pro-psitos e perspectivas nas investigaese nas orientaes tcnicas de agricultores,pois o mesmo produto (caf, por exemplo)adquirir significados distintos na formapatronal de produo e na forma familiar.Tanto isso se faz necessrio que o prpriomercado j vem incorporando configura-es e valoraes sociais e ambientais antesimpensadas. Essas novas indagaes abran-gem tanto o ponto de vista metodolgico,quanto o tcnico e o tecnolgico.

    No contexto familiar, o caf, por exem-plo, no pode ser tratado mais como umproduto genrico, mas como uma cultura,uma cafeicultura, como j dizia Stolcke(1986), que varia em razo das diferenasnas relaes de trabalho na produo, ta-manho das propriedades, disponibilidadede recursos, expectativas quanto ao futu-ro, tipos de mercado e valor do trabalho

    humano, se trabalho de homens ou de mu-lheres.

    Nesse sentido, ressalta-se que, quandoum agricultor familiar adoece, por exemplo,por intoxicao com agroqumicos, ou porqualquer outro motivo, a situao fica mui-to complicada. No se trata de simplesreposio de um fator de produo (mo-de-obra), como acontece na agriculturapatronal. No apenas questo de gestode um custo da produo ou de aumentode preo de um recurso. Objetivamente,outros valores circulam nesse contexto.A sade do trabalhador e de sua famlia, asquestes de sanidade das plantas e dosanimais e a perpetuao da qualidade dosolo fazem parte de uma outra contabili-dade.

    Problemas como esses no podem sertratados apenas como elementos de dis-curso ou de denncias da insustentabili-dade social ou ambiental. No contexto daagricultura familiar, gente e ambiente for-mam um sistema interligado. Hoje, a incor-porao de uma viso crtico-social e eco-lgica dos sistemas de produo umacompetncia indispensvel a qualquer agen-te de desenvolvimento ou de pesquisa.

    Questes acerca de como fazer umaagricultura que no destrua o trabalhador

    1o Pecuria de leite 279.201 11.866.534,2 788.753.982,00 1.356.495.413,51 2.186.547.882,00

    2o Caf 159.360 4.207.585,3 500.335.026,45 740.990.772,72 1.081.188.157,00

    3o Pecuria de corte 176.905 8.537.632,8 398.254.134,00 947.648.757,75 1.468.865.733,00

    4o Cana-de-acar 81.380 3.146.838,9 294.452.587,93 487.853.843,51 715.329.777,00

    5o Hortalias 134.189 3.447.224,5 281.009.608,00 625.847.521,16 1.001.341.615,00

    6o Galinhas 337.324 10.805.337,9 258.149.807,00 1.314.902.826,45 2.094.876.393,00

    7o Milho 280.868 9.351.943,9 257.955.584,43 1.021.899.003,62 1.714.044.459,00

    8o Laranja 101.848 3.588.931,9 126.578.237,13 466.369.183,56 739.210.383,00

    9o Banana 107.767 3.454.579,0 95.750.653,54 452.569.717,59 653.153.962,00

    10o Tomate 17.700 356.989,9 91.309.378,84 109.631.638,65 208.397.979,00

    QUADRO 1 - Dez principais produtos agricultura familiar - Regio Sudeste

    Valor de

    produo total

    (R$)

    FONTE: Censo Agropecurio (1998).

    NOTA: Projeto de Cooperao Tcnica Incra/FAO - Tabulaes especiais do Censo Agropecurio 1995-1996.

    Classifi-

    caoNome

    Estabelecimento

    (no)

    rea total

    (ha)

    Valor de produo

    do produto

    (R$)

    Renda total

    (R$)

  • I n f o r m e A g r o p e c u r i o , B e l o H o r i z o n t e , v . 2 6 , p . 9 - 1 6 , 2 0 0 5 . E d i o e s p e c i a l

    11Cafeicultura familiar

    e a terra na qual ele trabalha so um grandedesafio, depois da experincia de trabalhocom pacotes tecnolgicos industriais. Con-siderando as diferenas e as estratgiastradicionais dos estabelecimentos familia-res, poder-se-ia, ainda, perguntar comocolocar o novo (a inovao), garantindo aperpetuao do tradicional, que, com cer-teza, d segurana s decises desses agri-cultores. Esses so aspectos a serem pen-sados no apenas no momento da difusodos resultados da pesquisa, mas que estopresentes em nossas aes investigativasdesde a construo dos problemas. naconstruo partilhada dos problemas quereside a mais efetiva forma de pesquisa par-ticipativa, pois envolve pesquisadores/agentes de desenvolvimento com agri-cultores.

    Para que essas questes sejam poss-veis de ser pensadas, um princpio gnosio-lgico (de conhecimento) torna-se indis-pensvel aos agentes pblicos, ou seja, queeles apostem nesse legtimo modo de vidafamiliar no campo. Essa hiptese poderajudar a buscar, ou encontrar, sadas para asuperao dos limites de reproduo daagricultura familiar.

    Em muitos casos, onde a degradaoambiental e a expropriao do trabalho somuito intensas, essa busca se faz tambmpara fundamentar outra questo, que o co-nhecimento agronmico ainda no conse-guiu responder de forma completa, qualseja: Como produzir e recuperar ao mesmotempo, garantindo sade e qualidade devida para quem trabalha e produz no cam-po? Assim se introduz Agroecologia comouma cincia apropriada s condies doprocesso familiar de produo na agricul-tura. Para aceitar a possibilidade dessasquestes, uma dvida criadora tambm secoloca para nossa reflexo: Por que faze-mos assim e no de outro jeito?.

    Muitas previses pessimistas sobre osfamiliares no se tm confirmado. Nos anos90, esses bravos agricultores permane-ceram agricultando e at mesmo aumenta-ram em nmero. Ao analisar o Censo Agro-pecurio 1995-1996, Guanziroli e Cardim

    (2000), na medida em que as tabelas esta-tsticas, na forma como eram apresentadas,no permitiam distinguir a agricultura fa-miliar da agricultura patronal, em algunsdados, a superioridade da produo patro-nal parecia indiscutvel.

    Essas estatsticas, em sua forma brutaou agregada por valores indistintos, impli-caram definies e alocaes privilegiadasde recursos e polticas pblicas para aagricultura patronal, pois, com certeza, umEstado responsvel e democrtico neces-sita investir naquilo que traz maior retornoeconmico, no s para uns, mas tambmpara a sociedade como um todo.

    Outra anlise do quadro da agriculturas foi possvel, quando se partiu de outrahiptese, qual seja: que a categoria socio-econmica agricultura familiar poderia teruma importncia econmica maior do quese acreditava.

    Assim, os autores classificaram os esta-belecimentos como de agricultores fami-liares, aqueles marcados por relaes detrabalho familiar como fora bsica de suaproduo. Estariam tambm includas nestacategoria as unidades de produo queutilizam o trabalho contratado (eventual oupermanente), desde que esses no suplan-tassem o esforo do trabalho familiar. Almdisso, a dimenso territorial continuou sen-do tomada como critrio na construo dacategoria, mas no limite de at 30 mdulosregionais, pois, assim, seria evitado o visde incluso acidental de estabelecimentospatronais que utilizam apenas dois traba-lhadores contratados. Com esses critrios,percebe-se que no se pode falar de agricul-tura familiar sem distingui-la da patronal.

    Conforme o Censo Agropecurio 1995-1996 (Censo..., 1998), existiam no Brasil4.859.864 estabelecimentos, ocupando umarea de 353,6 milhes de hectares. Dessetotal, de acordo com a metodologia ado-tada para classificao dos estabelecimen-tos, os familiares seriam 4.139.369, ocupan-do uma rea de 107,8 milhes de hectares.Ou seja, 85,2% das unidades produtivas,no Brasil, eram de agricultores familiares,mas ocupavam 30,5% da rea.

    O Valor Bruto da Produo (VBP) agro-pecuria, ou seja, tudo que se produziu,entre animais e vegetais, foi de R$ 47,8bilhes, em 1995-1996. Os agricultores fa-miliares foram responsveis por R$ 18,1bilhes do VBP, ou seja, 37,9% do valortotal. Contudo, esses agricultores familiaresreceberam apenas 25,3% dos R$ 3,7 bilhesdo financiamento total do governo federalpara a agricultura daquela poca. Isso sig-nificou tambm que a chamada agriculturapatronal, que ocupava 67,9% da rea e querepresentava 11,4% dos estabelecimentosagropecurios, recebeu 75% dos financia-mentos pblicos da poca e produziu 61%do VBP.

    Por essa anlise, fica evidente que asuperioridade produtiva das unidades pa-tronais de produo, no Brasil, no umdado absoluto, mas relativo aos financia-mentos pblicos. Alm disso, se dividirmoso Valor Bruto da Produo dos patronaispela rea ocupada, possvel ver que orendimento por rea, entre os familiares, mais intenso.

    Ainda dentro dos critrios de classifi-cao estabelecidos, considerando o Pascomo um todo, observa-se que 76,9% dos esta-belecimentos familiares utilizavam apenasmo-de-obra familiar; apenas 4,8% utiliza-vam mo-de-obra familiar com temporriae, menos ainda, 0,3%, utilizava mo-de-obrafamiliar, temporria com permanente.

    Num levantamento do trabalho tempo-rrio realizado em 31/12/1995, na agricultu-ra familiar ficavam 986.678 trabalhadores ena patronal, 800.235, como esclareceramGuanziroli e Cardim (2000):

    Embora os familiares apresentem um

    nmero superior ao patronal nesta da-

    ta, isto no significa que os familiares

    utilizam-se do emprego temporrio com

    maior freqncia e intensidade que os

    patronais, ao longo do ano. Pelo contr-

    rio, a tendncia, pela relao obtida entre

    o percentual de trabalho dos membros

    da famlia em comparao com o trabalho

    contratado, demonstra que os patronais

    utilizam-se com muita intensidade deste

    tipo de trabalho.

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    12 Cafeicultura familiar

    Quanto ao trabalho, apenas 4,3% dosfamiliares contratavam empregados perma-nentes e 2,9% contratavam apenas um;0,8%, dois, e apenas 0,6%, mais de dois.Como servios de empreitada, 7,4% dos fa-miliares contratavam esses servios, mass para mo-de-obra, e poucos 5,9% con-tratavam empreitada de mquinas e de mo-de-obra.

    Entre os patronais, 62,7% contratavamempregados permanentes; 23,4%, apenasum; 15%, apenas dois; 24,4%, mais de doise 29,1% contratavam empreitada de mo-de-obra.

    O nmero de pessoas ocupadas porestabelecimento maior entre os patronais,com mdia de 6,4 pessoas contra 3,3 entreos familiares. Contudo, ao se tomar a reapor nmero de pessoas ocupadas, ficouclaro que os familiares ocupam nmeromaior de pessoas. Assim, na agriculturapatronal so necessrios 67,5 hectares paraocupar uma pessoa e, na agricultura familiar,7,8 hectares. Essa distribuio varia muitoao serem consideradas as regies. Na Re-gio Centro-Oeste, por exemplo, entre ospatronais so necessrios 217 hectares,para ocupar uma pessoa, e 25 hectares entreos familiares. No Sudeste, so 33 hectaresentre os patronais e 9 hectares entre os fa-miliares. Relativo rea, o nmero de pes-soas ocupadas na agricultura familiar maior.

    Como se v, todos esses dados da agri-cultura familiar variam bastante por regioe por tipos de agricultores familiares, que,por isso, no podem ser entendidos comouma categoria totalmente homognea. Den-tro da prpria categoria, existem diferenassignificativas. Fatores como localizaoeconmica, script tecnolgico e condiesde capitalizao, em razo das possibili-dades de insero no mercado (formal ouem redes de trocas solidrias) fazem dosagricultores familiares um universo prenhede indagaes e de tipologizaes.

    Dentro da categoria, perpetua uma estru-tura fundiria muito desigual, pois apenas5,9% desses agricultores tm rea superiora 100 hectares, mas ocupam 44,7% de toda

    a rea. Essas diferenciaes intensificam-se em algumas regies e est intimamenterelacionada com as possibilidades de traba-lho e renda desses agricultores. Os proprie-trios com menos de 5 hectares, no Nor-deste, por exemplo, chegam a ter inclusiverenda agrcola negativa. Mesmo assim, aose tomar o quadro do valor relativo da pro-duo familiar, em termos de Brasil, elaapresenta-se muito significativa.

    A partir dessa anlise do Censo Agro-pecurio 1995-1996, Buainain et al. (2002)revelaram que a Renda Total (RT) agro-pecuria dos agricultores familiares foi de50,9% do total do Pas, o que equivaleu aR$22 bilhes. Entre os familiares, nota-se adiferena entre o VBP j citado (37,9%) e ovalor dessa RT. Essa diferena indica umuso mais racional dos recursos e menor cus-to na gesto da produo. Contudo, entreos agricultores mais descapitalizados, suamanuteno s possvel com a inclusode rendas no-agrcolas (aposentadorias etrabalhos fora da unidade de produo, porexemplo). No se pode negar a existnciadesses extremos no conjunto da catego-ria.

    Mesmo considerando a enorme variabi-lidade regional dos estabelecimentos fami-liares, em termos de rea mnima, produoe renda, pode-se dizer que os agricultoresfamiliares: utilizam os recursos produtivosde forma mais intensiva que os patronais,pois, mesmo detendo menor proporo deterra e do financiamento disponvel, relati-vamente, produziram e empregaram maisque os patronais (BUAINAIN et al., 2002).

    Por isso, neste novo sculo, os agricul-tores familiares no so apenas unidadesque demandam polticas de socorro sociale nem tampouco adereos sociais na reali-dade agrria brasileira. Alm de sua impor-tncia econmica, os familiares so umacategoria social que desafia e demanda di-versas aes pblicas e, principalmente,investimentos em novas pesquisas ade-quadas a uma perspectiva de perpetuaoeconmica desses personagens, que j secolocam no cenrio como cidados de di-reitos e agentes econmicos importantes

    para a autonomia alimentar e para a quali-dade de vida de parte significativa da popu-lao do Pas.

    Como detalhe para atualizar a reflexo,em 2003/2004, o financiamento do governofederal para a agricultura como um todo foide R$ 32,5 bilhes, sendo R$ 5,4 bilhesdesses destinados ao Programa Nacionalde Fortalecimento da Agricultura Familiar(Pronaf). Para o Plano Safra de 2005/2006,esse montante subiu para R$ 9 bilhes, jus-tificados da seguinte forma pelo governofederal:

    Hoje, a agricultura familiar representa

    38% da produo agropecuria nacio-

    nal. Quando se considera a produo do

    leite, feijo, banana, milho, mandioca,

    cebola, sunos e fumo, esse percentual

    aproxima-se ou ultrapassa os 50%. Alm

    disso, 77% da populao empregada no

    campo est em propriedades familiares

    (CRDITO..., 2005).

    ESCLARECENDO CONCEITOSE PENSANDO SOBRENOSSAS AES DE PESQUISA

    O pequeno produtor, classificado pelotamanho de sua terra e pela rala produo,quase totalmente descapitalizado, voltadoquase exclusivamente para as atividadesde autoconsumo, com pouca ou nenhumarelao social para alm do espao doms-tico familiar, recebe, hoje, outro tratamentoanaltico, denominao e conceitualiza-o.

    Enquanto agricultor familiar, seguindoa tradio das teorias do campesinato, eleno pode ser descrito como aquele indiv-duo arredio, pejorativamente tradicional,que apenas vive na e da roa da famlia.Essa uma imagem que congela e retira apossibilidade de criao de interpretaese pesquisas condizentes com os desafiosque esses agricultores enfrentam na suainsistente e gloriosa forma de vida no cam-po.

    O campesinato, histrica e conceitual-mente, apareceu quando a diviso socialdo trabalho sustentou a criao de certacentralizao administrativa, na qual alguns

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    13Cafeicultura familiar

    membros da sociedade colocaram-se comosubjugados. Assim, o campons apareceusocialmente como aquele que, ao agricultar,era obrigado a entregar o excedente para opoder que se constitusse. Conceitualmen-te, isso se deu com o campons na con-dio de servo, na Idade Mdia, ou depoysan, depois da Revoluo Francesa,no final do sculo 18. Essa subordinao histrica, conforme Pessanha (2004).

    Por isso, importante perceber essacondio histrica dos camponeses na so-ciedade: como expropriado do excedenteque consegue produzir e no como umindivduo isolado ou autnomo. Historica-mente, como categoria social, ele se man-tm no s porque luta, mas tambm porquea sociedade dele necessita, pois tem afuno de provedor social de alimentos eprodutos agrcolas para transformaoartesanal ou industrial.

    No caso brasileiro, em sua especifici-dade histrica caracterstica, nas diversasdiferenciaes regionais, pela prpria his-tria de enfrentamentos (como nenhumaoutra categoria social vivenciou), nossoscamponeses construram, como disse Wan-derley (1999), uma enorme diversidade epatrimnio sociocultural, que os habilitaa adaptaes criativas diante da pressomodernizadora da sociedade.

    Contudo, no se pode deixar de ver queesse mesmo contexto de modernidade queos controla e os condiciona promove suamudana em protagonistas de seu prpriodestino, ou seja, em atores polticos viaassociativismo em organizaes. Estejameles no Movimento dos Atingidos por Bar-ragens (MAB), no Movimento dos Tra-balhadores Rurais Sem-Terra (MST) oumesmo nas Associaes de Agricultores,so evidentes as manifestaes de que seumundo no mais exclusivamente rural.A organizao de agricultores familiares oude trabalhadores rurais, exclusiva ou no,explicita a busca por alternativas de sobre-vivncia e reproduo mais confortveisneste mundo internacionalizado e domi-nado pelo capital financeiro.

    Essas aes os colocam diretamente no

    bojo do universo poltico e de enfrenta-mento das foras do mercado oligopoliza-do ou monopsonizado. Essas organizaespodem ser mais ou menos autnomas, de-pendendo da histria e dos interessesenvolvidos na mobilizao e nos motivosde sua origem, pois variam quanto na-tureza do movimento mais amplo no qualse engajam. Estes movimentos podem serfomentados por motivos ou interesses pr-prios aos agricultores, mas tambm poraes personalistas de polticos tradicio-nais, que vem nessas organizaes formasde ganhos pessoais ou ideolgicos, distan-tes da perspectiva de incluso social ou adistribuio, mais eqitativa, das oportu-nidades, to necessrias aos agricultoresfamiliares.

    Nesse processo, que de luta constan-te por reconhecimento e resistncia, se halguma estagnao, talvez ela esteja noolhar daqueles habituados a ver nos fami-liares, ou camponeses, um beco sem sada.Para os que tm oportunidade de convivercom esses agricultores e suas organiza-es, alm de participar de suas formas desuperao de limites, nos espaos nos quaisj conseguem se impor como cidados dedireitos, possvel ver como essa categoriasocial de agricultores exemplar na tradi-o da mudana.

    Nesse contexto evidencia-se a impor-tncia das polticas pblicas de desenvol-vimento local. Essas polticas, ao visaremfacilitar maior autonomia decisria a essesagricultores e efetivamente dot-los definanciamento pblico condizente comsuas demandas e papis, s concretizaroesses objetivos, se suas aes regerem-sepela transparncia e sinceridade, que ga-rantem maior dialogicidade nas suas inte-raes, democratizao e publicizao dosatos coletivos. Mas, no entanto, quando,em nvel local, instalam-se aes pblicascompensatrias, personalistas e assisten-cialistas, as polticas s fazem minar a pos-sibilidade de um desenvolvimento localsustentvel, autnomo e que favorea aincluso econmica e produtiva dos agri-cultores familiares. Somente na perspectiva

    no paternalista que essas polticas ten-dem a fortalecer a organizao protagonistadesses agricultores.

    O mundo capitalista muitas vezes tor-ce contra a existncia dessa forma de vida.A manuteno do direito de acesso terrae da estrutura familiar de produo, noBrasil, compe o quadro tendente exclu-so dos produtores familiares. Mesmoassim, muitos deles ainda encontram alter-nativas, que no poderiam surgir, ou nemmesmo ser imaginadas, aos olhos de agen-tes pertencentes a outros confortveis lu-gares sociais.

    Agricultura familiar, mesmo sendo umconceito analtico, tem de ser entendidacomo politicamente situada, diante do de-bate (ou do embate) brasileiro sobre os usose destinos dos recursos pblicos. Diantedas lutas sociais no campo, o agricultor fa-miliar surge como expresso estratgicadiante do poder histrico da agriculturapatronal, que, por sua vez, tem por base aexplorao e expropriao do trabalho assa-lariado, ou de algumas formas exticas deparcerias e empreita eventual, que no ca-recem de contratos ou respeito aos direitostrabalhistas.

    A denominao agricultura familiar vemno s para garantir maior justia social nocampo, mas tambm para sinalizar a pos-sibilidade de um outro modo de agricultura,que, necessariamente, tem de se valer dadiversidade e de maior eqidade na distri-buio dos recursos, como terra, crditose apoio institucional pblico.

    De acordo com Wanderley (1999), o ca-rter familiar da propriedade dos meios deproduo e do trabalho na unidade produ-tiva no mero detalhe ou algo superficialou descritivo. Essa caracterstica marca nos sua estrutura produtiva interna, ao asso-ciar produo-trabalho, mas tambm deter-mina como essa unidade de produo ageeconmica e socialmente, ou seja, os prin-cpios que regem suas decises so os daperpetuao do patrimnio familiar, em suarelao com a sociedade, o ambiente e o mer-cado. O universo familiar tem uma hierar-quia decisria, uma diviso de trabalho por

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    14 Cafeicultura familiar

    gnero, uma tendncia de expectativa deperpetuao por herana. A diversidade e asustentabilidade nesse contexto no podemser figuras de retrica. Elas se colocam co-mo elemento constitutivo e indispensvel.

    Na medida em que o sistema de trocaem nossa sociedade regido pelos princ-pios do lucro e da acumulao, esse agri-cultor, como qualquer cidado, no estdistante dessa realidade; sabe dela e tenta,a todo custo, conseguir sobreviver nummecanismo que ele conhece e tem controleapenas de algumas partes. Por isso, porsua conscincia do controle de apenasparte dessa situao, sua autonomia re-lativa e muitas de suas decises podemsurpreender aqueles acostumados s posi-es sociais pouco arriscadas. por issoque apenas 19,3% dos agricultores familia-res, no Brasil, so muito integrados ao mer-cado e comercializam 90% do VBP; 34,4%comercializam entre 50% e 90%, e o grupomaior, de 44% dos estabelecimentos, co-mercializa menos de 50% (GUANZIROLI;CARDIM, 2000).

    Se por um lado somos forados a per-ceber a condio conceitual e emprica desubordinao do agricultor familiar, poroutro no h como negar as demandas dosmovimentos sociais e das organizaes deagricultores. Minar o negativismo de pers-pectiva o desafio do momento e evidenciatodas as dificuldades na luta dessa agricul-tura no s por razes humanitrias, mastambm econmicas e ambientais.

    Essa discusso coloca-se no bojo dasreflexes atuais sobre os problemas so-ciais, ambientais e econmicos no campo.Na medida em que h possibilidade deexistncia conceitual e emprica de uma agri-cultura familiar, positivamente considerada,cria-se a expectativa de que novos pesqui-sadores se engajem no desenvolvimentode pesquisas que favoream a descobertapartilhada, com esses agricultores, de alter-nativas mais sustentveis. Esse novo con-texto epistemolgico, ou seja, conceitual emetodolgico da pesquisa e da extensopblicas, exige reestruturao institucio-nal em termos de valores, mtodos e pro-

    cedimentos de investigao, visando po-tencializar o apoio necessrio s demandassociais dos agricultores familiares.

    Com certeza, sero bem-vindos novosconhecimentos e pesquisas que viabilizemmaior autonomia e que no fragilizem asvantagens comparativas da agriculturafamiliar diante da concorrncia patronalno mercado e no espao poltico. Um dosaspectos importantes, que no se pode per-der de vista, a vantagem da gesto do pro-cesso produtivo em unidades familiares deproduo. Qualquer inovao necessaria-mente tem que avaliar se as alteraes queela provoca na estrutura dessas unidadesse do, ou no, para obter maior autonomiae sustentabilidade. Hoje, no se pode ape-nas almejar aumento de produo e produ-tividade. Toda inovao tem de passar pelocrivo de sua apropriao social e de contro-le. Criar idias e mtodos que deixem esseprodutor familiar ainda mais dependente deforas e mecanismos que ele no domina criar recursos que iro submet-lo a maissituaes de risco e falta de controle sobreseus destinos.

    O CAF E A AGRICULTURA FAMILIAREM MINAS GERAIS

    De acordo com Guanziroli e Cardim(2000), no perodo analisado, o caf era pro-duzido em apenas 6,2% dos estabelecimen-tos familiares do Brasil. Na Regio Sudeste,essa porcentagem subia para 25,2%. Con-tudo, para os que lidam com pesquisas des-se produto, a impresso que se tem queesses dados no batem com muitos outroscomumente divulgados, como, por exem-plo, os que tratam da microrregio da Zonada Mata de Minas Gerais, divulgados pordocumentos do Programa Pr-Caf da Pre-feitura Muncipal de Viosa, MG. O discursoanaltico do documento baseia-se no con-ceito de pequeno produtor e pequenapropriedade, ou pequena produo,que convive sem disputas com as grandesreas de cultivo. Com certeza, esse um ma-pa, uma forma de leitura do mundo agrrio,como se pode ler em parte do texto repro-duzido a seguir:

    Em Minas Gerais, maior produtor na-

    cional de caf (50,8% da produo na-

    cional), a cafeicultura exerce grande

    influncia na economia do Estado e em

    vrios municpios produtores, as suas

    economias locais so dependentes dire-

    tas da atividade. A utilizao dos servios

    de toda a famlia na cultura torna-se re-

    levante sob o ponto de vista socioeco-

    nmico, determinando grande aumento

    da oferta de empregos e contribuindo de

    certa forma para aliviar presses sociais

    estimuladas pelo xodo rural. (...) com

    exceo do Tringulo Mineiro e Alto

    Paranaba, predomina a pequena pro-

    duo, sendo que 50% das propriedades

    produzem at 100 sacas de caf beneficia-

    do por ano e 83% produzem menos de

    500 sacas. (...) A altitude mdia desses

    cafezais situa-se entre 600 e 1.100 me-

    tros, sendo que 71,78% so de pequenas

    propriedades, 26,27 de mdias proprie-

    dades e 1,54% so de grandes reas cul-

    tivadas com caf (ENCONTRO..., 2003).

    Essas leituras do mundo agrrio partemde conceitos diferentes da realidade e colo-cam alguns problemas no s para o uni-verso emprico da anlise, mas tambmclamam por outra concepo conceitual daorganizao social da produo agrcola.Dados da produo total por tamanho derea e de preos e movimentao em redesde grandes mercados podem no revelar,ou at mesmo confundir, como so os agri-cultores familiares de caf, seus problemase os desafios a que esto expostos.

    Enquanto na agricultura patronal o cafapareceu como 6o produto de maior impor-tncia em termos de VBP, na agriculturafamiliar ele significava o 10o produto, em1995-1996 (Grfico 1). Contudo, na RegioSudeste, dentre os dez produtos mais impor-tantes na agricultura familiar, o caf des-pontava como o 2o produto (12,4%) de maiorvalor na composio do VBP familiar, pre-cedido apenas pela pecuria de leite com19,5%, naquele perodo.

    Diante dessa outra possibilidade deanlise, pergunta-se: o que significam osdados divulgados pelo documento ao qual

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    15Cafeicultura familiar

    se fez referncia e que tambm diz que area mdia dos cafezais do Estado de 18,6hectares e 36 mil cafeeiros? Alm disso,o que significa e quais as implicaes doconceito de trabalho numa anlise fito-tcnica como a que se segue?

    Na medida em que um trabalhador seriaresponsvel por 3 ha/ano, tem-se a expecta-tiva de que seriam absorvidos 352.300 traba-lhadores no segmento de produo. Admi-tindo que cada trabalhador teria em mdiauma famlia com cinco pessoas, pode-se dizerque 1,75 milho de pessoas so dependen-tes diretos do setor (ENCONTRO..., 2003).Tudo indica que a medida do esforo do tra-balho no parte da mesma concepo detrabalho utilizada para anlise da dinmicado trabalho familiar na propriedade familiar.

    Observa-se que o tratamento de peque-na produo pode trazer vieses, na medidaem que algumas variaes nas formas derelaes de trabalho combinadas com tama-nho da propriedade no so levadas emconta. Alm disso, muito fcil incluir nosdados dos pequenos produtores estabele-cimentos patronais abandonados e movi-mentados por famlias de agregados, traba-lhadores temporrios, ou permanentes emrelaes precrias de trabalho. Esses esta-belecimentos, que produzem pouco e po-dem estar em pequenos estratos de terra,no caracterizam uma propriedade, ou sesustentam na mo-de-obra da famlia, masno esforo do trabalho alheio.

    A imagem que fica de certas descries

    analticas do mundo rural de homogenei-dade social, mesmo que sejam consideradasas diferenas nos volumes da produo.Esse seria um problema presente em algunsestudos que se fazem sobre produtos agr-colas, na medida em que eles podem produ-zir uma interpretao equivocada da paisa-gem socioeconmica e colocar em dvidasa representatividade dos dados para revelarcertos problemas agrrios que poderiamser objetos importantes de pesquisa.

    Alm disso, esse olhar pode delinearpolticas pblicas excludentes mesmo quepaream inclusivas. Em algumas regies,as aes pblicas efetivas podem ser ape-nas estratgias de marketing municipal pa-ra obteno de recursos de outros fundospblicos e cujos beneficirios efetivos noso, necessariamente, estabelecimentosfamiliares, mas estabelecimentos tpicos derelaes de trabalho patronais. J que existedotao federal de crditos para a categoriasocial dos familiares, aos trabalhos cient-ficos passa a ser exigida maior preciso nosdados. Para uma real dotao oramentriacondizente com as necessidades das polti-cas locais distributivas e valorizadoras daagricultura familiar, as pesquisas socio-econmicas tero de investir no aprofunda-mento terico-conceitual e metodolgicoque distinga as categorias sociais a serembeneficiadas. Esse seria o papel mais tc-nico e, conseqentemente, poltico que apesquisa poderia ter.

    Essa preocupao conceitual necessita

    perpassar os estudos comprometidos comuma viso mais crtica e transparente diantedas contradies presentes no dia-a-dia docampo brasileiro. A imagem de semelhan-a regional nas estruturas fundirias podecamuflar diferenas sociais muito fortes.

    Contudo, notrio que os dados exis-tentes evidenciam a importncia do cafno Estado e indicam que, de certa forma,a agricultura familiar, como definida noestudo de Guanziroli e Cardim (2000), seriaimportante no VBP, mesmo que ela apare-a travestida de pequena produo.

    Por isso, h necessidade de melhor pre-cisar, contextualizar e instrumentalizar oconceito de cafeicultura familiar para a com-preenso do processo, principalmente naproduo do caf na Regio Sudeste doEstado e em suas microrregies marcadaspor pequenos estabelecimentos rurais.

    Como contribuio para a construode hipteses de pesquisa ou justificativade problemas, com base em observaesdo nosso cotidiano, possvel verificar quemuitas pessoas apenas moram na cidade,mas vivem de atividades agrcolas e no-agrcolas. Essa situao pode evidenciaras condies de instalao da pluriativida-de nos estabelecimentos familiares. Essa uma caracterstica que exige cuidados ana-lticos, como uma outra viso sobre a cls-sica diviso entre populao urbana e rural.

    Alm disso, essa situao s identifica-ria um estabelecimento produtor de caf co-mo familiar se, por exemplo, o trabalho da

    Grfico 1 - Porcentagem do VBP de produtos oriundos dos estabelecimentos familiaresFONTE: Guanziroli e Cardim (2000).NOTA: VBP Valor bruto da produo.

    2531

    67

    97

    84

    49

    32

    24

    5258

    40

    Caf

    Arroz

    Feijo

    Fum

    o

    Mandio

    ca

    Milho

    Soja

    Sun

    os

    Ave

    s/O

    vos

    Pecu

    ria

    leite

    deP

    ecu

    ria

    de

    corte

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    16 Cafeicultura familiar

    famlia suplantasse o trabalho contratado.Fica a questo do significado das rendas no-agrcolas, ou seja, at que ponto elas suplan-tam as rendas agrcolas e o que isso signi-fica para esse agricultor. Muitos empresriosurbanos (grande ou pequenos), profissio-nais liberais ou funcionrios pblicos (declasse alta ou baixa) atuam no ramo do cafe desenvolvem sua cultura em pequenasunidades produtivas, que so conduzidaspor empregados, trabalhadores assalariadosou em parcerias no-estabelecidas em con-tratos de trabalho explcitos. Nesses casos,a cultura no se sustenta no trabalho dafamlia, mas no uso do trabalho contratado.

    No caso do caf, em razo da sazonali-dade no uso do trabalho, na colheita e emalguns tratos culturais, o levantamento dedados que pretender fazer a distino entreos dois modos de agricultura, corre o riscode classificar como patronal um estabeleci-mento que, sem o esforo da famlia, no semanteria. Por isso, as estratgias metodo-lgicas de classificao estatstica de estru-turas agrrias, como seria o caso da Zonada Mata, por exemplo, devero ento primarpor uma reflexo conceitual profunda quetem o trabalho familiar como princpio gera-dor de valor econmico. A teoria do valortrabalho teria de ser contemplada, primeira-mente, mais que o levantamento de dadosexclusivos sobre a produo ou preos deum produto. Alm do mais, no se podeperder de vista aquilo que caracteriza osestabelecimentos familiares e que lhes con-fere vantagem comparativa (como a gestofamiliar das atividades) e sustentabilidade,como so a multifuncionalidade e a diversi-dade de produo e de tipo de renda.

    CONSIDERAES FINAIS

    Essas idias aqui propostas so temasde pesquisa para os quais a cafeiculturafamiliar torna-se um espao rico para oesclarecimento dos problemas de repro-duo das formas familiares de agriculturano Brasil, na Zona da Mata ou em outrasregies de Minas Gerais.

    O caf mais que um produto, umacultura e, em torno dele, pulsam modos devida e diferenas sociais. Essa cultura dife-

    renciada fica evidente na fala de um agri-cultor familiar da regio de Viosa, MG,quando explicava sobre o que significavao caf em sua propriedade:

    A gente sempre tem um cafezinho. Ele

    aqui o esteio da propriedade. Sobe e

    desce preo... qualquer coisa, a gente pega

    um saco aqui e troca l na rua. Ele sempre

    salva a gente. Mas se o agricultor inventar

    de arriscar com muita coisa, que ele nem

    conhece direito, ele corre risco de perder

    tudo que tinha. Agricultor familiar tem

    de ser sbio, mais do que sabido. A que

    t sua esperteza.

    REFERNCIAS

    BUAINAIN, A. M.; SOUZA FILHO, H. M. de;SILVEIRA, J. M. da. Inovao tecnolgica na agri-cultura e agricultura familiar. In: LIMA, D. M.de A.; WILKINSON, J. (Org.) Inovao nastradies da agricultura familiar. Braslia:CNPq/Paralelo 15, 2002. p.47- 81.

    CENSO AGROPECURIO 1995-1996. Brasil.Rio de Janeiro: IBGE, v.1, 1998.

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    1Engo Agro, Ph.D., Pesq. Iapar, Caixa Postal 481, CEP 86001-970 Londrina-PR. Correio eletrnico [email protected] Agro, M.Sc., Pesq. Iapar, Caixa Postal 481, CEP 86001-970 Londrina-PR. Correio eletrnico [email protected]

    Abordagem sistmica e pesquisa participativana agricultura familiar:

    ferramentas para o desenvolvimentoCarlos Armnio Khatounian1

    Dimas Soares Jnior2

    INTRODUO

    Um dos aspectos mais expressivos dodesenvolvimento agrcola no sculo 20 foio avano da produo agrcola. Em largamedida, esse avano deveu-se pesquisaagrcola e a sua aplicao em sistemas deproduo simplificados, freqentementemonocultores e em grande escala. O usoampliado de adubos minerais e de pestici-das aps a 2a Grande Guerra permitiu ocontrole dos problemas de fertilidade e defitossanidade associados s monoculturas,propiciando a expanso da produo emnveis inimaginveis um sculo atrs.

    Contudo, essa expanso na produoacarretou ou acirrou problemas ambientais,sociais, de sade humana e ticos, em escala

    igualmente sem precedentes. Nunca a agri-cultura poluiu e excluiu tanto socialmente,causou tantos problemas de sade e levoua tantos questionamentos ticos (PRETTY,2002). Testemunhou-se o simultneo cres-cimento da produo agrcola e o empobre-cimento das comunidades rurais, a pontode, no estado do Paran, maior produtorde gros do Pas, 71% da populao agrco-la estar em municpios com ndice de desen-volvimento humano abaixo da mdia na-cional (IPARDES, 2003).

    Esse descompasso entre o sucesso naproduo em larga escala e o insucesso emvrias outras reas um dos temas maisatuais no que se refere pesquisa agrcola.No aspecto social, uma pergunta-chave nas

    Resumo - A abordagem sistmica da agricultura familiar desenvolveu-se em fins dadcada de 70, com o intuito de melhorar a eficcia da pesquisa como suporte para odesenvolvimento, em face do relativo insucesso da investigao tradicional em melhoraras condies de vida dos agricultores pobres. Descrevem-se a marcha metodolgica ealguns conceitos utilizados na abordagem sistmica, destilados de seu exerccio noInstituto Agronmico do Paran (Iapar). Discutem-se a participao dos agricultores nagerao de conhecimento por meio da abordagem sistmica e a defesa da necessidadede mtodos participativos na pesquisa sobre a arborizao de cafezais no Brasil.Priorizam-se casos orientados para a produo orgnica e/ou com baixa utilizao deinsumos externos. E, por fim, apresenta-se o trabalho em andamento de redes depropriedades de referncia, a ltima e a mais recente iniciativa metodolgica em pesquisaagrcola orientada para o desenvolvimento regional.

    Palavras-chave: Agroecologia. Caf sombreado. Auto-consumo. Agrofloresta.

    trs ltimas dcadas do sculo 20 e que con-tinua atual : por que a maioria dos agri-cultores familiares no se beneficiou dainvestigao agrcola na extenso que seriaesperada? As respostas a essa perguntaforam vrias, incluindo a dificuldade deacesso informao, o despreparo tecnol-gico dos agricultores, a falta de recursosfinanceiros para a compra dos insumosindustriais, as dificuldades na comerciali-zao e a carncia de polticas agrcolasorientadas para os agricultores pobres.

    Outra ordem de respostas encontrou naprpria pesquisa agrcola a causa do seurelativo insucesso, o que resulta de doisfatos: primeiro, que as condies de solo ede insumos da experimentao foram, em

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    regra, mais favorveis do que aquelas, nasquais trabalham os agricultores pobres; se-gundo, que muitas solues foram geradastendo como modelo a produo especia-lizada de uma nica cultura ou criao, oque no era o caso na maioria dos sistemasde produo dos agricultores familiares.Esses sistemas so caracterizados pela po-licultura e pela complementao de ativi-dades, de modo que as solues geradaspara a produo especializada, em mono-cultura, simplesmente no se encaixavam.

    Para superar esses problemas, desen-volveu-se, a partir do final da dcada de70, uma tentativa de abordar os sistemasagrcolas na sua totalidade, que fosse ca-paz de identificar com preciso suas limi-taes e potencialidades. E incluir ambas,limitaes e potencialidades, na geraode tecnologias agrcolas, orientadas parao desenvolvimento rural e agrcola. Tais li-mitaes e potencialidades no so exclusi-vamente agronmicas, mas estendem-se atodas as esferas de atuao das famliasagricultoras. Ao longo do tempo, essa ten-tativa de abranger a totalidade aprimorou-se metodologicamente, culminando com oque hoje se chama abordagem sistmica(KHATOUNIAN, 2001).

    Para atingir seu objetivo ltimo de pro-moo do desenvolvimento, a abordagememprestou mtodos e conceitos de vriosramos das cincias humanas e da ecologia,de modo que seu corpo conceitual e factualvai alm das temticas usuais na rea agro-nmica. O presente artigo descreve sucin-tamente esse corpo conceitual e metodo-lgico. Focaliza-se a propriedade agrcolacomo sistema de produo, a seqnciametodolgica do trabalho, a participaodos agricultores e discute-se o potencialda abordagem sistmica na pesquisa emarborizao de cafezais. Expem-se tambmas crticas mais usuais a essa abordagem edescreve-se o trabalho em redes de proprie-dades de referncia conduzido, atualmente,no estado do Paran.

    PROPRIEDADE COMOUM SISTEMA DE PRODUO3

    Para a finalidade da abordagem sist-mica em pesquisa agrcola, um sistemacompreende-se de estrutura e funcionamen-to. Estruturalmente, o sistema definidopor seus limites, componentes, interaes,insumos e produtos. Funcionalmente, o sis-tema caracterizado pelo manejo por meiodo qual os componentes, interagindo entresi, transformam os insumos em produtos.Numa pequena propriedade familiar, oscomponentes so a famlia e, usualmente,as exploraes vegetais e animais. A com-posio dessa famlia, suas caractersticasculturais, escolaridade e aspiraes influi-ro sobre o futuro da propriedade tantoquanto, ou at mais do que a fertilidadenatural do solo ou o clima.

    Para a grande maioria das questes liga-das produo, um limite interessante soas divisas da propriedade, porque define oespao dentro do qual se exerce a aoordenadora (ou desordenadora) do agri-cultor ou da famlia agricultora, ficandoassim estabelecido o sistema proprieda-de. esse sistema, e no mais a lavourade milho ou a criao de galinhas, que passaa ser o ponto de partida e de chegada dosestudos para o desenvolvimento. Esse oreferencial prioritrio, quando se planeja,por exemplo, a converso de propriedadesconvencionais para orgnicas, com a m-nima dependncia de recursos externos.

    A famlia e as exploraes vegetais eanimais interagem, definindo os ciclos eritmos de trabalho ao longo do ano e opotencial de gerao de renda. Por sua vez,as exploraes vegetais e animais tambminteragem entre si, num padro orquestradopelo agricultor. Numa propriedade ideal-mente organizada para o mximo de auto-sustentabilidade, as criaes alimentam-sedo produto das lavouras e os dejetos dascriaes retornam aos campos como ferti-lizante. Nos sistemas reais, em geral, essa

    interao fragmentada e parcial, o que osfragiliza.

    MARCHA DO TRABALHOEM SISTEMAS DE PRODUO

    O trabalho em sistemas voltados aodesenvolvimento de uma propriedade temuma marcha relativamente consensada,que consiste em diagnstico, definio dosproblemas-chave e dos perfis das possveissolues, busca e validao das soluese, finalmente, sua incorporao rotinados sistemas. Quando se trabalha comregies ou grupos de agricultores, antesdo diagnstico, realiza-se a caracteriza-o da regio a partir de dados censitrios,esboando-se, com isso, o pano de fundosobre o qual os agricultores operam. Comesses mesmos dados, realiza-se tambmuma tipologia preliminar do pblico visado,de modo que o diagnstico a campo cubraos segmentos prioritrios do pblico re-gional.

    Diagnstico

    Consiste no levantamento de informa-es que permitam esboar o sistema talqual trabalhado pelo agricultor, de formaque subsidie prospeces sobre sua evo-luo. As perguntas centrais so: como seestrutura esse sistema, como funciona epara onde tende a ir. Para respond-las,levantam-se informaes sobre a naturezae a organizao do espao fsico (rea totale sua ocupao, benfeitorias, tipo de soloe relevo, recursos hdricos, tipo climtico eseus riscos), sobre os recursos humanos esuas relaes sociais e econmicas (nme-ro de pessoas, parentesco, idade, sexo,aspiraes, fontes de renda, ocupao) esobre as entradas (insumos agrcolas, m-quinas, alimentos, vesturio etc.) e sadas(produtos agrcolas, artesanato etc.).

    Tenta-se perceber o sentido de sua evo-luo (foras de agregao/desagregao,conflitos internos, relaes de poder), por-

    3O conceito de sistema propriedade e a marcha de aplicao da abordagem sistmica neste artigo baseiam-se fortemente em Khatounian(2001), onde esses temas so discutidos com maior detalhamento.

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    que desse sentido depende a orientaoda sua batuta ordenadora. Os aspectosgerenciais, sobretudo o sistema de tomadade decises e seu reflexo sobre as pessoasenvolvidas so especialmente importantes. muito comum que o sistema no evolua,devido a problemas nessa esfera, tais comoheranas no resolvidas, disputas internasna famlia etc. No detalhamento dos sub-sistemas de produo animal e vegetallevantam-se os rebanhos ou plantis (n-mero, classe, raa), instalaes, manejo,doenas, alimentao, ndices de desempe-nho, destinao final, forma de comerciali-zao; culturas, rotaes, reas de pasto ede reservas naturais.

    H vrios mtodos de levantar essasinformaes, desde os totalmente formais,via questionrios previamente elaborados,at os completamente informais. Como re-gra, os mtodos informais so mais confi-veis, mas exigem maior experincia do tc-nico e aplicam-se melhor a grupos pouconumerosos. Um dos mtodos informais maisseguros o levantamento do histrico devida do agricultor ou famlia agricultora, eo histrico da propriedade. Desses hist-ricos costuma resultar uma imagem mentaldas aspiraes e objetivos da famlia e decomo a propriedade vem sendo trabalhadapara alcanar tais objetivos.

    Com essa viso mais geral e de possede informaes sobre a conduo das la-vouras, criaes, entradas e sadas, pode-

    se formular uma primeira hiptese sobre asprincipais limitaes e potencialidades dosistema e traar um primeiro esboo daspossveis mudanas. Aps a anlise doscomponentes e a sntese de um primeiroconjunto de propostas, realiza-se nova vi-sita, na qual se discutem essas propostas.Nessa visita, normalmente emergem outrasinformaes, que interativamente, por no-vas snteses e anlises, vo tornando maisntido o aprimoramento necessrio, tantopara o tcnico como para o agricultor.

    Tipificao

    Quando se trabalha com grande nme-ro de agricultores num municpio ou numaregio, normalmente no possvel atendercada propriedade individualmente. Nessescasos, o trabalho facilitado agrupando-se os agricultores com sistemas de produ-o semelhantes em um mesmo tipo. Emgeral, os critrios para a tipificao prelimi-nar so as principais exploraes, nvel derenda, tamanho da propriedade, mquinasetc. De cada tipo, escolhe-se uma amostrade propriedades para ser visitada e estu-dada, como descrito anteriormente.

    Essas visitas, normalmente, conduzema uma reavaliao dos critrios utilizadosna tipificao preliminar com base em dadossecundrios, de modo que a tipificao de-finitiva resulte ser til para os objetivos doprojeto. Por exemplo, se o objetivo do pro-jeto difundir prticas vegetativas de con-

    trole da eroso em culturas anuais, o tipode solo e a prtica em uso podem ser crit-rios