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SALLES, Cecília Almeida. Crítica genética e semiótica: Uma interface possível. In: Criação em processo:ensaios de crítica genética. São Paulo: Iluminuras , 2002, p. 177-201. PÁGINA RECORTE 177 A crítica genética sob a perspectiva da semiótica de linha peirceana tem uma pequena história de dez anos, com alguns eventos marcantes e desenvolvimento intenso, que gerou muitas alterações. 177 Seguindo sua vocação de berço, essas pesquisas se iniciaram no campo da literatura, mais precisamente, literatura brasileira contemporânea. Os manuscritos de Ignácio de Loyola Brandão, para seu livro Não verá país nenhum, foram entregues a mim sem restrições: com muita confiança e cumplicidade. [...] 180 Ainda sem saber que estava fazendo crítica genética, busquei uma teoria que me auxiliasse na interpretação desse material. [...] Encontrei na semiótica de Charles S. Peirce ecos para essas minhas preocupações teóricas iniciais. 180 [...] Cada teoria tem o poder de lançar luzes sobre diferentes aspectos do objeto “manuscrito”; portanto, é a partir da multiplicidade de interpretações que conhecemos mais sobre o ato criador. Não vejo, desse modo, diferentes análises como, necessariamente, perspectivas antagônicas. Precisamos fazer opções em determinado momento porque pesquisas não conseguem conviver com a infinitude de possibilidades. Isso não quer dizer que não possamos fazer combinações de interpretações complementares. 180 Foi aí que encontrei na semiótica do filósofo

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Page 1: intervozesdotcomdotbr.files.wordpress.com€¦ · Web viewA crítica genética sob a perspectiva da semiótica de linha peirceana tem uma pequena história de dez anos, com alguns

SALLES, Cecília Almeida. Crítica genética e semiótica: Uma interface possível. In: Criação em processo:ensaios de crítica genética. São Paulo: Iluminuras , 2002, p. 177-201.

PÁGINA RECORTE177 A crítica genética sob a perspectiva da semiótica de linha peirceana tem

uma pequena história de dez anos, com alguns eventos marcantes e desenvolvimento intenso, que gerou muitas alterações.

177 Seguindo sua vocação de berço, essas pesquisas se iniciaram no campo da literatura, mais precisamente, literatura brasileira contemporânea. Os manuscritos de Ignácio de Loyola Brandão, para seu livro Não verá país nenhum, foram entregues a mim sem restrições: com muita confiança e cumplicidade. [...]

180 Ainda sem saber que estava fazendo crítica genética, busquei uma teoria que me auxiliasse na interpretação desse material. [...] Encontrei na semiótica de Charles S. Peirce ecos para essas minhas preocupações teóricas iniciais.

180 [...] Cada teoria tem o poder de lançar luzes sobre diferentes aspectos do objeto “manuscrito”; portanto, é a partir da multiplicidade de interpretações que conhecemos mais sobre o ato criador. Não vejo, desse modo, diferentes análises como, necessariamente, perspectivas antagônicas. Precisamos fazer opções em determinado momento porque pesquisas não conseguem conviver com a infinitude de possibilidades. Isso não quer dizer que não possamos fazer combinações de interpretações complementares.

180 Foi aí que encontrei na semiótica do filósofo Charles S. Peirce instrumentos teóricos abrangentes. O que para muitos pode parecer “promiscuo”, o conceito de signo nessa perspectiva é tão geral que se pode dizer que tudo é signo. É claro que nos defrontamos com signos de natureza diversa mas que possuem, segundo Peirce, o mesmo modo de ação.

180 É exatamente nesse modo de ação do signo que o crítico genético encontra instrumentos que o possibilita olhar teoricamente para o movimento geral do processo criativo – um processo sígnico ou semiose

181 [...] Essa visão de processo com tendência não envolve uma perspectiva teleológica baseada na ideia lógica implacável e progresso linear, como alerta Almuth Grésillon. Concordo com Grésillon, quando ela diz que o olhar teleológico deforma a interpretação, torna-a cega ao acidente, à perda, ao estado de dúvida, à alternativa aberta ,em resumo, a todas as formas de escritura que se distanciam da linha reta. Obstrui literalmente a visão daqueles que procuram compreender qualquer coisa relativa à

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invenção.

181 [...] Nosso objeto de pesquisa exige, ao meu ver, uma abordagem teórica que dê conta desta complexidade – busca, assim, uma trama coerente de teorias que nos permita, cada vez mais e melhor, nos aproximar do ato criador.

AMPLIAÇÃO DOS LIMITES DA CRÍTICA GENÉTICA182 Algo novo surgia: os pesquisadores tinham formações as mais diversas.

Estava, no início, diante de pessoas que se interessavam e atuavam nas áreas de literatura, cinema, artes plásticas, arquitetura e dança. Assim, os manuscritos de diferentes linguagens passaram a se forçar sobre mim, exigindo reconhecimento. Como afirma Daniel Ferrer, o desenvolvimento dos estudos genéticos sustenta-se nos esforços de alguns pesquisadores de “promover uma reflexão da crítica genética que atravesse as fronteiras dos gêneros e das artes”.

182 Tratava-se, agora, da interdisciplinaridade em outro nível: não mais na relação de linguagens que o manuscrito de um escritor abrigava, mas de pesquisadores de diferentes manifestações artísticas buscando compreender o processo de criação, como os críticos genéticos faziam com os manuscritos literários.

183 O que quero enfatizar é que na organização do material não há diferenças muito grandes que impossibilite o crítico genético habituado com manuscritos de escritores lidar com registros de outras linguagens. Aqui, também precisamos conviver com a documentação por um tempo, para ser capaz de organizar e compreender o movimento de cada processo específico.

183 É importante ressaltar o papel da semiótica nessa ampliação de limites dos estudos genético, na medida em que a diversidade de códigos já está inserida na própria teorização.

183 A exposição Bastidores da criação, realizada em São Paulo, em maio de 1994 teve um papel senão decisivo mas emblemático na apresentação dos novos horizontes da crítica genética.

184 A exposição ampliava o conceito de manuscrito, o que gerou, mais tarde, a necessidade de se pensar em nova terminologia para designar esse material nas diferentes manifestações artísticas. Fazer, continuamente, referência à dilatação do conceito passou a ser mais custosa, sob o ponto de vista científico, do que buscar no conceito de documentos de processo a amplitude de ação de que precisávamos.

184 Partimos da constatação de que esses documentos, independente de sua

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materialidade, contém sempre a ideia de registro.CONCEITO SEMIÓTICO DE CRIAÇÃO

184 O estudo destes documentos dos processos de criação foge da mitificação da criação, pois se sustenta na constatação de que a obra de arte surge como resultado do trabalho do artista. No entanto, é importante ressaltar que os estudo genéticos vem nos mostrando que todo o seu percurso de trabalho é executado em meio ao diálogo entre sensível e o intelectual.

185 Ao aproximar esse processo sensível e intelectual do conceito de ação sígnico, assim como é caracterizado pela semiótica de linha peirciana, antes de qualquer especificação, já estamos com uma abordagem teórica que se ocupa de fenômenos em processo – não estáticos. E como ressalta Grésillon para o crítico genético lidar com seu objeto “é necessário um pensamento do movimento e da não-linearidade, se o propósito é ser bem sucedido em uma simulação científica apropriada a esses processos cuja característica é justamente ser não-linear.”

186 Observa-se, ao mesmo tempo, ao longo do processo criador, a confluência das ações do vago propósito da tendência e do imprevisto trazido pelo acaso. São flagrados momentos de evolução fortuita do pensamento do artista. A rota é temporariamente mudada, o artista acolhe o acaso e a obra em progresso incorpora desvios. Depois deste acolhimento, não há mais retorno ao estado do processo no instante em que foi interrompido.

186 Aceitar a intervenção do imprevisto na continuidade do processo com tendência, implica compreender que o artista poderia ter feito aquela obra de modo diferente daquele que fez. Admite-se que outras obras teriam sido possíveis.

186 O movimento criativo mostra-se, também, como um percurso falível. As rasuras dão a conhecer as diversas nuances de erros e das diferentes maneiras de enfrentamento desse possibilidade de erro.

187 O artista cai, por vezes, na tentação da busca pelo ponto de partida daquela obra, ao afirmar que o romance, por exemplo, nasceu de um conto, mas também de uma cena vivida, de um texto lido... Há sempre signos prévios. O pensamento é sempre inferencial.

187 Quando estamos envolvidos em um estudo em crítica genética, no entanto, precisamos estabelecer um ponto inicial e um ponto final no dossiê – essas determinações são necessárias, no ambiente metodológico, para delimitação da pesquisa que a torna possível de ser desenvolvida.

188 [...] A criação está espalhada pelo percurso. Sob esta perspectiva, todos os registros deixados pelo artista são importantes, na medida em que podem oferecer informações significativas sobre o ato criador. Há criação em diários, anotações e rascunhos. O processo inferencial destaca as relações; no entanto, para compreendermos melhor o ato criador interessa-nos a tessitura destes vínculos, isto é, a natureza das inferências.

189 Nesse ambiente teórico podemos falar, sob o ponto de vista do artista, que os documentos de processo preservam uma estética em criação, que surge para

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o crítico genético como a estética do movimento criador. Discutir o processo de criação com o auxílio da semiótica peirciana é falar da estética do inacabado – põe, portanto, em questão o conceito de obra acabada, isto é, obra como uma forma final e definitiva.TEORIA GERAL DA CRIAÇÃO

189 [...] Relacionando o conhecimento que temos sobre criação, que só a convivência com estes documentos oferecem à descrição do movimento geral do processo criativo, podemos retirar instrumentos interpretativos também de caráter geral mas, agora, carregados de criação [...]

190 Os estudos de caso, como se caracteriza a crítica genética, levam necessariamente a conhecermos melhor um processo de criação.

190 [...] A metodologia do estudo de documentos era, naquele momento, mais geral do que os resultados singulares aos quais as pesquisas chegavam. Eram pesquisas específicas que caminhavam, necessariamente, para singularidades. À medida que uma possível morfologia da criação é configurada, há uma inversão de perspectiva. A teorização passa, naturalmente, a ser mais geral do que os estudos de caso.

191 Vale ressaltar que a recursividade e a simultaneidade, inerente aos processos não lineares, oferecem resistência à rigidez de esquemas e ordenações temporais.TRAJETO COM TENDÊNCIA

191 A criação mostra-se como uma metamorfose contínua. É um percurso feito de formas em seu caráter provisório e precário porque hipotético. O percurso criador é uma contínuo processo de transformação buscando a formação da matéria de uma determinada maneira e com um determinado significado.

191 O movimento, no âmbito individual do artista, tende para a concretização de seu projeto poético; no contexto social, essa tendência concretiza-se no aspecto comunicacional do processo criador.Projeto poético

192 Em toda prática criadora há fios condutores relacionados à produção de uma obra específica que, por sua vez, atam as obras daquele criador. São princípios envoltos pela aura da singularidade dos artista pois estamos no campo da unicidade de cada indivíduo. Gostos e crenças que regem o seu fazer - um projeto pessoal, singular e único.

192 Pode-se, assim, dizer que o processo de criação de uma obra é a forma do artista conhecer, tocar e manipular seu projeto de natureza geral, por meios de diálogos de natureza intrapessoal.Comunicação

193 O processo de cada artista insere-se na linha do tempo da arte e da ciência. É o diálogo de uma obra com a tradição, com o presente e com o futuro. A cadeia artística trata de relação entre gerações e nações: Uma obra comunicando-se com os seus antepassados e futuros descendentes.

193 Processos de criação, carregando os traços de seu tempo e de seu espaço, tendem para o outro- é um ato comunicativo, também, em sua intimidade, à medida que são travados diálogos de naturezas diversas: Diálogos internos: O ato criador é resultado de uma mente em ação, que faz reflexões de toda espécie.

194 Diálogo do artista com a obra em processo: Ao longo do percurso, o artista

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muitas vezes vê-se produzindo para a própria obra e respeitando as leis internas que já se consolidaram.

194 Diálogo do artista com o receptor:[...] Essa relação comunicativa é intrínseca ao ato criativo. Está inserido em todo processo criativo o desejo de ser lido, escutado, visto ou assistido [...]RECOMPENSA MATERIAL

194 A concretização é uma ação poética, ou seja, uma operação sensível ampla no âmbito do projeto do artista. A criação parte e caminha para sensações e nesse trajeto alimenta-se delas: é, assim, permeado de operações sensíveis. O processo de construção da obra é a busca da recompensa material para seu poder inventivo e para sua sensibilidade (Kandinsky)

195 [...] O artista, aparentemente, pode criar tudo – é onipotente. No entanto, liberdade absoluta é desvinculada da intenção e, por consequência, não leva à ação [...]. Criar livremente não significa poder fazer qualquer coisa, a qualquer momento, em quaisquer circunstâncias e de qualquer maneira, mas fazer seleções e tomar decisões. Marcas de caráter psicológico

195 As relações tensionais, que mantém a vitalidade do processo de construção da obra, aparecem também nas emoções do criador. [...]Isolamento e relacionamento

195 O artista precisa de sua torre de observação. Faulkner (apud, G.G. Marquez) dizia que a casa perfeita para um escritor é um bordel, pois nas horas da manhã há muita calma e, em compensação, à noite há festa.Desprazer e prazer

196 Desprazer está ligado ao fato de que se encontra na feitura da obra problemas infinitos, conflito sem fim, provas, enigmas, preocupações e mesmo desesperos que fazem do “ofício do poeta um dos mais incertos e cansativos que possa existir” (Valéry).

196 A criação, que pertence ao mundo prazeroso e lúdico, mostra-se um jogo sem regras. Se estas existem são estipuladas pelo artista. Jogar é sempre estar na aventura com palavras, formas cores, movimentos.

196 Diante de tanta dificuldade e da consciência de problemas, o artista depara-se também com facilidades, como a fluidez das associações.Relação com a matéria

197 O tipo de relação que une o artista à matéria envolve escolha de acordo com os princípios gerais da tendência do processo, conhecimento de suas leis, desejo de expansão desses limites e impossibilidade de superação. Ao longo da criação, é estabelecida uma relação complexa entre o criador e os meios selecionados, que envolve resistência, flexibilidade e domínio.

197 [...] O desejo do artista libera as possibilidades numa ação extremamente ativa de ação e reação e impede para o desbravamento do (aparentemente) não-permitido. Este diálogo exige uma negociação: um diálogo entre artista e matéria que assume forma de “obediência criadora” (Pareyson).Relação entre forma e conteúdo

197 Não se pode tratar forma e conteúdo como entidades estanques. Se, por um lado, vê-se o conteúdo determinando ou falando através da forma, isto é, uma visão da forma como recipiente de conteúdo; não se pode negar que a forma é a própria natureza do conteúdo. É a noção forma não como automatismo mas como poesia feita de ação.

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197-198 O poder de expressão do produto que está sendo fabricado está na fusão de forma e conteúdo – uma espécie de amálgama. O processo de construção da obra mostra essa permanente interferência de um sobre o outro.Relação entre partes e todo

198 A combinação de crescimento e execução, que caracteriza o fazer artístico, conduz a procedimentos que não podem ser descritos como a elaboração sucessiva de fragmentos. A manipulação de cada “parte” ( uma substituição de um adjetivo, uma alteração de uma marcação teatral, uma ampliação de curvatura de um tubo de aço em uma escultura) atua dialeticamente sobre a outra.Relação entre acabamento e inacabamento

198 A arte é resultado da insatisfação humana.198 Para Lasar Segall, satisfação é, realmente, algo que o artista desconhece. Isso

é uma de suas grandezas, mas também uma de suas desgraças: estimula-se continuamente para diante, mas o artista não encontra paz interior.

199 O objeto “acabado” pertence a um processo inacabado. Cada forma contém, potencialmente, um objeto acabado e o objeto considerado final representa, também de forma potencial, um instante do processo.UMA EXPERIÊNCIA TRANSDISCIPLINAR

199 [...] São evitados, assim, os possíveis desvios de análise que os estudos de singularidades podem sofrer, na medida em que se pode encontrar o particular naquilo que, por vezes, nada mais é do que algo comum ao fazer artístico.

199-200 Ao mesmo tempo, esses mesmos eixos têm o poder de apontar para as especificidades de uma determinada linguagem (ou manifestação artística).

200 Como se pode observar, no percurso da literatura para as artes em geral, e das artes para a ciência, a crítica genética está chegando ao conceito expandido de processo de criação, seja este concretizado na arte, na ciência ou na sociedade como um todo.

201 [...] Ao tirar objetos do isolamento de análise e reintegrá-los em seu movimento natural, aponta-se para a relevância de se observar fatos e fenômenos inseridos em seus processos. Nessa perspectiva, a crítica de arte passa a dialogar com as ciências contemporâneas que falam de verdades na continuidade de seus processos de busca e, portanto, não absolutas e finais.

Palavras-chave: Processo de criação; Semiótica; Crítica Genética; Manuscritos Modernos.