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I. INTRODUÇÃO 1. Preâmbulo Uma das aspirações de todo pesquisador dos fenômenos musicais em termos de suas funções mentais é desvendar determinados “segredos”, já antigos, decorrentes da relação do homem com a música. Tais segredos poderiam estar por trás da idéia de que o músico é um produto espontâneo da seleção natural e a música um dom divino, ou contrariamente a isto, ter-se como estereótipo de músico a idéia do burro de “Die Bremer Stadtmusikanten”, o célebre conto dos irmãos Grimm, quando, se vendo ameaçado com o corte da comida que seu dono lhe dava em troca do trabalho que não podia mais executar, pôs os pés na estrada na direção de Bremen “onde tencionava tornar-se músico1 , ou quando falava para o velho cachorro ameaçado de morte por seu senhor por não poder mais caçar: “vamos comigo e te deixas também contratar pela banda de música” 2 (Kessler, 1955). Pela primeira idéia, ser músico é um “dom da natureza, de Deus”; só os privilegiados o têm. Pela idéia do burro, ser músico é fácil, é só querer. Talvez por causa desta dicotomia extrema em pensar a respeito do músico, o estudo dos assuntos musicais tem fascinado as gerações de todos os tempos, mas foi sobretudo neste século (e de maneira acentuada nos últimos 15 a 20 anos) que o interesse por este tema cresceu, talvez, entre outros motivos, pela conscientização da importância da música na vida do homem, em sua maneira de pensar, na concentração de sua atenção, na produtividade de sua memória, na agudeza e discernimento de seus sentidos, notadamente da visão, por exemplo, no reconhecimento de formas (Deutsch, 1999). Percebeu-se que compreender como se percebe, relembra, cria e executa música é estar no caminho certo para desvendar “segredos” milenares deste assunto. Até mesmo os músicos, reconhecidamente desatentos a “questões teóricas”, ultimamente têm sido bem representados entre os pesquisadores do assunto e muito do que se tem encontrado em investigações recentes já tem a participação destes profissionais, que cada vez mais vêem neste segmento de pesquisa uma alternativa para seus estudos e defesas de teses. O resultado desta colaboração tem se refletido nos resultados das pesquisas que cada vez mais têm interferido na vida do músico, em sua forma de compor e praticar música. Alguns fatores têm contribuído de forma decisiva para esta mudança. Deutsch (1999) cita os seguintes: a) o desenvolvimento da tecnologia que, por meio de sintetizadores e computadores, permitiu a manipulação do som em sua forma estrutural, desde sua geração e incrementação dos 1 “Dort wollte er ein Stadtmusikant werden” 2 geh mit und lass dich auch bei der Musik annehmen.

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Page 1: I. INTRODUÇÃO 1. Preâmbulo - neuromusic.com.br I Introduao.pdf · seleção natural e a música um dom divino, ou contrariamente a isto, ter-se como estereótipo de músico

I. INTRODUÇÃO

1. Preâmbulo

Uma das aspirações de todo pesquisador dos fenômenos musicais em termos de suas funções

mentais é desvendar determinados “segredos”, já antigos, decorrentes da relação do homem com a

música. Tais segredos poderiam estar por trás da idéia de que o músico é um produto espontâneo da

seleção natural e a música um dom divino, ou contrariamente a isto, ter-se como estereótipo de músico

a idéia do burro de “Die Bremer Stadtmusikanten”, o célebre conto dos irmãos Grimm, quando, se

vendo ameaçado com o corte da comida que seu dono lhe dava em troca do trabalho que não podia

mais executar, pôs os pés na estrada na direção de Bremen “onde tencionava tornar-se músico”1, ou

quando falava para o velho cachorro ameaçado de morte por seu senhor por não poder mais caçar:

“vamos comigo e te deixas também contratar pela banda de música”2 (Kessler, 1955). Pela primeira

idéia, ser músico é um “dom da natureza, de Deus”; só os privilegiados o têm. Pela idéia do burro, ser

músico é fácil, é só querer.

Talvez por causa desta dicotomia extrema em pensar a respeito do músico, o estudo dos

assuntos musicais tem fascinado as gerações de todos os tempos, mas foi sobretudo neste século (e de

maneira acentuada nos últimos 15 a 20 anos) que o interesse por este tema cresceu, talvez, entre outros

motivos, pela conscientização da importância da música na vida do homem, em sua maneira de pensar,

na concentração de sua atenção, na produtividade de sua memória, na agudeza e discernimento de seus

sentidos, notadamente da visão, por exemplo, no reconhecimento de formas (Deutsch, 1999).

Percebeu-se que compreender como se percebe, relembra, cria e executa música é estar no caminho

certo para desvendar “segredos” milenares deste assunto. Até mesmo os músicos, reconhecidamente

desatentos a “questões teóricas”, ultimamente têm sido bem representados entre os pesquisadores do

assunto e muito do que se tem encontrado em investigações recentes já tem a participação destes

profissionais, que cada vez mais vêem neste segmento de pesquisa uma alternativa para seus estudos e

defesas de teses. O resultado desta colaboração tem se refletido nos resultados das pesquisas que cada

vez mais têm interferido na vida do músico, em sua forma de compor e praticar música.

Alguns fatores têm contribuído de forma decisiva para esta mudança. Deutsch (1999) cita os

seguintes: a) o desenvolvimento da tecnologia que, por meio de sintetizadores e computadores,

permitiu a manipulação do som em sua forma estrutural, desde sua geração e incrementação dos

1 “Dort wollte er ein Stadtmusikant werden” 2 geh mit und lass dich auch bei der Musik annehmen.

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parâmetros que o compõem, até sua análise, nada mais tendo a ver com os métodos de “pesquisa

empírica” de difícil condução e de resultados modestos e pouco convincentes; b) os avanços da

neurociência quanto ao conhecimento do funcionamento do cérebro que influenciou e modificou a

maneira de pensar dos pesquisadores que passaram a acreditar que música é também uma função

cerebral; c) a colaboração entre pesquisadores e músicos que cada vez mais participam do mesmo

sonho: desvendar os “segredos” da música e estabelecer para ela, além de uma base filosófica, uma

base biológica e física.

No Brasil o cultivo da pesquisa e docência de música é ainda quase medieval para a música

erudita, e eminentemente empírico, para a popular. Em ambos os casos, tanto o pesquisador e docente

da música erudita, como o da música popular, geralmente são “divinizados”, como o foram em outros

tempos e outros povos. Seu método de ensino e aprendizagem é pouco controlado cientificamente. As

conclusões das pesquisas científicas a respeito do assunto, mesmo as dos 20 últimos anos (a grande

maioria feita fora do Brasil), nunca ou muito pouco, chegaram à mesa dos professores de música e à

carteira dos alunos. A situação se agrava pelo fato de, em português, quase nada haver escrito a

respeito destas pesquisas e em outros idiomas (como o inglês, o alemão ou o francês) o acesso se tornar

difícil, dificuldade acrescida pelo fato de o músico, de maneira geral, não ser dado a leituras “teóricas”

e ainda mais em idiomas nem sempre dominados por eles. As exceções confirmam a regra.

2. Música e Linguagem

A) O espaço na definição de linguagem para a linguagem musical e para outras

linguagens.

Considerando fundamental a diferença entre elementos musicais e música como estrutura

definida faz-se necessária uma pequena exposição sobre linguagem e música. O termo linguagem

refere-se a uma estrutura de elementos e não a elementos isolados. Tem várias acepções e mesmo,

sendo mais comum entendê-la como linguagem falada ou escrita, poderia ser aplicado à música. O

Dicionário Filosófico Lalande (1996) apresenta 4 definições para linguagem (alemão: Sprache,

francês: Langue, inglês: language, italiano: Linguaggio), sendo a quarta descrita como sentido mais

amplo: “todo o sistema de signos que podem servir de meio de comunicação”, por exemplo, “ a

linguagem dos gestos”, “todos os órgãos dos sentidos podem servir para criar uma linguagem”

(VANDRYÈS, A linguagem, p. 9). O Short Oxford Dictionary (1999) define linguagem (“language”)

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como “o conjunto das palavras e métodos de combiná-las, usado por uma nação”3. Mas traz ainda

outras definições: “método de expressão sem o uso de palavras”, “maneira ou estilo de expressão”,

“o estilo de uma composição”. Aceita-se, para este trabalho, sem discutir a legitimidade ou não, a

definição: “maneira de expressão sem o uso de palavras”. e portanto, reconhece-se música como

linguagem, além do que, ao ver do autor, a histórica discussão se música é linguagem ou não, não se

mostra proveitosa sob este ponto de vista, sendo mais consistente considerar o entendimento do

ouvinte: o que a música lhe comunica e o que ele entende a partir dela.

O tema entendimento das pessoas através da comunicação musical tem sido assunto de

reflexão para muitos. Henson (1978) cita, entre outros, Isidoro de Seville (+ 636 P. C.) que ao falar

sobre música, enaltece seus efeitos, atesta seu poder de comunicação sobre as pessoas, interferindo em

seu estado emocional, produzindo efeitos terapêuticos, despertando sentimentos de religiosidade,

entre outros. Através de simbolismos a música de todos os tempos tem despertado nas pessoas

(ouvintes e intérpretes) uma espécie de ligação entre o concreto e o abstrato, entre a realidade e o

desejo, entre o céu e a terra. Só para exemplificar, observe-se a performance de um músico, seja qual

for a sua gramática de expressão, que parece entrar em êxtase quando toca ou canta. Sua

“transfiguração” é notória, é perceptível a todos que atentamente o observam, seja um maestro no

exercício de sua atividade, seja um instrumentista ou apenas um ouvinte atento à mensagem musical.

Estabelecer um paralelismo entre a linguagem musical e a linguagem falada ou escrita e aceitar

uma afinidade entre ambas é importante para este trabalho, onde se admite que grande parte dos

conhecimentos que se tem sobre a linguagem musical e sua relação com o sistema neural, vem de

estudos feitos conjuntamente com os estudos da linguagem falada ou escrita, em indivíduos normais ou

afetados cerebralmente por distúrbios de linguagem (afasias) e ou de musicalidade (amusias).

O homem vale-se de várias formas e métodos para se expressar e o faz por meio de linguagens.

Fala, escreve, gesticula, usa mímica, desenha, pinta, faz escultura e realiza formas arquitetônicas as

mais diversas. Uma reflexão pormenorizada revela que a música é uma entidade em si, mas que

também está muitas vezes vinculada a outras atividades com as quais se relaciona, seja através dos

sons, seja através do ritmo. Algumas linguagens são mais livres em suas convenções; delas diz-se que

são mais universais, como por exemplo, a mímica, a gesticulação (e.g usada por um regente de

orquestra), os sinais usados pelos surdo-mudos, a elegância dos gestos de um pianista ou de uma

harpista ao tocarem seus instrumentos. Outras são mais particulares e até individuais, como o idioma

de um país, ou um código entre dois namorados. A música, a música pura, parece pertencer ao grupo

3 “the whole body of words and methods of combining them used by a nation” (D.D. 1999)

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das linguagens universais. Sua comunicação, no entanto, dá-se apenas com os que com ela têm

afinidade e seu sentido nunca é unívoco, o que não quer dizer que não tenha sentido.

Um levantamento sobre a inter-relação da música com outras manifestações artísticas (as artes

visuais, a arquitetura, o teatro, o cinema etc.) seria longo e com certeza incompleto. Mas alguns

exemplos ilustram esta ligação. Da música pode-se falar em linearidade, profundidade, arquitetura.

Yannis Xenakis, músico e arquiteto, “traduziu” para música a arquitetura do pavilhão da Philips, na

Exposição de Bruxelas em 1963, do que surgiu sua obra musical: Concret PH. Muitas obras de

compositores receberam nomes de estilos usados para classificar as artes plásticas, a exemplo da

Sinfonia Gótica de Havergal Brian (1963). A idéia de engajar a música (arte do ouvido) com cores

(arte da visão), com odores (olfato) e sensibilidade tátil foi defendida e posta em prática, entre outros,

por Alexander Scriabin (*1872+1915) que entre outras obras compôs Mysterium (obra inacabada) em

que tencionava unir a sua música, luz, cor, odor e contatos físicos (Stuckenschmidt, 1960). Jorge

Antunes, compositor brasileiro, concebe e realiza suas composições mescladas de diapositivos

coloridos e dinâmicos. Não pode deixar de ser lembrado ainda a existência de pessoas que apresentam

comportamentos sinestésicos; uma parcela (pequena, é verdade, mas existente) da população que

integra comportamentos em um “sentir” único; sente em modalidades diferentes, como gosto e

audição, audição e visão um mesmo estímulo.

A música é uma arte temporal, como a poesia, que apesar de ser representada por signos de

escrita, não é estática. Ambas estruturam-se no tempo, relativo ou absoluto. Podem ser, e de fato o são,

mensuradas na forma tradicional (que aqui chamamos de “mensuração vertical”: pés, pulso, metro,

compasso tradicionais) ou “planimetricamente” (no caso da música), uma concepção nova de tempo

em música, criada, sobretudo a partir da segunda metade do século XX, com Xenakis (e. g.. Metastasis

ou Pithoprakta), Penderecki (e. g. Anaklasis, Paixão Segundo São Lucas), Stockhausen (e. g. Estúdio I

e II, Canto dos Adolescentes), Pierre Boulez (e. g. Le Marteau sans Maître) e outros. A música não é

instantânea, como a pintura, e nisto estas duas linguagens estão separadas, sem que esta separação se

dê na pessoa do artista que as pratica.

Para os estudos da linguagem musical os neurologistas têm usado em seus experimentos, como

fonte de comparação, inspiração e metodologia, a linguagem falada e escrita. Ambas são expressivas e

receptivas, incluindo entre suas funções a composição, o improviso, o desempenho, a recepção e a

compreensão. Vocalmente a música é expressa pelo canto, enquanto que a fala tem seu “cantado”

próprio; ambas têm suas melodias especiais, às vezes regionais e que podem até ser prejudicadas ou

perdidas por algum acidente cerebral, o que não é raro na história da neurologia. Na prática musical,

fala e canto estão bem ilustradas no que historicamente se chamou de “Sprechgesang” e

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“Sprechstimme”4 muito bem representados em “Pierrot Lunaire” (1912) e “Ode a Napoleão”(1942)

de Schoenberg e Wozzeck (ópera composta entre 1914 e 1921) de A. Berg, entre outras. A afinidade

entre música e fala e suas formas de uso é notória no ritmo e na melodia de cada linguagem, haja vista

em canções (na música), e em poesias (na fala). Palavras e música se completam em canções e não é

por acaso que para muitos povos civilizados se completam: melodia, texto, canto e dança. É

compreensível neste sentido deste ponto de vista que no Brasil, muitas vezes o termo música é usado

como sinônimo de música popular (com letra).

O paralelismo entre linguagem falada e escrita e música é conhecido e pertinente. Mesmo sem

seguir rigorosamente a uma análise e terminologia técnica (fonema, morfema) para o estudo destas

linguagens, vejam-se as seguintes comparações: as células básicas da música são as notas isoladas

(unidades puntiformes) ou os acordes isolados (unidades de profundidade), perfeitamente comparáveis

aos fonemas, células básicas da fala. A seguir poderiam ser considerados os “impulsos” ou idéias

musicais, expressos por grupos de notas (ou neumas) que equivaleriam à palavra ou a palavras na

linguagem falada e escrita. Seguir-se-iam frases musicais, sentenças, cadências compostas por

encadeamentos de notas e acordes, períodos com pontuação, expressão, entoação etc., tudo

semelhantemente ao que acontece na linguagem falada e escrita. Não pode ser esquecida também a

ambigüidade ou até pluralidade de sentido que, na linguagem falada e escrita, as palavras podem ter de

acordo com o contexto em que são usadas; por exemplo: o termo manga pode significar 1. rir de

alguém (do verbo mangar: ele manga do garoto); 2. extremidade da parte da camisa ou vestuário que

cobre os braços (manga da camisa); 3. chuva fina e passageira (manga de chuva); 4. cercado grande

onde se confinam animais (uma manga de 2000 hectares); 5. várias espécies de fruta. Em música

acontece o mesmo: o contexto sugere o sentido da expressão musical, que mesmo sendo clara e

perceptível, não é unívoca. Cada ouvinte pode ter a sensação que melhor lhe convier no momento.

Mesmo tratando-se de uma nota isolada, ela pode sugerir diferentes significados para as diferentes

pessoas (ouvintes) e músicos. Um exemplo: uma determinada nota, para um físico pode ser um lá com

440 Hz; a mesma nota para alguém que tenha ouvido absoluto pode ser o lá do diapasão, escrito na

clave sol no 2º espaço; para um tenor a mesma nota é uma das últimas de sua tessitura; para um

violinista é a nota produzida pela 2ª corda (solta) do violino e é fundamental para a afinação deste

instrumento; para um pianista é o primeiro lá acima do dó central, está localizada um pouco à direita

do centro do teclado; para um compositor pode ser o ponto de partida para a criação de uma obra

musical ou funcionar como diapasão para a afinação de um instrumento ou de uma orquestra.

4 “Sprechgesang” “canto falado”, (trata-se de um modo de cantar, em que o canto assume um colorido da voz falada). “Sprechstimme” “ fala cantada” (trata-se de um modo de falar, em que a fala assume um colorido da voz cantada),

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Mais similaridade: da mesma forma que alguém ao cometer um erro de linguagem é corrigido

por seu interlocutor, em música acontece coisa semelhante, o incômodo provoca a correção, quando,

por exemplo, se usam conteúdos musicais inadequados ao contexto, (e.g, tocando notas “erradas”,

contrariando o ritmo etc.). É que, semelhantemente à produção da linguagem, existem na produção da

música regras, que apesar de nem sempre, mesmo os músicos se darem conta delas, as seguem

intuitivamente. Dão conta de seus desvios, chamados “erros”, os detectam, incomodam-se e os

corrigem instintivamente.5

A respeito da imprecisão do sentido contido na música admite-se que música, mesmo a

chamada “música descritiva” não é precisa no que descreve, pois ela só descreve aquilo que já se tem

em mente, ou seja, a mesma música que pode descrever uma batalha, pode também descrever a

atividade de uma colmeia ou de um formigueiro6. Os compositores modernos, sobretudo das décadas

de 1950 a 1980, tiraram proveito desta ambigüidade de sentido que a música pode despertar.

Perceberam que suas músicas, geralmente desenvolvidas em gramáticas atonais, tornava-se cheia de

informação, o que acarretava difícil apreciação e, geralmente, eram mal interpretadas. Maestros e

músicos reclamavam por não terem dicas para executá-las, ouvi-las, embora fossem, em geral, muito

descritivas. Um artifício usado pelos compositores para prender os ouvintes foi a criação de títulos

sugestivos, a exemplo de: Mosaico (Rossi, 1969), Policromia (Lins, 1968), Delírio dos Parasitas da

Pele (M. Gomes, 1969), Rondó Mobile (Widmer, 1977), Caleidoscópio (Kokron, 1970), Procissão das

Carpideiras (Cardoso,1969), entre outras.

Há, no entanto, na tradição e prática tonais, algumas convenções que os músicos sempre

seguiram para expressar determinados sentimentos7, por exemplo, o uso do modo Maior para

festividades, vigor, marcialidade, fé etc. e do modo menor para expressar estados emocionais tristes,

sentimentos de saudade etc. Determinados intervalos, por exemplo, o intervalo de 4ª justa para iniciar

segundo Stuckenschmidt (1960). 5 Foi baseado nesta lei da percepção (uma das leis gestálticas (a da boa continuação) que foram desenvolvidos os testes desta tese: reação natural a erros melódicos, modificações de intensidade e alterações de timbre. 6 Vale aqui o relato do caso do compositor brasileiro Cláudio Santoro, que a pedido de seu mestre, o Professor Koellreutter (que foi também o relator deste ocorrido), havia composto uma obra didática em gramática atonal e a intitulara de “Peça para Orquestra”. Surgiu então um concurso promovido pela Orquestra Sinfônica Brasileira, e que tinha como exigência para as composições concorrerem, terem características nacionalistas. Havia pouco tempo para compor um novo trabalho e Santoro (cujo filho acabava de nascer, aumentando com isto a necessidade de recursos financeiros e o concurso oferecia um bom prêmio aos classificados) combinou com seu mestre colocar a “Peça para Orquestra” no concurso. Procederam algumas modificações na instrumentação e orquestração e sobretudo “rebatizaram-na” com o nome de “Impressões de uma Usina de Aço”, pois, transcorriam os anos de euforia de inauguração da usina de aço de Volta Redonda, orgulho nacional. Santoro foi premiado em 1946, obtendo segundo a crítica contemporânea “... sensacional êxito, merecendo as honras de um bis. Na verdade, o trabalho de Santoro agrada muito mais do que o de Mossoloff – é mais musical, menos barulhento e melhor orquestrado. São realmente eficazes as imitações das máquinas em movimento, a sugestão do aço líquido

correndo para os gigantescos caldeirões...” (Mariz, 1970). “Foi a única vez que me vendi...” foi o comentário do compositor aos críticos.

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hinos, 3ª menor para representar sentimentos afetivos. Admitir como explicação para tais convenções

apenas efeitos da tradição ou da cultura de um povo, parece não satisfazer à curiosidade da ânsia de

saber mais a respeito das coisas secretas da música.

Uma outra característica da música semelhante à da linguagem é a possibilidade (uma capacidade

do ser humano íntegro) de se antecipar, por meio de uma expectativa criada ao ouvir, por exemplo,

uma idéia musical, prevendo o que virá depois. Motivos musicais ou mesmo simples notas isoladas

podem criar expectativas que levam o ouvinte a tentar adivinhar o que vem depois. E quando ele é bem

sucedido fica “feliz” e cria novas expectativas, num verdadeiro jogo, em que o “feedback” bem

sucedido incita a um ludismo que transforma a audição de música num estado emocional vivo, para os

quais a tensão e o relaxamento são a energia deste estado. Isto se torna mais difícil no campo da música

nova frente aos atonalismos, plásticas, ruídos etc., onde as dicas para expectativas são poucas ou

inexistentes. As conseqüências deste fato podem ser o desinteresse do ouvinte pela audição deste tipo

de música, da mesma forma que alguém que presencia uma pessoa falando em um idioma que não

entende.

Mas há outras razões porque determinadas pessoas não conseguem participar da mensagem

musical, seja da música tradicional seja da música nova. São as afetações que impedem de a pessoa

ouvir e que podem localizar-se desde o sistema auditivo periférico até aos substratos neurológicos,

como será visto posteriormente.

B) Considerações sobre o conceito de música

Uma das recorrências mais comuns ao se tentar definir música é optar por seu caráter estético.

Ela se inclui entre as artes e seguindo o conceito clássico, entre as artes fonéticas. Outras recorrências

para defini-la seria optar-se por seu caráter sócio-cultural, político e poder de comunicação, seu ponto

de vista material e formal e sua relação com o homem. Sob este último aspecto, a música é vista pelo

lado da psicologia e é o que se vai ter em mente neste trabalho, tendo como objeto da pesquisa apenas

a manifestação musical como linguagem controlada por estética e gramática tradicionais. Faz parte

desta escolha esclarecimentos sobre o que se entende por música tradicional, sua estética e sua

gramática, em oposição a outras manifestações com estética e gramáticas diferentes.

7 Mas seriam tais convenções apenas “convenções” ou estariam elas fundamentadas nos milenares “segredos” da música?

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1. Música tradicional

Considera-se música tradicional aquela manifestação musical que atende às leis naturais

quanto ao objeto físico, o som e o ritmo e quanto ao sujeito que a produz ou consome o compositor e o

ouvinte. A rigor, só da relação objeto físico x mente humana, é que surge a música. Leis naturais

determinam o fluxo dos parâmetros musicais, dos movimentos (rítmicos e arrítmicos), parâmetros no

tempo, e do som / silêncio parâmetros no espaço, formando as estruturas sonoras e de silêncio. Cada

um destes parâmetros tem um fundamento básico gerador de estruturas que dão origem a outras

estruturas maiores que compõem a música. Um destes é a série harmônica que determina, segundo a

ordem de seus harmônicos, a geração do som musical propriamente dito, a geração das escalas com

seus modos, das quais surgem as tonalidades / modalidades (modo maior e menor e suas variações).

Das escalas criam-se melodias e acordes e por fim estruturas sonoras mais evoluídas (cadências,

seqüências etc) como as harmonias, que instrumentadas e orquestradas produzem uma obra musical.

Esta estética, associada a gramáticas musicais específicas de cada época (monodia, medieval, polifonia

e contraponto, renascença e harmonia, período clássico e romântico) recebeu tratamento magistral na

música clássica dos séculos 18 e 19, enriquecida pelo domínio da instrumentação e que continua até

hoje, na preferência do ser humano (Borchgrevink, 1991). Negar a série harmônica é negar todas estas

estruturas. Chama-se aqui de música tradicional aquela decorrente da série harmônica quanto a suas

estruturas sonoras. O movimento da música tradicional caracteriza-se por sua periodicidade o que

equivale a dizer que é rítmico.

2. Música “contemporânea”

Música contemporânea foi como ficou sendo chamada por muitos, a música que não teve ou

não tem como princípio básico para a composição musical, os princípios da música tradicional,

comandados pela série harmônica e pela organização binária dos movimentos, o ritmo. Sempre houve,

na história da música, alguém que tentasse inovar rebelando-se contra o que chamaram de tirania da

série harmônica8. Mas foi, sobretudo a partir da segunda metade do século 19, com destaque especial

para as décadas de 1950 a 1980, onde, que na busca de novos caminhos para a composição musical, o

compositor de após Segunda Guerra Mundial fez valer sua criatividade. Desfilou uma seqüência de

8 - uma vez que o ritmo sempre foi mais difícil de ser vencido e até hoje continua presente, mesmo nas manifestações mais revolucionárias, a exemplo do Dodecafonismo, (a oposição declarada à série harmônica e à tradição) e aos DJs com suas propostas extremistas, a exemplo do Grupo CDP, em gravação de PO BOX 75 MANCHESTER M45 6ER UK, de 1996: “A Reversible History of The Future”, onde tudo é destruído menos o ritmo.

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técnicas, em sua maioria atonais (negação da série harmônica) ou politonais (uso de duas ou mais

tonalidades ao mesmo tempo), que passaram pelo Dodecafonismo e outros Serialismos (Schoenberg,

Webern e Alban Berg, Boulez, Krenek), pelo Concretismo (Schaeffer), pela Música Eletrônica

(Stockhausen), pelos Atematismos (Pièrre Boulez), pelas Simultaneidades (Strawinsky, Bartok,

Milhaud), pela Música de Ruído (Varèse), pelos Folclorismos e Exotismos (Kodaly, Bartok,

Strawinsky, Copland, Messsiaen), pelo Probabilismo (Xenakis), pelas Plásticas Sonoras (Penderecki),

entre outras mais recentes (e.g. Minimalismo, Wave), não esquecendo os retornos ou chamados estilos

“néos”, dos quais um dos mais importantes foi, sem dúvida, o néo-modalismo (Strawinsky, Bartok).

Na música contemporânea as características dos elementos musicais, som e ritmo, foram

alteradas. A freqüência do “som musical”, que tradicionalmente se mantém dentro dos limites de 16 a

8.000 Hz (gama de freqüência onde a audibilidade de harmônicos varia, mas dentro das exigências do

vínculo tonal / modal), na música contemporânea, a gama do som musicável estende-se ao intervalo da

audibilidade, mais ou menos 16 a 20.000 Hz. A potência varia do inaudível (em casos a taxa de

silêncio pode ser maior do que a do som audível, p. ex. em “Tacet” de John Cage), ao limiar de

saturação dos tímpanos, com nuances que a música tradicional certamente não aceitaria O timbre

também sofreu mudanças com a introdução de novos meios de produção de sons (instrumentos novos,

maneiras diferentes de tocar instrumentos tradicionais, equipamentos eletroacústicos etc). Para o ritmo

também foram introduzidas mudanças: a simetria e repetição que o caracterizou, não só na música,

mas também nas artes em geral, agora transformou-se em evento de apenas “movimento” que varia,

sem simetria, sem periodicidade, sem repetição e transforma-se em apenas atividade, pontos sonoros, a

exemplo de uma chuva que cai sobre um telhado de zinco. Naturalmente estas mudanças provocaram

uma profunda revolução na ortografia musical, bem ilustrada no livro de Erhard Karkoschka: Das

Schriftbild der Neuen Musik, publicado pela Hermann Moeck em 1966, na Alemanha.

Hoje o termo música contemporânea, mesmo obsoleto, continua a ser usado por muitos.

A música contemporânea, mesmo não se estruturando segundo os princípios da música

tradicional, é estruturada de forma organizada. Geralmente são músicas que surpreendem pelo

imprevisível, pelo inesperado, pelo ludismo ou por outras formas de prender a atenção, sendo, no

entanto, ao ver do autor, necessário, em todos os casos, para que uma proposta possa ser aceita como

uma obra musical, que haja uma forma, uma lógica de ligação entre um antecedente e um conseqüente

ou mesmo que a lógica de ligação entre o antecedente e o conseqüente seja exatamente a negação

desses requisitos. Mas isto tem que ser intencional.

Este trabalho limita-se à consideração sobre a música tradicional, aquela composta de estruturas

de movimentos simétricos (binários, ternários, quaternários etc.) que se tornam perceptíveis no tempo

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(portanto, tempo é diferente de ritmo) e no espaço, mediante estruturas de sons, que obedecem às leis

da série harmônica e são moldadas pelas nuances da dinâmica e dos andamentos e da agógica, muitas

vezes, adornada pelos diversos tipos de ornamentos.

3. Som Musical

O termo som se aplica a uma variedade muito grande de eventos gerados por freqüências

sonoras, o ruído do mar, o som dos planetas girando e compondo o universo, o zumbido da abelha, o

canto dos pássaros... e uma variedade enorme de sons que o homem pode produzir, seu grito, seu

canto. seu sussurro.

São vários os aspectos sob os quais o som pode ser estudado. Um deles é o de suas

propriedades físicas: vibrações de corpos elásticos, periodicidade destas vibrações, formação e tipos de

ondas que variam de acordo com a fonte sonora. Outro aspecto é o da compreensão da capacidade

humana de ouvir, de prestar atenção a ele, de selecioná-lo e a partir daí fazer discriminação e

julgamento. A música vale-se das propriedades que a orelha pode detectar. Outras, como a energia

contida no som, não são objetos de conteúdos musicais, pelo menos dentro do conceito tradicional de

música.

A tradição catalogou como “som musical” aquele que tem boa audibilidade de harmônicos ou

que mesmo não a tendo, é usado contextualmente à música.

A contemporaneidade expandiu este conceito e permitiu a inclusão no conceito de “som

musical” praticamente todos os sons9, inclusive os produzidos artificialmente e mesmo a ausência de

som, o silêncio. Mas quando se fala em “som musical”, geralmente, fica entendido seu contexto

tradicional, ou seja, mantendo-lhe os seguintes atributos: a) freqüência periódica, que determina o que

popularmente se chama de altura (pitch), b) potência ou volume, que dentro de certos limites é

moldada por nuances que determinam a dinâmica (loudness) e que combinada com as modificações de

andamento determinam a agógica, c) audibilidade de harmônicos (uma função da distribuição da

energia entre os parciais ou harmônicos), que determina o timbre, d) duração, permanência do som no

tempo, condição de sua existência; é crucial na produção do ritmo.

O som, considerado isoladamente, é um elemento pré-musical. É parte da matéria prima da

música, mas sozinho não pode ser considerado música e seu estudo permanece num campo que

9 - Ficou histórica a relação dos “sons musicais” feita pelos futuristas italianos Luigi Russolo e Balilla Pratela (1913). Eles distinguiram 6 tipos de ruídos musicáveis: 1. estrépitos, tiros, explosões etc. 2. sibilos, assobios, silvos; 3. cochichos, murmúrios, sussurros e gorjeios; 4 . gritos, chiados, zumbidos, sons de frituras, sons produzidos por fricção; 5. sons

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antecede ao da música. Uma melodia é a forma mais simples de música e é definida por seu contorno,

que por sua vez é definido pelo uso de um som ou sons (constituindo intervalos melódicos) e seus

atributos (dinâmica, timbre, ornamentos etc.) sendo exposto, geralmente, através de padrões rítmicos,

no tempo. Subjacente à melodia existe uma harmonia (encadeamento de intervalos harmônicos

supostamente sugeridos pela série harmônica do(s) som (sons) usados na melodia). A audição de um

som isoladamente segue uma rotina neural (possivelmente afeta ao hemisfério direito) diferente da

audição do som dentro de um contexto melódico, quando sua percepção se dá sob a condição dos

intervalos (possivelmente afeta ao hemisfério esquerdo, como o é também o processamento da fala). O

estudo da percepção de música pressupõe o estudo da audição de pelo menos sua forma mais simples,

a melodia.

O som musical, mesmo isolado, não é estático e é legítimo considerá-lo como algo contextual,

uma vez que contém em si o fundamento harmônico e, dependendo de sua duração, perspectiva

melódica. O contexto harmônico-e-melódico ganha forma e contexto melhor definido, quando vários

sons harmonicamente próximos se juntam e criam o “germe” tonal. Este contexto se define melhor

quando se junta aos sons musicais padrões rítmicos, criando encadeamentos de movimentos expressos

por sons concomitantes, os acordes, que acabam por definir com clareza a tonalidade / modalidade. É a

partir daí que se pode falar em música propriamente dita, a qual o sistema auditivo está apto para

perceber e para o que a memória de curto prazo é crucial. O enredo musical leva o ouvinte a criar

expectativas durante a audição, que podem ser satisfeitas da maneira esperada ou não. Fundamentado

nestas expectativas é que surge o interesse que prende a atenção a um determinado evento, por

exemplo, a uma nota, a uma cadência ou a um segmento melódico, ou rítmico e desta forma, acusar

quando a expectativa não for confirmada ou a confirmação se der de forma diferente da esperada. Sem

expectativa o interesse inexiste.

A música ocidental se caracteriza pelo uso das escalas, ascendentes ou descendentes, nos

diferentes modos, alguns com maior freqüência de uso em determinadas épocas. As escalas são

estruturas que se completam através do dobramento de sua primeira nota, fechando-se numa relação

frequencial de 1:2. Este fechamento é o fenômeno mais importante, melódica e harmonicamente

falando, da música ocidental10; a cultura ocidental o procura em toda música tradicional (Koellreutter,

1968).

produzidos batendo em metais, madeira, pedra, porcelana etc.; 6. gritos de animais e de gente, ruídos , latidos, risadas, soluços, suspiros etc. (Stuckenschmidt, 1960) 10 o dodecafonismo tem início quando rompeu com o fechamento da escala e a transformou em série sem começo e sem fim, sem centro tonal. Cada som é absoluto.

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Um dos fenômenos maravilhosos da percepção humana, é a capacidade do sistema auditivo de

assimilar os vários componentes harmônicos de um som em um único som, e que em conjunto com

outros atributos como os das características da fonte que produz este som, vai determinar-lhe o

espectro que é o que define o timbre. Um som produz, teoricamente, infinitos harmônicos; fisicamente,

existe um limite que esbarra nas condições físicas dos corpos elásticos. Sob o ponto de vista prático, na

música tradicional fêz-se uso de apenas até o 15º harmônico. Normalmente, uma pessoa razoavelmente

musical consegue ouvir, sem ajuda de aparelhos, até o sexto ou sétimo harmônico de um som

produzido em boas condições por um instrumento de qualidade (e.g. piano Steinway, violino

Stradivarius etc), em ambiente propício à propagação do som. Esta possibilidade do sistema auditivo é,

até certo ponto, influenciada pela vontade, pela cultura e pelo treino do indivíduo, fazendo com que

seja possível selecionar para ouvir um determinado harmônico.

Com os recursos eletrônicos pode-se agir diretamente sobre os harmônicos de um som, ora

intensificando-os todos ou a um só, ora filtrando-os todos ou a um só, ou eliminando sua fundamental

etc. Schaeffer, um dos criadores da música concreta, em “Traité dès Objets Musicaux” (década de

1960) fez este trabalho e concluiu, p. ex. que tocando apenas os harmônicos (sem a fundamental) ouve-

se a fundamental, contestando a tradicional terminologia de “som gerador” para denominar o som

fundamental de uma série harmônica. Isto está em desacordo com as observações de Fletcher (1924)

que sugere que a freqüência fundamental deve estar presente para que se tenha a sensação da altura do

som. Mas, já é de 1938 a demonstração de Schouten confirmando que a fundamental não precisa estar

presente entre os harmônicos para que se tenha a audição da altura do som correspondente a sua

freqüência. Desta controvérsia parece ser mais coerente ficar com a posição de Schaeffer aparelhado

com a tecnologia moderna e aceitar a posição de que a altura é determinada também pela audibilidade

dos harmônicos ou parciais mais fortes e que esta audibilidade é também determinante do timbre do

respectivo som11.

Na música ocidental tradicional a altura é a característica mais importante. São funções dela

praticamente todas as estruturas sonoras usadas na música tradicional: escalas, acordes, melodias,

harmonia. Mesmo na música contemporânea, a altura continua a ter um papel de destaque. A altura,

para o som musical, como função da freqüência, situa-se entre, aproximadamente, 16 Hz e 8.000 Hz

(situando-se a gama de freqüências mais usadas na música tradicional, por ter melhor audibilidade de

harmônicos, entre 1.000 e 3.000 Hz) e ter duração de no mínimo um segundo para que o sistema

auditivo, através da vibração da membrana basilar, possa ter a sensação clara de altura do som (Pierce,

11 - Cita-se aqui ainda a teoria dos “sub-harmônicos” de Demitri Levidis, compositor grego (Chailley, 1951) segundo a qual a cada harmônico natural corresponde um sub-harmônico situado uma 5ª justa abaixo, pouco difundida.

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1999). Mas para que o som seja audível é necessário também que tenha uma determinada potencia ou

amplitude da onda sonora que se adeque aos limiares da audibilidade humana, tornando possível sua

percepção pelo sistema auditivo. Desta mesma potência, das propriedades da fonte sonora e da

freqüência do som, resulta o timbre. Portanto, as três propriedades do som, altura, intensidade (ou

potência) e timbre estão conjugadas de tal forma que se tornam inter-relacionadas e podem interagir

entre si. As melodias geralmente são formadas de alturas diferentes formando intervalos.

Modernamente, alguns compositores fizeram melodias com outras propriedades do som (Maurício

Kagel, 1964, Cogan, 1984; Erickson, 1975; Lerdahl, 1987; Slawson, 1985). Nestes trabalhos a essência

da melodia é composta de timbres, como o é também em algumas peças dodecafônicas (e.g Webern,

em arranjo de “Oferenda Musical” de Bach). Altura, timbre e intensidade interagindo através de suas

propriedades, estabeleceram o evento musical que Schoenberg (citado por Stukenschmidt, 1960)

definiu como “a altura é, na realidade, o timbre medido em uma direção...”

Altura e duração (o tempo sobre o qual se dispõe o ritmo) são usadas como condições básicas

na criação de padrões musicais completos, que vão de simples (como melodias simples, progressões

harmônicas e rítmicas) a complexos (como formas mais elaboradas: concertos, sinfonias etc). O metro

(compasso) é a própria duração estruturada em pulsações. Diferencia-se do ritmo no sentido de que

este é flutuação de valores proporcionais entre si dispostos no metro, tendo como unidade de tempo a

pulsação. Destes atributos o maior foco de pesquisas psicológicas tem sido sobre a altura e a duração

(Krumhansl, 1990, 1991 – citado por Krumhansl e Iverson, 1992), quer isoladamente, quer sob o ponto

de vista de suas interações. Pesquisas demonstraram que o ritmo12 afeta a memorização de uma

determinada altura, por exemplo, favorecendo-a (ou não) quando ela é reforçada, (ou não) por padrões

rítmicos (Jones, Kidd e Wetzel, 1981; Jones, Boltz e Kidd, 1982), permanecendo inalterada quando

não há coincidência de padrões rítmicos com a respectiva altura (Krumhansl e Iverson, 1992). Além

disto, acrescente-se ser bem conhecido no meio musical a dificuldade de reconhecer uma melodia

quando se modifica substancialmente seu ritmo original. E mais, altura e padrões de duração (células

rítmicas) são importantes para a percepção de estruturas musicais: motivos, frases (Palmer e

Krumhansl, 1987) e semelhanças melódicas (Monahan e Carterette, 1985). A contribuição de ambas,

altura e duração, para a percepção parece ser independente e sua interação, quando há, parece depender

do atributo perceptual que se está medindo (Krumhansl e Iverson, 1992), se altura ou se a duração (o

ritmo).

O timbre, referenciado como a cor do som, é o atributo que faz com que se diferencie um som

do outro, mesmo quando altura, intensidade e duração sejam mantidas constantes. Distingue-se, por

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exemplo, quando um piano e um clarinete tocam a mesma nota com a mesma intensidade e a mesma

duração. É um atributo suficientemente independente e incisivo a ponto de compositores modernos

terem ensaiado composições de “melodias” de timbre. Maurício Kagel compôs Transition II,(1964),

árias para tímpanos. Outros autores lidaram com o timbre como tendo propriedades análogas às da

altura (Cogan, 1894; Erickson, 1976; Lerdahl, 1987; Slawson, 1985) e a pergunta resultante é: será que

o sistema neural auditivo é capaz de configurar padrões de timbre como o faz com os da altura ou de

duração (ritmos)? A resposta está vinculada à resposta de outra pergunta: será que timbre e altura são

codificados separadamente pela percepção, tanto em sons isolados como em contexto melódico? As

respostas a estas perguntas passam pelo estudo da relação entre acústica e propriedades da percepção

humana. Radvansky, Fleming e Simmons (1995) replicando um experimento de Wolpert (1990) que

sugeria o timbre afetar a memorização de melodias em leigos, encontraram que o timbre não afeta a

memorização de melodias nem em músicos nem em leigos, não ficando, no entanto, ainda

convincentemente esclarecida esta questão (Carterette e Kendal, 1999).

O timbre, subjetivamente, descrito como função da fonte sonora, é definido pela intensidade da

distribuição dos parciais e da capacidade de amplificação dos harmônicos pela fonte sonora, que lhe

caracterizam o espectro. Outro fator importante na caracterização do timbre é a duração do som, à qual

podem aglutinar-se efeitos do ataque (onset) ao som, presença de ruídos e parciais inarmônicos, a

duração do som propriamente dita (vibratos, modulações na amplitude, pequenas desafinações) e por

fim, efeitos da finalização (offset, decay).

A música tem sua representação gráfica tal qual outras linguagens, para cada um dos atributos

do som e outros. Sua representação apropriada e clara é um código semiótico que o músico erudito

entende, respeita e necessita para seguir informações a respeito de determinados aspectos da música. O

timbre geralmente é mal representado nas partituras tradicionais. Isto deu ensejo a compositores que

fizeram uso do timbre como qualidade principal de suas músicas, a escrita de partituras em cores

(“Klangfarbenmelodie” – uma idéia de Schoenberg, (1909) que a usou em Manhã de verão junto a um

lago e Webern (1911 a 1913) na 3ª Peça para Orquestra Op. 10, entre outros dodecafonistas.

A variação da intensidade produz a dinâmica que combinada com o movimento gera a agógica

que é usada para delinear unidades estruturais da composição musical, a exemplo de células rítmicas,

progressões harmônicas, seqüências melódicas, fraseado. De todos os atributos do som, a intensidade é

o menos estudado. Um dos estudos mais conhecidos é o de Nakamura (1987) demonstrando que

referências dinâmicas na música facilita a comunicação com o ouvinte e que isto é verdade mesmo que

a intensidade física não corresponda, nem à sugerida na partitura, nem à percebida como decorrência

12 - flutuação de durações proporcionais, sucessivas e caracterizado pela alternância de valores apoiados e não apoiados

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das propriedades físicas, o que sugere que o contexto influencia a forma como as variações de

intensidade são percebidas e interpretadas. Não é sem sentido que o intérprete confere toda uma

conotação cênica a seu desempenho ao executar uma peça. Outros atributos da composição musical

também exercem influência sobre a percepção da dinâmica, p.ex. notas ascendentes sugerem

crescendos (aumentando, portanto, a intensidade) e descendentes, decrescendos. Disto acredita-se que

a intensidade pode interagir com outros atributos musicais. A intensidade, que por sua vez é função da

potência do som, determina, em parte, o nível de audibilidade dos harmônicos, um dos determinantes

do timbre audível. Em música a intensidade é também dinâmica; é elástica e tem padrões expressos por

crescendos, diminuendos etc. Está, imprecisamente, escalada em cinco graus: pianíssimo, piano, mezzo

forte, forte e fortíssimo. A percepção da intensidade, fisicamente expressa em decibéis, torna-se mais

complexa por ser de controle subjetivo do ouvinte, acarretando diferença de percepção de um mesmo

estímulo de um sujeito para outro. A intensidade que referencia a dinâmica desenvolve também um

papel importante na música, onde estas indicações são relativas às épocas e autores. Neste trabalho, a

alteração de intensidade foi fixada em apenas uma nota, tocando-a forte (entre as demais com

intensidade normal), fazendo com que a estética do contexto em que estava inserida fosse quebrada.

Perceber, relembrar, criar e executar música são atividades que requerem uma complexa

atividade cerebral. A simples percepção de uma melodia ou mesmo de um som musical isolado,

implica em uma complexa análise perceptual que passa pela memória de curto prazo e pelo

emparelhamento de abstratos mecanismos de atividades cerebrais (Deutsch, 1999; Dowling e

Harwood, 1986), para o que, parece óbvio, há a necessidade de um complexo sistema neural, que

integre em um único objeto todas as informações transmitidas pelo som13 (Bregman, 1990; Deutsch,

1982; Handel, 1989; Moore, 1982), operação neural, até o presente, apesar dos avanços dos estudos da

neurociência e ciências correlatas, pouco conhecida. Todavia, os progressos que se tem alcançado

provenientes, principalmente, de estudos neuroanatômicos e neurofisiológicos do sistema auditivo de

vertebrados não humanos e de estudos, a partir dos efeitos em tarefas auditivas causados por lesões

cerebrais acidentais em seres humanos, permitem novos estudos que já partem de um patamar de

conhecimento considerável. Com o advento da tomografia computadorizada por emissão de pósitrons

(PET), infelizmente ainda privilégio de poucos pesquisadores, se tem uma ferramenta confiável, direta,

rápida e eficiente para os estudos da percepção musical, da percepção melódica e da percepção em

geral.

13 - por exemplo, o som produzido por um clarinete transmite ao mesmo tempo informações a respeito de altura, intensidade, timbre e duração.

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4. Substrato Neurológico para a Audição

A) A complexidade do cérebro

É notória a dificuldade de estudo do cérebro em qualquer de suas funções (não só as auditivas),

dificuldade esta aumentada pelo fato de não existir o “cérebro médio” (Mecacci, 1987), um cérebro,

cujas funções e estruturas fossem comuns a todos os homens, existindo apenas estruturas básicas que

em contato com o meio ambiente e a cultura dos povos e dos indivíduos, produzem a individualidade

de cada “cérebro de cada individuo”. Estuda-se então um modelo de cérebro inexistente, mas é a

partir destes estudos que se tem tentado traçar perfis mais ou menos confiáveis de cérebros e classificá-

los, por exemplo, por sexo, profissão, desempenho, raça, cultura, (e.g. o cérebro de um artista, de um

músico, de um atleta, de um criminoso). E mais, o cérebro evolui, é dinâmico, muda sempre, se adapta

a novas solicitações. Com isto seus circuitos mudam em direção, intensidade e complexidade. Por fim,

é inviável o estudo do cérebro apenas sob o ponto de vista neurofisiológico, Muito ajuda a recorrência

às ciências como a neuropsicologia, a antropologia, a etnologia e ciências afins. Um caso fascinante da

especificidade do cérebro é caso de Nádia, narrado por Mecacci (1987), em que uma criança de três

anos, chamada Nadia, não falava, mas desenhava muito bem e após uma mudança radical de ambiente

de vida começou a falar, mas perdeu a capacidade de desenhar.14

A mudança no comportamento de Nadia foi interpretada pelos especialistas como tratando-se

de duas funções distintas do cérebro: a) uma verbal, hoje apontada como sendo própria do hemisfério

esquerdo do cérebro e b) outra visual (espacial) tida como especialização do hemisfério direito. O caso

de Nadia, ilustra a dicotomia entre estas duas funções cerebrais cada uma delas atrelada,

preferencialmente, a um dos hemisférios cerebrais. Outras funções como a da musicalidade, da poesia,

da eloqüência, da criatividade, da racionalidade etc. também teriam sua preferência quanto à

lateralidade.

14 Nádia era filha de pai ucraniano e mãe polonesa. Em casa falava-se o ucraniano e o inglês. Era uma menina gorda, desengonçada e que não aprendeu a falar até aos seis anos, mas desde os três anos e meio desenhava de forma assustadoramente surpreendente, usando apenas uma esferográfica e sem usar cores. A partir dos seis anos foi acompanhada pela psicóloga Lorna Selfe que a observou longamente e documentou toda a evolução da transformação de seu cérebro, que resumidamente é o seguinte: a) Nadia sentia-se bem quando desenhava. Ficava contente, ria, batia os joelhos e desenhava com muita rapidez, o que não condizia com sua maneira de ser: geralmente lenta, por ex. quase nunca terminava o lanche no recreio com os outros, sendo muito conhecida sua lerdeza; b) Quase nunca desenhava figura humana. Nadia havia começado a desenhar aos três anos quando sua mãe ficou doente e tendo que ser hospitalizada, ficou isolada em um quarto na casa da avó. A mãe de Nadia morreu quando ela tinha oito anos e ela foi colocada em uma escola para autistas onde fez progressos na comunicação e socialização, mas perdeu a habilidade para desenhar.

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A comunicação entre os hemisférios cerebrais via corpo caloso e comissuras possibilita a troca

de informação entre áreas diferentes dos dois hemisférios e no caso da audição, também entre áreas

diferentes do mesmo hemisfério (Zonas AI e AII, nos lobos temporais). Edward (1979) afirma que

desta comunicação pode resultar uma interação benéfica dos hemisférios entre si, fazendo com que

muitas tarefas sejam desempenhadas com a colaboração de ambos os hemisférios, como

possivelmente, no caso da música, o desempenho de algumas funções que poderiam ser processadas

preferencialmente pelo HD, a exemplo da musicalidade em si, da criatividade musical, das idéias

musicais, de determinados aspectos da percepção musical, por exemplo, de melodias e sons isolados

que envolvem análise do espectro musical (Zatorre, et al. 1994) e outras pelo HE, a exemplo do uso

das técnicas, das atividades que envolvem reflexão ou simbolismo, como ler notas, solfejar, escrever

partituras, fazer arranjos etc. e aspectos da percepção musical que envolvam análise e sejam efetivados

a partir da concepção de seus intervalos. Mas nem sempre a colaboração entre os hemisférios se efetua,

um hemisfério agindo, enquanto o outro está inativo ou colaborando com a ação. Por vezes, entram em

conflito, um interceptando a função do outro em tarefas para as quais a competência primária seria do

outro hemisfério (Edward, 1979).

B) A complexidade das vias auditivas

O entendimento de como funciona a circuitária neural do sistema auditivo é condição para se

estudar o capítulo da lateralização dos parâmetros musicais e da música como um todo.

São muitos os compêndios de neuroanatomia e neurofisiologia que tratam do sistema auditivo e

sua complexa rede neural, mas monumental é a obra de André Parent, (1996) “Carpenter’s Human

Neuroanotomy”, publicada pela Williams & Wilkins no Canadá. A síntese do assunto feita a seguir

funciona como lembrete à complexidade do sistema neural auditivo.

A condução de um estímulo sonoro desde sua captação pela orelha externa, até as áreas de

audição no cérebro, passando por todas as instâncias intermediárias, suas subdivisões e núcleos15,

sofrendo cruzamentos e retornos, fibras sendo interceptadas pelo caminho, é algo de difícil controle e

cujas pesquisas ainda divergem muito, também no caso das pesquisas com música, para as quais a

15 Aqui citados apenas para exercício de memória e demonstração de complexidade destas instâncias: (a) orelha externa, média e interna; b) cóclea com suas membranas e órgão de corti; c) nervos vertíbulococlear e núcleo coclear; d) sistema de fibras auditivas que através de sinapses se comunicam: as primárias com as secundárias e estas com as terciárias; e) complexo olivar superior; f) corpo trapezóide; g) leminisco lateral; h) colículo inferior; i) corpo geniculado medial e finalmente j) áreas cerebrais da audição: A-I e A-II.

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descrição mesmo teórica do itinerário de um estímulo sonoro até o cérebro (ação ascendente:

centrípeta) e a resposta conseqüente da recepção deste estímulo (ação descendente: centrífuga) fica

incompleta. Mas merece consideração especial o capítulo da organização das vias auditivas

responsáveis pelo fenômeno da tonotopia na audição de estímulos musicais.

A base de todo estudo neurofisiológico, inclusive da organização do sistema neural auditivo,

está limitada ao uso de métodos, cujos resultados são incompletos, ou seja: de eletroencefalogramas, a

dificuldade de indicar com precisão o ponto exato da resposta aos estímulos e da captação de respostas

de um neurônio através de micro-eletrodos, a limitação da percepção de apenas algumas propriedades

do estímulo, a respeito do que, apesar de alguns trabalhos afirmarem que as respostas de um único

neurônio são necessárias e suficientes para a compreensão do estímulo, outros sugerem o contrário,

afirmando que somente a resposta de grupos de neurônios ou redes, poderia subsidiar a completa

compreensão do estímulo da percepção (Schroeder, 1999), por estarem eles em grupo “afinados” com

um determinado estimulo e suas propriedades.

Admitindo que o sistema auditivo exiba tal afinidade entre grupos de neurônios, surge a

pergunta: como ela se efetua para a percepção do som musical e mais especialmente para a percepção

de música. A energia física decorrente de uma determinada freqüência e potência é o estímulo

responsável pelo desencadeamento do fenômeno mais importante na percepção de música tradicional,

a percepção tonotópica dos sons musicais. O fenômeno do processamento especializado da freqüência

fundamental e de seus harmônicos evidencia-se em vários níveis do percurso dos estímulos auditivos

até o cérebro: a) na membrana timpânica que vibra de acordo com a freqüência das ondas sonoras; b)

na movimentação dos ossículos que acompanham em vibração os movimentos da membrana

timpânica, terminando com a ação da sapata do estribo sobre a janela oval transmitindo a energia do

som para a perilinfa na cóclea; c) na ondulação da perilinfa que seguindo da base para a parte apical da

cóclea, recebe as freqüências agudas na base e as graves no ápex; d) no órgão de Corti, o tradutor das

ondas sonoras segundo suas freqüências; e) no nervo coclear, sobretudo nos núcleos ventrais

(anteroventral e posteroventral) que dão origem às estrias acústicas; f) na Oliva Superior; g) no

Colículo Inferior; h) no Corpo Geniculado Medial e por fim, i) no Córtex Cerebral: A-I (área 41). A

Fig.1 permite visualizar estas instâncias.

Dito isto para sublinhar a complexidade topográfica e ao mesmo tempo pontuar alguns

princípios inerentes a esta complexidade entre outros, a presença da organização sistemática ao longo

das vias auditivas ascendentes e a capacidade de localizar no espaço uma fonte sonora, o que se dá a

partir da convergência dos estímulos provenientes dos dois ouvidos, primeiramente na oliva superior e

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depois nos colículos inferior e superior, embora este assunto seja ainda controvertido (Schroeder,

1999) e fora do interesse deste trabalho.

Vários estudos dão conta de que a base cerebral para o sistema auditivo está nos lobos

temporais, que por sua vez têm morfologia citoarquitetônica especializada com neurônios responsivos

à estimulação auditiva. Através de respostas neurofisiológicas e das características citoarquitetônicas

de sua composição, vários campos puderam ser identificados (Zatorre et al. 1994), e classificados em

duas principais regiões: área auditiva primária (ou koniocortex), que nos humanos está situada no

fundo do giro de Heschl e áreas próximas chamadas de córtex auditivo secundário. Muitas destas áreas

são tonotopicamente organizadas sugerindo que são importantes para a análise das freqüências. Mas

Zatorre et al. (1994), lembra que a afinação de um som isolado não é facilmente discernida pela

tonotopia, nem do sistema primário, nem do secundário e que alguns neurônios respondem melhor a

estímulos complexos, como tons modulados em suas freqüências (Zatorre, et al.1994) ou a padrões de

tons ascendentes ou descendentes (Zatorre, et al.1994).

Uma questão importante também decorrente da morfologia citoarquitetônica das células é a de

que desta morfologia poderia decorrer, nas regiões corticais, uma funcionalidade auditiva específica

dos neurônios do lobo temporal superior em processos auditivos de ordem superior. Zatorre, et al.

(1994) observou que sensações auditivas complexas, entre elas vozes e música, poderiam ser eliciadas

por estimulação elétrica da parte exposta do córtex nesta região, mas não o podiam nos giros de Heschl

(a parte encoberta) que apenas eliciava sensações primárias como por exemplo, alguns tipos de ruídos.

Tanto o córtex auditivo primário, como o secundário, recebem estimulação de vários núcleos

do corpo geniculado medial, sugerindo uma provável organização paralela e com funcionalidade

específica entre os dois córtices auditivos. Celésia (1976) com observações eletrofisiológicas e Tramo

et al. (1990) com observações comportamentais, dão suporte à idéia desta conectividade e de sua

independência, quando observaram que mesmo após lesões de áreas primárias, as secundárias

continuavam a funcionar. Foram também descritos por Chavis e Pandya (1976) e Petrides e Pandya

(1988) projeções do lobo temporal superior para o córtex frontal anterior. Tais conecções sugerem a

existência de funcionalidade entre os dois córtices.

Da funcionalidade surge um outro aspecto, particularmente importante para o processamento da

percepção musical e restritamente a este trabalho, da percepção melódica, a especialização hemisférica.

O som, além da freqüência, contém em si outras características a respeito das quais cada vez mais se

tem estudado, por exemplo, a respeito da modulação de sons, da potência do estímulo sonoro, da

precisão da afinação entre as freqüências de dois sons etc. Os resultados destas pesquisas podem levar

à descoberta de outros mapeamentos cerebrais (não só o tonotópico, que representa um parâmetro da

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energia do som, ou o da localização espacial, que representa o resultado da comparação dos estímulos

das duas orelhas) importantes para vários setores da audição, inclusive para audição de música, por

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exemplo, mapeamento da memória musical, dos diferentes tipos de sensações despertadas pela música

etc. (Weinberger, 1999).

Mais um aspecto do desempenho neural é fundamental na percepção de Música, o da memória,

sobretudo da memória a curto prazo. Sem memória seria impossível a percepção de eventos, cuja

estrutura se dispõe no tempo. Sendo a música um destes eventos sua percepção pressupõe a memória,

para o que parece pressupor também um processo que requer assimetria hemisférica. A percepção da

tonalidade, por exemplo, é resultado de uma audição mais ou menos longa de determinados elementos

que estabelecem entre si um vínculo harmônico. Zatorre e Samson (1991) demonstraram que em

pacientes humanos a extração do lobo temporal direito afetou a memória de curto prazo para a altura e

que lesões no lobo frontal direito também afetaram significantemente sua memorização.

5. Lateralidade das Funções Cerebrais

A) As teorias

Os estudos de lateralidade dos sentidos têm se concentrado mais na visão e na audição, embora

a metodologia para o estudo da audição (sobretudo apresentação dicótica de estímulos) tenha mais em

comum com a do tato (apresentação diháptica) do que com a da visão (Bradshaw, 1989).

O estudo da lateralidade auditiva apresenta várias dificuldades, entre outras as causadas pela

complexidade das vias de transmissão dos estímulos sonoros até a, ainda mais complexa, rede neural.

A dificuldade aumenta quando o objeto da audição a ser estudado é música, música entendida como o

resultado da configuração dos elementos pré-musicais e não como a consideração do som musical

isolado, cujo estudo pode levar a conclusões bem diferentes das que se pode ter quando se examina

música como estrutura (gestalt).

Das metodologias16 mais usadas para estudar a lateralidade hemisférica para o sentido da

audição, uma parece ser de uso mais comum entre os pesquisadores: a que realiza estudos com

indivíduos normais e que usa para comparação de seus resultados contribuições de estudos feitos com

indivíduos que sofreram lesões cerebrais em algum dos hemisférios. Para o estudo da lateralidade

auditiva em indivíduos normais, metodologias muito usadas têm sido as da apresentação dicótica e

16 a) estudos grupais com indivíduos com lesões cerebrais em algum dos hemisférios; b) estudos com indivíduos que se submeteram a anestesia de um dos hemisférios; c) estudos de diferenças na audição em ouvintes normais; d) estudos que avaliam a atividade psicológica cerebral, sem que para isto seja necessário interferência direta no cérebro: tomografia computadorizada, a moderna PET e ressonância magnética.

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monótica de estímulos. Estudos com estas metodologias já são antigos e abrangentes também à

lateralização de outros sentidos como o da visão e do tato (Bradshaw, 1989). Em estudos da audição,

diferenças temporais na percepção de estímulos sonoros entre as orelhas direita e esquerda são

interpretadas como sinalizador de assimetria hemisférica para a audição, sendo considerado favorito no

processamento neural o hemisfério contralateral à orelha mais rápida. Uma das possíveis formas de

quantificar esta diferença é medir o tempo de reação (TR) em ms gasto pela orelha para processar a

informação recebida. Os resultados a que se tem chegado, mesmo sujeitos a controvérsias, são

suficientes para afirmar a hipótese da assimetria hemisférica para o sentido da audição em muitas de

suas funções, em primeiro lugar para a fala, mas também para a percepção musical.

O modelo de Kimura (1967) tornou-se clássico para o estudo da lateralidade auditiva. A Fig. 2

ilustra este modelo do qual resultam as seguintes conclusões: a) um hemisfério, geralmente o esquerdo,

é especializado na percepção da fala

e da linguagem; b) o estímulo

auditivo é representado nos dois

hemisférios, mas com maior

intensidade em um, geralmente o

contralateral à orelha à qual é

apresentado o estímulo; c) uma

estimulação apesar de inicialmente

dicótica, se lateraliza e o estímulo é

processado preferencialmente por

um dos hemisférios; d) uma

informação verbal para a orelha não

dominante (geralmente OE / HD) é transferida via corpo caloso e comissuras, para ser processada pelo

hemisfério dominante, onde encontra e talvez entra em competição com os estímulos diretos

contralaterais da outra orelha (a direita). Kimura (1967) fundamenta-se na teoria de que os hemisférios

cerebrais direito e esquerdo estão, via corpo caloso, funcionalmente conectados e que as conecções

neurológicas contralaterais são dominantes sobre as ipsilaterais.

B) Assimetria hemisférica para a música.

Os primeiros estudos sobre dominância cerebral auditiva sugeriram superioridade do HE para

conteúdos de linguagem, da fala e de toda organização analítica, ficando o HD com a especialização

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para atividades não lingüísticas. Jackson (1932) é pioneiro nesta posição. Modernamente sua

concepção foi ampliada em muitos estudos feitos com sujeitos normais e sob o ponto de vista clínico

dos quais emergiram muitas controvérsias que, no entanto, não inviabilizaram algumas indicações

gerais a respeito da natureza das diferenças no processamento de informações auditivas em ambos os

lados do cérebro, atribuindo ao HE a especialização para processamentos intencionais, analíticos e

seriais de informações incomuns, enquanto que ao HD foram atribuídas as funções de estabelecer

relações, de processamento de concepções holísticas e sintéticas. A música ficou como exceção a esta

regra, por ser uma atividade complexa, pois, mesmo em sua forma mais elementar, a melodia, é

composta por elementos isolados (sons e fragmentos rítmicos dispostos no tempo), que juntos

assumem uma dimensão complexa. Esta complexidade levou a hipóteses de que seu processamento

dar-se-ia melhor pelo HE (Kimura, 1964; Spreen, Spellacy e Reid, 1970; Darwin, 1971; Spellacy e

Blumstein, 1971), uma posição que contrariava a de Jackson (1932) e mais tarde reforçada por Kimura

(1967 e 1973) que defendiam a especialização hemisférica de acordo com as características do

estimulo e da resposta. Na prática, a fala era objeto de processamento pelo HE; visão e música seriam

processadas pelo HD. Para o caso da música esta era uma posição simplista por não considerar os

diferentes tipos de estratégias usadas por um músico no processamento de uma atividade musical.

Sabe-se que, mesmo sendo a música composta de sons isolados, fragmentos rítmicos e outros

elementos pré-musicais, é, ao mesmo tempo um fenômeno gestáltico (Ehrenfels, 1890 e mais

recentemente, Dowling, 1971; Deutsch, 1972; 1999) e o fato de ela ser composta de sons isolados

pouco tem a ver com o resultado de sua percepção. Logo se chegou à conclusão de que poderia haver

uma dupla funcionalidade hemisférica de percepção para a música aplicando-se, de um lado, à

percepção pura e simples do evento musical como um todo, do outro, à percepção da música a partir

dos elementos que a compõem. No primeiro caso, a análise do vínculo estabelecido entre estes

elementos pré-musicais seria secundária à percepção e no segundo, esta análise seria emergente, de

modo especial para quem estudou música. De fato, pessoas que estudaram música e para as quais a

percepção de uma melodia passa pela “reflexão consciente”, música é o resultado da relação entre

componentes e que o reconhecimento do sentido da música é função, não só da percepção de toda a

forma, mas também da compreensão da maneira como os componentes, isoladamente analisáveis, são

combinados. Ora, se a melodia é, por leigos, tratada como uma gestalt, é admissível que se a tenha

como direcionada ao HD, o hemisfério da forma, da síntese. Por outro lado, pesquisas que revelaram

predominância do HE para a percepção de música como um todo, poderiam ter explicação no fato de

não se referirem ao grau de estudos musicais de seus sujeitos (Bever e Chiarello, 1974). Assim sendo

voltava-se de novo à posição de Jackson (1932): a percepção musical seria dominante para o HD, na

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medida em que a música fosse tratada holisticamente, como parece ser o caso de ouvintes leigos e

percebida pelo HE na medida em que fosse tratada segundo a relação de seus intervalos ou outras

microestruturas, e.g padrões rítmicos. Um experimento de Bever e Chiarello (1974), com dois grupos

de sujeitos destros (um de músicos com conhecimentos formais de música e outro de leigos a estudos

musicais), tinha por fim avaliar a possível diferença de percepção de música entre pessoas leigas ao

estudo de música e pessoas que fizeram estudos teóricos de música. Sua conclusão foi que: a) ouvintes

músicos (sujeitos com experiência e estudos formais de música) reconheciam melodias simples17

melhor com a orelha direita do que com a orelha esquerda e b) que o contrário também se verificava

para ouvintes leigos a estudos musicais: a preferência no reconhecimento dos estímulos melódicos era

da orelha esquerda. Estas conclusões estavam de acordo com a hipótese de que o HE é dominante para

o processo de análise e que o HD o é para processos holísticos. O grande mérito dos estudos de Bever

e Chiarello (1974) foi o incentivo ao estudo da diferença na modalidade hemisférica de percepção entre

leigos a estudos musicais e sujeitos musicalizados. Hoje já existem muitos experimentos feitos sob este

ponto de vista.

Das controvérsias na literatura neuropsicológica, surgem algumas posições de consenso. Uma

delas é que alguns aspectos do processamento musical provavelmente requeiram a contribuição neural

de ambos os hemisférios (Peretz. 1993); outra é que o hemisfério direito seria particularmente

importante para a percepção de melodias. Milner (1962) e Shankweiler (1966) demonstraram perda da

faculdade de discriminação melódica em indivíduos que passaram por lobectomia do lobo temporal

direito, mas não demonstraram nenhuma perda após a mesma restrição no lobo temporal esquerdo,

posição confirmada por Zatorre (1985) e por Samson e Zatorre (1988), que sugeriram a mais, que a

remoção do lobo temporal esquerdo podia afetar a discriminação melódica se a lesão se estendesse até

os giros de Heschl. Demonstraram também, Zatorre e Halpern (1993), que a extração do lobo temporal

direito podia causar déficits no reconhecimento da altura “ouvida” ou imaginada, o mesmo não

acontecendo com a remoção do lobo temporal esquerdo. Fenômeno diferente da percepção de melodias

é a percepção de sons isolados. Neste caso, a participação dos mecanismos cerebrais do hemisfério

direito é importante apenas quando se trata de reconhecimento de seu espectro ou tarefas que requerem

discernimento de estrutura harmônica complexa, tendo pouca participação na discriminação específica

17 - o estímulo foram 36 melodias tonais de 12 a 18 notas isorítmicas, em transposições diferentes, e uma escala temperada iniciada com o dó de 256 Hz. A duração de cada som foi de 300 ms e a intensidade, a mesma para todos os sons. Por tratar-se de apenas fragmentos melódicos, tem-se razões para supor que o evento melódico dos estímulos usados pelos autores é fraco, se se tem em mente analisar a percepção de música em sentido pleno; fraco sob o ponto de vista formal, estético e fenomenológico. Isto possivelmente restringiria o poder das conclusões a respeito da percepção de música ou de melodias completas. Esta observação aplica-se a uma grande parte das pesquisas que tencionam estudar música como evento pleno mas que avaliam apenas elementos pré-musicais, o que é diferente de estudar música.

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das freqüências em si (Zatorre et al. 1994). Exemplifica esta última indicação a discriminação do

timbre que por ser uma propriedade cuja mudança envolve mudança na estrutura do som, é tida como

função do processamento do hemisfério direito, o que foi comprovado a partir de pacientes com lesões

no lobo temporal (Milner, 1962; Samson e Zatorre, 1991) e sujeitos comissurotomiados (Tramo e

Gazzaniga, 1989).

Existe mais uma questão, esta menos estudada, quanto ao comportamento musical da

assimetria hemisférica: haveria assimetria hemisférica na audição de música entre homens e mulheres?

Os autores que falam sobre a assimetria hemisférica entre os sexos (Iaccino, 1993; Young, 1983;

Gorski e Hines1986) geralmente tratam de alguns aspectos relevantes para a existência ou não desta

assimetria, tais como: a) aspecto genético, focalizando diferenças de percepção (e.g. espacial, temporal,

verbal, não-verbal), organização cortical, diferenças maturacionais e morfológicas entre os gêneros, b)

aspecto bioquímico no qual são tratados principalmente os efeitos hormonais sobre a rede neural

cerebral e sobre o comportamento em si. Em experimentos com estimulação dicótica de material verbal

verificou-se em mulheres bilateralidade (Levy e Reid 1978) e em homens uma pronunciada vantagem

da orelha direita (REA18) para estímulos formados por consoantes e vogais (Lake e Bryden, 1976),

mediante o que se chegou a afirmar que os homens são mais lateralizados do que as mulheres (que

apresentaram igual desempenho de orelhas para a percepção de vogais e consoantes). Vários outros

estudos, porém, não revelaram nenhuma diferença entre os sexos, tornando controvertida a afirmativa

de que haja diferença sexual na percepção de estímulos verbais (Briggs e Nebes, 1976; Carr, 1969,

McKeever e Van Deventer, 1977) e apenas poucos (Bryden, 1965; Dorman e Porer, 1975) encontraram

significativa lateralização para estímulos verbais nas mulheres em relação aos homens. A controvérsia

aumenta quando se trata da discriminação de estímulos não-verbais (melodias e sons não lingüísticos),

não havendo indicação de assimetria para os homens, mas sendo sugerida uma forte lateralização para

a orelha esquerda (LEA19) associada às mulheres (Gorski, 1985 - Piazza, 1980). Todavia, não se pode

simplesmente afirmar que um sexo é mais lateralizado do que o outro. Antes seria mais próprio afirmar

que homens parecem mais lateralizados do que as mulheres em alguns aspectos e que da mesma forma

as mulheres em outros aspectos apresentam maior lateralização e, ainda em outros parece não haver

diferença entre os dois sexos (Gorski, 1985). Em meio a toda controvérsia, Bradshaw (1989) resume

seu capítulo sobre diferenças sexuais, relatando que é atribuído à mulher, além de uma certa ligação

com “sinistralidade, coisa canhestra”, diferenças sexuais quanto à linguagem, concepção espacial e

habilidades cognitivas sendo causa para a assimetria existente a injeção de hormônios sexuais no

18 Right ear advantage 19 Left ear advantage

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cérebro e no corpo em geral. A assimetria entre os sexos pode existir, mas que não se conseguiu ainda

definir com precisão a magnitude desta assimetria, até porque há flutuação de um experimento para

outro, inclusive por variação metodológica na apuração dos resultados (Iaccino, 1993).

O estudo de Kimura (1967) indicou predominância da orelha esquerda/HD (ou LEA) para a

audição de melodias. Outros autores, porém, não encontraram nenhuma assimetria ou encontraram

predominância da orelha direita/HE (ou REA). Zatorre (1984, 1989) a partir de estudos com pacientes

com deficiências cerebrais, formulou hipóteses de que algumas deficiências na percepção de melodias

conhecidas ou desconhecidas poderiam estar afetas a lesões tanto no hemisfério direito como no

esquerdo, do que concluiu que o fato de uma determinada melodia não ter texto, ser conhecida ou

desconhecida, não descarta a contribuição potencial do hemisfério esquerdo para sua percepção,

caindo por terra a idéia de que toda melodia conhecida ou sem texto, seja captada apenas pelo

hemisfério direito (Taylor, 1932; Kimura, 1967). Outro grande número de estudos citados por Marin e

Perry, (1999), demonstraram déficits seletivos no HD para a percepção de pequenas melodias não

familiares, o que demonstraria, que além do HE, existe a participação do HD na percepção deste tipo

de melodias. Zatorre e Halpern (1993) em estudos com sujeitos normais e afetados, sugeriram que

pacientes com lobectomia saiam-se mal, tanto em tarefas de reconhecimento de altura do som como na

tarefa de imaginar a melodia de uma letra proposta, sugerindo que a imaginação e a percepção musical

podem compartilhar um substrato neural comum e que este substrato poderia estar afeto ao hemisfério

direito. Peretz, (1990) a partir de estudos com grupos de pacientes que tiveram afetados ou o HD ou o

HE, formulou a hipótese de que haja uma condição hierárquica para ambos os hemisférios, sendo o HD

responsável pela percepção do contorno melódico, enquanto que o HE se responsabilizaria pela

percepção dos intervalos, ou seja, da altura que compunha os intervalos da melodia.

A discussão sobre a preferência hemisferial nos processos perceptivos sugerem associação

entre déficits e regiões corticais, não só comprometidas com a audição e funções cognitivas mas

também com a diversificação de outros procedimentos, por exemplo, de classificação, de análise e de

síntese, de concepções holísticas etc. (Bever e Chiarello, 1974), associando-os não só à lateralidade

auditiva, mas também a outras funções como a visão e a memória. Quase todos estes estudos atestam a

participação de ambos os hemisférios na percepção e desempenhos musicais. Mas ainda é

controvertida a participação de cada um deles isoladamente no processamento da percepção, da criação

e do desempenho musicais.

As controvérsias, no entanto, não só não impediram, mas até reforçaram a concepção da

existência de assimetria hemisférica auditiva para conteúdos musicais e, que pelo menos em parte, a

percepção de música poderia ser função das características do sujeito e dos estímulos musicais

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avaliados20. Hoje, tem-se como mais aceito que os procedimentos que envolvem análise, reflexão e

velocidade de resposta são desempenhados pela orelha direita/HE, enquanto que outros que envolvem

percepção de estruturas, contornos, forma, são função da orelha esquerda/HD. Ações analíticas na

percepção de música, e, portanto, desempenhadas pelo hemisfério esquerdo, seriam, por exemplo,

raciocinar sobre regras que estão sendo aplicadas à música, “pensar” sobre intervalos usados,

estabelecer comparação entre dois modelos, a exemplo de duas melodias, ou duas seqüências

harmônicas. Marin e Perry (1999) resumem o assunto com o texto seguinte:

“In general, it appears that “analytic” or single-note attending strategies result in a rightward

shift in ear asymmetry (Peretz & Morais, 1980; Peretz Morais, & Bertelson, 1987) or in frank REA

(Gaede, Parsons, & Bertera, 1978; Minagawa, Nakagawa, & Kashu, 1987, Peretz, 1987, Peretz &

Morais, 1983, 1987), at least for some subjects, and for task conditions that seem to most

unequivocally induce single-position attending, for exemple, diclosure of single-position-altered

melody construction rules (Peretz et al., 1987) or speeded response (Peretz & Morais, 1987)21.

6. O Aprendizado a partir das Perturbações Auditivas para a Música e para a

Linguagem.

Do reconhecimento de que os resultados de estudos a respeito da assimetria hemisférica, com a

linguagem são mais convincentes do que os com a música, tornou-se comum o estudo neurológico das

funções musicais pareado com os da linguagem. Assim, paralelamente aos estudos das afasias, estão os

das amusias, ou seja, das desordens que afetam os desempenhos musicais. Da mesma forma, às

agnosias e às apraxias de linguagem, estão pareados os estudos dos distúrbios paralelos às funções

musicais.

20 É aceito que podem mudar o tipo de percepção características dos estímulos como: a) a natureza da tarefa que está sendo desempenhada, se verbal ou não verbal; b) a dimensão da tarefa: limites, perfeição e preferência; c) a maneira como é apresentado o estímulo; d) o conhecimento da orientação do estímulo, se para qualquer ouvido isolado ou se para ambos; e) as características do sujeito que vai ouvir: se canhoto ou destro, sexo, prática, profissão, prontidão para ouvir, se tem estudo especializado do assunto etc. 21 Em geral, parece que estratégias que enfocam “análise” ou atenção para nota isolada, resultam em mudança para a direita na assimetria auditiva (Peretz & Morais, 1980; Peretz, Morais & Bertelson, 1987) ou em declarada REA (Geade, Parsons & Bartera, 1978; Minagawa, Nakagawa & Kashu, 1987; Peretz, 1987) Peretz & Morais, 1983, 1987), pelo menos, para alguns sujeitos e para condições de tarefas que pareçam inequivocamente assumir postura que induzam a focalizar uma posição específica, como por exemplo, a detecção de regras de construção de simples posições alteradas em uma melodia (Peretz et al., 1987) ou velocidade de resposta (Peretz e Morais, 1987). (Trad. J..Z. O.)

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Grande parte das conclusões a que se tem chegado sobre a assimetria hemisférica na percepção,

produção de música e outros eventos têm sido conseguidas através de estudos com pacientes com

afetações em algum ou em ambos os hemisférios cerebrais22.

Uma esperança de pesquisadores nos estudos da lateralidade auditiva, seria a de que de estudos

com pacientes nos quais um dos hemisférios estivesse “desativado” fosse possivel a avaliação das

respostas apenas do outro hemisfério, chegando-se a conclusões precisas a respeito do desempenho de

cada hemisfério separadamente. Se evidenciasse, por exemplo, qual o papel de cada hemisfério em

tarefas musicais como a percepção de timbre, intensidade, altura etc. Infelizmente tais expectativas não

têm sido correspondidas e somente em parte pode-se comemorar resultados inequívocos destes

estudos. Mas se os resultados destes estudos, sobretudo em mapear no cérebro o locus de determinadas

funções musicais deixam desejar, um resultado pode ser comemorado, o do entendimento da

conveniência da realização de estudos da psicologia da música em paralelo com os estudos da

linguagem, sobretudo no que se refere às deficiências, as síndromes.

A) Síndromes da linguagem falada e escrita (Afasias) e síndromes da linguagem musical

(Amusias)

Algumas anomalias em música manifestam-se de forma sutil e especificamente para algum

aspecto da música. Exemplos: alguém não consegue perceber e ou executar o ritmo da música, o

sujeito “atravessa” o compasso, contraria o ritmo. Ou não consegue perceber que a afinação de um

instrumento ou de um cantor ao executar uma música, não está correta e ele não percebe que não

percebe. Não consegue articular um texto quando canta. Ou ainda, a expressão musical de uma

execução é fraca ou inexistente e a música se torna sem expressão, plana. Estes e outros

comportamentos podem ser sintomas de anomalias na percepção e ou no desempenho musicais e

podem ter explicação em anomalias ou síndromes musicais, afetações cerebrais, que têm recebido o

nome de amusias23, um paralelo das afasias.

22 Destes estudos tem-se aprendido muito para o funcionamento da audição em pessoas normais, tanto para a linguagem como para a música, o que justifica a inclusão deste capítulo na Introdução deste trabalho e o que se faz seguindo de perto o trabalho de Marin e Perry (1999), que apresentam também uma significativa referência bibliográfica a respeito deste assunto.. 23 - Estudos clássicos sobre amusia foram feitos por vários autores e publicados em vários idiomas. Só para ilustrar e, provavelmente, servir como referência bibliográfica especializada a quem necessitar, em inglês: Benton (1977), Sergent (1993) e Wertheimer (1963, 1969, 1977); em francês: Barbizet (1972), Dorgueille (1966), Grison (1972), Samson e Zatorre (1994) e em alemão: Edgren (1895), Freuchtwanger (1930), Jellinek (1933, 1956), Henschen (1920, 1926), Ustvedt (1937) e Walthard (1927) entre outros.

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A música efetua-se no ser humano sob dois aspectos: a) um receptivo ou sensitivo, que se

concretiza pela percepção; b) outro sob a forma de desempenho ou comportamentos musicais,

chamado de performance musical, (por exemplo, compor, tocar um instrumento, cantar, solfejar, ler

uma partitura de música etc.). Cada um destes aspectos pode ser afetado pelas amusias. Segundo Marin

e Perry (1999), amusia é um termo genérico para designar desordens clínicas da percepção ou do

desempenho musicais de alguém (leitura, escrita, vocalização, execução de um instrumento,

composição etc). Podem estar atreladas a funções perceptivas ou ao sistema simbólico da leitura e da

escrita ou terem raízes em conhecimentos previamente adquiridos, ou ainda estar relacionadas com

atividades motoras ou de maior complexidade como o ato de cantar, tamborilar um ritmo etc. A

topografia cerebral de tais disfunções (síndromes),varia de indivíduo para indivíduo, aumentando com

isto a dificuldade de um diagnóstico preciso para a existência de uma relação direta destas disfunções

musicais com alguma disfunção cerebral e em que nível. É preciso ter em mente, no entanto, que se a

desordem tiver origem em disfunções básicas da percepção ou da motricidade ou for de ordem

cognitiva, ou ainda, se tiver origem em instâncias periféricas da audição do sujeito (sobretudo na

orelha interna e vias auditivas ascendentes ou descendentes, mas fora do cérebro), não é considerada

amusia. As mesmas desabilidades, às vezes, também são observadas em casos de demência, doença de

Alzheimer, psicoses e retardo mental e nestes casos também não são tratados como amusias (Marin e

Perry, 1999).

Contestadas por uns, aceitas por outros, as amusias têm sido estudadas ao longo da história da

psiquiatria e neurologia, intensificando-se o interesse por seus estudos nos últimos 15 anos. Segundo

Marin e Perry (1999), são 5 as vertentes em que se concentram os estudos sobre este assunto24

O objetivo básico do estudo das amusias é estabelecer a localização topográfica cerebral, onde

estas síndromes se originam e se desenvolvem, geralmente com fins terapêuticos. Apesar deste esforço

não se pode comemorar a descoberta de “receitas definitivas” para corrigi-las, nem sequer determinar

com precisão um mapa cerebral da localização exata de cada amusia. A complexidade do sistema

auditivo e dos mecanismos cerebrais no processo auditivo, acrescida à individualidade de como cada

24 - a) estudos nosológicos tentando sub-classificações das amusias em síndromes clínicas que estão mais diretamente relacionadas com deteriorações dos mecanismos básicos das funções musicais (Dorgueille. 1966; Henschen, 1920; Kleist, 1934; Lechevalier, Eustache e Rossa, 1985; Werthaeim, 1963, 1969 – citações de Marin e Perry, 1999); b) tentativas de relacionar distúrbios da fala e da linguagem (afasias) com os da música (amusias), comparando as síndromes nos dois campos, documentando a coexistência ou separação destas síndromes em pacientes, e correlacionando os achados anatômicos de ambas as desordens; c) tentativa de definir a relação entre distúrbios do reconhecimento auditivo (agnosia auditiva) e o reconhecimento musical (agnosia musical) pelo contraste das síndromes clínicas documentando a coexistência ou não das diferentes síndromes e correlacionando os achados (Peretz, 1993, Peretz et al. 1994; Peretz e Morais, 1993); d) Desenvolvimento dos métodos de avaliação do material mórbido e conhecimento de música dos pacientes para obter uma linha básica de avaliação dos deficits (Grison, 1972); e) desenvolvimento e sistematização dos métodos de investigação clínica das desordens musicais (Marin e Perry, 1999).

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sistema cerebral se comporta em cada indivíduo, dificultam sobremaneira a generalização das

conclusões. Mas, se as conclusões tidas como verdadeiras não são, em quantidade e qualidade, o

desejado, ainda assim, podem ajudar aos músicos, maestros e professores a compreender determinados

desvios musicais individualmente ou em grupo, em si ou nos outros, possibilitando desta forma, fazer

correções e pelo menos, até certo ponto, modificar a mentalidade de “seleção natural” para a classe

musical.

Para prosseguir, admite-se sem discutir, que existe uma similaridade entre linguagem falada e

escrita e linguagem musical, tal que permite o estudo paralelo destes dois campos. Segundo Marin e

Perry (1999), estes estudos têm relatado como pareadas as seguintes anomalias: a) desabilidades

musicais que sejam predominantemente receptivas (amusias receptivas ou sensoriais) são comparadas

com as afasias sensoriais de Wernicke; b) desordens que são predominantemente expressas em termos

de inabilidade para vocalizar ou cantar (avocalias) seriam semelhantes à afasia de Broca; c) desordens

de escrita musical, seriam semelhantes às agrafias; d) desordens de leitura musical, seriam semelhantes

às alexias; e) inabilidade de cantar uma melodia com texto, seria um paralelo da anomia na linguagem

comum; f) dificuldade em tocar um instrumento (sem que isto tenha como causa alguma paralisia ou

outra razão externa), seria comparável às apraxias de forma geral. A associação clínica entre afasia e

amusia tem implicações fundamentais, por exemplo, para a localização anatômica das funções

musicais, mas sempre admitindo que a parcialidade ou inconsistência desta associação, permite afirmar

que música e linguagem falada ou escrita poderiam compartilhar apenas alguns processos e em outros

seriam totalmente independentes. O que equivale a dizer que esta similaridade não implicaria em que

as funções da linguagem falada ou escrita e as da música compartilhassem necessariamente o mesmo

substrato anatômico psicológico comum. Os loci e suas configurações no sistema nervoso central para

a fala e para a música poderiam ser operadores especializados de grande eficiência, mas independentes

(Marin, Schwartz, e Saffran, 1979). Mais informações sobre este discutível paralelismo encontra-se em

Marin e Perry (1999) e o que segue é apenas uma síntese do que relatam estes autores25.

1. Amusia com afasia

Foi Feuchwanger (1930 - citado por Marin e Perry (1999) um dos pioneiros a observar que

vários tipos de afasia ocorriam juntamente com casos de amusia e com base em suas observações,

25 Acha-se necessário a inclusão deste resumo, como divulgação de conhecimentos sobre um assunto pouco conhecido ao meio musical brasileiro.

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sugeriu que os substratos neurológicos da música e da linguagem poderiam estar intimamente ligados.

Estudos posteriores confirmaram que podem, mas nem sempre isto se verifica e o número de casos que

contrariam esta posição é crescente, mesmo tendo-se em vista a dificuldade em avaliar com exatidão,

na literatura, a freqüência em que ocorrem afasia e amusia simultâneas, uma vez que a maioria dos

casos clínicos publicados é examinada apenas sob um dos pontos de vista, ou afasia ou amusia. Outro

dado da literatura é que, em casos de avaliação simultânea, os casos de amusia com afasia são

examinados com maior freqüência do que casos de afasia com amusia, provavelmente um sintoma de

que os que estudam o assunto sob o ponto de vista da música sintam a necessidade de buscar um

referencial mais consistente, como é o caso do estudo da linguagem, não sendo a vice-versa

verdadeira26. A partir dos estudos apresentados por Marin e Perry (1999) talvez se possa afirmar que

amusia está atrelada a afasia, sem afirmar nada, no entanto, quanto ao compartilhamento ou não dos

substratos neurológicos que os efetiva funcionalmente. O fato de perturbações da percepção musical

(p. ex. amusia receptiva ou sensorial) estarem associadas com deficiências similares da percepção da

linguagem, não quer dizer que as duas deficiências estejam sempre conjugadas. Podem, ao contrário,

ocorrer muitas vezes dissociadas como no caso descrito por Wertheim e Botez (1961) em que um

violinista, profissional de 40 anos, depois de sofrer uma súbita hemi-paralisia do lado direito, foi

afetado por uma afasia mista, mas predominantemente receptiva (supostamente proveniente de seu

problema no HE) e manifestou também algumas dificuldade em praticar música (por exemplo: o

paciente, que anteriormente tinha “ouvido absoluto”27, não o tinha mais após o ocorrido, geralmente

transpondo os sons uma 4ª perfeita acima. As observações de Wertheim e Botez (1961) sobre seu

paciente ilustram bem a complexidade dos processos neurais relacionados com a percepção e

desempenho musicais: a) o paciente mantinha a discriminação dos sons, conseguia identificar os

intervalos, inclusive intervalos menores do que ½ tom; mas não os conseguia reproduzir corretamente

cantando ou tocando; b) conseguia reconhecer melodias e acordes e identificar erros de execução,

quando introduzidos em uma melodia familiar, inclusive erros em modulações tonais; mas não

conseguia nomear os intervalos uma vez dentro de contextos melódicos ou harmônicos; c) reconhecia e

26 Mesmo assim, Dorgeuille (1966), citado por Marin e Perry (1999), em um estudo em que observou 26 pacientes, encontrou 11 casos de amusia com afasia e só 2 exemplos de amusia isolada. Marin e Perry (1999) conseguiram coletar 87 casos de amusia, com descrição clínica minuciosa. Deles: 33 apresentaram afasia com amusia; 19 apresentaram amusia sem afasia; 4 casos de amusia auditiva; 5 casos de amusia associada com surdez verbal, com pouca ou ausência de sinais de agnosia não verbal auditiva; e apenas 1 ou 2 casos de agnosia auditiva não verbal com possível distúrbio da percepção musical, mas sem surdez verbal ou afasia (Marin e Perry (1999). 27 Capacidade inata ou adquirida de reconhecer, ao ouvir, os sons de acordo com suas freqüências, denominando-os, se tiver conhecimentos teóricos para isto. No entanto, não ficou claro de que ouvido absoluto se tratava, pois é comum aceitar-se dois tipos de ouvido absoluto: um “natural” (o indivíduo parece tê-lo espontaneamente, sem qualquer esforço para isto. Trata-se de uma habilidade natural) e outro “desenvolvido” (o indivíduo o adquire com a prática e o estudo musicais). O

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identificava, em obras de compositores, temas musicais bem conhecidos e os reproduzia corretamente,

se a melodia era cantada por ele; mas reproduzia de forma incorreta, se as tocava ao piano (suposto

que ele que era violinista, tocava também piano); d) a lembrança de melodias familiares cantadas ou

tocadas era muitas vezes perfeita, mas se tentava entoá-las, eram freqüentes os erros; e) não conseguia

repetir uma melodia pouco familiar; mas conseguia escrevê-la com notas musicais, realizando esta

tarefa melhor do que cantar, mesmo assim com erros freqüentes; f) só com dificuldade conseguia

identificar o compasso e o ritmo da música e sua reprodução motora ou por escrito, ficava

comprometida. g) não conseguia ler corretamente música, mas conseguia dar nome às notas

isoladamente na clave de sol28; i) conseguia ler os símbolos musicais, mas falhava na atribuição de

seus significados, o que se percebia através do desempenho que o paciente exibia, cometendo erros

quanto à percepção e à execução do que estava escrito, dos sons e do ritmo, das melodias e dos

acordes.

A reflexão sobre as observações de Wertheim e Botez (1961) leva a várias hipóteses, por

exemplo, tarefas que envolviam discriminações perceptivas simples (e.g. detectar erros em melodias),

eram melhor desempenhados do que tarefas de maior complexidade (e.g. as de identificação ou

nomeação dos sons ou dos intervalos e os autores afirmam que a desordem afásica residual deste

paciente, era, predominantemente, dificuldade léxica, uma forma de anomia tanto para a linguagem

com para a música). Existiam no paciente outras deficiências que apontavam para o comprometimento

de um nível mais elevado das funções lingüísticas receptivas (e.g. discurso complexo) e musicais (e.g.

melodias não familiares), deixando, no entanto perceptível que alguns níveis mais baixos estavam

relativamente intactos. É verdade que cada caso é um caso, e a individualidade com que se comporta o

sistema nervoso de cada indivíduo, impõe limitações às conclusões, mas neste caso sugerem, que em

alguns níveis, pode haver o compartilhamento de substratos neurológicos. A observação de que o

paciente conseguia dizer o nome do compositor e o título de músicas familiares quando estas músicas

eram cantadas, mas não o conseguia quando elas eram tocadas ao piano, sugerem uma interação entre a

audição sensorial e níveis léxico simbólicos.

No entanto, nem todas as disfunções musicais podem ser classificadas como amusias. Existem

casos em que os sintomas são semelhantes, mas são provocados por outras causas, a exemplo de

dementia. Beatly et al. (1988) relata um caso que ilustra esta ocorrência. Uma musicóloga e pianista

que, afetada pela doença de Alzheimer, desenvolveu um severo quadro de anomia e afasia receptiva,

mas continuava tocando peças ao piano, lendo músicas novas à primeira vista, inclusive ao xilofone,

primeiro, uma espécie de reconhecimento de espectro, poderia ser uma habilidade do HD. O segundo uma habilidade do HE, portanto adquirida com treino, reflexão, comparação, análise.

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um instrumento que lhe era pouco familiar antes da doença. Crystal, Grober e Masur (1989) descrevem

outro caso de demência progressiva que ilustra dissociação das funções léxicas da música e da

linguagem, criando-se duas formas de anomia Um musicólogo e editor de música que costumava tocar

para seus familiares peças de autores clássicos, mas acometido por doença (Alzheimer), cinco anos

depois, tinha problemas de memória e era incapaz de dizer o nome dos compositores ou o nome das

obras, inclusive das muito conhecidas, como a Quinta Sinfonia de Beethoven. No entanto, após ouvir

alguns compassos, era capaz de continuar tocando a obra sem ter, no entanto, consciência do nome de

seu autor e da obra. Este paciente ainda conseguia lembrar o nome dos objetos comuns e só dois anos

depois é que perdeu também esta faculdade.

Um dos casos mais citados de disfunções musicais acarretadas por doenças cerebrais é o do

compositor Ravel geralmente conhecido por obras famosas como Daphnis et Chloé (1909), La Valse

(1920) e a mais famosa, o Bolero (1928), uma composição sobre um ostinato rítmico que alguns de

seus biógrafos associaram ao seu desespero frente à doença que o acometia, pois era o ano em que

Ravel começou a dar sinais de uma estranha amnésia, que se agravou após um acidente de automóvel

em 1932, no qual ele bateu a cabeça29. Qual teria sido o problema de Ravel foi objeto de especulação

por especialistas, alguns achando que Ravel poderia ter sofrido de demência tipo Alzheimer (Daléssio,

1984) e de fato, na literatura foram encontrados casos de Alzheimer com sintomas iguais ao de Ravel,

onde a anomia musical e léxica eram sintomas predominantes, acrescidos de dislexia e disgrafia

musical e léxica, mas com relativa preservação das habilidades auditivas e perceptivas musicais.

Poderia corroborar também com a hipótese de que Ravel teria sofrido da doença de Alzheimer os

quadros de dislexia e disgrafia, que seriam consistentes com os casos relatados por Beatty et al. (1988)

e Crystal et al (1989) que exibiam uma forma de anomia musical e verbal. Mas admitindo esta

hipótese, o caso deste grande músico e pianista, não poderia ser tratado como amusia, e sim como uma

28 A clave de sol é a clave do violino, seu instrumento principal. 29 O caso de Ravel foi acompanhado por um neurologista, Alajuanine, por vários anos. O diagnóstico de Alajuanine foi que Ravel estava sofrendo de uma atrofia cerebral (não claramente definida!) que se caracterizava pela dilatação dos ventrículos cerebrais. Na realidade sua doença até hoje não ficou claramente diagnosticada. Sua última composição ele a completou aos 56 anos e daí pra frente suas funções mentais começaram a declinar sempre mais, acarretando vários tipos de amusias, associadas a afasias, sendo as principais: disnomia (ele não conseguia mais dizer com precisão o nome de músicas muito conhecidas), disgrafia (não conseguia mais escrever música), anomia (não conseguia dizer o nome das notas musicais ou solfejar com o nome das notas), alexia (não conseguia fazer leitura à primeira vista ao piano) (Daléssio, 1984). Mas várias de suas habilidades musicais estavam preservadas. Por exemplo, conseguia reconhecer imediatamente se alguém, tocando alguma de suas composições, cometia erros; conseguia também cantar notas que tocavam para ele ao piano; conseguia tocar bem escalas e músicas suas “de cor”, mas só enquanto perdurava o automatismo da execução; quando precisava “pensar” ou recorrer à leitura da partitura, começavam a ocorrer erros. Se alguém lhe dava uma deixa, conseguia cantar algumas frases, sobretudo de obras suas e afirmava que podia lembrar as melodias cantando-as mentalmente. Resumindo: Ravel perdeu a capacidade de falar (afasia) e a capacidade de exprimir sua criatividade musical (vários tipos de amusias). Perdeu a relação que o pensamento mantém entre um objeto e o seu signo verbal. Perdeu a relação entre um som e uma nota (o nome do som) e sua representação gráfica. Não sabia mais escrever a música que ainda pensava, conforme ele mesmo afirmou em plena doença: “.. e eu ainda tenho tanta música na cabeça” (Mecacci, 1987).

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doença irreversível, que, inclusive, o teria levado à morte, em 1937, após uma cirurgia no cérebro, sem

descobrir a causa definitiva de sua doença.

Outro tema relacionado com o processamento neural particularmente importante para a

percepção e desempenho musicais é o dos comportamentos automático e intencional, o primeiro

efetuando-se no desempenho de tarefas familiares, e o segundo em tarefas novas. Exemplos desta

dissociação vêem-se na realização de alguns atos motores ou no ato de cantar melodias conhecidas e

novas. Esta dissociação entre comportamentos automático e o intencional pode ser observada em

praticamente todas as funções das capacidades de desempenho humano: fala, linguagem, movimento,

canto ou a execução de um instrumento.

A hipótese de que em especiais circunstâncias o automatismo (aprendizado automático) de

tarefas cognitivas, possa escapar à complexidade de sua função original e ocorrer com relativa

independência, provoca uma outra questão quanto à especialização evolucionária do substrato neural.

Um exemplo desta afirmação é a fala que mesmo sendo uma função aprendida, tanto em seu aspecto

receptivo como de desempenho, há evidência de que na vida adulta sua conjugação fonológica e

articulatória pode funcionar com incrível precisão isoladamente do resto da organização cognitiva

lingüística. Dois desvios tomados da patologia ilustram esta possível independência: a ecolalia30, (os

pacientes com ecolalia não dão nenhuma demonstração de que estejam estendendo o que falam, e de

fato, a desconexão semântico-linguística parece ser, pelo menos parcialmente, responsável pela

independência fonológica e articulatória automática) e a ecopraxia, outro fenômeno menos freqüente,

mas semelhante, que consiste na repetição contínua dos gestos ou movimentos feitos por outras

pessoas, o que é feito também de forma automática e inconsciente.

Tanto para a música como para a linguagem, o automatismo é de importância fundamental e pode

explicar a simplificação de tarefas complexas. Um exemplo disto pode ser observado no desempenho

de um instrumentistas ao tocar seu instrumento, na execução de uma peça que já foi estudada e

decorada, ou na improvisação que ele realiza, onde tudo funciona de maneira “automática”: a mão vai

no lugar certo, na tecla certa, com o peso certo, com o dedo certo; o movimento do braço e do corpo se

conjugam e não saem do ritmo e o músico parece não se dar conta disto, mesmo da técnica aprendida

anteriormente com esforço consciente. O sucesso depende, em grande parte, da habilidade de criar

programas neurológicos centrais de grande complexidade baseados na flexibilidade tato-motórica, de

comportamentos que demandem o mínimo de controle cognitivo superior, onde o sistema motor possa

desempenhar-se com quase total independência, permitindo à mente do músico ocupar-se com um

30 - uma síndrome que se caracteriza pela ação automática de alguém repetir com insistência fielmente uma palavra ouvida (Geswind, Quadfasel, e Segarra, 1965)

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nível mais alto, por exemplo: com o controle estético do que está tocando. Sudnow (1978) discutindo

sua experiência em ensinar improviso de jazz escreveu:

“My hands have come to develop an intimate knowledge of the piano keyboard, ways of

exploratory engagement with routing through its spaces, modalities of reaching and

articulation, and now I choose to go in the course of moving from place to place as a handful

choosing”31:

Sergent, Zuck, Terriah, e MacDonald (1992) usando PET32 verificaram a localização cortical

onde se verificam determinadas tarefas, através da observação das mudanças na corrente sangüínea

cerebral (CBF33), em 10 pianistas, destros, executando ao teclado escalas (tarefa exaustivamente

exercitada pelos pianistas) e lendo partituras à primeira vista (a parte do Soprano do Coral de Bach,

BWV 717 e a parte do Soprano da 4ª variação da Partita BWV 767, também de Bach,). Neste

experimento evidenciou-se, através do contraste da corrente sangüínea nos substratos neurais, a

diferença entre o desempenho automático (tocar escalas) e o desempenho intencional (em atividades

novas). Resumidamente: observaram que o substrato neural de nível baixo (córtex motor primário

esquerdo e pré-motor medial) era ativado para atividades manuais motoras, em tarefas conhecidas,

como tocar escalas e que o substrato neural de nível mais alto (giro frontal inferior esquerdo, logo

acima da área da fala de Broca) eram as regiões corticais envolvidas em controle motor de nível alto

mais como a demandada pela geração de programas motores novos, tais como leitura à primeira vista

de músicas desconhecidas. Os autores observaram uma ativação parietal superior que interpretaram

como possivelmente relacionada com as transformações sensório-motoras inerentes à tradução

(decodificação) da notação musical para a informação espacial que guia a mão no espaço do teclado.

Eles sugerem que as ativações pré-motoras laterais e frontais inferiores possam estar relacionadas com

a organização das seqüências motoras para o desempenho ao tocar teclado, semelhantemente à

seqüência motora para a fala.

É freqüente na literatura a associação em que alexia verbal e musical andam juntas. Isto porém

nem sempre acorre. Alguns casos da literatura (citados por Marin e Perry (1999) ilustram este assunto).

Uma consideração especial merece o processo da leitura musical, uma função cognitiva, que

não pode ser considerada simples ou mesmo comparável à leitura verbal. Ler música implica, não só na

habilidade de reconhecer a natureza léxica e simbólica de desenhos gráficos específicos, mas também

31 Minhas mãos parecem estabelecer uma relação íntima com o teclado do piano, criando vias de engajamento exploratório, caminhando através de seus espaços, formas de alcance e de articulação, e então eu escolho prosseguir ao sabor dos movimentos, de um lugar para outro, como uma escolha eficaz.. (Trad. J.Z.O) 32 - positron emission tomography 33 - cerebral blood flow

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na habilidade de conferir a cada um destes desenhos o significado de um referencial, ou seja, o

domínio dos níveis simbólico e semântico. Uma deficiência neste campo nem sempre corresponde à

alteração de um simples mecanismo ou está afeta a uma lesão topográfica bem definida. E mais: um

estudo sobre a leitura de música exige que se considere outros processos envolvidos na percepção dos

elementos léxicos da música, para os quais deficiências de percepção (e.g. agnosias visuais) podem

transformar-se em causas críticas de alexia musical. Um exemplo desta situação é o descrito por Bellet

(1888, citado por Dorgueille, 1966) em que um paciente conseguia ver as notas, mas era incapaz de

decifrá-las; não podia mais compreender seu significado.

Na consideração sobre leitura de música, tem-se que dar conta de que a escrita musical está

disposta em espaço bidimensional (para a representação da altura) e bissimétrico (para representação

do movimento, geralmente rítmico). A leitura musical é um processo que está conectado não só ao

reconhecimento perceptual dos elementos da notação musical individualmente, (notas, pausas,

indicações de andamento e expressão), mas também aos problemas espaciais de sua discriminação em

termos de sua posição na pauta (espaço bidimensional) e na proporcionalidade espacial dos valores

(espaço bissimétrico representando o ritmo). Consequentemente, ler música poderia até ser mais

simples do que a leitura verbal, em termos dos itens léxico-semânticos representados na semiografia

musical, se não fosse a complexidade de sua organização viso-espacial. Esta peculiaridade que

caracteriza a leitura de música quanto aos aspectos do referencial simbólico da percepção, pode ter

implicações neurológicas importantes para a variedade de alexias musicais e afetações correlatas

anatomo-clínicas. Fasanaro et al. (1990) descreve um caso resultante de uma lesão isquêmica na região

occipito-parieto-temporal esquerda, na qual a leitura de notas, da mesma forma que a leitura de texto,

ficou severamente prejudicada, mas, curiosamente, a leitura de ritmo, que implica na leitura de

símbolos ideográficos, permaneceu fluente. Dorgueille (1966, caso 16) descreve outro caso, o de uma

paciente em condições semelhantes, na qual o que ocorreu foi exatamente o oposto: a leitura das notas

permaneceu e a do ritmo é que ficou prejudicada. A consideração sob o ponto de vista

neuropsicológico, psicológico e anatômico permite concluir que a leitura de música depende não só de

um único substrato anatômico, mas de vários componentes totalmente conjugados com aqueles da

leitura verbal. Grande papel para a leitura de música poderia ter o córtex parietal do hemisfério direito

(Sergent at ali., 1992), tido como muito importante para as funções viso-espaciais, o que

provavelmente não ocorreria para a leitura verbal. Mas há casos de alexia musical e verbal em

pacientes com lesões unilaterais do hemisfério esquerdo (e.g. Fasanaro et al 1990) o que indicaria a

importância da atuação também do hemisfério esquerdo na leitura de música. E voltando ao caso de

Ravel, Sergent (1993) sugere que sua alexia musical e lingüística, incluindo sua agrafia, poderiam ter

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sido conseqüência de um foco degenerativo unilateral que afetou seu hemisfério esquerdo. Mas, não

se pode esquecer que da mesma forma que há muitos tipos de dislexia resultante de disfunções de

diferentes aspectos do complexo e multidimensional processo de leitura (McCarthry’s e Warrington,

1990), também é prudente ficar atento para os vários tipos de alexia musical.

É comum encontrarem-se casos de pacientes com afasia severa que são capazes de cantar com

entoação e ritmo normais, mas sem texto. Marin e Perry (1999) citam o caso de uma paciente com

afasia de Broca, uma mulher que, a despeito de sua severa anomalia expressiva, era capaz de cantar

numerosos temas do repertório sinfônico clássico e canções, mas sem texto. Yamadori, Osumi,

Masuhara e Okubo (1977) examinaram a habilidade de cantar de 24 pacientes destros, com afasia de

Broca, cantando canções bem conhecidas. Dentre eles, 21 eram capazes de cantar pelo menos

razoavelmente, doze cantaram corretamente e com texto. Observaram também que dos 30 pacientes

com afasia de Broca relatados por Edgren (1895) e de alguma forma classificados como portadores de

sintomas de amusia, 23 mantiveram a habilidade de cantar, 7 apresentaram disfunções combinadas

tanto para a linguística como para vocalização musical.

Avocalias afetando tanto a fala com a música sugerem a possibilidade de um substrato neural

comum em nível baixo na hierarquia das funções vocais expressivas. Todavia, dissociações no

desempenho tanto de tarefas vocais verbais como melódicas, dão suporte para uma localização

contralateral do processo neural, crucial em nível superior (Barbizet, 1972).

2. Afasia sem amusia

Os casos citados e documentados (pelo menos 13) na literatura de músicos amadores ou

profissionais, que foram afetados por afasia, sem que isto lhes comprometesse as habilidades musicais,

contradizem a hipótese de que linguagem e música compartilham o mesmo substrato neural. Um deles

é citado por Lúria, Tsvetkova e Futer (1965) e também por Mecacci (1987): um paciente, conhecido

compositor e professor de música no Conservatório de Moscou que sofreu um acidente cérebro-

vascular que comprometeu as regiões temporais e tempero-parietais esquerdas, deixando-o com severa

afasia sensorial. Apesar desta afasia, ele foi capaz de concluir seus trabalhos de composição e fazer

novos, trabalhos estes considerados por outros profissionais de música como de excelente qualidade.

O caso citado Judd, Gardner e Geschwind (1983) atesta também que mesmo na presença de

deficiências afásicas (e.g. alexia verbal, sem agrafia) funções musicais podem ser preservadas, como

foi o caso do compositor e regente que sofreu um derrame na área occipito-parietal esquerda e mesmo

assim continuou suas atividades de ler e escrever música. Mais um exemplo desta dissociação e o

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citado por Signoret, Van Eeckhout, Poncet e Castaigne (1987): um organista profissional, cego desde

os 2 anos de idade; que sofreu um derrame da artéria cerebral média esquerda, afetando os lobos

parietal inferior e temporal. A seqüela foi uma afasia receptiva severa, com alexia verbal e agrafia em

braile. Suas funções musicais, no entanto não foram afetadas, não se verificando nenhuma evidência de

amusia. Mesmo depois do ocorrido, ainda conseguia tocar e ler à primeira vista e improvisar

fluentemente. Sua leitura e escrita musical em notação Braile permaneceram intactas e ele continuou a

compor e publicar seus trabalhos para órgão. Conclusão para este caso: leitura de linguagem e de

música podem ser dissociadas, não só em sua forma usual viso-espacial, mas também na modalidade

tato-espacial, no caso em Braille. Estes e outros casos de afasia sem amusia sugerem que são os

substratos neurológicos do HE, (o hemisfério da linguagem), os responsáveis por estas afasias, mas não

fornecem indicação de que sejam também responsáveis pelas funções musicais destes pacientes.

3. Amusia sem afasia

Os casos de amusia sem afasia clinicamente registrados (cerca de 20) permitem a hipótese da

independência dos processamentos neurais para a música e para a fala. Um número significante de

casos, sobre os quais há informação a respeito do lado da lesão, mostram comprometimento no

hemisfério direito, sobretudo afetando as regiões temporais. Os sintomas clínicos são diferentes, mas a

maioria deles está atrelada a deficiências na percepção, discriminação ou memória musicais (Marin e

Perry, 1999).

Dorgueille (1966), em sua série de 26 pacientes, encontrou apenas 2 casos de amusia sem afasia

claramente definidos, um com uma variedade de deficiências receptivas e outro, com uma deficiência

isolada para escrever música (agrafia). Dorgueille tentou também analisar as formas de sintomas de

amusicalidade, agrupando-as, sem levar em conta a presença ou não de afasia. Encontrou 8 casos de

alterações na memória para melodias; 4 casos de desordens na reprodução de ritmos; 7 casos de

deficiências de percepção musical, ocorrendo em várias combinações (percepção da direção do

movimento de dois sons, reconhecimento de instrumentos e reconhecimento de estímulos musicais).

Destes todos eram capazes de reconhecer melodias familiares. Não o sendo, porém, 6 casos de

distúrbios para cantar e 2 coincidentes com defeitos de percepção musical. Da classificação feita por

Dorgueille (1966), nenhum quadro nosológico pode ser bem definido e que pudesse ser interpretado

em termos de mecanismos básicos neuropsicológicos. Mas mesmo sem conclusão clara, a partir da

correlação entre deficiências clínicas e a anatomia mórbida, fica sugerido que o envolvimento dos

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lobos temporais de ambos os lados, inclusive as porções anteriores, é substrato anatômico proeminente

nestas síndromes.

Apesar de os casos bem definidos de amusia serem de particular interesse, a presença ou

ausência de afasia, parece não ter peso na análise específica dos déficits musicais. São estes déficits

musicais que devem ser isolados e analisados em termos de processos específicos e de suas funções

cognitivas. Experimentos feitos com pessoas que acidentalmente sofreram lesões, infelizmente, nem

sempre são apropriados a dar respostas a muitas das perguntas que podem ser formuladas a respeito

deste tema, porque tais lesões não respeitam os limites citoarquitetônicos definidos pelas regiões

cerebrais. Embora, a análise das desordens de linguagem seja similar para o mesmo problema, a

enorme variabilidade e individualidade dos talentos musicais e seu desenvolvimento e a relativa

escassez de casos bem estudados, fazem a pesquisa das correlações funcional e anatômico para funções

musicais muito mais difícil. Sua análise, exceto em casos raros, apenas sugerem esboços para o

desenvolvimento da pesquisa na busca de respostas neuroanatõmicas mais definidas. Música tem

muitos segredos.

B) Agnosias auditivas para a linguagem e para a música.

Uma agnosia auditiva profunda constitui um dos problemas mais graves da audição e seu

estudo traz informações importantes a respeito da complexidade e da forma, às vezes bizarra, como se

comporta o sistema auditivo. A agnosia manifesta-se pela impossibilidade de o sujeito reconhecer

algum estímulo, por exemplo, auditivo. O sujeito com agnosia auditiva não reconhece o que ouve. Se

não reconhece, não responde e, por conseguinte, não reproduz. Esta síndrome afetando diretamente o

reconhecimento do que percebe, inviabiliza a reação apropriada ao estímulo. Em tais casos é comum a

associação da anormalidade de reconhecimento da percepção da fala, de ruídos, de vozes de animais

etc. ao reconhecimento da percepção de sons musicais. O termo “agnosia auditiva”tem sido usado,

indiscriminadamente, para representar uma gama de distúrbios bem ampla, por exemplo, distúrbio da

percepção da fala, de sons não verbais etc. Marin e Perry (1999) o limitam, usando agnosias auditivas

generalizadas para todas as possíveis formas de síndromes decorrentes de agnosias, tanto

generalizadas como específicas, da fala, e de vários tipos de sons não verbais, e surdez verbal para

apenas os sons da fala.. Com relação à música, é mais comum encontrarem-se relatados de casos de

agnosia auditiva apenas para a percepção de habilidades musicais.

São muitos os autores que afirmam ser a síndrome da agnosia auditiva generalizada resultante

da lesão cortical bilateral do córtex temporal da área acústica primária de Heschl e outros campos

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vizinhos (vide Marin e Perry, 1999). Mas há casos de desorganização da percepção da fala (surdez

verbal ou agnosias para palavras) com preservação da discriminação normal não verbal, como

resultado, tanto da afetação unilateral como bilateral dos campos corticais acústicos e para-acústicos.

Schuster e Taterka (1926) relatam um caso de agnosia auditiva generalizada como conseqüência de

lesão unilateral do lobo temporal esquerdo. Mas como Auerbach et al. (1982) observaram, em alguns

casos de surdez verbal, alguns, presumivelmente, decorrente de uma lesão unilateral, tinham tido

anteriormente, sem que tivessem notado, uma lesão contralateral, geralmente do HD. Com a moderna

tecnologia da neuroimagem e eletroencefalografia, a veracidade da unilateralidade da lesão, em alguns

casos do passado, que, obviamente, não foram submetidos a um confiável exame “post mortem”, pode

ser questionada (Marin e Perry, 1999).

A rigor, pacientes com agnosias auditivas generalizadas não são surdos no sentido específico da

palavra, mas afetados por uma sensação contínua de mal-estar frente ao que ouvem, geralmente, sons

caóticos provindos do ambiente, ilusões acústicas auditivas e alucinações, ruídos insistentes e

lamuriosos; sons incompreensíveis e nunca ouvidos antes, que ressoam como ecos desagradáveis,

vibrando ou oscilando em intensidade a exemplo de um paciente que se queixava do desagradável

rangido de portas e sugeria que precisavam ser lubrificadas. Há pacientes que ouvem vozes humanas

ou até seus próprios pensamentos. Estes pacientes têm grande dificuldade de distinguir se os ruídos,

sons e vozes que ouvem, são reais ou ilusórios e, da mesma forma que outros pacientes que têm outras

desordens cognitivas, têm de tomar total consciência da existência de seus problemas de percepção

para evitar problemas maiores (i.e. um paciente com agnosia visual que insistia em dirigir o carro; ou o

outro, com agnosia auditiva já há vários anos, que insistia em telefonar e atender ao telefone, mesmo

repetindo sua frustração a cada vez que tentava, por não ser capaz de distinguir a voz dos interlocutores

dos ruídos produzidos pelo aparelho). Nestes casos o déficit essencial não parece ser o da percepção,

mas o da discriminação e organização de padrões desta percepção. Alguns pacientes desenvolvem

comportamentos bizarros como, por exemplo, certa tendência para falar alto e em um registro forçado,

mais agudo do que o normal. Um paciente desenvolveu juntamente como sua agnosia auditiva, uma

voz de falsete. Outro tinha pronúncias completamente incompreensíveis para expressões vocais,

consistindo, na maioria das vezes, em repetição de uma única sílaba (e.g. da–da–da) ou combinações

que de nenhuma maneira lembravam palavras ou frases típicas da linguagem. Este mesmo paciente era

incapaz de cantar ou imitar vozes de animais, ou repetir vocalmente ritmos com sílabas. Todavia, sua

comunicação por escrito era perfeita. É difícil certificar-se se há relação entre estas anormalidades de

produção fala e os padrões da audição; mas não se pode esquecer da importância dos padrões acústicos

para a produção, por exemplo, de cantos dos pássaros. (Marler, 1976, Nottebohm, 1975). Agnósticos

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auditivos, em geral não têm dificuldade em determinar quando um estímulo auditivo começa ou

termina, mas a têm na descriminação dos sons e suas características. Limites de discriminação de

intensidade são muito reduzidos. Muitas vezes ruídos ou sons ou não são ouvidos de nenhuma forma

ou são percebidos em um nível forte e desconfortável. Também têm, inabilidade para distinguir,

descrever ou reproduzir padrões rítmicos. A localização do som apresentado biauralmente, geralmente

fica abaixo da normalidade. Têm dificuldade de reconhecimento de sons complexos e de timbre34.

Outros tipos de agnosia se manifestam na forma de identificar a fonte do estímulo sonoro, por

exemplo, visualmente35 (o indivíduo ouve o som mas não consegue associá-lo à fonte que o produz)

ou verbalmente36 (o indivíduo não consegue falar o nome da fonte que produz o som) ou até

conceitualmente37 (o indivíduo não consegue identificar a fonte sonora que produz o som,

confundindo-a com fontes diferentes) . Na tarefa que envolvia ritmo, apesar de todo o esforço do

pesquisador em fornecer por escrito múltiplas instruções, a dificuldade como que o paciente agia

levantava dúvidas se o próprio conceito de ritmo ainda estava presente na sua mente.

Vignolo (1969) estudou os níveis de desorganização da percepção em casos de lesão tanto no

hemisfério direito como no esquerdo. Obteve como resultado que, pacientes com lesões no HE

desempenhavam-se melhor em tarefas discriminatórias do que em tarefas de identificação e que

paciente com lesões no HD desempenhavam-se mal em discriminação, p.ex., de sons isolados. Mas

estes resultados não deixaram claro se os pacientes com lesões no HE falharam na identificação das

tarefas por causa de desordens no referencial semântico ou por causa de dificuldade no afloramento da

palavra certa para o estímulo avaliado. Os estudos feitos sobre a dicotomia entre identificação e

discriminação na área da linguagem, com implicações para a música, sugerem a existência de múltiplos

estágios no processo da percepção auditiva, uma idéia que pode ter implicações importantes para o

entendimento dos aspectos neurológicos da percepção musical.

Saffran et al. (1976) fizeram um estudo detalhado com um paciente destro, de 37 anos, que

muito provavelmente tinha sofrido um derrame devido a uma embolia no lobo temporal esquerdo. Sua

34 Marin e Perry (1999) citam o caso de um paciente que ao ouvir o latido de um cachorro acreditava tratar-se de uma música; confundia o barulho de uma locomotiva com o de uma pessoa cantando; o barulho de uma máquina de escrever, com crianças brincando. 35 como no caso citado por Albert et al. (1972), em que um paciente, ao ouvir o canto de um pássaro e lhe serem mostradas pinturas que representavam possíveis fontes do estímulo ouvido, dizia: “ouço o canto, mas não consigo associá-lo a nenhuma das figuras que vejo” 36 como no caso de uma paciente, que ao ouvir para identificar o “tic-tac, tic-tac”, não conseguia falar o nome “relógio” observando uma série de objetos apresentados ou de escolhê-lo de uma lista de nomes alternativos. E esta paciente não apresentava nenhum outro problema de nomear objetos (Marin e Perry, 1999). 37 como no caso do paciente que não conseguia determinar com precisão se o som “ai” pronunciado correspondia ao do desenho de um olho (eye) ou de uma gravata (tie).No entanto este paciente pronunciava corretamente o nome destes dois objetos e de outros sem problema. Este mesmo paciente era incapaz de dizer palavras que tivessem o mesmo ritmo que uma palavra dada ou dar o nome de um objeto ou da pintura do objeto (Marin e Perry, 1999).

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doença começou com um quadro clínico que correspondia à afasia de Wernicke, incluindo

compreensão comprometida e fala truncada. Depois, a produção de sua fala se recuperou para níveis

normais, mas a normalidade de sua compreensão auditiva permaneceu comprometida. O resultado de

seus estudos mostrou um paralelismo entre as dificuldades de identificação e os erros cometidos em

tarefas de discriminação pura, sugerindo que estes dois fenômenos são, em última hipótese,

interdependentes entre si. Por outro lado, o paciente era capaz de fazer discriminações e identificações

de sons não verbais sem dificuldade. Era capaz também de distinguir bem estruturas de entoação,

mudanças no tipo de vozes e no número de vozes falando simultaneamente. Estava perfeitamente

atento em perceber quando um locutor, falando sem interrupção, mudava de uma língua para outra

(inglês, alemão e espanhol), mesmo não entendendo nada do que estava sendo dito. Alguns testes

demonstraram ainda, que o comprometimento da compreensão verbal do paciente englobava a

compreensão da semântica, da sintaxe e de outros fatores contextuais. A análise deste caso enfatiza

vários aspectos do processo da percepção, que mesmo tendo sido pesquisados com relação à fala e à

linguagem, poderiam ser igualmente válidos para o estudo de música, por exemplo, há forte evidência

de os sons da fala sejam decodificados por um aparato perceptual especial. Esta especialização refere-

se à composição acústica peculiar dos sons da fala, particularmente à sua rápida transição temporal. No

caso da fala devem-se distinguir dois níveis de análise: o auditivo e o fonético. A análise auditiva

contém parâmetros básicos psicofísicos de altura e intensidade, para cuja percepção nenhuma

especialização de lateralidade do aparato perceptual é necessária, embora também sobre este ponto haja

controvérsias e quem admita que em certas condições haja assimetria hemisférica (Zatorre, 1988;

Zatorre et al 1992). Já a análise fonética parece ser altamente lateralizada ao identificar e analisar

informações em termos de elementos fonéticos. Alguns dos casos de surdez verbal representam uma

desorganização deste nível, embora mantenha preservado o nível puramente auditivo. Ainda, num

nível mais alto, algumas unidades de percepção e processamento são operativas para análise da fala:

para conteúdos semântico, léxico e sintático, que facilitam a percepção por limitar o número de

alternativas possíveis e tornar ao mesmo tempo possível ao preceptor predeterminar a resposta.

Percepção neste sentido torna-se um complexo problema de recognição, que se dá emparelhando os

estímulos que entram com os padrões existentes internamente, num processo de análise para síntese

(Neisser, 1967). Fenômenos semelhantes poderiam ocorrer no processamento de configurações

musicais ao nível de motivos, temas, configurações rítmicas, estruturas harmônicas, formas musicais e

características de estilo.

Marin de Perry (1999) fazem ao final de seu trabalho uma síntese das desordens da percepção e

desempenhos musicais, resumindo-as em 10 níveis: 1. desordens da percepção acústica (geralmente

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relacionada com agnosia auditiva); 2. desordens de percepção estrutural (ruptura de alguma das

estruturas musicais que podem atingir a altura, intensidade, timbre, tonalidade, metro, ritmo ou ainda

localização do som), mas ainda com possibilidade de reconhecimento da música como tal; 3. desordens

da percepção da organização da música (as regras da gestalt musical são prejudicadas); 4. desordens da

memória musical (em que o indivíduo não consegue mais estabelecer o antecedente com o conseqüente

musical); 5. desordens léxico-semânticas (perca da capacidade de associar os estímulos a rótulos

lingüísticos, e.g. nome de compositores, estilos etc); 6. desordens da eficácia motora (o indivíduo se

torna incapaz de articular, vocalizar ou desempenhar atos motores relacionados com a performance

musical); 7. desordens do sistema motor integrativo que inter-relaciona em nível mais alto a audição

com a visão, com o movimento etc.; 8.desordens na capacidade programática motórica, importante,

sobretudo, para a execução automática de um instrumento; 9. desordens léxicas musicais; 10.

desordens da capacidade de escrever música.

7. Uma Medida: Tempo de Reação

O problema do estudo da lateralidade auditiva não se resume apenas ao da determinação da

lateralidade auditiva em si, para este ou aquele estímulo sonoro. O uso da metodologia para determiná-

la é importante e geralmente feito através do registro do tempo de reação (TR) de cada orelha na

captação do estímulo sonoro, tendo-se, no entanto, em mente que medir o tempo de reação para a

audição apresenta dificuldades, que se não superadas, invalida as conclusões a que se possa chegar.

Relacionado com esta problemática está o dos possíveis efeitos da correlação ou não das dimensões

dos estímulos apresentados à audição. Garner (1976) discute as implicações que esta correlação pode

ter, estabelecendo quatro tipos possíveis de interação entre as dimensões dos estímulos (integral,

configuracional, separável e separável assimétrico) nos processos de formação de conceitos e

discriminação e escolha, sugerindo ainda que cada tipo pode provocar efeitos diferentes nos processos

perceptuais de classificação e discriminação. Ao presente trabalho são pertinentes as indicações de

Garner (1976) de que em processo de escolha, as dimensões integral e configuracional acarretam

escolhas baseadas em relações de distâncias ordinárias ou processos de dimensões paralelos

equivalentes. Mas com dimensões separáveis é possível um processamento serial e esta forma de

processamento pode levar a escolhas nas quais sub-configurações dos estímulos e a ordem de processar

as dimensões destes estímulos, podem afetar a escolha dos resultados. Suponha-se que sejam

apresentadas configurações de estímulos nos quais variem altura (freqüência) e timbre (espectro) ou

altura e intensidade (amplitude de onda) etc. As dimensões destes estímulos podem interagir de forma

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diferente, ora de maneira correlata (aumentando a velocidade para a identificação e classificação dos

estímulos na dimensão integral e assimétrica separável, e não causando efeito nas dimensões

configuracional e separável), ora de maneira ortogonal (sem correlação) acarretando diferentes tipos

de interação (Garner, 1976) Aí está em avaliação, tanto o processo psicológico na mensuração do

tempo de reação, como as propriedades físico-acústicas inerentes aos estímulos.38.

Admitir lateralidade hemisférica para qualquer tipo de conhecimento, leva a admitir pelo menos

dois tipos de cognição, por exemplo, funções lingüísticas que para os destros são atribuídas ao HE, e

funções viso-espaciais que também para destros são atribuídas ao HD. A preferência hemisferial para o

desempenho de determinadas funções determina a lateralidade se destra ou canhota do indivíduo.

Cumpre lembrar que a rotulação em “destro” e “canhoto” refere-se à aparente predominância da

motricidade de um indivíduo. Admite-se que cerca de 90% da população é destra (Iaccino, 1993), e dos

10% restantes tem-se relatos de apenas 7 a 8% como sendo canhotos. Admitir que alguém é destro é

conferir-lhe algumas características como, por exemplo, lateralização para o HE de habilidades

manuais e motricidade em geral, dominância do HE para a linguagem e para a fala, percepção de

detalhes sobretudo visuais, raciocínio analítico etc., pouco podendo-se, no entanto, dizer a respeito

destas características para os canhotos, ficando mesmo discutível para cada caso a origem do

canhotismo, se genética ou adquirida (Annet, 1995; Bishop, 1990). Exceções podem ocorrer para

qualquer um dos grupos, para confirmar a regra. Caracterizar alguém como destro ou canhoto é admitir

que existem preferências de lateralidade como decorrência da assimetria hemisférica do cérebro. Foi a

partir de Paul Broca (1869), e Carl Wernicke (1874) que ficou demonstrado que lesões em

determinadas regiões do hemisfério afetavam determinadas funções, por exemplo, no HE afetavam a

fala. Ficou conhecida como “área de Broca” aquela região responsável pela produção da fala, mas que

não afeta a compreensão e por “área de Wernicke”, no lobo temporal esquerdo, aquela que afeta a

compreensão, causando as afasias expressiva e receptiva respectivamente (Gross, 1992). As

descobertas de Broca e Wernicke transformaram-se em modelo da assimetria funcional dos hemisférios

cerebrais, e que esta assimetria hemisférica gera diferença no tempo de reação de cada hemisfério. A

literatura tem mostrado que pacientes com lesões no HD têm tempo de reação maior do que os que as

têm no HE e tendem a ignorar estímulos visuais, auditivos e táteis no hemisfério contralateral.

É conhecida no meio científico a dificuldade de testar a habilidade de cada hemisfério

isoladamente. No caso da audição este trabalho é dificultado, sobretudo devido a decussação de fibras

auditivas no percurso que o estimulo sonoro tem que fazer rumo ao cérebro. Os métodos para este

38 - Para maiores informações a respeito de interações das dimensões de estímulos em formação de conceitos e processos de escolha, vide Garner (1976).

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estudo evoluíram e hoje já é possível, com o uso de PET acompanhar a ação de cada hemisfério frente

a um estímulo auditivo (Zatorre et al., 1994). Todavia dada a seletividade do uso deste método, a

maioria dos estudos sobre a audição ainda é feita de forma tradicional, onde a audição dicótica e

monótica são os métodos, que se bem usados, são confiáveis.

Considera-se tempo de reação (TR) o tempo decorrido entre a apresentação do estímulo e o

início da resposta. O conceito de tempo de reação foi introduzido no meio científico por Helmholtz

(1850). Na realidade trata-se do tempo gasto pelo nervo sensorial para perceber o estímulo mais o

tempo gasto pelo nervo motor para iniciar a resposta. Galton (1883), como o fez com outros temas (e.g.

habilidades para várias atividades: matemática, música etc), tentou associar o TR à inteligência, mas

pesquisas posteriores, sobretudo a partir da década de 1960, puseram em questão a definição de

inteligência usada por Galton. Em experimentos controlados por computadores, TR é o tempo

decorrido entre a apresentação do estímulo e o pressionar de uma tecla indicando a resposta. Mas pode

haver outros meios para acusar reposta (e.g. meios mecânicos como barras, respostas musculares como

as conferidas por sinais eletromiográficos, etc.) variando para cada um deles o TR e sua conseqüente

definição. Frente a esta possível variação como decorrência do aparato que confere a resposta, percebe-

se a necessidade de deixar clara a definição de TR e a natureza da resposta que o explicita.

O TR em pesquisa obedece a uma escala de validação universal e não depende de outra

(re)validação. Trata-se, portanto, de uma medida de rapidez reconhecida no processamento de

informação (Vernon, 1981, 1983) e que apesar das controvérsias de se o ganho em TR é, de fato,

reflexo motor ou efeito da atenção (Peters, 1981; Levy, et al. 1990; Godin, et al. 1996, que

encontraram predominância da mão esquerda sobre estímulos visuais), o conceito e a prática do TR

continuam valendo. Mas existem algumas dificuldades que devem ser superadas para que a

mensuração do TR tenha valor objetivo, para o que se tem que compreender o processo de como é

registrado e mensurado, qual seu grau de correção e precisão. É preciso ter as ferramentas para

trabalhar corretamente, de forma rápida para obter resultados válidos.

Com o uso de computadores em pesquisas científicas várias etapas do processo da pesquisa

podem ficar encobertas e o pesquisador ser tentado a ignorá-las. No entanto, em psicologia, pesquisas

exigem correção e precisão do controle do tempo, em geral, de ms, o que nem sempre os

computadores, configurados para ambiente Windows® e Macintosh®, atendem, sem uma prévia

configuração. Ciente da complexidade no entendimento do processo e da vulnerabilidade da coleta e

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elabora o TR, cabe ao pesquisador entender também a capacitação das ferramentas que usa e, como

disse Einstein: “Things should be made as simple as possible, but not any simpler”39.

8. Objetivos

A música é um evento complexo e sua percepção decorre de processos neurais igualmente

complexos. Um som inserido em contexto melódico ou isolado consta de altura40, potência ou

intensidade41 e é caracterizado pela fonte que o emite que lhe determina o timbre42. Além disto, o som

tem uma duração no tempo, como condição ontológica a sua existência. Permeando a complexidade de

sua percepção está o capítulo da especialização hemisférica, em torno da qual se posicionam muitas

controvérsias, sem, no entanto, inviabilizar algumas posições de consenso. Uma delas é que alguns

aspectos do processamento musical provavelmente requeiram a contribuição neural de ambos os

hemisférios (Peretz. 1993); outra é que o hemisfério direito seria particularmente importante para a

percepção de melodias. Sabendo-se então que uma melodia é formada por elementos pré-musicais

haveria preferência hemisférica para a percepção dos parâmetros timbre, intensidade e altura em

contexto melódico, mas avaliados separadamente? Qual orelha (hemisfério) que processa cada um

destes parâmetros? Ou alternativamente, será que ambos (hemisférios) processam tudo da mesma

forma?

Hoje é geralmente aceito que quem estudou música (aprendeu a raciocinar sobre seu processo:

regras, leis, teorias), o músico, tem predominância do hemisfério esquerdo na audição de melodias na

medida em que ela seja tratada analiticamente e o leigo (aquele que não tem vínculo com nenhuma

função analítica musical), tem predominância do hemisfério direito na percepção musical de melodias

na medida em que ela seja tratada holisticamente (Jackson, 1932; Kimura, 1967; Bever e Chiarello,

1974). Estas são conclusões que estão de acordo com a hipótese de que o HE é dominante para o

processo de análise e que o HD o é para processos holísticos. Mas os estudos citados sobre este assunto

estudaram seqüências de sons. Não melodias inteiras, completas, longas e repetidas, onde poderia

haver um “relaxamento” da função analítica cerebral e mesmo o músico passar a ouvi-la

39 As coisas devem ser feitas o mais simples possível, mas não mais simples do que o possível (Trad. J .Z. O.) 40 - o termo altura refere-se à sensação da freqüência fundamental de um som (em inglês: “pitch”) e que em contexto musical traz em si outras informações, como p. ex. a da tonalidade (Krumhansl e Shepard, 1979; Shepard, 1982). Apesar da impropriedade para representar a resultante de freqüências ou “herzagem”, o termo altura é usado aqui por ser de amplo conhecimento da população não só de músicos, mas em geral. 41 - a intensidade (em inglês: loudness) é o nível de pressão de um som; é medido em decibéis e tem mensuração relativa a uma determinada situação .

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holisticamente, como parece acontecer quando um músico, (e.g. um intérprete) já tendo estudado a

partitura de uma música, passa a ter dela uma concepção holística, sem a qual seria difícil, por

exemplo, uma boa interpretação. Frente ao exposto, a teoria que sugere predominância do HE para

músicos e do HD para leigos na percepção de música poderia ser alterada? Será que a maneira de

processar música de um músico, elementarmente analítica (o que certamente o é no primeiro contato

que ele tem com a música, por exemplo, ao estudá-la pela primeira vez, ao fazer uma leitura à primeira

vista), poderia mudar após a familiarização com esta música? Qual seria o inventario da lateralidade

auditiva de timbre, intensidade e altura que são os elementos principais (não os únicos43) na

composição de uma melodia, a forma elementar de uma música?

Existe mais uma questão, pouco estudada quanto à percepção e conseqüente comportamento

musicais: a probabilidade da existência de assimetria hemisférica entre homens e mulheres, afirmando-

se ora que os homens ora que as mulheres são mais lateralizados(as). Mas há controvérsias e talvez

seja mais prudente não se afirmar simplesmente que um sexo é mais lateralizado do que o outro. Antes

seria prudente afirmar que homens parecem mais lateralizados do que as mulheres em alguns aspectos

de algumas tarefas e que da mesma forma as mulheres em outros aspectos apresentam maior

lateralização e ainda em outros, parece não haver diferença entre os dois sexos (Gorski, 1985) A

controvérsia aumenta quando se trata da discriminação de estímulos não-verbais (melodias e sons não

lingüísticos), não havendo indicação de assimetria para os homens, mas sendo sugerido uma forte

lateralização para a orelha esquerda (LEA) das mulheres (Gorski, 1985 - Piazza, 1980). Que a

assimetria entre os sexos possa existir, é uma hipótese, mas não se conseguiu ainda definir com

precisão a magnitude desta assimetria e apesar de geralmente os sujeitos das pesquisas serem

balanceados por sexo, pouco se tem concluído a respeito do assunto. Haveria lateralidade sexual na

percepção de timbre, intensidade e altura inseridos em contexto melódico? Seriam as mulheres mais

lateralizadas do que os homens e esta lateralização dar-se-ia para a orelha esquerda (LEA) a exemplo

do que lhe é atribuído por alguns estudos (Gorski, 1985 - Piazza, 1980)? É aceito que as mulheres são

mais intuitivas do que os homens. Teria este fato algum efeito na percepção e resposta das mulheres

aos estímulos solicitados? Será que errariam mais em funções de escolha do que de discriminação

simples, uma vez que ao processo de escolha é mais complexo e até certo ponto mais exigente quanto

ao raciocínio?

42 - timbre: é difícil defini-lo sob o ponto de vista da acústica por causa dos diversos elementos que contribuem para sua formação (Grey, 1977), mas de fácil distinção perceptiva. É entendido como a qualidade que identifica a fonte sonora. É dado pelo espectro do som. 43 - a duração do som não é estudada aqui por estar mais afeta ao tempo e ao ritmo, não estudados neste trabalho.

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O presente trabalho teve com objetivo investigar a hipótese da preferência auditiva entre as

orelhas direita ou esquerda na percepção dos parâmetros timbre, intensidade e altura em melodias

tonais, por meio de: a) audição monótica em que se registrou o TR em tarefas simples (aqui, responder

à audição de um determinado estímulo em presença de outro estímulo “perturbador” e que não deve

ser respondido), tarefa que exige apenas o julgamento a respeito da presença ou não do estímulo e sua

discriminação e não envolve decisão ou escolha a respeito da natureza deste estímulo; b) audição

dicótica, em que se registrou o TR em tarefa de escolha entre o normal (ou certo) e a anomalia (ou

errado) em estímulos musicais (aqui, notas erradas quanto a altura dentro de um contexto melódico,

mudança do timbre de um instrumento para o de outro e mudança de volume na intensidade de um som

entre outros com intensidade fixa), no qual o TR foi medido quando, na ocorrência do estímulo, o

sujeito devia indicar, mediante escolha para sua resposta, em qual orelha ocorria o estímulo. Para este

tipo de audição (escolha em audição dicótica) os TRs na literatura especializada costumam ser maiores

do que os conferidos em tarefas de detecção simples (e.g. os de discriminação simples na audição

monótica). A literatura fornece ainda a indicação de que os TRs costumam ser maiores em tarefas cujas

diferenças entre os estímulos são menores, nas quais também, geralmente ocorrem maior número de

respostas erradas. O tempo de reação (TR), para acusar a percepção do estímulo, medido em

milesegundos (ms) será a medida para quantificar o desempenho de cada orelha, sendo considerada a

mais eficiente a que obtiver tempos de reação mais baixos.

Fundamentado nos estudos existentes pode-se formular as seguintes hipóteses: a) é provável

que haja assimetria hemisférica na percepção dos parâmetros musicais investigados: timbre,

intensidade e altura; b) é provável que esta assimetria, se verificada, possa ser função da formação do

sujeito, se estudou música ou não, e caso tenha estudado, é possível que obtenha tempos mais baixos

na orelha direita (hemisfério esquerdo) e caso não o tenha, é possível que obtenha tempos mais baixos

na orelha esquerda (hemisfério direito) e acrescenta-se a hipótese de esta indicação da literatura poder

ser contrariada quando há uma familiarização do músico com a música que ouve ou interpreta (e. g. de

um intérprete que estudou e decorou a partitura). Finalmente, c) é provável que esta assimetria ocorra

também entre homens e mulheres, sendo previsível que homens tenham tempos mais baixos na orelha

direita (HE) e as mulheres os tenham na orelha esquerda (HD).