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8/9/2019 I Fórum Nacional de Psicologia e Saúde Pública - contribuições técnicas e políticas para avançar o SUS http://slidepdf.com/reader/full/i-forum-nacional-de-psicologia-e-saude-publica-contribuicoes-tecnicas 1/80 I Fórum Nacional de Psicologia e Saúde Pública: contribuições técnicas e políticas para avançar o SUS Brasília, 20, 21 e 22 de outubro de 2006

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I F ó r u m N a c i o n a ld e P s i c o l o g i a eS a ú d e P ú b l i c a :

c o n t r i b u i ç õ e s t é c n i c a s ep o l í t i c a s p a r a a v a n ç a r o S U S

Brasília, 20, 21 e 22 de outubro de 2006

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Conselho Federal de PsicologiaSRTVN 702 - Edifício Brasília Rádio Centersala 4024-A Brasília - DFCEP 70.719-900

Fone: (61) 2109-0100www.pol.org.br

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Brasília, 20, 21 e 22 de outubro de 2006

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 Apresentação

2006 foi escolhido pelo SistemaConselhos de Psicologia como o“Ano da Saúde”. Isso representa apossibilidade de um certo acerto decontas, com várias pendências, pro-duzidas ao longo da nossa inserçãocomo profissão na saúde, relativasa aspectos políticos, administrativose técnicos que envolvem a nossaatuação. Ampliar a presença dapsicologia neste campo de práticassociais tão importante, passa a serentendido como um dos principaisdesafios para a nossa profissão, emsua vocação para a promoção dobem estar e ampliação da qualidadede vida dos indivíduos, dos coleti-vos e das instituições.

Nesse contexto, a convocaçãodo I Fórum Nacional de Psicologia eSaúde Pública, representa uma im-

portante possibilidade de participa-ção, ampla e democrática, dos psi-cólogos, no processo de discussãoda Saúde Pública brasileira, especi-ficamente das problemáticas vividaspelo Sistema Único de Saúde (SUS),espaço da presença profissional deuma parcela significativa da nossa

categoria profissional, quando serãodefinidas diretrizes da atuação do

Sistema Conselhos em relação aessa política pública. Ao mesmotempo, o processo de debates doFórum constitui um espaço privile-giado para avançarmos no processode sistematização das referênciastécnicas que devem balizar coleti-vamente as nossas práticas profissio-nais no interior deste segmento.

Neste caderno, os psicólogosencontrarão alguns textos, que mes-mo quando não estão diretamenterelacionados com os eixos temá-ticos previstos na pauta do Fórum- como, por exemplo, a questão dofinanciamento do SUS - tratam detemas que emolduram a compreen-são acerca das dificuldades e desa-fios colocados para a transformaçãodas práticas profissionais no seuinterior. Elaborados por profissio-

nais ligados à área, eles abordam aconjuntura do SUS: desafio político;a prática dos psicólogos no SUS; aquestão da subjetividade na saúde;a questão da formação dos psicó-logos para a saúde; financiamentodo SUS; a relação entre trabalha-dores e usuário de saúde, a prática

dos psicólogos no SUS; realidadebrasileira: tendências e desafios,

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sempre na temática do cuidado eda subjetividade.

 Afinal, a psicologia como dis-ciplina é imbatível na abordagemdas dimensões da subjetividade eas experiências de saúde e doençasão profundamente marcadas pordimensões subjetivas. Aliada à nossavocação para a promoção do bemestar, essa condição nos remete a

necessidade do aprofundamentodo debate acerca do estreitamentodas relações existentes entre a nossaprofissão e o campo da saúde, sejaenquanto estado vital, seja em suasmúltiplas representações e articula-ções com outras esferas da atividadehumana, marcadamente um ele-

mento central na vida dos sujeitos.

Desta condição deriva a im-portância de que todo psicólogo,independentemente da sua áreaespecífica de atuação, possa estabe-lecer uma aproximação dos conhe-cimentos relativos à experiência

complexa dos processos de saúde eadoecimento, na medida em que,dada a centralidade da mesma, ter-minam por assumir uma importantedimensão ontológica, na própriaconstituição do sujeito.

No mesmo sentido, impor-

ta registrar uma outra incidência

significativa do tema da saúde paraa Psicologia, presente na percep-ção de que, em função daquela

centralidade das experiências queenvolvem a dor, o sofrimento e amorte, a sociedade desenvolve einstitucionaliza múltiplas práticascom diferentes registros simbólicose técnicos, para abordar o tema daconservação da saúde e da vida,bem como atenuar as dimensões do

sofrimento. Desse modo, toca à Psi-cologia, nas suas variadas presençassociais, dialogar com a incidênciadesses múltiplos valores, práticas esignificados, que estão associadosao tema da saúde.

 Assim, um psicólogo que atua

na educação deve estar atento àsdimensões e práticas relacionadasao tema da saúde que são própriosdas populações assistidas no am-biente educacional, que convivemneste cenário. Já o psicólogo quefaz Psicologia Comunitária estaráem contato com as práticas sociais

e culturais relativas ao processosaúde-doença, próprias do grupoque convive naquela comunidade.Da mesma forma, um psicólogoque atua na área de PsicologiaOrganizacional também encontrarádiversos aspectos relacionados compráticas de promoção, conservação

ou de defesa dos trabalhadores em

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6relação à questão do adoecimento. Aliás, a saúde ocupacional é umaárea institucionalizada de múltiplos

e conflitivos interesses relacionadosaos aspectos que envolvem a saúdee o trabalho.

Deste modo, pensada comouma área de interesses amplos paraa Psicologia, a saúde deve deixar deser considerada como um obje-

to específico daqueles psicólogosvocacionados para uma atuaçãonas práticas sanitárias, operadas nosestabelecimentos típicos - hospitais,unidades de saúde - para se locali- zar como um dos importantes espa-ços de referenciação do diálogo daPsicologia com a sociedade.

 Assim a aproximação por partedos psicólogos, do campo da saúde,está a exigir uma nova atitude,inclusive reconhecendo que, paraalém dos aspectos conceituais, nor-mativos, prescritivos, que se fazempresentes no campo da saúde cole-

tiva, essa é uma área que se cons-titui concretamente na experiênciavivida dos indivíduos na dinâmicadas práticas sociais em cada contex-to e momento histórico. Daí de-corre a importância deste tema naspreocupações com a formação dopsicólogo, que deve proporcionar

oportunidades para a ampliação da

importância do tema da Saúde paratoda a Psicologia.

Neste Fórum vamos certamen-te fortalecer o nosso compromissocom a área da saúde em todos osseus eixos e vertentes, para queos Psicólogos possam ser agentesde mobilização e mudança, con-tribuindo para a consolidação eampliação do SUS em nosso país,

locus privilegiado da convergênciados principais desafios sanitários dasociedade brasileira.

XIII Plenário CFP

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Sumário

 Apresentação

 A prática dos psicólogos no Siste-ma Único de Saúde/SUS

Formação generalista em Psicolo-gia e Sistema Único de Saúde

 As inquietudes do financiamentoda seguridade social e o SUS

Conjuntura brasileira e o SUS:Tendências e Desafios

O Cuidado é um acontecimento, enão um Ato

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Magda Dimenstein1

Gostaria, inicialmente, deagradecer o convite para participardo Fórum Nacional de Psicologia eSaúde Pública, especialmente pela

possibilidade de compartilhar idéias,interesses e de contribuir com odebate acerca de uma temática queatravessa toda a minha trajetóriaacadêmica, profissional e pessoal.Portanto, é de um lugar profunda-mente afetado que me situo parapensar sobre a prática profissional

do psicólogo em saúde pública. Re-conheço-me, pois, numa situação,como disse certa vez Merhy (2003),na qual “o sujeito que propõe o que

 será conhecido está tão implicadocom a situação que, ao interrogaro sentido das situações em foco,interroga a si mesmo e a sua própria

 significação enquanto sujeito detodos esses processos”. Assim, situo-me enquanto sujeito interessado eque aposta em certas direções e nãoem outras, enquanto sujeito queambiciona produzir conhecimentose sistematizá-los para si e para osoutros. Gostaria, assim, de destacar

duas palavras-chaves que refletem

 A prática dos psicólogos no SistemaÚnico de Saúde/SUS

essa primeira condição: implicaçãoe compromisso.

Em segundo lugar, gostariade dizer que as idéias que querocompartilhar a respeito da temáticaproposta não são apenas minhas,

mas pertencem a diferentes atoressociais, e, de tão potentes, merecemtomar parte no diálogo, ou seja,são idéias frutos do meu encontrocom diversos interlocutores que seinterrogam sobre a vida e apostamincansavelmente na criação de no-vos modos de existência, de se viver,

de ter saúde. Esses bons encontrosfuncionam como um intercessor, talcomo Deleuze o pensa, na medidaem que estão cheios de força paradesestabilizar o que já está cristali- zado e revigorar as nossas escolhasconceituais, metodológicas, enfim,éticas. Diante disso, as palavras-cha-

ves para esse momento são movi-mento e produção de vida.

Implicação-movimento, com-promisso-produção de vida. Pensara prática do psicólogo na saúdepública a partir dessa perspectiva émeu objetivo neste texto. Mais doque isso, é poder contribuir para

a construção de diretrizes para o1Profª do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.Doutora em Saúde Mental pelo IPUB/UFRJ. Endereço para correspondência: UFRN, CCHLA, Depto. de Psicologia, Cam-

 pus Universitário, Lagoa Nova, Natal/RN. CEP: 59.078-970. Tel: (84) 32153590. E-mail: [email protected]

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trabalho do psicólogo nesse campoancorado em tais princípios.

Não vejo razão aqui para re-

tomar uma discussão acerca doprocesso de constituição do SUS,dos avanços e estancamentos aolongo dos últimos anos, mas apenasreafirmar sua importância no cená-rio nacional e o lugar fundamentalque ocupa na vida de milhões debrasileiros. Acredito no SUS e o

considero uma das melhores inven-ções já produzidas no país voltadasao enfrentamento das iniqüidadesexistentes. Parto, então, das dis-cussões que vêm se dando maisrecentemente no campo da saúdepública, mais precisamente, daspropostas elaboradas pelo Ministério

da Saúde, que já tem os problemasdo sistema mapeados e investe naproposição de novas estratégias eações no intuito de transformá-lo.

 Atualmente, o “HumanizaSUS”apresenta-se como uma dessasestratégias para alcançar uma maiorqualificação da atenção e da gestão

em saúde no SUS. É uma políticanacional que opera transversalmen-te em todos os níveis do sistema,fugindo da lógica tradicional eburocrática baseada em programase que tem, na humanização, o eixonorteador das práticas de atenção egestão em todas as esferas do SUS.

Trata-se, portanto, de uma

tentativa de fazer avançar questõesque até hoje se apresentam comoproblemas de difícil abordagem,

tal como atesta a vasta produçãobibliográfica produzida no campoda saúde coletiva, dentre as quais sesituam:• “Fragmentação do processo detrabalho e das relações entre osdiferentes profissionais;• Fragmentação da rede assistencial,

o que dificulta a complementarie-dade entre a rede básica e o sistemade referência;• Precária interação nas equipes edespreparo para lidar com a dimen-são subjetiva nas práticas de aten-ção;• Baixo investimento na qualificação

dos trabalhadores, especialmente noque se refere à gestão participativa eao trabalho em equipe;• Poucos dispositivos de fomento àco-gestão, à valorização e inclusãodos gestores, trabalhadores e usu-ários no processo de produção desaúde;• Desrespeito aos direitos dos usuá-rios;• Formação dos profissionais de saú-de distante do debate e da formula-ção da política pública de saúde;• Controle social frágil dos processosde atenção e gestão do SUS;• Modelo de atenção centrado na

relação queixa-conduta” (MS, 2004).

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10Diante disso, o Ministério da

Saúde vem propondo um conjun-to de princípios e diretrizes com o

intuito de enfrentar os problemasindicados e orientar o modo deoperar, as ações e as práticas em to-das as esferas do sistema de saúde.Essas propostas visam, em outraspalavras, à construção de uma redecomprometida com a defesa da vidaou, como vem sendo chamada, de

“Rede de Humanização em Saúde/ RHS” (MS, 2004). O que vem a serisso? Que direção aponta, em ter-mos da nossa inserção profissionalno SUS? De que maneira a Psicolo-gia é convocada a fazer parte de ummovimento cuja responsabilidade éa produção de saúde e de sujeitos

de modo sintonizado com outras es-tratégias de combate à desigualdadesocial e à desqualificação da vida?

Parto do princípio, então, deque nosso desafio atualmente resideem avançar no delineamento doque tal política pede de nós e emcomo a Psicologia pode contribuir

para operar e fazer acontecer tal po-lítica, pois, a despeito das distintasdefinições, compreensões, críticas epropostas existentes em termos dehumanização na saúde, o que estáem jogo, segundo Puccini e Cecílio(2004), “é a finalidade, o potenciale a direção desse movimento para o

enriquecimento humano capaz de

colocar socialmente em questão asamarras culturais, sociais, políticase econômicas que travam a con-

quista de novos padrões universaise solidários de qualidade de vida” (p.1348). Ou seja, nossa adesão,nosso compromisso, nossa conexãocom essa rede de humanização emsaúde implica uma participaçãoem um bloco de forças que tem apotencialidade de romper e gerar

forças sociais capazes de produzirmudanças na ordem estabelecida,nos modelos de atenção e práticasprofissionais cronificados.

Mas, em que consiste a PolíticaNacional de Humanização? De for-ma bastante resumida, segundo osdocumentos disponibilizados pelo

MS (2004), trata-se da construção/ ativação de atitudes ético-estéti-co-políticas em sintonia com umprojeto de co-responsabilidade equalificação dos vínculos interprofis-sionais, e destes com os usuários naprodução de saúde. É uma rede deconstrução permanente de cidada-

nia, que implica uma mudança nacultura da atenção aos usuários e dagestão dos processos de trabalho. A política de humanização supõeum novo tipo de interação entre ossujeitos e nos modos de trabalharem equipe, porque implica estarlidando com a complexidade sem-

pre diferenciadora do viver, implica

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produzir uma “cumplicidade” entreesses atores. Trata-se, portanto, depoder olhar cada sujeito em sua

especificidade, sua história de vida,mas também de olhá-lo como sujei-to de um coletivo, sujeito da históriade muitas vidas. Nesse sentido, hádestaque para o aspecto subjetivopresente em qualquer ação huma-na, em qualquer prática de saúde,perspectiva que se afasta daquela

orientada por uma concepção biolo-gizante e mecanizada da vida.Partindo da idéia de que o

modo de operar é indissociável dasconcepções e valores, a implemen-tação e funcionamento da PNHenvolvem uma série de estratégiasque objetivam a sua institucionaliza-

ção, seja na atenção básica, urgên-cia e emergência, seja na atençãoespecializada e hospitalar, em pelomenos sete eixos: gestão do traba-lho, financiamento, atenção integral,educação permanente, informação/ comunicação, acompanhamento eavaliação da PNH e no eixo das ins-

tituições, sendo pactuada nos níveisestadual e municipal.É possível perceber que mate-

rializar tal política e reconfigurar ocampo assistencial não é simples,pois requer um novo tipo de com-petência profissional, mudanças noprocesso de financiamento e gestão,

no ensino e nos modos como pro-

duzimos os técnicos que aí operam.O psicólogo é um deles. Para esca-par da lógica de produção de atos

de saúde como procedimentos e“realizarmos no agir diário, junto aosoutros, dentro de nossos campos deresponsabilidades e competências,

 processos relacionais comprometidoscom a construção de sujeitos sociais

 protagonizadores de seus modos decaminhar na vida individual e cole-

tiva e sermos comprometidos com a permanente ótica de cuidar dos ou-tros, das relações, de si e do mundo” (Merhy, 2001), é preciso enfrentaruma série de desafios que vão muitoalém dos aspectos burocráticos ouadministrativos e da delimitação deespaços profissionais.

Penso que, no campo da saúdepública, para fazer avançar umapolítica cuja lógica está voltada paraa produção do cuidado em saúde,torna-se necessário fazer esco-lhas teóricas e metodológicas quepossibilitem a sua concretização.Isso vale para qualquer campo de

saber, e nos diz respeito diretamen-te. Como diz Deleuze, uma teoriaé exatamente como uma caixa deferramentas, é preciso que sirva,que funcione e que funcione paraoutros. Se não tem pessoas que seservem dela, incluindo o próprioteórico, é que a teoria não vale

nada. Além disso, vale lembrar “que

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12não são quaisquer ferramentas que

 permitem agir em um modelo cen-trado no usuário, que visa a um novo

modo de produzir o cuidado e o for- jamento de novos sujeitos em açãocomprometidos radicalmente coma defesa da vida individual e coleti-va, dentro de uma ótica de direitos

 sociais plenos” (Merhy, 2002, p.16). Algumas ferramentas apresentam

mais possibilidades do que outras;

umas estão mais cheias de forçacrítica, de tornar visível a invisibili-dade de forças que nos atravessam,os saberes e afetos instituídos, denos fazer inventar atos cuidado-res. Uma anamnese, por exemplo,circunscrita à queixa e sintomas paraa elaboração de diagnóstico tem

funcionado, na maioria dos casos,como uma ferramenta pobre parafazer emergir a complexidade defatores envolvidos naquilo que seapresenta enquanto necessidade desaúde. Portanto, a maneira comocertas ferramentas são construídas,como certas modalidades de inter-

venção são pensadas e executadas, já reflete sua dimensão tutelar ougeradora de autonomia, ou seja, épreciso, antes de qualquer coisa,pensar onde essa ou aquela ferra-menta pode nos levar.

Como isso afeta a Psicologia?Essa discussão indica que a Psicolo-

gia precisa operar uma série de en-

frentamentos importantes relativos àsua base conceitual e ao seu reper-tório de práticas quando se trata da

sua inserção no campo da saúde pú-blica. Alguns pontos podem ajudarnessa discussão, já discutidos na lite-ratura do campo. Primeiro, diz res-peito aos pressupostos subjacentesà atenção produzida independente-mente do local de atuação: visão demundo, valores, crenças, concepção

de subjetividade, de saúde/doença,de normal/patológico, de neutralida-de] etc, que fundamentam o saber ea prática psicológicos; segundo, a al-gumas marcas presentes no mundopsi: o ideário individualista, a fusãoidentitária com a psicanálise, a for-mação acadêmica descontextualiza-

da, concepção de sujeito/indivíduo,modelo clínico tradicional, foco nosreferenciais modernos de razão ecidadania etc. (Dimenstein, 1998).Tudo isso concorre para a produçãode uma cultura profissional, de umaforma específica de ser psicólogo,de ver o mundo, de organizar seu

trabalho e de relacionar-se com ainstituição de saúde, por exemplo,campo que é alvo desse trabalho.Essa forma específica de se situarna vida é caracterizada por algunspontos, a saber:

1. Escravização às técnicas,refletida na crença na neutralidade e

na sua eficácia intrínseca (seja indi-

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vidual ou grupal). A técnica é o fimem si. O que importa é saber usar,aplicar corretamente, desempenhar

a tarefa, é realizar o ideal de atua-ção entendido como o emprego datécnica. Não é à toa que uma dasmaiores reclamações dos psicólogosinseridos na rede pública de saúdeseja relativa à falta de setting /espaçoadequado, de possibilidade derealizar o acompanhamento indivi-

dual e de falta de entendimento dosgestores sobre o trabalho do psicólo-go bem como dos usuários.

2. Concepção de liberdade/ autonomia apenas dentro de umaótica privatista, que não tem absolu-tamente a ver com a idéia de liber-dade como ação política, coletiva,

como diálogo no sentido de produ- zir novas formas de sociabilidade.3. Desejos de adaptação, seja

das técnicas (não se pensa na pro-dução de outras alternativas) seja dadiferença, da diversidade humana,dentro de modelos pré-estabeleci-dos. Considera-se que grande parte

das teorias e práticas psicológicasestá norteada pelo princípio da dis-ciplina, da normatização e cristaliza-ção das referências identitárias, sejaem que contexto for.

Nesse sentido, destaca-se anecessidade de construção de ummodo de fazer Psicologia articulado

aos princípios e estratégias de inter-

venção do SUS, modo que vai sen-do gestado ao longo da formação,e a universidade deve responsabili-

 zar-se por isso. Não se trata de umaespecialização, mas de um modo deser no exercício profissional.

Outro aspecto que gostaria deabordar em relação à prática pro-fissional em saúde pública - (e nãoestou me restringindo ao psicólogo)- é um desafio presente no cotidia-

no, mas pouco palpável, porqueimplica acompanhar movimentosinvisíveis, não de sujeitos ou de pes-soas, mas de “operações estratégicasdo desejo” (Rolnik, 1989). Consideroque a finalidade por excelência dequalquer trabalho em Psicologiaseja operar cotidianamente essa

máquina desejante que articulaprofissionais, usuários, organizações,tecnologias, encontros de sujeitos,que produz uma movimentação queimplica processos cooperativos, po-tentes, prazerosos ou não, tal comorelata grande parte dos trabalhado-res em saúde. É nesse jogo cotidiano

que nos inserimos de forma particu-lar com nossos saberes e fazeres.Operar essa máquina desejante

é um trabalho árduo, cansativo, semgarantias, pois implica perceber que“o desejo investe contra si mesmo ea favor do fortalecimento do statusquo” (Rolnik, 1989). Significa se

permitir ser atravessado por uma

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14indagação spinozana: Por que aspessoas lutam por sua própria opres-são como se estivessem lutando por

liberdade? Por que produzimos mo-dos de existência tiranos que fazemcom que a hierarquia e a exploraçãosejam desejadas? Por que costura-mos tantas burcas, mesmo de corese tecidos variados, mas semprefôrmas-prisões?

Esses questionamentos nos indi-

cam que somos capturados constan-temente pela tentação do confortodas formas e dos equilíbrios; indicamtambém que empreendemos, a todomomento, processos de instituciona-lização da vida, que ajudamos a mo-dular os sistemas de saberes-poderesque nos atravessam e a conservar

as redes invisíveis de subjetivaçãomoral que sabotam as forças vivas davida, a potência do novo, do desco-nhecido, do inusitado, da diferença.Chamamos isso “desejos de mani-cômio”. É uma lógica, são marcasinvisíveis que produzem formas desubjetivações. Segundo Machado e

Lavrador (2001), essa lógica se ex-pressa “através de um desejo em nósde dominar, de subjugar, de classifi-car, de hierarquizar, de oprimir e decontrolar. Esses manicômios se fazem

 presentes em toda e qualquer formade expressão que se sustente numaracionalidade carcerária, explicativa e

despótica” .

Entretanto, o que é mais impor-tante é que essa cultura manicomialnão está restrita a um campo especí-

fico de práticas, ou seja, a fabricaçãodesses modos de existência captu-rados em sua força de invenção, dedevires fascistas que se voltam, emnome da razão, à correção de tudoo que escapa à normalidade, à vigi-lância ininterrupta para não sairmosda ordem, à produção de práticas

e tecnologias de disciplinarização,é algo que perpassa o cotidiano,que alimenta os modos pelos quaiscirculam as pessoas nos espaçossociais, nos nossos atos e formas depensar. Portanto, não é algo produ- zido especificamente no contexto dasaúde ou próprio de nossa categoria

profissional, mas são movimentosque atravessam o socius, o tornar-sehumano contemporâneo. Isso querdizer que ela envolve todos nós; estádentro e fora dos muros das institui-ções de saúde.

Nesse sentido, mesmo sabendoque não há receitas prontas e defini-

tivas, penso que talvez a especifici-dade do nosso exercício profissionalseja produzir certa disposição paraconstruir problemas nos espaçospor onde circulamos, nos coletivosde trabalho, entre usuários e paranós mesmos. Que nosso foco sejainterrogar sobre como ocupamos as

cenas, como as produzimos: en-

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quanto interditores ou produtoresde vida? Que nosso agir seja lutarcontra o ímpeto da prescrição de

modos de existir no mundo, o quenos faz técnicos da correção e damodelagem.

Entendo que a PNH, políticaque tem um compromisso com essedebate, convoca-nos a recusar oideal de homem e a enfrentar as re-des invisíveis de subjetivação moral

bem como as resistências afetivasque bloqueiam nossa capacidade deinventar maneiras de ser antimani-comial. Ela nos pede para jogar esse jogo e colocar nossa capacidade deexplorar o funcionamento paradoxaldessa rede em saúde construindoestratégias provisórias, “uma políti-

ca de invenção na qual se mantémvivo o aprender a aprender, em queo saber aprendido não se separa derepetidas problematizações....uma

 prática do tateio e de experimen-tação, composição e recomposiçãoincessante” (Lazzarotto, 2004).

O problema é que não há recei-

tas de como inventar. E, certamente,não se faz sozinho. Precisamos deintercessores, de estar num campo“que sustente essa inquietação e osmovimentos intensivos do pensa-mento-ação para produzir uma oumuitas respostas” (Matos, 2004).

Cotidianamente, estamos inseri-

dos em vários setores do sistema de

saúde, desde a atenção básica até onível terciário de atenção, passan-do pelo planejamento e gestão dos

serviços. Em cada um desses níveis,atuar como aprendiz, construindorede com outros saberes, produzin-do escutas-intervenções que alar-guem os sentidos e as possibilidadesde criação e transformação docotidiano, essa é a nossa missão nasaúde pública.

Gostaria de finalizar com umpoema de Clarice Lispector, quenos serve de alerta para o carátertransgressor, desviante e revolucio-nário que pequenos movimentosque operamos no dia a dia podemter; basta termos coragem e não nosdeixarmos calcificar.

“Eu sei que a gente se acostuma.Mas não devia. A gente se acostuma a morar em

apartamentos de fundose a não ter outra vista que não

as janelas ao redor.E porque não tem vista, logo se

acostuma a não olhar para fora.

E porque não olha para fora,logo se acostuma a não abrir detodo as cortinas.

E porque não abre as cortinas,logo se acostuma a acender cedo aluz.

E à medida que se acostuma, es-quece o sol, esquece o ar, esquece a

amplidão”.

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 Jefferson Bernardes2

Este texto possui o objetivo dedialogar sobre algumas questões daformação em Psicologia e suas rela-ções com o Sistema Único de Saúde

(SUS). Para isso, vai ao encontro doobjetivo geral do projeto das oficinasda Associação Brasileira de Ensinoem Psicologia (ABEP), qual seja, o de“contribuir para o processo de mu-dança na graduação da Psicologia,articulada no processo de implemen-tação da integralidade na atenção

à saúde, mantendo a dimensãode uma formação generalista”. Emfunção disso, o texto está organizadoem dois eixos: primeiro, orientadopara a problematização da formaçãogeneralista em Psicologia e, segundo,as articulações dessa formação comum dos princípios do SUS, o da inte-

gralidade na atenção à saúde.Para explorar tais eixos, dividi-mos o texto em três partes: a pri-meira parte apresenta uma breveproblematização sobre reformascurriculares; a segunda diz respeitoàs características, historicamenteproduzidas, da formação em Psi-

cologia. Nela serão apresentados e

Formação generalista em Psicologia eSistema Único de Saúde

analisados alguns dos principais itensdas diretrizes curriculares da Psico-logia e suas relações com retóricastécnico-científicas e lógicas neoli-berais que marcaram a profissão aolongo dos tempos, principalmente

aquelas voltadas para a problema-tização da formação generalista. Aterceira parte apresenta o princípioda integralidade3 e alguns pontos deencontros e articulações com a for-mação em Psicologia. Assim, tenta-mos estabelecer alguns paralelos (àsvezes são paralelos que desafiam as

lógicas geométricas e se encontram,outras vezes se afastam) entre osconceitos de formação generalista eintegralidade.

Sabemos que o conceito de for-mação generalista está banalizado,impedindo avanços para sentidosque possam ser mais interessantes

para a formação. Diante disso, nos-so argumento central é afirmar quea formação em Psicologia jamaisfoi generalista, no sentido que seráconstruído aqui, e que ainda temosmuito trabalho a fazer para promo-ver as articulações com os princí-pios do SUS, principalmente o da

integralidade.2 Doutor em Psicologia Social pela PUC-SP e professor da UniversidadeFederal de Alagoas.

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18Para isso, três pontos são consi-

derados fundamentos para prosse-guirmos: em primeiro lugar, con-

sideramos a Psicologia como umaprática social, ou seja, sujeita aoque, na etnometodologia (Garfinkel,1967; Coulon, 1987), chamamos deprincípio da reflexividade. CitandoIbáñez: “hemos descubierto quela ciencia también está hecha dela carne y huesos de sus represen-

tantes, carne y huesos que estánformados de historicidad, de cultu-ra, de lenguaje, de socialidad y quetodo ello no remite sino a la contin-gencia y a la finitud del ser humano”(Ibañez, 2001, p. 222).

Em segundo lugar, o textoorienta-se por uma perspectiva

pragmática, ou seja, volta-se paraos usos e efeitos das diretrizes cur-riculares na formação em Psicologiae em suas articulações (ou ausênciadelas) com os princípios do SUS, e,em terceiro, destacamos a impor-tância das interanimações dialógi-cas (Bakhtin, 1994; Spink, 1999),

isto é, além dos posicionamentos,endereçamentos etc, o texto possuivárias vozes que o compõem. Pre-tende, dessa forma, fazer parte dodebate que produz a implantaçãodas diretrizes curriculares.

De imediato, é importante lem-brar que um dos protagonistas nessa

articulação entre o SUS e os cursos

de Psicologia é o próprio FórumNacional de Educação das Profis-sões da Área da Saúde (FNEPAS),

que tem por missão potencializar asreformas na graduação a partir dareflexão coletiva sobre as diretrizescurriculares.

1) Reformas curriculares Apesar de este texto explorar a

questão da formação mais vincula-

da à graduação, estamos longe dequerer reduzi-la à mesma. Levandoisso em consideração, delimitamosformação em sua relação com acultura. Partimos do argumento quea formação produz cultura (e vice-versa). A escola é percebida como“máquina de produção” (e, não

simplesmente, reprodução social). A cultura influencia a formaçãoprofissional: ela constrói, molda eformata os sujeitos. Tal formaçãoé produzida, para além de outroselementos, por meio do própriocurrículo e dos processos que levamà sua organização.

Veiga-Neto (1995), por exem-plo, argumenta que o ponto nodalna relação entre cultura e formaçãoé o currículo. Para esse autor, aEducação não é vista somente comouma tarefa técnica de processamen-to de informações ou de aplicaçõesde determinadas teorias de apren-

dizagem nas salas de aula, sequer3Embora saibamos que outros princípios do SUS (universalidade, eqüidade, controle social e descentralização) relacio-nam-se diretamente com a formação em Psicologia, por ausência de tempo, não tivemos condições de analisá-los.

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como resultado de exames derendimento centradas no indivíduo.Portanto, nesse processo complexo,

o currículo é visto como a porçãoda cultura - em termos de conteú-dos e práticas (de ensino, avaliação,etc.) - que, por ser consideradarelevante num dado momento his-tórico, é trazida para a escola, issoé, é escolarizada (Williams, 1984).De certa forma, então, um currícu-

lo guarda estreita correspondênciacom a cultura na qual ele se organi- zou, de modo que, ao analisarmosum determinado currículo, pode-remos inferir não só os conteúdosque, explícita ou implicitamente, sãovistos como importantes naquelacultura, como também de que ma-

neira aquela cultura prioriza algunsconteúdos em detrimento de outros,isto é, podemos inferir quais foramos critérios de escolha que guiaramos professores, administradores, cur-riculistas etc, que montaram aquelecurrículo. Esse é o motivo pelo qualo currículo se situa no cruzamento

entre a escola e a cultura (Veiga-Neto, 1995, p. 1). A maioria das políticas curricula-

res oficiais não problematiza co-nhecimento e cultura como campoplural de conflitos e acordos (campode relações dialógicas), fazendo,assim, com que a função cultural da

escola fique “submetida à lógica do

mercado, da formação para habili-dades e competências cuja defini-ção não passa por um debate social

amplo” (Chassot, 1998, p. 11).Nesse sentido, a escola tendeà produção de valores culturaisdominantes, por exemplo, por meioda perspectiva da lógica neoliberal,hegemônica na atualidade, asso-ciada a concepções conservadorasde Educação e de aprendizagem;

o currículo é compreendido quasesempre como meio, instrumento,via de acesso a determinados fins.Essa concepção minora o valor doscurrículos, transformando-os emferramentas manipuláveis de acordocom os objetivos (conservadores)que se quer estabelecer, desqua-

lifica e descola a relação entre aformação e a cultura, tentandotransformar o currículo em umapeça técnica, neutra, apolítica.Em decorrência disso, a reformacurricular é quase sempre perce-bida como simples mudança dedisciplinas comumente observada

nos corredores e salas dos depar-tamentos: PSI 30001 - PsicologiaSocial I é substituída por PSI 30002- Introdução à Psicologia Social. OuPSI 20001 - Psicologia Geral, porPSI 20002 - Introdução à Psicologia.Geralmente, a troca de disciplinasfica à mercê dos ditames do merca-

do, na carona do conteúdo que está

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20mais em voga no momento.

Nesse sentido, por exemplo, asdimensões do que se chama (equi-

vocadamente, diga-se de passagem)de clínica psicológica encontra ter-reno fértil para as propostas: saemde cena os fenômenos relacionadosà tristeza, melancolia etc, e entra adepressão. Estresse, toxicomanias,síndrome do pânico, dentre outras,fazem sucesso nas propostas de

alterações curriculares. Focada emconteúdos, as síndromes e trans-tornos de plantão junto à mídiamedicamentosa impulsionam asreformas, promovendo trocas dedisciplinas (ou de conteúdos dasdisciplinas), mercantilizando o cur-rículo e a formação profissional. Há

uma enxurrada de novas síndromesapresentadas diariamente. A lógicaconteudista, na maioria das vezes,caminha lado a lado com posi-cionamentos pouco críticos parareformas.

Sabemos que as estratégias neo-liberais retiram o debate da Educa-

ção da esfera pública e submete-oàs regras do mercado, e isso, nosdizeres de Silva (1995), não significamaior liberdade e menor regulação,ao contrário, transforma a Educaçãonum objeto de consumo individual,e não de discussão pública, organi- zando processos de maior controle

da vida cotidiana escolar (Silva e

Moreira, 1995). Além disso, claro,há questões internas aos departa-mentos; por exemplo, nas institui-

ções de ensino privadas, ao modifi-car a disciplina de algum professor,em realidade estaremos mexendodiretamente em seu salário. As re-sistências para mudanças, portanto,são grandes.

Mas a compreensão de currí-culo como uma peça técnica não

possibilita pensarmos reformascurriculares como um processo emque se mesclam relações de poder,redes e jogos de interesses, fruto denegociações de sentidos e rela-ções dialógicas entre seus variadosparticipantes. Ora, reformas curri-culares são produções políticas e

coletivas, caso contrário estaremosvivenciando processos de privatiza-ção e de apropriação indébita deperfis formativos. Exemplo disso: aenorme distância entre as diretri- zes curriculares para os cursos dePsicologia e as políticas públicas emgeral e, em especial, as da saúde no

País. O documento das diretrizescurriculares sequer, ou pouco, tocanessa questão.

Em se tratando de definiçõesnas políticas educacionais, se sãoproduções coletivas, estamos sem-pre no campo da ética e da política.É fundamental a participação de

vários atores nesse processo, não

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somente professores e alunos, mastambém usuários dos serviços apli-cados ao curso, supervisores locais,

trabalhadores do sistema de saúde einteressados em geral.Este é um primeiro ponto:

reformas curriculares não podemser reduzidas à troca de disciplinas.Não se resolve nada dessa forma.Não é trocando a disciplina dePsicologia clínica por políticas pú-

blicas em saúde que resolveremos aquestão da própria política públicaem saúde. Aliás, se a troca é nessenível, ou seja, introduzir o conteúdoou o profissional em Psicologia narede de atenção pública à saúde,realizando as mesmas atividadesque sempre realizou, estabelecendo

com o sistema o mesmo modelo deatuação que caracteriza a formaçãoem Psicologia, possivelmente tere-mos, por conseqüência, ao menosdois processos: maior afastamentoda área em relação aos princípiosdo SUS e a constituição de umaperigosa dicotomia entre uma Psi-

cologia para ricos (privada) e umaPsicologia para pobres (pública).Caso continue com o mesmo mo-delo que caracterizou a formaçãoem Psicologia no Brasil, preferimos,então, que sequer permitamos queo profissional psi entre nessa rede.

O ponto nodal, em se tratando

de reformas curriculares, é a cons-

trução de uma proposta político-pe-dagógica que produza uma relaçãovisceral com as políticas públicas,

ou seja, que não reduza essa rela-ção a uma ou duas disciplinas. Apura e simples inclusão de discipli-nas de políticas públicas em saúdenas grades curriculares dos cursosnão garante, efetivamente, nenhumtipo de mudança com as reformas. A sugestão é que os princípios este-

 jam contemplados (e coletivamenteacertados na comunidade acadê-mica, constituindo um compromis-so de todos) na própria propostapolítico-pedagógica do curso.

Diante dessa questão, passamosao segundo tópico: caracterizaçõesda formação em Psicologia.

2) Algumas características daformação em Psicologia

 A formação em Psicologia, noBrasil, há tempos é alvo de muitosestudos e pesquisas. Apesar disso,desde a aprovação da resoluçãoque estabelece o currículo mínimo 

para os cursos de Psicologia4, data-da de 1962, nenhuma mudança foimaterializada em termos documen-tais. Nesses 42 anos, muitas ex-periências locais e pontuais foramconstruídas e vivenciadas, algumascom sucesso e outras nem tanto. Apesar de a nova Lei de Diretrizes

e Bases da Educação, aprovada em4Resolução de 19 de dezembro de 1962, do antigo Conselho Federal deEducação, que fixou o currículo mínimo para os cursos de Psicologia.

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221996, extinguir todas as resoluçõesreferentes ao currículo mínimo nopaís, somente agora foi possível a

construção de uma nova resolu-ção5, baseada nas Diretrizes GeraisCurriculares, para a definição denovos parâmetros para os cursos degraduação em Psicologia. Decorredessa constatação uma primeirapergunta: o que atravancou, portanto tempo, a implementação de

novas propostas curriculares?É compreensível afirmar queas diretrizes curriculares, homolo-gadas em 2004 pelo Ministério daEducação, foram fruto de negocia-ções e de relações de poder. Esseprocesso é eminentemente políticoe implica negociações de sentidos

a todo momento. O documentodas diretrizes curriculares atuais foio possível de ser realizado nessemomento e foi originário de umtrabalho sério e sistematizado deum grande número de pessoas eentidades. Estamos lidando composicionamentos políticos, em que

as distintas psicologias tambémparticipam ativamente, claro, nemsempre de forma igualitária, assimcomo nem sempre com os avançosque alguns de nós desejamos.

O argumento central dessetexto é de que a formação emPsicologia no Brasil (marcada por

encontros entre retóricas técnico-

científicas com lógicas neoliberais),desde seus primórdios, jamais foiuma formação generalista. Ao con-

trário, foi, desde sempre, marcadapor ser uma formação fragmentada,reducionista, liberal, individualizan-te e com especialização precoce.

Vale destacar que não temosnenhuma pretensão em sentar pénuma definição de generalista eafirmar que essa é a mais verdadei-

ra ou a mais correta. Ao contrário,apresentaremos um sentido que,cremos, pode trazer algumas possi-bilidades interessantes de se pensara formação em Psicologia.

Frente a isso, foram seleciona-dos quatro itens das diretrizes cur-riculares considerados centrais para

a implantação das reformas. Doisdeles são permanências de mode-los que já existiam na formaçãoem Psicologia e os outros dois sãonovidades. Apesar das permanên-cias, acreditamos que seja possívelestabelecer uma reforma que possaromper com tradições mais con-

servadoras. Os itens são: ênfasescurriculares e currículo por com-petências (não são novidades) e nú-cleo comum e eixos estruturantes(estes, sim, promovem novidadesnas diretrizes curriculares). A idéiaé tentar remontar algumas formasde se lidar com esses conceitos que

escapem do lugar comum a que a5Parecer n° 0062/2004, do Conselho Nacional de Educação, que teve como relatora a Profª Marília Ancona-Lopez, ho-mologado pelo Ministro da Educação, por meio de publicação no Diário Oficial da União, no dia 12/04/2004.

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Psicologia, por quase um século, sevê destinada.

a) Ênfases curriculares:O Parecer do Conselho Na-cional de Educação nº 0062/2004define ênfases curriculares como“um conjunto delimitado e articu-lado de competências e habilidadesque configuram oportunidades deconcentração de estudos e estágios

em algum domínio da Psicologia”.Mais adiante, as diretrizes salientamque “as ênfases devem ser sufi-cientemente abrangentes para nãoconstituírem especializações, masassegurar o respeito às singularida-des institucionais, às vocações es-pecíficas e aos contextos regionais,

atendendo à abertura proposta pelanova LDB”. Já na Resolução, as ênfases são

definidas, principalmente, por doisartigos:

“Art. 11: Parágrafo 1º. A defi-nição das ênfases curriculares, noprojeto do curso, envolverá um

subconjunto de competências ehabilidades dentre aquelas queintegram o domínio das competên-cias gerais do psicólogo, compatívelcom demandas sociais atuais e/ oupotenciais, e com a vocação e con-dições da instituição”.

“Art. 12 - Os domínios mais con-

solidados de atuação profissional do

psicólogo no País podem constituirponto de partida para a definiçãode ênfases curriculares, sem prejuí-

 zo para que, no projeto de curso, asinstituições formadoras concebamrecortes inovadores de competên-cias que venham a instituir novosarranjos de práticas no campo”.

O receio que temos é que, aoestarem abertas, para os domínios eas inovações em Psicologia, a defi-

nição de ênfases, sem reflexões so-bre as origens do próprio conceito ediante das resistências às mudanças(em função de diversos fatores), osmovimentos de reformas tendam àmanutenção do que já existe, como já apontam alguns estudos e pesqui-sas recentes.

Voltando ao parecer: “cadacurso poderá definir e criar outrasênfases atendendo a abrangênciada área e as inúmeras possibilidadesde avanço do conhecimento e açãopsicológicos.” Tentaremos explorarexatamente essa possibilidade deabertura que o parecer nos apresen-

ta. Antes, porém, apresentaremosnossa compreensão das origens dasênfases.

 Argumentamos que as ênfasescurriculares da Psicologia possuemduas raízes distintas: por um lado,a herança da Psicologia aplicada(Weber e Carraher, 1982; Martins,

1999; Mancebo, 1999), originária

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24da Psicologia brasileira, marcadapor uma retórica técnico-científica. A formação em Psicologia é marca-

da por determinadas características,dentre outras, a hegemonia daPsicologia aplicada (consolidandouma perspectiva tecnicista, comespecialização precoce e fragmen-tação da formação) e centrada emuma perspectiva individualizanteenquanto modelo de atuação. Essa

perspectiva individualizante inicia-se, num primeiro momento, naescola, depois se expande para asfábricas e para o universo do traba-lho e consolida-se na clínica.

 A outra raiz é oriunda das estra-tégias e lógicas neoliberais, presen-tificadas por meio das chamadas

habilitações no debate sobre aformação em Psicologia (Bernardes,2004). Ao final da década de 1990,essas duas raízes se encontram nosprimeiros debates e documentosdas diretrizes curriculares.

Na compreensão da primeiraraiz das ênfases, argumenta-se que

a Psicologia aplicada é, em grandeparte, responsável pela fragmenta-ção da formação em Psicologia emdistintas áreas (Psicologia Clínica,Psicologia Escolar, Psicologia Orga-nizacional etc).

Segundo Patto (1984), na esferada Psicologia Educacional, destaca-

se (embora possa ser estendida para

outras áreas) a perspectiva individu-alizante e curativa como modelo deatuação, orientada para o diagnósti-

co e o ajustamento dos indivíduos.Isso fica claro desde o início daárea, com a fundação do primeirolaboratório de Psicologia Aplicada àEducação no Brasil, o Pedagogium,instituído no Rio de Janeiro, em1890, e do laboratório da EscolaNormal de São Paulo, inaugurado

em 1914. Contribuiu para isso, tam-bém, o rápido desenvolvimento doensino da Psicologia nos programasdo ginásio nacional e das escolasnormais (Brozek e Massimi, 1998).

Na área da Psicologia Organiza-cional, a atuação dos psicologistas (como inicialmente eram chamados

os profissionais psi), sempre foiorientada para funções de recruta-mento, seleção, orientação e treina-mento de pessoal para a crescenteindústria brasileira (vale lembrar amudança na matriz econômica nopaís, durante a década de 1930, deuma base agrária para industrial) as-

sim como para a abertura de postospúblicos de trabalho.Exemplar disso é a afirmação

de Mancebo sobre o Instituto deSeleção e Orientação Profissional(ISOP), ao argumentar que foi re-ferencial para muitos profissionais.Para ela, o ISOP:

Com suas práticas, difundiram a

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 profissão, divulgaram-na, construí-ram o clima necessário à regulamen-tação da Psicologia e imprimiram

 sua marca na Lei que regulamentoua profissão de psicólogo (Mancebo,1999, p. 100).

 A influência da Psicologiaaplicada na regulamentação daprofissão e na formação é tambémdestacada por Martins:

O primeiro anteprojeto de

 profissionalização foi criado peloISOP e pela Associação Brasileira dePsicotécnica, dos quais Mira y Lópezera diretor e secretário geral, respec-tivamente. A presença dos psico-técnicos nos mais variados setoresda vida pública nacional acarretoua necessidade de se estabelecer

algum mecanismo que normalizassea proliferação desses profissionais (Martins, 1999, p. 305).

Em relação à clínica, o exercícioclínico entre os psicólogos sempreteve seus limites claramente esta-belecidos6: o psicólogo, historica-mente, foi concebido como auxiliar

do médico, podendo, no máximo,exercer funções de orientação eacompanhamento clínico. Funçõesou exercícios vinculados a cargosde direção de estabelecimentos einstituições de saúde eram exclusi-vos da classe médica. Como exem-plo, a disputa com a Medicina, que,

no art. 11, inciso III, do Projeto de

Lei n° 3.825, de 1958, (primeiroprojeto a ingressar no CongressoNacional visando a regulamentar a

Psicologia como profissão) ao falardas funções do psicologista, diz oseguinte:

Não poderão os licenciados deuma ou outra modalidade (da Psi-cologia) responder pela organizaçãoe direção de serviços de Psicologiaclínica, os quais requerem a direção

de médico devidamente capacitado; poderão, entretanto, nesses servi-ços, exercer funções de assistentestécnicos.

Os psicólogos, dessa forma, aoencontrar brechas na legislação daépoca para exercer, como profissio-nais liberais, a Psicologia Clínica, o

fazem dando continuidade ao mo-delo de atuação individualizante,hegemônico até então no país, pormeio da Psicologia Aplicada. Con-figura-se aí, portanto, um processoque reduz clínica à relação dual(em determinado setting asséptico einfluenciado pelas escolas teóricas

norte-americanas) e vincula-o acertas concepções de Psicoterapia. A clínica naturaliza-se e inicia umprocesso de psicologização das re-lações cotidianas, a cultura psi, queterá duras conseqüências para aPsicologia (visto seu aproveitamentopela ditadura militar), como pode-

mos ver nos trabalhos de Coimbra6Tentativas de limites e proibições que ainda perduram: vide o Parecer

 Alcântara-Cabernite (1973), o Projeto Julianelli (1980), e, atualmente, oconhecido Ato Médico (Projeto de Lei Substitutivo n° 25/2002).

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26(1995) e Figueira (1988), dentreoutros.

Mas, retornando à nossa ques-

tão central, a formação em Psicolo-gia no Brasil é originária da Psicolo-gia Aplicada, que se consolidou nastrês áreas tradicionalmente institu-ídas: Psicologia Escolar, PsicologiaOrganizacional (ou do Trabalho) ePsicologia Clínica. A instituciona-lização desse processo está na lei

n. 4.119/62, que regulamenta aprofissão do psicólogo. Ali, o art. 16apresenta que: “As faculdades quemantiverem cursos de psicólogodeverão organizar serviços clínicose de aplicação à educação e aotrabalho (...)”.

Esse processo de fragmentação

da Psicologia ainda se encontraem franca expansão. Atualmente,são inúmeras as especialidades daPsicologia. Esse processo estabelecerepercussões diretas na graduaçãoem Psicologia, por exemplo, os cur-rículos recortados e “entupidos” detantas disciplinas de distintas áreas

quanto a formação dos professorespermite, disciplinas sem nenhuma,ou pouca, proposta de articulaçãoentre si e isoladas da proposta polí-tico-pedagógica do curso.

Mas, ao naturalizar e cristalizaro fenômeno da Psicologia Apli-cada, a retórica técnico-científica

transforma em inevitáveis as áreas

de atuação que se encontram naformação (Psicologia Clínica, Psico-logia Escolar e Psicologia Organi-

 zacional, principalmente), divisãoque pode cristalizar-se e renovar-se,atualmente, com o conceito deênfases curriculares. A maioria doscursos de Psicologia no país adota,desde a implantação do currículomínimo, a divisão oriunda da Psico-logia Aplicada. Assim, corremos o

risco de ver as reformas curricularessubstituírem “Psicologia Clínica” por“Psicologia e Processos Clínicos”;“Psicologia Escolar” por “Psicologiae Processos Educativos” etc.

Reduzir as ênfases às áreas daPsicologia Aplicada é dar um passoatrás. Isso em um duplo sentido:

primeiro se estabelece o continuís-mo como princípio organizador dareforma. Aí, perguntamos: o queiremos reformar? Se o eixo principalda reforma não se modifica... Emsegundo, a diferença entre a matrizformativa anterior e a nova é que,em boa parte dos cursos, os alunos

percorriam as três áreas distintas,configurando sua formação dessamaneira. Com o novo modelo,o curso pode manter as distintasaplicações, e o aluno opta por umadelas, reduzindo sua participaçãoe vivência no processo de forma-ção. As ênfases podem provocar a

radicalização da especialização da6 Qualifica como exclusivamente dos médicos várias atividades relacionadas à saúde e subordina a maioria das profis-

 sões da saúde à Medicina.

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formação em Psicologia já na gradu-ação. Em termos de formação, issorepresentaria o que Certeau (1996)

caracteriza como o empobrecimen-to da experiência, tão comum nocotidiano, ao se referir aos limitesimpostos às pessoas em função depolíticas neoliberais, seja no campodo trabalho, seja no da educação.

Outra fragmentação a sersuperada origina-se de uma certa

lógica liberal. Diz respeito às antigashabilitações: bacharéis, licenciadose psicólogos. A Lei nº 4.119/62 ea Resolução de 19/12/1962, quedefinem o currículo mínimo paraos cursos de Psicologia, são claras:existem três cursos de Psicologia:bacharel, licenciado e formação do

psicólogo. Em 1977, com o parecern. 12/77, do antigo Conselho Fede-ral de Educação (contrariamente aoparecer do ano anterior, nº 1.677/ 76), os distintos cursos são forjada-mente interpretados como habilita-ções. A implicação disso é que, des-sa forma, possibilitava-se a criação

de cursos mais curtos e baratos porparte das universidades particulares.O contexto de aprovação desse pa-recer coincide com o momento doboom das universidades particularesno país. Vale lembrar que o númerode cursos de Psicologia durante adécada de 1970, no Brasil, cresceu

assustadoramente.

 Além de tornar os cursos maisbaratos7, as distintas habilitaçõeseram preocupações de alguns

profissionais psicólogos acadêmi-cos que trabalhavam no campo dapesquisa. Dessa forma, poderiam,rapidamente, dar conta de suprira lacuna da pesquisa psicológicano país, por isso o bacharelado emPsicologia ser uma habilitação comcarga horária menor que em relação

à formação de psicólogos. Atualmente, apesar de nãohaver mais referências diretas (comexceção de que a licenciatura emPsicologia será remetida às diretri- zes das licenciaturas), é aqui queas duas raízes se encontram: aestratégia neoliberal (das habilita-

ções) encontra-se com a retórica daPsicologia Aplicada (fragmentaçãoda Psicologia) por meio das ênfasescurriculares. É comum não somentepercebermos que os cursos estãoprovocando um certo continuísmono perfil formativo do psicólogo aoreeditar as áreas tradicionais, mas

também escutarmos as tentativas deconstrução de ênfases em pesquisa. Aliás, o próprio documento deixaisso claro, quando relaciona comosugestão de ênfase em primeirolugar a “Psicologia e os processosde investigação científica”. Será quepesquisa é algo a ser deixado para a

ênfase? Isso implica o fato de que o7É importante deixar claro que defendemos o ensino público, gratuito e dequalidade. Tornar os cursos mais baratos é uma estratégia de mercantiliza-ção da educação e que nem sempre é associada à qualidade na formação.

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28psicólogo que não fizer essa ênfasenão será um pesquisador? E aqueleque fizer essa ênfase não poderá ser

um psicólogo, no sentido estrito dotermo? Por que ainda a manutençãodessas fragmentações?

Trata-se, portanto, da reediçãoda lógica das habilitações no inte-rior das ênfases. Os processos depesquisa são importantes e devemestar presentes no núcleo comum e

serem estendidos para todas as ên-fases. O abandono da idéia de queformaremos um psicólogo ou umpesquisador ainda é um dos maioresentraves nos processos de reformacurricular. Queremos um psicólo-go pesquisador e um pesquisadorpsicólogo simultaneamente.

 Assim, como superar essas duasfragmentações: das áreas clássicasoriundas da Psicologia Aplicada edas habilitações oriundas da lógicaliberal? Como superá-las traba-lhando com uma perspectiva quealmeja uma formação generalista?Como trabalhar com uma formação

generalista por meio das chamadasênfases curriculares?Essas respostas são construções

coletivas, dialógicas e de longoprazo, mas algumas pequenas ques-tões estão mais claras: trabalhamoscom uma concepção de formaçãogeneralista que não se reduz à área

de conhecimento ou ao campo de

atuação. Também não trabalhamoscom definições para formação gene-ralista que estabelece a possibilidade

de o profissional atuar em distintasáreas ou campos, recolhendo umpouquinho da experiência de cadauma delas; tampouco como umprofissional eclético, que conheceum pouco de cada coisa, estabele-cendo vôos panorâmicos pelas esco-las psicológicas; menos ainda aquele

que fica com sua formação somenteno núcleo comum... Formação bási-ca é outra coisa.

São muitos os sentidos produ- zidos para definir formação gene-ralista. Não pretendemos elaboraruma definição única, mas contribuircom novos sentidos que talvez

falem mais das possibilidades dea Psicologia brasileira articular-sevisceralmente com seus contextos epoder trabalhar a favor de um planocivilizatório mais humano, solidárioe ético.

Como afirma Eizerik: “Não é olugar que define a postura de um

profissional - embora nem todospensem assim - é antes a capaci-dade de refletir criticamente sobreteorias, métodos e práticas, avalian-do resultados e pensando acerca dasnecessidades do país em que nosencontramos” (Eizerik, 1988, p.33).Preferimos trabalhar no sentido

de que formação generalista diga

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respeito ao perfil do pensamentocrítico e de levar em conta a com-plexidade do que chamamos de

realidade. Trata-se de uma moda-lidade de formação que permite aarticulação de distintos temas oriun-dos das áreas clássicas, indepen-dentemente do local de atuação oudo referencial teórico utilizado peloprofissional, mas sempre sensível aoseu contexto.

Em uma escola (campo deatuação), por exemplo, várias áreasestão presentes e não somente aPsicologia Escolar: Psicologia Clí-nica, Psicologia Organizacionalou do Trabalho, Psicologia Social,Psicologia Comunitária, Psicologia jurídica, Psicologia do Esporte etc.

 As possibilidades são infinitas. Maspodemos avançar, pois as articula-ções não são entre as áreas, e, sim,entre o que deriva delas: sofrimen-to, processos e relações de trabalho,relações comunitárias, familiaresetc. É uma concepção de formaçãogeneralista, portanto, que rompe

com a fragmentação da Psicologia.É aquela que consegue dar conta dacomplexidade que é a articulaçãoentre os distintos temas ou questõesque derivam de um campo ou áreaqualquer.

Mas, como fica isso quandotratamos da implantação de ênfases

curriculares? Podemos pensar as

ênfases por meio de um processolingüístico, o oxímoro, que é a figurade linguagem em que se combinam

palavras de sentido oposto que pa-recem excluir-se mutuamente, masque, no contexto, reforçam a expres-são, ou seja, é a junção de termoscontraditórios entre si; por exemplo,“pensar o impensável” ou “compararo incomparável”. Assim, no campoda formação em Psicologia, como

construir uma ênfase ampla?Na tentativa de construção deuma ênfase ampla, é necessária aruptura com a retórica técnico-cien-tífica e também com as demandasneoliberais. Não se deseja mais umpsicólogo pela metade, fragmenta-do, reduzido a concepções psicolo-

gicistas. O processo de adjetivaçãoda Psicologia (Psicologia Clínica,Psicologia Escolar, Psicologia Orga-nizacional etc) não sustenta mais aformação na graduação. As ênfasesnão podem ser reduzidas às áreasde conhecimento, tampouco aoscampos de atuação; também não

podem ser reduzidas quando de suamaterialização em um estágio ou auma ou outra disciplina.

Para a construção de ênfasesamplas, sugerimos a construção deênfases substantivas, por exemplo:saúde. Não se trata da Psicologia dasaúde, mas saúde enquanto substan-

tivo. O processo de substantivar as

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30ênfases se dá por meio de questõescentrais na vida em sociedade; nocaso do exemplo saúde, é estabele-

cer articulações com os processo desaúde e adoecimento das pessoas,os processos de ensino-aprendiza-gem, as novas tecnologias, as redesde atenção, as comunidades, oconsumo, a diversidade organizacio-nal, a gestão do trabalho, o traba-lho formal e o informal, o trabalho

infantil etc. Ainda como desafios para oscursos na construção da reforma emgeral e, em especial, das ênfases,outras indagações são importantes:que demandas focam a existênciadesse curso? Qual é a história daregião e do curso? Que profissio-

nal está sendo formado para essasdemandas? Que perfil formativo é omais interessante no atendimento/ transformação dessas demandas? Aque visam os cursos? Que propostapolítico-pedagógica está aí cons-truída? Trata-se de uma propostaconstruída coletivamente?

Enfim, que vocações (vozes, nosentido bakthiniano) compõem essecurso? Que diferentes posições enegociações (no campo político) sãoengendradas na composição doscursos? Vale lembrar que a palavraênfase vem do latim emphàsis,is, esignifica “força enunciativa”; portan-

to, que enunciados ou vozes com-

põem um curso ou uma ênfase?Talvez, para isso, a premissa

sugerida por Ibáñez (2001) seja

necessária: que “los criterios quedefinen la utilidad de la Psicologíason criterios que no pueden estaren manos de los psicólogos sino quepertenecen a un debate donde loque está en juego son las opcioneséticas, normativas y políticas de lapoblación” (Ibañez, 2001, p. 245).

Sua sugestão é abrir a Psicologia a lairrupción de la gente. Aí, qualquerlógica corporativa, seja nos espaçosacadêmicos seja nos espaços profis-sionais, cai por terra.

Vale lembrar que o argumentode Ibáñez já era defendido por bra-sileiros durante a década de 1980,

como, por exemplo, por Carvalho,quando afirma que:É necessário criar mais canais

de retroalimentação para os cursos:tornar o contato entre o curso e a

 sociedade mais concreto e mais dire-to (não depender apenas de leis, porexemplo). Acho que isso pode ser

feito de várias formas: pelo contatocom condições concretas em que psicólogos estão atuando, principal-mente aquelas que, de alguma for-ma, fujam às atuações convencionaise representem uma expansão nasmodalidades de atuação; pela pes-quisa sobre necessidades que efetiva-

mente poderiam ser atendidas pelos

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 psicólogos, e desenvolvimento deinstrumentos para esse atendimento,e até pela simples conscientização

dos alunos sobre as relações entre a profissão e a sociedade (Carvalho,1982, pp. 16-17).

Dessa forma, a construção deênfases amplas, substantivas e, por-tanto, temáticas pode ser um bomcaminho, um caminho que rompecom a lógica da Psicologia aplicada

e com as estratégias neoliberais. Aspolíticas públicas, em geral, apresen-tam temas que podem ser explora-dos nessa perspectiva. Os princípiosdo SUS, por exemplo, estabelecemuma excelente oportunidade paraas rupturas que se desejam, comoveremos mais adiante.

b) Currículo por competências: A questão central das competên-

cias é que elas podem acirrar o dis-curso individualizante na Psicologia,ou seja, a noção de competênciascompreendida como capacidades,habilidades ou atitudes do indivíduo

aprofunda a lógica de que os suces-sos e os fracassos são de exclusivaresponsabilidade do próprio indi-víduo. Nesse sentido, na escola, acriança fica como única responsávelpelo fracasso escolar; no universodo trabalho, é o trabalhador o res-ponsável pelo adoecimento ou pelo

acidente do trabalho; na comunida-

de, é o cidadão o único responsávelpela sua própria miséria; na clínica,é o sujeito o único responsável por

seu sofrimento etc. Em suma, é umconceito que naturaliza as relaçõesdepositando no indivíduo a respon-sabilidade pelos acontecimentos.

No campo da formação, trata-sede um conceito que foi, diríamos,psicologizado. Centrado no indi-víduo, marcado em seu corpo (ou

psiquismo), qualifica-o ou não paraum determinado saber-fazer. Retira-se, portanto, o caráter político daformação, creditando exclusividadeao indivíduo pela responsabilidadeda formação. Esse posicionamentoreforça o caráter tecnicista marcantena formação em Psicologia. Afas-

ta o psicólogo do campo político,dialógico e crítico. Retira-se, dessaforma, a possibilidade de realizaçãode leituras que levem em conta acomplexidade disso que chamamosrealidade.

Presenciamos, dessa forma, umasobrevalorização do indivíduo que,

simultaneamente, resgata e repo-tencializa os ideais liberais. Umaimplicação imediata disso para aPsicologia é que os objetos quecompõem a realidade psicológicasão lidos como originários de umasuposta natureza humana, nas quais já estariam naturalmente preestabe-

lecidos. Podemos perder, por exem-

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32plo, a possibilidade de, no debateatual sobre formação em Psicologia,competências e habilidades não se-

rem compreendidos como conceitosderivados de relações dialógicas.Boa parte dos sentidos produ-

 zidos para designar competênciasderiva das chamadas pedagogiaspedagógicas (Varela, 1991). A lógicados currículos por competência,quando competência é reduzida

às pedagogias  psicológicas, possui,por conseqüência, a permanên-cia da lógica conteudista herdadado currículo mínimo. Bernardes(2004) argumenta que o repertóriolingüístico utilizado para o debatesobre a formação em Psicologiamodificou-se ao longo dos tempos

(principalmente após a entrada danova LDB, em 1996), porém seussentidos permaneceram os mesmos,ocorrendo uma substituição naseguinte ordem: “matérias” foramsubstituídas por “competências”;“disciplinas”, por “habilidades”;“ética”, por “atitudes e condutas”;

“conteúdos”, por “conhecimentos”;ou seja, a lógica disciplinar é ainda asustentadora das relações de ensino-aprendizagem. Segundo Machado:

 A organização da escola é, e con-tinuará a ser, marcadamente discipli-nar; os professores são, e continuarãoa ser, professores de disciplinas, não

havendo qualquer sentido na carac-

terização de um professor de “com- petências” (Machado, 2002, p, 139).

O desafio é claro: como pode-

mos dar significado, de outras for-mas, ao que venha a ser competên-cia? Como produzir outros sentidosque possam tornar complexas asrelações de ensino-aprendizagem eproporcionar uma leitura crítica darelação entre cultura e formação?Como podemos desnaturalizar esse

conceito?Propomos que a construçãodo perfil formativo por meio dascompetências leve em consideraçãouma perspectiva etnometodológica,ou seja, uma proposta de pensar“competência” como uma relaçãodialógica, um processo de reflexão

compartilhado, em que várias ques-tões estão em jogo: a compreensãodos percursos realizados pelos alu-nos e alunas; a busca de interven-ções pedagógicas favoráveis à apren-dizagem de todos; a compreensãoda sala de aula como um espaçodialógico; a reflexão constante sobre

o cotidiano; a realização de traba-lhos coletivos e solidários; o sabere o não saber como simultâneos ecomplementares; a busca da dife-rença em função do enriquecimentodo processo de ensino-aprendi- zagem; a negociação cotidiana; amemória das instituições envolvidas

e seus contextos; a possibilidade de

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construção de projetos coletivos deação em âmbito político e social,etc. A idéia é ampliarmos o conceito

para uma competência relacionalou, em outros termos, uma compe-tência dialógica, e não reduzi-la auma lista de capacidades individuaise psicológicas (habilidades), mas darcondições para a dialogia e, a partirdaí, perguntar o que, na propostapolítico-pedagógica do curso, pode-

mos avançar para garantir as condi-ções de dialogia.Por exemplo, ao definirmos as

competências para o trabalho po-líticas públicas em saúde, é impor-tante que tais definições se dêem apartir do diálogo entre professores,supervisores acadêmicos, alunos,

representantes do curso, superviso-res locais, trabalhadores, usuáriose familiares daquele campo emespecial. Não se trata mais de umacompetência circunscrita a um feixede habilidades que o aluno possa vira desenvolver, mas de ressignificar opróprio sentido de competência e,

por conseguinte, da formação.

c) Núcleo comum:Dois artigos tentam definir o

núcleo comum nas diretrizes curri-culares; são eles:

 Art. 6º - A identidade do cursode Psicologia, no país, é conferida

através de um núcleo comum de

formação , definido por um conjun-to de competências, habilidades econhecimentos.

 Art. 7º - O núcleo comum daformação em Psicologia estabeleceuma base homogênea para a for-mação no país e uma capacitaçãobásica para lidar com os conteúdosda Psicologia, enquanto campo deconhecimento e de atuação.

 Justificando a introdução da

noção de núcleo comum nas dire-trizes, a Resolução nº 0062/2004afirma que:

“A identidade do curso dePsicologia no País, por sua vez, égarantida por um núcleo comum,que assegura uma base homogêneapara a formação e para a capacita-

ção para apreender e lidar com osconhecimentos da área.O núcleo comum é definido

por um conjunto de competênciasbásicas que se reportam a desempe-nhos e atuações iniciais requeridasdo formando em Psicologia e visama garantir ao profissional o domínio

de conhecimentos psicológicos e acapacidade de utilizá-los em dife-rentes contextos que demandama investigação, análise, avaliação,prevenção e intervenção em proces-sos psicológicos”.

 A primeira questão, portan-to, parece ser não reduzir núcleo

comum a conteúdos básicos. Os

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34conteúdos básicos são parte datrajetória do aluno em seu curso efazem parte do núcleo, mas não se

encerram nele. Talvez seja interes-sante trabalhar núcleo comum comoum acordo, no campo dialógico,entre distintos cursos do país ou deuma determinada região. Ganharelevo, assim, o campo político paraa constituição da formação.

Dessa forma, temos também a

possibilidade de articulações entredistintos cursos em uma mesmaregião ou localidade. Esse diálogo éfundamental e aqui há um grandeespaço de trabalho entre os repre-sentantes dos cursos e entidadescomo a ABEP.

d) Eixos estruturantes: Assim como o núcleo comum,os eixos também são diferenciais dasdiretrizes em relação às propostaseducacionais anteriores.

 As diretrizes definem os eixosestruturantes como:

“Tais eixos têm por finalidade

garantir a congruência dos cursos,que devem explicitar seus pressu-postos e fundamentos epistemológi-cos e históricos, teórico-metodoló-gicos, de procedimentos, interfacese práticas e garantir a assimilaçãode conhecimentos já sedimentadosno campo da Psicologia” (Parecer n°

0062/2004, p. 2).

São apresentados, a partir daí,seis eixos estruturantes:

. Fundamentos epistemológicos e

históricos;. Fundamentos teórico-metodo-lógicos;

. Procedimentos para a investiga-ção científica e a prática profissional;

. Fenômenos e processos psico-lógicos;

. Interfaces com campos afins do

conhecimento;. Práticas profissionais.

O trabalho com os eixos pos-sibilita construir a estrutura e aorganização curricular, com pos-sibilidade de escapar da lógicadisciplinar. O curso pode, a partir

daí, ser pensado de várias formas,por exemplo, lógicas modularesatravessando e sustentando toda aproposta curricular.

 A idéia é que os eixos sejamtransversais ao curso, estabelecendoarticulações horizontais entre os mó-dulos ou disciplinas e articulações

verticais entre o núcleo comum e asênfases.

3) Algumas possibilidadesde articulações entre o SUS e oscursos de Psicologia.

Esse segundo tópico problema-tiza algumas possibilidades (ou não)

de articulações entre os princípios

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do SUS e os cursos de Psicologia.Vale lembrar que jamais (ou pouco)a formação em Psicologia orien-

tou-se para as políticas públicas. Aocontrário, a formação orientou-se (eainda se orienta) para produzir umprofissional liberal e para estabelecerrelações de privatizações com osespaços públicos - vide o que ocorreem grande parte das clínicas-escolanos cursos de Psicologia, em que,

além de existirem profissionais quepouco contato ou interesse possuemcom as políticas públicas, são isola-das dos cursos e distantes de suaspropostas político-pedagógicas.

O documento das diretrizes cur-riculares possui algumas potênciasque podem ser bem exploradas, por

exemplo, abre margens para possí-veis cursos de Psicologia com ênfasescurriculares em questões derivadasde políticas públicas. Para que issoocorra, claro, não basta somente ainclusão de uma ou outra discipli-na na grade curricular do curso. Aarticulação entre a formação em

Psicologia e as políticas públicaspoderia, nesse sentido, ser orgânicae perpassar toda a proposta pedagó-gica dos cursos de Psicologia, estardiretamente vinculada às própriasdiretrizes curriculares. Para queisso ocorra, não basta a mobiliza-ção entre professores e alunos, mas

também entre supervisores locais,

usuários, gestores dos serviços desaúde, conselhos, sindicatos, etc.

Uma das possibilidades de

articulações, nesse momento, se dápor meio de experiências locais,regionais, específicas e pontuais que,interligadas com outras, constru-am uma rede de diálogos e ações,ampliando-se cada vez mais, comexperiências que sejam reflexivas,críticas e que possam romper com

alguns mitos relacionados à produ-ção de conhecimento psicológico,por exemplo, o próprio lugar da Psi-cologia tendo o significado de umaprática social como qualquer outrae a problematização de seus usose efeitos no cotidiano. Uma dessasdiscussões pode ser pela problemati-

 zação do que venha a ser a clínica.Em nosso entendimento, a aca-demia está muito distante de preo-cupações com essa articulação. Emcontrapartida, parece que o Ministé-rio da Saúde começou a movimen-tar-se ao afirmar querer chegar à:

“Construção de relações de

cooperação entre o SUS e as institui-ções formadoras, o que deve resultarem melhor integração dos serviços,maior produção de conhecimentodirigida às necessidades do sistemae, sobretudo, intensificação dosprocessos de mudança na formaçãode graduação dos profissionais de

saúde.”88Documento coletado em 03/09/2004 no site: http://portal.saude.gov.br/ 

 saude/area.cfm?id_area=386

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36 Já o documento “Políticas de

Formação e Desenvolvimento parao SUS: caminhos para a educação

permanente em saúde”, da Secre-taria de Gestão do Trabalho e daEducação na Saúde e do Depar-tamento de Gestão da Educaçãona Saúde, do Ministério da Saúde,propõe como metas nas mudançasdos cursos de graduação as seguin-tes questões:

- Desenvolver a orientação aoSistema Único de Saúde e a pers-pectiva da multiprofissionalidade etransdisciplinaridade sob o conceitode clínica ampliada de saúde (o tra-balho em equipe e a integralidade daatenção à saúde) (grifos nossos).

Os pontos convergentes en-

tre uma formação generalista e oprincípio da integralidade do SUSsão apresentados tomando porbase o trabalho de Mattos (2006).O autor, em busca de uma defini-ção para integralidade, argumentaque esse conceito é polissêmico,pleno de sentidos os mais diversos,

sem uma definição única, mas comuma proposta política claramenteestabelecida.

Mattos (2001) traz, ao menos,um conjunto de sentidos distintospara a compreensão do conceitode integralidade: o primeiro con- junto é oriundo do leque que vai

da Medicina integral à prática da

integralidade. Esse conjunto realizaduras críticas à fragmentação daMedicina e ao seu reducionismo

biologicista. Estabelece, a partir daí,uma perspectiva de que tanto a frag-mentação quanto o reducionismosão conseqüências da formação aque os profissionais em saúde sãosubmetidos.

Esse conjunto delimita a integra-lidade como quase exclusivamente

centrada a uma atitude do profis-sional da saúde, que poderia sertrabalhada no período de formaçãodo sujeito. É a atitude dos médi-cos de não reduzir o paciente aoaparelho ou sistema biológico que,supostamente, produz o sofrimento.Essa atitude, para esse conjunto de

sentidos de integralidade, deveriaser produzida nas escolas médicas.(Mattos, 2001).

Ora, no caso da formação emPsicologia, a fragmentação do saberem áreas de conhecimento autô-nomas e distintas produz efeitospróximos. Os reducionismos psico-

logicistas, depositando no indivíduoa responsabilidade por todos osacontecimentos da vida, são pen-samento corrente em nossa área, e,por fim, a crítica de que esses pro-blemas são originários da formação, já é lugar comum.

O segundo conjunto vem da

saúde coletiva e estabelece um

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novo foco para críticas: descentraa questão da formação, ou curricu-lar, e orienta-se para as relações de

trabalho. São elas que devem sermodificadas, pois a prática médicaestá calcada em um modelo liberalde atuação, e presenciamos, cadavez mais, o assalariamento dosmédicos.

Outro foco problematizado pelasaúde coletiva é a crescente medi-

calização da sociedade, sustentadaprincipalmente pela racionalidademédica. Para além de provocar oafastamento entre a saúde coletiva ea Medicina, essas questões tornarammais complexas o conceito de inte-gralidade, trazendo para dentro daspráticas de saúde o foco da questão.

Em outras palavras, a fragmentaçãoe o reducionismo não são origináriossomente das escolas profissionaismas também da própria forma comose organizam as relações de trabalhoentre os profissionais.

 Assim, por enquanto, o concei-to de integralidade varia de uma

atitude de certos profissionais àmarca da prática profissional. Mattospropõe a articulação entre as distin-tas concepções, pois, para o autor, apostura dos profissionais é algo fun-damental para a integralidade, mas,em muitas situações, a integralidadesó se realizará com incorporações

ou redefinições mais radicais da

equipe de saúde e de seus processosde trabalho (Mattos, 2001).

Há ainda, um terceiro conjun-

to de sentidos para integralidade.Trata-se de determinadas configu-rações de políticas específicas quetentam dar conta de um problemade saúde em especial. Geralmente,são respostas governamentais aosproblemas de saúde. São as políticasespeciais, cuja característica prin-

cipal é não reduzir os sujeitos desuas políticas a objetos descontex-tualizados. O movimento feministafoi um dos principais organizadoresdessa perspectiva, pois recusava-sea reduzir as políticas de atenção àsaúde da mulher a um conjunto deórgãos ou sistemas característicos do

sexo em questão. A partir desses conjuntos, a inte-gralidade, portanto, passa a ser nãosomente uma questão de formação,mas um modo de organização dotrabalho que busca uma apreensãoampliada das relações entre saúdee doença, ou seja, a integralidade

emerge como um princípio organi- zador do processo de trabalho nosserviços de saúde e da ampliaçãodas possibilidades de apreensão dasnecessidades de saúde da popula-ção. Nesse sentido, Mattos (2004;2001) argumenta que a relaçãodialógica é princípio básico para o

exercício da integralidade.

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38Resumidamente, Mattos (2001),

ao estabelecer pontos comuns paraos vários sentidos de integralidade,

propõe pensarmos como uma impli-cação a recusa à fragmentação e aoreducionismo, recusa à objetificaçãodos sujeitos e uma afirmação para aabertura ao diálogo.

 Ampliando a questão para aPsicologia, o que nós, psicólogos, te-mos a oferecer às políticas públicas

em geral e às de saúde em particu-lar? Claro, não há possibilidade depensarmos as reformas curricularesde forma isolada ou afastada daspráticas dos profissionais em Psico-logia da rede de saúde. Ora, boaparte dos locais de estágios dos cur-sos de Psicologia dá-se exatamente

na rede pública de saúde! Claro, arelação ainda é quase exclusivamen-te locatária dos cursos em relaçãoàs instituições, mas, independente-mente disso, como é organizado oexercício de estágio com os alunos?Que possibilidades de organiza-ção de processos articuladores de

teorias e práticas existem aí? Quecompromissos são estabelecidos?Que acompanhamentos existem?Como é a relação com os superviso-res locais (quando existem) com osalunos? E essa mesma relação coma equipe profissional da instituição?Como são os contatos e trabalhos

conjuntos com os professores e

supervisores dos cursos? Os profis-sionais da rede de atenção à saúdeparticipam das reformas nos cursos?

São convidados? Acreditamos que, pelo caminhoda formação, a questão seja res-pondida em parte, ou seja, recusa àfragmentação do saber psicológico,recusa ao reducionismo psicologicis-ta, individualizante e objetificador,ampliação das possibilidades de

modos de atuação que não somenteas centradas no profissional liberal,abertura e sensibilidade às compe-tências e relações dialógicas. Dessaforma, acreditamos que os sentidosde formação generalista possam serminimamente articulados aos prin-cípios do SUS e, em especial, ao de

integralidade.

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 Áquilas Mendes9

 As grandes conquistas da políticasocial existente no Brasil - o SistemaÚnico de Saúde (SUS), a Previdên-cia Social Pública, o Seguro Desem-

prego e o Benefício de PrestaçãoContinuada (BPC), concedido pelaassistência social ao idoso de baixarenda e aos portadores de deficiên-cia - são herança direta da demo-cratização do país e da chamadaConstituição Cidadã. Todas elasfazem parte da Seguridade Social,

desenho institucional da proteçãosocial brasileira.Para aqueles que vêm acompa-

nhando, por exemplo, a institucio-nalização do financiamento dessaspolíticas, ao longo dos últimos 17anos, e suas tensões com a políticaeconômica, têm assistido quase

que o abandono, principalmentepor parte do Governo Federal, doconceito de Seguridade Social, emgeral, e da saúde, em particular, taiscomo concebidos na Constituição,e, por conseqüência, de suas basesde financiamento. Em outras pala-vras, trata-se de reconhecer que, ao

longo desse período, a sociedade

 As inquietudes do financiamento da Seguri-dade Social e o SUS

brasileira presenciou uma trajetóriaem que a área social manteve-serefém da econômica, sofrendo aredução de um sistema de proteçãosocial inspirado no princípio da uni-versalidade e na solidariedade entre

as áreas que integram a seguridade.O objetivo deste artigo é recons-truir o processo de institucionali- zação do financiamento do SUS edestacar os conflitos existentes coma política econômica dos anos 1990e 200010. O artigo está dividido emduas partes. A primeira parte aborda

o percurso em que, ao longo dos 17anos de institucionalização do SUS,foram afetados a noção e os aspec-tos da política pública de saúdeuniversal, ancorada nos princípiosda Seguridade Social consolidadosna Constituição de 1988. A segundaparte destaca os conflitos provoca-

dos pelo Governo Lula, com ênfasena forma com que sua equipe eco-nômica considera e trata os recursosda Seguridade Social.

1. O tenso percurso do finan-ciamento da Seguridade Social edo SUS

No tocante às políticas sociais,9Professor de Economia da FAAP/SP, vice-presidente da Associação Brasilei-ra de Economia da Saúde e coordenador de Gestão de Políticas Públicasdo Centro de Estudos de Pesquisa de Administração Municipal/SP.

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42a Constituição de 1988 significouuma inflexão no tratamento atéentão concedido pelo Estado. Os

constituintes, certos da necessidadede se construir caminhos seguros emrelação ao resgate da imensa dívida

 social brasileira herdada do regimemilitar, procuraram instituir, na Cons-tituição, direitos básicos e universaisde cidadania, assegurando o direito à

 saúde pública, definindo o campo da

assistência social, regulamentandoo seguro-desemprego e avançandona cobertura da previdência social.Essas conquistas foram incorporadasem capítulo específico - o da seguri-dade social, consolidando a solida-riedade entre a saúde, a previdênciae assistência social.

Para responder às exigências dovolume de recursos necessários aesse tipo de proteção social, am-pliados no conceito de SeguridadeSocial, e também para tornar ofinanciamento menos dependentedas variações cíclicas da economia(principalmente do emprego junto

ao mercado formal de trabalho),os constituintes definiram que seusrecursos teriam como base váriasfontes. Dentre elas, destacam-se: osalário (contribuições de emprega-dos e empregadores), o faturamento(trazendo para seu interior o Fundode Investimento Social - Finsocial11 

e o Programa de Integração Social e

de Formação do Patrimônio do Ser-vidor Público - PIS/Pasep), o lucrolíquido das empresas (contribuição

nova introduzida na Constituição,denominada Contribuição sobre oLucro Líquido - CLL) e a receita deconcursos e prognósticos (loterias). Além dessas fontes, a Segurida-de Social contaria com recursosde impostos da União, Estados eMunicípios. Ao mesmo tempo, os

constituintes preocuparam-se emdefinir que esses recursos fossemexclusivos da proteção social, porémnenhum governo que se seguiu àConstituição de 1988 cumpriu taldeterminação.

Também houve a preocupaçãoem definir que o tratamento dos

recursos da seguridade social nãopoderia ser distinto de seu concei-to de proteção, significando que,no seu interior, não teria sentido avinculação de recursos. Esperava-seque, a cada ano, quando da discus-são do orçamento, fosse definida adistribuição do conjunto de receitas

previstas para as diferentes áreas. A única vinculação prevista ficoupara os recursos do PIS/Pasep, issoporque dizem respeito ao programaseguro-desemprego e ao pagamentodo abono PIS/Pasep, sendo que 40%de sua arrecadação são destinados aempréstimos realizados pelo BNDES

às empresas.10Esta parte apóia-se no artigo elaborado por Áquilas Mendes e Rosa Marques (2005).11O Finsocial deu lugar, em 1991, à Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social(Confins).

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 Após 17 anos de promulgaçãoda Constituição de 1988, não forampoucos os embates ocorridos no

interior da Seguridade Social. Paraalguns, as tensões havidas na im-plementação da Seguridade Socialdeixaram claro a impossibilidade desua existência administrativa - namedida em que a legislação ordiná-ria separou as três áreas - e financei-ra, uma vez que, na prática, ocorreu

uma progressiva especialização dasfontes.Em que pesem os vários embates

provocados pelos constrangimentoseconômicos, o modelo de Segurida-de Social criado demonstrou capa-cidade de resistência às conjunturasmais problemáticas. O exemplo

maior dessa resistência foi dado pelomovimento pela universalização dasaúde, no seu percurso de constru-ção do Sistema Único de Saúde.

 A questão financeira da área dasaúde tem sido condicionada pelotratamento concedido à Previdênciano interior da Seguridade Social,

de um lado, e, de outro, a políticade austeridade fiscal implementadapelo Governo Federal nas políticassociais, decorrente de seu objetivode promover o equilíbrio orça-mentário com elevados superávits primários.

Embora os constituintes tenham

definido que os recursos da Segurida-

de Social não poderiam ser alocadospara outros fins que não aqueles daPrevidência, da saúde e da assis-

tência, e que, ao mesmo tempo,não haveria vinculação das fontesaos diferentes ramos12, entre 1989e 2004, isso foi sistematicamentedesrespeitado.

O primeiro conflito ocorrera jáem 1989, quando o então Finsocialcontribuiu como fonte de recur-

sos importante para a despesa deencargos previdenciários da União,que não integra a Seguridade Social.Esse desvio de finalidade repetiu-se em 1990. No final desse ano,com a aprovação da Lei Orgânicada Saúde, o Governo Federal nãoaplica e desconsidera, no período

posterior, o disposto no art. 55 do Ato das Disposições Transitórias daConstituição, que assegurava pelomenos 30% do total dos recursosda seguridade social para a saúde,com exceção da arrecadação doPIS/Pasep, de uso exclusivo do FAT.Mesmo assim, o Ministério da Saúde

recebeu, em 1991, 33,1% do totaldas contribuições. Um ano após,essa participação foi reduzida para20,95%.

O segundo conflito ocorreu em1993, quando o Executivo federaldesrespeitou a Lei de DiretrizesOrçamentárias (LDO), que deter-

minava o repasse, para a saúde, de12Com exceção do PIS/PASEP, que é destinado ao Fundo de Amparo doTrabalhador (FAT).

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4415,5% da arrecadação das contri-buições de empregados e empre-gadores, obrigando o Ministério

da Saúde a solicitar cerca de trêsempréstimos consecutivos junto aoFAT. A partir, então, desse ano, essascontribuições tornaram-se exclusi-vas da área da Previdência, medidaque se legaliza posteriormente nareforma previdenciária do governoFernando Henrique Cardoso. Um

terceiro e importante embate nofinanciamento do SUS e da Seguri-dade Social ocorreu em 1994, coma criação do Fundo Social de Emer-gência (posteriormente denominadoFundo de Estabilização Fiscal e,atualmente, Desvinculação das Re-ceitas da União - DRU), quando foi

definido, entre outros aspectos, que20% da arrecadação das contribui-ções sociais seriam desvinculadas desua finalidade e estariam disponíveispara uso do Governo Federal.

Nesse cenário de deterioraçãoda situação financeira da Previdên-cia, em que a baixa arrecadação

das contribuições sociais era reflexodo não crescimento da economia,com altas taxas de desemprego e ocrescimento do mercado informaldo trabalho, o setor da Previdênciaincorporou como fonte de recursosos demais recursos que integram aSeguridade Social, além de já utili-

 zar, de forma exclusiva, as contribui-

ções sobre a folha de salários. Dessaforma, o constrangimento financeiroassumido pela saúde não encontra-

va paralelo na sua história recente.Na tentativa de encontrar fontesalternativas de recursos, o ConselhoNacional de Saúde e a Comissão deSeguridade Social da Câmara busca-ram soluções transitórias por meioda criação, em 1994, do ImpostoProvisório sobre a Movimentação Fi-

nanceira (IPMF). Na prática, essa so-lução veio vigorar a partir de 1997,sob a denominação de ContribuiçãoProvisória sobre a MovimentaçãoFinanceira (CPMF). No entanto,o novo volume de recursos daCPMF no financiamento da saúde,que alcançou R$ 10,0 bilhões em

2003 (IGP-DI/FGV de dezembro de2003), correspondendo a 32,4% dototal das fontes no gasto total do Mi-nistério da Saúde, foi compensadopela redução das contribuições daseguridade social - COFINS e CSLL.Como mencionado anteriormente,trata-se de reconhecer o avanço da

previdência, como também o usodo mecanismo da desvinculação departe dos recursos da SeguridadeSocial.

Observa-se, nos anos que seseguiram, o crescimento dos proble-mas financeiros da área da saúde.Três questões explicitam a fragilida-

de do esquema de financiamento

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do SUS. Em primeiro lugar, nota-seque o gasto líquido – excluindoa dívida e o gasto com inativos e

pensionistas – realizado pelo Minis-tério da Saúde (MS) entre 1995 e2003, diminuiu em 7,0%, passandode R$ 30,2 bilhões para R$ 28,1bilhões. Para se ter uma idéia, ogasto federal per capita foi reduzidode R$ 190,10, em 1995, para R$158,90, em 2003, tudo a preços de

dezembro de 2003 (IGP-DI/FGV)13

.Em segundo lugar, verifica-se umsistemático crescimento da irre-gularidade no fluxo de execuçãoorçamentária do MS, especialmentea partir da segunda metade dosanos 1990. Por fim, destaca-se umaumento significativo do saldo a

pagar da rubrica Restos a Pagar doMinistério da Saúde, principalmenteentre 2001 e 2004, passando deR$ 9,2 milhões para R$ 1,8 bilhões(dados da Comissão de Orçamentoe Finanças, do Conselho Nacionalde Saúde, relativos a julho de 2005).

Se, por um lado, o país atravessa

um período de retração econômica,com reflexos negativos no mercadode trabalho, por outro lado essasituação não apresenta impactonegativo nas contas da SeguridadeSocial ao longo dos anos 2000. Logoapós o penoso quadro financeiro dadécada de 1990, caso fosse respei-

tado pelo Governo Federal o con-

ceito de seguridade social definidona Constituição de 1988 e não fosseutilizado o mecanismo de desvincu-

lação dos 20% do antigo Fundo deEstabilização Fiscal e atual DRU, oorçamento da Seguridade contariacom superávits de R$ 26,64 bilhões(2000), R$ 31,46 bilhões (2001),R$32,96 bilhões (2002), R$ 31,73bilhões (2003) e R$ 42,53 bilhões(2004), todos em valores correntes.

Esses recursos excedentes, segundoa Associação Nacional dos Fiscais daPrevidência, foram alocados no pa-gamento de gastos fiscais ou conta-bilizados diretamente no cálculo dosuperávit primário (Anfip, 2005).

Para se ter uma idéia, a Anfipcalcula que, em 2004, a desvin-

culação das contribuições sociais(Cofins, CSLL, CPMF) autorizaria oGoverno Federal a gastar, fora da Se-guridade Social, R$ 24,9 bilhões. Osrecursos restantes (R$ 17,63 bilhões)deveriam ser aplicados no sistema.Contudo, essa situação não foipossível de ser verificada. De acor-

do com a Anfip, essa não foi umapeculiaridade de 2004. Entre 2000e 2004, foram utilizados R$ 165bilhões da Seguridade Social paracontribuir com o superávit primário.E o que é pior, desse montante, R$76,84 bilhões teria excedido o limitepermitido para desvinculação das

contribuições. Dessa forma, a Anfip13Dados extraídos de estudo do Ipea; ver Ribeiro et all. (2005).

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46adverte que, “tendo em vista o totalcomprometimento do orçamen-to fiscal com as necessidades de

financiamento da dívida pública, ossuperávits são alcançados atravésdo orçamento da seguridade social”(Anfip, 2005, p.31).

Chama, ainda, a atenção o fatode que esse resultado positivo nãoalterou a posição do Governo Fede-ral, que, durante todos esses anos,

manteve acesa a idéia de defesado déficit da Previdência, descon-siderando, assim, a sua vinculaçãoao orçamento da Seguridade So-cial. Interessante observar que essaatitude contribuiu para a aprovaçãode reformas na previdência, seja nogoverno FHC seja no governo Lula

(Marques e Mendes, 2004). A situação de incerteza e in-definição dos recursos financeirospara a área da saúde levou à buscade uma solução mais definitiva,qual seja: a vinculação dos recursosorçamentários das três esferas depoder. A história de construção de

uma medida de consenso no âmbitoda vinculação de recursos levou seteanos tramitando pelo Congresso atéa aprovação da Emenda Constitu-cional nº 29 (EC 29), em agosto de2000.

 A primeira Proposta de EmendaConstitucional (PEC 169), de au-

toria dos deputados Eduardo Jorge

e Waldir Pires, foi formulada em1993, quando o Ministério da Saúdesolicitou o primeiro empréstimo

 junto ao FAT. Depois disso, váriasoutras propostas de vinculaçãoforam elaboradas e discutidas noCongresso Nacional, mas nenhu-ma delas sustentava a idéia originalde vinculação tanto no âmbito dascontribuições sociais (30%) como noorçamento de cada nível de gover-

no. A última proposta de vinculaçãodos recursos para a saúde restringiu-se aos recursos orçamentários daUnião, dos estados e municípios,materializando-se na EC 2914.

 A Emenda Constitucional nº 29estabeleceu que estados e municí-pios devem alocar, no primeiro ano,

pelo menos 7% dessas receitas, sen-do que esse percentual deve cres-cer anualmente até atingir, para osestados, 12%, no mínimo, em 2004;e, para os municípios, 15%, nomínimo. Em relação à União, a EC29 determina que, para o primeiroano, deveria ser aplicado o aporte

de, pelo menos, 5% em relação aoorçamento empenhado do períodoanterior; para os seguintes, o valorapurado no ano anterior é corrigi-do pela variação do PIB nominal.Cabe ressaltar que, quanto à União,a EC 29 não explicita a origem dosrecursos e, em relação à Segurida-

de Social, foi omissa, como se não14Para o conhecimento das propostas de vinculação de recursos para o financiamento da saúde, ver Marques e Mendes(1999).

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houvesse disputa por seus recursos,como mencionado anteriormente.

Pode-se perceber, portanto, que

esses conflitos por recursos estavampresentes antes e após o estabeleci-mento da EC 29. Salienta-se que otexto da emenda deu origem à acir-rada discussão entre os Ministériosda Saúde e da Fazenda. Segundointerpretação do primeiro, o ano-base para efeito da aplicação do

adicional de 5% seria o de 2000, eo valor apurado para os demais anosdeveria ser sempre o do ano ante-rior, ou seja, calculado ano a ano. Já para o Ministério da Fazenda, oano-base seria o de 1999, somenteacrescido das variações nominaisdo PIB ano a ano. Essa diferença

de interpretação teve implicaçõesde R$ 1,2 bilhões no orçamento de2001, o que levaria, por exemplo,a dobrar os recursos do Programa Agentes Comunitários em relação aoano anterior. Sabe-se que a Advoca-cia Geral da União (AGU) acatou afórmula de cálculo do Ministério da

Fazenda, porém essa discussão es-tende-se pelos anos seguintes, semuma resolução definitiva.

 Além dos problemas de inter-pretação do texto, prejudicando ofinanciamento da saúde, a EC 29apresentou também dificuldades notocante à sua implementação. Para

se ter uma idéia, segundo informa-

ções da Cofin/CNS, o valor mínimoda aplicação com ações e serviçosde saúde em 2005, levando em

consideração a última revisão doPIB, deveria ser de R$ 37,1 bilhões,enquanto o valor apresentado peloMinistério da Saúde (atualizado até31.07.2005) foi de R$ 36,5 bilhões,constituindo-se numa diferença aser suplementada pelo orçamen-to do MS de R$ 641,4 milhões15.

Convém salientar que ainda há umadiferença de aplicação de anos ante-riores, acumulada em R$1,6 bilhão,calculada nos termos da Resoluçãonº 322/2003, do Conselho Nacionalde Saúde, a partir de 2000.

Os conflitos por recursos legal-mente determinados pela EC 29

não se restringem à União. Nos anosque se seguiram à promulgação daEmenda Constitucional, o descum-primento, por parte dos estados,tem sido verificado. Em 2003, 16estados não cumpriram o mínimoexigido pela EC 29. São eles: Alago-as, Ceará, Maranhão, Paraíba, Per-

nambuco, Piauí, Espírito Santo, Mi-nas Gerais, Rio de Janeiro, Paraná,Rio Grande do Sul, Santa Catarina,Distrito Federal, Goiás, Mato Grossodo Sul e Mato Grosso. Isso significa,para esse ano, o descumprimen-to de R$ 1.782,2 milhões (dadosSIOPS). Contudo, convém lembrar

que, no caso dos estados, esse des-15Ressalta-se que, a esses recursos, devem ser acrescidos os valores corres-

 pondentes a restos a pagar realizados no período de 2000-2005.

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48cumprimento vem crescendo ano aano. Se acrescido ao valor de 2003o passivo de 2000, 2001 e 2002 (R$

3.622 milhões), o descumprimentoda EC 29 alcança o montante de R$5.404,2 milhões.

Se somados os valores referentesao descumprimento da EC 29 pelaUnião e estados, após sua promul-gação, o montante diz respeito acerca de R$ 7,0 bilhões (R$ 1,6 da

União e R$ 5,4 dos Estados). Emresumo, pode-se dizer que o finan-ciamento do SUS continua sendocontestado ou colocado em dúvida,constrangendo a saúde dos cidadãosbrasileiros.

Por sua vez, chama a atenção ofato de que, dentre os estados que

apontaram o cumprimento da EC29 nos anos aqui indicados, algunsdeles incluíram, como se fossemgastos em ações e serviços de saúde,as despesas com inativos, empresasde saneamento, habitação urbana,recursos hídricos, merenda escolar,programas de alimentação, hospitais

de “clientela fechada” (como hospi-tais de servidores estaduais e milita-res). Ainda que a Emenda não tenhadefinido adequadamente o conceitode ações e serviços de saúde paraefeito de aplicação dos recursos dostrês níveis de governo, ao longo des-ses últimos anos, foram construídos

parâmetros claros e acordados entre

o Ministério da Saúde, os estadose seus tribunais de contas, confor-me determinados na Resolução nº

322/2003 do Conselho Nacional deSaúde, mencionada anteriormente.Os conflitos são perceptíveis, umavez que, mediante “artifícios”, osestados desconheceram esses parâ-metros e incluíram gastos alheios àsaúde para atingirem sua meta deaplicação.

Para os municípios, tanto dascapitais como do interior, as infor-mações do SIOPS indicam que ocumprimento da EC 29 ao longodesses últimos anos tem sido res-peitado. No ano de aprovação daEmenda (2000), o percentual médiodestinado à saúde foi de 13,64% das

receitas de impostos e transferên-cias constitucionais. Em 2001, essepercentual passou para 14,71%;em 2002, atingiu 15,97%; e, em2003, 17,58%. Isso demonstra que,para os municípios, a vinculação derecursos não alterou o quadro dofinanciamento da saúde.

Entretanto, é possível verificarque também alguns municípiosdesconsideraram o conceito deações e serviços de saúde definidona Resolução nº 322 e incluíram,por exemplo, as despesas associadasa inativos da área da saúde. Surpre-endentemente, mesmo em gestões

progressistas, houve um conflito en-

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tre a área da saúde e a das finanças.Os secretários de finanças tambémdefenderam, interpretando inde-

vidamente a Emenda, que os 15%definidos como o mínimo seria exa-tamente o percentual que eles apli-cariam, mesmo que as necessidadesexigissem gastos maiores. Tal comono plano macroeconômico, a des-centralização da saúde subordina-seà lógica do “econômico - contábil”,

em que os secretários de finançasentendem que a contemporânea“reduzida” receita é que condicionaa despesa municipal, mantendo a dasaúde no patamar mínimo constitu-cionalmente determinado.

Com o objetivo de assegurar ocumprimento da EC 29 e respeitar o

consenso construído entre o Conse-lho Nacional de Saúde, o Ministérioda Saúde, os tribunais de contas e asdiversas entidades na área da saúde,no tocante à definição de ações eserviços de saúde, foi elaborada aproposta de regulamentação da EC29, sob a denominação de Projeto

de Lei Complementar nº 01/2003.Em 2004, foi dado início ao pro-cesso de tramitação desse Projetona Câmara Federal. Após intensosdebates e conflitos entre os interes-ses do governo federal, contrários aoProjeto de Lei, e a Frente Parlamen-tar da Saúde, o Projeto foi aprovado

na Comissão de Seguridade Social e

Família e na Comissão de Finanças eTributação, da Câmara. A expectati-va é que seja aprovado na Comissão

de Constituição e Justiça e siga paravotação no Plenário da Câmara.Sabe-se que esse “caminho”, noprocesso legislativo, é constituído devários embates e sua aprovação nãoserá isenta de conflitos.

2. O governo Lula e os recursos

da Seguridade Social e do SUS A persistência dos problemasrelativos ao endividamento interno eexterno, a manutenção das elevadastaxas de desemprego e o crescimen-to do mercado informal do trabalho- elementos que ilustram a falta deperspectiva quanto à retomada sus-

tentável da economia -, constituemconstrangimentos no caminho dagarantia da Seguridade Social e dauniversalidade do SUS. Mas, apesarde todas as investidas dos defen-sores dos princípios neoliberais,marcados pela diminuição do gastopúblico, as estruturas e instituições

criadas pelo SUS resistem. A luta pela defesa de recursosaparece, contudo, como se a saúdeestivesse permanentemente emcrise. Na verdade, todas as suasmanifestações apenas refletem osconflitos de interesse em jogo e ograu de resistência do movimento

pela universalização da saúde públi-

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50ca. Nos anos do governo Lula, nãotêm sido poucas as suas investidascontra o financiamento da Segurida-

de Social e da saúde. Mas, paralela-mente, o número de manifestaçõescontrárias também não se revelamenos importante.

No primeiro ano de governo, aproposta de reforma tributária san-ciona o comprometimento atual dasfinanças dos municípios e do Gover-

no Federal, mas abre mão de repen-sar as condições de sustentação doconjunto da Seguridade Social, emespecial da saúde. Além disso, nasnegociações para a aprovação dareforma, apareceu a possibilidadede mecanismos semelhantes à DRUserem aplicados aos estados e muni-

cípios, o que, segundo estimativa daComissão de Orçamento e Finanças,do Conselho Nacional de Saúde,significaria uma redução de R$ 3 bi-lhões em nível dos estados e de R$2,5 bilhões em nível dos municípios,caso a desvinculação de 20% fosseaplicada à arrecadação prevista

para 2003. Numa reação defensivadaqueles que lutam pela construçãoda universalidade da saúde, conse-guiu-se o compromisso do governoLula, após intensas mobilizações, daretirada dessa Proposta no âmbitodo projeto do Executivo.

O financiamento da saúde está

longe de estar resolvido no âmbito

da proposta de reforma tributária dogoverno Lula. Isso porque, no mo-mento em que a austeridade fiscal

é alçada à medida prioritária pelogoverno - na verdade continuandoa política anteriormente executada-, tal fato se choca diretamente como interesse daqueles que pretendemassegurar a implementação do SUScomo uma política universal. Ditode outra maneira, o SUS univer-

sal encontra-se na contramão dosditames do FMI, que exige corte nosgastos e superávit primário elevado.Essa atitude é emblematicamenteregistrada na defesa intransigentedo governo Lula em manter a CPMF(mas sem dividir os recursos com osoutros níveis de governo, é claro) e

a DRU.Nessa dimensão, a discussãoda reforma do Estado, envolvendoalterações substantivas das reformasprevidenciária e tributária, colocaa possibilidade de o próprio siste-ma de saúde vir a ser modificado.Na medida em que forem extintas

as atuais fontes de financiamentodo sistema e a escassez relativade recursos determinar apenas amanutenção dos cuidados com asaúde da parcela mais carente dapopulação, propostas de adoção demodelos alternativos de gestão dasaúde certamente ganharão corpo

e importância no debate que está

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por vir. Isso pode permitir que secoloque qualquer tipo de sistema deproteção social que não se inspire

sob o princípio da universalidade.Uma segunda investida dogoverno Lula contra a saúde mani-festou-se no descumprimento daproposta orçamentária/2004 doMinistério da Saúde. Em 31 de julhode 2003, a saúde foi surpreendidacom o veto presidencial ao § 2º do

art. 59 da LDO/2004. Por meio des-se ato, seriam consideradas comoações e serviços públicos de saúdeas despesas realizadas com encargosprevidenciários da União (EPU) ecom o serviço da dívida, bem comoa dotação dos recursos do Fundo deCombate e Erradicação da Pobre-

 za. A reação contrária do ConselhoNacional de Saúde e da FrenteParlamentar da Saúde resultou namensagem do Poder Executivo aoCongresso Nacional, criando o § 3ºpara o art. 59, no qual, para efeitodas ações em saúde, são deduzidoso EPU e o serviço da dívida. Con-

tudo, nenhuma menção foi feita aoFundo de Combate e Erradicaçãoda Pobreza, cujos recursos previstosatingiam R$ 3.571 milhões.

No momento em que o Fundoda Pobreza é considerado comoações de saúde, não só a saúde dei-xa de contar com os recursos a ele

destinado como é desrespeitado o

processo de construção da definiçãodo que sejam ações típicas de saú-de, anteriormente mencionado. A

inclusão da alimentação e nutrição esaneamento básico, atividades pre-vistas para serem financiadas como Fundo da Pobreza, contrariam o§ 2º do art. 198 da Constituição,os art. 5º e 6º da Lei nº 8.080/90 ea Resolução nº 322, do ConselhoNacional de Saúde.

 Além disso, mesmo se fossemconsiderados os recursos do Fundoda Pobreza, o orçamento do MSpara 2004 não cumpriria o dispostona EC 29: no lugar de R$ 32.930milhões (orçamento de 2003 mais avariação nominal do PIB 2003/2002de 19,24%, segundo as projeções

do IBGE), foi encaminhada umaproposta de R$ 32.481 milhões, ouseja, menor em R$ 449 milhões.

Somando-se esses R$ 449milhões aos R$ 3.571 milhões doFundo de Pobreza, o SUS, em níveldo Ministério da Saúde, estavasendo (des)financiado em R$ 4.020

milhões. Além dos efeitos negativosdessa redução ao orçamento do MS,o descumprimento da EC 29 pelaUnião abria precedente para queestados atuassem da mesma forma,isto é: considerar como despesas emsaúde outros itens que não se refe-rem a “ações típicas de saúde”.

 Ao final de setembro de 2003,

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52a governadora do Estado do Rio de Janeiro propôs ao Supremo TribunalFederal uma Ação Direta de Incons-

titucionalidade (ADIN) com pedidode medida cautelar em razão daResolução do Conselho Nacionalde Saúde nº 322, de 08 de maiode 2003, especialmente para suainvalidação e suspensão imedia-ta dos seus efeitos. Dito de formadireta, a governadora questionava

particularmente a diretriz da Resolu-ção que define as despesas a seremconsideradas como ações e serviçospúblicos de saúde. Os motivos,todos sabem, são para incluir gastosna saúde que são vedados na Reso-lução. Além desse questionamen-to, a ADIN indaga sobre o caráter

deliberativo do Conselho Nacionalde Saúde para determinar as formasde aplicação do gasto com ações eserviços públicos de saúde.

No plano nacional, contudo,ocorreram dois importantes fatos,resultado das negociações realiza-das para superar o impasse entre a

institucionalização do SUS e a aus-teridade fiscal perseguida pela áreaeconômica do governo. O primeirorefere-se à Lei nº 10.777, de 25 denovembro de 2003, que reintroduzo conteúdo do parágrafo 2º do art.59 da LDO/2004, vetado pelo pre-sidente, assegurando, assim, que os

encargos previdenciários da União,

os serviços da dívida e a parcela dasdespesas do Ministério financiadacom recursos do Fundo de Combate

e Erradicação da Pobreza não sejamconsiderados como ações e serviçospúblicos de saúde. O segundo dizrespeito ao Projeto de Lei Com-plementar de Regulamentaçãoda Emenda Constitucional nº 29,que se encontra em tramitação naCâmara Federal, como mencionado.

Espera-se que a aprovação dessaregulamentação, ancorada nas defi-nições da Resolução CNS nº 322/ 2003, possa estabelecer as baseslegais necessárias para que a Uniãoe também que os estados cumpramo disposto na EC 29.

Mas a continuidade da institu-

cionalização do SUS universal exige,no curto prazo, a derrota da ADINda governadora do Rio de Janeiro e,mais no longo prazo, a redefiniçãoda posição econômica e políticaassumida pelos governos Federal eestaduais, o que implicará o aban-dono das “estratégias” econômi-

cas ortodoxas adotadas por essesgovernos. As investidas do governo Lula

contra o financiamento do SUSnão pararam em 2004. O mesmomecanismo de desconsiderar oconceito de saúde, construído sobo consenso das entidades do setor,

foi adotado pelo governo federal

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quando do encaminhamento daLDO de 2006 ao Legislativo. Deacordo com o projeto encaminhado,

as despesas com assistência médicahospitalar dos militares e seus de-pendentes (sistema fechado) serãoconsideradas no cálculo de açõese serviços de saúde. Dessa forma,os recursos destinados ao Ministé-rio da Saúde serão diminuídos emcerca de R$500 milhões, de acordo

com a estimativa da Comissão deOrçamento e Finanças do ConselhoNacional de Saúde (CNS). Tendo emvista o projeto de lei enviado peloGoverno Federal à Câmara, o Con-selho Nacional de Saúde decidiumanifestar-se publicamente contrá-rio, repudiando o teor do projeto,

isto é, os serviços prestados aosmilitares não se caracterizam comode acesso universal e, portanto, nãopodem ser considerados ações eserviços públicos de saúde. Sabe-seque os conflitos são e serão intensosnesse entendimento.

Não é a primeira vez que o

Conselho manifesta-se contrário aoProjeto de Lei da LDO do governoLula, inclusive em relação ao conte-údo desse mesmo art. 59, parágrafo2. Como mencionado, a propostada LDO de 2004 incluía o Fundode Combate à Pobreza (Fome Zero)como ações de saúde. Após os

embates políticos entre o Conselho

Nacional de Saúde, a Frente Parla-mentar de Saúde e o Ministério doPlanejamento, a Procuradoria Geral

da República emitiu parecer contrá-rio a tal inclusão. Somente a partirdesse parecer, o presidente Lula ex-cluiu o Fundo de Combate à Pobre- za da fórmula de cálculo do piso degastos federais com os serviços desaúde. A história parece repetir-se.Fica a indagação: então o Governo

Federal não só não aprendeu como Fundo da Pobreza como agiu demodo pior, insistindo no descumpri-mento do conceito de saúde univer-sal, ao considerar ações e serviçospara um sistema fechado (militares)não disponível para os demais ci-dadãos brasileiros? A principal lição

do descumprimento da propostaorçamentária 2004 do MS foi a deque não se deve desconsiderar oconteúdo da Resolução nº 322 doCNS, que especifica as despesas aserem consideradas como ações eserviços públicos de saúde.

 Ao utilizar esses gastos para

cumprir o limite mínimo de aplica-ções em ações e serviços de saúde,determinado pela Emenda Constitu-cional nº 29, o Governo Federal estádiminuindo, na prática, as dotaçõesdo MS. É importante atentar para ofato de que, além desses efeitos ne-gativos dessa redução ao orçamento

do MS e, conseqüentemente, ao

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financiamento do SUS, o des-cumprimento da Resolução nº322 do CNS pela União abre

precedente para que estadosatuem da mesma forma, isto é:considerar como despesas emsaúde os gastos com assistênciamédica a servidores, como osintegrantes da Polícia Militar edo Corpo de Bombeiros.

Os ministérios do Planeja-

mento e Saúde quase nunca seentenderam sobre a definiçãodo piso de aplicação em açõese serviços de saúde, desde ogoverno FHC até o governoLula. As divergências decor-rem do fato de que, até hoje,a Emenda Constitucional 29

não foi regulamentada e nãose aceita a Resolução nº 322do CNS como instrumentolegal que define o que podeser considerado como açõese serviços públicos de saúde. Acredita-se que esse embatese resolva com a aprovação do

PLC nº 01/2003, mas, comomencionado anteriormente,as tensões entre os diferentesministérios são historicamentesignificativas.

Ainda outro problemarecente chama a atenção paraos que defendem o financia-

mento do SUS universal: o item

Bolsa-alimentação, constantedo Orçamento do Ministérioda Saúde. A Cofin/CNS tem

advertido que tramita no Con-gresso Nacional projeto de leireferente à suplementação doBolsa Alimentação no valor deR$ 1,2 bilhões, cuja fonte derecursos é 179 - Fundo de Po-breza. Sabe-se que tal despesanão pode ser considerada no

cômputo da aplicação mínimacom ações e serviços públicosde saúde, porém a Lei Orça-mentária autoriza a troca defonte pelo Ministério do Orça-mento, Planejamento e Gestão.Nunca é demais lembrar que aCofin/CNS posiciona-se contrá-

ria a uma possível mudança defonte.Tanto a manobra do gover-

no Lula em incluir assistênciamédico-hospitalar dos militarescomo atividade do Ministérioda Saúde bem como a incerte- za do item Bolsa-alimentação

no orçamento do MS indi-cam que o Governo Federalnão tem muita disposição emaumentar sua participação nogasto com saúde e tampoucoem definir fontes exclusivaspara seus custeios.

Uma outra importante

investida do governo Lula

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contra a área da saúde refere-se àrecorrente tentativa de adoção dadesvinculação dos seus recursos. A

primeira tentativa ocorre por meioda correspondência do governocom o FMI, em 2003, e a segundaintegra a proposta do déficit nomi-nal zero, sugerida pelo ex-ministroDelfim Neto (PP-SP) ao GovernoFederal em 2005 - lançada no augeda crise política recente.

Em relação à primeira investidaa favor da desvinculação dos re-cursos, o Governo Federal, ao finalde 2003, encaminha uma corres-pondência ao FMI16 atestando suaintenção de modificar radicalmen-te o quadro em cima do qual sãodesenhados os orçamentos, sejam

eles da União, dos estados ou dosmunicípios. No item “Criando umambiente para o desenvolvimento”,desse documento, é mencionadaa flexibilização da alocação dosrecursos públicos como uma entrevárias ações que seriam necessáriaspara “trazer o País para uma trajetó-

ria de crescimento”. De acordo como documento,” menos de 15% dasdespesas primárias são alocadas deforma discricionária pelo governo,criando uma rigidez orçamentáriaque muitas vezes inibe de manei-ra significativa uma alocação mais justa e eficiente dos recursos pú-

blicos”. E ainda diz:... “o governo

planeja preparar um estudo sobre asimplicações das vinculações seto-riais...” (op. cit, p. 3). Mesmo que

esse objetivo não seja atingido, suadeclaração de intenção denunciaa investida contra o “núcleo duro”das políticas sociais que permeia acondução do governo Lula.

 A intenção do Governo Federal,como se sabe, era colocar um fimaos preceitos constitucionais que

obrigam União, estados e municí-pios a gastarem um percentual detodo o dinheiro arrecadado paraos setores de educação e saúde.Particularmente, na área da saúde,deixariam as três esferas de poderde ser obrigadas a aplicarem osdispositivos legais estabelecidos na

Emenda Constitucional nº 29/2000. Ao propor mudanças dessamagnitude, o governo Lula tinha aintenção de colocar em marcha ummovimento duplo com relação aoorçamento. O primeiro consiste nadesvinculação propriamente ditados recursos destinados aos gastos

sociais em saúde e educação. Osegundo movimento refere-se aouso que seria feito dos recursosassim liberados: além de engrossa-rem o pagamento da dívida externa,poderiam ser destinados à realiza-ção de investimento, provavelmentena linha do projeto Parceria Público

Privado (PPP).16Carta de intenção do governo brasileiro dirigida a Köhler, referente aonovo acordo com o FMI, datada de 21 de novembro de 2003 (Ministérioda Fazenda, 2003).

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56Esse é o primeiro governo, após

a Constituição de 1988, que, semnenhum constrangimento, tem a

“coragem” de propor uma medidacomo essa: institucionalizar, pro-movendo mudança no texto da lei,o fato de o pagamento do serviçoda dívida preceder a preocupaçãode realizar os atuais níveis de gastossociais, quanto mais de ampliá-los.No caso da saúde, isso significaria

direcionar o gasto para algo do tipocesta básica, ao estilo do que é pro-posto pelo Banco Mundial, abando-nando a idéia da universalização dasações e serviços públicos em saúde.

 A universalização do acesso àsaúde a partir da Constituição de1988 pode ser considerada uma das

mais inclusivas políticas sociais nopaís, uma vez que incorpora cercade 135 milhões de brasileiros antessem cobertura. No entanto, os cons-trangimentos econômicos e con-flitos políticos vividos no processode institucionalização do SUS vêmdificultando sua viabilidade. 

 A segunda defesa da desvincu-lação dos recursos sociais reaparececom o lançamento da proposta do“déficit nominal zero” pela visãoortodoxa fiscal, recepcionada acontento pelo presidente Lula e suaequipe econômica. Sabe-se que,atualmente, o estoque da dívida pú-

blica corresponde a cerca de 50,0%

do PIB e, portanto, um aumento de1% na taxa de juros básica ocasio-na o adicional de custos com juros

anuais equivalente a R$ 10 bilhões,o que fragiliza o padrão atual deajuste das finanças públicas parasustentar a dinâmica de “financeiri- zação” da riqueza. Diante disso, aproposta do Deputado Delfim Netoao Governo Federal busca zerar odéficit nominal nas contas públicas

(receita menos despesas, incluindoos juros da dívida), proporcionandoo equilíbrio fiscal a partir do aumen-to brusco do superávit primário de4,25% para 7,85% do PIB - estimati-va de despesas com juros para 2005(Pochmann, 2005). Entende-se que,dessa forma, o superávit primário

seria suficiente para financiar a tota-lidade da despesa com os juros doendividamento público17.

Por outro lado, a propostadéficit nominal zero relaciona aimportância de dobrar a Desvincu-lação da Receita da União (DRU)de 20% para 40%, acrescida de

um relevante corte nos gastos compessoal e nas demais contas públicasoperacionais. Assim, a adoção dosignificativo aumento do superávit primário para 7,85% do PIB teriaimpactos negativos no conjunto dosgastos sociais. Com a desvinculaçãode 40% dos recursos federais, os

gastos sociais sofreriam uma queda17Para se ter uma idéia, embora o país tenha obtido um dos mais elevados superávits primários em 2004 (4,58% do PIB),constata-se ainda um déficit nominal de 2,68% do PIB, o que resultou da elevação dos gastos com juros.

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entre 2004 e 2005, passando de13,5% do PIB para 11,1%, o quegeraria uma contenção de R$ 42,5

bilhões (2,4% do PIB). Por contadisso, o superávit primário socialpassaria de 34% do total dos gastoscom juros, em 2004, para atingir61% em 2005.

Por sua vez, os maiores itens daatual composição da despesa socialfederal - previdência, benefícios a

servidores públicos e saúde - seriamaltamente prejudicados pela pro-posta de alcançar a nova meta desuperávit primário. Para se ter umaidéia, a proposta do déficit nominal zero implicaria o corte, por exem-plo, da Previdência Social, em R$19,7 bilhões; dos servidores públi-

cos, em R$ 8,5 bilhões; e da saúde,em R$ 5,7 bilhões, todos a valorescorrentes de 2004 (Pochman, 2005).

Como bem salientou o autor daproposta, deputado Delfim Neto,para tornar exeqüível essas medidas,o Governo Federal deve, por meiode uma emenda constitucional, es-

tabelecer a eliminação, até 2009, dodéficit nominal do setor público eadotar a desvinculação propriamen-te dita dos recursos destinados aosgastos sociais em saúde e educação,permitindo a redução “necessária”dos seus recursos e a viabilidadedo déficit nominal zero para a

“estabilidade com desenvolvimen-

to sustentado”18. O que não ficaclaro é como seria possível falar emdesenvolvimento sustentável com a

adoção da socialização perversa docusto social dessa proposta, em queseriam prejudicados 145 milhões deusuários do SUS bem como 21 mi-lhões de beneficiários da Previdên-cia Social, a totalidade dos funcioná-rios públicos federais e outras áreasgovernamentais. Por outro lado, o

governo Lula nem comenta que oobjetivo de déficit público nominal zero pode também ser adotado poroutros percursos. Trata-se de reco-nhecer a importância de se adotarum novo compromisso em torno docrescimento econômico com redu-ção considerada da taxa de juros, o

que significaria o rompimento como atual ciclo de “financeirização” dariqueza, responsável principal peloendividamento público nacional.

Considerações finaisVários são os aspectos que evi-

denciam as iniciativas e medidas que

foram desvalorizando a aplicaçãodo conceito de Seguridade Social aolongo dos governos que se seguiramà Constituição de 1988. Dentre elas,ressaltam-se: o uso de parte dos re-cursos da Seguridade Social para finsalheios às áreas que a integram em1989 e 1990; a especialização da

fonte contribuições de empregados18 A equipe econômica do governo, especialmente o presidente do BancoCentral, Henrique Meirelles, viu a proposta como uma boa saída para con-tribuir para a política monetária e para assegurar a responsabilidade fiscalem tempos de elevada crise política e debilidade por qual passa o governoLula ( Folha de São Paulo , 1/07/2005).

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58e empregadores para a PrevidênciaSocial; a institucionalização de me-canismos que permitiram o acesso

da União aos recursos da SeguridadeSocial e, portanto, o seu uso indevi-do; as modificações nos critérios deacesso aos benefícios previdenciá-rios, especialmente da aposentado-ria; a inclusão, no plano da análise eda discussão pública, do regime dos

 servidores, em claro rompimento ao

art. 194 da Constituição. A tentativa de recuperar essedesmonte torna-se fundamental

 para enfrentar o frágil consenso deque a Seguridade Social constitui-seem capítulo constitucional impor-tante de nosso sistema de proteção

 social. Além disso, deve-se identificar

como, no país, as políticas sociais são permanentemente subordinadasaos ditames da ordem econômica. AConstituição de 1988, ancorada pelavalorização da democracia e do res-

 gate da então chamada dívida social,foi um daqueles raros momentos emque a insubordinação das políticas

 sociais esteve presente.Como vimos neste texto, o per-curso do financiamento da Seguri-dade Social em geral e do SUS, em

 particular, tem sido consideravel-mente complicado. Pode-se obser-var que, ao mesmo tempo em que

 se implanta o SUS, com base nos

 princípios de um sistema público,

universal e gratuito, agrava-se a crisefiscal e financeira do Estado, levandoa que os governos Federal e estadual

limitem o aporte de recursos para aSeguridade Social e para a saúde.O grande problema do financia-

mento da saúde é que, mesmo coma vigência da Emenda Constitucionalnº 29, assiste-se ao descumprimentoda aplicação dos recursos da Uniãoe de grande parte dos estados, apro-

fundando o seu frágil esquema definanciamento. Tanto as manobrasdo governo Lula em incluir itensque não se associam ao conceito desaúde universal, como atividadesdo Ministério da Saúde, bem comoa recorrente tentativa de propor adesvinculação dos recursos destina-

dos às ações e serviços públicos desaúde indicam que o Governo Fe-deral não tem muita disposição emaumentar sua participação no gastocom saúde e tampouco em definirfontes exclusivas para seu custeio. Admite-se que somente com a apro-vação do projeto de regulamentação

da EC 29, ancorada nas definiçõesda Resolução CNS nº 322, possamser estabelecidas as bases legaisnecessárias para que a União e tam-bém os estados cumpram o dispostona Emenda. Porém, não se devedesconhecer que a aprovação daregulamentação será marcada por

disputas e grandes embates.

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Deve-se, por fim, identificar queas possibilidades de valorização dofinanciamento da Seguridade Social

e do SUS podem ser alcançadas poroutros percursos, mas condiciona-das por novos compromissos emtorno da recuperação e do cresci-mento econômico, o que implicaria

 ANFIP. Análise da SeguridadeSocial em 2004. Brasília: Associa-ção Nacional dos Fiscais da Previ-dência, abril de 2005. Disponívelem www.anfip.org.br. Acesso em6/08/2005.

MARQUES, Rosa; MENDES, Aquilas. Financiamento: a doençacrônica da saúde pública brasileira.R. Anais do V Encontro Nacional deEconomia da Saúde (org. Ugá, M.et al.). Salvador: Abres,1999, pp.

213-237.____. As Limitações da Política

de Combate à Pobreza no GovernoLula. Texto aprovado pela ComissãoCientífica do V Encontro Latino-americano de Economistas Políticos,Cidade do México, outubro de2005.

a ruptura da já antiga (anos 90) eatual lógica da política econômica.Porém, não se deve apenas reduzi-

las a esse fator. Uma possibilidadeconcreta seria buscar a construçãode consensos em relação às políti-cas e instituições responsáveis pelaspolíticas universalistas.

Referências

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Gastão Wagner de Sousa Campos19

I- Saúde é de interesse privadoou público?

No século XIX, a resposta a essaquestão era simples. Havia a saúde

pública, que cuidava dos problemascoletivos, a saber, das epidemiase da vigilância e regulamentaçãode aspectos da vida econômica esocial que interessassem à dinâmicaeconômica e social, como eram oscasos dos alimentos, remédios, meioambiente, entre outros aspectos. A

doença e o seu atendimento eramconsiderados assuntos privados e,portanto, ficava sob a responsabili-dade de cada pessoa, família ou em-presa prover atendimento aos seusnecessitados. A atenção aos pobrese desvalidos organizou-se comosistema de filantropia.

No século XX, instalou-se umapolêmica que, em alguma medida,ainda prossegue. Países de socialis-mo real e outros que escolheramdistribuir renda e construir bem-estar social por meio de políticaspúblicas passaram a considerar asaúde como de interesse público,

fossem problemas coletivos, fosse

 A Conjuntura Brasileira e o SUS: tendênciase desafios

a saúde de cada pessoa em par-ticular. Para tornar realidade essaconcepção, construíram-se grandessistemas públicos de saúde, financia-dos pelo orçamento estatal, ordena-dos segundo a lógica da eficácia e

eficiência sem considerar interessescorporativos que, tradicionalmente,haviam se incorporado ao mercadoda saúde. Os princípios ordenadoresdesses sistemas eram:

- Integralidade do atendimentoofertado à população, com a valori- zação de programas de promoção à

saúde e de prevenção de doenças.Prioridade para ações de saúdepública;

- Hierarquização e regionali- zação do atendimento: o sistemaorganizar-se-ia por regiões sanitáriasem um sistema de acesso por níveisde complexidade. O primeiro nível

era denominado Atenção Primáriaà Saúde, e era composto por umarede de centros de saúde, localiza-dos em bairros, que deveriam en-carregar-se de 80% dos problemasde saúde sem ajuda dos hospitais.Depois estaria a atenção secundária,composta por hospitais gerais, de

urgência e centros de especialidade19Doutor em saúde coletiva pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e mestre em medicina preventiva pelaUniversidade de São Paulo (USP).

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Cada conjunto desses se ligar-ia aum conjunto de centros de saúdelocalizados em um dado território,

formando um distrito sanitário.Finalmente, haveria alguns hospitaisde alta complexidade, que seriamreferência para populações maio-res, originárias de vários distritos oumunicípios.

Esse desenho espalhou-se pelomundo, demonstrando-se uma

alternativa racional para estendero atendimento com custos supor-táveis. Inglaterra, Suécia, Austrália,Canadá, a extinta URSS, Cuba euma série de outros países adota-ram variações desse modelo. Umaexceção a essa regra foi os EUA,que insistiram em manter a separa-

ção entre saúde pública e mercadomédico.O Brasil adotou esse modelo a

partir de 1988, com a nova Consti-tuição. O Sistema Único de Saúdefoi regulamentado pela lei nº 8080,de 1990.

 Ao final do século XX, essa

polêmica se reacendeu. Com a crisee a derrocada dos regimes ditossocialistas e com evidentes sintomasde ineficiência e ineficácia em váriossistemas públicos em países de mer-cado, gerou-se uma série de críticasàs políticas sociais, iniciando-se umperíodo de desmonte desses siste-

mas em vários países.

II- Sistema Único de Saúde:uma Política Pública Brasileira

 A reforma sanitária brasilei-

ra pode ser considerada tardia.Quando já havia um declínio dasconcepções socialistas ou de esta-do de bem-estar em todo o mun-do, houve, no Brasil, o apogeu doreformismo em saúde. Em todo omundo, falava-se e praticava-se oneo-reformismo liberal, e aqui, no

campo da saúde, firmou-se, políti-ca e gerencialmente, o que viria aconstituir-se em um sistema públicode saúde com várias característicasconsideradas ultrapassadas e incapa- zes de assegurar eficiência e eqüida-de ao sistema de saúde.

 Argumentava-se a favor de bus-

car-se a focalização dos programassociais, e o SUS, pretendia-se, deabrangência universal. Recomenda-va-se a delegação da responsabili-dade pelo atendimento à populaçãoao setor privado ou a organizaçõesnão-governamentais, e a implanta-ção do SUS aumentou o número de

servidores e de serviços públicos emtodo o país. Reservava-se ao Estadoo papel de regular o mercado e aprestação de apenas alguns serviçosconsiderados estratégicos, em geralno campo antes denominado desaúde pública, e o SUS avocava a sia busca da integralidade da atenção.

Foi um descompasso com o discurso

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62liberal hegemônico que empolgoudistintos atores sociais, tornandoviável e factível o que parecia im-

possível.Vários autores consideram aReforma Sanitária brasileira bem-su-cedida por haver instituído um novopadrão de intervenção do Estado nasaúde, buscando garantir direito uni-versal e atenção integral à saúde pormeio de um sistema descentralizado

e com importante grau de demo-cratização quando da formulação eexecução de políticas.

Entretanto, não havia como nãopagar um preço à época e à suacultura e aos seus costumes, e essepreço vem sendo pago ao longo dosúltimos vinte anos, obrigando o SUS

a explicar-se a cada dia, como se es-tivesse sempre começando de novo,como se estivesse obrigado a justifi-car o porquê de adotar um figurinotão démodé quando a maioria dosconvivas já aderiu ao novo modo deser e proceder considerado coetâ-neo e adequado ao terceiro milênio.

Na realidade, a doutrina quefundamentou a construção do SUSreconheceu a existência de limitese de dificuldades no funcionamentodos sistemas de saúde realmen-te existentes, e, em função dessaperspectiva crítica, além de diretrizesque podem ser consideradas típi-

cas à tradição dos grandes sistemas

públicos de saúde - a busca dauniversalidade, da prestação integralde atenção e da eqüidade, bem

como a organização de uma redehierarquizada e regionalizada deserviços−, no Brasil acrescentaram-sedois outros princípios que podem serconsiderados inovadores em rela-ção a essa ortodoxia. Tratava-se dadeterminação de se criar formas dedemocracia direta e de gestão par-

ticipativa, reforçando-se a idéia decontrole social da ação governamen-tal por segmentos da sociedade civil;o outro foi o de descentralização.

No entanto, a descentraliza-ção, no caso da Reforma Sanitáriabrasileira, procurava modificar odesenho e a lógica de um sistema

público sem que necessariamenteocorresse privatização da prestaçãode serviço ou sem que se abdicassedo papel de gestor e de prestadordireto do Estado. Imaginou-se umsistema que procurasse se sobre-por à racionalidade do mercado,provendo atenção segundo neces-

sidades e demandas da população,independentemente da capacidadedas famílias e das pessoas pagarempelo atendimento oferecido.

 Ao invés de se conceber umsistema de caráter nacional, comoo inglês e o cubano, ou mesmoum provincial, como o canadense,

optou-se por descentralizar, para os

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municípios, a responsabilidade pelaorganização e gestão dos sistemaslocais de saúde. Observe-se que, no

caso brasileiro, a descentralizaçãooficial deteve-se no município, amenor instância com poder formalna República, não chegando atécada unidade prestadora de servi-ço, ou seja, até hospitais, equipesespecializadas ou de atenção básica,que estariam todas sob a gestão

única do dirigente municipal. Op-tou-se também por não se realizara estatização de serviços privados,filantrópicos ou não-governamentaisque prestassem assistência ao antigoSistema Previdenciário ou público.Para integrá-los em rede única, de-legou-se aos municípios, ou even-

tualmente aos estados, a função derealizar contratos e convênios comesses prestadores autônomos, acom-panhando o seu desempenho.

 À instância federal e às esta-duais, caberia a coordenação e oapoio sistemático a essa miríade desistemas municipais, procurando-se,

com isso, assegurar o caráter único enacional a essa rede descentralizada.

III - Mudanças estratégicaspara a consolidação do SUS

 As forças interessadas no avançodo SUS estão, pois, obrigadas a en-frentar esses obstáculos políticos, de

gestão e de reorganização do mode-

lo de atenção, cuidando, ao mesmotempo, de demonstrar a viabilidadeda universalidade e da integralidade

da atenção à saúde. Listo algumasalternativas que me parecem meiospara garantir esse movimento demudança:

1- Estimular a constituição deum poderoso e multifacetado movi-mento social e de opinião em defesa

do bem-estar e da instituição de po-líticas de proteção social no Brasil. Aluta pelo sistema de saúde deveria juntar-se à peleja pela distribuiçãode renda, por políticas de recupe-ração de moradias e de espaçosurbanos degradados, pela educaçãoe segurança públicas. Deve ser tra-

 zida ao debate a cifra que poderiamigrar do setor de serviço da dívidae pagamento de juros para o camposocial (Pochmann, 2004).

 2- Se há insuficiência de re-

cursos para o SUS, há tambémproblemas na sua utilização e

gerenciamento. Além de buscar-sealternativa para ampliar o finan-ciamento - a principal fonte, semdúvida, seria diminuir o superávit primário e alterar a política de jurosque interfere no cálculo de par-te substancial da dívida -, haveriatambém que se reformular, com

rapidez, o modelo de repasse de

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64recursos aos estados, municípios eserviços (Mendes e Mendes, 2003).

Talvez fosse possível adotar-se

um modelo misto: transferência deuma parte dos recursos com basena capacidade instalada, populaçãoe encargos sanitários, e outra combase em contratos de gestão ela-borados entre os entes federados eque especificassem metas e compro-missos de cada gestor. Essa mesma

modalidade de financiamento pode-ria ser utilizada entre gestor local eprestadores de serviços (Porto et al.,2003; Andrade et al., 2004).

 3- A sustentabilidade e a legiti-

midade do SUS dependem tambémde um processo de mudança do

modelo de atenção realizado demaneira progressiva, mas que tenhaum grau importante de concomi-tância em todo o país. Já existemdiretrizes para essa reorganização;em geral, são aquelas originárias datradição dos sistemas públicos desaúde.

O modelo de atenção brasileiropassa por um período de transição,em que ainda predominam restosdo antigo modo de organizar a aten-ção, muito semelhante ao norte-americano, centrado em hospitais,especialistas, com pequeno grau decoordenação e de planejamento da

assistência e com uma saúde pública

restrita à Vigilância Epidemiológi-ca e Sanitária. Essa característica éum obstáculo ao desenvolvimento

do SUS, uma vez que impõe umpadrão de gastos inadequado àsnecessidades de saúde e ao movi-mento de reforma do sistema.

4- Dentro dessa linha de mudan-ça de modelos, há uma diretriz que,se adotada, teria grande possibilida-

de de ampliar a eficiência, eficácia ehumanização do sistema. Trata-se dacriação de mecanismos organizacio-nais que tornem clara e bem estabe-lecida a responsabilidade sanitáriados entes federados, dos serviços edas equipes de saúde.

Instituir arranjos que garantam

clareza na responsabilização im-plicará uma verdadeira revoluçãocultural e uma real alteração dospadrões de gestão contemporânea,balizando, com dados concretos,o planejamento, os contratos degestão e o acompanhamento per-manente de sistemas locais e de

serviços de saúde.Poder-se-ia, para fins analíticos ede gestão, classificar a responsabili-dade em macro e microssanitária.

 A responsabilidade macrossani-tária volta-se para a regionalizaçãodo sistema, buscando a definiçãoprecisa do que compete a quem.

Para isso, seria fundamental a

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criação de um organismo em cadaregião de saúde (à semelhança dascâmaras bipartites), com poder para

estabelecer planos regionais, acom-panhando e avaliando a gestão re-gional. Isso significa definir que mo-dalidade e que volume de atençãocaberia a cada município. Dentro decada cidade, estabelecer do que seencarregará cada serviço hospitalar,de especialidades ou de urgências.

Criar responsabilidade macrossanitá-ria é tornar efetivo e transparente oencargo sanitário de cada cidade ede cada organização do sistema, e,com base nesse encargo, estabelecercompromissos de co-financiamentoentre os entes federados bem comopossibilitar a gestão do acesso, de

maneira que todos os necessitadosde cada região tenham acolhimentoequânime.

No caso de excesso de deman-da, a adoção de critérios de riscopara assegurar acesso a examescomplementares ou a outros pro-cedimentos é medida importante

e complementar à programação denovos investimentos para a correçãodessas distorções.

Há ainda a responsabilidademicrossanitária, que depende dareorganização do trabalho emsaúde quer na atenção primária,nas enfermarias, nos ambulatórios,

quer nos centros de especialidades.

 Aquela teria, como alvo, a inscriçãode clientela com uma determinadaequipe interdisciplinar e também

a constituição de sólidos vínculosterapêuticos entre essa equipe dereferência e pacientes com seusfamiliares.

Esse tipo de organização precisaatingir todos os serviços do SUS,guardando-se as especificidades decada local. Caberia a todas essas

equipes de referência a responsabi-lidade pela abordagem integral decada caso em seu nível de respon-sabilidade. Durante o período detempo em que esteja encarregadado projeto terapêutico de determi-nada pessoa, deverá mobilizar re-cursos e rede de apoios necessários

para a recuperação e aumento dacapacidade de autocuidado (efei-to Paidéia) das pessoas e famíliasenvolvidas.

Não é difícil compreender essadiretriz - a da responsabilidadesanitária -, tampouco é complicadoorganizarem-se arranjos que a façam

funcionar no cotidiano (pactos degestão, contratos com definição deencargos, programas clínicos ou pre-ventivos com caráter vinculatório).O difícil é sustentá-los ao longo dotempo, pois esses arranjos alteramas relações de poder entre usuários,profissionais de saúde e gestores.

 A reforma do sistema hospitalar

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66e do atendimento especializado de-pende centralmente de sua reorga-nização segundo regras de vínculo e

de acordo com um sólido processode pactuação de responsabilidadesem cada uma das regiões de saúdedo Brasil.

5- Outro projeto de reforma emandamento, mas com ritmo e re-sultados ainda insuficientes, é o do

Programa de Saúde da Família. Pelomenos 80% dos brasileiros necessita-riam estar matriculados em equipesde atenção primária. Pela teoria dossistemas de saúde, uma atenção pri-mária que se responsabilize por 80%dos problemas de saúde de umapopulação e que resolva 95% deles

constitui condição fundamental paraa viabilidade, inclusive financeira,dos sistemas públicos de saúde.Com essa finalidade, as equipes deatenção primária necessitam operarcom três funções complementares:a clínica, a de saúde pública e umade acolhimento (atendimento ao

imprevisto e atenção à demanda).No Brasil, temos valorizado adimensão de saúde coletiva e subes-timado as duas outras. Na Europa,observa-se tradição distinta, compredomínio da função clínica, o quese reflete na própria composição dasequipes, em geral reduzidas a um

médico geral e técnicos de Enfer-

magem. No Brasil, em função dealgumas especificidades de nossahistória, influência norte-americana

(atenção primária focal e voltadapara programas preventivos ou depromoção) quando da definição doconceito de centro de saúde e deatenção primária, e em decorrênciada importância da doutrina do cam-po da saúde coletiva na constituiçãodo SUS, tendemos a valorizar a

função de saúde pública na atençãoprimária em detrimento da açãoclínica. Não seria por outro motivoque nosso programa oficial de aten-ção primária - o Programa de Saúdeda Família (Ministério da Saúde,1996) - estipula a maior e mais com-plexa equipe entre todos os sistemas

públicos atualmente existentes.Toda essa confusão epistemoló-gica e doutrinária, mais uma sériede inconsistências na política egestão desse programa, produziramuma lentidão na constituição doPrograma de Saúde da Família ousimilares no Brasil, e isso tem com-

prometido o SUS como um todo.O financiamento aos municípios éinsuficiente - sustentar essa equipemínima, além de medicamentos eoutras despesas, custa bem mais doque os repasses. Os municípios nãotêm conseguido resolver comple-xos entraves na gestão de pessoal

devido ao apoio tímido dos estados

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e do Ministério da Saúde. A rede desaúde da família vem sendo criadade maneira desarticulada com o

restante do sistema, havendo poucarelação entre Atenção Primária eespecialidades ou hospitais.

6- Outro ponto essencial nareforma da reforma é a revisão domodelo de gestão ainda emprega-do no SUS, tanto aquele utilizado

para administrar os serviços própriosquanto o vigente na relação comprestadores privados ou filantrópi-cos. Há que se considerar os limitesde qualquer reforma gerencial oudo modelo de gestão; em geral,o desempenho das organizaçõesdepende de um complexo de fato-

res, entre eles, o contexto político,econômico e cultural, e não so-mente de alterações tecno-geren-ciais, ainda que estas interfiram nodesempenho dos serviços. Mesmoassim, é importante complementar-se a Lei Orgânica da Saúde, criandonovas modalidades de organização

para os serviços próprios do Estadoe nova forma de relação entre entesfederados e prestadores privados oufilantrópicos.

 Acumulam-se evidências sobrea inadequação do modelo atual-mente vigente na AdministraçãoDireta para a gestão de hospitais e

serviços especializados. A rigidez

exigida na execução orçamentária,o emperramento na administraçãode pessoal, a excessiva interferência

político-partidária, tudo isso temlevado grande número de serviçospúblicos à burocratização e mesmoà degradação organizacional. Aolongo dos anos, gestores inventaram“remendos” para contornar partedessas dificuldades, ressaltando-sea criação de autarquias, agências e

fundações de apoio com a funçãode facilitar a gestão financeira e depessoal. Recentemente, apareceua alternativa de delegar a gestãodesses serviços a entidades civis pri-vadas, criando-se leis e normas quepermitiram a existência de organiza-ções sociais (Ibañez, 2001), ou OS-

CIPS, integradas à rede do SUS. Essaúltima linha de mudança indica umadesistência da Administração Dire-ta, já que investe em modalidadesde gestão com base em contratosentre o gestor - restrito ao papel deregulador - e entes privados sem fimlucrativos. Essa alternativa tem ante-

cedentes no país, uma vez que, háanos, existem convênios entre o SUSe santas casas, com problemas quese acumulam tanto em decorrênciada insuficiência de financiamentocomo de problemas gerenciais,ocorrendo também inúmeros casosde degradação organizacional.

Essa discussão sobre o mode-

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68lo de gestão para o SUS tem sidomarcada por posições polares dedefesa do status quo da administra-

ção pública (estatistas) ou de priva-tizações em diferentes modalidades(privatistas), com fundamentaçãobastante ideológica e principista. Hánecessidade de se construir pro-posta com amplo consenso, forte osuficiente para romper a inércia daúltima década. Seria conveniente in-

verter-se essa lógica, construindo-seum modelo indutivo, isto é, comporum desenho organizacional a partirde um conjunto de característicasconsideradas importantes para obom desempenho de hospitais e doscentros especializados do SUS, isso,óbvio, composto por diretrizes e

leis fundadoras do sistema: deve-serespeitar o fato de que esses serviçosfazem parte de um sistema público,

hierarquizado e que devem funcio-nar em rede com outros serviços.Deste trabalho, poderia sur-

gir um desenho do que seriam oshospitais do SUS. Com isso, poder-se-ia criar as organizações do SUSsob gestão municipal, estadual oufederal. Esse novo desenho para a

 Administração Direta deveria resol-ver alguns dos entraves já identifica-dos decorrentes da atual legislação,que simplesmente estendeu para oSUS o modelo de gestão do Estadobrasileiro sem considerar as especi-ficidades do campo da saúde e doSUS em particular.

IBAÑEZ, Nelson. Organizações So-ciais de Saúde: o modelo do estadode São Paulo. Ciência & Saúde Co-letiva, 6(2), 2001, pp. 391-404.

MENDES, Rosa & MENDES, Áquila.Os Des(caminhos) do Financia-mento do SUS. Saúde em Debate,27(65), 2003, pp.8-25.

MINISTÉRIO da SAÚDE – BRASIL.Saúde da Família: uma estratégia deorganização dos serviços de saú-de. Brasília, documento oficial da

Secretaria de Assistência à Saúde,março/1996.

POCHMANN, Márcio. Proteção

Social na Periferia do Capitalismo:considerações sobre o Brasil. SãoPaulo em Perspectiva, 18(2), 2004,pp. 3-16.

PORTO, S. et al. Alocação Eqüitativade Recursos Financeiros: uma alter-nativa para o caso brasileiro. Saúdeem Debate, 27(65), 2003.

Referências

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  Emerson Elias Merhy20 

Ofereço como imagem, parapoder conversar sobre cuidadoe subjetividade, a figura do brin-cante. Todos, quando estamoscantando e/ou dançando uma

música qualquer, em particularmarchinhas, cantigas, entre outras,o fazemos em um nó de passagem.Há, por ali, forças que se repetemem todos os que cantam e dançamaquela música em particular; tam-bém há forças que marcam o lugardo cantar e do dançar na cultura

da sociedade que constituímos; po-rém, há um acontecer que só ocor-re ali, em ato, com aquele dançan-te e cantador específico, como ummanejo do momento, como umfabricar, ali no cotidiano do acon-tecimento, a dança e o canto, quenenhum outro irá fabricar igual.

Há, por ali, no nó, um passarpara o dentro e do dentro parafora daquele que dança e canta.O seu interior e o seu exterior, noacontecimento, são inseparáveis, seconstituem, dobram-se. Esse ali emato é o puro brincante. Ele é a sín-tese em produção no ato de todas

as forças que passam pelo nó. No

seu acontecer é que as forças, defato, existem.

Imagine, agora, que dois brin-cantes encontram-se, como paresde dançarinos, mesmo que tenhammomentos de compassos, passos,cantos; nos nós de seu encontro,

como uma micropolítica, cada ummantém as características descritasanteriormente. Entretanto, comomicropolítica, um intervém nooutro. O brincante a dois é umprocesso que, mesmo contendotodas as repetições particularese gerais, só existe no ato do seu

acontecimento.Essas figuras dos brincantes,tiradas das falas de Suassuna eNóbrega, para mim, são as quemelhor trazem a imagem que gos-taria de ofertar para poder falar docuidado em saúde.

Vejamos essa situação consi-

derando um encontro entre umtrabalhador de saúde e um usuáriode seu serviço; essa imagem podeser ampliada para uma equipede trabalhadores e um grupo deusuários, e a reflexão que se seguecontinua pertinente.

 Associo os dois a brincantes,

porém em recortes situacionais

O Cuidado é um acontecimento,e não um ato

20Médico sanitarista Professor colaborador na Unicamp e na UFRJ

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70bem distintos. Agora, é marcantedo encontro o que caracteriza a“alma” do campo da saúde: a pro-

messa de que ali é um lugar de en-contro de atores sociais / sujeitos,no qual uma parte está ali comoexpressão e portador de necessi-dade de saúde (que emerge sob afigura de qualquer tipo de deman-da) e uma outra está ali por seridentificada como portadora de um

certo saber-fazer tecnológico, pro-dutor de cuidado em saúde para ooutro. Nessa promessa, as imagensque cada um produz são distintas:o trabalhador coloca-se no lugar dequem vai cuidar, por ter um con- junto de saberes e técnicas, sendoo efetivo prometedor de que, com

isso, vai resolver o problema dooutro; o usuário coloca-se no lugardo objeto da ação do outro, porémsupõe que isso vai dar conta de suademanda, que, no fundo, carrega opedido de ver garantida a recupe-ração do “seu modo de caminhara vida”, dentro do que deseja e

representa como tal. Aqui, como nos brincantes docomeço deste texto, em cada umdeles e nos seus encontros, há apresença de linhas de forças quesão muito particulares e gerais, mashá as muito específicas que garan-tem que o encontro no ato traz,

dentro de si, a expressão de que:

faz diferença quem está se encon-trando.

O cuidado é um acontecimentoprodutivo intercessor

Quando um trabalhador de saú-de se encontra com um usuário nointerior de um processo de trabalho,em particular clinicamente dirigi-do para a produção do cuidado,

estabelece-se entre eles um espaçointercessor que sempre existirá nosseus encontros, mas só nos seusencontros, e em ato. A imagemdesse espaço é semelhante à daconstrução de um espaço comum,no qual um intervém no outro, porisso é caracterizado como processo

intercessor, e não como simplesintersecção, pois contém, na suaconstitutividade, a lógica da mútuaprodução em ato micropolítico, quesupõe a produção de um no outro.

1. Os esquemas mais comunsem processos de trabalho como os

da saúde, que realizam atos ime-diatamente de assistência com ousuário, apresentam-se como o dodiagrama abaixo, que chamo deuma “intersecção partilhada”

xxxx trabalhadorusuário

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Os que se constituem nos casosmais típicos de processos de traba-lho, como o de um marceneiro que

produz uma cadeira, mostram queo usuário é externo ao processo,pois o momento intercessor se dácom a “madeira”, que é plenamentecontida pelo espaço do trabalhador,como uma “intersecção objetal”.

Essa distinção da constituiçãodos processos intercessores mostracomo a dinâmica entre o produtor eo consumidor e o jogo entre ne-cessidade e satisfação ocorrem emespaços bem distintos, e, inclusive,como os possíveis modelos de con-figuração dessa dinâmica podem sermais ou menos permeáveis a essascaracterísticas.

No jogo de necessidades que secoloca para o processo de trabalho,é possível, então, se pensar:

1. que, no processo de traba-lho em saúde, há um encontro doagente produtor, com suas ferra-mentas (conhecimentos, equipa-

mentos, tecnologias, de um modogeral), com o agente consumidor,

xxxxxmadeiraxxxxx

marceneiro

usuáriocadeira

tornando-o, parcialmente, objetoda ação daquele produtor, mas, semque com isso deixe de ser também

um agente que, em ato, coloca suasintencionalidades, conhecimentos erepresentações, expressos como ummodo de sentir e elaborar necessi-dades de saúde para o momento dotrabalho; e

2. que, no seu interior, há umabusca de realização de um produto/ 

finalidade, como, por exemplo,a saúde que o usuário representacomo algo útil, por permitir-lhesestar no mundo e poder vivê-lo, deum modo autodeterminado, con-forme o seu universo de representa-ções, e assimilado como um proces-so distinto pelos agentes envolvidos,

podendo até coincidir.Tal fato revela que a análise doprocesso intercessor que se efetivano cotidiano dos encontros pode evi-denciar a maneira como os agentesse colocam enquanto “portadores/ elaboradores” de necessidades, nointerior desse processo de “intersec-

ção partilhada”. Os agentes produto-res e consumidores são “portadores”de necessidades macro e micropoliti-camente constituídas bem como ins-tituidores de necessidades singularesque atravessam o modelo instituídono jogo do trabalho vivo e morto aoqual estão vinculados.

 A conformação das necessidades,

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72portanto, dá-se em processos sociaise históricos definidos pelos agentesem ato, como positividades, e não

exclusivamente como carências, de-terminadas de fora para dentro. Aqui,não interessa o julgamento de valoracerca de qual necessidade é maislegítima; esse é um posicionamen-to necessário para a ação, mas nãopode ser um a priori para a análise,porque o importante é perceber que

todo o processo de trabalho é atra-vessado por distintas lógicas, que seapresentam para o processo em atocomo necessidades, que disputam,como forças instituintes, suas institui-ções. Como os brincantes.

Uma análise mais detalhada dasinterfaces entre os sujeitos instituídos,

seus métodos de ação e o modocomo esses sujeitos se interseccionampermite realizar uma nova compre-ensão sobre o tema da tecnologia emsaúde, ao se tomar como eixo nor-teador o trabalho vivo em ato, que éessencialmente um tipo de força queopera permanentemente em proces-

so e em relações.O cuidado é um acontecimen-to no qual há a presença de valisestecnológicas múltiplas.

Para facilitar o entendimento dasquestões que trato, agora, proponhocomo imagem o encontro entre umtrabalhador de saúde, como um

médico ou um enfermeiro ou um

psicólogo ou um outro qualquer,e um usuário, olhando esse en-contro sob a noção das valises que

aquele profissional de saúde utilizapara agir no processo intercessor.Vou considerar que essas valisesrepresentam caixas de ferramentastecnológicas, enquanto saberes eseus desdobramentos materiais enão-materiais, que fazem sentido deacordo com os lugares que ocupam

naquele encontro e conforme asfinalidades que o mesmo almeja. Acredito que o trabalhador, para

atuar, utiliza três tipos de valises:uma que está vinculada a sua mão ena qual cabe, por exemplo, um es-tetoscópio, bem como uma caneta,papéis, entre vários outros tipos que

expressam uma caixa de ferramen-tas tecnológicas formada por “tecno-logias duras”; outra que está na suacabeça, na qual cabem saberes bemestruturados como a clínica ou aEpidemiologia ou a Pedagogia, queexpressam uma caixa formada por“tecnologias leve-duras”; e, final-

mente, uma outra que está presenteno espaço relacional trabalhador–usuário e que contém “tecnologiasleves” implicadas com a produçãodas relações entre dois sujeitos, quesó têm existência em ato.

Olhando essas valises e pro-curando entendê-las sob a ótica

da micropolítica dos processos de

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trabalho, pode-se afirmar que todasexpressam processos produtivossingulares implicados com certos

tipos de produtos. Por exemplo, avalise das mãos, das tecnologias du-ras, permite processar com os seusequipamentos: imagens, dados físi-cos, exames laboratoriais, registros,entre outros. Porém, esses produtos,para serem realizados, consomem,além do trabalho morto das coisas

que operam, o trabalho vivo de seu“operador”, com os seus saberestecnológicos, mas de tal modo quehá uma captura predominante domomento vivo pela lógica produti-va instituída no equipamento, porexemplo.

 A outra valise, a da cabeça, per-

mite processar o recorte centradono olhar do trabalhador sobre o usu-ário, enquanto objeto de sua inter-venção, em um processo de capturado mundo daquele e de suas neces-sidades sob uma forma particular designificá-lo. Esse olhar é construído apartir de certos saberes bem defini-

dos, expressando-se como trabalhomorto, daí o seu lado duro. Mas,nos momentos de sua concretude,no agir sobre o usuário através deseu trabalho vivo em ato, é “conta-minado” no seu processar produti-vo, dando-lhe uma certa incertezano produto a ser realizado e des-

viando-o de sua dureza pela relação

centralmente leve que o usuárioreal impõe para o raciocínio clínico.Mesmo que armado, o olhar vai

se singularizar no ato. Porém, pormais que sofra essa “contaminação”,dando-lhe uma certa leveza peloagir em ato do trabalho vivo - quenão é plenamente capturado pelosaber tecnológico bem definido,pois tal captura também é disputadapelo usuário presente em ato nesse

processo -, os produtos realizadosnessa situação produtiva podem sercircunscritos pela imposição do ladomais duro desse processo sobre omais leve. Mas o contrário tambémpode ocorrer. Não há só uma formade se realizar a clínica.

Essa situação incerta da finalida-

de que será cumprida nesse tipo deprocesso produtivo inscrito na valiseda cabeça contaminará a valise damão, pois relaciona-se com ela emum processo de dominância. É apartir desse terreno, o da valise dacabeça e de seus processos produ-tivos, que os produtos da valise da

mão adquirem significados comoatos de saúde, e o maior endure-cimento dos processos produtivosem torno de saberes tecnológicosmuito bem definidos dará maior oumenor interdição à possibilidade domundo do usuário penetrar tambémcomo capturador das finalidades dos

processos produtivos em saúde.

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74Os distintos modelos de atenção

variam nessa situação relacional,mas, sem dúvida, a valise que, por

suas características tecnológicaspróprias, permite reconhecer naprodução dos atos de saúde umasituação de permanente disputa emaberto de jogos de captura, impos-sibilitando que as finalidades e mes-mo os seus objetos sejam de umaúnica ordem, é a valise do espaço

relacional trabalhador–usuário. Osprocessos produtivos em saúde queocorrem nesse espaço só se realizamem ato e nas intercessões do traba-lhador e do usuário. É esse encontroque produz, em última instância,um dos momentos mais singularesdo processo de trabalho em saúde

enquanto produtor de cuidado.Entretanto, é um encontro que otrabalhador também procura captu-rar. É só verificar para esse momentoprodutivo a importância que asregras sobre a ética do exercício pro-fissional e os saberes sobre a relaçãotrabalhador-usuário adquirem para

se ter noção do quanto o trabalhovivo em ato do trabalhador tambémestá operando sobre esse espaço,tentando, com a valise da cabe-ça, impor seu modo de significaresse encontro e ampliando-a comsaberes além dos da clínica. Lembraas várias linhas de força atuando no

canto e dança dos brincantes.

Esse é um espaço ocupado porprocessos produtivos que só sãorealizados na ação entre os sujeitos

que se encontram. Por isso, essesprocessos são regidos por tecnolo-gias leves que permitem produzirrelações, expressando, como seusprodutos, por exemplo, a construçãoou não de acolhimentos, vínculose responsabilizações, jogos transfe-renciais, entre outros. A presença de

situações mais duras nesse espaçoprodutivo é praticamente insigni-ficante, pois, mesmo que, para oencontro, também tenha que se teruma certa materialidade dura, elenão é dependente dela. É como sepudesse dizer que o processo deprodução de um certo acolhimento

realiza-se até na rua ou em qualqueroutro lugar.Esse momento produtivo, essen-

cialmente do trabalho vivo em ato,é aberto à disputa de capturas porvárias lógicas sociais, que procuramtornar a produção das ações de saú-de de acordo com certos interesses

e interditar outros. Não perde nuncasua tensão de espaço de disputa,e, mais que isso, não perde nuncaa demonstração de que as forças,mesmo interditadas, estão operandoem ato com sua presença, sempre.É nesse espaço que a busca captu-rante do usuário apresenta maior

chance de conquistas para impor

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“finalidades” ao trabalho vivo dotrabalhador.

 A relação particular que essa vali-

se adquire com as outras duas defineo sentido social e contemporâneo doagir em saúde: a produção do cui-dado, como uma certa modelagemtecnológica (de saúde) de realizar oencontro entre o usuário e seu mun-do de necessidades como expressãodo “seu modo de andar na vida”, e

as distintas formas produtivas (tecno-lógicas) de capturar e tornar aquelemundo seu objeto de trabalho.

 As diferentes formas de realizaros modelos de atenção à saúde,sob a ótica do trabalho em saúde,definindo reestruturações produtivasno setor, mostram que os arranjos

entre essas valises são estratégicos emesmo definidores do sentido dosmodelos, a partir das configuraçõesque adquirem internamente, e entresi, as valises da cabeça e do espaçorelacional.

Na Medicina tecnológica, porexemplo, há um empobrecimento

da valise das tecnologias leves, des-locando-se o eixo do arranjo tecno-lógico para uma articulação especialentre a valise das tecnologias leve-duras com a das tecnologias duras,de um jeito a mostrar uma relaçãocada vez mais focal da competênciada ação do médico, a ponto de o

mesmo praticamente reduzir-se a

uma unidade de produção de pro-cedimentos, como o ato de saúde aser pretendido. Expressa certos pro-

cederes bem definidos, reduzidosa meros procedimentos pontuais,subespecializados no plano da for-mação da competência profissional,com os quais os profissionais estabe-lecem os seus verdadeiros vínculose através dos quais capturam osusuários e seu mundo.

Mesmo assim, não elimina a ten-são constitutiva do conjunto dos atosde saúde enquanto produção docuidado, e muito menos consegueapagar o fato de que o conjunto dosprocederes em saúde são situaçõesque buscam a captura do trabalhovivo em ato substantivamente.

O trabalho médico, para se re-alizar como uma forma do cuidadoem saúde, tem que construir compe-tência de ação em duas dimensõesbásicas das intervenções em saúde- uma, a da dimensão propriamentecuidadora, pertinente a todos os ti-pos de trabalhos de saúde, e a outra,

a dimensão profissional centrada,própria de seu recorte tecnológicoespecífico - para compor o seu lugarna organização e estruturação dosmodelos de atenção. A construçãodessas competências é conseguidanos possíveis arranjos que as trêsvalises permitem, produzindo uma

intervenção médica tanto focada nos

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76procedimentos quanto em certasformas cuidadoras.

O cuidado é um acontecimento

autopoiético.Há, nos processos relacionaisentre sujeitos - individuais e/ou cole-tivos - uma micropolítica dos en-contros, expressa por vários mapas,ou melhor, por uma efervescentecartografia daqueles processos rela-cionais, que os sujeitos do encontro

operam.Para compreender partes dessacartografia, lanço mão da noção deautopoiese, que me ajuda a com-preender um pouco mais os váriosprocessos constitutivos das ações nosencontros, como no caso da relaçãoentre aquele que cuida e aquele

que é cuidado, dimensão típica docampo da saúde.Por isso, antes de entrar nessa

micropolítica do cuidado comoencontro, suas tensões e desafios,retorno a um trecho do texto “Aloucura e a cidade, outros mapas”para partilhar da conceituação de

autopoiese, da qual tiro proveito. Após descrever situações deencontros, nas quais o que se mos-trava eram processos relacionais dedominação, exclusão, eliminação,entre outros processos de interdição,escrevi, naquele texto:

“Criei, para mim, dessa manei-

ra, uma terceira imagem: pensei

{nas}cenas sob a perspectiva deuma micropolítica de encontros.De posse dessa idéia, da micro-

política de encontros, tentei olhar,de novo, para todas as cenas nãomais sob a ótica de que o presenteera duro e que o futuro seria muitomais duro. Procurei olhá-las como“lugares”, onde se encontram ou serelacionam territórios-sujeitos, emacontecimentos e aconteceres. E,

aí, todas essas cenas começaram aexpressar outras possibilidades: ali,existiam sujeitos, territorializadose em desterritorializações, encon-trando-se nas suas dificuldades,nas suas comensalidades, nas suaspossibilidades, nas suas lutas, o queme permitia olhar os encontros de

territórios-sujeitos em movimentoe tentar criar novas categorias paramirá-los e para pensar o que acon-tecia, ou poderia acontecer, nessamicropolítica dos encontros.

 A primeira noção que adotei eraque, ali, aconteciam várias coisasao mesmo tempo e que não neces-

sariamente se excluíam. A segundaera que isso permitiria ter uma outrachave para ver “portadores de futu-ro”, tanto quanto a redenção ou amudança radical do encontro. A ter-ceira era que, na micropolítica dosencontros que ocorriam nas cenas,havia várias relações de interdições

e fugas.

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Nessa micropolítica dos encon-tros, territorializam-se, dentro dasloucuras que ela contém, relações

onde territórios e sujeitos interdi-tam outros territórios e sujeitos. Osencontros explodem como umarevelação de que agrupamentos desujeitos colocam-se diante de outrosagrupamentos, com a vontade e aação de interditar o outro, inclusiveno seu pensamento. Parece que o

outro, como estrangeiro, é, para ele,um grande incômodo, não supor-tando a possibilidade de este existirnem como imaginador, movimentoque se dá em todos os lados, de uma outro, sem parar.

Essas cenas continham essespontos, só que continham também

outros processos de encontros, ou-tras situações ocorrendo no mesmotempo do processo de interdição,como outras formas desses mesmosagrupamentos-sujeitos processaremsuas micropolíticas, e que chamei,para minha nova leitura, de en-contros autopoiéticos. Como um

acontecer no outro acontecimento-interdição.”O que é, então, esse encontro

autopoiético, que opera na relaçãocuidador-cuidado? Seria aquele noqual ocorre, micropoliticamente,o encontro de duas vidas, de trêsvidas, de quatro vidas, de n vidas,

em mútuas produções. Essa palavra,

autopoiético, tomo emprestada daBiologia, que a utiliza para falar domovimento de uma ameba, por

expressar e significar uma imagemde que o caminhar de um vivo/vida,que se produz em vida, expressandoum movimento que tem que cons-truir o sentido de um viver de modocontínuo, senão a sua característicade ser vivo se extingue. Tem a forçade representar o movimento da vida

que produz vida. A autopoiese, portanto, é isso,um movimento da vida produzindovida, o que me permite ressignificaras cenas dos encontros na produçãodo cuidado em saúde, que passama ter novos sentidos, para mim: omesmo lugar ocupado pela interdi-

ção é também espaço de encontroautopoiético. Há uma micropolíticainscrita dentro da outra, e é isso quepermite a sensação, por exemplo,de, em uma cena que transmite aangústia da morte, que pode inclusi-ve tomar conta dela, de repente, sercarregada, preenchida pela possi-

bilidade da produção da vida noencontro desses viveres. A tutela autonomizadora da pro-

dução do cuidado, no seu modo deagenciar uma libertação a partir desi, aparentemente em um movimen-to paradoxal, no qual, da depen-dência, procura-se gerar liberação

para não se tornar um mero projeto

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78“autocentrado”, tem que cami-nhar com a produção do processoliberador concomitantemente com

a do processo público de estabeleci-mento de responsabilizações, que sereferem ao momento de as máqui-nas desejantes estarem implicadascom outras, em possíveis processoscooperativos e contratualizados, em

Os conceitos-chaves deste textoestão elaborados nos textos indica-dos abaixo, produzidos pelo autor:

Capítulos 2 e 4 do livro Saúde: a

cartografia do trabalho vivo, publi-cado pela editora Hucitec, SP, novaedição de 2006.

Texto cuidado com o cuidado,escrito em 2004, que pode serobtido no endereço eletrônico: http: //paginas.terra.com.br/saude/merhy

um movimento em que o agir vivode um dispara produção de vida nooutro.

Este é o sentido mais intensodo cuidado como um acontecerbrincante.

Referências

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