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Trata-se de livro do I Encontro de História do Ministério Público do Rio Grande do Sul, realizado em 2013.

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Page 1: I Encontro de História Ministério Público Do RS

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ESPAÇOS DE SABER E PODER: INSTITUIÇÕES E SEUS AGENTES NA PERSPECTIVA DA HISTÓRIA SOCIAL

Page 3: I Encontro de História Ministério Público Do RS

Crédito fotografia de capa

Walter Só Jobim (Secretário de Obras Públicas entre 26.10.1937 e 27.12.1939) e engenheiros do DAER -

homenagem - Boletim do DAER, n.º 6, ano II, janeiro de 1940.

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ESPAÇOS DE SABER E PODER: INSTITUIÇÕES E SEUS AGENTES NA PERSPECTIVA DA HISTÓRIA

SOCIAL

Coletânea de textos apresentados no I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul (05 e 06 de junho de 2013)

2014

CÍNTIA VIEIRA SOUTO

MARCELO VIANNA

ANA PAULA KORNDÖRFER

THIAGO AGUIAR DE MORAES

(Organizadores)

Page 5: I Encontro de História Ministério Público Do RS

Copyright dos autores (2014) Editoração: Marcelo Vianna, Ana Paula Korndörfer, Thiago Aguiar de Moraes, Cristiano Enrique de Brum Revisão: autores, Sônia Beatriz da Silva Pinto, Marcelo Vianna, Ana Paula Korndörfer, Thiago Aguiar de Moraes Capa e arte-final: Marcelo Vianna

Laboratório de História Comparada do Cone Sul Flavio M. Heinz (coordenador) Amanda Chiamenti Both Ana Paula Korndörfer Cristiano Enrique de Brum Eduard Esteban Moreno Jefferson Teles Martins Leandro Rosa de Oliveira Letícia Rosa Marques Marcelo Vianna Monia Franciele Wazlawoski Tassiana Maria Parcianello Saccol Thiago Aguiar de Moraes Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul Velocy Melo Pivatto (coordenadora) Sônia Beatriz da Silva Pinto Cíntia Vieira Souto Luciano Silva dos Santos (estagiário)

Catalogação na Publicação: Bibliotecária Eliete Mari Doncato Brasil - CRB 10/1184

E77 Espaços de saber e poder: instituições e seus agentes na perspectiva da história social / Organizadores: Cíntia Vieira Souto et al. -- Porto Alegre: Memorial do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul, 2014. 226 p. : il. ; 2400Kb; PDF Coletânea de textos apresentados no I Encontro de História – Memorial do

Ministério Público do Rio Grande do Sul (05 e 06 de junho de 2013).

ISBN 978-85-88802-20-9 1. Histografia. 2. História social. 3. Ministério Público - Rio Grande do Sul - História.

I. Souto, Cíntia Vieira. II. Vianna, Marcelo. III. Korndörfer, Ana Paula. IV. Moraes, Thiago Aguiar de.

CDU 930.2

Page 6: I Encontro de História Ministério Público Do RS

APRESENTAÇÃO FLAVIO M. HEINZ E ANA P. KORNDÖRFER PARA QUE SERVE UMA HISTÓRIA SOCIAL DAS INSTITUIÇÕES? ..................................... 7 MESAS JEFFERSON TELES MARTINS OS CONSTRANGIMENTOS ECONÔMICOS DO TRABALHO INTELECTUAL – AURÉLIO PORTO E AS ANOTAÇÕES DO PROCESSO DOS FARRAPOS......................... 17 MARISÂNGELA MARTINS ESCRITORES COMUNISTAS E AS CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO E DE CONSAGRAÇÃO LITERÁRIAS EM PORTO ALEGRE (1920-1960) ........................................ 26 HERNÁN RAMÍREZ A PROSOPOGRAFÍA ALÉM DO MÉTODO: USOS NO ESTUDO DO NEOLIBERALISMO ............................................................................................................................... 34 MARCELO VIANNA PROMOTOR PÚBLICO COMO PROFISSÃO: REFLEXOS DO PROCESSO DE INSTITUCIONALIZAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO RS ENTRE OS ANOS 1930 E 1960 .......................................................................................................................................................... 48 TASSIANA MARIA PARCIANELLO SACCOL A ELITE DA PROPAGANDA REPUBLICANA RIO-GRANDENSE: UM PERFIL SOCIOLÓGICO ....................................................................................................................................... 59 THIAGO AGUIAR DE MORAES ATUAÇÃO DO EMPRESARIADO GAÚCHO ATRAVÉS DO IPESUL (1962-1971) ........... 75 MONIA FRANCIELE WAZLAWOSKI DA SILVA A REVISTA EGATEA E A PROFISSÃO DE ENGENHEIRO NO RIO GRANDE DO SUL: A DEFESA DA TÉCNICA, DA EXPERIMENTAÇÃO E DA CIÊNCIA ................................. 85 GEANDRA DENARDI MUNARETO A MEDICINA NO RIO GRANDE SUL: REGULAMENTAÇÃO E CONSTRUÇÃO DAS ESPECIFICIDADES DO CAMPO PROFISSIONAL ..................................................................... 94 TATIANE BARTMANN QUESTÕES TRABALHISTAS NAS EMPRESAS FUNDADORAS DO CINFA (1941-1945) .................................................................................................................................................................... 109 LUCIANA BAGGIO BORTOLOTTO E VANESSA BERWANGER SANDRI

SUMÁRIO

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A FUNÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO RIO GRANDE DO SUL, SEU ACERVO E O ACESSO À INFORMAÇÃO ........................................................................................................... 124 COMUNICAÇÕES DAIANE SILVEIRA ROSSI AÇÕES DE SAÚDE PÚBLICA EM SANTA MARIA-RS COMO UM PROCESSO DE FORMAÇÃO DE PODER ................................................................................................................... 133 CRISTIANO ENRIQUE DE BRUM POSTO DE HIGIENE X MORADORES DE CAXIAS: RESISTÊNCIAS E REAÇÕES AO REGULAMENTO DO DEPARTAMENTO ESTADUAL DE SAÚDE DO RIO GRANDE DO SUL .................................................................................................................................................... 140 BRUNO CORTÊS SCHERER INSTITUIÇÕES ESPÍRITAS E SUAS AÇÕES SOCIAIS: A SOCIEDADE ESPÍRITA FEMININA ESTUDO E CARIDADE, SANTA MARIA - RS, DÉCADAS DE 1940 E 1950 .................................................................................................................................................................... 146 JONATHAN FACHINI DA SILVA A CÂMARA MUNICIPAL E OS EXPOSTOS: A CARIDADE E A FILANTROPIA NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DO ABANDONO EM PORTO ALEGRE (1772-1822) ..... 156 DENIZE TEREZINHA LEAL FREITAS “MANDA QUEM PODE, OBEDECE QUEM TEM JUÍZO”: OS REGISTROS PAROQUIAIS COMO FONTES DE ACESSO ÀS RELAÇÕES DE PODER NUMA PORTO ALEGRE DE ANTIGO REGIME (1772-1822) .............................................................. 167 DÉBORA SOARES KARPOWICZ METODOLOGIA E FONTES PARA ANÁLISE DA PENITENCIÁRIA FEMININA MADRE PELLETIER ........................................................................................................................... 177 CLARISSA PRESTES MEDEIROS A TRAJETÓRIA ADMINISTRATIVA DO MARQUÊS DE ALEGRETE NA CAPITANIA DE SÃO PEDRO DO RIO GRANDE DO SUL (1814-1818) ...................................................... 187 JOSÉ ROGÉRIO BEIER A TRAJETÓRIA DO GABINETE TOPOGRÁFICO DE SÃO PAULO: A FORMAÇÃO DE ENGENHEIROS PRÁTICOS CONSTRUTORES DE ESTRADAS NA PROVÍNCIA DE SÃO PAULO (1835-1849) ..................................................................................................................... 193 CARINA MARTINY UMA TRAJETÓRIA, MUITAS RELAÇÕES: O LÍDER REPUBLICANO JÚLIO PRATES DE CASTILHOS E SEUS CORRELIGIONÁRIOS ....................................................................... 204 DANIEL AUGUSTO PEREIRA MARCÍLIO CASO DIÁRIOS ASSOCIADOS X JOÃO FREIRE, DE 1946 – POSSIBILIDADES DE PESQUISA HISTÓRICA ...................................................................................................................... 212 JOÃO BATISTA SANTAFÉ AGUIAR COMUNICAÇÃO – ATIVIDADE PERMANENTEMENTE EM CONSTRUÇÃO ............. 222

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Espaços de saber e poder: instituições e seus agentes na perspectiva da História Social

PARA QUE SERVE UMA HISTÓRIA SOCIAL DAS INSTITUIÇÕES?

FLAVIO M. HEINZ1

ANA P. KORNDÖRFER2

Em junho de 2013, o Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul organizou,

com apoio do Laboratório de História Comparada do Cone Sul – LabConeSul (PUCRS/CNPq),

o I Encontro de História Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul. O

Encontro foi uma iniciativa do Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul para

aproximar-se do público acadêmico e abrir um novo espaço para discussões sobre a história de

instituições e grupos dirigentes. Realizado no Palácio do Ministério Público, o evento teve como

temática “Espaços de Saber e Poder: Instituições e seus Agentes na Perspectiva da

História Social”, e buscou proporcionar a discussão da história de instituições e seus agentes a

partir de pesquisas acadêmicas na área. Assim, longe de enfocar uma perspectiva laudatória da

história tradicional, a proposta foi prestigiar trabalhos acadêmicos que contemplassem o estudo

da formação de espaços de poder em suas diferentes dimensões (políticas, culturais e econômicas,

entre outras) e os grupos sociais que neles atuavam, incluindo suas elites, reconhecidas ou

contestadas.

Os trabalhos apresentados tiveram como objetivo mostrar as perspectivas teóricas e os

recursos metodológicos empregados em cada pesquisa. Os textos aqui reunidos constituem uma

parcela dos trabalhos que foram apresentados nas mesas e sessões de comunicação do Encontro.

Mas antes, seria importante discutir um ou dois aspectos da história de instituições.

No famoso dicionário de ciências históricas de Burguière, o verbete Instituições, assinado

por Robert Descimon, historiador das elites e do direito, sublinhava que a ideia de instituições –

ou “tudo que é inventado pelo homem”, na oposição ao que releva da natureza, segundo uma

definição do século XVII (Burguière, 370) –, se situava no âmbito do direito mais do que da

sociologia. Com efeito, a história das instituições representa uma tradição intelectual, “uma

história que, senão ciência auxiliar do direito, estava ao menos impregnada de uma fé militante na

lei: o costume, mas, sobretudo, a atividade legislativa do Estado, modelavam a sociedade, eram a

1 Doutor em História pela Universidade de Paris X, Professor do Programa de Pós-graduação em História da PUCRS. E-mail: [email protected] 2 Pós-doutoranda PNPD/CAPES junto ao Programa de Pós-graduação em História da Unisinos. E-mail:

[email protected]

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chave essencial das evoluções política, econômica e cultural”. Descimon, reconhecendo o peso

da tradição na formação do direito e da história, se interrogava, contudo, sobre o fato de que esta

se tornara uma forma ultrapassada da atividade histórica, pouco influenciada pelas diferentes

correntes da nova história. Fazer uma história de instituições era realizar uma história das normas

e dos personagens que habitavam o Estado.3

Discutindo as últimas tendências à época (texto é de 1986), Descimon chamava a atenção

para a contribuição dos estudos de tradição anglo-saxã, que associavam os estudos das

administrações e dos grandes corpos sociopolíticos a uma história política muito perspicaz, e

apontava para os desdobramentos que essas tendências estrangeiras então encontravam na

historiografia francesa: o crescimento de uma história do Estado e o aparecimento de projetos

como o do Dicionário de Ofícios, delineado pelo Instituto de História Moderna e

Contemporânea, “que respondia às exigências de uma erudição nova que não separava homens

de suas funções”, ou ainda o projeto “Gênese do Estado moderno”, do CNRS.4

Concluindo, Descimon fazia uma observação que parece, hoje, quase um vaticínio: “Via

difícil – o tratamento quantitativo não se aplica facilmente à política – mas promissora na medida

em que apenas ela é capaz de realizar um salto epistemológico a estes setores muito tradicionais

das disciplinas históricas e de criar as condições para uma verdadeira história comparativa”

(p.372).

Um programa de pesquisa possível para uma história social das instituições é aquele que

se orienta pelo desvelamento das características e condicionantes sociais dos agentes que operam

nas instituições. Trata-se de pensar esses agentes à luz de suas propriedades recorrentes, de suas

histórias comuns, dos nexos familiares e de formação. O método que muitos historiadores, como

nós, têm utilizado para este tipo de trabalho é o da prosopografia ou das biografias coletivas. Mas

a prosopografia não encerra em si todas as possibilidades de pesquisa em história social de

instituições. A diversidade de situações de pesquisa sobre instituições é imensa, a escala de

investigação, muito variada. Hoje, por exemplo, há jovens pesquisadores trabalhando sobre

associações privadas de caráter político-ideológico, instituições universitárias, instituições

culturais, órgãos públicos, empresas, fundações privadas e governo, provando a força da pesquisa

em história social das instituições.

3 DESCIMON, R. “Institutions” In: BURGUIÈRE, André (éd), Dictionnaire des sciences historiques. Paris: Presses Universitaires de France, 1986, pp.369-372. 4 Centre National de la Recherche Scientifique, principal agência francesa de fomento à pesquisa.

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Uma história social das instituições deveria possibilitar alguns ganhos para a pesquisa

histórica. O primeiro seria orientar a reflexão histórica não para a natureza normativa ou legal das

instituições, o que poderia ser realizado por uma história do direito, por exemplo. O que nos

interessa aqui são as relações sociais que constituem estas instituições. Sai de cena o ímpeto

descritivo e formalista e entram em cena as perguntas “sociais”: quem são, como aí chegaram,

como se definem, enfim, como agem os personagens deste cenário. De certa forma, trata-se de ir

buscar a “carne” da história, os sujeitos (para usar um termo que já teve o seu momento de glória,

mas que caiu num surpreendente desuso) que a fazem.

A adoção desta perspectiva implica também repensar o peso de determinadas fontes

tradicionais do discurso institucional, como manifestos políticos, notas à imprensa e editoriais.

Estas fontes só possuem uma capacidade relativa, parcial, de dizer o que pensam os dirigentes

partidários, os ativistas ou os donos de jornal. Nenhuma declaração traduz uma intenção perfeita,

explicável por si mesma, mas precisa ser lida nas circunstâncias de sua produção, sem o que ela

constitui, apenas, texto, por vezes uma armadilha a historiadores apressados, pois prontas a

revelar uma consistência e, sobretudo, uma coerência que são uma armadilha política para o

pesquisador.

Um segundo ponto a ser observado diz respeito à necessidade de se buscar a gênese dos

processos institucionais. Aqui é preciso se dizer que, do ponto de vista da perspectiva empregada,

é indiferente saber se estamos diante de uma instituição altamente codificada e estruturada, como

é o caso das instituições públicas de justiça, por exemplo, ou se tratamos de outras organizações,

associações, projetos, departamentos ou coletivos. Não é indiferente quanto às soluções

metodológicas a serem utilizadas, é claro, mas afirmamos que é possível estabelecer a mesma

perspectiva de análise centrada na investigação da gênese do processo, no espírito daquilo que

Bourdieu chamou de “sociologia genética”, em diferentes realidades institucionais ou formais.

Tomemos como exemplo a elaboração de políticas públicas como as que orientaram o

desenvolvimento de áreas tecnológicas durante o regime militar. Telecomunicações, energia

nuclear ou informática foram áreas de interesse investidas de um forte comprometimento político

dos dirigentes políticos à época. Mas elas não o foram de forma abstrata, a partir de

manifestações públicas sobre a importância deste ou daquele setor para o crescimento do Brasil.

Para seguir a eficácia deste investimento é preciso seguir as pegadas institucionais que estão na

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formação dos primeiros comitês, na escolha de seus agentes, no desenho das primeiras agências e

na história de sua atuação, dos desmembramentos, regrupamentos que podem funcionar como

sinalizadores de mudanças de rotas da decisão política e da acomodação de setores. Uma agência

pública é tudo menos um corpo paralisado. Ela carrega uma história densa, práticas sociais e uma

memória institucional capazes de revelar ao historiador disposto a procurar muito mais do que

aparenta representar.

Um terceiro ponto poderia se relacionar à dimensão comparativa que se agrega a tal

programa de pesquisa: comparar é dar relevo a semelhanças e diferenças, é oferecer uma arma

poderosa contra a ilusão do caráter único das instituições. Uma das coisas que a história social e

comparada nos assegura, com extraordinária eficácia, é que os aspectos singulares das instituições

tendem a ser menos relevantes do que suas recorrências. Ao compararmos, subtraímos a tentação

particularista e redutora da velha história institucional, e colocamos em marcha o mais formidável

instrumento da moderna pesquisa, a prática colaborativa, cooperativa. Comparar é antes uma

atitude, um passo no caminho de um “melhor clima para a pesquisa histórica”, como sugeriu o

grande historiador comparativista alemão, Jurgen Kocka. Ao compararmos, somos levados a

adotar uma perspectiva contrária ao fechamento temático, à tentação de tomarmos o nosso

objeto – seja ele uma agência pública, um parlamento, uma faculdade, uma associação, um comitê

ou uma política de Estado – como único. Popularmente falando, comparar ajuda a “desentocar”

o historiador, e sabemos todos como, às vezes, é necessário resgatar os historiadores de suas

“tocas” temáticas.

Por fim, é preciso reconhecer que tal programa colabora para uma dessacralização da

ideia de instituição: com efeito, esta só existe pela presença e ação de certos indivíduos. Mesmo

instituições com histórias densas, que parecem dar sentido e perenidade à sua existência, não são

espaços imutáveis, mas campos onde o movimento interno de luta e acomodação é de baixa

intensidade. Instituições jovens são, normalmente, menos estruturadas e codificadas, o acesso a

elas é mais “fácil”, menos regulado, são permeáveis ao social quase de uma forma visível, nelas o

movimento é de média ou alta intensidade. Um exemplo pode ser encontrado na dissertação de

Marcelo Vianna, que analisou a constituição do Ministério Público do RS. No passado, o MP

precisou estruturar-se, mas o fez aos poucos, adaptando-se a modelos externos, incluindo

procedimentos para escolha de promotores, institucionalizando-se. Nenhuma instituição nasce

pronta, pois ela é, sempre, o equilíbrio entre o desenho institucional que se projeta e um arranjo

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mais ou menos político (mas sempre, em alguma medida, político, entre os agentes que a definem

e a compõem).

Sobre os trabalhos apresentados:

Em Os constrangimentos econômicos do trabalho intelectual – Aurélio Porto e as anotações do Processo

dos Farrapos, Jefferson Teles Martins procura desvelar, através da análise da correspondência do

historiador Aurélio Porto, algumas ambivalências do discurso e das práticas deste agente,

evidenciando sua experiência e as coações a que estava condicionado dentro das relações

posicionais como funcionário público e produtor simbólico (escreveu poesia, romance e história),

no interior do espaço social intelectual do Rio Grande do Sul nos anos 1930. A partir da

discussão do episódio envolvendo a transcrição, por Aurélio Porto, de O Processo dos Farrapos, no

contexto da preparação para as comemorações do centenário da Revolução Farroupilha, o autor

problematiza a dependência da posição dos intelectuais em relação ao espaço de poder e seus

agentes no Rio Grande do Sul do início do século XX, bem como as ações dos intelectuais para

contornar limitações.

A proposta de Marisângela Martins, por sua vez, é refletir, como indica o próprio título –

Escritores comunistas e as condições de produção e de consagração literárias em Porto Alegre (1920-1960) –,

sobre as condições de produção e de consagração de escritores comunistas na capital do Rio

Grande do Sul entre as décadas de 1920 e 1960. A partir da análise da trajetória de escritores

comunistas como Cyro Martins, Lila Ripoll e Dyonélio Machado, entre outros, a autora afirma

que as possibilidades de produção e de consagração literárias dependeram de fatores conjunturais

(como o contexto internacional da Guerra Fria, por exemplo) conjugados à valorização de

determinados recursos (como a possibilidade de mobilização de relações sociais).

Em A prosopografia além do método: usos no estudo do neoliberalismo, Hernán Ramírez discute as

possibilidades da prosopografia no estudo do neoliberalismo na Argentina, no Brasil e no Chile,

nas últimas décadas do século XX, através de questões surgidas no decorrer de sua trajetória de

pesquisa. Trabalhando com um repertório mais vasto de métodos, como a análise textual e a

história oral, Ramírez aponta como a prosopografia pode ser importante para confirmar

interpretações historiográficas ou desfazer equívocos.

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No texto Promotor público como profissão: reflexos do processo de institucionalização do Ministério

Público do RS entre os anos 1930 e 1960, Marcelo Vianna se propõe a refletir sobre a formação do

promotor público a partir do MPRS, uma das primeiras instituições organizadas no Brasil, ainda

nos anos 1930. Ao analisar o processo de institucionalização e profissionalização do promotor no

estado, Vianna estabelece uma divisão deste processo em três momentos (1930-1937, 1937-1945

e 1945-1964) que abarcam o período considerado pelo autor como a base do MPRS

contemporâneo.

Tassiana Maria Parcianello Saccol propõe, em A elite da propaganda republicana rio-grandense:

um perfil sociológico, algumas reflexões acerca do grupo formado pelos membros mais influentes ou

pelas lideranças do Partido Republicano Rio-Grandense (PRR) durante a década de 1880, quando

a propaganda republicana começou a tomar forma no estado. O objetivo do texto é conhecer

algumas das principais características dos líderes do Partido e, a partir daí, traçar um perfil

socioeconômico do grupo. No texto, dividido em três partes, a autora busca demonstrar, a partir

da análise prosopográfica de 87 indivíduos (líderes republicanos) e da revisão das principais teses

relativas ao grupo das lideranças republicanas, que estes possuíam mais em comum com os

monarquistas do que acreditava a historiografia tradicional do estado.

O objetivo do texto de Thiago Aguiar de Moraes, intitulado Atuação do empresariado gaúcho

através do IPESUL (1962-1971), é discutir a atuação de uma parcela da classe empresarial gaúcha

através da revista Democracia e Emprêsa (DE) e de ações por parte do Instituto de Pesquisas Econômicas

e Sociais do Rio Grande do Sul (IPESUL), criado em 1962, e de seus integrantes no pré-golpe e

durante a ditadura civil-militar instaurada no país em 1964. O autor parte da interpretação de que

os discursos da revista e a ação da entidade eram voltados para a própria classe empresarial, tendo

em vista a construção de um consenso intra-classe. O texto é dividido em duas partes: na

primeira, Moraes apresenta um panorama sobre o IPESUL e seu funcionamento no contexto

anterior ao golpe de 1964 e, posteriormente, aborda informações sobre a entidade no pós-golpe.

No texto seguinte, A Revista Egatea e a profissão de engenheiro no Rio Grande do Sul: a defesa da

técnica, da experimentação e da ciência, Monia Franciele Wazlawoski da Silva discute a legitimação da

profissão de engenheiro no Rio Grande do Sul a partir da Revista Egatea, periódico oficial da

Escola de Engenharia de Porto Alegre, instituição fundada em 1896. A Revista, criada em 1914,

defendeu o conhecimento técnico e científico como característica da formação de engenheiros na

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instituição de ensino gaúcha e apresentou a engenharia como solução para os problemas do país,

e os engenheiros, como profissionais do progresso.

Geandra Denardi Munareto analisa, em A medicina no Rio Grande Sul: regulamentação e

construção das especificidades do campo profissional, a disputa pelo monopólio profissional e pela

hierarquização das práticas de cura no Rio Grande do Sul das primeiras décadas do século XX.

Neste período vigorou, no estado, a liberdade profissional, estabelecida pela Constituição

estadual de 1891, e que ocasionou disputas acirradas entre médicos e demais práticos de cura. O

Sindicato Médico do Rio Grande do Sul, fundado em 1931, daria vazão às reivindicações dos

médicos no estado, mas, apesar dos esforços deste, a medicina só se efetivaria como profissão

regulamentada, segundo a autora, em 1938.

No artigo Questões trabalhistas nas empresas fundadoras do CINFA (1941-1945), Tatiane

Bartmann traz a questão do empresariado de origem germânica no Rio Grande do Sul,

participante do Centro da Indústria Fabril (1930), e suas relações com seus trabalhadores.

Inferindo um conjunto comum de valores destes empresários, a partir de um ethos germânico, a

autora procura perceber sua presença e relevância nessas relações, explorando reclamações

trabalhistas que tramitaram na 1.ª Junta de Conciliação e Julgamento. Afinal, se sob a ideia do

ethos os conflitos entre trabalhadores e empresários deveriam ser mínimos, a autora mostra –

ainda em caráter inicial de análise – que as demandas sinalizam o contrário, encontrando

condições semelhantes às de outros estados.

Em A função do Ministério Público do Rio Grande do Sul, seu acervo e o acesso à informação, Luciana

Baggio Bortolotto e Vanessa Berwanger Sandri apresentam, brevemente, o trabalho realizado na

gestão dos documentos produzidos e recebidos pelo Ministério Público do Rio Grande do Sul

(MPRS), no cumprimento de suas funções, destacando os Procedimentos Investigatórios –

conjuntos documentais que contextualizam um fato desde sua notícia até seu desfecho –,

armazenados exclusivamente nos arquivos do MPRS, quando não ajuizados. Além disso, o texto

aborda também a Lei de Acesso à Informação (LAI, 2011) e a busca por adequação, no que se

refere à legislação e à estrutura, por parte do Ministério Público estadual.

Em Ações de saúde pública em Santa Maria-RS como um processo de formação de poder, Daiane

Silveira Rossi discute algumas questões referentes a projeto de pesquisa ainda em fase inicial,

buscando compreender em que medida as ações públicas da Intendência de Santa Maria, em fins

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do século XIX e início do XX, refletiram em um processo de formação de espaço de poder do

governo no campo da saúde naquele município.

Cristiano Enrique de Brum analisa, em Posto de higiene X moradores de Caxias: resistências e

reações ao Regulamento do Departamento Estadual de Saúde do Rio Grande do Sul, as reações de diferentes

segmentos da sociedade ao Regulamento, com mais de 600 artigos, proposto pelo Departamento

Estadual de Saúde (DES) a partir da Reforma da Saúde Pública de 1938, enfocando as ocorridas

na cidade de Caxias. A partir de registros encontrados na imprensa, o autor discute as resistências

à implementação do Regulamento, através do qual o DES buscava padronizar um sistema

distrital de saúde e controle sanitário.

O texto de Bruno Cortês Scherer, Instituições espíritas e suas ações sociais: a Sociedade Espírita

Feminina Estudo e Caridade, Santa Maria – RS, décadas de 1940 e 1950, apresenta as reflexões iniciais

de pesquisa que pretende analisar as ações sociais desenvolvidas pelo movimento espírita na

região central do Rio Grande do Sul, enfocando a atuação da Sociedade Espírita Feminina

Estudo e Caridade em Santa Maria durante as décadas de 1940 e 1950. A partir da análise de

livros de atas e relatórios anuais de atividades da instituição, o autor busca compreender as

formas de inserção e difusão dessa perspectiva religiosa na região através de ações nas áreas da

saúde, educação e assistência social num período de afirmação da hegemonia católica no país.

Em A câmara municipal e os expostos: a caridade e a filantropia na administração pública do abandono

em Porto Alegre (1772-1822), Jonathan Fachini da Silva pretende explorar como a Câmara

Municipal de Porto Alegre procurou enfrentar a questão do abandono infantil entre 1772 e 1822,

uma vez que a Câmara era, neste período, a principal responsável pela criação e vestuário dos

pequenos enjeitados. Utilizando-se de fontes como registros paroquiais e termos de vereança, o

autor discute, por exemplo, o perfil social dos criadores de expostos, indicando que se

encarregavam da criação destas crianças desde famílias abastadas até pretas forras, mas com

propósitos distintos.

Já em “Manda quem pode, obedece quem tem juízo”: Os registros paroquiais como fontes de acesso às

relações de poder numa Porto Alegre de Antigo Regime (1772-1822), Denize Terezinha Leal Freitas busca

demonstrar a importâncias dos registros paroquiais – documentos de cunho religioso que trazem

informações sobre batismo, casamento e óbito – como fonte para o estudo das relações sociais e

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de poder em Porto Alegre na passagem do século XVIII para o XIX, possibilitando vislumbrar,

por exemplo, estratégias de mobilidade e ascensão social.

A proposta de Débora Soares Karpowicz, em Metodologia e fontes para análise da Penitenciária

Feminina Madre Pelletier, é discutir, como indica a autora, as opções/possibilidades metodológicas e

de fontes para a análise da criação e administração do primeiro cárcere feminino do Brasil, a

Penitenciária Feminina Madre Pelletier. A administração da Penitenciária foi legada às irmãs da

Congregação Nossa Senhora da Caridade do Bom Pastor d´Angers em 1936, quando foi assinado

o primeiro contrato entre a Congregação e o governo do estado do RS, e assumida pelo Estado

no início da década de 1980. Entre os objetivos do trabalho está reconstituir o processo histórico

que envolve a fundação do Madre Pelletier.

Em A trajetória administrativa do Marquês de Alegrete na Capitania de São Pedro do Rio Grande do

Sul (1814-1818), Clarissa Prestes Medeiros discute a possibilidade de estudo das estratégias

administrativas e políticas do Império Português para o ultramar em fins do período colonial a

partir da análise da trajetória do Marquês de Alegrete, Governador da Capitania de São Pedro,

entre 1814 e 1818, através da correspondência oficial deste.

José Rogério Beier aborda a criação e organização do Gabinete Topográfico, entre 1835 e

1849, em A trajetória do Gabinete Topográfico de São Paulo: a formação de engenheiros práticos construtores de

estradas na província de São Paulo (1835-1849). O Gabinete desempenhou, segundo o autor,

importante papel no ensino de engenharia na província de São Paulo, formando engenheiros

práticos importantes no contexto de expansão da rede viária da província ocasionada pela

dinamização da economia paulista na primeira metade do século XIX.

No artigo Uma Trajetória, Muitas Relações: o Líder Republicano Júlio Prates de Castilhos e Seus

Correligionários, Carina Martiny busca compreender o papel central desempenhado por Júlio de

Castilhos e as relações estabelecidas com seus partidários nos primeiros anos da República para

construir uma hegemonia política no Rio Grande do Sul. Para isso, a autora valeu-se de

correspondências dos correligionários do PRR e suas tentativas de obter vantagens pessoais

(econômicas, sociais, políticas) com o líder republicano. Um recurso notável nesta pesquisa foi a

combinação entre análise quantitativa e qualitativa das correspondências para apurar quem eram e

quais os mecanismos utilizados pelos remetentes.

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I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul

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No texto que segue, intitulado Caso Diários Associados X João Freire, de 1946 – possibilidade de

pesquisa histórica, Daniel Augusto Pereira Marcilio aponta, a partir da análise do caso dos Diários

Associados (de Assis Chateaubriand) contra João Freire (1946-1956), como a utilização de fontes

judiciais pode indicar novas possibilidades de análise da história do jornalismo no Rio Grande do

Sul, levando a outras abordagens.

E por fim, João Batista Santafé Aguiar defende, em Comunicação – atividade permanentemente

em construção, a importância da comunicação com a sociedade como atividade diária necessária de

quaisquer organismos das áreas de museus, arquivos e de gestão de acervos do setor público

como meio para informar e educar os cidadãos. O autor aponta meios para superar dificuldades

identificadas neste sentido, enfocando a experiência do Memorial do Judiciário.

Uma boa leitura a todos!

Page 18: I Encontro de História Ministério Público Do RS

Espaços de saber e poder: instituições e seus agentes na perspectiva da História Social

OS CONSTRANGIMENTOS ECONÔMICOS DO TRABALHO INTELECTUAL – AURÉLIO PORTO E AS ANOTAÇÕES DO PROCESSO DOS FARRAPOS

JEFFERSON TELES MARTINS1

O trabalho intelectual no Rio Grande do Sul da primeira metade do século XX estava

marcado por limitações e constrangimentos de ordem política, econômica e social. Essas

limitações tornaram-se mais evidentes na medida em que o quadro político se alterou, com o fim

da hegemonia republicana no estado, no final da década de 1920, levando os intelectuais a

ambiguidades no discurso e no campo das tomadas de posição. Os intelectuais, de modo geral,

podem ser localizados dentro do espaço social dos dominadores, chamado por Bourdieu de

“campo de poder”, porém ocupando uma posição subordinada dentro desse espaço (Bourdieu,

2006). A condição subordinada dentro da estrutura das relações, num espaço periférico como o

Brasil (e redobrado no caso do Rio Grande do Sul), reforça o aprofundamento dos laços com a

burocracia e o Estado, decorrente da necessidade de sobrevivência dos intelectuais, resultando

em maior dependência e falta de autonomia. Assim, deve-se considerar que, longe de buscarem

autonomia, dentro das condições históricas das primeiras décadas do século XX, a maior parte

dos intelectuais gaúchos procurou o estreitamento das relações com o Estado e seus agentes para

auferir ganhos profissionais, simbólicos e econômicos. A partir dessa perspectiva, buscar-se-á,

através do estudo da correspondência do historiador Aurélio Porto, desvelar algumas

ambivalências do discurso e das práticas desse agente, evidenciando sua experiência e as coações

a que estava condicionado dentro da estrutura das relações posicionais, como funcionário público

e produtor simbólico, no interior do espaço social intelectual dos anos 1930 no Rio Grande do

Sul.2

Aurélio Porto

A história meu amigo é uma blague, não passa de história... tenho sido honesto e não quis fazer histórias... outros fazem blague, mas sabem se chegar e tem tudo. Eu, não passo de um grande sonhador e o sonhador não presta. Para que desenvolver atividade intelectual

1 Doutorando do PPGH da PUCRS, bolsista CAPES. E-mail: [email protected] 2 A correspondência de intelectuais, conquanto evoque as representações subjetivas dos agentes, é uma excelente forma de explicitar as lutas cotidianas, individuais e coletivas, além de expor as múltiplas conexões entre capital simbólico, capital cultural, capital social e acesso ao espaço de poder. Entretanto, essas representações não devem ser tomadas como formas invariantes de percepção ou construção da realidade, mas como pontos de vista apreendidos e relacionados à posição do agente na estrutura das posições relacionais, pois o ponto de vista é sempre a visão a partir de uma posição específica no espaço social (Bourdieu, 2004).

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numa terra em que ninguém lê? Não é preferível produzir artigo de mais aceitação no mercado, do que estar ai a escarafunchar documentos para destruir a história com outras histórias? (Aurelio Porto) 3

Segundo Ieda Gutfreind (1992), Aurélio Porto teve um papel importante na reversão

ocorrida na historiografia rio-grandense na década de 1920, da ênfase dada às teses platinistas

para o sistemático realce à contribuição lusitana para a formação do Rio Grande do Sul, e de

afirmação da Revolução Farroupilha como movimento brasileiro e não separatista. Para a

historiadora, Aurélio Porto seria o responsável pelo lançamento do “círculo historiográfico

lusitano”.

Assim como para a maioria dos intelectuais da época, é relativamente difícil estabelecer a

profissão/ocupação de Aurélio Porto, pois ele possuía múltiplas atividades. No quadro de

fundadores do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul (IHGRGS), a profissão

apontada é “jornalista”, entretanto, além das funções de redator e diretor de pequenos jornais no

interior do estado, em cidades como Rosário do Sul, Quaraí, Cachoeira do Sul e Santa Maria,

atuou como professor em algumas dessas localidades. Na política, exerceu a função de

Intendente em Garibaldi e Montenegro. Nas décadas de 1920 e 1930, ocupou posição na

burocracia como funcionário do Museu Júlio de Castilhos, sendo, às vezes, cedido para outras

atividades, sem perder o vínculo com o Estado. No período que interessa a este trabalho, seu

sustento dependeu da sua atividade como arquivista no Museu do Estado, portanto, a ocupação

aqui considerada será a de funcionário público.

Filiado ao Partido Republicano Rio-Grandense (PRR), Aurélio Porto se habilitava a

participar das redes clientelísticas do partido hegemônico no estado até o final da década de 1920,

e assim ocupar postos no funcionalismo público, que, na prática, era espaço reservado para os

republicanos e seus apadrinhados, ficando de fora desse quadro todos os oposicionistas. Os

intelectuais-políticos eram normalmente lotados nos órgãos públicos voltados à cultura, como o

Museu do Estado, o Arquivo Público, a Biblioteca do Estado, a Biblioteca e Arquivo Municipal.4

Ainda como parte de sua trajetória profissional e política, Porto ocupou a função de redator de A

Federação, o jornal oficial do PRR (Martins, 1978).

A par dessas ocupações profissionais, Aurélio Porto desenvolveu atividades intelectuais

escrevendo livros de poesia, romance e história. Seu primeiro trabalho como ensaísta foi um livro

3 Aurélio Porto a Souza Docca, Esteio, 3 de fevereiro de 1935. 4 Durante os governos castilhista-borgista no Rio Grande do Sul, a educação pública recebia a maior parte do orçamento estadual, com exceção dos períodos de revolução e guerra civil (Love, 1975). Com isso, instituições culturais como o Museu do Estado, a Biblioteca do Estado e o Arquivo Histórico foram criados e receberam grande incentivo por parte do governo, tornando-se o lócus de aproveitamento de intelectuais como Alcides Maya, Aurélio Porto, Eduardo Duarte, Dante Laytano, etc (Nedel, 1999).

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sobre a cidade de Cachoeira do Sul, chamado Município de Cachoeira, história e estatística (1910).

Antes disso, havia publicado, pela Livraria do Globo de Porto Alegre, uma peça em verso

denominada O Milagre (1906).

No final dos anos 1920 – contexto da preparação dos intelectuais gaúchos para as

comemorações do centenário da Revolução Farroupilha5 – Emílio Fernandes de Souza Docca6,

enquanto estava no Rio de Janeiro, ofereceu ao Instituto Histórico do Rio Grande do Sul seus

préstimos para copiar O Processo dos Farrapos, no Arquivo Nacional, trabalho que seria realizado

“mediante pequena retribuição pecuniária, quase que só como pagamento do trabalho material

como sejam dois contos de réis por volume ou seis por toda a obra, fielmente datilografada e

anotada”.7 Entretanto, Souza Docca, que era militar, foi promovido e transferido para o Mato

Grosso e não pode concluir o trabalho de transcrição a que se propusera.

O Arquivo Nacional, a partir de 1924, passou a publicar documentos coevos às “gloriosas

datas centenárias”, a começar pelo centenário da Revolução do Equador. Quando se aproximou a

comemoração do centenário farroupilha, aquele instituto nacional decidiu publicar O Processo dos

Farrapos. Para isso, o diretor do Arquivo Nacional, Dr. Alcides Bezerra, buscou um especialista

em história rio-grandense, pois “tornava-se imprescindível o auxílio de um funcionário

perfeitamente conhecedor do seu arquivo, ou de um estudioso da história local”.8 Coube,

portanto, a Aurélio Porto, a partir de 1933, levar a cabo essa tarefa. Porto foi cedido pelo então

Interventor Federal Gen. Flores da Cunha por um ano e meio, período em que se transferiu para

o Rio de Janeiro, recebendo uma “parca comissão”, correndo o “resto da despesa por conta do

Governo Federal”. Foi um trabalho ingente cujo resultado impressiona pela dimensão da obra –

mais de 2000 páginas –, que destoa das publicações da época no Rio Grande do Sul, e mesmo das

publicações dos dias atuais.

Entretanto, quando o trabalho já se aproximava do fim, sofreu uma interrupção. Os dois

primeiros volumes já se encontravam publicados, e a primeira parte do terceiro volume já estava

sendo impressa, faltando apenas a sua segunda parte. Em fevereiro de 1935, Porto encontrava-se

em “retiro” em Esteio – RS, sem saber se concluiria a publicação de O Processo. Por

correspondência, Aurélio Porto explicava a Souza Docca o estado “atual” de incerteza sobre o

desfecho do trabalho:

5 A primeira reunião de diretoria do Instituto realizada com o fim específico de determinar “atuação que o Instituto viria a ter na comemoração do centenário farroupilha”, uma vez que o Instituto era “o órgão legítimo da mentalidade rio-grandense, contando com o apoio moral e material do governo do Estado”, foi realizada com bastante antecedência em 10 de julho de 1929. 6 Historiador e militar. Um dos fundadores do IHGRGS. 7 Livro de Atas do IHGRGS, 17 de novembro de 1927. 8 PORTO, Aurélio. O Processo. v.1. p. V e VI.

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Esteio, onde estou há mais de um mês, fica além de Canoas, e da a ideia de uma estância com os seus campos e caponetes (sic), e tenho passado aqui magnificamente. Mas, já estou cansado de nada fazer. Quem como eu trabalha até de mais não se acomoda muito bem a este far niente. Tenho saudades dos meus livros, dos meus documentos, das minhas pesquisas e isso me deixa às vezes aflito. Mas, não sei se continuarei mais o trabalho que estava realizando aí [no Rio de Janeiro] com tanto carinho.9

A continuação da obra dependia da anuência do Interventor Federal, que, naquele

momento, havia indeferido a liberação remunerada de Aurélio Porto. Mesmo diante da

mobilização de amigos, o historiador não havia conseguido reverter àquela situação:

De chegada aqui, soube que o general Flores dera um despacho, quando da prorrogação da minha comissão, de que esta seria improrrogável. E quando quis falar-lhe ele seguiu para ai, não voltando mais. E isso há mais de um mês. Passei-lhe dois telegramas. O João Carlos passou-lhe outro, o dr. Bezerra10 escreveu-lhe uma carta, mostrando a conveniência de continuar o trabalho. E não obstante todo esse empenho, até hoje não tenho solução alguma.11

A contrariedade de Aurélio Porto era tanto maior, pois já estava o trabalho quase

finalizado quando saiu a decisão do chefe do governo gaúcho de suspender os seus vencimentos.

Por isso, insistia, tendo escrito ao desembargador Florêncio de Abreu, presidente honorário do

Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul, que morava no Rio de Janeiro e era

concunhado de Getúlio Vargas, para mediar a revogação do despacho do general Flores da

Cunha. O Dr. Florêncio de Abreu lhe garantiu: “congregaria todos os nossos companheiros

empenhados na continuação do trabalho, a fim de, num memorial, mostrar ao general a

necessidade de continuar a obra”. No entanto, até aquele momento, Porto não sabia se algo havia

sido feito, por isso solicitava a Souza Docca: “se tiveres ocasião de falar com o Florencio vê se ele

fez alguma cousa nesse sentido”.12

Essa situação ilustra o grau de dependência da posição dos intelectuais, reconhecidos e

legitimados como tal por seus pares, em relação ao espaço de poder e seus agentes. Expõe os

limites e constrangimentos objetivos de uma posição em relação à outra, através da correlação

desigual das forças. Essa dependência, agudizada nesse caso, entretanto, não permite avaliar que a

lógica que orientava os intelectuais fosse a mesma pela qual os políticos tomavam suas decisões.

Assim, para Porto importava, através do acionamento de sua rede de relações, convencer o

general do valor do trabalho que ele estava realizando, pois, dizia, “atribuo unicamente essa

resolução do interventor a não conhecer o trabalho que estou executando”. Para o historiador, o

9 Aurélio Porto a Souza Docca, Esteio, 3 de fevereiro de 1935. 10 Alcides Bezerra, Diretor do Arquivo Nacional. 11 Aurélio Porto a Souza Docca, Esteio, 3 de fevereiro de 1935. 12 Aurélio Porto, idem.

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valor do trabalho era tão que evidente que o levava a concluir: “para mim basta só mostrar ao

general realmente o que se tem feito e ele revogará o seu despacho”.13 Por outro lado, essas

afirmações são, ao mesmo tempo, denegações tácitas, pois, se era importante o “empenho” para

mostrar ao general a “conveniência de continuar o trabalho”, fica implícito que Aurélio Porto

sabia que o valor intrínseco da obra não era suficiente para persuadir o general a mudar seu

parecer, sem que houvesse a mobilização de amigos seus, políticos e intelectuais. De um lado, o

reconhecimento da importância do trabalho realizado, e, de outro, o pouco apreço recebido do

interventor apontam para a dificuldade encontrada pelos intelectuais em operar a conversão de

seus trunfos intelectuais legítimos em capital simbólico com peso relativo no espaço das decisões

políticas. Assim, a solução era apelar ao recurso das relações pessoais.

Esses embaraços deixam entrever as estruturas objetivas que ocultam. As mesmas

disposições sociais que permitem que Aurélio Porto admita “me sacrificar pelas cousas do Rio

Grande” e justificam a luta do escritor para “dar aos historiadores futuros elementos com que

possam fazer a história verdadeira e destruir os falsos preconceitos de que ela está cheia”, essas

mesmas disposições vedam-lhe o “direito” de “sacrificar a família”.14 As justificativas enunciadas

por Aurélio Porto ocultam ou obliteram a natureza e os interesses econômicos do trabalho

intelectual. Segundo Bourdieu, tanto mais eficiente é o capital simbólico quanto mais ele

dissimula ou recalca os interesses econômicos envolvidos (Bourdieu, 2008). Porém, os

constrangimentos da vida real podem colocar em evidência as ambiguidades e limitações do

discurso do interesse desinteressado. Aurélio Porto via-se compelido a admitir:

O meio aqui e, para mim, as condições de vida com que ficarei, sem as vantagens dessa comissão, fazem a gente perder o estímulo. Eu terei de cuidar de outra vida, pois também, como todo mundo tenho o direito de viver. Estou resolvido a relegar a história para o segundo plano. (grifos meus).15

As preocupações e incertezas (econômicas) de Aurélio Porto se arrastaram por todo o

ano de 1935. Nesse mesmo ano, o historiador foi contemplado com um prêmio em dinheiro.16

Ao amigo Docca, solicitou a ajuda a esse respeito: “Escrevi ao Rego [Monteiro]17 autorizando a

receber o cobre, que vem magnificamente. Mas, até agora creio que não pagaram. Vê se das um

empurrão nisso.”18

13 Aurélio Porto a Souza Docca, Esteio, 3 de fevereiro de 1935. 14 Aurélio Porto, Idem. 15 Aurélio Porto, Idem. 16 Aurélio Porto ganhou o prêmio do concurso promovido pelo Comitê Centenário Farroupilha, do Rio de Janeiro, com o livro de poesias Farrapíada. O valor da premiação era 2:000$000, que foram divididos entre Aurélio Porto e Homero Prates. 17 Jonatas da Costa do Rego Monteiro. 18 Em fevereiro de 1936, Aurélio Porto informa Souza Docca que ainda não havia recebido o valor do prêmio.

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Quanto à continuação de seu trabalho (relativamente ao terceiro volume da série), dizia

em carta de outubro de 1935: “Nada ainda sei da minha vida”. O contexto político instável era

um entrave a mais na solução do conflito: “Depois a atmosfera política está carregada, e isso

prejudica a solução do negócio. Mas, ficará aqui o Darcy. Talvez seja mais fácil”.19 Os integrantes

da Frente Única Gaúcha (FUG), composta pelos partidos de oposição – PRR e PL – acusavam o

interventor, Flores da Cunha, de conduzir “a campanha para as eleições [para Assembleia

Estadual Constituinte em outubro de 1934] sob um clima de terror, com coerções, prisões,

banimentos e transferências de funcionários públicos adeptos da FUG, além da censura aos

jornais de oposição”.20 Mas em fins de 1935, a FUG apresentou a Flores a proposta da instalação

de um governo de gabinete misto – o modus vivendi gaúcho – que foi aceita pelo interventor. O

efêmero governo de gabinete foi instituído em janeiro de 1936, tendo sido nomeado Darcy

Azambuja (PRL) como presidente do secretariado do estado, Raul Pilla (PL), secretário da

Agricultura, e Lindolfo Collor (PRR), secretário das Finanças. A nomeação de Azambuja,

confrade do IHGRGS, representou uma pequena esperança de bom termo na solução pleiteada:

“Talvez seja mais fácil”, arrazoou Porto.21

Apesar das dificuldades, Aurélio Porto ultimou o trabalho de anotações do Processo dos

Farrapos, tendo publicado o terceiro volume pelo Arquivo Nacional em 1935. O trabalho ainda

ganharia um quarto volume, contendo documentos do Itamaraty com a correspondência dos

encarregados de Negócios em Montevideo, com anotações suas, que foi publicado em 1937, em

conjunto entre o Arquivo Nacional e o Ministério das Relações Exteriores. No início do ano de

1936, Aurélio Porto recebeu a notícia, vinda do Arquivo Nacional, de que “o ministro do

Exterior22 mandou fornecer papel para o 4º Volume dos Documentos”, do qual ele, Aurélio Porto,

seria revisor. “Insulado” em Esteio, onde mandou fazer uma “casinha de madeira”, “paga em

prestações”,23 fazia mais estas anotações, bem como organizava uma nova publicação, Terra

Farroupilha, “não obstante a obrigação de ir à repartição para ganhar um salário miserável”, dizia:

“uma vez por semana vou a Porto Alegre”.24 Sobre o quarto volume de O Processo, vislumbrava:

todo caso sai mais esse volume e é possível que eu tenha de ir ai [ao Rio] a fim de ultimá-lo. Estou organizando a obra Terra Farroupilha e só poderei ir depois de ela pronta. Talvez em princípios do inverno, que desejaria não passar aqui.25

19 Aurélio Porto a Souza Docca, Porto Alegre, 21 de novembro de 1935. 20 Pelo acordo que instituía o modus vivendi, Flores aceitou a recontratação de funcionários públicos removidos por motivos políticos. (ABREU, 2001). 21 Aurélio Porto a Souza Docca, Porto Alegre, 21 de novembro de 1935. 22 Dr. Macedo Soares, ministro das Relações Exteriores. 23 Aurélio Porto a Souza Docca, Esteio, 2 de janeiro de 1936. 24 Aurélio Porto a Souza Docca, Esteio, 2 de janeiro de 1936. 25 Aurélio Porto, idem.

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Quanto ao trabalho no quarto volume, apesar da colaboração de amigos como Souza

Docca para que lhe fossem facultadas pelo lado do governo federal as mesmas vantagens

anteriores, Aurélio Porto não obteve o auxílio esperado da parte que caberia ao governo estadual.

Assim resumiu sua situação:

Vejo pela tua carta que está encaminhado o negócio das Publicações do Itamarati, mas, infelizmente, se não tiver aí vantagens reais não poderei aceitar o encargo. O ministro das Relações Exteriores se dirigiu ao Governador pedindo me pusesse à disposição do Ministério com as vantagens que eu tivera anteriormente e o despacho do Flores, que li, me manda por a disposição desse ministério, mas sem vantagens de espécie alguma, inclusive os vencimentos do cargo que exerço. Ora, eu não posso ir para o Rio dessa forma, como sabes. Não sei o motivo desse ato do Governador. Parece que decaí da sua simpatia. Como não le o que se escreve, pensa talvez que nada faço aí senão passear. É um índice dos tempos. Talvez outros que nada produzam tenham vantagens melhores. 26

As queixas e, no dizer do próprio Aurélio Porto, as “lamúrias” feitas ao amigo e confrade

Souza Docca permitem entrever as disposições compartilhadas pelos intelectuais da época, que

mostram a solidariedade entre eles por um sentimento de incompreensão, não reconhecimento

do seu valor e sacrifício pessoal, assim expresso, mais ou menos, por Aurélio Porto:

“infelizmente eles [os governantes] não reconhecem o esforço da gente e quem trabalha é

castigado. Mas, não me queixo a ninguém senão a ti. Eles não compreenderão o que tu sabes

compreender”. E ainda: “[os governantes] não tem noção do esforço e dos sacrifícios que a gente

faz”.27

Por outro lado, estas mesmas disposições indicam o reconhecimento implícito do seu

lugar no espaço social como resultado da interiorização das estruturas sociais, levando o

historiador a resignar-se: “nós é que somos uns tolos. É preciso ter coragem para não desanimar

e seguir para frente. Mas, seguirei, custe o que custar”.28

Aurélio Porto, em tirada anedótica, em carta de 1935, conta a seguinte história para

acentuar a desventura pessoal do historiador em relação aos ganhos econômicos: “Um senhor

daqui acaba de fazer a revolução de 35 em figurinhas para serem distribuídas em balas. Irá fazer

uma fortuna”. E, com ironia, lamenta:

Ah! Se eu tivesse essa ideia! Não teria naturalmente perdido o meu tempo, embranquecendo os meus cabelos a cavar pelos arquivos tanta cousa, que hoje não me serve para nada. A solução era fácil bastava um pouco de açúcar, transformado em balas, um horrível Bento Gonçalves a cavalo, de espada e lança e isso era tudo...29

26 Aurélio Porto a Souza Docca, Esteio, 2 de fevereiro de 1936. Entretanto, em dezembro de 1936, Porto retornou ao Rio de Janeiro a fim de trabalhar na publicação dos Anais do Itamarati (1937). 27 Idem. 28 Idem. 29 Aurélio a Souza Docca, Esteio, 3 de fevereiro de 1935.

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Considerações Finais

Todo este episódio expressa o grau de aprofundamento da dependência nas relações entre

intelectuais e políticos no Rio Grande do Sul, na primeira metade do século XX, e as limitações

da esfera intelectual em relação ao espaço de poder, intensificadas pelas instabilidades

conjunturais. Porém, ele também revela como os intelectuais agiam para contornar aquelas

limitações, através do acionamento de redes de solidariedades intelectuais e políticas. Finalmente,

esta ocorrência põe em relevo as contradições entre o discurso desinteressado dos intelectuais e os

constrangimentos econômicos que envolviam a atividade intelectual.

Referências

ABREU, Alzira Alves de (et. Al.). Dicionário histórico-biográfico brasileiro: pós-1930. Rio de Janeiro: FGV, 2001. BOURDIEU, Pierre. O campo intelectual: um mundo à parte. In: Coisas Ditas. São Paulo: Brasiliense, 2004. ______. Campo del poder, campo intelectual y habitus de clase. In: Intelectuales, política y poder. Buenos Aires: Eudeba, 2006. ______. Razões Práticas sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus Editora, 2008. GUTFREIND, Ieda. A Historiografia Rio-Grandense. Porto Alegre: Editora da Universidade, 1992. LOVE, Joseph. O regionalismo gaúcho e as origens da revolução de 1930. São Paulo: Perspectiva, 1975. MARTINS, Ari. Escritores do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS/IEL, 1978. NEDEL, Letícia. Paisagens da Província: o regionalismo sul-rio-grandense e o Museu Júlio de Castilhos nos anos cinquenta. Dissertação de mestrado, UFRJ, 1999.

Referências Documentais

Carta de Aurélio Porto a Souza Docca, Esteio, 3 de fevereiro de 1935. Carta de Aurélio Porto a Souza Docca, Porto Alegre, 21 de novembro de 1935. Carta de Aurélio Porto a Souza Docca, Esteio, 2 de janeiro de 1936. Carta de Aurélio Porto a Souza Docca, Esteio, 2 de fevereiro de 1936.

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Primeiro Livro de Atas do IHGRGS, 17 de novembro de 1927. O Processo dos Farrapos – A República Riograndense, Arquivo Nacional, 1933-1937.

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Espaços de saber e poder: instituições e seus agentes na perspectiva da História Social

ESCRITORES COMUNISTAS E AS CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO E DE CONSAGRAÇÃO LITERÁRIAS EM PORTO ALEGRE (1920-1960)

MARISÂNGELA T. A. MARTINS1

Neste texto, propomos uma reflexão sobre as condições de produção e de consagração de

escritores comunistas na capital do Rio Grande do Sul com base na pesquisa que desenvolvemos

durante o curso de Doutorado em História. O objetivo dessa investigação foi examinar as

articulações entre o mundo da militância comunista e o mundo da literatura entre as décadas de

1920 e de 1960 em Porto Alegre a partir da trajetória de escritores comunistas. (Martins, 2012).

Pesquisamos as trocas entre esses dois mundos protagonizadas por Beatriz Bandeira, Cyro

Martins, Dyonélio Machado, Edith Hervé, Fernando Melo, Ivan Pedro de Martins, Jorge Bahlis,

Laci Osório, Lila Ripoll e Plínio Cabral.

Algumas das principais obras da literatura gaúcha e brasileira foram produzidas por

escritores comunistas: Os Ratos, de Dyonélio Machado; a trilogia do “gaúcho a pé”, de Cyro

Martins; Vidas Secas, de Graciliano Ramos; Mar Morto, Capitães de Areia e outros vários títulos de

Jorge Amado, para citar alguns. Podemos questionar como intelectuais comunistas, alvo do

aparelho repressivo do Estado e permanentemente estigmatizados pelo discurso anticomunista,

conseguiram espaço e reconhecimento? A julgar pela trajetória dos escritores comunistas de

Porto Alegre, é possível afirmar que as possibilidades de produção e de consagração literárias

dependeram de fatores conjunturais conjugados à valorização de determinados recursos.

Jorge Bahlis, um imigrante sírio que ganhava a vida ensinando técnicas de contabilidade

em seu Curso Rápido Comercial, foi o primeiro produtor de literatura a se aproximar do

comunismo, nos anos 1920, em Porto Alegre. Bahlis foi presidente da Liga Pró-México

Antiimperialista, entidade criada em 1927 e controlada pelo Partido Comunista do Brasil (PCB),

que, então, funcionava na clandestinidade com uma estrutura bastante precária. O referido

literato escrevia peças de teatro focando o drama dos povos eslavos, crônicas sobre questões de

política internacional, conseguindo certo reconhecimento nessa área mediante uma prática

comum nos meios intelectualizados desde, pelo menos, meados do século XIX: dedicar suas

obras a escritores consagrados. As dedicatórias, por um lado, e a notoriedade e o prestígio

partilhados, por outro, funcionavam como dádivas em uma cadeia de trocas que sempre deixava

os agraciados em dívida. Por meio delas, o jovem literato, ao mesmo tempo, reforçava o mérito

1 Doutora em História pela UFRGS. E-mail: [email protected].

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de seus homenageados e era reconhecido como legítimo participante do jogo, estabelecendo e/ou

reforçando importantes laços de amizade que poderiam ser úteis em outros espaços sociais.

Mas Bahlis não fazia parte do polo dominante da literatura porto-alegrense. Podemos

cogitar algumas razões para isso: talvez, por não se dedicar aos gêneros predominantes daquele

momento – a prosa e o conto regionalistas; talvez, por não pretender fazer carreira na literatura,

mas na pesquisa histórica, atividade para a qual passou a se dedicar exclusivamente no fim da

década; talvez, ainda, por suas posições políticas alheias aos princípios republicanos dos

frequentadores da Livraria do Globo.

Nos anos 1920, os chamados “homens de letras” publicavam seus escritos principalmente

em revistas – como Máscara, Kosmos, Kodak e Madrugada – e jornais - como A Federação e Correio do

Povo. A atividade editorial, segundo Eliana Dutra (2004, p.4-5), era considerada de risco, devido

(1º) ao Brasil ser um país de poucos leitores, (2º) às oficinas tipográficas sem tecnologia suficiente

para edição de livros, (3º) ao baixo investimento no ramo de edições, (4º) ao alto preço e à

circulação restrita dos livros, (5º) além das publicações serem pouco atraentes e da fraca

publicidade. A Livraria do Globo, criada em 1883, era de propriedade de José Bertaso nos anos

1920 e disputava espaço com pequenas tipografias e editoras em funcionamento na cidade havia

anos (Esperança, Apolo, Müller, Ítalo-Brasileira, Centro, etc.), cujas publicações eram financiadas

pelos próprios autores. Além da imprensa e das pequenas tipografias, os literatos tinham ainda a

possibilidade de publicar seus textos sob a chancela de algumas tradicionais livrarias, como a

Americana, a Universal, a Gutenberg e a Brasil. A Livraria do Globo, porém, desempenhava um

papel destacado na literatura local. Ela abrigava um grupo seleto de famosos intelectuais e

personalidades políticas, em sua maior parte ligados ao Partido Republicano Rio-Grandense

(PRR), que cultivavam o hábito de se reunirem à tarde em suas dependências. Nesses encontros

informais, escritores já consagrados e poderosos homens da política estadual discutiam política e

literatura, contribuindo para a definição da pauta dos problemas legítimos e dos princípios

organizadores da produção literária. Tais escolhas eram orientadas por referenciais estéticos, mas

também por convicções políticas, e eram publicadas, reconhecidas e oficializadas, de forma

dispersa, nos impressos em que esses homens colaboravam. As reuniões, mais do que

entretenimento, configuravam-se práticas sociais que funcionavam como instâncias de

consagração. E, uma vez definidos e oficializados os critérios legítimos, esses homens deles se

apropriavam, impondo estilos e legitimando sua produção e seu lugar no polo dominante da

esfera cultural da cidade.

O desenvolvimento da grande imprensa, de instituições políticas e das organizações

partidárias (os partidos republicanos) foi apontado pelo sociólogo Sérgio Miceli (2001, p.16, 17 e

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de um campo intelectual relativamente autônomo no Brasil. A ocupação desses novos espaços

não dependia tanto de títulos e de diplomas, mas das relações sociais que aqueles que se

encaminhavam para as carreiras intelectuais conseguiam mobilizar. A predominância do uso

desse recurso não foi uma novidade do contexto. O capital de relações sociais era uma

importante – muitas vezes, decisiva – moeda de troca na paternalista sociedade brasileira.

A Revista do Globo, criada em 1929, e a seção editora da Livraria do Globo consolidaram-se

como os mais importante meios de aglutinação dos intelectuais em âmbito regional no início da

década seguinte, constituindo-se nas principais instâncias de consagração da literatura produzida

no Rio Grande do Sul até pelo menos a década de 1960. Um indício do poder de consagração do

estabelecimento editorial e do periódico é o conjunto de autores e obras editados pela casa e

comentados nas páginas da revista que foram transformados em ícones de determinadas

correntes ou em marcos de viradas na produção literária sul-rio-grandense. Hoje, eles compõem

os manuais sobre literatura gaúcha, são indicados para leitura nas escolas e o conhecimento de

seus textos é exigido nas provas dos concursos vestibulares, algo que não se observa para

escritores da Academia Rio-Grandense de Letras.

Em A Literatura no Rio Grande do Sul, por exemplo, Regina Zilberman (1980) buscou

construir um painel da vida intelectual gaúcha desde suas origens até o fim da década de 1970,

deixando clara a intenção de se concentrar nos momentos decisivos da formação literária e nas

obras representativas de cada período. Os literatos da década de 1930 comentados por ela são

Cyro Martins, Pedro Wayne, Aureliano de Figueiredo Pinto e Ivan Pedro de Martins – como

ilustrativos da transformação na narrativa regionalista – Dyonélio Machado e Erico Verissimo –

representando a nova ficção urbana. No fim do livro, Zilberman apresenta um quadro, elaborado

com a colaboração de Maria Eunice Moreira, no qual são destacados, para a década de 1930,

autores como Athos Damasceno Ferreira, Cyro Martins, Darcy Azambuja, De Souza Júnior,

Dyonélio Machado, Erico Verissimo, Mário Quintana, Paulo Correa Lopes, Othelo Rosa, Pedro

Wayne, Reynaldo Moura, Telmo Vergara, Theodomiro Tostes e Vianna Moog, contistas,

romancistas e poetas ligados à Livraria do Globo.

Na mesma década, os membros da Academia Rio-Grandense de Letras produziram

ensaios de caráter historiográfico, contos e poesias, mas – com exceção de Othelo Rosa e de

Manoelito de Ornellas, editados pela casa de José Bertaso e seus assíduos frequentadores – os

demais não fazem parte desse livro sintetizador da produção literária no Rio Grande do Sul.

Nomes como João Maya, João Cândido de Freitas, Jorge Bahlis, Bento Fernandes, Dario de

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Bittencourt, De Paranhos Antunes e Sante Uberto Barbieri são praticamente desconhecidos por

manuais contemporâneos.

Pelo menos nos últimos dez anos, os membros da Academia Rio-Grandense de Letras e

seus textos não integraram a relação de leituras obrigatórias do mais disputado concurso

vestibular no Rio Grande do Sul. Do universo de escritores atuantes no estado entre os anos

1920 e 1960, é possível observar que a Universidade Federal do Rio Grande do Sul cobrou, em

2011, 2010 e 2009, a leitura de Porteira Fechada, de Cyro Martins; em 2007, do livro Os Ratos, de

Dyonélio Machado, O Arquipélago, de Erico Verissimo e Camilo Mortágua, de Josué Guimarães;

nos anos de 2004, 2003 e 2002, a leitura de O Continente, de Verissimo. O resultado da

orquestração liderada pelos empreendimentos Globo foi/segue sendo reafirmada pelas

posteriores instâncias de consagração literária.

A confluência entre as firmas da família Bertaso parece ter contribuído para limitar a

procura do público leitor, na medida em que a Revista do Globo promovia as obras à venda na

Livraria, principalmente as editadas pela casa. A Globo fechava o mercado literário em torno de

si, impondo critérios de classificação e de legitimação elaborados a partir de demandas

propriamente artísticas e literárias, mas também políticas e econômicas. A mobilização

revolucionária dos intelectuais ligados à Livraria do Globo a favor de Vargas no movimento de

1930 transformou-se em apoio ao longo e controlador governo estabelecido por ele após tomar o

poder. A Globo, a Companhia Editora Nacional (de São Paulo) e a José Olympio Editora (do

Rio de Janeiro) eram as principais investidoras na publicação de obras de ficção, permitindo que

se consolidasse a figura do romancista, embora – à exceção de Erico Verissimo e Jorge Amado –

a maioria dos escritores não conseguissem sobreviver exclusivamente da atividade literária.

(Miceli, 2001, p.159).

Quando Dyonélio Machado tomou parte da organização da Aliança Nacional Libertadora

(ANL), em 1935, já era pessoa de projeção pública, reconhecido por sua atuação no jornalismo e

na política, como correligionário de Borges de Medeiros, na literatura, próximo ao cobiçado

círculo da Livraria do Globo, e na medicina. Sua participação nas atividades da ANL, porém,

deram início a uma fase em que sua imagem passou a ser vinculada à mancha do comunismo e do

crime que configurava ser comunista.

O episódio da premiação de seu romance Os Ratos demonstra que a distinção literária

podia ser embasada em razões alheias ao universo literário e servir a causas que extrapolavam

esse terreno. Nesse episódio, uma cadeia de favores – justificados por laços de amizade, de

camaradagem, de admiração e de gratidão entre Dyonélio Machado, Erico Verissimo, Jorge

Amado e Gilberto Amado, um dos jurados do concurso – assegurou a distinção literária a

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Dyonélio, suavizando os prejuízos simbólicos decorrentes da adesão ao comunismo. Cabe

ressaltar que as narrativas memorialísticas que remontam à premiação de Os Ratos envolvem o

caso numa confusão, oferecendo versões diferentes sobre o episódio, tornando delicada a sua

reconstituição. Para esse texto, escolhemos contar o evento com base nas memórias de Jorge

Amado (1992, p.515-517).

O autor de O país do carnaval relatou que a organização do Prêmio Machado de Assis ficou

a cargo do Boletim de Ariel, periódico de Gastão Cruls e Agripino Grieco, em cuja redação o

escritor permanecia considerável parte do seu tempo, curioso por acompanhar o andamento do

concurso. Sabia quais candidatos tinham chances de vencer, pois conhecia a preferência de três

dos quatro jurados. Gastão Cruls havia gostado de Marafa, de Marques Rebelo; Agripino Grieco,

de Totônio Pacheco, de João Alphonsus; e Monteiro Lobato preferia Música ao Longe, de Erico

Verissimo. Sendo o último jurado seu primo, Gilberto Amado, Jorge pensou em garantir seu

parecer favorável ao amigo de Cruz Alta. Em carta para Erico, escreveu “vou cantar o voto do

Gilberto para você”. Mesmo com votos garantidos e possibilidade de vitória, Verissimo retornou

a missiva, avisando ao escritor baiano que entre os originais havia um romance chamado Os Ratos,

de autoria de um médico gaúcho que, naquele momento, achava-se preso, acusado de comunista.

Erico apelou: se Amado pudesse fazer alguma coisa junto a Gilberto, que fizesse em favor de

Dyonélio Machado.

Jorge Amado seguiu narrando que a carta do amigo gaúcho despertara seu interesse pelo

livro e pelo autor: “comunista e preso, credenciais maiores”. Ele encontrou os originais nas

dependências do Boletim de Ariel, leu-os e vibrou de entusiasmo, resolvendo visitar o primo para

interceder pelo candidato. Amado contou que Gilberto sequer havia lido os originais dos

concorrentes, alegando não ter tempo. Estava decidido a votar com Gastão Cruls, em cujo gosto

e parecer confiava. Jorge, então, falou-lhe que Erico, apesar de estar na disputa, havia

recomendado o romance de “um desconhecido”, “romanção, novidade em matéria de ficção

brasileira”, acabando por interessar o jurado, que pediu para encontrar o manuscrito entre os

originais para que os lesse. E prometeu: “vou ler, se achar que Erico e você têm razão até posso

votar nele”. No dia seguinte, Gilberto telefonou para Jorge: “livro extraordinário, muito mal

escrito, mas que romance! Voto nele”. O prêmio acabou sendo dividido entre os quatro livros.

A premiação de Os Ratos é demonstrativa de outro ângulo da relação entre os escritores e

as classes dirigentes brasileiras, distinto dos abordados por estudos clássicos, como os de Sergio

Miceli (2001) e de Daniel Pécaut (1990). Enquanto elas mobilizavam recursos de ordem jurídica

para classificar como criminosos indivíduos e grupos que iam de encontro a seus interesses –

provando a existência de um inimigo objetivo – e para justificar a perseguição e a repressão

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desencadeadas sobre eles, os escritores sujeitados a essa classificação lançavam mão dos meios de

que dispunham para resistir à dominação: o poder de criação, o poder da consagração, enfim, o

“poder do escritor”. (Amado, 1992, p.197).

A partir de 1939, em pleno Estado Novo, ao invés de serem banidos, os escritores

comunistas ganharam mais espaço e visibilidade na Revista do Globo e na Editora Globo. Como

isso foi possível? Nesse ano, um jornalista e militante do PCB chamado Justino Martins assumiu

a direção da Revista do Globo. Reconhecido por seu talento e sua competência em gerar lucros para

a firma (Bones; Laitano, 2006, p.739-740), Justino tinha a proteção de José Bertaso e conseguiu

promover uma série de transformações no quinzenário. Para além das modificações de ordem

técnica, Justino publicou textos abertamente favoráveis à União Soviética – em luta contra o Eixo

na Segunda Guerra – e ao comunismo (Martins, 2010); introduziu reportagens denunciando

problemas sociais e temas ligados às classes populares em diversas matérias, chegando, inclusive,

a citar Karl Marx (Martins, 2013); além de abrir espaço para fotógrafos, tradutores, contistas,

gravuristas, romancistas e poetas comunistas. Justino Martins desempenhou um papel estratégico

extremamente importante.

Amparados por ele, os escritores comunistas ganharam ampla visibilidade na Revista do

Globo e conseguiram publicar seus escritos pela Editora Globo. Dyonélio Machado voltou a ser

comentado pelos críticos, publicou um novo romance, O Louco do Cati, e a segunda edição de Os

Ratos pela casa dos Bertaso; Lila Ripoll, que havia estreado na literatura em 1938 com o livro de

poesias De mãos postas, editado pela Globo, consolidou sua inserção no círculo dominante,

editando Céu Vazio pela mesma editora em 1941, obra premiada pela Academia Brasileira de

Letras; Ivan Pedro de Martins, escritor mineiro que veio para o Sul fugindo da repressão aos

levantes de novembro de 1935, publicou Fronteira Agreste, romance apreendido pela seção gaúcha

do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) em 1943 e que, junto à trilogia do “gaúcho a

pé” de Cyro Martins (Sem Rumo, Porteira Fechada e Estrada Nova), tornou-se ícone do romance

regionalista.

Com o fim da Segunda Guerra Mundial e do Estado Novo, em 1945, o Partido

Comunista conquistou a legalidade, e os militantes escritores participaram da reestruturação do

Partido no estado, criando uma influente imprensa partidária, desenvolvendo atividades culturais

no Clube de Cultura Popular Euclides da Cunha e atuando na Assembleia Legislativa gaúcha.

Eles e elas lançaram mão do conhecimento acumulado em suas diferentes áreas de atuação

profissional e de suas redes de relação para consolidar o lugar de destaque do PCB na titubeante

democracia brasileira. A condição legal, porém, durou somente até 1947, quando o registro do

PCB foi cancelado e, em janeiro do ano seguinte, foram cassados os mandatos dos parlamentares

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eleitos por sua legenda. Eram os primeiros efeitos da Guerra Fria e da opção do conservador

governo de Eurico Dutra em manter-se alinhado aos Estados Unidos. Para os escritores, o ano

de 1947 teve ainda um agravante: a transferência de Justino para Paris, como correspondente da

Revista do Globo.

A saída de Justino combinada com o contexto internacional da Guerra Fria, a retomada

da perseguição aos comunistas pelo governo, a intensificação do discurso anticomunista, além da

radicalização da linha do PCB e da crise do livro, no fim da década de 1940, configurou um

momento difícil para os comunistas produtores de literatura. As portas da Editora, da Revista do

Globo e também da recentemente criada revista Província de São Pedro, sob responsabilidade de

Moysés Vellinho, fecharam-se, bem como os cadernos literários dos jornais Correio do Povo e do

Diário de Notícias, outros concorridos espaços de publicação na época.

Sem espaço nos veículos oficiais e num cenário político desfavorável, os militantes do

PCB conseguiram colocar em funcionamento periódicos e editoras do Partido. Em Porto Alegre,

a revista Horizonte, a editora Cadernos da Horizonte, a Agência Farroupilha e a Livraria Piratini

constituíram-se em importantes canais de difusão da literatura produzida pelos escritores que

militavam ou eram próximos ao Partido Comunista da década de 1950. A despeito de sua

condição ilegal e das proibições, o PCB construiu espaços institucionais seguros para seus

intelectuais e transformou a literatura – orientada obrigatoriamente pelo Realismo Socialista –

numa demanda legítima do Partido, compensando o isolamento dos escritores Fernando Melo,

Heitor Saldanha, Laci Osório, Lila Ripoll e Plínio Cabral, mas circunscrevendo-os a um circuito

endógeno de consagração.

Por que endógeno? Basicamente, porque as regras da produção e de consagração literárias

difundidas nos veículos do Partido só eram reconhecidas e legitimadas pelos escritores do

Partido. A literatura produzida pelos escritores comunistas não repercutia – ou repercutia

desfavoravelmente – além das fronteiras da própria organização e do seu limitado raio de alcance.

De um modo geral, é possível afirmar que o progressivo processo de autonomização do

campo literário no Rio Grande do Sul manteve elementos de uma lógica pessoalizada, pautada no

estabelecimento ou na manutenção de laços a partir da prestação e da retribuição de favores. As

trajetórias dos escritores ligados ao PCB, bem como a de outros não-comunistas não abordados

aqui, demonstram-nos como as condições de produção e o reconhecimento da excelência das

obras de alguns dos atuais expoentes literários do estado não estavam dadas; elas foram

construídas em relação às particularidades de cada conjuntura, a partir de complexas cadeias de

trocas, cujas regras foram adaptadas a diferentes contextos, movimentadas não somente no

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interior do universo literário, utilizando recursos de distintas naturezas e tendo, por vezes,

motivações e finalidades alheias ao mundo da literatura.

Referências

AMADO, Jorge. Navegação de Cabotagem. Apontamentos para um livro de memórias que jamais escreverei. São Paulo: Círculo do Livro, 1992. DUTRA, Eliana de Freitas. Companhia Editora Nacional: tradição editorial e cultura nacional. I Seminário Brasileiro sobre Livro e História Editorial, Rio de Janeiro, 8 a 11 de nov. 2004. Disponível em: http://www.livroehistoriaeditorial.pro.br/pdf/elianadutra.pdf. Acesso em: 16 nov. 2009. BONES, Elmar; LAITANO, Cláudia. Carlos Reverbel. Textos escolhidos. Porto Alegre: JÁ Editores, 2006. MARTINS, Marisângela T. A. O Comunismo e a União Soviética nas páginas da Revista do Globo (1930-1945). História em Revista, Pelotas, v.16, pp.91-114, dez. 2010. ______. À esquerda de seu tempo. Escritores e o Partido Comunista do Brasil (Porto Alegre/1927-1957). 2012. Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2012. ______. O comunismo de Justino Martins e a evidência das classes populares da Revista do Globo (Porto Alegre/1939-1947). In: Simpósio Nacional de História, 27, 2013, Natal/RN. Trabalho apresentado em 24 jul. 2013. (Texto completo ainda não disponível). MICELI, Sergio. Intelectuais à brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. PÉCAUT, Daniel. Intelectuais e a política no Brasil. Entre o povo e a nação. São Paulo: Editora Ática, 1990. ZILBERMAN, Regina. A Literatura no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1980.

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A PROSOPOGRAFÍA ALÉM DO MÉTODO: USOS NO ESTUDO DO NEOLIBERALISMO

HERNÁN RAMÍREZ1

Este escrito não tem a intenção de apresentar o método prosopográfico, quase um

despropósito quando temos à disposição excelentes sínteses do assunto, como as de Heinz (2006)

e Ferrari (2010), por exemplo, que desde um tempo circulam entre os que querem se aproximar

dessa prática. A intenção aqui será a de pensar nas possibilidades que se abrem como método em

um período em que vivemos uma profunda transformação epistemológica.

A esse respeito, devo notar que nós, historiadores, somos especialistas nos estudos das

transformações, especialmente as que decorrerem de processos longos. Entretanto, quase sempre

essa perícia é alcançada quando analisamos as mudanças dos outros. Com as nossas próprias

transformações lidamos mal e pouco, talvez devido à pouca capacidade de introspecção que

desenvolvemos. Nesse sentido, enquanto cientistas sociais somos demasiado conservadores,

característica que em determinadas ocasiões pode ser meritória, já que nos protege dos modismos

passageiros, mas, por outro lado, é prejudicial, devido a que nos aferramos demasiado a pesados e

inúteis lastros, dos quais relutamos em nos desvencilhar.

Por momentos, a rigorosidade da validação dos nossos métodos nos ata a questões

empíricas e formais, fazendo-nos quase reféns do fetichismo da empiria, o que nos desestimula

na hora de pensar em soluções mais criativas e levar adiante mudanças nos procedimentos que

realizamos, às vezes “burocraticamente”, em particular a respeito da forma com que encaramos

os objetos e as fontes. Muitas vezes é possível constatar a triste realidade de que quando

aparamos as arestas também podamos as nossas asas.

Basicamente, a pesquisa do historiador não variou muito nos últimos tempos. A

prosopografia tampouco, apesar de que abundam as novidades mundo afora. Por exemplo, em

grande medida, a tecnologia disponível está subaproveitada, geralmente é usada para deixar mais

bonitos os nossos textos impressos e animadas as nossas apresentações, na desigual luta que trava

a linguagem oral contra a imagética. Não obstante, um universo de possibilidades, em grande

parte desconhecido nos espera, que tem aberto um horizonte mais amplo, que trataremos de

penetrar um pouco a seguir.

Antes disso, aclaro que ultimamente minhas reflexões sobre questões metodológicas são,

sobretudo, autobiográficas. É na práxis quotidiana que procuro soluções para dar conta das

1 Professor da graduação e do PPG em História da UNISINOS. E-mail: [email protected].

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temáticas de pesquisa, neste caso o neoliberalismo, e atender aos objetivos que me traço, que têm

sido um pouco mais ambiciosos com o decorrer dos anos. Por isso, as contínuas referências a

esse percurso, que, como ocorre com a maioria, tem doses de meticuloso planejamento e outras

do mais puro acaso, sendo que não vejo esse apenas como um infortunado desvio, mas como

uma janela para que o ar fresco penetre e nos renove.

O caminho até chegar à temática do neoliberalismo foi longo, mas a prosopografia como

método sempre esteve presente. Minha primeira experiência individual de pesquisa teve como

objeto a história da Universidad de Córdoba, em particular o período que vai desde 1613, quando

foi fundada, até 1853, momento em que era nacionalizada. Embora extenso, pouco mais de dois

mil alunos assistiram a essa casa de estudos durante tal época, sobre os quais conservava alguns

registros, que foram tabulados para poder traçar um perfil da instituição e que ajudaram a

desvendar o modo como ela compunha a engrenagem colonial.

Paralelamente, integrava a equipe coordenada por Guillermo Beato, que procurava

entender o processo de formação da burguesia cordobesa, assim como de outro grupo chefiado

por Eduardo Bajo, que se ocupava de estudar o perfil exportador do empresariado local,

particularmente intrigante devido ao seu caráter mediterrâneo, nos quais também realizamos

estudos semelhantes ao anterior.

É dessa última pesquisa que surgiria o elo com o neoliberalismo. Os empresários

cordobeses eram capitaneados pela Fundación Mediterránea (FM), instituição criada em 1977 e

que seria a encarregada de firmar a hegemonia ideológica dessa corrente na Argentina durante a

gestão de Domingo F. Cavallo à frente do ministério de Economia. Não obstante, como

historiador, não fiquei restrito apenas à formalidade da sua criação, mas adentrei num período

mais amplo, quando a ideia surge em 1969, impulsionada pelo mesmo grupo criador, muito

próxima das ideias desenvolvimentistas, o que posteriormente seria importante para compreender

como se daria o trânsito eidético no mundo econômico.

Devido à minha condição de professor de História de América, surgiu a necessidade de

fazer um doutoramento que tivesse a região como foco, além da Argentina, embora a

contemplasse comparativamente, em grande medida pelas inseguranças que surgem quanto nos

aventuramos por espaços desconhecidos. O contato com a obra de René A. Dreifuss (1981),

intermediada por Raúl Jacob, outro uruguaio como aquele, encarrilhou-me para o Brasil, mais

precisamente em direção ao Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPÊS), que acrescentei à

pesquisa junto à Fundación de Investigaciones Económicas Latinoamericanas (FIEL), que teve

grande protagonismo no país do Prata, especialmente durante as administrações autoritárias.

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Ampliação do universo de análise que foi vital para compreender o enraizamento dos preceitos

neoliberais.

Efetivamente, as três instituições que pesquisava tiveram grande protagonismo,

envolvendo-se na deslegitimação dos governos democraticamente eleitos, nos golpes de Estado

que se sucederam no Brasil e na Argentina, assim como deram embasamento ideológico a tais

regimes, inclusive aportando quadros para suas administrações, que aplicaram medidas de caráter

neoliberal na região. Dessa maneira, podemos qualificar esta como a sua primeira etapa de

implantação, embora não tão nítida como a segunda ocorrida nas décadas de 1980 e 1990, devido

a que ainda tinham que vencer resistências internas, seja dentro do próprio governo ou em

setores mais vastos, o que nos diz um pouco do grau de coesão desses regimes, muitas vezes

sobredimensionado, com clivagens que devem ser analisadas de forma mais profunda.

Novamente, a prosopografía foi um dos métodos que me auxiliou melhor, permitindo

sistematizar uma grande massa documental sem perder seus aspectos qualitativos, fundamental

num estudo de natureza eidética. Num rápido balanço, podemos dizer que as narrativas

biográficas tendem a centrar suas explicações no indivíduo uma vez que os grandes números

omitem o sujeito, que se torna um anônimo.

Assim, devido à sua natureza centáurica, com genes na biografia e na estatística, o método

prosopográfico pode converter-se num elo que conecte esses dois universos, muitas vezes

colocados como antagônicos, mas que se empregados em doses salutares tornam nossas

explicações mais potentes.

De todo modo, apesar do grande investimento realizado, logo ficou claro que a tarefa de

desvendar o nosso objeto apenas tinha começado. Os economistas, cientistas políticos e

sociólogos, majoritariamente, abordaram com profusão o neoliberalismo. No entanto, fieis às

suas origens, debruçaram-se sobre os momentos de auge, mais contemporâneos, desconhecendo,

na maioria das vezes, as suas origens, que ainda permanecem na penumbra. Todavia, esse

conhecimento é vital para compreender seu desenvolvimento posterior, especialmente no que se

refere às nuances locais.

Prosseguir era imperativo, retrocedendo no tempo, mas também tínhamos que ver o

processo de uma forma mais complexa, não só como uma mera imposição externa e conjuntural.

De tal maneira, um dos pontos centrais do estudo passou a ser aquele que pretendia determinar

quais ideias foram importadas e quais outras se deveram a aportes locais, inclusive os que

posteriormente foram incorporados ao processo geral de desenvolvimento do neoliberalismo, o

que aumentava a densidade do assunto. Já não lidávamos apenas com casos locais, também

devíamos compreender dialeticamente o processo geral no qual eles se inseriam. Ou seja,

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interpretá-lo como um processo unitário, mas com enraizamentos pontuais que não se lhe

correspondiam, necessariamente, vis-à-vis (Ramírez, 2013, entre outros).

Por exemplo, a convertibilidade aplicada na Argentina não se condizia com a ideia do

Consenso de Washington, que estabelecia como norma um tipo de câmbio flutuante. De

qualquer modo não era uma ideia totalmente extemporânea, embora ainda seja difícil estabelecer

o curso que seguiu2 até se converter na chave das políticas públicas da Argentina durante os anos

1990 até a sua fenestração na crise de 2001, que a teve como pivô.

Dieter Plehwe (2011) demonstra como a medida era bastante conhecida no mundo das

instituições econômicas internacionais a partir do caso de Hong Kong, que o círculo argentino

conhecia perfeitamente devido a Joaquín Alberto Cottani, pesquisador da FM e representante no

Banco Mundial, onde travou contato com a ideia, que tinha assumido o cargo de subsecretario de

Planejamento Econômico, um dos mais importantes na equipe econômica. A relação próxima

com o Ministro fica demonstrada não apenas na confiança depositada para desempenhar posto

tão decisivo, mas também no fato de realizarem algumas publicações conjuntas, casualmente

sobre o tema da convertibilidade (Cavallo; Cottani, 1997).

No entanto, sabemos que Domingo Cavallo é uma personalidade de opiniões firmes e a

ideia não teria sido aplicada sem ter como substrato um campo fértil e solidificado previamente.

O cordobês chegava à cadeira ministerial depois de um longo e rutilante percurso, tendo como

um dos pontos altos seu doutoramento em Harvard, onde tinha defendido uma tese que tratava

precisamente dos efeitos estagflacionários das políticas de estabilização (1977).

Vemos assim que a ideia da convertibilidade não era nova para o Ministro, nem sequer

estava ausente dos precursores do neoliberalismo. Nesse sentido é conhecida a oposição que se

deu entre Ludwing von Mises, partidário do padrão ouro, e seu discípulo Friedrich von Hayek,

adepto a um tipo de câmbio flutuante, predominando a ideia desse último, talvez pela hegemonia

exercida por Chicago, onde atuaria depois de abandonar Viena.

Igualmente, a ideia de Cavallo ao estabelecer uma âncora cambial, inclusive sancionada

com força de lei, se apropria de outros aportes intensamente debatidos, em particular dos

provenientes da teoria da Escolha Racional e, mais especificamente, da Escolha Pública, leia-se

então, Escola de Virgínia e James M. Buchanan, sua alma mater, que constituíram outra das

vertentes que nutriria o neoliberalismo.

Assim, apesar de contrariar um dos mandamentos do decálogo de Washington, a ideia

não era alheia às discussões dos círculos neoliberais, nem se pode afirmar taxativamente que o

2 Antonio Camou (1997, p. 235-240) e Alexander Roig (2007) realizaram alguns dos rastreamentos mais minuciosos das origens da convertibilidade.

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tipo de câmbio flutuante tenha sido uma medida tão consensual, desmitificando desse modo a

solidez da proposta de John Williamson, formulada numa conferência de 1990 e publicada um

ano depois, mas que o próprio admitiria posteriormente ser mais um mito do que uma

constatação empírica de fato (1991).

Como se depreende e é costumeiro, à medida que avançávamos por respostas

terminávamos por achar mais questões novas do que soluções. A primeira delas era que o

neoliberalismo parecia ser um construto ex post, criado a partir de diversas correntes de

pensamento, algumas vezes convergentes, mas não sempre, cujas raízes estavam espalhadas por,

pelo menos, dois continentes e várias nações, cujo tramado recém começamos a compreender,

fenômeno que tinha origem tanto na particular forma em que se dá a difusão de ideias quanto na

alta mobilidade que seus cultores tiveram.

Depreende-se disso seu caráter transnacional, cuja compreensão escapa à ótica de um

indivíduo isolado e me atrevo dizer até de um grupo reduzido de pesquisadores. Por tal motivo,

seu estudo mais completo se dará na base de uma ampla rede constituída desse modo, tal como

nos indicam alguns trabalhos empreendidos desde essa perspectiva, como as coletâneas

organizadas por Dieter Plehwe, Bernhard Walpen e Gisela Neunhöffer (2006), e Philip Mirowski

e Dieter Plehwe (2009), por exemplo.

Os estudos transnacionais resultam muito mais propícios para uma primeira resposta por

serem mais flexíveis do que os estudos comparativos em sentido estrito, que engessam demasiado

as possibilidades devido à prescrição de formas mais rigorosas, o que lhe permite avançar sobre

um universo extenso com menos custos. De todos os modos, não desdenhamos totalmente esse

outro método, já que possui algumas vantagens significativas sobre aquele, que tem como um dos

seus maiores problemas o de encontrar mais semelhanças do que diferenças3.

Tampouco devemos ver essas duas perspectivas como contraditórias, que na maioria dos

casos são compatíveis (Haupt; Kocka, 2009 e Weinstein, 2013). O método comparativo exige que

os objetos possam ser comparados de forma sistemática. Para tal, devem de ter certo grau de

compatibilidade. Ou seja, serem objetos mais ou menos parecidos e estarem inseridos em

estruturas similares, o que nos afasta das comparações enormes às quais era tão avesso Charles

Tilly (1991). Já a perspectiva transnacional se ocupa de seguir pessoas, ideias, instituições por trás

das fronteiras, sem se importar demasiado com seus contextos, razão pela qual uma abordagem

conjunta parece ser uma das soluções mais aconselháveis.

3 Num trabalho recente tenho aprofundado sobre essas duas perspectivas, baseado principalmente nos aportes de Linda Basch, Nina Glick-Schiller e Cristina Szanton-Blanc (1993), Marilyn Strathern (2004) e Barbara Weinstein (2013) para o viés transnacional, assim como os de Charles Tilly (1991), Micol Seigel (2005) e Heinz-Gerhard Haupt e Jürgen Kocka (2009) no que diz ao método comparativo. Nesse último caso, contei também com as contribuições de uma coletânea local, organizada por Flávio Heinz (2009), particularmente com o capítulo de Rosa Congost (2009).

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O desafio consiste em combinar uma perspectiva que enfoque os casos nacionais e que

seja mais ampla, pairando sobre as fronteiras dos países, sob o risco de só vermos a árvore ou

sermos demasiado panorâmicos se nos restringimos apenas a alguma delas.

De tal maneira, consolidada a pesquisa no Brasil e na Argentina, mas ainda insuficiente

para entender o processo em toda sua complexidade, incorporei o Chile para um olhar

comparatista, por ser esse o país onde a ideologia neoliberal funcionou de forma mais prístina e

profunda, obtendo relativo sucesso e, por isso, foi indicado como modelo.

Embora a nação transandina tivesse estruturas um pouco diferentes dos seus vizinhos, em

particular uma indústria menor, girando sua economia em torno da atividade extrativista, a

comparação não apenas era possível, mas aconselhável. Também, apesar de ser uma das

democracias mais sólidas do continente, o que o distinguia de outras nações vizinhas, seu sistema

político registrou uma fratura similar à de seus coirmãos do Cone Sul, período em que as

posições neoliberais se tornaram políticas públicas, com tal força que partidos que se diziam

contrários capitularam diante delas, adotando-as como próprias há pouco de produzida a

transição da renascida democracia.

Igualmente, constatamos que a potência desse ideário excedeu o econômico e se

manifestou de forma ampla, plasmada inclusive juridicamente na Constituição chilena de 1980,

visivelmente inspirada no seu corpus eidético. Esta comprovação nos ajuda a derrubar outro dos

grandes reducionismos que vulgarmente se formulam acerca das ideias neoliberais.

É indubitável que seu lado econômico tem solapado suas muitas influências que, como

ideologia, imprimiu por outras esferas, notadamente a política, social, jurídica, histórica,

epistemológica e filosófica, em sentido amplo. Elas são uma particular amostra da diversidade do

seu influxo, que teve em pensadores como Friedrich von Hayek, Karl Popper, James M.

Buchanan e Francis Fukuyama alguns dos seus representantes mais conspícuos.

Com isto, podemos interpretar melhor alguns fatos que inicialmente nos desconcertavam,

em particular a aliança estabelecida entre varias instituições que professariam ideias neoliberais

com a Igreja católica, por exemplo, efetivada de forma discursiva, através da remessa de vultosos

recursos ou outro tipo de colaboração. Essa não é uma constatação nova, já Max Weber tinha

salientado a importância do protestantismo na origem do capitalismo, motivo pelo qual não deixa

de ser sintomático que os conflitos políticos e econômicos atuais estejam perpassados pelo

fundamentalismo, o que motivaria Samuel P. Huntington a enunciar sua controversa tese do

choque de civilizações (1993, 1996), assim como é possível verificar em outras notáveis

coincidências, particularmente no fato de que o próprio Consenso de Washington fosse

formulado como um decálogo e a elevação dos economistas ao patamar de novos profetas, que

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em determinadas ocasiões estão mais para recrutas do Exército Brancaleone do que enviados

divinos, como sugere Malabre no título do seu livro (1994).

Dessa forma, a abordagem não pode ser outra que a transdisciplinar, não apenas por

modismo, mas por ser a mais adequada. De qualquer maneira, ela tem que estar longe daquela

que tem sido qualificada como banal (Strathern, 2004 e 2006; Weingart; Stehr, 2000), bastante

praticada nas ciências sociais, já que a familiarização com determinados conceitos de outras

ciências nos dá a falsa sensação de estar contemplando tal perspectiva, quando na realidade o que

fazemos é uma aproximação superficial.

Longe dessa prática corriqueira está a transdisciplinariedade acadêmica4, que não se refere

a um método ou uma teoria em particular, senão a um princípio de pesquisa e concepção da

ciência, pelo qual nos vemos obrigados, necessariamente, a realizar uma imersão nos enfoques de

outras disciplinas, o que aumenta a capacidade de reformular nossas perspectivas, objetivo que

unicamente se alcança mediante a produção de um texto comum, no qual se fundem os

componentes disciplinares (Mittelstrass, 2011), integrando ao conhecimento tudo aquilo que não

pode ser explicado pelo domínio de apenas um campo (Bourguignon, 2001).

Desse ponto de vista, podemos ver que a ideia do pensamento único foi um mero

espantalho, a realidade era muito mais complexa. A gênese do neoliberalismo é polimorfa e

policentrada, resultado de uma intrincada trama, e desse modo tem que ser abordada. Mais do

que um centro irradiador, o que temos é uma ampla rede, constituída por constelações que

giravam em torno de microcentros que se interconectavam, estabelecendo coalizões entre eles,

muitas bastante estáveis5.

Como se pode apreciar, a tarefa de nos aproximar desse universo é monumental.

Devemos conhecer parte dos percursos de milhares de indivíduos e empresas – a maioria

multinacionais –, centenas de instituições – particularmente corporações, think tanks,

universidades, fundações e fóruns de notáveis –, dezenas de governos e algum punhado de

instituições multilaterais – principalmente o Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional e

Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento, que depende desse.

Por tal motivo, o método prosopográfico parecia ser o mais adequado para conjugar

todas essas abordagens, pois ele é transversal a várias ciências e pode ser usado tanto em estudos

transnacionais quanto comparativos. De qualquer modo, ainda assim, é insuficiente para poder

dar conta do fenômeno em toda a sua plenitude, particularmente pelos efeitos redutores que às

vezes produz, em especial referente à compreensão do papel desempenhado por certas

4 Nossas apreciações sobre transdiciplinariedade baseiam-se, sobretudo, nas leituras de Hilton Japiassu (1976), Basarab Nicolescu (1997), Peter Weingart e Nico Stehr (2000), e Edgar Morin (2001). 5 Sobre os conceito de constelações hegemônicas e coalizões discursivas, ver Javier Balsa (2007).

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individualidades, seja durante as gêneses como em momentos de viradas importantes, detalhes

que se lhe escapam a métodos baseados em análises mais amplas.

Nesse sentido, para enfrentar os falsos dilemas a que se referia Oscar Oszlak (2011),

podemos dizer, parafraseando a Charles Tilly (2006), que trabalhamos com um repertório de

métodos. Entre eles, a análise textual e estatística, a prosopografia, a historia oral e a biografia,

que longe de serem incompatíveis, podem servir à causa da compreensão ampla dos nossos

objetos, na base de uma intensa crítica heurística que os ajuste.

Mediante a convergência desses métodos conseguimos a sinergia necessária para

problematizar o nosso objeto, colocando-o num patamar que antes não tinha alcançado. Agora

podia ver o neoliberalismo por um prisma duplo, de forma global e enraizado em vários casos

locais, inclusive em objetos um tanto díspares, o que sem dúvidas deu uma textura diferente às

questões que levantava e às respostas que dava, desmontando, inclusive, algumas ideias

preconcebidas acerca desse fenômeno.

Além de desmitificar as ideias de um pensamento único e a existência de um consenso em

torno dele, como acima salientei, a partir da evidência empírica também passei a questionar o

sentido ontológico do seu próprio conceito e algumas associações que se estabelecem com

ideologias passadas.

Valendo-me do método prosopográfico, consegui observar nos estudos de caso como

muitas das personalidades que compunham as instituições que professavam posições neoliberais

estiveram associadas aos regimes autoritários vivenciados pelos países do Cone Sul a partir das

décadas de 1960 e 1970, inclusive muitas delas eram militares de alta patente, em particular

generais e coronéis, tendo no IPÊS o caso mais evidente, assim como muitos outros participaram

em caráter de autoridades de elevado nível nessas administrações, cujo caráter civil-militar é mais

do que evidente.

Esses dados confirmam algumas impressões formuladas, entre outros, por Guillermo

O´Donnel, inicialmente a partir de sua análise da ditadura argentina de 1966 a 1973 (1972), a que

serviria de base para sua interpretação do Estado burocrático-autoritário (1982). De todo modo,

não devemos tomar essa associação com uma mera anomalia latino-americana, Miles Khaler

(1989) e Peter Evans (1992) encontraram um curioso paradoxo na ortodoxia que vem ao

encontro da observação anterior. Segundo sua tese, existe uma visível contradição entre a

pregação dos neoliberais de um Estado ausente e o uso da sua força, inclusive física, para se

impor.

Desse modo, se desfaz um dos equívocos mais comuns, o de associar o neoliberalismo do

século XX com o liberalismo dezenovista, inclusive porque muitos dos centros que se

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embandeiraram sob aquela doutrina fizeram apropriações desse termo ou da palavra liberdade,

algumas vezes inscritas até nas suas siglas. De todas as formas, ao analisar os estatutos da

Sociedade Mont Pèlerin, se depreende claramente que são duas ideologias distintas. Inclusive, em

momento algum esses dispositivos tocam na liberdade política, a que se pressupõe consequência

natural da liberdade econômica.

Por tal motivo, não existiu contradição alguma no apoio que os governos ditatoriais

receberam por parte dessas instituições e personalidades, inclusive porque supostamente tais

regimes foram estabelecidos para resguardar a democracia, supostamente ameaçada pelo avanço

do comunismo, assim como também se entende melhor a estreita aliança que fizeram com outros

governos conservadores, particularmente com os de Ronald Reagan e Margareth Thatcher, que

tolheram liberdades individuais em nome da liberdade econômica, por exemplo.

Novamente isto conduz para outra problemática, já que o fato de empregar meios às

vezes escusos para impor tal ideologia coloca a descoberto o mito da competência técnica dessas

instituições. Evidentemente que são possuidoras de um elevado grau de expertise, mas as

evidências empíricas coletadas através de tabelas e outras fontes mostram algo um pouco

diferente. Elas recrutavam tecnocratas de certo prestígio, mas essas credenciais às vezes não eram

suficientes para elevá-los aos degraus máximos do governo, preferindo outras na hora de ocupar

esses cargos, como as de origem social, por exemplo. Tal fenômeno se observa claramente na

FIEL, circunstância que já tinha sido marcada por Mariana Heredia (2004) e também é salientada

de forma semelhante por Medvetz (2006) para os think tanks norte-americanos.

Essa aparente contradição nos leva a pensar nas formas em que a classe dominante delega

o poder em outros atores, que são os que realizam o exercício cotidiano do poder e sobre os

quais tem que realizar um controle indireto.

Pesquisar sobre essa temática é de vital importância devido ao fato de que o domínio

ideológico pode ser muito mais potente do que a força física, mas ele se exerce de maneira sutil e

é difícil de mensurar. Em tal sentido, observei como as instituições moldavam e enquadravam,

literalmente, as pessoas. Visível no caso da FIEL quando foram incorporados um grupo de

economistas provenientes do Instituto Di Tella. Entretanto, isso nem sempre era possível,

produzindo-se tensões em alguns momentos, como a que aconteceria com a maioria desses

indivíduos, que abandonaria a instituição após um curto período, talvez por não suportar a

pressão que lhes era imposta, manifesta de forma descarnada no amargo relato de Juan Carlos de

Pablo (1995).

Por outro lado, essas incorporações resultavam-me estranhas, principalmente porque a

instituição de origem estava fortemente associada a ideias heterodoxas e à matriz substitutiva, o

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que não se condizia com a entidade de “acolhida”. Uma explicação plausível a encontramos na

interpretação que Ricardo Bielchovsky (1995) realiza acerca do desenvolvimentismo brasileiro, na

qual demonstra como a sua vertente mais conservadora se afastou desse núcleo à medida que

esse se radicalizava, aliando-se a posições ortodoxas, para conservar o status quo, que acreditavam

ameaçado.

Esse comportamento ziguezagueante parece que não foi só uma anomalia argentina e

também foi observado nos decursos seguidos por algumas personalidades brasileiras, em

particular os casos de Roberto Campos e José Gerdau Johannpeter, entre os mais emblemáticos.

Inclusive, esse último experimentou outro giro mais recentemente, sem poder estabelecer

claramente se eles se deram por convicção ou por oportunismo.

Igualmente, analisando a trajetória desses indivíduos, notamos como a suposta

neutralidade da tecnocracia lhes permitia fazer reconversões rápidas de um governo a outro.

Nesse sentido, a figura de Domingo Cavallo se revela como o caso paradigmático, quem

registrara a proeza de servir a regimes autoritários e democráticos, sendo que nestes serviu a um

de orientação peronista e a outro radical, na acepção argentina do termo, que em primeira

instância aparecem como antagônicas. Tal comportamento é mais desconcertante ainda devido às

duras penalidades que a cultura política do país impunha para quem ousasse tamanho sacrilégio.

De todas as formas, esse sintoma poderia estar anunciando uma mudança abrupta nesse

sentido, dado que nos últimos tempos as migrações partidárias começaram a acontecer mais a

miúdo, até com alianças que em outras circunstâncias poderiam ser consideradas inimagináveis.

Por exemplo, no final da era neoliberal, a Alianza que elegeu Fernando de la Rua presidente

abrigava radicais e peronistas, assim como o Ministério de Economia era ocupado de forma

subsequente por um heterodoxo, um neoliberal da FIEL, de fugaz passo, e outro da FM, que

servem de breve ilustração empírica da importância de estudos deste tipo.

Para finalizar, resta-me constatar quase uma obviedade. Nos debates, sejam aqueles que

travamos oralmente ou por meio da escrita, mais do que conclusões a que se possa chegar, o que

interessa são as janelas que eles abrem. Como cientistas devemos estar em permanente vigília na

procura pela objetividade. De todo modo, isso não nos impede de flertar de maneira consciente

com os nossos próprios limites. O magnetismo que os objetos e as fontes às vezes exercem não

devem nos anuviar ao ponto de nos prender dentro de determinados cercos. Tal como Charles

Wrigth Mills (1961) ensinara, a nossa tarefa requer evidentemente de técnica, mas ela não é

suficiente. A imaginação é a dose que a faz diferente. É a ferramenta com a qual podemos

enfrentar as armadilhas em que amiúde ficamos presos, muitas vezes por seguir rotineiramente

padrões pré-moldados.

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Faz um tempo que desterramos os dogmas, cuja pureza nos conduzia a prisões

cognoscitivas, como Hirschman e Santos (1970) advertiram claramente, mas, tal constatação não

nos deve induzir ao ecletismo absoluto. Autores mais radicais, como Martyn Hammerseley

(1995), por exemplo, rejeitam toda possibilidade de isolar um conjunto claro de suposições

paradigmáticas e alegam que só existe um continuum epistemológico, no qual cada pesquisa

particular invoca seus próprios princípios epistêmicos. Não obstante, alguns limites

demarcatórios devem se impor, caso contrário, reduziríamos à sua mínima expressão a força

interpretativa das teorias, sendo válida aqui também a advertência que René Passet (2001) nos

formulara a respeito de sermos responsáveis com o uso da transdisciplinariedade.

A prosopografia, vista dessa forma, é uma ferramenta poderosa, por ser híbrida e muito maleável,

não apenas para ser adaptada aos nossos objetos, senão também porque ela pode crescer, como

uma obra em módulos, e se aprofundar, incorporando variáveis não previstas, assim como teria a

capacidade para se constituir em um elo, em torno do qual se articulem outros métodos, quanti e

qualitativos, bem como permite a colaboração, intra e extra fronteiras, sejam essas nacionais ou

disciplinares.

Referências

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Espaços de saber e poder: instituições e seus agentes na perspectiva da História Social

PROMOTOR PÚBLICO COMO PROFISSÃO: REFLEXOS DO PROCESSO DE INSTITUCIONALIZAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO RS ENTRE OS ANOS

1930 E 1960

MARCELO VIANNA1

Em um artigo do ano passado, Rogério Bastos Arantes mencionou com muita

propriedade ser o Ministério Público (MP) brasileiro uma instituição singular, “capaz de

representar a sociedade sem se deixar vincular diretamente a ela”2. Não há como discordar dessa

questão, observando que ela se aprofundou a partir dos anos 1970 (ainda durante o período de

autoritarismo) e que resultou na autonomia funcional/administrativa e no alto poder de ação que

o MP goza atualmente. As disputas em torno da Proposta de Emenda Constitucional 37/2011,

que restringiria o poder de investigação criminal às polícias, e sua posterior derrota no Congresso

Nacional, são decorrências desse longo processo.3

Essa história recente é um tanto conhecida, sobretudo em uma perspectiva institucional

(que ressalta a hipossuficiência da sociedade para buscar seus direitos e reforça o papel do MP

como defensor não só de direitos individuais, mas coletivos e difusos). Essa posição e essa força

institucional do MP – as quais não se vinculam a nenhum dos três poderes de Estado – têm

promovido acalorados debates entre aqueles que as entendem necessárias para garantir uma

atuação mais técnica, a salvo das interferências políticas e pressões de grupos de interesse, e

aqueles que percebem um forte corporativismo de seus agentes (dificultando o controle externo)

e que muitas vezes não garante imunidade frente à politização.

Essas transformações repercutiram sem dúvida no modo de ser promotor de Justiça,

atualmente profissão muito almejada por jovens formados em Direito, atraídos pelo idealismo

dos valores do MP e/ou pela alta remuneração da profissão e recrutados através de concorridos

concursos públicos. Mas é importante trazer elementos para refletir sobre a formação da

profissão do então chamado promotor público. A opção pelo estudo do MPRS é justificável por

ter sido uma das primeiras instituições a ser formada no Brasil (junto ao MP de São Paulo) ainda

nos anos 1930. Isso gerou uma “herança” organizacional (no que se refere à instituição) e

1 Doutorando em História na PUCRS. Integrante do Laboratório de História Comparada do Cone Sul (LabConeSul). E-mail: [email protected] 2 Disponível em <http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=1194> acesso em 10.12.2012. 3 O projeto de emenda apresentado pelo deputado federal Lourival Mendes (PT do B - MA) intencionava impedir que outros órgãos, especialmente o MP, realizassem investigações desse tipo. Os agentes do MP, através de suas associações de classe, articularam a derrota do projeto, em especial com apoio da mídia (através da bandeira “anticorrupção”) por ocasião das manifestações de junho. Em 25.06.2013, o projeto foi arquivado (430 votos contrários, nove a favor). O projeto pode ser consultado em <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/ prop_mostrarintegra;jsessionid=A83AC320DFACAF72F560A131759DDA0B.node1?codteor=969478&filename=PEC+37/2011> acesso em 12.05.2013.

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profissional (no que se refere ao cargo de promotor público/procurador) que repercutiriam em

certo protagonismo dos agentes do MPRS nas articulações corporativas e políticas dos anos 1970

e 1980 que garantiram a posição atual do MP.4

Entre 1930 a 1964 assentou-se as bases do MPRS contemporâneo. Nesse espaço de

tempo, ocorreria a afirmação da profissão do promotor público e a autonomização do campo

jurídico frente ao político no cenário rio-grandense. Embora processos de institucionalização5 e

profissionalização6 sejam distintos, o MPRS vivenciou um movimento dialético entre as duas

dinâmicas – a organização do MPRS, progressivamente libertando-a das interferências

quotidianas do Poder Executivo e dotando-a de recursos legais e materiais –, beneficiou a

organização de uma carreira dos promotores públicos, da mesma forma que seus agentes

perceberam a instituição como primordial para fortalecer sua atuação e seus saberes,

mobilizando-se no campo político para obter novas vantagens ao MPRS. Retornaremos a essa

questão mais adiante.

Vale observar que a profissionalização não se refletiu apenas na obtenção de recursos

materiais e privilégios, mas foi acompanhado da construção de um ethos que iria orientar à atuação

dos profissionais nele identificados. Esse código de condutas específicas (BOURDIEU, 2007)

não necessariamente provocaria uma coesão de promotores – e as rivalidades político-partidárias

no período democrático de 1945 a 1964 é uma das provas disto (VIANNA, 2010) – mas passaria

a funcionar como um princípio orientador do modo de ser promotor público e agregaria os

agentes em torno do MP. Alguns de seus membros no país envolveram-se na construção desse

ethos, especialmente a partir da Revolução de 1930. Esses membros interessados lutavam contra as

visões literárias promovidas por autores como Lima Barreto (1920) e Viana Moog (1943) que

representavam o promotor público como um ser típico do bacharelismo, oportunista,

subserviente e pouco ilustrado. Roberto Lyra, com sua obra “Teoria e Prática da Promotoria

Pública” em 1937, foi certamente o mais importante pensador do MP do período ao sintetizar a

4 Para Rogério Arantes (2002), o ponto de inflexão foram as articulações dos membros do MP em torno do novo Código de Processo Civil em 1973, que resultaram na possibilidade de intervirem em processos cíveis em nome do interesse público quando constatado. A partir daí, novas articulações políticas e novas conquistas institucionais, como a Lei Orgânica do MP de 1981 e as prerrogativas da Constituição Federal de 1988. 5 Podem os agentes sociais, pelos mais diversos interesses, buscar a institucionalização de seus espaços de atuação social – isso pode compreender a formação de órgãos, institutos, associações, sociedades... que são acompanhados de uma série de arcabouços legais que organizam esse espaço e ditam as regras de participação, funcionamento, atuação. Muitos se gestam no Estado e surgem por demandas organizacionais do Estado (TILLY, 2003), dando origem a burocracias (WEBER, 1999) mas não necessariamente envolvendo os agentes que irão atuar nos órgãos criados – mas podem esses burocratas (e outros interessados) vislumbrar aí possibilidade de reforçar suas posições, seus saberes e suas atuações. Aqui os agentes podem reforçar o espaço social que atuam com apoio ou em oposição ao Estado (BOURDIEU, 2001). 6 Para Norbert Elias, profissões podem ser entendidas como “funções sociais especializadas que as pessoas desempenham em resposta a necessidades especializadas de outras; são, ao menos em sua forma mais desenvolvida, conjuntos especializados de relações humanas” (2001). O movimento de reconhecimento de profissões reforça a especialização fundada na expertise, credencialismo e autonomia (FREIDSON, 1998).

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mudança dos tempos.

Roberto Lyra e outros agentes, com diferentes graus de competência e de sucesso,

esforçaram-se para construir o ethos desejável do promotor público: um indivíduo dotado de

capacidade oratória, conhecimento jurídico (expertise através do diploma e prática jurídica) e

combatividade, autônomo em suas promoções cíveis e criminais, capaz de se colocar acima das

pressões político-partidárias e ser abnegado às causas sociais. Enfim, o promotor deveria ser ativo

na vida comunitária, um indivíduo que, estranho à localidade, seria capaz de integrar-se sem

corromper-se.

No entanto, a construção da profissão do promotor público foi repleta de tensões e

contradições. Inegavelmente os efeitos do bacharelismo, mandonismo, clientelismo e outras

práticas presentes nas relações de poder que influenciaram a organização do campo jurídico

(ENGELMANN, 2001; BONELLI, 2001, 2003) estiveram presentes na formação do MPRS

(VIANNA, 2011). Embora uma periodização possa parecer sempre arbitrária por tentar sobrepor

intervalos temporais (no caso aqui, em muito marcados pela cronologia política) em processos

históricos, foi possível estabelecer três fases que demonstram o desenvolvimento do processo de

institucionalização do MP e, junto a ele, a progressiva profissionalização que os promotores

públicos experimentaram entre os anos 1930 e 1964. Essas fases se justificam em muito pelo

atrelamento que a instituição obviamente tem ao Estado, especialmente ao Poder Executivo.

Transição (1930-1937)

A primeira fase está intimamente ligada ao governo Flores da Cunha (1930-1937) e às

disputas político-partidárias que marcavam o cenário rio-grandense à época. Elas repercutiam nos

quadros estatais tidos como mais “instáveis”, justamente aqueles desprotegidos de mecanismos

legais e/ou atrelados a compromissos políticos. Desse modo, funcionários públicos eram

removidos ou promovidos, perseguidos ou premiados conforme a fidelização ao governo,

serviços prestados ao partido ou a lideranças municipais, independente de sua formação. Havia

exceções no campo jurídico – o Judiciário sofreria pressões, mas seus membros encontravam-se,

em geral, protegidos por um processo de institucionalização mais antigo e que garantia proteção

jurídica aos magistrados e reconhecimento de um alto capital simbólico em suas funções. Não era

o caso do MP – os 71 promotores nomeados à época encontravam-se muito suscetíveis às

interferências políticas (submissão ao Poder Executivo), permanecendo em média 4,8 anos no

cargo, um índice um pouco maior que a República Velha.

Dos 47 promotores públicos que vivenciaram a Revolução de 1930, 19 (40%) chegariam

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“incólumes” ao final do período florista, graças à capacidade de equilibrarem-se entre as

atividades de promotorias e as interferências políticas, que podiam exigir o acionamento ou

adaptação a redes (apadrinhamentos), certa “invisibilidade” (ou atuação favorável aos interesses

floristas) e/ou manifestações públicas (estratégicas ou sinceras) de apoio ao governo. Somado

aos baixos salários, quase equivalentes aos juízes municipais, eram duras condições. Desafetos,

como os bacharéis José Edgard Ramos (promotor em Cruz Alta) e Severino Sampaio (Palmeira

das Missões), foram exonerados por confrontarem os mandatários municipais, enquanto fiéis ao

governo eram prestigiados (nesse caso, o próprio filho de Flores da Cunha, Luiz Guerra foi

agraciado com a promotoria de Uruguaiana em 1933). Mesmo não bacharéis (rábulas)

mantinham-se em promotorias, como o capitão Pedro Sales Mesquita, agraciado em 1928 e ativo

até 1941, tendo em vista os serviços prestados ao governo nas Revoluções de 1930 e 1932.

A atuação de Daniel Krieger (1977) como promotor público foi símbolo da imbricada

relação de dependência com o campo político e início de autonomização do campo jurídico, o

qual se valia da sua relação pessoal com Flores da Cunha para afirmar sua independência

funcional. Em seu livro de memórias foi possível conhecer suas ações nas promotorias de Santo

Antônio da Patrulha e de Porto Alegre no início dos anos 1930. Em síntese, Daniel Krieger

relatou episódios de enfrentamento com as autoridades, como o recurso contra a absolvição de

um protegido de Flores da Cunha acusado de assassinato. Porém, o promotor sabia os limites do

cargo. Na ocasião de um conflito com Flores da Cunha, deixou claro: “Quem me nomeou foi o

senhor. Se, no exercício do cargo, não correspondi à sua expectativa, só me resta o recurso da

exoneração” (KRIEGER, 1977, p. 50).

Fechamento partidário-político, autoritarismo e profissionalização (1937-1945)

O fechamento político promovido pelo Estado Novo abriu a segunda fase da

profissionalização. Pode se dizer que a modernização conservadora abriu caminho para

construção de muitas carreiras na burocracia estatal, entre elas a de promotor público. Nesse

sentido, as atuações Anor Butler Maciel e Abdon de Mello foram marcantes para

profissionalização do promotor público. O primeiro, católico e ex-líder da Ação Integralista

Brasileira no Rio Grande do Sul, realizou como Procurador-Geral do Estado (1939-1941) uma

série de medidas de modernização administrativa que impactaram nas funções e prerrogativas do

promotor público, entre elas o primeiro concurso público para o cargo. O concurso realizado em

março de 1941, embora não tenha encerrado determinados critérios “subjetivos” de seleção e

tampouco eliminado a nomeação de promotores interinos (designados pelo governo), trouxe

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certa estabilidade funcional para o promotor, que deixava de ser demissível ad nutum. Abdon de

Mello por sua vez, atuante desde 1920 na instituição, seria um propagador do ethos profissional.

Não se restringiu apenas a obras jurídicas, mas conseguiu articular – quando obteve a chefia

institucional – a organização da carreira de promotor público, além de conceber a Associação do

MP e a Revista do MP, como espaços de divulgação e consagração dos valores da classe

ministerial.

A reorganização do MP envolveu os 126 promotores atuantes durante o Estado Novo e

encerrou a época de promotores rábulas ou diletantes, que incluíam muitos militantes de Flores

da Cunha, alguns poetas e militares e até um jogador de futebol pouco esforçado nas práticas do

Parquet. Uma nova geração ascendeu graças ao contexto de fechamento da participação político-

partidária, legitimados pelos concursos públicos nesse período. Prova disto é que dos 67

nomeados à época, a média de carreira foi de 20,24 anos.

Ainda eram presentes, no entanto, nomeações de promotores interinos para então

efetivarem-se em concurso público – uma prática que continuou até 1947 e que exigia dos

aspirantes à promotoria uma série de capitais e recursos tais como origens notáveis, formação em

escolas de elite e contatos políticos. Figuras consagradas no MP, como Paulo Pinto de Carvalho,

Peri Condessa, Henrique Fonseca de Araújo, Floriano Maia D’Ávila, José Barros Vasconcellos,

João Lyra de Faria ingressariam dessa forma na instituição e integrariam uma elite institucional

que dominou o MP entre 1947 e 1970.

As pressões políticas, especialmente sensíveis diante um regime autoritário, continuaram.

Pouco o MPRS pôde fazer frente à ação policial do Estado Novo, especialmente contra a

população imigrante alemã e italiana7, assim como os desmandos de autoridades públicas eram de

difícil judicialização8. Ainda assim, houve exceções, como o caso que envolveu o assassinato

Valpírio da Dutra Cruz na cidade de Passo Fundo a mando do comandante Creso de Barros

Monteiro.

Ocorrido às vésperas do Estado Novo, o caso ganhou expressão durante o período

autoritário à medida que os promotores João Boeira Guedes e Sophia Galanternick buscaram

promover uma ação penal contra ele. No entanto, eles sofreram diversas pressões, incluindo uma

7 Um exemplo dos abusos ocorreu por ocasião do rompimento diplomático entre o Brasil e os países do Eixo. Houve ordens do governo federal para que se recolhesse uma série de bens dos descendentes desses países como armas, livros, rádios, embarcações e aviões. Esses objetos deveriam ser recolhidos pela Polícia para depósitos públicos, mas logo os excessos ocorreram – além de apreender todo tipo de objetos, os bens eram mal estocados pelos corredores da Repartição Central de Polícia, dando margem a numerosos furtos. Somente após o Estado Novo que o MP seria mobilizado a participar de uma comissão de inquérito para averiguar a apropriação “indébita” dos bens dos súditos do Eixo (1946), resultando em um longo e polêmico processo judicial contra a antiga cúpula da Polícia (1947) e no incêndio do Tribunal de Justiça (1949). 8 Nesse sentido, o Boletim nº 3 emitido pelo Procurador-Geral do Estado Anor Butler Maciel em 15.01.1941 mandava os promotores informarem todos os processos que envolvessem autoridades e os enviassem para posterior análise da Procuradoria.

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ordem do Procurador-Geral Anor Butler Maciel para “acomodar” o caso, o que contribuiu para

abreviar a carreira da primeira promotora do Rio Grande do Sul. O processo seguiu para Porto

Alegre em 1942, onde, apesar dos esforços do promotor Henrique Fonseca de Araújo e do

Procurador-Geral Abdon de Mello, o réu foi inocentado. No entanto, o feito tornou-se simbólico

pelas ações dos promotores envolvidos que, ao ver de seus pares, mostraram os valores desejáveis

da classe tais como independência, destemor e cultura jurídica.

O promotor público no cenário democrático (1945-1964)

A última fase desse período compreende o período pós-Estado Novo até o Golpe Militar

de 1964. Nesse processo, graças à atuação de agentes do MPRS eleitos para Constituinte Estadual

de 1946, surgiu o Conselho Superior do MP (CSMP) em 1947, uma instância que consagrou uma

elite institucional formada no Estado Novo. O tempo na instituição e a experiência adquirida em

promotorias no interior contribuíram para que os integrantes da elite, ao alcançar as posições de

comando da instituição, pudessem exercer um controle sobre os demais. Os conselheiros

cuidavam da ordem institucional, dos privilégios e prerrogativas obtidas, e controlavam, através

de sanção e louvores, as ações dos demais membros da instituição. Eles cultivavam e defendiam o

ethos profissional dos promotores públicos e funcionavam como um anteparo das pressões do

Poder Executivo: se nos anos 1930 os promotores podiam ser demitidos e no Estado Novo eles

podiam ser removidos pelo Procurador-Geral, agora quaisquer decisões sobre a vida funcional do

agente do MPRS passariam pela deliberação dos conselheiros. Se isso não era uma plena garantia

de autonomia dos promotores, ao menos aumentava a chance de defenderem-se e serem

defendidos pela pluralidade de opiniões dos membros do conselho.9

Por sua vez, os remanescentes do Estado Novo e novos promotores nomeados entre

1945 e 1964 submeteram-se a essa nova lógica. Não havia mais “diletantes” ou “rábulas”, todos

detinham um perfil mais técnico-jurídico, recrutados em concursos públicos (em número de 15) e

encontravam uma carreira estabelecida por critérios de promoção regrados e conhecidos por

todos. Um jovem promotor em início de carreira passou a ter a perspectiva de alcançar – através

de promoções por antiguidade ou por merecimento – um posto em Porto Alegre, levando em

média 16 anos para uma carreira estimada em 21,16 anos.

9 Os promotores públicos passaram a contar com um maior investimento em sua expertise, aprimorado pela Corregedoria, que aperfeiçoou o controle do CSMP e refinou as técnicas de seus agentes no interior do estado, incluindo a realização de visitas e discussões coletivas sobre suas atividades.

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Embora a queixa sobre baixos salários fosse a tônica dos agentes do MPRS ao longo de

décadas, é notável uma melhora, especialmente se comparado à magistratura, quando se

reduziram as diferenças salariais entre as classes, como mostra a tabela a seguir:

Evolução salarial dos promotores e Juízes de Direito (1944-1964)

Ano/cargo Promotor

público 1.ª

entrância

Juiz de Direito

1.º entrância

Diferença Promotor

público 4.ª

entrância

Juiz de Direito

4.º entrância

Diferença

1944 Cr$21.000,00 ao

ano

Cr$30.000,00 ao

ano

42,86% Cr$33.000,00 ao

ano

Cr$48.000,00 ao

ano

25%

1964 Cr$2.700.000,00

ao ano

Cr$2.760.000,00

ao ano

2,22% Cr$3.120.000,00

ao ano

Cr$3.360.000,00

ao ano

7,14%

Fonte: História do Orçamento do Judiciário Gaúcho, Orçamento do Ministério Público do RS (1944-1964).

Embora o tempo de carreira, funções gratificadas e outras vantagens aumentassem as

diferenças entre os promotores, não deixava de ser um atrativo para novos candidatos e um sinal

da profissionalização do MPRS. Isso permitiu que o promotor progressivamente deixasse de

atuar como advogado privado em questões cíveis - o que era permitido à época como forma de

aumentar os rendimentos - para focar-se em suas atividades na promotoria.

Esses jovens promotores se envolveram na vida comunitária como estratégia para

dinamizar suas funções através do respaldo social. Para os conselheiros, isso era aceitável pela

visibilidade positiva que essas ações no interior traziam ao MPRS. Por exemplo, o promotor

Reginald Felker constituiu, em Santo Antônio da Patrulha entre 1957 a 1960, além de um ginásio

(escola de comércio), uma escola para atender os presos, providenciando-lhes também trabalho.

Assim era comum o envolvimento do promotor em espaços comunitários (de elite ou não), como

associações e entidades beneficentes, assim como a organização de escolas e de assistência social.

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Essa estratégia de inserção na comunidade assumia padrões distintos entre os promotores

públicos. Ney Fayet de Souza, por exemplo, buscava evitar participar de organizações sociais

como Lions Club ou Rotary, pois muitos de seus membros eram jurados em casos nos júris e isso

poderia provocar alguns embaraços. Para Luiz Carlos Gomes, os júris eram a “vitrine da

sociedade” e o promotor, através da integração em seu quotidiano pelo trabalho social, poderia

conquistar sua simpatia. A profissionalização do promotor, nesse sentido, não afastou do

envolvimento com a comunidade. Além disso, a participação do promotor em eventos públicos –

como datas festivas, através de discursos ou de palestras – reforçava a sua condição frente a

outras autoridades públicas (VIANNA, 2011).

Respaldados pelos conselheiros, a postura combativa estava presente nos numerosos

conflitos com juízes, advogados, rábulas, delegados e vereadores estabelecidos no interior. As

memórias dos agentes do MP no período e os relatórios do CSMP mostraram que os

promotores, não raro, necessitavam impor-se no quotidiano, a fim de exercerem suas atividades

de maneira a não serem submetidos às autoridades locais ou rebaixados a “auxiliares” do Poder

Judiciário. Isso extrapolava a dimensão técnica dos processos judiciais em que os promotores

atuavam, levando-os a acompanhar diligências e prisões de criminosos. Como os limites de

atuação, muitas vezes, não eram claros e dependiam da própria relação estabelecida entre o

promotor, os advogados locais e as demais autoridades, por vezes, podiam ocorrer acusações

públicas, brigas e até mesmo tiros.10

É importante retomarmos a questão do envolvimento no campo político, presente na

dimensão político-partidária que envolve o processo de profissionalização dos promotores

públicos. O atrelamento legal do MP ao Poder Executivo ainda era existente e o Procurador-

Geral do Estado era escolhido pelo governador, não pela classe. Embora os promotores e

procuradores não pudessem mais ser demitidos e tampouco perseguidos por suas posições

políticas, rivalidades dentro da instituição revelavam as cisões entre petebistas e não petebistas.

Isso se refletia nas disputas eleitorais internas nos cargos do CSMP e inevitavelmente podiam

contribuir ou retardar promoções na carreira dos demais membros do MPRS – embora causasse

desconforto e contrapusesse o princípio do ethos e da valorização da expertise do promotor

público, nenhum agente ignorava a influência desse recurso na instituição.

O próprio envolvimento na comunidade na qualidade de promotor público o investia

para converter esse reconhecimento em lucros na vida política, sendo que alguns chegaram a se

tornar vereadores, prefeitos ou deputados estaduais nesse processo, como os promotores Raul

10Como foi o caso do promotor Ruy Chaise Villas Boas que trocou tiros com advogados desafetos dentro do fórum de Carazinho em 1958.

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I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul

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Campos, Octavio Omar Cardoso, Júlio Marino de Carvalho, Henrique Fonseca de Araújo,

Hermes Pereira e Mário Mondino. Havia protestos e propostas para separar esses vínculos

político-partidários, mas não foram bem sucedidas, mesmo quando impediram os promotores de

acumularem proventos ou quando eliminou-se as eleições internas para o CSMP no início dos

anos 1960. Da mesma forma havia aqueles que compreendiam, graças ao ethos do promotor

público, que o promotor era um sujeito ideal para moralização da tão desacreditada política

local.11 Essa questão não seria solucionada nem mesmo com o Golpe Militar de 1964 e a dura

perseguição realizada contra promotores e procuradores considerados subversivos.

O caminho para novas conquistas institucionais – conclusão

Ao longo desse percurso, ainda não é possível falar em uma “independência” institucional

do MPRS nos moldes obtidos a partir da Constituição de 1988. Mas, dos anos 1930 ao Golpe

Militar de 1964, um importante percurso dinâmico entre institucionalização e profissionalização

fortaleceu a condição do promotor público. A construção do ethos do promotor público nos anos

1930 encontrou espaço para ser reproduzido no MPRS especialmente a partir do Estado Novo e

tornou-se referencial a partir do controle exercido pelo CSMP já no período democrático.

Carreiras estáveis e melhorias salariais foram demandadas pelos agentes interessados em

fortalecer o MPRS para garantir a plena efetividade da profissão do promotor público, e isso, sem

dúvida, incentivou novos agentes a ingressarem e se manterem vinculados à instituição. O

profissional do MPRS passou a ser visto como um indivíduo ativo nos moldes idealizados por

Roberto Lyra e outros pensadores do MP, capacitando-o a intervir, não só no campo jurídico,

mas em diferentes aspectos da vida social, de maneira a legitimar sua autoridade na sociedade.

No entanto, é importante refletirmos sobre a ideia de autonomia do promotor –

conforme as memórias dos membros à época, isso não significava para muitos o impedimento de

participação da vida político-partidária. A tomada de posição e o domínio da oratória eram parte

do ethos político que fora incorporado pela profissionalização do promotor público. Isso levou à

participação de muitos na vida político-partidária e trouxe novos benefícios aos agentes do

MPRS, pois sem a participação de agentes eleitos na Assembleia Legislativa ou em cargos

estratégicos de governo, muitos avanços institucionais (inclusive as tão caras equiparações salariais

com a magistratura) e que repercutiram na profissionalização do promotor público, seriam mais

11 “A Política dolorosamente neste país equaciona via de regra interesses pessoais, e os conflitos emergentes se resolvem em termos de retaliação pessoal. A magnitude da função do Promotor poderá ser denegrida e comprometida no exercício de atividade política. Em contrapartida, a participação do MP no terreno político importa em carrear para esse setor da vida pública aquele espírito de seriedade, de respeito à lei, e de identidade tão peculiares à formação moral e jurídica do promotor.” (CARVALHO, 1973, p. 84-85, grifos do autor)

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difíceis de obter.

O Golpe Militar de 1964, embora tenha trazido uma letargia nos avanços institucionais

até o início dos anos 1970, não encerrou esse modo de ser promotor público. Seriam os mesmos

agentes do MPRS, unidos pelo ethos profissional e mobilizados politicamente, capazes de obter

uma nova série de conquistas institucionais e corporativas em um ambiente de restrições de

direitos que foi o Regime Militar. Se estendida à realidade nacional, talvez esteja aí uma das raízes

do paradoxo no qual Rogério Arantes observou persistir no MP contemporâneo.

Referências

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Espaços de saber e poder: instituições e seus agentes na perspectiva da História Social

A ELITE DA PROPAGANDA REPUBLICANA RIO-GRANDENSE: UM PERFIL SOCIOLÓGICO

TASSIANA MARIA PARCIANELLO SACCOL1

Nas últimas décadas do século XIX, o regime político adotado no Brasil já dava sinais de

seu esgotamento. A alternativa republicana ganhava, gradativamente, a simpatia de vários grupos

sociais e encontrara, em meio a esses, propagandistas fervorosos. Do mesmo modo, ideias como

a da abolição da escravidão, a secularização das instituições e o federalismo foram ganhando cada

vez mais espaço no terreno político e, não por acaso, eram defendidas - na maioria das vezes -

pelos mesmos grupos.2

Na província do Rio Grande do Sul, a propaganda republicana começou a tomar forma

com a criação do Partido Republicano Rio-Grandense (PRR), no ano de 1882.3 Foi a partir daí

que um grupo de propagandistas passou a divulgar a república de forma mais organizada e

sistemática. A este grupo, formado por indivíduos tais como Assis Brasil, Júlio de Castilhos,

Pinheiro Machado, Borges de Medeiros, Demétrio Ribeiro, Ramiro Barcellos e Venâncio Ayres,

chamaremos de a elite da propaganda republicana rio-grandense. Junto a esses, que se tornaram alguns

dos nomes mais conhecidos historiograficamente, muitos outros indivíduos colaboraram na

propaganda e também ganharão espaço nas páginas deste texto.

Assim sendo, nosso estudo propõe algumas reflexões acerca do grupo formado pelos

membros mais influentes ou pelas principais lideranças do PRR durante a década de 1880. O

grupo era formado por indivíduos que contestavam o regime monárquico e o sistema político

vigente e que visavam ascender ao poder, através das vias legais. De início é importante ressaltar

que se tratam, na sua grande maioria, de jovens que faziam parte da elite econômica da província

e que tinham plenas condições materiais de manifestar suas opiniões, financiando jornais,

organizando conferências públicas, investindo em candidaturas e excursões eleitorais. Esses

jovens, embora fizessem parte de um movimento que vinha ganhando força em diversas partes

do Brasil, constituíam minorias políticas que assumiam posições arriscadas ao se manifestarem

contra a ordem vigente.

1 Graduada em História pela Universidade Federal de Santa Maria (2010). Mestre em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2013). Atualmente é professora da rede pública estadual de ensino. E-mail para contato: [email protected]. 2 Sobre a conjuntura dos últimos anos do Império e as novas ideias que circulavam à época ver, por exemplo: Alonso (2002); Schwarcz (1993); Costa (1999); Lemos (2009). 3 Ao longo da década de 1870, ainda que não tenha sido muito expressiva, a propaganda republicana já era realizada por alguns intelectuais tais como Francisco Xavier da Cunha e os irmãos Apeles e Apolinário Porto Alegre.

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Nosso objetivo é o de conhecer algumas das principais características dos líderes do PRR,

e, a partir daí, traçar um perfil socioeconômico do grupo por eles formado. Conforme veremos

ao longo do texto, a existência de características sociais comuns e experiências compartilhadas

pelos membros do grupo eram alguns dos fatores que facilitavam a sua mobilização conjunta,

numa década em que os republicanos ainda se constituíam como grupos minoritários, embora

conquistassem cada vez mais espaço no terreno político. Mas antes de adentrarmos na análise do

perfil da elite da propaganda republicana rio-grandense, vejamos quais as principais afirmações

trazidas pelos trabalhos que investigaram esse movimento político e suas principais lideranças na

província do Rio Grande do Sul.

O movimento republicano nas páginas da historiografia rio-grandense

Existe um número significativo de trabalhos sobre as trajetórias individuais e a atuação

política dos principais líderes republicanos4, porém nenhuma pesquisa mais recente se dedicou a

analisar o grupo dos membros mais atuantes do PRR como um todo. Ainda assim, existem

pesquisas bastante consagradas na historiografia rio-grandense, sobretudo produzidas nas décadas

de 1970 e 1980, que foram muito revisitadas, tendo se perpetuado ao longo dos anos.

Walter Spalding foi o primeiro a se deter exclusivamente sobre o período da propaganda

republicana. O autor trouxe importante contribuição ao reunir e apresentar notas biográficas dos

principais propagandistas rio-grandenses, que se notabilizaram antes da proclamação da

República. Essa listagem preliminar, contendo informações sobre a trajetória de vários

propagandistas, foi revisitada diversas vezes por pesquisas posteriores, colaborando para que se

lhes traçasse um perfil, ainda que o próprio Spalding não o tenha feito (Spalding, 1952).

Por volta da década de 1970, algumas pesquisas começaram a vincular as ideias políticas

às respectivas classes sociais dos seus defensores. A maioria dos trabalhos passou então a vincular

o republicanismo aos novos grupos que vinham surgindo no cenário político. De tal modo,

Sérgio da Costa Franco (1967, p. 155) assinalou que “a ascensão dos castilhistas correspondeu a

modificações na hierarquia social, já que boa parte do eleitorado republicano provinha de setores

de classe média, que o regime eleitoral do Império havia privado do exercício do voto”. Em outra

oportunidade, Franco (1993, p. 56) afirmou que a ascensão dos castilhistas ao poder,“ [...] se não

correspondeu exatamente à substituição de uma classe social por outra no exercício de mando,

equivaleu à promoção de novos segmentos que em geral tinham estado afastados da partilha das

benesses do Estado”.

4 Veja-se, por exemplo, o perfil biográfico de Joaquim Francisco de Assis Brasil, elaborado por Carmem Aita (2006) e o trabalho de Sérgio da Costa Franco (1967), referente a atuação política de Júlio de Castilhos.

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Por outro lado, Joseph Love pontuou que a partir da Proclamação da República e,

especialmente, da guerra de 1893, processou-se uma mudança no poder, “de uma elite estancieira

para uma outra, próxima desta” (Love, 1975, p. 79). Para esse autor, os dirigentes dos partidos

Liberal e Conservador formavam a aristocracia da Província, possuindo as maiores e mais antigas

estâncias além de muitos deles possuírem títulos imperiais, ao passo que “Castilhos e seus

companheiros eram um pouco menos ricos e tinham vínculos mais tênues com a nobreza

provincial” (Love, 1975, p. 79). Love concluiu que, de maneira geral, os estancieiros continuaram

a dominar o Rio Grande durante a República, assim como no Império; entretanto, havia uma

diferença com relação à origem regional dos líderes: “nas posições, em outros tempos ocupadas

em sua maioria por líderes vindos da campanha, assentaram-se cada vez mais os naturais da

Serra” (Love, 1975, p. 79).

Sendo assim, na década de 1970, em trabalho de extremo rigor científico, baseado em

profunda pesquisa empírica, Love já havia apontado para uma origem também agrária dos

principais líderes do PRR – ainda que enfatize uma diferença em termos de origem regional em

relação às elites monarquistas – bem como para a existência de vínculos parentais de algumas

dessas lideranças com famílias nobres da Província. Entretanto, embora sua pesquisa tenha sido

constantemente revisitada, a vinculação entre os novos grupos urbanos e o republicanismo

continuou a ser propagada pelos trabalhos posteriores.

O trabalho de Celi Pinto é bastante elucidativo nesse sentido. Em sua dissertação de

mestrado, datada de fins da década de 1970, Pinto realizou uma análise do perfil dos principais

líderes do PRR, na fase da propaganda republicana. Para tal, selecionou um grupo composto por

71 indivíduos, utilizando como critério para essa seleção a sua participação ativa no Partido e em

eventos oficiais promovidos pela agremiação.5 A partir da análise dos dados coletados, a autora

concluiu que um perfil dos propagandistas republicanos no Rio Grande do Sul poderia ser

descrito da seguinte maneira:

O grupo em estudo constitui-se de elementos muito jovens, com uma instrução formal excepcional para o contexto intelectual em que viviam, e que, em sua grande maioria, pertencia à classe média urbana. Portanto, trata-se de um grupo que não estava envolvido diretamente nos interesses do grupo dominante da campanha ou de grupos dominantes das regiões mais pobres do norte da província. A propaganda republicana foi feita à revelia destes segmentos da sociedade gaúcha e por isto mesmo o movimento não obedeceu aos interesses de cada uma das regiões (Pinto, 1979, p. 101).

5 Integram o “grupo dos 71” indivíduos que participaram da Convenção de 1882, que foram representantes de núcleos republicanos nos congressos anuais do partido, que se candidataram oficialmente às eleições municipais e provinciais e, por fim, indivíduos que integraram a bancada gaúcha na constituinte estadual e federal de 1891.

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Em trabalho posterior, a autora pontuou, ainda, em relação ao perfil dos republicanos da

propaganda, que “os fundadores do partido tinham características comuns muito distintas das

elites políticas da época – eram jovens, com instrução superior e não tinham experiência

partidária anterior” (Pinto, 1986, p. 9). Ainda conforme Pinto:

Seria errôneo afirmar que os jovens fundadores do PRR não eram membros da elite econômica rio-grandense. Entretanto, deve ter-se presente que não pertenciam à tradicional elite pecuária da campanha, que quase em sua totalidade, formava o Partido Liberal. Eram, na sua maioria provenientes da região norte do Estado, de ocupação recente e mais pobre do que a campanha [...]. Portanto, se eram estancieiros, não eram membros da oligarquia política rio-grandense. (Pinto, 1986, p. 9) (grifo nosso).

A autora, a respeito da organização partidária, ainda afirmou que “o PRR, no período da

propaganda, era um partido bastante pequeno, mas que se destacava por sua excepcional

organização e disciplina partidárias”, tendo por base a doutrina positivista (Pinto, 1986, p. 12).

Portanto, para Pinto, a elite republicana estaria descolada, tanto ideologicamente, quanto

socialmente, das elites mais tradicionais da Província.

Anos depois, Sílvio Duncan Baretta, analisando as motivações que levaram à guerra civil

rio-grandense de 1893-1895 e à extrema violência que caracterizou esse conflito, também

ofereceu algumas considerações sobre o perfil socioeconômico dos republicanos. Debatendo

com Sérgio da Costa Franco, Baretta buscou demonstrar que a guerra não fora resultado de um

conflito de classes.6 Pesquisando os inventários post-mortem de lideranças republicanas e

federalistas, Baretta verificou que os segundos não eram muito mais ricos e que havia fazendeiros

entre os republicanos. Mesmo que seu interesse fosse o panorama político após a Proclamação da

República, Baretta utilizou-se da listagem dos propagandistas republicanos da década de 1880,

organizada por Walter Spalding. Analisando-os juntamente com republicanos que aderiram ao

Partido nas vésperas do 15 de novembro e até depois disso, o autor sugeriu que os mesmos

apresentavam um caráter mais profissional e com formação educacional superior, em relação aos

federalistas. Além disso, o republicanismo seria um movimento eminentemente urbano e os seus

líderes não possuíam nenhuma ligação com a nobreza monarquista que caracterizou a elite do

regime político derrubado (Baretta, 1985).

Em linhas gerais, as pesquisas de Spalding, Franco, Love, Pinto e Baretta são as que mais

ofereceram dados para a constituição de um perfil da elite da propaganda republicana rio-

grandense. Algumas dessas pesquisas, evidentemente, não tinham como objetivo principal

analisar esse grupo de propagandistas, mas acabaram contribuindo para que algumas ideias-força

6 Franco defendia que os federalistas eram muito mais ricos e tinham suas bases nas grandes estâncias da campanha, enquanto que os republicanos eram os mais pobres, pertencentes a uma classe média urbana com forte traço urbanizado (Franco, 1993).

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a respeito dele fossem se colocando ao longo dos anos, ainda que essas mesmas pesquisas

apresentassem também algumas divergências entre si.

O modelo de interpretação da propaganda republicana rio-grandense e do perfil dos seus

principais líderes, inaugurado com esses trabalhos, ainda se mantém com significativa importância

historiográfica, tendo sido reproduzido, na íntegra, em sínteses mais recentes.7 Em suma, o

quadro geral que podemos construir a partir das contribuições dos autores citados é o seguinte:

a) os membros do PRR não possuíam ligação com a classe econômica tradicional do Rio

Grande do Sul, seja da campanha, seja do planalto serrano. Essa classe era

representada pelo Partido Liberal;

b) o republicanismo foi um movimento eminentemente urbano e os seus líderes

pertenciam a uma classe média localizada nas cidades, devido a sua atuação

profissional;

c) os membros do PRR não possuíam ligações com a nobreza monárquica e estavam

excluídos dos centros de poder político do período;

d) o PRR era um partido formado por jovens com uma educação acima da média.

Luiz Alberto Grijó foi um dos primeiros a tecer algumas considerações, problematizando

a tese de que a origem social das principais lideranças do PRR estaria ligada a uma classe média

urbana e que a mobilização dos líderes da propaganda poderia ser explicada, em grande medida,

como uma contraposição aos interesses dominantes da oligarquia rural gaúcha - que, segundo a

mesma tese, integrava o Partido Liberal. Ainda que esse não tenha sido seu objeto de estudo, o

autor pontua que o problema dessa abordagem consiste em dar importância demasiada a

indicadores de local de nascimento e de residência dos agentes pesquisados, bem como

sobrevalorizar uma possível clivagem entre os interesses urbanos e os da "oligarquia". Grijó

salientou que a elite do Partido Liberal não parecia diferir muito em termos de origens sociais e

escolaridade da elite dos republicanos da propaganda. O autor ainda aponta que as diferenças

mais significativas entre liberais e republicanos podem ser encontradas mais nas influências

conjunturais que forjaram a geração dos republicanos do que por interesses contrapostos entre

"setores médios urbanos" e a "oligarquia rural" (Grijó, 2005).

Jonas Vargas, pouco tempo depois, forneceu dados importantes para começarmos a

repensar a validade do modelo que acabamos de expor. O autor demonstrou que o Partido

7 Veja-se, por ezexemplo, o trabalho de Ricardo Pacheco (2007). Alguns anos antes, o modelo também havia sido reproduzido por Trindade (1979).

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Conservador foi um importante espaço de representação dos estancieiros da região da campanha

e que a elite monarquista era altamente educada em termos de formação superior (Vargas, 2010).

No entanto, sua ênfase foi dada à elite política monárquica e, sendo assim, ainda resta testar esse

modelo para a elite da propaganda republicana no Rio Grande do Sul. A apreciação dos dados

que se segue busca alterar essa imagem no que diz respeito ao Partido Republicano Rio-

Grandense. O foco de análise deixa de ser os indivíduos isolados e o estudo das ideias políticas e

recai sobre a origem social e as vinculações familiares dos propagandistas. Conforme demonstrou

Vargas, as famílias eram a unidade social principal no sistema político da época e suas redes de

relações davam vida aos partidos políticos monárquicos (Vargas, 2010). Nosso objetivo é

demonstrar que o mesmo parecia acontecer também entre os republicanos.

A partir das informações encontradas ao longo de nossa pesquisa empírica, a percepção

de que os republicanos eram, em sua grande maioria, membros de uma classe média urbana, sem

vínculos com a região da campanha e com a oligarquia política da província poderá ser

relativizada. Passemos, então, à análise desses dados.

O perfil das lideranças republicanas no Rio Grande do Sul

O grupo aqui analisado e que formava a elite da propaganda republicana rio-grandense foi

composto a partir de três listagens básicas. A primeira delas foi a mencionada relação de

propagandistas rio-grandenses elaborada por Walter Spalding (1952, p. 57-136), contendo os

principais líderes do movimento republicano provincial em todos os seis círculos eleitorais. Sua

lista apresenta o nome de 46 indivíduos e traz informações biográficas para todos eles. A segunda

fonte utilizada foi a relação dos membros do Club 20 de Setembro na década de 1880.8 Essa

organização reunia todos os estudantes rio-grandenses que eram republicanos e passaram pela

Academia de Direito de São Paulo, onde o Club funcionava. O Club foi o principal núcleo

intelectual do PRR e formador de boa parte das lideranças do partido. Essa lista soma 36

indivíduos. A terceira lista foi organizada por Celi Pinto (1979) e é composta por candidatos do

PRR às eleições da época, líderes nas convenções e reuniões do partido e indivíduos que foram

eleitos tanto na primeira Constituinte Republicana Estadual, quanto Federal, entre 1890 e 1891. A

relação de Pinto reúne 72 indivíduos. No entanto, resolvemos excluir vários deles por serem

“adesistas”, ou seja, políticos com reconhecida trajetória política monárquica e que se filiaram ao

PRR nas vésperas do 15 de novembro ou depois dele.

8 A lista foi publicada em Assis Brasil (1981).

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Somando todos os indivíduos que aparecem nas três listas e excluindo os “adesistas” e

aqueles que se repetiam em outras relações, nos restou um grupo final de 87 líderes republicanos,

que optamos por denominar Grupo Lideranças. A análise do grupo foi realizada a partir do método

prosopográfico. Lawrence Stone definiu o método da seguinte maneira:

A prosopografia é a investigação das características comuns de um grupo de atores na história, por meio de um estudo coletivo de suas vidas. O método empregado constitui-se em estabelecer um universo a ser estudado e então investigar um conjunto de questões uniformes – a respeito de nascimento e morte, casamento e família, origens sociais e posição econômica herdada, lugar de residência, educação, tamanho e origem da riqueza pessoal, ocupação, religião, experiência profissional e assim por diante. Os vários tipos de informações sobre os indivíduos deste universo são então justapostos, combinados e examinados em busca de variáveis significativas. Eles são testados com o objetivo de encontrar tanto correlações internas quanto correlações com outras formas de comportamento ou ação (Stone, 2011, p. 115).

Portanto, o método das biografias coletivas ajuda a elaborar perfis de determinados

grupos sociais, a partir da investigação de algumas características comuns aos seus atores. Para

nosso estudo da elite da propaganda republicana rio-grandense, as principais informações

investigadas foram o local de nascimento, a ocupação dos agentes e os seus dados educacionais e

familiares. Em outras palavras, a partir de um conjunto amplo de fontes documentais (tais como

dicionários biográficos e inventários post mortem), procuramos responder a algumas perguntas,

dentre elas: Quem eram esses homens? Eram originários de qual região da província? De que

atividades se ocupavam? Qual a sua origem familiar? Compartilhavam algum tipo de experiência

social? Tinham algum vínculo de afinidade ou parentesco entre si? O fato de identificar a

existência de características sociais comuns aos membros do grupo poderá nos ajudar a

compreender alguns dos fatores que levaram a sua mobilização conjunta.

Iniciemos a análise dos membros do Grupo Lideranças a partir dos dados educacionais.

Dos 87 líderes, 66 possuíam formação superior, ou seja, 76,7% do grupo, o que não foge da

estimativa de Celi Pinto. Os bacharéis em Direito eram de longe os mais representativos,

somando 44 indivíduos, ou 2/3 dos diplomados. Esse índice é exatamente o mesmo encontrado

por Jonas Vargas (2010) na análise da elite política provincial entre 1868 e 1889, o que demonstra

uma possível semelhança entre os padrões de recrutamento para compor os quadros superiores

dos republicanos e monarquistas. Uma única diferença é que entre os republicanos os líderes com

formação militar constituíam o segundo grupo mais importante, ficando à frente daquele dos

formados em Medicina, que tinha forte destaque entre os monarquistas. Entre os republicanos do

grupo temos 7 formados em Medicina e 10 formados nas Escolas Militares do Rio de Janeiro e

de Porto Alegre. Completam o grupo 5 engenheiros, sendo que um se formou na Bélgica.

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Logo, os dados encontrados confirmam a ideia, trazida pelos trabalhos mais clássicos, de

que os republicanos constituíam uma elite bastante educada. Entretanto, não é possível falarmos

de uma elite mais educada se comparada aos monarquistas, já que esses últimos tinham um nível

de instrução bastante semelhante ao dos republicanos. Ainda no que se refere ao nível de

instrução, é importante salientar que, dos 44 bacharéis em Direito, somente 3 não se formaram

em São Paulo. Isso comprova a importância da Academia paulista na formação dos republicanos

rio-grandenses. Do mesmo modo, sugere a existência de uma socialização comum e de trocas de

experiências que possivelmente ocorreram nessa faculdade.9

A segunda variável analisada foi a idade média dos líderes republicanos. Pelo fato de

muitos deles terem sido estudantes nas décadas de 1870 e 1880, o grupo apresenta uma grande

quantidade de jovens. O mais velho republicano do grupo era Felicíssimo de Azevedo, nascido

em 1823 e contando com 59 anos por ocasião da fundação do PRR, em 1882. Em relação às

datas de nascimento dos membros do Grupo Lideranças, conseguimos informações para 50 dos 87

relacionados. Entre esses, dois haviam nascido na década de 1830 e outros dois na década de

1840, atingindo, no início dos anos 1880, entre 40 e 50 anos. Tratava-se de um grupo minoritário

e composto por líderes experientes, como Francisco Xavier da Cunha e Apolinário Porto Alegre,

por exemplo.

Tomando o ano de 1882 como um ponto de chegada dos membros aqui analisados,

percebemos que mais da metade deles (27 membros) possuía, nessa data, entre 23 e 32 anos.

Eram todos nascidos entre 1850 e 1859. Os nascidos em 1860 e 1861, somavam 9 indivíduos e,

junto com os nascidos em 1859, compõem a principal faixa etária (os nascidos entre 1859 e 1861

somavam 15 membros). Ao longo da década de 1880, outros 9 jovens, nascidos entre 1862 e

1866, incorporaram-se ao grupo. Portanto, não resta dúvida de que os republicanos formavam

um grupo jovem, se comparado àquele dos membros da elite política monárquica, estudado por

Jonas Vargas. Na década de 1880, os membros da elite política monarquista possuíam, em média,

50 anos. Sendo assim, no que se refere à variável ‘idade média dos agentes’, os dados encontrados

para o Grupo Lideranças estão de acordo com os trabalhos anteriormente mencionados.

Com relação às categorias sócio-ocupacionais e atividades econômicas desenvolvidas,

temos informações para 81 dos 87 líderes arrolados. Os números realmente demonstram se tratar

de um grupo de profissionais, tal como os trabalhos mais clássicos já afirmavam. Pelo menos 37

dos membros do grupo eram advogados, ou seja, 42,5% do total. Trata-se de um índice muito

9 De fato, vários dos propagandistas aqui analisados foram colegas de faculdade. Muitos deles fizeram as suas primeiras incursões na imprensa, participando conjuntamente de jornais de propaganda, enquanto ainda eram estudantes. Portanto, quando retornaram ao Rio Grande do Sul já contavam com certa experiência em manifestar suas opiniões políticas, além de já possuírem laços sociais entre si. Para mais informações sobre a passagem desses indivíduos pela Faculdade de Direito de São Paulo, ver: Vampré (1924).

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próximo àquele dos políticos monarquistas estudados por Vargas, o que demonstra que o

republicanismo não se dissociou do bacharelismo que marcou a elite monarquista. Nesse grupo

profissional temos ainda 5 engenheiros e 7 médicos. Tendo em vista a multiplicidade de funções,

tem-se também 11 jornalistas, sendo que somente 5 foram classificados como jornalistas a partir

das informações que conseguimos. Entre os funcionários públicos temos 2 juízes municipais e 1

promotor. Entre os não diplomados temos 4 fazendeiros, 2 comerciantes, 1 dentista, 1 relojoeiro,

2 rábulas e 2 professores.

Percebe-se que, pelo fato de o número de diplomados ser bastante alto, o percentual de

indivíduos que compõe o subgrupo fazendeiros/criadores acaba caindo, uma vez que

classificamos enquanto tal somente aqueles homens que não possuíam uma profissão técnica.

Talvez esse seja um dos grandes problemas dessa divisão socioprofissional. Para remediá-lo,

agora verificaremos as origens sociais, analisando as atividades dos familiares desses líderes.10

Como já foi afirmado, ao definirmos as famílias como unidades políticas principais e não os

indivíduos, a visão de que o movimento era eminentemente urbano e profissionalizado,

descolado das estruturas agrárias mais tradicionais e da nobreza monarquista, pode ser

fortemente relativizada.

Uma análise que comece investigando o local de nascimento dos líderes republicanos já

deixa claro que suas famílias e as rendas que financiaram seus estudos não provinham da cidade,

mas sim do meio rural. Conseguimos informações para 72 dos membros do Grupo Lideranças.

Desses, pelos menos 22 provinham da região da Campanha e outros 7 da região missioneira, que

compunham o terceiro círculo eleitoral. Portanto, somavam 41% da amostra. Outras regiões de

pecuária, tais como Jaguarão, Cachoeira, Caçapava, Rio Pardo, São Sepé e Cruz Alta, somavam

mais 12 indivíduos (13,8%). Os filhos da charqueadora Pelotas atingiam 13 republicanos, os

nascidos em Rio Grande eram 6 e em Porto Alegre temos 7 líderes do grupo, entre outros

municípios. Assim sendo, a ligação de suas famílias com as regiões de grande criação de gado

(tanto na campanha quanto no planalto serrano) é evidente.

No entanto, se os republicanos aqui analisados migravam para as cidades em busca de

notabilidade e prestígio, seus pais, tios, irmãos e compadres, em suma, sua família, permanecia

estabelecida em suas regiões de origem. Jonas Vargas (2010) demonstrou que isso era bastante

comum entre os membros da elite monarquista nos anos 1870 e 1880. O mesmo parecia

10 Conforme mencionamos anteriormente, Luiz Alberto Grijó (2005) já havia tecido algumas considerações, relativizando a tese de que a origem social das principais lideranças do PRR estaria ligada a uma classe media urbana e que a mobilização do PRR poderia ser explicada, em grande medida, como uma contraposição aos interesses dominantes da oligarquia rural gaúcha, por se encontrarem num estado de marginalização política. No entanto, devido ao fato de não ter sido seu objeto direto de estudo, o autor não chega a trazer dados para comprovar tais afirmações.

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acontecer entre os republicanos. A título de exemplo, Joaquim Francisco de Assis Brasil, um dos

membros da elite republicana rio-grandense, mesmo depois de portar o diploma de bacharel em

Direito, apresentava-se ao eleitorado republicano, quando disputara as eleições à deputação

provincial e geral, como fazendeiro, atividade desenvolvida por todo o núcleo familiar, que tinha

uma grande estância no município de São Gabriel.11 Em outras palavras, sua família, amigos e

parentes constituíram importante base econômica e política na região da campanha. Portanto, o

fato de exercer uma atividade profissional – advogado – não o descolava de sua origem agrária,

pois era de lá que vieram os votos que possibilitaram a sua eleição na década de 1880.

A seguir, ofereceremos uma série de exemplos de que essa origem social rural era

característica de boa parte dos republicanos que formavam o grupo aqui analisado. O fato de

pertencerem a essas famílias de origem agrária – e não a famílias de classe média urbana,

descoladas das elites mais tradicionais da província – indica que os republicanos estavam

intrinsecamente ligados às elites mais tradicionais da província e situados dentro de uma tradição

política, especialmente conservadora.

Líderes republicanos – famílias conservadoras: alguns casos para análise

Analisando de perto cada um dos membros da elite republicana rio-grandense, é possível

perceber que a grande maioria deles pertencia a famílias que desenvolviam atividades agrárias.

Além disso, essas famílias tiveram destacada atuação política, adquirindo imenso prestígio, ao

longo de várias décadas, especialmente através do Partido Conservador. Inclusive, muitos desses

ilustres parentes haviam recebido títulos nobiliárquicos, o que provavelmente aumentava a

influência política que as famílias exerciam local e regionalmente.

Vejamos inicialmente o caso de Assis Brasil, recém-mencionado. Sua família tinha uma

grande estância de criação de gado no município de São Gabriel, região da campanha. Seu pai,

Francisco de Assis Brasil, era figura notável no município, devido à liderança que exercia nas

fileiras do Partido Conservador. O membro mais ilustre da família era o tio de Assis Brasil – o

Barão de Cambaí – um dos homens mais ricos e de maior prestígio da região. O Barão era membro

de uma família de conservadores – os Jobim –, que tinham vínculos estreitos com a Corte. Seu

irmão, o médico José Cruz Jobim, fora professor da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro,

instituição da qual também foi diretor por cerca de vinte anos. Em 1848, Cruz Jobim ingressou

na carreira política, por meio do Partido Conservador, sendo eleito deputado geral e depois

senador, cargo em que permaneceu de 1851 a 1878. A filha do senador, Viscondessa de Sabóia,

11 ‘Circular aos eleitores do terceiro círculo eleitoral’. In: Jornal A Federação. 26.06.1884. Acervo do NPH (UFRGS).

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casou-se com Vicente Candido Figueira de Sabóia. O Visconde, assim como o seu sogro,

também foi diretor da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, durante a década de 1880,

período em que também foi nomeado médico da casa imperial e se tornou médico particular do

Imperador (Carvalho, 1937).12 Portanto, a família Jobim tinha grande influência e prestígio

político, além de laços extremamente estreitos com a Corte.

Tomemos o caso de Júlio de Castilhos. Seu pai, Francisco Ferreira de Castilhos, era um

estancieiro de considerável fortuna em São Martinho e um dos maiores senhores de escravos da

região.13 Além disso, pelo lado materno, Júlio de Castilhos descendia de família aristocrática. Seu

avô era o Capitão Fidelis Nepomuceno Prates, grande estancieiro em São Gabriel, que chegou a

ajudar financeiramente os rebeldes farrapos e foi deputado na Constituinte da República Rio-

Grandense. Outros dois parentes também ligavam a família à elite provincial. O primeiro deles

foi Dom Feliciano José Rodrigues Prates, primeiro bispo do Rio Grande do Sul e cuja influência

política devia ser grande. O segundo foi Fidêncio Nepomuceno Prates, médico em São Gabriel e

deputado provincial entre 1848 e 1859 e geral entre 1853 e 1856 (Soares, 1996, p. 9).

As redes sociais da família de Castilhos estenderam-se até o mundo da Corte quando

Fidêncio se casou com a filha do Barão de Antonina. Esse era senador do Império pela Província

do Paraná e já havia sido deputado em São Paulo, para onde enviava tropas de mulas. O Barão de

Antonina era irmão do Barão de Ibicuí, rico estancieiro e o maior criador de gados de Cruz Alta,

com terras em São Martinho, Palmeira e Santo Ângelo. Ambos os irmãos foram importantes

chefes conservadores. Os laços de Castilhos com os chefes conservadores do planalto norte da

Província tornaram-se mais íntimos quando ele se casou com a sobrinha do Barão de Nonoai –

rico estancieiro de Cruz Alta. O Barão de Nonoai era padrinho de batismo de Castilhos e

tio/sogro de Joaquim Pereira da Costa, outro membro da elite propagandista.

Outro exemplo foi José Gomes Pinheiro Machado. Propagandista da região missioneira

(São Luís Gonzaga), ele era filho de Antônio Pinheiro Machado, advogado renomado em São

Paulo e que, ao se envolver com a Revolta Liberal de 1842, teve de se refugiar na região serrana

do Rio Grande do Sul, onde já possuía parentes e negócios com tropas de animais. Fixados em

São Luís, os Pinheiro Machado tornaram-se ricos estancieiros. Antônio foi deputado provincial

(1858 a 1864) e geral (1864 a 1866) quando defendeu os progressistas e derrotou Silveira Martins

na região. Portanto, ele conseguiu ingressar na elite política imperial, tomando assento no

12 As informações a respeito das lideranças republicanas e de seus familiares, fornecidas a seguir, encontram-se no mesmo livro. 13 Num levantamento de todos os inventários post mortem que apresentavam escravos entre os bens de herança, para o município onde Francisco residia, organizado pelo Arquivo Público, ele foi apontado como o maior senhor de escravos da região, possuindo cerca de 56 escravos – um plantel muito acima da média daquela região (Pessi, 2011, p. 304).

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Parlamento nacional. Os Pinheiro Machado também eram parentes dos Oliveira Ayres, família a

qual pertencia o também paulista Venâncio Ayres, cunhado de José Gomes e que contribuiu

muito com a propaganda republicana na Província, após ter sido deputado em São Paulo pelo

Partido Conservador.

Vejamos agora os exemplos dos Abbott e dos Ribeiro de Almeida. Os Abbott eram uma

família de estancieiros e médicos com base em São Gabriel e eleitores do Partido Conservador. O

pai, Jonathas Abbott, era comendador. Fernando e João Abbott foram os principais membros da

família a aderirem ao republicanismo na década de 1880. Ambos eram cunhados de João Borges

Fortes Filho, cujo pai era o grande chefe do Partido Conservador na região da campanha. O

Doutor Borges Fortes foi deputado provincial (1850 a 1863, 1869 a 1872 e 1887 a 1888) e geral

(1857 a 1860).14 Os Ribeiro de Almeida, por sua vez, eram uma família igualmente conservadora,

com forte influência em Alegrete, Quaraí, Uruguaiana e Livramento, onde possuíam estâncias.

Severino Ribeiro foi o chefe político máximo da família, tornando-se deputado provincial (1885-

1886) e geral (1877, 1882-1884 e 1886). O republicano da família foi seu irmão caçula, Vitorino,

que havia sido colega de Assis Brasil e de Castilhos na Faculdade de Direito. Ambos eram filhos

do Barão de São Borja – comandante de destaque na Guerra do Paraguai e um dos principais

chefes conservadores da região da campanha – e netos de Bento Manoel Ribeiro, estancieiro que

pegou em armas em 1835, mas passou para o lado legalista por duas vezes.

Podemos citar outros casos de forma mais resumida. Demétrio Ribeiro era sobrinho do

Barão de Santana do Livramento, antigo líder conservador de Alegrete, mas que, por desavenças

com os Ribeiro de Almeida, se tornou o principal chefe liberal-gasparista da região. Além disso,

um outro tio, Francisco Nunes de Miranda, foi deputado provincial. Marçal Escobar, por

exemplo, era neto do poderoso Barão de São Lucas – rico estancieiro são-borjense. Alfredo Lobo

d’Eça era filho do Barão de Batovi, marechal do Exército e estancieiro com enorme destaque na

campanha do Paraguai e com terras em São Gabriel. Enéias Galvão era filho do Visconde de

Maracajú, outro militar que chegou a ser Ministro da Guerra e que era irmão do Barão de Rio

Apa, principal repressor da Revolta do Vintém, na Corte.

Temos outros exemplos. Ramiro Barcellos era sobrinho do Barão de Viamão, chefe do

Partido Conservador de Cachoeira. Os irmãos Carlos e José Barbosa pertenciam a uma

importante família de estancieiros de Jaguarão e eram sobrinhos-netos de Bento Gonçalves da

Silva. Antônio Francisco de Abreu era filho do Barão de Santos Abreu, rico comerciante

pelotense. O Barão de Candiota, outro importante estancieiro gabrielense que possuía terras em

14 Além disso, uma das filhas do Doutor Borges Fortes casou-se com Carlos Prates de Castilhos, irmão de Júlio de Castilhos.

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diversos municípios da região da campanha e que era primo do Senador e Ministro Henrique

D’Avila, era pai de José Maria Chagas.

Também havia republicanos entre as famílias charqueadores de Pelotas, que constituíam,

segundo Vargas, a elite mais rica do Rio Grande do Sul (Vargas, 2013). Alexandre Cassiano do

Nascimento era filho do Capitão Manoel Lourenço do Nascimento, charqueador e deputado

provincial. Alberto Cunha e Possidônio Cunha eram, respectivamente, filho e sobrinho do Barão

de Corrientes, um rico capitalista e charqueador pelotense. João Jacintho Mendonça pertencia a

uma rica família de charqueadores conservadores de Pelotas e Adolpho Osório era filho do

General Osório e Marquês do Herval, principal chefe político do Rio Grande do Sul nos anos

1870, ligado ao Partido Liberal. Antônio e Henrique Chaves eram filhos de João Maria e Antônio

Gonçalves Chaves, charqueadores que se destacaram entre as maiores fortunas na década de

1870 e 1880. Ismael Simões Lopes, por sua vez, era filho do Visconde da Graça, outro rico

charqueador pelotense que também foi presidente da Província e era o chefe do Partido

Conservador em Pelotas. Seu irmão, o Dr. Ildefonso, foi deputado geral.

Portanto, a partir da análise dos dados referentes à origem social dos líderes do PRR,

pode-se concluir que, ao invés de os republicanos pertencerem a uma camada social afastada das

elites mais tradicionais da província, – configurando assim uma nova classe média urbana,

estreante no cenário político e com anseios de representação – eles eram, em sua maioria,

oriundos de importantes famílias de estancieiros (sendo muitos deles da região da Campanha),

famílias essas envolvidas especialmente com a política conservadora, através de gerações, muitas

delas detentoras de vários títulos de nobreza.

Tendo em vista os dados apresentados, podemos revisar as principais teses relativas ao

perfil dos líderes da propaganda republicana rio-grandense, e que foram constantemente

revisitadas ao longo dos últimos anos. O mencionado modelo foi fortemente amparado na tese

desenvolvida por Celi Pinto, inspirada em parte pelos trabalhos anteriores de Joseph Love e

Sérgio da Costa Franco, e que são tributários de um tipo de interpretação bastante em voga nos

anos 1970, que associava a história das ideias a um determinismo geográfico e de classe.

Posteriormente, tal modelo foi retomado por outros pesquisadores, o que colaborou para que ele

se perpetuasse na historiografia ao longo dos anos.

Primeiro, é necessário dizer que a educação recebida pelos membros do partido

republicano não era algo tão extraordinário para o período. Jonas Vargas demonstrou que o nível

de instrução dos políticos monárquicos era bastante alto. Entre os líderes monarquistas da

política provincial, 80% possuíam formação superior, ao passo que entre os deputados gerais este

índice ultrapassava os 90%, e para os ministros e senadores ele era ainda maior (Vargas, 2010).

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Ou seja, não é possível afirmar que os líderes republicanos da propaganda formavam uma elite

“mais educada” em comparação com a elite política monarquista. Os números apresentados por

Vargas são extremamente eloquentes nesse sentido e são, inclusive, superiores aos índices que

encontramos para os propagandistas republicamos mencionados anteriormente.

Em segundo lugar, a relação “juventude = republicanismo”, enfatizada por Pinto, deve

ser relativizada, pois ela aconteceu justamente porque as academias estavam se tornando

importantes focos de crítica à Monarquia e, obviamente, eram redutos de jovem estudantes.

Entretanto, fora dali, e até mesmo naqueles espaços, existiam tanto jovens monarquistas quanto

republicanos de idade mais avançada. Nas turmas da academia paulista, entre 1878 e 1885, por

exemplo, uma série de jovens monarquistas também veio a diplomar-se, engrossando as fileiras

liberais e conservadoras da Província. Estavam entre eles Manoel de Campos Cartier, Carlos

Ferreira Ramos, Carlos Silveira Martins, José Vieira da Cunha, Antônio Lara da Fontoura

Palmeiro e Severino de Freitas Prestes, entre outros.

Acima de tudo, não é possível afirmar que os republicanos não possuíam ligação com as

elites políticas monarquistas e, especialmente, com os estancieiros da região da campanha que,

conforme os autores mencionados, em sua maioria, formavam o Partido Liberal. A partir da

investigação dos dados familiares e da origem social dos líderes republicanos, foi possível

concluir que uma parte significativa desses, notadamente os principais, pertencia a tradicionais

famílias rio-grandenses, repletas de títulos de nobreza, membros com importantes cargos

políticos e possuidoras de fortuna com destacado patrimônio agrário.15

Em suma, os propagandistas republicanos possuíam muito mais em comum com os

monarquistas do que acreditava a historiografia tradicional do estado. Eles possuíam, no seu

círculo parental mais próximo, nobres monarquistas, ricos escravistas e membros da elite política

provincial e imperial. Portanto, não estavam tão excluídos dos centros de poder político e não

eram socialmente desprestigiados.

15 Inclusive, foi somente no terceiro círculo eleitoral (composto por municípios da região da campanha e do núcleo missioneiro) que os republicanos conseguiram eleger um representante ao parlamento provincial durante o período da propaganda. Em outra oportunidade, pude demonstrar que os laços do candidato Assis Brasil com os membros da elite conservadora da região foram importantes a ponto de se traduzirem em apoio eleitoral e troca de votos que foram essenciais para a sua vitória nas urnas. Além disso, através da leitura dos discursos parlamentares de Assis Brasil, foi possível perceber que os interesses que o mesmo defendia no parlamento eram justamente os dos criadores de gado daquela região, atividade desenvolvida por boa parte dos seus eleitores, pela sua família e também pelas famílias da maioria das lideranças republicanas. Para mais informações, ver: Saccol (2013).

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Espaços de saber e poder: instituições e seus agentes na perspectiva da História Social

ATUAÇÃO DO EMPRESARIADO GAÚCHO ATRAVÉS DO IPESUL (1962-1971)1

THIAGO AGUIAR DE MORAES2

Nos anos 1960, frente à ascensão de João Goulart a Presidente da República, os setores

mais conservadores da sociedade mobilizaram-se para desestabilizar seu governo, visto que,

segundo esses setores, representava um processo de “comunização”3 do país nos moldes

cubanos. Logo após João Goulart assumir a presidência, foi criado o Instituto de Pesquisas e

Estudos Sociais (IPÊS) por empresários e militares, com o objetivo de informar a população a

respeito dos problemas pelos quais o país estava passando e defender a “democracia” frente ao

avanço do “comunismo” (cf. Dreifuss, 1986). O IPÊS foi criado inicialmente em São Paulo,

estendendo-se para o Rio de Janeiro e posteriormente para diversas outras cidades, incluindo

Porto Alegre. Nesta foi criado o Instituto de Pesquisas Econômicas e Sociais do Rio Grande do

Sul (IPESUL) em março de 1962. Tinha como proposta difundir a ideia da “humanização do

trabalho”, “harmonia” entre empregador e empregado e “democratização” do capital da empresa

para os trabalhadores.

Desde outubro de 1962 o IPESUL publicava uma revista chamada Democracia e Emprêsa

(DE), mensário com alguns artigos próprios e muitos selecionados de jornais e revistas, além de

transcrições de palestras e estudos técnicos. Circulou até 1971, sendo que desde 1970 mudou seu

nome para Desenvolvimento e Emprêsa. Essa revista tinha como objetivo difundir uma nova

“mentalidade” empresarial para que fosse possível defender a “democracia” contra o

“comunismo”. Através de modernizações, a nova empresa seria capaz de contemplar as

demandas sociais do período e evitar a “comunização” do país. A revista contribuiu para a

construção desse consenso, e o IPESUL participou ativamente da conspiração golpista civil-

militar pela deposição de João Goulart e continuou atuando durante a ditadura civil-militar. O

principal instrumento de difusão das ideias do IPESUL era, portanto, a revista DE.

O objetivo deste artigo é evidenciar a atuação de uma parcela da classe empresarial gaúcha

através da revista Democracia e Emprêsa e de ações por parte do IPESUL e de seus indivíduos no

pré-golpe e durante a ditadura civil-militar. Parte-se da interpretação de que os discursos da

revista e a ação da entidade eram voltados para a própria classe empresarial, tendo em vista a

construção de um consenso intraclasse. Inicialmente, apresentaremos um panorama sobre o

1 Trata-se de uma versão reduzida do primeiro capítulo de minha dissertação de mestrado (MORAES, 2012). 2 Doutorando em História na PUCRS, bolsista do CNPq e integrante do Laboratório de História Comparada do Cone Sul (LabConeSul). E-mail: [email protected]. 3 Utilizaremos termos como “democracia”, “comunismo”, “mentalidade” e suas derivações entre aspas, pois se trata da compreensão dos agentes a respeito dos mesmos.

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IPESUL e seu funcionamento no contexto dos anos 1960 antes do golpe, e posteriormente

informações sobre a entidade no pós-golpe.

O IPESUL, a revista Democracia e Emprêsa e sua atuação no pré-golpe

De acordo com Hernán Ramírez, os IPÊS de “Belo Horizonte e de Porto Alegre

acabaram por se revelar como os mais ativos” (2005, p. 192). Embora exista uma tese de

doutorado publicada em 1986 sobre o IPÊS de Minas Gerais (cf. Starling, 1986), a respeito do

IPESUL foram dedicadas poucas páginas na historiografia. Fato curioso, já que Olympio Mourão

Filho, mobilizador das tropas golpistas que depuseram João Goulart em 1964, expõe em seu livro

de memórias as reuniões estratégicas que levou a cabo no Rio Grande do Sul para a articulação

golpista.4 Portanto, tentaremos lançar luz sobre este tema pouco explorado pela historiografia do

golpe no Rio Grande do Sul.

O IPESUL foi fundado em 23 de março de 19625, tendo suas atas de fundação registradas

em 27 de abril do mesmo ano6. Trata-se de uma “sociedade civil [...] sem fins lucrativos, de

intuitos educacionais e pesquisas científicas, tendo por finalidade a educação cultural, moral e

cívica dos indivíduos”7. Além disso, o IPESUL “usará de quaisquer meios adequados, entre os

quais Campanhas educativas, Cursos, Conferências, Seminários, Difusão e Propaganda,

Manutenção de Escolas, Institutos, Entidades ou Bolsas de Estudos, etc”8. Suas rendas eram

provenientes de contribuições mensais dos associados, contribuições de pessoas físicas ou

jurídicas, de seus bens e da receita de seus serviços e publicações.9 O Conselho Orientador,

formado inicialmente pelos sócios-fundadores do IPESUL, tinha, dentre as suas funções, as de

“traçar as ideias gerais sôbre a doutrina” e “deliberar em linhas gerais, sôbre a obtenção de

recursos”.10 Além disso, havia o Departamento de Estudos, o de Contato e o Administrativo, que

eram os órgãos de execução do IPESUL, cada um com seu respectivo diretor.11 O primeiro

executava pesquisas e estudos solicitados pela Comissão Diretora; o segundo tinha como função

4 MOURÃO FILHO, Olympio. Memórias: a verdade de um revolucionário. Porto Alegre: L&PM, 1978. 5 INSTITUTO DE PESQUISAS ECONÔMICAS E SOCIAIS DO RIO GRANDE DO SUL. Ata da assembléia geral de constituição. 1962. Protocolo de Inscrição n. 156.461, p. 8. 6 Ibid., p. 1. 7 INSTITUTO DE PESQUISAS ECONÔMICAS E SOCIAIS DO RIO GRANDE DO SUL Estatutos do Instituto de Pesquisas Econômicas e Sociais do Rio Grande do Sul (IPESUL). Protocolo de Inscrição n. 156.461, p. 1. 8 Idem. 9 Ibid., p. 2. 10 Ibid., p. 4. 11 Ibid., p. 5.

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contatos externos para assegurar os objetivos do Instituto; o terceiro era encarregado das tarefas

administrativas.12

A sede do IPESUL era em Porto Alegre, no Palácio do Comércio, 4º andar, conjunto

433. O Conselho Orientador, que era formado pelos sócios fundadores, tinha 29 pessoas13, em

grande parte empresários importantes na economia do Rio Grande do Sul, como A. J. Renner,

Fábio Araújo dos Santos e Paulo Vellinho. Havia representantes de cada uma das principais

forças econômicas do estado naquele momento dentre os sócios-fundadores: Álvaro Coelho

Borges era presidente da Federação das Associações Comerciais e de Serviços do Rio Grande do

Sul (FEDERASUL) de 1959-1963, e Antônio Saint-Pastous era presidente da Federação da

Agricultura do Estado do Rio Grande do Sul (FARSUL) de 1961-1963. A Comissão Diretora de

1962-1964 tinha como presidente Álvaro Coelho Borges, como vice-presidente Carlos Osório

Lopes, e como coordenador o economista Eraldo de Luca. O primeiro fez parte de empresas

como a Moinhos Rio-grandenses S.A., a Bunge & Born, e outras (Dreifuss, 1986, p. 511). O

segundo foi pioneiro da área de radiologia no Brasil, fundador do Colégio Brasileiro de

Radiologia e Diagnóstico por Imagem (CBR) em 194814 e criador do consultório de radiologia

CROL, em Porto Alegre. O terceiro foi Assessor Econômico da Associação Comercial de Porto

Alegre e membro do Conselho Regional de Economistas Profissionais da 4ª Região.15 O cargo de

coordenador e de seus secretários eram os únicos remunerados, por serem de tempo integral.16

O IPÊS e o IPESUL defendiam uma reformulação do capitalismo, pois, no início dos

anos 1960, ele não estaria cumprindo sua função social. O Instituto era contra o “comunismo”, e

fazia propostas para a solução dos problemas brasileiros tendo como base o capitalismo. No

entanto, não haveria espaço para um capitalismo sem “justiça social”. Frente ao avanço do

“comunismo” após a Revolução Cubana e de um governo que, temiam os mais conservadores,

tomaria ares cada vez mais estatizantes, era necessário, segundo os empresários, que a empresa

privada, base dinâmica da economia capitalista, agisse para evitar tal avanço. Havia a

compreensão de que o subdesenvolvimento tinha uma relação direta com a possibilidade da

eclosão de uma revolução “comunista”. Portanto, cabia às empresas privadas cumprir com a

12 Ibid., p. 5-6. 13 Os sócios-fundadores eram: A. J. Renner, Álvaro Coelho Borges, Antonio Chaves Barcellos, Antonio Saint Pastous, Carlos Dreher Neto, Carlos Osório Lopes, David Enzo Guaspari, Diego Blanco, Don Charles Bird, Eugênio Martins Pereira, Fábio Araújo Santos, Imério Kuhn, João Dico de Barros, João Alves Osório, Jorge Sehbe, Julio Eberle, Kurt Weissheimer, Leopoldo de Azevedo Bastian, Luiz F. Guerra Blessmann, Marius Smith, Moziul Moreira Lima, Paulo Barbosa Lessa, Paulo Simões Lopes, Paulo Vellinho, Rico Harbich, Roberto H. Nickohrn, Sérgio Freytag de Azevedo Bastian, Walter Cechella, Werner P. Wallig (Democracia e Emprêsa, out. 1962, contracapa) 14 COLÉGIO BRASIEIRO DE RADIOLOGIA E DIAGNÓSTICO POR IMAGEM. Histórico. Disponível em: <http://www.unimagem-net.com.br/cbrportal/publico/?historico>. Acesso em: 23 ago. 2013. 15 LUCA, Eraldo de. Enciclopédia das sociedades comerciais. Porto Alegre: Sulina, 1961. 16 INSTITUTO DE PESQUISAS ECONÔMICAS E SOCIAIS DO RIO GRANDE DO SUL Estatutos do Instituto... op.cit., p. 8.

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função social do capital, sob a égide de um novo tipo de capitalismo, que não seria mais

individualista nem pautado unicamente pela busca incessante do lucro, mas um que se colocasse

como terceira via entre o “totalitarismo” de esquerda, que eliminaria a liberdade do indivíduo no

desenvolvimento econômico, ficando sob o comando do Estado, e o capitalismo “egoísta”, que

seria o oposto.

A publicação oficial do IPESUL era a revista DE, mensário editado de outubro de 1962 a

julho/dezembro de 1969 (referente à última edição), com algumas variações na periodicidade.

Após, mudou o nome para Desenvolvimento e Emprêsa, com a primeira edição em janeiro/março de

1970, e que durou mais um ano, até janeiro/março de 1971, somando 5 edições. Cabe lembrar

que todas as edições das duas revistas foram impressas pela Livraria do Globo, como é possível

observar nas capas. No total, somando ambas, são 48 edições.

As duas publicações eram constituídas de seleções de matérias de jornais e revistas

consideradas pertinentes às ideias do IPESUL, além de alguns artigos e pesquisas de autoria do

Instituto, transcrições de palestras, entre outros. O fio condutor dos textos publicados era a

defesa da “democracia”, que remetia ao anticomunismo. No campo da recepção pressupomos os

empresários, visto o tom de orientação para o empresariado que os artigos muitas vezes

assumem. É importante ressaltar que o IPESUL foi declarado de utilidade pública através do

Decreto Estadual 15.113, de 07/05/63. Nesse período, quem governava o estado era Ildo

Meneghetti, do Partido Social Democrático (PSD). Visto que a publicação era anticomunista e

sustentava posições contrárias ao governo federal, esse decreto adquire um significado

importante.

Nesse sentido, cabe lembrar que a data de publicação da primeira edição de DE, outubro

de 1962, coincide com as eleições gerais ocorridas no Brasil. O Rio Grande do Sul, que até então

era governado por Leonel Brizola, do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), ficou sob comando de

Ildo Meneghetti, que apoiou o golpe em 1964. Sobre uma reunião na casa do bispo Dom Vítor

José Sartori, em Santa Maria, à qual compareceram personagens influentes na política nacional e

regional, inclusive o general Olympio Mourão Filho, Dreifuss argumenta que

compareceram também Sevi Vieira e o advogado João Dentice, secretário da campanha eleitoral de Meneghetti, que na época estava envolvido com o IPESUL e FARSUL. Essa reunião, ocorrendo um mês antes das eleições de outubro de 1962 para o Congresso, serviu para reunir e coordenar a ação de importantes figuras políticas da coalizão antipopulista e anti-PTB do Rio Grande do Sul. (1986, p. 378)

Ou seja, já havia uma organização prévia do empresariado gaúcho com o político que lhes

interessava ganhar as eleições para governador do Rio Grande do Sul, pois tinha uma postura

anticomunista e era rival do PTB.

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O IPESUL tinha como objetivo a “formação de uma opinião pública esclarecida e

justa”17, para que fosse possível, através de tal serviço informativo, a “defesa da democracia” e a

solução dos problemas do país, nas palavras do próprio Instituto, e em harmonia com as ideias

do IPÊS. Através de seu suposto caráter apartidário e neutralidade científica pretendia informar a

população a respeito dos problemas brasileiros: “seus objetivos deverão ser alcançados através do

estudo honesto, criterioso e científico dos problemas atuais”18.

De acordo com o IPÊS e o IPESUL era necessário alcançar uma terceira via capitalista

através da “humanização do trabalho”. De acordo com Dreifuss,

as atividades sócio-ideológicas do complexo IPES/IBAD enfatizavam a “função social do capital”. Esse representava um esforço calculado de propaganda para dar às massas trabalhadoras um proveito claramente visível no sistema econômico, a idéia de participação nos lucros, propriedade social indireta e co-responsabilidade administrativa. Tal ação tinha dois objetivos: melhorar a imagem pública da empresa privada, equipará-la com a democracia, e retardar um violento levante até que se pudesse desenvolver uma ação política apropriada. (1986, p. 307)

Essa ação política apropriada trata-se da instauração da ditadura civil-militar, regime que

pôde reprimir fortemente as mobilizações sociais. Já a equiparação da iniciativa privada à

“democracia” se refere à possibilidade de “mudança” apresentada pelos empresários e

representada por uma “terceira via”. Essa ideia foi bastante trabalhada e divulgada pelo IPESUL

através da DE e também da imprensa, como podemos identificar em uma palestra transcrita do

coordenador Eraldo de Luca, realizada no 2º Congresso de Proprietários de Jornais do Interior

do Rio Grande do Sul, em julho de 1963:

[...] é preciso que se incremente cada vez mais e que se generalize amplamente a difusão dessas idéias para que o público tome conhecimento de uma vez por tôdas que as classes empresariais não estão se omitindo e que têm consciência da sua alta responsabilidade social. Aos proprietários de jornais presentes a este conclave, dirigimos especialmente o nosso apelo para que assumam decisivamente posição frente ao problema, conscientes do papel que lhes cabe na formulação de uma nova ordem de valores morais que irá nos permitir alcançar a ao desejada paz social em nosso País.19

Assim, é possível compreender a magnitude da difusão das ideias do IPESUL, que

pretendia divulgar a “humanização do trabalho” através da imprensa do interior do Rio Grande

do Sul para que fosse possível alcançar a paz social, ou seja, a ideia de “humanização do

trabalho”, de anulação dos conflitos entre capital e trabalho da qual falamos anteriormente.

17 Democracia e Emprêsa, Porto Alegre, ano 1, n. 1, out. 1962, p. 2. 18 Idem. 19 LUCA, Eraldo de. “Humanização do Trabalho da Imprensa”. Democracia e Emprêsa, Porto Alegre, ano 1, n. 12, set. 1963, p. 7.

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As informações que elencamos evidenciam o envolvimento nacional e regional de civis e

militares na desestabilização do governo de João Goulart, rumo ao poder político que desejavam.

A seguir, analisaremos a atuação do IPESUL após o golpe de 1964.

A atuação do IPESUL no pós-golpe

Após o golpe civil-militar de 1964 a revista DE, publicação oficial do IPESUL, sofreu

gradativamente uma transformação no seu perfil editorial e na sua periodicidade, além de

manifestar claramente seu apoio ao novo regime. O número de edições da DE após o golpe, de

abril/maio de 1964 a janeiro/março de 1971, é de 30, e de 1962 a 1964, é de 18. Portanto, há

uma redução considerável, levando-se em conta que após o golpe a revista dura cerca de 7 anos.

Esta redução quantitativa deveu-se a restrições financeiras, como podemos ver através do

seguinte apelo feito pela revista, após alguns meses sem edições da DE:

Embora enfrentando dificuldades de ordem financeira, nossa revista volta aos seus leitores depois de alguns meses de ausência. Todos compreenderão a razão disso. Nossos recursos são pequenos e o custo da revista é elevado. [...] Esperamos que nossos leitores aceitem nossas explicações, compreendam nossos esforços e nos auxiliem para que possamos prosseguir em nosso trabalho.20

Após o golpe, podemos perceber o apoio do IPESUL e da revista DE através da

publicação de artigos como o que foi intitulado “As Fôrças Armadas e as classes empresariais”,

de dezembro/janeiro de 1965, referente a uma conferência realizada pelo militar Octavio Pereira

da Costa no Salão Nobre da Associação Comercial de Porto Alegre em dezembro de 1964,

destacando o relacionamento entre civis e militares no desenvolvimento nacional.21

No cenário pós-golpe, é importante considerar também que vários dos membros do

IPESUL fizeram curso no I e no II Ciclo de Estudos da Associação de Diplomados da Escola

Superior de Guerra (ADESG) realizados, respectivamente, em 1964 e 1965 pela seção de Porto

Alegre (Moraes, 2011, p. 116). Além disso, membros do IPESUL diplomados no I Ciclo de

Estudos tornaram-se Adjuntos Colaboradores Efetivos no Exercício de 1965 do departamento

regional do Rio Grande do Sul da ADESG: David Enzo Guaspari, José Zamprogna e Carlos

Gastaud Gonçalves.22 Empresários atuantes no IPESUL também auxiliaram no II Ciclo de

Estudos através da colaboração de suas empresas, como a Renner e as Indústrias Wallig.23

20 Democracia e Emprêsa, Porto Alegre, ano 6, n. 1, jan./jun. 1968, p. 1. 21 COSTA, Octavio Pereira da. As Fôrças Armadas e as Classes Empresariais. Democracia e Emprêsa, Porto Alegre, ano 3, n. 3-4, dez./jan. 1965, p. 1-14. 22 ASSOCIAÇÃO DE DIPLOMADOS DA ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA. II Ciclo de Estudos. Porto Alegre: Editoras Gráficas da Livraria Selbach, 1965, p. 13. 23 Ibid., p. 15.

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A Ação Democrática Renovadora (ADR) surgiu um ano depois do golpe civil-militar.

Segundo sua ata de fundação, a entidade foi criada na sede do IPESUL, no Palácio do Comércio,

no dia 13 de setembro de 1965.24 Tratava-se de uma “entidade Cívico-patriótica em consonância

com os objetivos da Revolução de 31 de março de 1964”25. Sua sede, ao menos em 1991, era na

Avenida Otávio Rocha, n. 54, 8º andar.26 Possuía 37 sócios-fundadores, e vários pertenciam aos

quadros do IPESUL como sócios-fundadores ou diretores, o que indica um relacionamento

importante entre as duas entidades (Moraes, 2011, p. 119). Destes, é possível identificar Amadeu

da Rocha Freitas (diretor do IPESUL de 1965-1966 e 2º vice-presidente do IPESUL de 1968-

1970), Candido José de Godoy Bezerra (1º vice-presidente de 1965-1968, presidente de 1968-

1970 e 3º vice-presidente de 1970-1972), Fabio Araújo Santos (sócio-fundador e chefe do

Departamento de Contato de 1962-1964) e Paulo de Souza Jardim (diretor de 1968-1970). No

entanto, também temos a informação da composição dos cargos diretivos referentes ao ano de

1970.27 Dessa forma, pudemos identificar outros integrantes do IPESUL, e é, portanto, provável

que estivessem presentes em outras gestões da ADR. Dos membros dessa gestão que

participaram do IPESUL, identificamos Candido Godoy Bezerra, Yeddo Blauth e José

Zamprogna. É importante destacar que Bezerra, Blauth e Zamprogna assumiam altos cargos do

IPESUL enquanto desempenhavam atividades na ADR simultaneamente, em 1970. Além disso,

vários de seus membros fizeram curso na ADESG entre os anos de 1964 e 1965.28Assim, é

possível afirmar que os membros do IPESUL participaram ativamente do apoio ao golpe civil-

militar de 1964 não só nesse instituto mas também em outras instituições, que inclusive foram

mais longevas, pois a ADR durou até 1991. De acordo com o Diário Oficial de Indústria e

Comércio, a decisão da extinção decorreu de Assembleia Geral Extraordinária feita em

28/11/1990, e sua extinção foi efetivada em 23 de abril de 1991.29

A respeito dos meios de difusão do IPESUL, temos a informação de que o Instituto

transmitia em 1968 um programa de rádio através da Rádio Difusora aos sábados, semanalmente,

com duração de 5 minutos. Segundo a DE, nele eram “apresentados comentários sôbre assuntos

políticos, econômicos sociais de atualidade” (Democracia e Emprêsa, jan./jun. 1968, p. 21)30.

Tratava-se, portanto, de um programa modesto, sem grande duração. Não tivemos acesso a

24 AÇÃO DEMOCRÁTICA RENOVADORA. Ata de fundação. 1970. Protocolo de Inscrição n. 356.789, p. 1. 25 Idem. 26 RIO GRANDE DO SUL. Diário Oficial Indústria e Comércio, Porto Alegre, ano XVI, n. 77, 23 abr. 1991, p. 12. 27 AÇÃO DEMOCRÁTICA RENOVADORA. Relação da atual diretoria. 1970. Protocolo de Inscrição n. 356.789, p. 9. 28 I Ciclo: Fábio Araújo Santos, Hugo di Primio Paz (também cursou a ESG na turma de 1965), Ibá Mesquita Ilha Moreira e Paulo de Souza Jardim. II Ciclo: Elvo Clemente, Júlio Castilhos de Azevedo e Pedro Américo Leal (ADESG, 1965, p. 167-171; p. 133-135). 29 RIO GRANDE DO SUL. Diário Oficial... op. cit., p. 12. 30 Democracia e Emprêsa, Porto Alegre, ano 6, n. 1, jan./jun. 1968.

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transcrições taquigráficas ou ao programa em si, mas a veiculação pela Rádio Difusora indica que

o conteúdo de tais transmissões provavelmente era anticomunista. A rádio transmitia A Voz do

Pastor, pertencia à Ordem dos Frades Menores Capuchinhos (Ferraretto, 2007, p. 78) e tinha uma

programação variada, embora parte dela fosse voltada especificamente à religião (Ferraretto,

2007, p. 79).

Considerações Finais

Parte do empresariado gaúcho reuniu-se no IPESUL para se organizar em benefício de

seus interesses no campo político e econômico, desestabilizando o governo de João Goulart,

criticando os petebistas e apoiando seus opositores, seja no âmbito nacional ou regional. A

principal ideia defendida era a de uma terceira via entre o totalitarismo que retiraria a liberdade e

o capitalismo individualista que não seria benéfico para a sociedade. Na publicação oficial do

IPESUL, a revista DE, o apoio à ditadura civil-militar instaurada em 1964 fica evidente, seja

através dos artigos que publicaram ou de textos do próprio IPESUL em apoio aos militares.

No pré-golpe, havia muito mais textos sobre as vantagens de optar por uma

reestruturação do capitalismo ao invés de engrossar as fileiras dos militantes comunistas, e

também sobre os benefícios da “democracia” em detrimento do “comunismo”, que seria ateu,

exótico e retiraria a liberdade do indivíduo, cedida ao Estado. Isso pode ser explicado devido à

necessidade que a fração do empresariado gaúcho organizada no IPESUL encontrava naquele

momento de convencer os outros grupos da necessidade de uma mudança política e econômica.

Os artigos da revista DE não defendiam abertamente um golpe, mas faziam críticas

anticomunistas e uma defesa da “democracia” que, naquele contexto específico do pré-golpe,

significava muitas vezes a ideia corrente da deposição de João Goulart. A produção de revistas

DE era periódica e houve articulação entre o IPESUL, FARSUL e Ildo Meneghetti para

favorecer sua eleição em outubro de 1962. Meneghetti apoiou o golpe em 1964, e sua eleição foi

importante para os opositores do PTB no estado.

Após o golpe, a afinidade do IPESUL com o novo regime ficou evidente. O número de

estudos técnicos publicados no IPESUL aumentou bastante, o que pode ter auxiliado o regime

na proposição de políticas públicas. Os textos anticomunistas diminuíram em quantidade,

abrindo espaço para tais estudos. A periodicidade da revista DE declinou, devido a restrições

financeiras. A última edição da revista, já com outro nome, é de 1971, ano que o IPESUL

provavelmente encerrou suas atividades. Não há ata de extinção do IPESUL, mas o IPÊS, por

exemplo, encerrou suas atividades nesse mesmo ano (Ramírez, 2005, p. 186).

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Vários membros do IPESUL participaram dos ciclos de estudos promovidos pela

ADESG, o que indica uma importante relação entre civis e militares durante o pós-golpe.

Diversos integrantes do IPESUL também participaram da ADR, promovendo uma extensão da

luta pela “democracia” e contra o “comunismo” mesmo após a extinção daquela entidade.

Essas considerações nos permitem lançar luz sobre o papel da fração do empresariado

gaúcho organizada no IPESUL e dessa instituição no processo que culminou com a deposição de

João Goulart e também na consolidação da ditadura civil-militar.

Referências

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Espaços de saber e poder: instituições e seus agentes na perspectiva da História Social

A REVISTA EGATEA E A PROFISSÃO DE ENGENHEIRO NO RIO GRANDE DO SUL: A DEFESA DA TÉCNICA, DA EXPERIMENTAÇÃO E DA CIÊNCIA

MONIA FRANCIELE WAZLAWOSKI DA SILVA1

Introdução

Ao falar sobre a história da Engenharia no Brasil é possível fazer referências ao período

colonial. No entanto, a formação de engenheiros esteve vinculada ao ensino militar até 1858, ano

em que foi criada a Escola Central no Rio de Janeiro, e o ensino de Engenharia Civil separado

dos currículos militares. Esse processo foi consolidado com a transformação da Escola Central

em Escola Politécnica (1873) e com a criação da Escola de Minas de Ouro Preto (1876), ambas

destinadas exclusivamente à formação de engenheiros. (DIAS, 1994, p. 16).

Pode-se afirmar, contudo, que o final do século XIX foi um período marcante para o

ensino de Engenharia Civil no país, pois nos últimos anos da década de 1890, Escolas de

Engenharia foram fundadas em diversos estados brasileiros.2 Entre elas, a Escola de Engenharia

de Porto Alegre (EEPA) criada no Rio Grande do Sul (RS) em 1896.

Além de estar entre as primeiras escolas de Engenharia criadas no país após a

proclamação da República, sua proposta de ensino era diferenciada e marcada fortemente pelo

ensino técnico e profissional. Ao apresentar suas propostas, por exemplo, a EEPA afirmava que

seria através dessa forma de ensino que o Brasil se desenvolveria, e não através de um ensino

puramente teórico, como o ensino bacharelesco que dominava as escolas superiores da época.

A fim de divulgar o conhecimento produzido através de seus cursos profissionais e dos

superiores, a instituição criou, depois de dezoito anos de sua fundação, uma Revista científica, a

Egatea. Dessa forma, o presente texto tem o objetivo de analisar a criação desse periódico e

mostrar como ele caminhou junto ao processo de consolidação da profissão de engenheiro no

RS.

A Escola de Engenharia de Porto Alegre e a institucionalização do ensino prático e

técnico no RS

1 Mestre em História pela PUCRS. E-mail: [email protected] 2 É o caso da Escola Politécnica de São Paulo (1893), Escola de Engenharia de Pernambuco (1895), Escola de Engenharia Mackenzie (1896) e da Escola Politécnica da Bahia (1897). Ver mais em TELLES, 1984-1993, 2 vol.

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O momento de fundação da EEPA coincidiu com o domínio do Partido Republicano

Riograndense no cenário político gaúcho. É necessário acentuar que, ao contrário dos outros

estados brasileiros, os republicanos gaúchos não eram membros da elite tradicional que havia

aderido ao republicanismo após 1889. Fortes opositores dos liberais, o grupo possuía tradição

republicana e foi intensamente influenciado pelo positivismo comteano (QUELUZ, 2000).

Além disso, os responsáveis pela criação da Escola foram cinco engenheiros militares,

republicanos e alinhados ao positivismo. Eram eles: João Simplício Alves de Carvalho, João

Vespúcio de Abreu e Silva, Juvenal Octaviano Miller, Lino Carneiro da Fontoura e Gregório de

Paiva Meira.3 Apontando o compromisso com o PRR, Julio de Castilhos sugeriu o nome de

Álvaro Nunes Pereira para o cargo de diretor da instituição, garantindo a presença de um

experiente engenheiro civil frente ao grupo de jovens engenheiros militares.

Além da matriz positivista e do auxílio financeiro recebido pela instituição, apontando

vínculos entre Escola e estado, eram assíduas as notícias sobre a EEPA publicadas pelo Jornal A

Federação, órgão de imprensa oficial do Partido Republicano. Frequentemente o periódico

noticiava eventos promovidos pela instituição, destacava o trabalho de seus dirigentes e

professores, além de não poupar elogios. Ao referir-se à escola, por exemplo, alega tratar-se de

um “(...) produto perseverante do PRR (...)” e diz que “todos os que labutam naquele

estabelecimento e principalmente, aqueles a que a Escola deve sua vida e prosperidade são

individualidades filiadas ao nosso partido e trabalham pelo progresso homogêneo e uniforme do

RS (...)”.4 Apesar disso, na época de sua criação, a EEPA foi fundada como instituição privada e

continuou de tal modo durante mais de trinta anos, pois servia à comunidade e “(...) porque os

fundadores nenhum provento ou direito exclusivo, estabeleceram para si (...)”5.

As atividades da instituição iniciaram com os cursos de engenharia e agrimensura e para

René Gertz “(...) desde o início se evitou o bacharelismo, típico do ensino superior brasileiro da

época, e se optou por uma escola prática, inserida no contexto social circundante. (...)” (2002, p.

152). Nessa mesma página o autor afirma que ao contrário de outras escolas de engenharia

brasileiras, que seguiam o modelo de escola politécnica francesa, a escola de Porto Alegre optou

por matrizes que referenciassem o ensino técnico e prático, o saber fazer, como as

TechnischeHochschule alemãs e o modelo de ensino norte-americano. Mesmo que a maioria dos

idealizadores da instituição fosse formada pela Escola Politécnica do Rio de Janeiro, eles não

queriam seguir os moldes daquele ensino, nem serem equiparados às faculdades oficiais do

governo.

3Relatório da Escola de Engenharia de Porto Alegre. Porto Alegre: 1897, p. 05. 4 A ESCOLA. A Federação, Porto Alegre, 1912. Não paginado. 5Relatório da Escola de Engenharia de Porto Alegre. Porto Alegre: 1897, p.27.

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A severa crítica ao ensino bacharelesco, em contraponto aos elogios ao ensino técnico e

prático, pode ser observada também no jornal A Federação, segundo o qual o ensino técnico

permitiria a prosperidade do país e serviria para o crescimento da terra, enquanto que as

profissões liberais davam poucos resultados.

No nosso, como em quasi todos os paízes, da grande massa que se dedica ao estudo clássico e as profissões liberaes, apenas limitadíssimo numero aufere resultados que compensem os extenuantes esforços dispendidos. (...) Ao desejo tão natural dos paes de educarem convenientemente os filhos à ancia de progredir sempre e de fazer progredir a terra que nos é berço, devem coaresponder os poderes públicos com a organização do ensino profissional e technico (...).E, para se integrar o apparelho educacional do Estado, cumpre organizar o ensino profissional technico, em que os alumnos pratiquem nas artes e industrias a que se destinem, ensino este que tem sido o principal factor do grande progresso econômico dos Estados Unidos e da Allemanha.6

Percebe-se, então, que ao atribuir o progresso econômico dos Estados Unidos e da

Alemanha ao ensino técnico e profissional, o jornal considerava esse tipo ensino como uma

possibilidade de crescimento econômico também para o Brasil. Em síntese, eram contrários ao

ensino teórico bacharelesco, porque mesmo tendo dominado a política brasileira desde o

Império, os bacharéis não haviam desenvolvido o Brasil.7 Junto a isso, a expansão das atividades

industriais que o estado queria estimular exigia outro tipo de profissional. Necessitava-se de

profissionais técnicos, aptos e capacitados a essa expansão. Trata-se do contexto já citado

anteriormente e daquilo que disse Ângela Alonso sobre as mudanças que ocorriam no Brasil a

partir de 1870 quando “(...) evidenciou-se que sobravam bacharéis enquanto faltavam

engenheiros, agrimensores, técnicos agrícolas, etc. (...) Enfim, faltavam profissionais técnicos

disponíveis para o trabalho e não para a política.” (1998, p. 4).

O objetivo de proferir um ensino técnico e prático ficou mais evidente a partir de 1908

quando a Escola foi organizada em institutos. Além da reformulação dos currículos escolares,

foram criados laboratórios e oficinas de ensino nos quais as aulas práticas eram realizadas.

Nesses laboratórios os alunos tinham contato com máquinas e equipamentos modernos

adquiridos na Europa e nos Estados Unidos8 e as aulas teóricas eram consideradas apenas como

preparatórias e confirmativas dos estudos empíricos. Estes foram fatores que teriam diferenciado

6 O ENSINO. A Federação, Porto Alegre, p. 1, 1908. 7Segundo Josianne Cerasoli (1998, p. 120), as definições de Engenharia que relacionam progresso às transformações ou aos usos da natureza através dos conhecimentos científicos estão vinculadas “(...) às origens das associações de engenheiros civis na primeira metade do século XIX na Inglaterra, quando o aproveitamento racional dos recursos da natureza – como as minas de carvão, por exemplo – mostrava-se essencial ao desenvolvimento, ou seja, ao progresso”. 8 Também nos Estados Unidos e países europeus foram contratados Mestres e professores para lecionarem na EEPA, o que demonstra que naquela época, as demais instituições de ensino brasileiras não davam conta das aspirações da Escola gaúcha.

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a EEPA de outras instituições de ensino brasileiras, tornando-a reconhecida pelo seu inovador

sistema de ensino.

Assim, em 1914 quando já estava estabilizada e organizada em modernos institutos de

ensino, a EEPA investiu na concretização de outro projeto: a criação de uma revista oficial da

instituição.

A Revista Egatea e a legitimação da profissão de engenheiro no RS

Após a EEPA se institucionalizar e se consolidar como importante estabelecimento de

ensino, a Revista Egatea9 foi criada. Seu objetivo era difundir o conhecimento produzido na

Escola através dos trabalhos práticos desenvolvidos por alunos e professores. Já em seu primeiro

exemplar, mostrou-se como distante de um caráter estritamente “politécnico”, cheia de fórmulas

matemáticas sujeita a que apenas um restrito número de profissionais tivesse acesso. A intenção

era que a revista ampliasse a esfera de ação da escola e fosse “(...) em ultima analyse um orgam

dos interesses geraes do Rio Grande do Sul”. O objetivo era discutir todas as questões ligadas ao

progresso do Estado, divulgar os trabalhos executados pela EEPA e ser divulgadora “(...) das

modernas idéas em materia de sciencia e industria”10.

Colocando-se como um periódico que tinha a intenção de atingir todos os tipos de

eleitores, não apenas engenheiros, a Egatea usou como estratégia a publicação de artigos sobre

assuntos domésticos e de interesse geral, além da coluna “Perguntas e Respostas”, um espaço em

que perguntas enviadas pelos leitores eram respondidas por professores da EEPA. Essa coluna

era publicada em português, alemão e italiano, o que evidencia a preocupação dos editores da

Revista em alcançar público também nas colônias do estado.

Entretanto, essa tentativa dos engenheiros parece não ter dado muito certo. Mantendo-se

as limitações metodológicas sobre a impossibilidade ou dificuldades de se avaliar a recepção da

Revista em relação ao público, eram frequentes as queixas dos dirigentes em relação ao baixo

número de assinantes e leitores. Situação semelhante ocorria em relação à adesão de professores

da EEPA para publicarem artigos. Mesmo com a convocação realizada pelo editor-chefe Vivaldo

de Vivaldi Coaracy, os professores que publicavam trabalhos eram seguidamente os mesmos,

pelo menos nos primeiros anos da Revista. Com isso, a intenção de publicação a cada dois

9 Na época em que a Revista foi criada, seu nome foi alvo de curiosidade, conforme relatam os dirigentes da EEPA. Na verdade, tratava-se de uma combinação simples, com as iniciais dos seis institutos que formavam a Escola na época. Instituto de Engenharia, Instituto Ginasial Júlio de Castilhos, Instituto Astronômico e Meteorológico, Instituto Técnico Profissional, Instituto de Eletro-Técnica e Instituto de Agronomia. 10 EGATEA. Revista Egatea: Porto Alegre, Volume1, nº 1, julho e agosto de 1914, p. 1.

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como um dos motivos na baixa das assinaturas.

Pode-se dizer que a pouca diversidade de colaboradores fazia com que a temática dos

artigos se repetisse, uma vez que cada professor escrevia sobre assuntos de sua especialidade e

sobre as disciplinas que ministrava na Escola. Portanto, pouca diversidade de colaboradores,

significava variedade limitada de temáticas discutidas nos artigos. Há de se considerar que a

EEPA possuía diversos professores, mas eles lecionavam muitas matérias cada um, disciplinas, às

vezes, fora de sua área de atuação. Muitos também atuavam em cargos públicos ou tinham seus

próprios escritórios de engenharia, não podendo dedicar-se integralmente as atividades da

instituição, o que pode ser um indício para a pouca colaboração em relação à Egatea.12

A tendência dos textos publicados também dependia do editor-chefe. Até 1920, exerceu

esse cargo o Engenheiro Mecânico-Eletricista Vivaldo de Vivaldi Coaracy13, chefe do Instituto de

Eletrotécnica. Nesse período, discussões sobre eletricidade foram destaque na revista. A partir

1921, o enólogo Celeste Gobbato assumiu o posto. Passou-se então, a explorar os temas ligados

à agricultura e suas indústrias, sobretudo a importância de seu caráter prático.

Nesse momento os editores da revista assumiram a necessidade de dar um caráter mais

científico ao periódico14. No olhar de seus novos editores, não era o tipo de publicação

apropriada para pequenos agricultores e colonos, devido principalmente ao tipo de linguagem,

afinal se tratava de uma classe “(...) menos familiarizada com termos scientificos e com aquelles

da lingua elevada e pura (...)”15. Assim, em 1922 sugeriram ao Diretor da EEPA que fosse

publicado junto à revista, um jornal de tiragem mensal com linguagem mais singela, menos

páginas, tratando de assuntos mais práticos, destinado aos agricultores. A ideia desse jornal não se

concretizou, e, com o passar dos anos, cada vez mais a revista se tornou especializada e menos

genérica.

A Revista Egatea foi, além de divulgadora da EEPA, responsável por vincular progresso

econômico, industrialização, ensino técnico e ciência. Assim, reforçou os discursos dos

professores e administradores da instituição, citando com frequência exemplos de países que

consideravam bem sucedidos, como a Inglaterra, Alemanha e Estados Unidos. Com efeito, era

11 Em geral, cada volume da EGATEA era anual, e formado por seis números, publicados a cada dois meses. Em diversos momentos, porém, seja por questões financeiras ou poucos colaboradores de artigos, a revista não conseguiu cumprir o objetivo de ser publicada bimestralmente. 12Relatório da Escola de Engenharia de Porto Alegre. Porto Alegre: 1918, p. 196. 13 Vivaldo de Vivaldi Coaracy tinha experiência na imprensa quando assumiu o cargo de redator chefe da EGATEA. Ele nasceu no Rio de Janeiro em 1882 e era filho da jornalista Corina Coaracy. Seguindo os passos da mãe iniciou sua carreira na imprensa carioca, porém, mudou-se para o RS e trabalhou em jornais de Porto Alegre. Em 1911 já morando no RS formou-se pela EEPA, tornando-se depois professor. 14Relatório da Escola de Engenharia de Porto Alegre. Porto Alegre: 1923, p. 4. 15 Ibidem.

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comum a Egatea publicar traduções de artigos escritos por estadunidenses e ingleses. Mais

comum ainda era a publicação de matérias que defendessem o ensino técnico profissional e a

engenharia como essenciais ao desenvolvimento econômico do Estado e do país. Em 1915, por

exemplo, em um artigo intitulado “A Engenharia como profissão” podia-se encontrar nas páginas

da Revista Egatea a seguinte afirmação:

Si cada estudante que entra para um curso technico considerasse a vastidão coberta pela carreira que elle escolheu para ser o trabalho de sua existencia, e a importancia dessa carreira para a especie humana, uma de duas cousas succederia – ou elle ficaria inteiramente desanimado e perderia a coragem; ou seria erguido a um tal grao de enthusiasmo que resolveria corajosamente empregar os seus melhores esforços para se tornar um digno membro da confraria dos engenheiros. No primeiro caso elle procederá bem si desistir do seu intento, porque todo o engenheiro de valor é necessariamente um homem de coragem; nesta profissão não ha logar para fracos (...). 16 (grifo nosso).

Além do mais, ao se observar o sumário geral de cada exemplar da revista, pode-se

perceber que o conjunto de assuntos abordados vai ao encontro da figura do engenheiro como

arauto da modernidade. Portanto, apesar de se posicionar como de interesse geral, a Egatea, na

prática, não se colocava assim. A maior parte dos assuntos tratados eram relacionados à Escola

de Engenharia, à profissão de engenheiro e aos avanços tecnológicos e científicos. Isso

demonstra o interesse e a necessidade de justificar e valorizar a profissão que durante maior parte

da história brasileira foi desvalorizada17. Os assuntos que o periódico tratava estavam em

consonância com as mudanças urbanísticas e econômicas do período. Era o engenheiro, o

profissional preparado para executar essas mudanças. Os mestres de obras que muitas vezes

substituíram os engenheiros em diversos empreendimentos não davam mais conta dos rápidos

avanços tecnológicos e científicos daquele momento.

Desse modo, a Egatea justificava a necessidade de formar profissionais técnicos e

especializados. Justificava, portanto, a própria EEPA. Trata-se de um processo que culminou na

consolidação da profissão de engenheiros nos anos 1930. Sendo dessa forma, a revista precisava

circular, efetivamente, entre os próprios engenheiros, entre outras instituições de engenharia,

16 WADDEL & HARRINGTON. A Engenharia como profissão. Revista EGATEA. Porto Alegre: Volume II, nº 3, novembro e dezembro de 1915, p. 141. 17 Diversos autores discutiram a questão do desprestígio da profissão de engenheiro até o século XIX. É importante salientar, que esse desprestígio é relacionado ao outro, ao opositor, isto é, aos bacharéis. Embora engenheiros fizessem parte de uma elite, de uma pequena parcela da população que tinha acesso ao ensino superior, a profissão era desprestigiada se comparada aos médicos e bacharéis. Foi, inclusive, a oposição aos bacharéis um dos fatores de unidade entre os engenheiros, fator que os auxiliou a se organizarem como grupo profissional.

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entre elites intelectuais, econômicas e políticas18. Afinal, seriam esses grupos que poderiam

atender aos interesses da Engenharia como profissão.

Considerações Finais

As afirmações aqui propostas se fundamentam na percepção de que, com o passar dos

anos e o aumento das Escolas de Engenharia e de especializações na área, a Revista Egatea

também se especializou. Se nos primeiros anos ela possuía um caráter mais genérico, indicando

que o engenheiro deveria ser um profissional múltiplo, que além de sua área dominasse assuntos

ligados à política e à economia, com o passar dos anos os números de artigos científicos e

técnicos aumentaram. No final dos anos 1920, por exemplo, a variedade de colaboradores e de

temáticas foi muito maior do que nos primeiros anos do periódico. Além de a revista ter se

consolidado, os engenheiros trabalhavam cada vez mais em áreas restritas a sua especialização.

Isso se relaciona ao contexto da profissão no estado e no país, pois no final dos anos vinte se

intensificaram os movimentos para formação de associações profissionais (no RS, em 1930), para

o reconhecimento jurídico e regulamentação da profissão. Portanto, a trajetória do periódico

acompanhou a trajetória da profissão: se no início do século o engenheiro ideal era aquele com

conhecimento enciclopédico, no final dos anos de 1920, defendia-se um tipo de profissional

altamente especializado.

Isto, entretanto, não invalidou a intenção da revista de circular entre colonos e operários.

Em outro grau, esse também seria um passo importante, sobretudo, para incentivá-los aos cursos

que a EEPA oferecia. Precisava-se fortalecer o grupo de engenheiros, entretanto, para os

empreendimentos e indústrias que defendiam, precisava-se também de mão de obra qualificada.

Logo, pode-se dizer que a Escola de Engenharia ia ao encontro das intenções do PRR

que buscava a modernização e industrialização do Estado. Seus idealizadores acreditavam que era

através de um ensino técnico e prático que o Brasil se desenvolveria economicamente.

Destarte, os objetivos da Egatea iam além de legitimar a profissão de engenheiro e o

ensino técnico-profissional. Lembrando Maria Aparecida de Aquino (1999, p. 98) quando ela diz

que a produção realizada por um periódico mostra suas crenças, concepções políticas e as causas

que abraça, pode-se dizer que a revista mostra as crenças da EEPA, e tais crenças iam ao

encontro das aspirações do PRR enquanto força política dominante no Rio Grande do Sul

daquele período. Ou seja, se o discurso da Egatea está atrelado às concepções da Escola de

18A cerca do conceito de elite, entende-se tratar de um grupo de indivíduos que se sobressai aos demais por possuir algum tipo de privilégio não comum à maioria da sociedade (HEINZ, 2006).

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Engenharia, vincula-se também ao cenário político do período. Quando a revista se colocou

como atendente dos interesses gerais do Rio Grande do Sul estava querendo atender aos

interesses do grupo político ao qual estava vinculada, aos propósitos políticos que defendia. Dada

as diferenciações temporais do período analisado, é possível afirmar que o periódico da EEPA,

foi um ator político do período (BARBOSA, p. 181). Não pela sua vinculação com o partido

político em poder. Mas, pela sua atuação em impor uma percepção do momento histórico que se

vivia.

Referências

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Referências Documentais

A ESCOLA. A Federação, Porto Alegre, 1912. Não paginado. EGATEA. Revista Egatea: Porto Alegre, Volume 1, nº 1, julho e agosto de 1914, p. 1. O ENSINO. A Federação, Porto Alegre, p. 1, 1908. Relatório da Escola de Engenharia de Porto Alegre. Porto Alegre: 1897. Relatório da Escola de Engenharia de Porto Alegre. Porto Alegre: 1918. Relatório da Escola de Engenharia de Porto Alegre. Porto Alegre: 1923. WADDEL & HARRINGTON. A Engenharia como profissão. Revista EGATEA. Porto Alegre: Volume II, nº 3, novembro e dezembro de 1915, p. 141.

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Espaços de saber e poder: instituições e seus agentes na perspectiva da História Social

A MEDICINA NO RIO GRANDE SUL: REGULAMENTAÇÃO E CONSTRUÇÃO DAS ESPECIFICIDADES DO CAMPO PROFISSIONAL

GEANDRA DENARDI MUNARETO1

Não raro, vemos a medicina ser caracterizada como um saber milenar, praticado desde

tempos remotos. Esse tipo de visão atribui uma atemporalidade para o conhecimento e para as

práticas concebidas atualmente como parte do saber médico.

A ideia de uma medicina erudita e acadêmica, tida como um saber superior às demais

práticas populares e legitimada pelo manto da neutralidade científica, parecia um fato

inquestionável para os trabalhos pioneiros sobre o tema, produzidos quase exclusivamente por

médicos. Ao lermos seus textos, temos a impressão de que a medicina se constituía como um

corpo unificado, dotada da prerrogativa de decidir não só sobre a vida e morte dos pacientes, mas

também como saber capaz de decidir sobre os rumos da nação.

No entanto, ao analisarmos os trabalhos produzidos recentemente na área de História da

Saúde2 e História da Medicina, percebemos como essa perspectiva foi sendo construída ao longo

das primeiras décadas do século XX pelos próprios profissionais da área médica3. Esses estudos

foram responsáveis pela colocação de alguns dos problemas que se tornaram caros aos estudiosos

do tema.

Em primeiro lugar, porque mostraram como, ao longo dos três primeiros séculos da

história do Brasil, apenas uma tênue fronteira distanciava o saber médico oficial dos saberes

populares, sem que houvesse uma hierarquia entre eles. A diversidade de práticos de cura num

mesmo período era enorme. Suas formações eram as mais diversas e nem todos eram chamados

de médicos. No que se refere ao Brasil, sempre houve uma grande variedade de métodos de cura

desde o período colonial. Havia os físicos, que eram bacharéis licenciados por universidades

ibéricas. Os doutores eram aqueles que defendiam conclusões magnas ou teses em Coimbra,

Montpellier e Edimburgo. Os barbeiros praticavam pequenas cirurgias, além de cortar cabelo e

fazer a barba. Já os boticários comerciavam drogas e concorriam com os físicos e cirurgiões-

barbeiros no tratamento de doenças. Havia ainda aqueles que, sem habilitação formal, receitavam

1 Doutoranda do Programa de Pós Graduação da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e bolsista CAPES. E-mail: [email protected] 2 Nikelen Witter define a área de História da Saúde como “um campo que se configura complexo e abrangente, através do qual a vida social, política e cultural dos grupos humanos pode ser percebida e analisada pelo historiador a partir da ocorrência de enfermidades individuais ou coletivas. A proposta é utilizar saúde – visto como um termo que abrange desde práticas populares e científicas até ações e políticas públicas, ocorrência de doenças, interação com o ambiente, etc. – como um veículo para a investigação da organização social (Witter, 2007, p. 20). 3 Não pretendemos nos aprofundar nas questões sobre o debate historiográfico da área. Uma ótima síntese sobre os trabalhos recentes na área e a sua contribuição pode ser encontrada em Witter (2005).

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remédios e faziam curativos, de acordo com horizontes culturais diversos – pajés, benzedores,

curandeiros, etc (Weber, 1999, p. 21).

Em segundo lugar, indicaram a existência de conflitos não apenas entre a medicina e suas

concorrentes populares, mas entre os próprios médicos acadêmicos, fazendo dessa uma área

marcada pela diversidade de correntes e pelas incertezas e contradições em torno de diferentes

métodos terapêuticos no tratamento de doenças e no combate a epidemias, daí a necessidade do

uso do termo “medicinas”. Até que conselhos técnicos pudessem decidir sobre questões relativas

à vida e à morte, desenvolveu-se uma feroz luta entre esses diferentes atores sociais pela posse da

verdade.

Em terceiro lugar, destacaram a ideia de que medicina e magia permaneceram associadas

para uma boa parte da população brasileira, influenciando suas escolhas terapêuticas e a busca de

curadores – médicos ou curandeiros – até meados do século XX. Práticas consideradas como

superstições conviviam com práticas ditas científicas. Os próprios médicos, envolvidos com

pesquisas e portando um discurso modernizador e progressista, eram, não raro, indivíduos

profundamente religiosos. O conhecimento médico, apesar do discurso de objetividade, possuía

explicações mágicas para uma série de fenômenos incompreensíveis pelos métodos da época.

Além disso, muitas práticas como o vitalismo4, hoje tidas como crenças, eram aceitas como

religiosas (no caso do vitalismo, a força vital poderia ser entendida como alma, e a origem do

universo, como obra direta ou indireta de Deus) e científicas ao mesmo tempo.

No caso do Rio Grande do Sul, essas discussões se prolongaram até as primeiras décadas

do século XX, somadas à disputa pelo monopólio profissional e pela hierarquização das práticas

de cura, onde a medicina ocuparia a posição mais alta. Foram travadas lutas não só no campo

social e político, mas também no campo simbólico. Não bastava somente acabar com a

concorrência por meios legais, impondo o fim da liberdade profissional. Era preciso unificar o

grupo, superando as divergências, e também convencer a população de que a medicina acadêmica

era superior às demais artes de curar. Foi nesse último ponto que os médicos encontraram uma

4 O vitalismo foi uma teoria defendida por filósofos e cientistas entre meados do séc. XVIII e meados do séc. XIX. Caracterizava-se por postular a existência de uma força ou impulso vital (ou elã vital, conforme classificou Bergson) sem o qual a vida não poderia ser explicada. Tratar-se-ia, assim, de uma força específica, distinta da energia – estudada pela Física e outras ciências naturais – que, ao atuar sobre a matéria organizada, teria como resultado a vida. Os vitalistas estabelecem uma fronteira clara entre o mundo vivo e o inerte. A morte não seria entendida como efeito da deterioração da organização do sistema, mas como resultado da perda do impulso vital ou da sua separação do corpo material. Em biologia, esse quadro teórico teve um momento fecundo, porque afastava o vivo do mecanismo e explicações causais e redutivas do pensamento cartesiano, sem cair em explicações de cunho sobrenatural. O vitalismo baseia-se em três proposições principais: 1) os fenômenos vitais não podem ser inteiramente explicados por causas mecânicas; 2) um organismo vivo nunca poderá ser produzido artificialmente pelo homem num laboratório de bioquímica; 3) a vida sobre a terra, ou, em geral, no universo, não teve origem natural ou histórica decorrente da organização e do desenvolvimento da substância do universo, mas é fruto de um plano providencial ou de uma criação divina. Para mais informações, ver Solano e Gutiérrez (2005).

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convergência de opiniões em meio aos seus conflitos internos, pois o livre exercício da cura

ameaçava diretamente os profissionais diplomados.

Mesmo que defendessem diferentes propostas terapêuticas e discordassem sobre elas,

certamente concordavam que seus métodos eram superiores ao dos “curandeiros” e dos

“charlatães”. Primeiro, porque seu conhecimento estava associado à ciência, diferente dos

“curandeiros”, que se baseavam em crenças populares e irracionais. Segundo, porque a medicina,

enquanto arte e próxima ao sacerdócio, era fruto da dedicação e caridade, estando “estreitamente

vinculada ao que de mais profundo existe na alma humana”5. De forma alguma poderiam ser

comparados à “malta voraz de famintos aventureiros”, ávidos de ganho e “faltos de consciência”,

responsáveis pelo “aviltamento” e pela “desmoralização da profissão”.

Foi essa coesão que possibilitou aos médicos unirem-se e formar um órgão que

representasse as suas reivindicações enquanto grupo. Em sessão solene, no dia 21 de maio de

1931, mais de uma centena de médicos atuantes no estado atenderam ao convite publicado nos

“principais jornais da Capital” e compareceram ao salão nobre da Faculdade de Medicina de

Porto Alegre a fim de fundarem uma associação destinada a “defender os interesses morais e

materiais da classe, com o nome de Sindicato Médico do Rio Grande do Sul”6.

Desde suas primeiras ações, fica claro que o objetivo prioritário e mais urgente do

Sindicato, na época de sua fundação, era a regulamentação do exercício da medicina e o fim da

liberdade profissional estabelecida no Rio Grande do Sul. Na sessão inaugural, o médico e

professor da Faculdade de Medicina Waldemar Job explicou os motivos que levaram ele e seus

colegas a promover a fundação de um Sindicato, afirmando que “a nossa revolta visa, sobretudo,

os aventureiros estrangeiros e nacionais, os quais protegidos pela liberdade profissional, vigente

entre nós, se utilizam da mais nobre das profissões para única satisfação de interesses pessoais”7.

A regulamentação profissional e o estabelecimento do monopólio da medicina sobre as

outras artes de curar

Um dos fatores que tornou possível a esses profissionais da área médica se identificarem

em torno de uma questão comum foi o reconhecimento, por parte desses médicos, de que

pertenciam a um mesmo grupo, com uma função e interesses compartilhados. Além disso, foi

necessário também que esses fossem reconhecidos como detentores de um saber específico e

legítimo, o que os tornaria aptos a intervir e dar o seu parecer sobre questões relacionadas ao seu

5 Panteão, 1943, p.32. 6 Boletim, 1931, p.17. 7 Boletim, 1931, p.17.

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campo de conhecimento. Esse processo de profissionalização foi marcado pelo conflito entre

médicos e demais práticos de cura em torno dos limites da sua atuação e da busca de entidades

médicas – como sindicatos, conselhos e associações – por autonomia e autorregulação8. É dentro

desse quadro de disputa que vai se estabelecer uma separação entre práticas de cura “leigas”,

caracterizadas, conforme os discursos médicos, pela ignorância, pela superstição e pela ineficácia,

e uma medicina acadêmica e “oficial”, assentada num conhecimento científico e “superior”.9

Conforme aponta Roberto Machado, “a medicina não pode desempenhar esta função política

sem instituir a figura normalizada do médico, através, sobretudo, da criação do médico, e

produzir a personagem desviante do charlatão para a qual exigirá a repressão do Estado”

(Machado, 1978, p. 156).

Essa normatização da qual fala Machado implica, a nosso ver, a institucionalização e a

oficialização de uma classificação a respeito dos próprios médicos, da medicina enquanto

atividade profissional legítima e da habilitação necessária para exercê-la. Ao mesmo tempo, essa

taxonomia pressupõe a caracterização de certos indivíduos como não habilitados a exercerem

determinadas funções atribuídas aos médicos e que, por isso, praticariam a medicina de forma

ilegal (Vieira, 2009, p. 58).

Dessa forma, é possível afirmar que a importância da medicina enquanto “corporação”

passa necessariamente pelo seu processo de regulamentação. Com isso, constitui-se uma

“nomeação oficial” – explícita e pública – definida por Bourdieu como um “ato de imposição

simbólica que tem ao seu favor toda a força do coletivo, do consenso, do senso comum, porque

ela é operada por um mandatário do Estado, detentor do monopólio da violência simbólica legítima”

(Bourdieu, 2007, p.146) e não como um simples ato particular de designação ou um “ponto de

vista”. Assim, os interessados em garantir uma classificação desse tipo precisam, além de um

árduo trabalho simbólico, constituir, por meio de delegação, seus representantes autorizados para

que suas demandas sejam reconhecidas pelo Estado.

A liberdade profissional era um dos princípios previstos na Constituição Estadual de

1891, que permitia o livre exercício profissional, sem qualquer regulamentação ou exigência de

diploma por parte dos praticantes. De acordo com a historiografia, essa concepção era resultado

da influência do positivismo que teria marcado os governantes do Rio Grande do Sul –

8 De acordo com Bourdieu, “os detentores de um mesmo título tendem a constituir-se em grupo e a dotar-se de organizações permanentes – ordens de médicos, associações de antigos alunos, etc. – destinadas a assegurar a coesão de grupo – reuniões periódicas, etc. – e a promover seus interesses materiais e simbólicos” (Bourdieu, 2007, p.149). 9 De acordo com Nancy Leys Stepan, “O período de 1880 a 1930 foi de considerável crescimento intelectual e consolidação institucional da ciência. [...] De modo mais geral, a ciência foi amplamente reconhecida como essencial à autoridade material e moral do Ocidente – às próprias definições de modernidade e civilização. Os intelectuais latino-americanos leram com avidez os trabalhos dos importantes pensadores científicos da Europa. Eles abraçaram a ciência como uma forma de reconhecimento progressista, uma alternativa para a visão religiosa da realidade e um meio de estabelecer uma nova forma de poder cultural” (Stepan, 2005, p. 49-50).

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principalmente aqueles ligados ao partido hegemônico – durante a Primeira República (Vélez

Rodriguez, 2000).

De acordo com o texto presente na Constituição elaborada pelos integrantes do Partido

Republicano Rio-Grandense (PRR), era pregada a liberdade profissional, estabelecendo que o

Estado não deveria ter nenhuma ingerência sobre o exercício de quaisquer profissões, sendo estas

reguladas pela vontade da população, esclarecida pela luz da ciência. Essa medida, mantida

durante as administrações de Júlio de Castilhos e Borges de Medeiros, pôs fim ao monopólio

profissional, criando dificuldades para o estabelecimento da medicina convencional ou

“científica”, ela própria dividida entre suas diversas teorias e formas de tratamento (Weber, 1999,

p. 41-50).

A fim de obterem licença para atuarem, os interessados em exercer medicina, “farmácia,

drogaria, obstetrícia e arte dentária” deveriam seguir o Regulamento de Serviços de Higiene do

Rio Grande do Sul de 1895, e inscrever-se na Diretoria de Higiene do estado. Esse critério era

válido também para os médicos diplomados, seja em faculdades nacionais ou estrangeiras. A

Diretoria funcionava como órgão fiscalizador, multando aqueles que atuavam sem registro e

erros de ofício cometidos pelos profissionais inscritos. No entanto, na prática, a aplicação da lei

era bastante limitada, em razão da falta de funcionários e de uma estrutura administrativa precária

para realizar a fiscalização. O cargo de delegado de higiene, por exemplo, era honorário e não

remunerado.

A questão da liberdade profissional era avidamente criticada pelos médicos rio-

grandenses. Segundo esses, a “licenciosidade profissional” abria espaço para a ação de indivíduos

inescrupulosos e “exploradores da ignorância do povo”. O governo do Rio Grande do Sul, ao

permitir que esses indivíduos atuassem, estaria promovendo o “patrocínio oficial dos homicídios

decorrentes da ação de charlatães”. Era preciso, “em nome da saúde pública” e dos “altos

interesses da nacionalidade”, um código que regulamentasse o exercício da medicina e pusesse

fim ao charlatanismo. Para isso, não bastava apenas a ação do Estado, mas dos próprios médicos

enquanto grupo, como podemos perceber na palestra proferida por Silveira Netto na primeira

sessão ordinária da Sociedade Médica Rio-Grandense:

No Estado estão regulamentadas profissões outras que interessam à saúde pública. Por que não exigir, também em nome da saúde pública e portanto dos altos interesses da nacionalidade um código que regulamente o exercício da medicina entre nós? É uma oportunidade única para se fazer alguma coisa em prol da velha aspiração de médicos rio-grandenses coletivamente desnivelados e decadentes materialmente, pela tolerância patológica que demonstram. É preciso que os verdadeiros profissionais se unam, tenham visão clara de seu papel na sociedade moderna e não continuem abrindo mão dos direitos de defender este patrimônio moral que é o dever de atuarem em prol da nossa gente contra os estelionatos profissionais, contra as mutilações cirúrgicas, o empobrecimento de pacientes ignorantes e indefesos e os assassínios perpetrados

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consciente ou inconscientemente por aventureiros que tripudiam sobre a dignidade da classe10.

Embora esses médicos atribuíssem a culpa pela ação dos licenciados ao Estado – por não

regulamentar a prática médica – e à ignorância da população local, essa não era uma prática

exclusiva do Rio Grande do Sul. Embora somente aqui ela tenha sido legalizada, é preciso

lembrar que em outros estados não havia faculdades de medicina e certamente a fiscalização do

exercício profissional devia ser bastante limitada. Se a condição da medicina no Rio Grande do

Sul contrastava com a realidade que se apresentava na capital federal no mesmo período, esse

mesmo quadro devia ser bem semelhante ao de outras regiões brasileiras, sobretudo aquelas mais

afastadas dos centros urbanos (Vieira, 2007, p. 37).

Além disso, no século XIX e início do XX, a medicina acadêmica ainda não possuía, aos

olhos da população, a superioridade almejada pelos médicos em relação ao curandeirismo, uma

vez que possuía recursos terapêuticos limitados e apresentava um grande número de fracassos

nos tratamentos empregados. Conforme Nikelen Witter:

Dessa forma, quando se volta a atenção para o século XIX, pode-se perceber que este não constituía um domínio pacífico de uma medicina acadêmica totalmente corporificada – como sugere a historiografia tradicional. Ao contrário, o que se tinha era a presença de diversas terapias e agentes que se habilitavam a curar disputando espaço no combate à doença. Esses outros agentes eram, em geral, práticos oriundos das mais diversas formações, receitavam remédios, faziam curativos, consertavam ossos quebrados, etc. Eram conhecidos pela população como curiosos, empíricos, práticos, benzedeiros, manosantas, e uma série de outros nomes que poderiam ser substituídos por apenas um: curandeiros. Logo, até ter a imagem que hoje nós conhecemos, a medicina era apenas uma entre diversas outras formas de curar e conceber a doença (Witter, 2001, p. 16-17).

Como podemos ver, a preferência pelos “curandeiros” não se explica apenas pela escassez

de médicos diplomados, pela falta de fiscalização ou pelo baixo nível de instrução da população

para escolher os profissionais “habilitados”. Não se pode supor uma hierarquia existente entre as

diferentes formas de curar apenas a partir de regulamentos oficiais, nem se deve pensar o

curandeirismo em total oposição à medicina acadêmica, somente existindo para cobrir as brechas

deixadas por esta, como se fossem dois saberes fechados em si. Os limites entre o saber médico

oriundo das faculdades e as práticas populares de cura eram bastante flexíveis. Não raro, médicos

diplomados e os chamados “curandeiros” faziam uso de recursos e tratamentos comuns, como

purgas e sangrias, e utilizavam os mesmos manuais, como o famoso Chernoviz (Vieira, 2009;

Witter, 2001; Guimarães, 2005).

10 Boletim, 1931, p.8.

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Até o início do século XX, em muitas regiões do Brasil, os médicos com formação

acadêmica contavam com pouca valorização e reconhecimento por parte da população e nem

mesmo detinham a legitimidade conferida pelo poder público. Além disso, longe de se apresentar

como um conhecimento unificado e autônomo, a medicina foi marcada pelas incertezas e

contradições em torno de diferentes métodos terapêuticos no tratamento de doenças e no

combate a epidemias.

As discussões travadas entre médicos não se limitavam aos periódicos e publicações

médicas, sendo levadas a público por meio de jornais e até mesmo nos tribunais11. Tal situação

não só prejudicava qualquer tentativa de corporificação, como contribuía para manter as outras

práticas de cura na posição que sempre ocuparam, reforçando o pouco conceito dos médicos

perante a população (Witter, 2001, p. 73-74).

No caso do Rio Grande do Sul, essas discussões se prolongaram até as primeiras décadas

do século XX, somadas à disputa pelo monopólio profissional e pela hierarquização das práticas

de cura, onde a medicina ocuparia a posição mais alta. Foram travadas lutas não só no campo

social e político, mas também no campo simbólico. Não bastava somente acabar com a

concorrência por meios legais, impondo o fim da liberdade profissional. Era preciso unificar o

grupo, superando as divergências, e também convencer a população de que a medicina acadêmica

era superior às demais artes de curar.

Foi nesse contexto de disputas, incertezas e concorrência com os mais diversos curadores que os

médicos diplomados tentaram organizar-se para enfrentar tal situação considerada desfavorável.

Durante o período de luta para por fim à liberdade profissional no estado, os médicos foram

adquirindo a coesão necessária para unirem-se e formarem um sindicato que desse

representatividade às suas reivindicações. É durante esse processo também que vai se consolidar

uma identidade corporativa fazendo

reconhecer e impor como legítima uma classificação a respeito dos profissionais da cura, definindo o que é e o que não é ser médico. Assim, a disputa em torno da regulamentação da medicina é também a luta pela definição de uma identidade (Vieira, 2008, p. 2).

Inúmeras foram as tentativas de negociação por parte do grupo médico gaúcho para

regulamentar a profissão e neutralizar a ação dos licenciados, pois, para alguns desses médicos, a

liberdade profissional era responsável pela “desmoralização da classe” e pelo “rebaixamento

moral da profissão”12. No entanto, essa mobilização só se intensifica após o Congresso de 1926.

11 Exemplos desses casos são relatados nos trabalhos de Beatriz Weber (1999) e André Faria Pereira Neto (2001) e no artigo de Odaci Luiz Coradini (1996). 12 Boletim, 1932, p. 8.

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Durante o período da administração de Borges de Medeiros, pouco foi feito para pressionar o

governo em relação à regulamentação da profissão médica.

Ao analisarmos as primeiras publicações do periódico organizado pela Sociedade de

Medicina Rio-Grandense, encontramos raras menções ao curandeirismo ou a ação dos

licenciados13. Isso não significa que não havia necessariamente preocupação dos associados com

o assunto, mas que essa inquietação não poderia ser externada através da entidade. Após 1926,

com a realização do 9º Congresso Médico Brasileiro em Porto Alegre, a questão passa a ter mais

visibilidade na revista e durante as sessões da sociedade médica, ao mesmo tempo em que se

passa a discutir a criação de uma entidade dedicada a tratar dos assuntos referentes à

regulamentação da medicina no Rio Grande do Sul.

Com o enfraquecimento do PRR e o fim da “hegemonia borgiana”, decorrente da

reestruturação dos partidos de oposição e das crescentes contestações ao modelo governamental

vigente, ascendeu ao poder uma nova geração de republicanos, com uma visão mais conciliadora

do que a apresentada pelas lideranças anteriores (Axt, 2007, p. 101-102). Essas mudanças podem

ter favorecido o aumento das reivindicações em torno da questão da liberdade profissional, pois

parece ter havido mais espaço para que os médicos pudessem trazer esse assunto para debate.

Embora as possibilidades de negociação da segunda geração republicana sobre os princípios

positivistas fossem mais abrangentes e flexíveis, o processo de regulamentação não foi algo

automático. Weber, citando o memorialista médico Nicanor Letti, mostra que foi necessária a

intervenção de pessoas ilustres para mediar a “paz entre a Classe Médica e o Presidente do

Estado, Dr. Getúlio Vargas”, o que indica um longo diálogo antes que a questão fosse

efetivamente resolvida (Weber, 2003, p. 107).

A intervenção estatal teve papel decisivo para a regulamentação da medicina no Rio

Grande do Sul. Os médicos ligados à Sociedade de Medicina proclamavam a necessidade de uma

unidade entre a “classe”, apelando para a formação de uma “frente única” entre os médicos do

Rio Grande do Sul e a superação das divergências entre eles:

É muito significativo que nesse momento as lideranças de partidos políticos rio-grandenses igualmente procuravam superar suas discordâncias históricas para a formação da Frente Única no estado. Dessa forma, as discussões e mesmo a linguagem empregada no campo político aparecem aqui apropriadas pelos médicos em seu anseio de serem ‘ouvidas’ e atendidas suas reivindicações corporativas. Demonstram assim a ideia de que a questão da regulamentação profissional dependia também da intervenção estatal (Vieira, 2009, p. 53).

13 Fundada em 17 de maio de 1908, era uma entidade de caráter científico, conforme definiam seus dirigentes, com a função de promover estudos clínicos (Archivos, 1920, p.41).

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Jacinto Gomes, presidente da Sociedade de Medicina eleito em 1928, propõe aos colegas

uma modificação das relações entre os médicos e o governo do estado, “abandonando a atitude

hostil adotada e mantida pela classe há 40 anos, para substituí-la por uma atitude mais cordial”14.

Assim, foi até Borges de Medeiros, que se mantinha ainda como liderança máxima do PRR. A

partir desse encontro, realizou-se uma conferência com Getúlio Vargas, para que fosse

encaminhada uma “solução prática ao problema do exercício da medicina”.

O bom relacionamento entre os médicos da Sociedade de Medicina e o governo estadual

deu mais um passo com a regulamentação do comércio de tóxicos através do decreto n. 4.089 de

13 de julho de 1928. De acordo com Jacinto Gomes, essa medida teve grande alcance do ponto

de vista médico social. O consumo de tais substâncias era visto pelos médicos como um “veneno

social”, capaz de promover a degeneração física, psíquica e moral dos indivíduos.

Cocaína, morfina, álcool, éter: como vedes os quatro obreiros da destruição orgânica, os quatro obreiros da decadência física e da morte moral. [...] Com o uso dos tóxicos, a ideia do interesse – grande móvel da atividade humana – revela-se ferida, graças ao assassínio da ambição do homem e exteriorizado no desaparecimento de sua atividade construtora, criadora, realizadora; a perda das energias físicas e morais do homem, igualmente, são apreciadas à proporção que o mal avança e o aniquila; o comprometimento do patrimônio intelectual da sociedade, igualmente, se revela na área das letras, das artes, das ciências, o que nos adverte a perda das forças ativas e capazes de conduzirem uma raça a caminho da vitória15.

Congratulações foram enviadas pelos membros da Sociedade ao presidente do estado,

que respondeu ao ofício agradecendo a deferência e afirmando que tinha em “subida conta a

indispensável cooperação que a Sociedade de Medicina me assegura, no estudo e na solução dos

problemas da medicina social”16.

Após mais uma reunião com Vargas, Jacinto Gomes foi convidado por esse a integrar

uma comissão encarregada de apresentar um projeto de regulamentação da medicina. Composta

de três membros nomeados pelo governo do estado, a comissão incluía os nomes de Protásio

Alves e Fernando de Freitas e Castro. O projeto a ser elaborado seria incluído no novo

regulamento sanitário que estava sendo elaborado pela Diretoria de Higiene (Kummer, 2002,

p.89).

Nesse meio tempo, aconteceram várias discussões sobre a criação de uma entidade

sindical que representasse os interesses dos médicos diplomados do estado. Jacinto Gomes, em

seu discurso de posse da presidência da Sociedade de Medicina, sugeriu a criação de um sindicato

nos moldes dos que já existiam no país.

14 Archivos, 1928, p.20-21. 15 Archivos, 1928, p.12. 16 Archivos, 1928, p.4.

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Ainda em 1928, Raul Bittencourt, em tese apresentada no 1º Congresso Municipal de

Saúde Pública, Medicina Social e Hospitais, afirmou que “a solidariedade dentro de cada classe é

o fundamento essencial para o ideal de sociedade humana” e a sindicalização seria o “processo

normal de organização da solidariedade dentro das classes”. Consta que “por toda parte

irrompem as associações e ligas comerciais, industriais, técnico-profissionais, operárias e

intelectuais”, todas elas compartilhando de uma característica fundamental: a condensação da

classe.

Tão profunda é a influência deste movimento que já tem determinado modificações na própria organização política de certos povos. A Rússia soviética ensaia o processo de representação funcional, de classe, e o Estado corporativo da Itália fascista possui um regime equivalente, que acaba de ser adotado. A exaltação da solidariedade de classe é uma das características dos tempos atuais17.

A sindicalização seria, a seu ver, não só “melhor maneira de organizar uma classe em sua

defesa”, como também o método “mais eficaz de obrigá-la a cooperação social”. Cita Oliveira

Vianna ao observar que, no Brasil, há um “fraco espírito associativo”, daí “o grau incipiente do

senso de solidariedade em que ainda nos encontramos”. No entanto, lembra, alguns grupos

começaram a demonstrar um movimento de condensação, como a própria Sociedade de

Medicina e o Sindicato Médico Brasileiro. A partir dessas constatações, conclui:

No Brasil, em que o senso de solidariedade é pouco acentuado, é de vantagem real intensificá-lo pela criação de sindicatos, segundo o movimento de condensação de classes que se esboça em diferentes pontos do país18.

Bittencourt congrega os colegas a organizarem-se em uma entidade sindical, pois sem isso

a “classe médica rio-grandense” não poderia ter seu “valor” reconhecido. Além disso, o Sindicato

Médico possuiria uma função “eminentemente social”, servindo de “intermediária entre as

necessidades sanitárias do povo e a força realizadora do poder público”. Embora a Sociedade de

Medicina, conforme argumentou, estivesse “quase se transformando em sindicato” tendo em

vista a sua atuação no período, era um “órgão imperfeito” para esse objetivo. A nova agremiação

deveria ser criada a partir da própria Sociedade, aproveitando assim a sua “tradição e autoridade”.

Inúmeros debates foram realizados em torno dessa questão, e as opiniões se dividiam

entre a criação de um sindicato ou de uma associação médica. Em sessão na Sociedade de

Medicina, o vice-presidente Guerra Blessman questionou os associados a respeito dessa medida:

“Devemos ter associações de caráter científico independentes das de caráter profissional ou

17 Archivos, 1928, p. 20. 18 Archivos, 1928, p. 21.

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ambos os assuntos podem ser cuidados em uma mesma associação? Convém a criação de um

sindicato médico?”19.

Aqueles que eram contrários à formação de sindicato manifestavam opinião favorável à

fundação de uma Associação Médica Rio-Grandense, dividida em três departamentos: um para

assuntos científicos, um de medicina social e outro para cuidar dos “interesses profissionais”.

Argumentavam que o termo associação parecia “mais simpático”, fugindo de “possíveis

explorações tendentes a pôr em evidência o interesse material”. Aqueles que se manifestassem

contra a denominação de sindicato provavelmente o faziam para evitar a identificação associada a

este com o movimento operário e com posicionamentos político-ideológicos.

Já os que defendiam a proposta sindical inspiraram-se na fundação do Sindicato Médico

Brasileiro, no Rio de Janeiro, e no Sindicato Médico Uruguaio. Para esse grupo, a Sociedade

deveria cuidar apenas do “terreno mais espiritual, das questões de ordem puramente técnica e

científica” e não poderia continuar a agitar-se com uma “questão heterogênea” como a de

liberdade profissional (Vieira, 2009).

É visível a influência de um ideário corporativista nesses discursos pró- sindicalização.

Esse esquema corporativo esteve presente, desde os anos de 1920, no Brasil, através de distintos

projetos políticos e concepções intelectuais que vão ganhar força a partir da década seguinte. De

acordo com Pécaut:

O esquema corporativo estará nas origens das medidas adotadas após 1930: regulamentação das profissões, leis trabalhistas de 1932, legislação sindical. Essas foram as bases que Wanderley Guilherme dos Santos qualificou como sistema de ‘cidadania regulada’, que se apoia na atribuição de direitos moldados em função da filiação profissional (Pécaut, 1990, p. 53).

A possibilidade da criação de uma entidade sindical era vista não só como uma maneira

de “defender os interesses imediatos das classes que representam”. De acordo com o médico

Thomaz Mariante, em texto intitulado “O Estado e os Sindicatos”, publicado no periódico do

Sindicato, Boletins do Sindicato Médico, “sua ação deve ir muito mais longe, deve alcançar a

totalidade de interesses da coletividade, influindo direta e decisivamente no governo da nação”.

Argumenta que a organização do Estado nos “modelos clássicos da representação política está

em franco desacordo com as necessidades e aspirações do povo”, sendo o parlamentarismo uma

instituição falida. Entretanto, alerta, como parece ser “uma necessidade entre nós a manutenção

do governo com seus parlamentos políticos”, é preciso achar um meio de “corrigir os

desmandos” e impor medidas necessárias para a promoção do bem público “sem as peias das

19 Archivos, 1928, p.21.

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conveniências partidárias”. Esse meio seria a organização das classes por meio dos sindicatos,

pois esses, ao promoverem a união e a coesão, teriam a força necessária para diminuir as falhas e

os abusos cometidos pelos parlamentos políticos, obrigando seus membros a “pensar mais nos

seus deveres e nas necessidades da coletividade do que nos próprios interesses ou dos respectivos

partidos”. À medicina, por ser uma das profissões que “mais atingem a integridade da raça” e a

saúde do indivíduo, não poderia ser negada a regulamentação profissional.

Aos médicos, que constituem a classe mais culta do Brasil, na opinião unânime dos que têm estudado a nossa sociedade, e que, por força da sua profissão, estão em contato mais íntimo com o povo, em todas as suas camadas, que conhecem os seus sofrimentos, ouvem as suas queixas, sabem das suas necessidades e das suas aspirações, cabe, imperativamente, o papel mais importante na pública administração. Ao Sindicato médico está reservada a missão árdua e nobre de velar pelo bem público, zelando pela saúde e felicidade de nossa gente e, na futura Constituinte deverá ter uma representação forte e competente, para que não descuidem as necessidades imediatas do povo brasileiro, a sua saúde e seu bem estar, pois, é sabido que o homem só trabalha bem quando goza de boa saúde, está bem nutrido e é feliz, do contrário o seu trabalho será ineficiente e, o que é ainda pior, o seu sofrimento o fará um revoltado, cujo desespero explodirá em convulsões violentas, ao primeiro aceno de melhores dias, embora tragam em seu bojo a morte e a destruição20.

Era de suma importância, tendo em vista o quadro de epidemias que assolavam a

população, a mortalidade infantil, sem falar nos “venenos sociais” que prejudicavam a raça, que o

papel dos médicos como reformadores sociais, através da aplicação dos princípios da Higiene e

da Eugenia, fosse reconhecido pelo Estado. Permitir aqueles que não possuem os conhecimentos

necessários o direito de tomar decisões influentes diretamente no futuro da nação e de seu povo

resultaria em medidas catastróficas, como aponta Mariante.

Os médicos do Sindicato e da Sociedade de Medicina contavam com o apoio beneplácito

do Estado para permitir aos seus dirigentes criar condições de acesso ao exercício profissional e

intervir em nome da “ética profissional”, bem como legitimar competências especializadas e

delegar certas funções públicas (Pécaut, 1990, p. 54). Além disso, buscavam consolidar sua

autoridade sobre a missão da medicina, o papel do médico na sociedade e a superioridade do

conhecimento científico. Nesse sentindo, as noções de Higiene e Eugenia permitiram articular a

defesa corporativa aos interesses da sociedade em geral, ou seja, a regulamentação da profissão

atenderia muito mais a uma necessidade da população do que aos interesses dos médicos

diplomados. O combate a moléstias como lepra e tuberculose, a proteção à infância através da

puericultura, o combate ao alcoolismo e às toxicomanias, bem como a promoção da saúde

pública e de medidas eugênicas e sanitárias aparecem ligados ao fim da liberdade profissional, que

acabou se tornando uma “questão de patriotismo”.

20 Boletim, 1932, p.7.

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Como vedes, não se trata de um simples problema de higiene preventiva, prisma pela qual vulgarmente são vistas estas questões. Não é apenas a conservação do indivíduo que está em debate: é o crescimento em número e, sobretudo, em qualidade, da população que está em jogo. Em síntese – é a questão de desenvolvimento eugênico da raça que está pedindo atenção. Não basta publicarem-se as regras da puericultura para uma população, na maior parte, de analfabetos, dominados pelo curandeirismo de todos os credos e explorados por charlatães de todas as procedências, sob a tutela dos mais esdrúxulos dogmas filosóficos. Seria pregar no deserto...21

O Sindicato Médico do Rio Grande do Sul, fundado em 1931, foi a forma que os médicos

encontraram para dar vazão às suas reivindicações. Essa instituição, diferente da Sociedade de

Medicina, tinha como papel tratar dos seus interesses morais e materiais, garantindo a

representação da totalidade da classe e atuando como uma espécie de “frente única”,

congregando a “classe” para superar as divergências internas existentes e representando suas

demandas, dando representatividade às suas reivindicações no campo político.

O Sindicato deveria ser o novo porta-voz, promovendo a corporificação de um grupo

que procurava determinar e instituir a definição do que era ser médico e da “classe médica”. Não

só esse processo vai ser responsável pela transformação de um grupo bastante divergente em

uma “classe” com interesses comuns, como vai ser responsável pelo estabelecimento de uma

identidade que diferenciasse os médicos licenciados dos outros profissionais que exerciam as

artes de curar, agora identificados como antagonistas, criando a figura do “charlatão”. Além

disso, vai ser estabelecido um código de deontologia, definindo as responsabilidades dos médicos

e delimitando o campo de ação de outros ofícios da saúde, como odontologia, farmácia,

enfermagem e a função das parteiras.

Com relação à liberdade profissional, apesar dos esforços do Sindicato, a medicina só

consegue se efetivar como profissão regulamentada, como vimos, em 1938. Embora as disputas

entre médicos e licenciados não tenham se extinguido após esse processo, pode-se dizer que

houve uma vitória formal dos primeiros, que garantiram seus interesses, passando a regular o

universo da saúde pública e dos hospitais.

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21 Archivos, 1926, p.10.

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Espaços de saber e poder: instituições e seus agentes na perspectiva da História Social

QUESTÕES TRABALHISTAS NAS EMPRESAS FUNDADORAS DO CINFA (1941-1945)

TATIANE BARTMANN1

Introdução

O presente artigo é composto inicialmente por uma breve revisão historiográfica sobre a

temática da industrialização no Rio Grande do Sul, abordando questões relativas a origem da

indústria a fim de retomar as principais correntes historiográficas que explicam a formação

industrial. Na sequência, é tratado sobre as características de colonização e desenvolvimento

econômico do sul do Brasil, uma vez que, estas questões influenciaram diretamente no processo

industrial. Também são abordados os fatores de industrialização como, por exemplo, as

interligações entre os dois núcleos produtivos do Estado: o pecuarista e o colonial; bem como, a

formação do mercado regional que se dá a partir dessa interligação. Toda essa análise da

historiografia selecionada, busca compreender o papel do imigrante, em especial, o alemão no

processo de industrialização.

Uma vez realizada a revisão historiográfica sobre o processo de industrialização do Rio

Grande do Sul e a participação do imigrante alemão nas diversas etapas desse desenvolvimento, é

possível abordar a formação do empresariado gaúcho e compreender que a cultura germânica

pode ser um aspecto relevante que caracteriza o Centro da Indústria Fabril (Cinfa) criado em

Porto Alegre, em 1930. Este Centro fundado pelos empresários com negócios na capital, reúne

vários nomes de origem germânica, o que permite inferir sobre o conjunto de valores comuns

partilhados por esse grupo de industriais. Se de fato o legado cultural dos alemães está presente

na formação do empresariado gaúcho como a historiografia de viés Weberiano tende a afirmar,

possivelmente o “ethos” germânico influenciaria também as relações de trabalho nas empresas

dessa mesma origem.

Com a intenção de analisar as relações de trabalho nas indústrias de origem germânica, se

faz um levantamento dos dissídios trabalhistas movidos contra as empresas fundadoras do Cinfa.

A categorização desses processos é elaborada a partir do tipo de reclamação denunciada pelo

empregado na 1ª Junta de Conciliação e Julgamento de Porto Alegre (1ª J.C.J.). No ano de 1941

foram criadas duas J.C.J.s, para não impor uma carga excessiva de trabalho os funcionários das

1 Mestranda do Programa de Pós-graduação em História da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, e-mail: [email protected]

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Juntas, as ações de trabalho eram distribuídas igualmente entre ambas. Assim, o número de

dissídios levantados na 1ª J.C.J. é praticamente o mesmo que tramitou na 2ª Junta.

Dessa forma, após percorrer pela historiografia, tratar, ainda que brevemente, sobre a

formação do Centro da Indústria Fabril, parte-se para a análise das relações de trabalho nas

indústrias fundadoras do Cinfa. A partir do levantamento numérico dos dissídios, se aposta em

algumas inferências sobre o estudo, no entanto, a pesquisa encontra-se em processo de

desenvolvimento, por isso, alguns aspectos necessitam de maior aprofundamento interpretativo.

Industrialização e Migração

Nas obras cujo foco é a industrialização Sul-Rio-Grandense, pode-se apreender uma série

de informações que são úteis para analisar a formação industrial, bem como, os agentes atuantes

nesse processo. Diante disso, identificam-se algumas questões fundamentais para a compreensão

do desenvolvimento industrial no Rio Grande do Sul, dentre as quais, não se pode deixar de

discutir a Origem da Indústria, suas características principais, seus fatores importantes como a

formação do mercado regional e a participação imigrante.

Sobre a origem industrial no Sul do Brasil, existem diferentes concepções. A primeira

linha interpretativa defende a ideia da evolução dos estabelecimentos que ocorre de forma linear

desde o artesanato até a indústria. Limeira Tejo (1939) é o autor e pioneiro que desenvolve seu

argumento afirmando que a indústria nasceu de um “crescimento orgânico” dos estabelecimentos

artesanais e compreende a passagem do artesanato para a indústria de forma contínua. Assim,

seguindo a corrente explicativa do liberalismo, ele será criticado pelos autores subsequentes.

Contrariando a compreensão de Tejo, na obra “Desenvolvimento Econômico e Evolução

Urbana: análise da evolução econômica de São Paulo, Blumenau, Porto Alegre, Belo Horizonte e

Recife” Paul Singer (1968) desenvolve outra explicação para a origem da indústria. Nesse caso,

vale atentar que seu foco de pesquisa não é estritamente o Rio Grande do Sul, como se pode

perceber, ele aborda aspectos da industrialização do ponto de vista nacional.

Segundo Paul Singer, a indústria não se desenvolve através do artesanato, pois este último

desaparece quando os proprietários de terras adquirem renda suficiente para importar os

produtos do exterior. Devido à incapacidade de concorrência entre o artesanato e o produto bem

acabado vindo de fora, os estabelecimentos artesanais se extinguem antes mesmo de se

transformarem em indústrias. Sua análise explicativa para a industrialização nacional se

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fundamenta em uma visão capitalista monopolista, assim, a base dos investimentos que permitem

a industrialização é proveniente do exterior, ou seja, está no capital externo a origem industrial.

Em sua concepção de viés marxista a origem industrial estaria ligada ao acúmulo do

capital, compreendendo a indústria de escala nacional, Singer (1968) apoia-se na ideia da

participação do capital estrangeiro. Já, os autores que tratam mais especificamente sobre a

indústria gaúcha, voltam-se a análise à acumulação do capital interno Sul-Rio-Grandense como se

pode perceber na obra de José Hugo Ramos (1969), Ani Maria Schiphorst Haas (1971), Eugênio

Lagemann (1978), Sandra Jatary Pesavento (1985) os quais apostam no capital comercial

acumulado através da formação de um mercado interno, ainda que pequeno, mas importante para

o desenvolvimento fabril. Nesse processo de acumulação, coexistem o artesanato e a indústria, da

mesma forma, artesão e comerciante atuam na formação industrial.

Nesse ponto, os autores criticam a teoria de Singer quando ele fala que o artesanato

desapareceu. Para Ramos nem a estagnação artesanal, nem sua evolução contínua, a origem

industrial corresponde a uma “curva sinuosa que em certos momentos provoca avanços e recuos

ao desenvolvimento industrial” (RAMOS, 1969: 46).

Lagemann, da mesma forma, acredita na função do artesanato na acumulação comercial,

apesar de considerar a acumulação como a grande promotora da industrialização. Ele explica que

“fusões, associações e diversificação na aplicação e origem do capital marcam sua história” e

considera a acumulação de capital promovida pelos comerciantes “o elemento novo” que atua no

“momento do salto qualitativo, o que poderia, por exemplo, significar a passagem do artesanato

para a indústria, ou sendo já indústria, atingir um nível tecnológico mais alto” (LAGEMANN,

1978: 50).

Com esse novo olhar à temática e considerando as diferentes variáveis do

desenvolvimento, Ani Maria Schiphorst Haas (1971) explica que os estabelecimentos industriais

nascem tanto da atuação do artesão quanto do comerciante. O primeiro contribui com a técnica

necessária para os empreendimentos fabris e vai também suprir de mão-de-obra a indústria.

Enquanto, o comerciante, por sua vez, promove a monetarização da sociedade e cresce em

capacidade aquisitiva, sendo assim, o capital acumulado aparece como origem da indústria no Rio

Grande do Sul.

Heloisa Jochims Reichelt, por sua vez, em “A Industrialização no Rio Grande do Sul na

República Velha” (1979) analisa comparativamente o desenvolvimento industrial do Rio Grande

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do Sul ao de São Paulo, para ela, a falta de capital comercial aparece como fator explicativo ao

menor desenvolvimento industrial do Sul. Segundo a autora, tanto o baixo nível de capital

acumulado, quanto sua pequena capacidade de reprodução, demonstra porque a estrutura

industrial gaúcha fica atrás da paulista.

Sandra Jatary Pesavento (1985) vem confirmar a atuação do capital acumulado e

desenvolve de maneira mais específica o surgimento dos estabelecimentos, diferenciando aqueles

que já surgiram como indústria, dos que evoluíram do artesanato. Ela afirma que alguns

comerciantes com grande poder financeiro “aplicou o seu capital na montagem de sua empresa

que já surgiu como indústria propriamente dita”, mas também existem casos onde “a indústria

apareceu como resultado de uma evolução da unidade artesanal” (PESAVENTO, 1985, p. 30).

Ao longo do tempo, esta visão teórica que enfatiza o capital comercial acumulado para

explicar a origem da indústria no Rio Grande do Sul foi frequentemente retomada pelos autores.

Seus estudos também contribuíram para se pensar nas características e nos fatores de

industrialização. Dentre as características situa-se a ideia da divisão do Rio Grande do Sul em

duas zonas distintas de produção, dois “subsistemas” (HERRLEIN, 2000, p. 21).

Conforme Ronaldo Herrlein (2000), o primeiro “subsistema” é marcado pela pecuária

extensiva e o segundo, pela agropecuária colonial. A região pecuarista tem como centro comercial

a cidade de Rio Grande cujo porto escoa a produção que se direciona principalmente para o

mercado nacional brasileiro. A outra zona localiza-se mais ao norte do Estado e forma-se a partir

da chegada de imigrantes europeus os quais recebem pequenos lotes de terras e se destinam ao

cultivo de subsistência.

Os autores em geral consideram a pecuária como a primeira atividade econômica

significativa do estado, mas o estudo historiográfico permite afirmar que as charqueadas

formadas na região pecuarista não atuam de forma decisiva no processo de industrialização, ou

seja, não se constituem em fator importante na formação de estabelecimentos industriais. Por

mais que as charqueadas tenham contribuído promovendo a urbanização, a abertura de caminhos

comerciais e fornecendo matéria prima para a indústria situada nessa região, a atuação do

subsistema pecuarista no processo de industrialização é secundária, pois quem promove as

interligações comerciais e possui capital suficiente para novos investimentos são os comerciantes.

Pode-se pensar, então, que existem estabelecimentos organizados em torno das cidades

de Rio Grande e Pelotas como, por exemplo, a indústria têxtil Rheingantz e a fábrica de velas e

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sabões de Lang, mas, o que permite a inversão econômica para a indústria e a construção desses

estabelecimentos é a atuação do comerciante na acumulação do capital e não daquele antigo

charqueador enriquecido, mas estagnado.

Também é possível perceber a origem germânica no nome de diversas empresas como a

Rheingantz e Lang, por exemplo. Assim, denota-se que aquele comerciante que possui papel

destacado no desenvolvimento industrial, é também o imigrante alemão. Se aparecem nomes

estrangeiros de indústrias situadas em torno de Rio Grande e Pelotas, na região de colonização

alemã mais intensa, ou seja, no norte do estado, a lista de nomes de empresários alemães cresce

consideravelmente como veremos na seqüência. Sabe-se que esse segundo subsistema da

agropecuária colonial também vai se industrializar, mas obedecendo outra dinâmica devido ao

distinto formato de povoamento da região.

As características de ocupação da zona colonial remetem a maior distribuição de terras em

pequenos lotes para os imigrantes, fato que contribui também para a maior diversificação da

produção agrícola. A industrialização, por sua vez, irá acompanhar a tendência da diversificação e

as empresas se estabelecem em maior número, porém, em menor dimensão se comparadas às

indústrias em torno do subsistema pecuarista (HERRLEIN, 2000, p. 88).

Considerando, então, estas questões referentes à colonização, é importante afirmar que o

crescimento industrial na zona agropecuária colonial ocorre também em diferentes níveis.

Existem agrupamentos urbanos bem situados que crescem e é o berço de algumas grandes

empresas, ao passo que, existem outros núcleos comerciais os quais possuem apenas abrangência

local.

Pesavento (1985) aborda a atuação das relações comerciais em diferentes categorias. Ela

considera os comerciantes do interior, mais isolados dos estímulos do mercado e confere maior

capacidade cumulativa aos comerciantes intermediários. Como exemplo, a autora cita São

Sebastião do Caí, “colônia central que gozava de uma excepcional posição, atendendo o

abastecimento tanto da zona propriamente alemã quanto da italiana” onde se formavam grupos

empresariais como: “Renner, Trein, Ritter, Mantz, Oderich” (PESAVENTO, 1985, p. 29).

Muitas das empresas citadas acima são de origem germânica e nasceram em Caí, mas

posteriormente, se estabeleceram em torno de Porto Alegre que se tornou o maior porto de

escoamento dos produtos diversificados. Herrlein explica que “Porto Alegre, devido à sua função

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de principal pólo comercial do Estado” reuniu “as pré-condições para o desenvolvimento de um

parque industrial mais diversificado” (HERRLEIN, 2000, p. 84).

O autor também destaca a interligação entre os dois subsistemas. Esta interligação ocorre

no período republicano quando é colocada em prática uma série de medidas que definem os

contornos fronteiriços a oeste do Estado (Montevidéo, Bagé, Livramento, Uruguaiana) por onde

entravam produtos contrabandeados. Assim, fechando esta porta de entrada ilegal, acontece a

ampliação do mercado interno regional e o aumento da produção nas zonas industrializadas cujos

núcleos urbanos são: Porto Alegre, Rio Grande e Pelotas.

Dessa forma, interpretando as ideias de Herrlein, a interligação entre os dois subsistemas

através da ampliação do mercado regional funciona como fator de industrialização. Mas, como já

foi anteriormente referido, o agente promotor da interligação é o comerciante, o qual, como se

pode inferir a partir dos nomes empresarias é, na sua maioria, de origem germânica.

Sendo assim, compreendendo a origem industrial, as características desse processo e os

fatores que contribuiram para o desenvolvimento de um mercado interno no Rio Grande do Sul,

pode-se afirmar que o imigrante estrangeiro, principalmente o alemão, atuou ativamente como

agente da industrialização.

Desde a corrente explicativa desenvolvida por Limeira Tejo (1939) a qual compreende a

industrialização a partir da evolução do artesanato, o imigrante é o antigo artesão. Assim, segundo

o autor o “neto do ferreiro, do tecelão, do sapateiro, do marceneiro, (...) o neto desses imigrantes

é que nossa era veio surpreender em sua quase generalidade como chefe de indústria” (TEJO,

1939, p. 19).

Por outro lado, o “pequeno artesão” ou “artesão rural” é o imigrante que posteriormente

irá constituir a mão-de-obra nas indústrias. Segundo Haas (1971), o pequeno artesão se destaca

por possuir a técnica necessária para suprir a mão-de-obra mais qualificada nos futuros

estabelecimentos industriais.

Os autores também analisam a participação do comerciante imigrante que abre caminhos

e acumula o capital necessário para novos investimentos, nesse sentido, Lagemann (1978)

desenvolve a ideia da atuação do imigrante no momento do “salto qualitativo”, ou seja, na

passagem do artesanato para a indústria. Enquanto Pesavento (1985) demonstra através do

conceito “burguês imigrante”, a possibilidade deste, trazer a técnica e o capital prontos da sua

terra de origem, a Alemanha.

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Contudo, apesar das diferentes concepções sobre a origem da indústria, em todas elas, o

imigrante possui atuação. A historiografia aponta para diversas atividades promovidas pelo

imigrante que se relacionam diretamente com o processo de industrialização.

A formação do Centro da Indústria Fabril

Quando se trabalha a industrialização no Rio Grande do Sul, muito se trata da imigração,

em especial a alemã. Industrialização não é sinônimo de imigração, mas são temáticas que se

aproximam na historiografia. Acredita-se que o papel desempenhado pelo imigrante alemão é

muito relevante, sua atuação se destaca não apenas como fator importante na formação

industrial, como foi demonstrado acima, mas também na criação do grupo empresarial gaúcho.

Nesse sentido, observa-se que a formação do Centro da Indústria Fabril (Cinfa) em Porto

Alegre se dá pela união de vários empresários que são de origem germânica. Em sete de

novembro de 1930 é criado o Cinfa, neste contexto outros Estados como o Rio de Janeiro,

pioneiro na organização da classe empresarial, e São Paulo estão formando os grupos

empresariais que estabelecem o diálogo político com o Estado. Conforme Ana Monteiro Costa

(2010) “o processo associativo da burguesia industrial do centro do país deu-se mais

prematuramente do que o gaúcho”.

Ângela de Castro Gomes (1979) analisando a formação da elite empresarial do centro do

país nos anos 1910 e 1920, aborda a questão do “treinamento de uma liderança empresarial” que

acontece com a tomada de “consciência da necessidade de coesão”, segundo a autora: “(...) À

consciência da necessidade de coesão para uma eficaz atuação junto ao Estado e face ao

movimento operário, associa-se um verdadeiro processo de treinamento de uma liderança

empresarial.” (GOMES, 1979, p. 124).

A compreensão de que é necessário uma organização associativa que discuta os interesses

do empresariado frente às leis sociais que estão sendo implementadas, nasce um pouco mais tarde

no Rio Grande do Sul. Esse fato se reflete em algumas divergências de opiniões e rivalidades com

o empresariado já estruturado do centro do país no que tange sobre a temática das leis

trabalhistas e da Justiça do Trabalho2.

2 “(...) Enquanto aquela já buscava atuar junto ao governo central, procurando diminuir ao máximo possível suas desvantagens na questão social, que passaria a ser regulamentada pelo Estado, aqui havia uma negação dessa regulamentação por parte do PRR, garantindo, in loco, a negociação entre capital e trabalho”. Sobre isso ver: COSTA, Ana Monteiro. A Gênese do Empresário Gaúcho: uma interpretação a partir dos modelos de matriz institucional e de construção mental de Douglass North. 2010. 186 f. Tese (Doutorado em Economia) – Faculdade de Ciências Econômicas. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2010.

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As características da formação industrial de cada região interferem na composição

associativa da classe empresarial dos diferentes Estados, não existe um modelo único para

explicar essas organizações do empresariado. A indústria gaúcha por contar com a forte

participação do imigrante alemão congrega no Cinfa um grupo de industriais de maioria

germânica.

Assim, Ana Monteiro Costa (2010) analisando a gênese do empresário gaúcho, explica

que a germanidade é um vetor que impulsiona o desenvolvimento capitalista no Rio Grande do

Sul. Através de um viés Weberiano a autora trabalha “o legado cultural germânico” sendo

formado “por duas instituições informais: a ética protestante e a superação da condição adversa

de vida” justificando, dessa forma, porque a formação do empresário gaúcho ocorre entre os

imigrantes alemães e não a partir da elite charqueadora3.

Ana Costa enumera os “vetores principais, que originam instituições formais e informais,

que servem de estímulo ao aparecimento do empresariado no estado”, assim, segundo o esquema

proposto pela autora, tem-se: “ i) o legado cultural germânico; ii) a dominação do capital e a

disciplina do trabalho; iii) a aliança com o Estado e; iv) a constituição da classe empresarial”

(COSTA, 2010, p. 159).

Com isso, concorda-se que é muito coerente levar em consideração o legado cultural

germânico ao analisar a formação do grupo empresarial no Rio Grande do Sul. No entanto,

acredita-se que o conjunto de valores comuns partilhados entre os empresários alemães tenha

menos relevância na constituição empresarial, ou seja, explicar o êxito da elite empresarial gaúcha

priorizando o legado cultural germânico não parece ajudar na compreensão prática do Cinfa, por

exemplo.

Acredita-se que a teoria Weberiana contribui bastante para problematizar as questões

relativas à formação empresarial no Sul do país. Mesmo assim, o argumento que se elabora, ainda

permanece muito enquadrado a ideia de empreendedorismo que caracteriza a personalidade do

“imigrante pioneiro”.

Na pesquisa desenvolvida por Andrius Estevam Noronha “Beneméritos Empresários:

História Social de uma Elite de Origem Imigrante do Sul do Brasil (Santa Cruz do Sul, 1905-

1966)” ele trata sobre a relação entre industrialização e imigração enquanto analisa a formação da

elite empresarial local de Santa Cruz do Sul. Através da metodologia prosopográfica, o autor

3 Estas questões foram brevemente analisadas na primeira parte do trabalho, para mais detalhes, ver: PESAVENTO, Sandra Jatahy. RS: agropecuária colonial e industrialização. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1983.

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desenvolve uma abordagem econômica, política e religiosa do seu grupo empresarial. A elite

delimitada por Andrius Noronha é posteriormente categorizada seguindo sua orientação religiosa

distribuida entre: Evangélicos e Católicos.

A partir dessa classificação inicial, Andrius Noronha analisa a atuação da elite empresarial

local em relação ao empreendedorismo, a atuação política, o nível de escolaridade, localidade de

nascimento, situação como acionista de capital aberto, e outras várias características dessa elite.

Por fim, ele chega ao resultado que muito espantaria os autores que tendem a explicar a

industrialização Sul-Rio-Grandense carregando demais nos aspectos da germanidade

empreendedora. Noronha conclui que a homogeneidade étnica germânica não explica o sucesso

da elite empresarial, pois existem outros fatores que demonstram maior relevância.

Seguindo uma perspectiva que se aproxima às ideias desenvolvidas por Noronha, é

possível afirmar que o Cinfa é formado por industriais que trazem consigo o ideal empreendedor,

mas não é a germanidade do empresário que faz com que ele progrida no ramo dos negócios. Ser

alemão, compartilhar costumes e valores comuns transforma-se em mais um elemento de coesão

entre os industriais que formam o Cinfa, mas não é o legado germânico o primeiro responsável

pelo nascimento empresarial.

Nesse sentido, o sociólogo Norbert Elias ajuda a problematizar as questões referentes à

germanidade entre os empresários gaúchos. Elias trabalha o conceito “ethos da burguesia

Guilhermina” que está presente em sua obra “Os Alemães”. Segundo este intelectual há uma

rígida disciplina e rigor moral nas relações entre patrão e trabalhador germânicos que resulta da

origem aburguesada e militarista das políticas de Guilherme II da Alemanha.

Elias refere-se às relações de trabalho, no momento inicial da industrialização,

caracterizando-as por um forte rigor disciplinar que era compartilhado entre pratões e

empregados. O autor compreende essas relações de trabalho nas empresas de origem germânica

sendo permeadas por um espírito de severidade e disciplina próprio dos Alemães, um povo que

tem o objetivo de tornar-se forte tanto militar como economicamente.

O “ethos da burguesia Guilhermina” está presente, segundo Norbert Elias, nas Relações

Trabalhistas das empresas alemãs ou de origem germânica, onde o chefe industrial segue

princípios disciplinares muito semelhantes de seus empregados por compartilharem de uma

mesma cultura. Nesse sentido, será possível falar em “ethos Guilhermino” no contexto do Brasil?

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Buscando responder a problemática lançada, serão analisados e categorizados os

processos trabalhistas movidos contra as empresas fundadoras do Cinfa. A partir dos dissídios

selecionados será possível demonstrar as reclamações mais frequentes entre os trabalhadores e

inferir sobre as relações entre o patrão e empregado no interior das indústrias as quais, na sua

grande maioria, são de origem germânica.

Relações de trabalho nas indústrias fundadoras do CINFA

Primeiramente, antes de tratar sobre as relações de trabalho, é importante explicitar os

critérios seguidos para a definição do conceito de “indústria”. Nesse sentido, são adotados os

mesmos critérios de associação ao Cinfa. Para tornar-se sócio efetivo do Centro, as empresas

serão avaliadas conforme o número de trabalhadores. Cito:

Art. 6º - Para ser sócio do Centro é necessário ter boa reputação e legalmente exercer a indústria fabril no Estado do Rio Grande do Sul, com estabelecimento em que normalmente trabalhem pelo menos em um só turno, vinte e cinco (25) operários. (Ata nº 3 de Reunião Conjunta do Centro da Indústria Fabril do Rio Grande do Sul).

Sendo assim, entende-se como Indústria, as empresas fundadoras do Cinfa4, pois estas,

além de seguirem os critérios estabelecidos pelo Centro, ainda tiveram a consciência de classe

para unir-se. A partir dessa definição inicial, serão analisadas as ações trabalhistas movidas contra

as indústrias gaúchas fundadoras desse Centro empresarial.

Os processos trabalhistas movidos contra as empresas fundadoras do Cinfa totalizam 151

dissídios que tramitaram na 1ª J.C.J., desde o ano de 1941 (ano de instalação da 1ª e 2ª J.C.J. em

Porto Alegre) até o fim do Estado Novo em 1945. O primeiro questionamento à documentação

refere-se às reclamações analisando a freqüência e natureza das mesmas, dessa forma, é possível

ter um quadro geral dos tipos de reclamações para, a partir de então, buscar compreender as

possíveis peculiaridades nas relações de trabalho nas empresas de origem germânica.

Para isso, foi elaborado um sistema de categorização temática que parte da natureza da

reclamação feita pelo empregado, mas considera também o vínculo do trabalhador com o

estabelecimento reclamado no momento em que este dá início a ação. São quatro as categorias

4 Empresas fundadoras do Cinfa: A.J. Renner e Cia; Frederico Casper e Cia; Oscar Campani e Cia (Moveleiro); Kluwe Müller e Cia; Barcellos Bertaso e Cia; Nedel Jung Hermann e Cia; Hugo Gerdau; Alberto Jung (Calçadista); Ernesto Neugebauer; Walter Gerdau; Wallig; Otto Brutschke; J. R. da Fonseca e Cia; Herbert Bier; Cia de Vidros Sul-Brasileira; Sociedade da Banha Sul-Rio-Grandense Ltda; Cia Fiação e Tecidos Porto Alegrense; Kessler, Vasconcellos e Cia; Tannhauser e Cia Ltda; Cia Souza Cruz (fábrica); H. Stanley Smith; Oscar Teichmann e Cia; Bopp, Sassen e Ritter e Cia; Cia Geral de Indústrias; F. C. Kessler e Cia; Fábrica Berta (Alberto Bins); Fábrica Rio Guahyba; Sociedade Industria e Comércio Ltda.

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elaboradas a partir da leitura e análise da documentação: “Despedidas e Demissões”; “Suspensão

disciplinar”; “Rebaixamento de Salário”; “Condições de Trabalho”.

As reclamações mais comuns entre os processos são aquelas de “Despedidas e

Demissões”. O número de dissídios presentes nesta categoria é 66, sendo 56 o número de casos

onde o empregado foi despedido e 10 as situações onde o reclamante entrou com pedido de

demissão. Isso representa aproximadamente 37% de reclamações sobre despedida e 6,5% de

pedidos de demissão. Quando o funcionário é despedido, na maioria dos casos, requer

indenização por tempo de serviço, aviso prévio ou reintegração ao cargo que possuía. Já o

documento feito como pedido de demissão, em um dos casos, a ex-empregada acusa a empresa

por perseguição, fato que, segundo ela, a obriga fazer o pedido. Mas nos outros, a demissão

aparece por conveniência do próprio indivíduo.

A categoria “Despedidas e Demissões” refere-se, então, aos trabalhadores que não mais

compõem o quadro de funcionários da indústria requerida. Portanto, as reclamações que

preenchem esta categoria são de empregados que foram realmente demitidos ou que se

consideram como tal, visto que, a empresa não oferece serviço ao reclamante. Para exemplificar

esse último, existem algumas reclamações onde o empregado deixa claro que não foi

formalmente despedido, mas faz alguns meses que ele se apresenta ao estabelecimento que fora

contratado e recebe a informação de que não possui serviço a executar, considera-se então,

desempregado e, portanto, inclui-se na categoria sobre despedidas e demissões.

A categoria denominada genericamente “Suspensão Disciplinar” refere-se às reclamações

dos empregados que de alguma forma sofreram penalidades. A partir da categorização elaborada

com os processos trabalhistas, pode-se observar que se soma em 27 o número de dissídios

reclamando suspensão, descontos salariais ou rebaixamento de categoria como forma punitiva

disciplinar. Correspondem aproximadamente a 18% do volume documental selecionado para esta

pesquisa.

Dessa forma, pode-se pensar no rigor disciplinar existente nas indústrias que punem com

a suspensão o empregado faltoso, o não pontual, ou aquele que desrespeita a hierarquia. O

desconto salarial se dá quando existe erro na execução do trabalho por parte do operário, já o

rebaixamento de categoria ocorre quando o empregado infringiu alguma regra de boa conduta

que caracteriza o ato de insubordinação. Assim, o empregado inicia a ação porque se sente

injustiçado.

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“Condições de Trabalho” é o nome dado ao conjunto de processos cuja reclamação é

sobre pedido de férias, material de melhor qualidade, salário moléstia e salário mínimo. Soma-se o

número de 31 dissídios que correspondem a 20,5% do todo documental. Estes processos

apontam às condições de trabalho no interior das indústrias, isso ocorre quando o empregado

fala que é obrigado a trabalhar em pé, mas poderia fazer o mesmo serviço sentado. Outras vezes,

aparece o problema da insalubridade, quando o reclamado conta que não tem um lugar limpo

para guardar seu lanche, por isso carrega consigo na área de trabalho.

É importante esclarecer que a reivindicação de salário mínimo não foi agrupada na

seguinte categoria referente a salários, pois não se trata de um rebaixamento salarial. Acontece, às

vezes, que o reclamante, menor de idade, passou a ser maior e por isso requer o salário

compatível com sua atuação na empresa. Interpreta-se, então, que esse pedido salarial refere-se a

uma condição de trabalho e não ao rebaixamento do mesmo. Existem também, nessa categoria,

algumas reclamações com relação ao rebaixamento de função, ou transferência de seção, no

entanto, nestes casos não existe nenhuma indicação, no decorrer do processo, que essas

transferências acontecem de forma punitiva para impor ordem, portanto, estes casos foram

categorizados no grupo referente a condições de trabalho e não na categoria “suspensão

disciplinar”.

Por fim, na categoria “Rebaixamento de Salário” o reclamante reivindica a diminuição

salarial que na maioria das vezes está associada à falta de serviço. O empregado ainda está

trabalhando na empresa, mas não está satisfeito com a situação financeira. O grupo de dissídios

corresponde ao número de 27 reclamações, ou seja, aproximadamente 18% do universo

documental analisado reclamam questões referentes ao salário.

Com isso, o número de dissídios trabalhistas é uma demonstração de que as relações de

trabalho nas empresas de origem germânica se caracterizam pelo conflito. Conforme o conceito

sobre o “ethos da burguesia Guilhermina”, os atritos entre patrão e operário seriam minimizados

pelos valores comuns partilhados entre empregado e empregador. No entanto, a quantidade de

reclamações realizadas no ano inaugural da 1ª J.C.J. é um forte indício de que existem, nessas

empresas, relações trabalhistas muito parecidas com as de outros Estados, em outras palavras,

relações de trabalho marcadas pelo conflito de classes5.

Nesse sentido, analisando as relações de trabalho nas empresas fundadoras do Cinfa a

partir do levantamento das reclamações contidas nos processos trabalhistas movidos contra essas

5 Sobre o assunto, ver: WOOD, Ellen Meiksins. Democracia contra Capitalismo. São Paulo: Boitempo, 2003.

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empresas, percebe-se que o número de reclamações é relevante. No âmbito dessa pesquisa, são

avaliados apenas os processos que tramitaram na 1ª JCJ sendo que, no ano de 1941, foram criadas

duas J.C.J.s em Porto Alegre e ambas possuem praticamente os mesmo números processuais

tramitando no período de 1941 até 1945.

É possível afirmar também que a qualidade das reclamações, ou seja, o tipo de reclamação

não demonstra nenhum indício de que as relações de trabalho nas indústrias de origem germânica

sejam diferentes das empresas cujos donos possuam outra descendência étnica. Sendo assim, o

legado cultural germânico, provavelmente, tenha terreno fértil em empresas alemãs onde

empregados e empregadores partilham de uma mesma cultura, mas o que se percebe no Rio

Grande do Sul, nas indústrias de origem germânica são relações de trabalho conflituosas como

em qualquer outra indústria.

O conflito existente dentro do setor fabril, muitas vezes, é motivado pela própria

diversidade étnica. É difícil reconhecer através da documentação os trabalhadores descendentes

de alemães, pois, mesmo sendo loiro de olhos azuis, nascendo no Brasil, é registrado como

brasileiro. Apesar disso, é possível verificar que existe diversidade étnica dentro das indústrias

analisadas. Há casos trabalhistas, os quais compõem as categorias apresentadas, que resultam

claramente da divergência de opiniões influenciadas pelo contexto da II Guerra Mundial. As

disparidades étnicas podem ser reconhecidas a partir daqueles que se posicionam contra ou a

favor da Alemanha, por exemplo. Essas relações conflituosas são fruto do contexto conturbado

dos trabalhadores e merecem ser exploradas.

A análise qualitativa dos processos trabalhistas está em desenvolvimento e os resultados

da presente pesquisa ainda são bastante incipientes. Questões relativas a lutas de classes e a

diversidade étnica que marcam o conflito empregado e empregador, serão desenvolvidas e

abordadas em trabalhos futuros, pois nesse momento da pesquisa estou iniciando a etapa

interpretativa da documentação. As inferências que a etapa de categorização das ações trabalhistas

me permitiram elaborar são superficiais diante da riqueza da documentação que estou

investigando. Ainda assim, acredito ter contribuído com a problematização da temática sobre as

relações de trabalho nas indústrias do Rio Grande do Sul.

Referências

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Espaços de saber e poder: instituições e seus agentes na perspectiva da História Social

A FUNÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO RIO GRANDE DO SUL, SEU ACERVO E O ACESSO À INFORMAÇÃO

LUCIANA BAGGIO BORTOLOTTO

VANESSA BERWANGER SANDRI1

Introdução

O presente artigo vem apresentar, brevemente, o trabalho realizado na gestão dos

documentos produzidos e recebidos pelo Ministério Público do Rio Grande do Sul (MPRS), no

cumprimento de suas funções, dando ênfase aos Procedimentos Investigatórios, que são

conjuntos documentais que contextualizam um fato desde sua notícia até seu desfecho final. Tais

procedimentos estão armazenados, com exclusividade, nos arquivos do Ministério Público do RS,

quando não ajuizados.

Conforme o art. 3º da Lei nº 8.159/1991, que dispõe sobre a política nacional de

arquivos públicos e privados e dá outras providências:

Considera-se gestão de documentos o conjunto de procedimentos e operações técnicas referentes à sua produção, tramitação, uso, avaliação e arquivamento em fase corrente e intermediária, visando a sua eliminação ou recolhimento para guarda permanente.

O acesso às informações é um dos principais objetivos da Gestão Documental, por isso

também é abordada aqui a Lei de Acesso à Informação de 2011 e as providências tomadas para

sua adequação no Ministério Público do RS.

O Acervo do Ministério Público

De acordo com a Constituição Federal de 1988, “o Ministério Público é instituição

essencial à função jurisdicional do Estado incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime

democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”.

Essa atuação se materializa, além dos resultados práticos alcançados na vida das pessoas,

nos documentos produzidos pelos Órgão/Setores do Ministério Público. Dentre esses

documentos, vamos destacar as manifestações em Processos Judiciais e em Inquéritos Policiais e

os Procedimentos Investigatórios.

1 Arquivistas do Ministério Público do Rio Grande do Sul. E-mail: [email protected] , [email protected]

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As manifestações em Processos Judiciais e Inquéritos, armazenadas no Ministério

Público, correspondem a segundas vias, arquivadas individualmente, sem contextualização,

muitas vezes com pouca informação, principalmente as peças mais antigas, não fazendo

referência a qual processo pertencem e/ou não sendo possível identificar o assunto, ou qual a

parte envolvida (acusado, vítima, interessado). As primeiras vias encontram-se incluídas nos

Processos e Inquéritos arquivados no Poder Judiciário, integrando o todo e dentro do contexto

da ação ou investigação correspondente, dando mais subsídios e sentido para a pesquisa histórica.

Os Procedimentos Investigatórios, com o advento da Lei da Ação Civil Pública, ganham

forma e, com a Constituição de 1988, se ampliam e fortalecem, consolidando o papel do MP na

sociedade atual.

Lei 7.347/85 – Disciplina a ação civil pública de responsabilidade por danos causados ao meio-ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico (VETADO) e dá outras providências ... Art. 5o Têm legitimidade para propor a ação principal e a ação cautelar: I - o Ministério Público; ... § 1º O Ministério Público, se não intervier no processo como parte, atuará obrigatoriamente como fiscal da lei.

Quando esses Procedimentos são resolvidos extrajudicialmente, a primeira e única via fica

armazenada no arquivo do Ministério Público e tem nos seus originais um conjunto documental

completo que contextualiza os fatos, desde a notícia até seu encerramento, porém, quando são

ajuizados, passam a integrar o Processo Judicial e já não fazem mais parte do nosso arquivo.

Os Procedimentos Investigatórios correspondem aos tipos documentais Inquéritos Civis

(IC), Peça de Informação (PI), Procedimento Administrativo (PA) e Sindicância (SD), regrados

no Provimento nº 26/2008, do MPRS.

Art. 1º O inquérito civil, de natureza inquisitorial e facultativa, será instaurado para apurar fato que possa autorizar a tutela dos interesses ou direitos a cargo do Ministério Público, nos termos da legislação aplicável, servindo como preparação para o exercício das atribuições inerentes às suas funções institucionais. Parágrafo único. Na defesa dos interesses ou direitos previstos na Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990, e na Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003, o Órgão de Execução poderá instaurar procedimentos administrativos, quando se tratar de direito individual indisponível, e sindicâncias, quando forem apuradas infrações às normas de proteção das referidas áreas, aplicando-se, no que couber, as disposições deste Provimento. ... Art. 10 O Órgão de Execução, de posse de informações que possam autorizar a tutela dos interesses ou direitos mencionados no art. 1º deste Provimento, poderá, a seu critério e antes de instaurar o inquérito civil, complementá-las, visando apurar elementos para identificação dos investigados ou do objeto, observando-se, no que couber, o disposto no Capítulo anterior. (Peça de Informação)

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I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul

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Esses documentos vêm sendo classificados, desde a implantação da Política de Gestão

Documental, em 2000. Além do tipo documental e da data de arquivamento, por área, ou seja,

considerando a função a partir da qual foram produzidos. As áreas de atuação do Ministério

Público estão brevemente descritas como segue:

Matéria Criminal: inspeção dos estabelecimentos penais e prisionais; fiscalização

das condições de trabalho interno e externo, verificando o cumprimento dos deveres,

direitos e disciplina dos presos; promoção ou acompanhamento dos pedidos de

concessão de auxílio-reclusão; controle externo da atividade policial civil e militar,

acompanhamento de atos investigatórios junto a organismos policiais ou

administrativos, investigação de fatos relacionados ao crime organizado,

macrocriminalidade econômica, crime contra a ordem tributária, crimes licitatórios

ou crimes revelados ou relacionados às suas próprias investigações, quando o fato

ímprobo investigado seja também tipificado como infração penal, além de outras

hipóteses. Em matéria de Execuções Criminais: proteção dos interesses difusos e

coletivos relativos ao preso, ao internado e ao egresso; fiscalização e correição junto

às casas prisionais jurisdicionadas.

Matéria Cível: proteção da pessoa dos incapazes e da administração de seus bens;

interdição nos casos estabelecidos na lei civil, ou defesa do interditando, quando for

promovida por outrem, exigindo prestação de contas quando houver interesse de

incapazes ou ausentes; inspeção de estabelecimentos onde se achem recolhidos

interditos, idosos e portadores de deficiência, promovendo as medidas reclamadas

pelos seus interesses; ajuizamento de ação civil pública quando as condições do

ambiente de trabalho estejam em desconformidade com as normas legais

prevencionistas.

Matéria de Infância e Juventude: proteção dos interesses individuais, difusos

ou coletivos relativos à criança e ao adolescente; atuação nos casos de evasão escolar

de criança ou adolescente do ensino fundamental; e investigação extrajudicial em ato

infracional.

Matéria de Defesa do Consumidor: promoção da defesa dos direitos e

interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos dos consumidores.

Matéria de Defesa do Patrimônio Público: proteção do patrimônio público,

em especial para tutela da matéria relativa à improbidade administrativa.

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Matéria de Urbanismo e Habitação: proteção dos bens e direitos de valor

artístico, estético, histórico, turístico, paisagístico e de interesses correlatos; proteção

da ordem urbanística, microssistema do Estatuto da Cidade, regularização fundiária e

proteção ao direito constitucional de moradia.

Matéria de Meio Ambiente: proteção do meio ambiente e reparação dos danos

causados.

Matéria de Direitos Humanos: promoção da tutela dos direitos e interesses das

pessoas portadoras de deficiência; atuação nas causas em que houver interesse de

incapazes, em matéria de saúde pública, em matéria dos direitos dos idosos e em

quaisquer outras circunstâncias de violação de direitos humanos.

Matéria de Inconstitucionalidade: fiscalização e controle da constitucionalidade

de leis.

Autoridades com Foro Privilegiado: investigação de crimes cometidos por

autoridades que tem prerrogativa de foro privilegiado.

Matéria de Fundações: fiscalização e inspeção de fundações.

Em 2009, foi feito um projeto piloto, visando aprimorar a classificação dos

Procedimentos Investigatórios produzidos nas Promotorias de Justiça de todo o Estado. A partir

de então, foi possível identificar quatro grupos distintos de motivos de arquivamento inseridos na

promoção de arquivamento, sendo eles:

A – NÃO ATRIBUIÇÃO OU DUPLICIDADE pela atuação não ser de

competência do Ministério Público Estadual; atribuição ser de outro agente

ministerial ou existir outro procedimento investigatório, da mesma situação fática, já

tramitando ou concluído.

B – INEXISTÊNCIA DE FUNDAMENTO PARA MEDIDA

EXTRAJUDICIAL OU PROPOSITURA DE AÇÃO JUDICIAL por

Reclamação/notícia infundada; ocorrência de esgotamento das diligências sem

obtenção de resultado; não localização da pessoa e/ou óbito; extinção por alguma

causa legal, prescrição em abstrato da punibilidade do fato delituoso ou; perda do

objeto.

C – SOLUÇÃO DO PROBLEMA E/ OU RECOMENDAÇÃO

D – FIRMATURA DE TERMO DE AJUSTAMENTO DE CONDUTA - TAC

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I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul

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A partir de então, estamos aperfeiçoando a classificação dos Procedimentos

Investigatórios, que se encontram no Arquivo Geral, através dos motivos de arquivamento acima

descritos e fazendo também a completude dos seus dados – descrição analítica – no sistema

corporativo e no Banco de Dados do Arquivo Geral, onde estão sendo incluídos, além do

Critério de Arquivamento, a Série (Área), a Matéria (Assunto) e as Partes.

No arquivo do Ministério Público existem documentos do período em que o Ministério

Público integrava a Procuradoria-Geral do Estado, juntamente com a Defensoria Pública. Por

isso, alguns documentos constantes em nosso acervo refletem a função de Defensor Público,

exercida, muitas vezes, pelo Ministério Público até 1979.

Também estão armazenados no Arquivo do Ministério Público documentos de cunho

administrativo, produzidos basicamente a partir das funções:

Organização e Funcionamento: função que diz respeito à organização interna

da Instituição (planejamento administrativo e apoio jurídico) como os documentos

de Eleições e Posse da Administração, Deliberações Colegiadas, Gestão Estratégica,

Prestação de Contas Institucional, Normatização das Atividades, Acordos/ Ajustes/

Convênios/ Contratos, Assessoria em Matéria Administrativa, Atos Oficiais.

Representação Institucional/Divulgação das Ações Institucionais: função

que diz respeito à relação com a sociedade e à divulgação das ações ministeriais, tanto

externa como internamente, e também à prestação de informações oficiais como

documentos de Participação ou Realização de Eventos/Campanhas/Políticas

Públicas, Representação em Tribunais e Órgãos Colegiados; Divulgação das Ações

Ministeriais, Realização do Prêmio Jornalismo, Recebimento/Prestação de

Informações Institucionais.

Gestão Financeira/Orçamentária: documentos do Controle Orçamentário;

Compras/Pagamento de Bens – Compra, Licitação, Empenho, Pagamento;

Pagamento de Serviços.

Gestão de Bens e Suprimentos: documentos de Material de Consumo/

Infraestrutura, Bens Imóveis, Bens Móveis.

Gestão de Serviços: documentos que dizem respeito aos serviços em geral,

incluindo o controle da execução dos contratos e a gestão de serviços; Gráfica,

Resíduos Sólidos, Segurança Institucional, Transportes.

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I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul

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Gestão da Informação: documentos que dizem respeito à política de informação

da Instituição, produzida e recebida pelo MP no exercício de suas funções,

independente do suporte em que esteja registrada. Inclui documentos sobre

Informação, Recursos Tecnológicos e Resgate da Memória.

Gestão de Recursos Humanos: documentos de Registros e Pagamento de

pessoal.

Acompanhamento/Fiscalização da Atuação dos Membros: inclui

documentos de Inspeção, Conflito de atribuição, Suspeição, Residência Fora da

Comarca, Declaração de Promotorias de Justiça de Difícil Provimento, Vacância de

Cargo.

O Arquivo Geral do Ministério Público, em Porto Alegre, contém basicamente:

6.000 caixas de Procedimentos Investigatórios produzidos nas Promotorias de

Justiça de 1983 a 2012.

1.500 caixas de Procedimento Investigatório de Procuradorias de Justiça

(Procuradoria Fundações – desde 1943); (Procuradoria de Prefeitos – Procuradoria

de Probidade Administrativa – desde 1991); (Subprocuradoria-Geral de Justiça para

Assuntos Jurídicos – Assessoria Jurídica do Procurador-Geral de Justiça - desde

1981).

9.000 caixas de Documentos Administrativos, a partir de 1902 – inclui aqui os

Documentos da Procuradoria-Geral do Estado (Documentos Administrativos:

ofícios, fonogramas, atestados, certidões, portarias; Acompanhamento/ Fiscalização

das atividades dos Promotores: dossiês, relatório de atividades).

Providências no Ministério Público do Rio Grande do Sul quanto à Lei de Acesso à

Informação

A Lei nº 12.527/2011, Lei de Acesso à Informação (LAI), surge como consequência do

comprometimento internacional de nosso país no combate à corrupção e na consolidação do

acesso à informação pública como um direito fundamental. Também tem o papel de servir à

sociedade civil como um importante instrumento de controle social das atividades da

administração pública, com o escopo de prevenir e combater a malversação de verba pública, os

desvios de finalidade, e outros atos de corrupção.

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I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul

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De acordo com o disposto na lei, os procedimentos previstos devem ser executados

conforme os princípios básicos da administração pública (legalidade, publicidade, moralidade,

impessoalidade, eficiência) e com as diretrizes de publicidade como regra geral e sigilo como

exceção. As informações de interesse público devem ser divulgadas, independente de solicitações,

através dos meio que a tecnologia da informação pode viabilizar. Deve haver o fomento à cultura

da transparência na administração pública e o desenvolvimento do controle social da

administração pública. A informação (ostensiva, sigilosa e pessoal) deve ser protegida e garantida

sua disponibilidade, autenticidade, integridade e eventual restrição de acesso.

A LAI define o direito de obter a orientação sobre procedimentos para obtenção de

acesso, e sobre o local onde poderá ser encontrada a informação solicitada; a informação contida

em registros ou documentos, produzidos ou acumulados por órgãos ou entidades, recolhidos ou

não a arquivos públicos; a informação produzida ou custodiada por pessoa física ou entidade

privada decorrente de qualquer vínculo com seus órgãos ou entidades, ainda que esse vínculo já

não exista; a informação primária, íntegra, autêntica e atualizada; a informação sobre atividades

exercidas pelos órgãos e entidades, inclusive relativas à sua política, organização e serviços; a

informação pertinente à administração do patrimônio público, utilização de recursos públicos,

licitação e contratos administrativos; a informação sobre programas, projetos e ações dos órgãos,

bem como metas e indicadores propostos; e a informação sobre inspeções, auditorias, prestações

e tomadas de contas realizadas pelos órgãos de controle interno e externo, inclusive de exercícios

anteriores.

Os órgãos públicos têm por dever primordial garantir aos cidadãos o que chamamos de

transparência ativa, ou seja, garantir, independentemente de requerimentos, a divulgação em

local de fácil acesso de informações de interesse coletivo ou geral, na sua esfera de competência.

Os dados devem ser divulgados nos sítios oficiais da rede mundial de computadores (internet).

O acesso às informações deve ser assegurado mediante a criação de um serviço que

atenda e oriente o público quanto ao acesso sobre informações, sobre a tramitação de

documentos nas unidades administrativas e que protocole documentos, e requerimentos de

acesso a informações.

As informações podem ser solicitadas por qualquer pessoa, sendo necessária apenas a

identificação do requerente e a especificação da informação requerida, sem que possa ser exigida

justificativa de tal solicitação, e o fornecimento deve ser imediato ou num prazo de 20 dias. Em

caso de negativa, o solicitante deve ser informado da possibilidade de recurso.

A Lei de Acesso traz alterações significativas em relação à diminuição dos prazos de

restrição de acesso, sendo que apenas o prazo de sigilo de informação classificada como

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ultrassecreta pode ser prorrogado. Os prazos máximos de restrição de acesso à informação são 25

(vinte e cinco) anos para a ultrassecreta, 15 (quinze) anos para a secreta e 5 (cinco) anos para a

reservada, sendo que as Informações Pessoais terão restrição de acesso por no máximo 100 (cem)

anos.

Para atender a todas as exigências da LAI, o Ministério Público fez uma série de

adequações de legislação e estruturais, tomando providencias como a criação do Serviço de

Informações e Atendimento ao Cidadão (SIAC) e inclusão do SIAC na página da internet, com o

Formulário de Solicitação de Informações e a Consulta Processual. Em relação à legislação

interna, foram elaboradas as seguintes normativas:

Provimento 33/2012 – Regula o acesso a informações previsto na Lei 12.527, de

18 de novembro de 2011, no âmbito do Ministério Público do Estado do Rio

Grande do Sul.

Ordem de Serviço 04/2012 – Dá diretrizes e instruções a respeito do SERVIÇO

DE INFORMAÇÕES E ATENDIMENTO AO CIDADÃO DO MINISTÉRIO

PÚBLICO – SIAC –, que consiste na disponibilização independente de solicitação,

ou no fornecimento de informações requeridas.

Instrução Normativa 01/2012 – Dispõe sobre o valor das reproduções de

documentos no âmbito do Ministério Público para atender às solicitações do público

externo.

Ordem de Serviço 04/2013 – Estabelece diretrizes e instruções a respeito da

classificação e do tratamento das informações com restrição de acesso, e dá outras

providências.

A partir de então foi elaborado um curso para todos os membros e servidores para

informar sobre a Lei de Acesso à Informação e capacitar para a atuação ministerial e aplicação no

Ministério Público.

Conclusão

O Ministério Público do RS iniciou a implantação da Política de Gestão Documental em

2000 e desde então vem aprimorando as técnicas de classificação e descrição dos documentos,

bem como revendo sua destinação. Os Procedimentos Investigatórios, documentos exclusivos do

Ministério Público, estão recebendo detalhamento no seu tratamento, sendo possível a consulta,

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daqueles já trabalhados, por Área (Série), Matéria (Assunto), Tipo Documental, Motivo de

Arquivamento, Datas e Partes e os Documentos administrativos estão classificados considerando

a função a partir da qual foram produzidos.

O Ministério Público do Rio Grande do Sul também está trabalhando na adequação da

Lei de Acesso à Informação às suas atividades, através da elaboração de instrumentos que

garantam sua aplicação e treinando seus membros e servidores a fim de garantir, como preconiza

a lei, as diretrizes de publicidade como regra geral e sigilo como exceção.

Referências

ARQUIVO NACIONAL, Dicionário brasileiro de terminologia arquivística. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2005. p. 100. Publicações Técnicas nº 51. BRASIL. Constituição Federal, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso em: jun. 2013. BRASIL. Lei 7.347 de 24 de julho de 1985 – Disciplina a ação civil pública de responsabilidade por danos causados ao meio-ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L7347orig.htm>. Acesso em: jun. 2013. BRASIL. Lei 12.527 de 18 de novembro de 2011 – Regula o acesso a informações previsto no inciso XXXIII do art. 5o, no inciso II do § 3o do art. 37 e no § 2o do art. 216 da Constituição Federal; altera a Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990; revoga a Lei no 11.111, de 05 de maio de 2005, e dispositivos da Lei no 8.159, de 8 de janeiro de 1991, e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2011/Lei/L12527 .htm>. Acesso em: jun. 2013. RIO GRANDE DO SUL, Ministério Público. Provimento nº 26/2008 – Disciplina o inquérito civil e o procedimento preparatório, incluindo a regulação do compromisso de ajustamento e da recomendação no âmbito do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul. (Redação alterada pelo Provimento nº 101/2012). Disponível em: <http://www.mp.rs.gov.br/l egislacao/id3880.htm>. Acesso em: jun. 2013. RIO GRANDE DO SUL, Ministério Público. Provimento nº 12/2000 – Dispõe sobre as Promotorias de Justiça e as atribuições dos cargos de Promotores de Justiça, de Entrâncias Inicial, Intermediária e Final, e dá outras providências. Disponível em: <http://www.mprs.mp.br/legislacao/id1274.htm>. Acesso em: jun. 2013.

Page 134: I Encontro de História Ministério Público Do RS

Espaços de saber e poder: instituições e seus agentes na perspectiva da História Social

AÇÕES DE SAÚDE PÚBLICA EM SANTA MARIA-RS COMO UM PROCESSO DE FORMAÇÃO DE PODER

DAIANE SILVEIRA ROSSI1

No Brasil, a Saúde Pública surge enquanto ramo de ação institucional em meados do

século XIX, quando começam os debates sobre o papel do governo junto ao processo de

melhoramento sanitário das cidades e do país. Entretanto, essas ações eram mais visíveis nos

meios urbanos, através da modificação dos espaços, por meio de medidas higiênicas nas ruas, por

exemplo. Porém, neste contexto, havia muitos problemas no que diz respeito ao socorro dos

males da população, sobretudo, quando era acometida por doenças. As epidemias se alastravam

pelas cidades, muitas vezes, por falta de preparo das autoridades responsáveis pela saúde da

população.

A partir dessa perspectiva da Saúde Pública enquanto campo de atuação do Estado

perante a sociedade sendo, dessa maneira, um campo político, busca-se compreender o que as

ações dessa instituição governamental implicaram em termos urbanísticos, higiênicos e de

prevenção na sociedade santa-mariense do início do século XX. O tema que será abordado com

maior profundidade na dissertação de mestrado, a qual está em fase inicial de pesquisas. Para este

artigo optou-se por fazer um recorte que aborde apenas o estudo sobre como se deu o processo

de formação do poder público enquanto atuante na área de saúde.

No início da década de 1910, Santa Maria passou por uma epidemia de peste bubônica,

causando mais de 20 mortes em menos de dois meses. Essa doença, em razão do despreparo das

autoridades em termos de saúde e prevenção, obrigou a intendência municipal a adotar medidas

urgentes no que diz respeito aos cuidados com a população.

Dessa forma, objetiva-se compreender, a partir desta reflexão, em que medida as ações

públicas da intendência refletiram em um processo de formação do espaço de poder do governo

no campo da saúde em Santa Maria. Com efeito, a partir das medidas adotadas após a epidemia

de Peste Bubônica, começou-se a discutir entre o poder público e os médicos, a respeito da

elaboração de um projeto de saneamento para a cidade.

Contexto sanitário de Santa Maria na virada dos séculos XIX e XX: a efetivação das ações

públicas em torno da saúde e higiene

1 Mestranda no Programa de Pós-Graduação em História – UFSM, sob orientação da Profª. Drª. Beatriz Teixeira Weber. Bolsista CAPES. E-mail: [email protected]

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Buscando compreender como se estruturaram as políticas de intervenção da Intendência

relacionadas à saúde e higiene em Santa Maria no início do século XX, vê-se a necessidade de

apontar algumas ações nesse sentido que ocorreram ainda no século XIX. Afinal, entendem-se as

ações de saúde pública como resultado de um longo processo de medidas em torno de questões

higiênicas, urbanísticas e ambientais.

Quando analisada a documentação referente à segunda metade do século XIX, são

recorrentes menções às medidas higiênicas. Como meio de regular a saúde e higiene da

população, tem-se como exemplo o Código de Posturas da Câmara Municipal da Vila de Santa

Maria da Boca do Monte, promulgado em 1874. No seu Capítulo Primeiro “Aceio, salubridade e

segurança pública”, aponta as normas e condutas referentes às condições sanitárias das ruas e dos

espaços privados, prevendo multas a quem descumprisse as regras. Por exemplo, no seu artigo

13:

São obrigados todos os moradores da vila e povoações que se criarem, a se conservar limpas as testadas das casas e terrenos que lhes pertençam, até o meio da rua. O infrator pagará multa de 5$000 e nas reincidências 10$000.2

Nas determinações do Código de Posturas, percebe-se uma relação muito estreita entre o

que é público e o privado, pois regrava tanto as ações da população dentro de suas residências,

quanto nas ruas que a cercavam, além de estabelecer responsabilidades dos órgãos públicos. Tem-

se como exemplo, o artigo 14 “Os donos de quintal ou pátios, são obrigados a tê-los limpos e

asseados, e a dar passagem às águas dos vizinhos para a rua, quando eles não possam diretamente

encaminhá-las”. Também determinava que “ficava sob responsabilidade da Câmara designar um

local apropriado para o depósito das sujeiras, lixo e águas servidas3”.

Num âmbito mais global, outro dado relevante sobre a situação sanitária está relacionado

à mortalidade infantil. Historiadores apontam que a rarefação de certas epidemias justifica-se por

várias medidas de proteção contra o contágio. Essas se davam através do progresso na

administração das cidades, aperfeiçoamento das técnicas agrícolas, controle do desequilíbrio

demográfico, mas, sobretudo, devem-se às melhorias das condições de higiene e à universalização

da educação. Além disso, merece destaque a diminuição da taxa de mortalidade infantil,

“enquanto esta permanece muito alta – as crianças são mais vulneráveis que os adultos às ínfimas

condições de higiene – o equilíbrio demográfico só pode ser garantido por uma alta taxa de

2 Código de Posturas da Câmara Municipal da Vila de Santa Maria da Boca do Monte – Coleção Leis e resoluções, Tomo XXVII, 1874. 3 Legislação do Rio Grande do Sul, 1874, apud WEBER; QUEVEDO, 2001.

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natalidade” (ADAM; HERZLICH, 2001, p. 21). Nesse sentido, pode-se compreender melhor o

contexto santa-mariense em relação às taxas de mortalidade infantil do final do século XIX,

conforme aponta a tabela.

Estatística de mortalidade da cidade de Santa Maria – 1º distrito (1899)4

Desta tabela podem-se extrair dados relevantes para compreendermos o contexto do final

do século XIX em Santa Maria. Primeiro apontamento que se faz é sobre quem coletou os dados,

o Delegado de Higiene da cidade, Dr. Astrogildo César de Azevedo. Destaca-se que 55,1% das

mortes ocorriam ainda quando crianças, sendo que destes, 54,3% ocorriam nos seis primeiros

meses de idade. A partir disto, concluímos o que os historiadores Philippe Adam e Claudine

Herzlich já haviam apontado, sobre a maior suscetibilidade das crianças em relação às condições

de higiene. Para resolver esse problema, o Diretor de Higiene aponta várias medidas, pois,

cruzando a tabela com o relatório redigido pelo mesmo médico, percebe-se que sua principal

preocupação era solucionar os problemas da salubridade e mortalidade da cidade. Acreditava

então que, por consequência, as doenças seriam controladas e afastadas do local e os índices de

natalidade aumentariam.

No início do século XX, era comum entre os Diretores de Higiene do Estado justificar os

altos índices de mortalidade pela falta de medidas higiênicas adequadas e pelo aumento

considerável da população. Explicavam que o coeficiente diminuiria quando ocorressem algumas

modificações anunciadas pelo governo, como “o desenvolvimento do serviço de esgotos, a

remodelação de algumas áreas da cidade, a demolição de velhos ‘pardieiros’, substituição de

prédios urbanos por outros mais ventilados, mais ‘higiênicos’”5. Embora essas ações de controle

dos ambientes não fossem efetivadas de imediato, ainda assim, percebeu-se a adoção de algumas

profilaxias urbanas que ajudaram na diminuição gradual do coeficiente de óbitos e no controle

4 Fonte: Relatório da Diretoria de Higiene - Correspondências expedidas da Intendência Municipal 1893-1930, maço

359, caixa 193 – AHRS. 5 Diretor de Higiene do Estado, 1916, apud WEBER, 1999, p. 62.

0 a 15 dias

De 15 dias a 6 meses

De 6 meses

a 2 anos

De 2 anos a

12 anos

12 a 25

anos

25 a 40

anos

40 a 55

anos

55 a 70 anos

70 a 80

anos

80 a 90

anos

90 a 100 anos

Total:

H M H M H M H M H M H M H M H M H M H M H M H M

14 2 14 14 19 9 7 2 5 7 12 6 7 - 7 5 7 6 2 1 - 1 94 53

Total de óbitos crianças (0 a 12 anos): 81

Total de óbitos de jovens e adultos (12 a 55 anos):

37

Total de óbitos idosos (55 a 100 anos): 29

Total de óbitos em 1899: 147

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das principais epidemias que assolaram o Estado no período. Tem-se como exemplo: a varíola

em 1905, o tifo em 1909 e a peste bubônica em 1912.

Como se pode perceber, o cenário do início do século XX não se modificou muito, se

comparado à segunda metade do século XIX. Mesmo que os intendentes e os médicos

percebessem as fragilidades no que diz respeito às condições insalubres em que se encontrava a

cidade, as medidas para evitar epidemias ainda ficavam restritas ao isolamento e desinfecção dos

locais onde a doença se manifestava. Em 1904, por exemplo, quando houve uma ameaça de surto

de peste bubônica, foram distribuídos raticidas à população para exterminar os ratos da cidade. Já

em 1912, foi regularizada “a construção de reservatórios sanitários, construídos dentro de

algumas propriedades particulares e, em período determinado, o material era retirado através de

uma bomba de sucção e levado ao local adequado” (WEBER; QUEVEDO, 2001, p. 60).

Nesse contexto, reformas urbanísticas estavam sendo efetuadas na cidade, como o

calçamento das vias e iluminação pública e então era preciso que, pelo menos aparentemente, as

ruas passassem uma impressão salubre. Porém, isso ficou muito mais restrito à aparência do que

na efetivação de políticas e de fiscalização. A despreocupação era tanta que, em 1911, mesmo

com ameaça da peste, foi dispensado o Inspetor de Higiene e foi fechada a Inspetoria, por

alegação do bom estado de saúde da cidade. Coincidência ou não, em 1912 houve o maior surto

de peste bubônica da cidade, causando, aproximadamente, 20 óbitos em menos de dois meses

(PRESTES, 2010). A partir desse descaso e do pânico geral causado pelas mortes, a Intendência

tomou medidas recorrentes relacionadas à saúde pública de Santa Maria, como a inspeção dos

locais infectados, isolamento dos doentes, entre outras. Posteriormente, no ano seguinte,

começaram as negociações para a implementação de um projeto sanitário na cidade, sendo esta

ação tratada por Rossi (2012) com a principal profilaxia urbana do período.

Uma epidemia nesse contexto foi resultado de um processo de crescimento desordenado

da cidade que iniciou com a instalação da ferrovia e todos os fatores, já mencionados, que

giravam em torno dela. A “expansão das ruas sem calçamento e sem redes de esgoto, entrada e

saída de produtos sem um significativo controle, além do aumento do contingente urbano,

proporcionou também a instalação de germes, micróbios e bactérias” (PRESTES, 2010, p. 20). A

própria peste chegou à Santa Maria através de um carregamento de farinha, saído do porto da

Argentina e transportado pela ferrovia, que continha ratos infectados e foi descarregado na

padaria Aliança, local da primeira morte pela doença (MORALES, 2008).

Ainda sobre a ideia de profilaxia urbana, destaca-se que durante o período epidêmico da

peste bubônica, as medidas adotadas foram à construção de um lazareto, onde seriam tratados os

doentes, além de uma ala específica no hospital da cidade. Foram também distribuídos materiais

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para a desinfecção e isolamento dos locais nos quais ocorreram casos de contaminação. Além

disso, ficou determinado que praças da Brigada Militar fariam o policiamento dos ambientes

infectados, a fim de não deixar ninguém se aproximar. Em casos de residências particulares, a

fiscalização era para que não entrassem nem saíssem até que fosse dizimada a doença6.

No trabalho final de graduação defendido em 2012, trabalhou-se com a hipótese de que, a

partir da peste bubônica, as ações em torno da saúde pública se tornaram mais efetivas. Justifica-

se isso porque, analisando a documentação referente ao Diretor de Higiene do período, Dr.

Astrogildo de Azevedo, no ano seguinte ao término da epidemia, 1913, já se percebeu menções à

elaboração de um projeto de saneamento para a cidade, alegando ser uma medida necessária para

o controle e contra a propagação de doenças no local. Azevedo articulou contatos com o

engenheiro sanitarista Saturnino de Brito, sendo que essa parceria tornou-se mais efetiva a partir

de 1916, quando Astrogildo assume a Intendência de Santa Maria, tendo como principal objetivo

de governo a implantação do saneamento para a cidade. Em 1918, Saturnino de Brito foi Santa

Maria, onde elaborou uma planta da cidade e determinou por quais ruas o sistema de esgoto

passará. O projeto inicial de Saturnino e Astrogildo privilegiava a zona central do município,

sendo que este não era o local onde havia mais moradores. Dessa forma, abre-se brecha para

refletir se o projeto teria mesmo um objetivo sanitário, de controle da propagação de doenças; ou

se seria apenas por questões urbanísticas que ele foi planejado, ou seja, sanear o centro para dar

um ar mais moderno à cidade.

Considerações Finais

Ao longo do final do século XIX e início do XX, foi possível perceber algumas ações do

poder público visando à higiene e à saúde de Santa Maria. Sob a perspectiva de saúde pública

conforme Dorothy Porter, a qual atribuirá à Saúde Pública a questão da medicalização da

sociedade, afirmando que a saúde só se tornaria pública quando houvesse uma negociação entre

os saberes médicos, a administração pública e os interesses particulares, propiciando, dessa

forma, que se configurem sistemas de saúde pública. (PORTER, 1994; 2001). Compreende-se

que, embora não houvesse, até fins do século XIX, uma política pública de saúde regulamentada,

já se notava ações coletivas objetivando prevenir doenças e interferir nos ambientes, como, por

exemplo, o isolamento dos doentes, utilizado para proteger os saudáveis.

Outro ponto em destaque é a questão sanitária como um meio de modernizar a cidade

através de um controle da população e dos espaços. Analisando as estratégias urbanísticas dos

6 Diário do Interior, agosto de 1912, apud PRESTES, 2010.

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administradores, de apenas elaborar um plano para coleta dos dejetos e do abastecimento de água

para as ruas mais centrais, percebe-se que, além da preocupação com a saúde da população, a

grande questão era dar a cidade um aspecto salubre, especialmente nas áreas de maior circulação,

limitando-se ao centro. Em nome de uma cidade limpa e saudável, era permitido agir com

elementos coercitivos para quem descumprisse o Código de Posturas do município, pois,

conforme discurso do médico Azevedo, os problemas de saúde em Santa Maria davam-se devido

aos maus hábitos de seus habitantes. Nesse ponto, retoma-se a ideologia positivista, a qual

pretendia uma sociedade saudável e com maiores liberdades profissionais. Dessa forma, com base

neste pensamento, e amparados pela Constituição de 1891, os intendentes municipais eram livres

para intervir a fim de manter a cidade salubre e longe de doenças.

Dessa forma, acredita-se na hipótese de que a elaboração do projeto de saneamento foi

também uma questão urbanística, mas, sobretudo, seria o primeiro ato efetivo do poder público

em torno da saúde. Tendo em vista que essa ação perpassou pelo aumento da consciência pública

sobre a responsabilidade do Estado pela saúde e higiene. Por isto, agiram de forma a intervir no

ambiente a fim de combater uma epidemia, como foi o caso da peste bubônica, efetivando, dessa

maneira, a primeira ação de saúde pública na cidade.

Referências

ADAM, Philippe. HERZLICH, Claudine. Sociologia da doença e da medicina. Bauru: EDUSC, 2001. FLORES, Ana Paula Marquesine. Descanse em paz: testamentos e cemitérios extramuros na Santa Maria de 1850 a 1900. Porto Alegre: PUCRS, 2006. Dissertação (Mestrado em História). HOCHMAN, Gilberto. A era do saneamento: as bases da política de Saúde pública no Brasil. São Paulo: HUCITEC/ANPOCS, 1998. MORALES, Neida Ceccim (org.). Santa Maria memória (1848-2008). Santa Maria: Palloti, 2008. PRESTES, Flávia dos Santos. A peste em Santa Maria: a cidade sitiada (1912-1924). Santa Maria: UNIFRA, 2010. Trabalho Final (Graduação em História). PORTER, Dorothy. (ed.) The History of the Public Health and the Modern State. Atlanta: Rodopi, 1994. ______. Public Health. In: BYNUM, W.F and PORTER, Roy (eds). Companion Enciclopedia of the History of Medicine. Vol 1. London and New York: Routledge, 2001, p.1231-1261. ROSSI, Daiane Silveira. Uma profilaxia urbana: o projeto de saneamento de Santa Maria/RS no início do século XX. Santa Maria: UNIFRA, 2012. Trabalho Final (Graduação em História).

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VIGARELLO, Georges. História das práticas de saúde: a saúde e a doença desde a Idade Média. Lisboa: Editorial Notícias, 2001. WEBER, Beatriz Teixeira. As artes de curar: Medicina, Religião, Magia e Positivismo na República Rio-Grandense – 1889/1928. Santa Maria/Bauru: UFSM/EDUSC, 1999. ______; QUEVEDO, Éverton Reis. Santa Maria e a Medicina na passagem do século. In: Revista Sociais e Humanas, Santa Maria, v. 14, n. 01, 2001, p. 73-85. WITTER, Nikelen Acosta. Dizem que foi feitiço: as práticas de cura no sul do Brasil (1845 a 1880). Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001. ______. Apontamentos para uma História da Doença no Rio Grande do Sul (séculos XVIII e XIX). História em Revista. Pelotas, dez. 2005, v. 11, p. 1-29. ______. Males e epidemias: sofredores, governantes e curadores no sul do Brasil (Rio Grande do Sul, século XIX). Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2007. Tese (Doutorado em História).

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Espaços de saber e poder: instituições e seus agentes na perspectiva da História Social

POSTO DE HIGIENE X MORADORES DE CAXIAS: RESISTÊNCIAS E REAÇÕES AO REGULAMENTO DO DEPARTAMENTO ESTADUAL DE SAÚDE DO RIO

GRANDE DO SUL

CRISTIANO ENRIQUE DE BRUM1

Dando o impulso inicial à chamada Reforma de 1938, o Departamento Estadual de Saúde

(DES), recém-inaugurado e sob os comandos do médico José Bonifácio Paranhos da Costa, criou

o Regulamento do Departamento Estadual de Saúde, que procurava, em mais de 600 artigos,

organizar os serviços de saúde do Rio Grande do Sul e controlar, pela via da higiene, todas as

esferas da vida social.

Bonifácio Costa, o principal responsável pela aplicação do regulamento, devido ao

contexto em que chegou ao estado, ficou conhecido como o “Interventor da Saúde” (Serres,

2007; Brum, 2013). Tratava-se de um médico gaúcho, radicado no Rio de Janeiro, que trouxe ao

estado as diretrizes do Departamento Nacional de Saúde, procurando aplicar um modelo

centralizador nos moldes daquele em andamento no Rio de Janeiro.

Porém, a Reforma da Saúde Pública de 1938, bem como a aceitação de seu Regulamento,

não se deu sem conflitos no Rio Grande do Sul. Assim, em algumas cidades do estado, surgiram

resistências e reações às exigências sanitárias do DES, que procurava padronizar um sistema

distrital de saúde e controle sanitário.

Para dar conhecimento público do Regulamento da Saúde Estadual, após sua aprovação

por decreto, o DES, por meio dos funcionários de suas unidades sanitárias, fez publicar em

jornais trechos e artigos completos do Regulamento, dando conhecimento de seu conteúdo à

parcela da população. Além disso, em 1939, a publicação integral do Regulamento pela Livraria

do Globo2 também foi realizada, permitindo acesso total ao texto da reforma.

Entrentanto, o Regulamento em alguns pontos começou a causar desconforto nos

comerciantes e profissionais de várias categorias, os quais, reunidos em associações, em pouco

tempo começaram a enfrentar o Departamento de Saúde. Tais conflitos noticiados na imprensa

colocaram frente a frente membros das comunidades e as autoridades sanitárias. Esses conflitos e

as preocupações com exigências do Regulamento da saúde aparecem evidentemente na imprensa

do interior e da capital.

Em Porto Alegre, por exemplo, o Sindicato dos Barbeiros, em busca da defesa dos

interesses da classe, acabou se reunindo com o Interventor, conforme evidenciado no jornal

1 Mestre em História – Unisinos. E-mail: [email protected] 2 RIO GRANDE DO SUL. Secretaria de Educação e Saúde Pública. Departamento Estadual de Saúde. Regulamento do Departamento Estadual de Saúde do Estado do Rio Grande do Sul a que se refere o decreto nº 7.481 de 14 de setembro de 1938 . Porto Alegre: Globo, 1939.

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Correio do Povo: “Uma commissão do Syndicato dos Barbeiros esteve, hontem no Palacio do

Governo, a fim de tratar com o interventor federal de interesse da classe, tendo sido feita uma

exposição sobre as actuais exigências do D.E.S.”3.

Não tivemos acesso ao conteúdo da pauta, mas, possivelmente, os líderes dos barbeiros

estavam preocupados com os artigos 223 e 242 do Regulamento que exigiam a existência, nas

barbearias e nos cabeleireiros, de lavatórios de mármore, aparelhos para esterilização, toalhas de

uso individual, lavagem de roupas e toalhas em lavanderias, entre outras especificações comuns a

outros negócios. Nesse caso, o Interventor Cordeiro de Farias “prometteu à comissão estudar o

assumpto para uma solução conciliatoria”4.

Na cidade de Caxias, quem se reuniu, por sua vez, para deliberar sobre as exigências do

DES foi a Associação de Proprietários de Imóveis, em setembro de 1940, conforme coluna no

jornal local.5 Não ficou claro que ponto específico do Regulamento seria discutido ou quais

seriam as ações tomadas pela associação. Acreditamos, porém, que essa classe profissional foi a

mais atingida pelas requisições do Regulamento do DES, de modo que lhe diziam respeito, além

de todos os artigos referentes à construção de habitações, os que diziam respeito a moradias

coletivas, e, também, todas as exigências do “habite-se” (artigo 232) e outras disposições de

polícia sanitária. Dessa maneira, além do componente econômico, o Regulamento da Saúde

representava, para esses profissionais do campo imobiliário, tempo em que seus imóveis estariam

inabitados, sendo fiscalizados e preparados para habitação.

Em correspondência enviada ao presidente Getúlio Vargas, o cidadão Valzumiro Dutra

descreve a situação de penúria de diversos serviços no Rio Grande do Sul. No documento, o

denunciando descreve sua opinião sobre os acontecimentos em evidência nos jornais: “O

Departamento de Saúde, sem o menor senso de realidade, está oprimindo classes inteiras,

determinando as crises que a imprensa tem noticiado”6. Luciano Aronne de Abreu (2007)

também utiliza em seu estudo esse documento, porém relaciona “a crise noticiada pela imprensa”

com a situação de penúria da Santa Casa e outros hospitais (Abreu, 2007, p. 265). Discordamos

do autor, acreditando que a citada crise se relaciona na verdade com o Regulamento que “oprimia

as classes” exigindo cumprimento do Regulamento.

Em Caxias, os conflitos se prolongaram por semanas, colocando moradores agremiados

em associações contra o posto de higiene, o órgão sanitário da cidade. Um jornal local chegou a

estampar, em dado momento, uma reportagem com o seguinte título: “Associação dos

3 Interesses de barbeiros. Correio do Povo, Porto Alegre, 9 mar. 1940, p. 4. 4 Idem. 5 Caxias Social. A Época, Caxias do Sul, 3 set. 1940. Não paginado. 6 DUTRA, Valzumiro. [Carta]. 7 jan. 1940. Porto Alegre, [para] Getúlio Vargas, p. 2. Localização: Fundação Getúlio Vargas. Arquivo Getúlio Vargas - Vol. XXXIII/7. GV c 1940.01.07. Microfilmagem: rolo 6 fot. 0479.

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Comerciantes X Posto de Higiene”7. Os comerciantes, agremiados na “Associação dos

Comerciantes”, pelo seu Departamento de Varejistas, ou seja, aqueles que vendiam mercadorias

em pequenas quantidades, não atendendo por atacado, procuraram o posto de higiene local na

tentativa de negociar o cumprimento das exigências do estado de acordo com a realidade local. O

debate se estendeu por semanas, exigindo atenção, além das autoridades locais, do diretor geral

do Departamento Estadual de Saúde, o médico Bonifácio Costa, e do Interventor Cordeiro de

Farias. O jornal local, A Época, descreve a preocupação dos sócios que se reuniram para discutir

ações a serem tomadas:

A Associação dos Comerciantes, à qual é anexo o Departamento dos Varegistas tem estado, nestes ultimos dias, em intensa atividade, estudando a questão das determinações feitas aos seus associados pelo Posto de Higiene désta cidade.8

Nessas reuniões e assembleias a associação produziu um memorial votado pelos sócios.

Esse memorial era um documento, uma espécie de petição, que colocava em tópicos a situação

dos comerciantes varejistas e quais as exigências do posto de higiene de Caxias, baseadas no

Regulamento do DES. Esse documento foi enviado ao Diretor Geral do DES, Bonifácio Costa.

O memorial, enviado a 14 de julho de 1939, iniciava apontando a situação do comércio

varejista caxiense:

Os comerciantes varejistas, são pequenos comerciantes que exploram o ramo de armazem que, nesta região, se constitue de um mixto de casas de especialidades e quitanda, tudo em escala reduzida. Ha também, outro tipo de armazém: – Um mixto de casa comercial (fazendas e miudezas) e secos e molhados (generos alimenticios). Ambas estas modalidades de armazém se assemelham num ponto que já frizamos: – O comercio em pequena escala, decorrente da inversão de pequenos capitais. Alem desses comerciantes varejistas propriamente ditos, existem, ainda, a eles equiparados, açougues, botequins e mercadinhos. [...] Em resumo: – O comercio varejista de Caxias, com raras exceções, se compõe de pequenos comerciantes, modestamente instalados e de pequena economia.9

A situação exposta permite algumas considerações antes de prosseguirmos. (1) Essa

condição relatada, de casas comerciais com usos mistos, correspondendo a diversas modalidades,

parecia ser uma estratégia dos comerciantes a fim de diversificar seus lucros. Esse tipo de

estabelecimento possivelmente não se limitava apenas à cidade de Caxias, podendo se estender

por toda região colonial italiana, ou por todo o interior do estado. (2) Percebe-se que essas

reclamações que chegam à imprensa, de diferentes classes profissionais e em diferentes cidades,

7 Associação dos Comerciantes X Posto de Higiene. Nesta cidade o Dr. Bonifácio Costa. O Momento, Caxias do Sul, 7 ago. 1939, p. 1. 8 Os comerciantes varejistas pela voz dos seus representantes. A Época, Caxias do Sul, 16 jul. 1939, p. 1. 9 A Íntegra do Memorial da Associação dos Comerciantes de Caxias. A Época, Caxias do Sul, 16 jul. 1939, p. 1.

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sempre têm um fundo econômico. Na cidade de Caxias, porém, os conflitos parecem ter sido

mais intensos, devido talvez ao tipo de arquitetura que se desenvolveu na cidade. Os tradicionais

casarões comerciais de madeira e outros chalés menores, muitas vezes comportavam negócios na

parte da frente e moradia na parte de trás ou nos níveis superiores.

Esses prédios de madeira e de uso misto precisariam de diversas alterações para se

adequarem aos artigos do Regulamento da saúde pública estadual, e, em alguns casos, uma

reconstrução completa. Dessa maneira, apontavam os comerciantes que “as exigências impostas

não encontravam correspondência com a realidade local”10.

Visitemos agora as exigências do posto de higiene de Caxias:

Este Posto pretende a aplicação sistemática e inflexível do Regulamento do Departamento Estadual de Saúde, em prazos exíguos. Exige em 30 dias: A) – Para o comerciante varejista propriamente dito: – Revestir o piso do salão com material uniforme, liso e resistente [...]; revestir, até dois metros de altura, as paredes com material uniforme (zinco), quando em casa de madeira; azulejos, em casa de alvenaria; construir balcões de material impermeável de modo a não proporcionar esconderijo de animais; proteger em armários envidraçados todos os gêneros alimentícios [...]; instalações especiais, para lavagem de louças [...]; camaras frigorificas [...]. B) – Para açougues – Revestimento uniformes, lisos e impermeáveis; portas e grades de ferro; pias de lavagem com ligação sifonada para as rêdes de esgoto [...]; balcões de ferro pintados a esmalte branco e com tampa de mármore; camaras frigorificas [...]. É proibido nos açougues o uso do cepo e do machadinho e ainda outras . C) – Para botequins e mercadinhos: – As mesmas exigencias da letra “A” com algumas modificações.11

Para os varejistas, “[...] Essas exigências, em sendo legais, não encontram correspondencia

com a realidade local. Não se cogita, aqui, da aplicabilidade destas medidas no terreno da higiene

e, sim, na sua viabilidade prática e econômica”12.

Após apontar inúmeras dificuldades e empecilhos para a realização das obras, os

comerciantes declaram que: “[...] o comercio varejista de Caxias atenderá as exigências da Higiene

dentro de um prazo que a possibilite executa-las, com exceção dos pisos de cimento e do

revestimento das paredes que, como foi dito, são impraticáveis”13.

O médico Túlio Rapone, chefe do posto de higiene da cidade, a maior autoridade de

saúde local, medindo os prós e contras, apontava defendendo o regulamento:

[...] Realmente, o Posto de Saúde baixou intimações a diversos proprietarios de casas a varejo, concedendo-lhes o prazo de 30 dias, sob pena de multa [...]. Este prazo, julgado curto, foi dado, todavia, após um aviso prévio e verbal aos interessados, do que deveriam fazer cada um para estarem de acordo com as novas disposições sanitárias.

10 Os comerciantes..., op. cit., p. 1. 11 A Íntegra..., op. cit., p. 1. 12 Idem. 13 Idem.

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Assim, é que, varias pequenas casas de comércio a varejo, mercadinhos e quitandas, não mais poderão funcionar, si não tomarem medidas radicais. A impermeabilização dos assoalhos terá que ser feita de qualquer maneira. É uma medida lógica, que se impõe de imediato, porque a madeira não oferece a garantia suficiente para a sua utilização. Devo salientar que essa particularidade, como todas as demais, figuram no Regulamento do Departamento Estadual de Saude.14

A fim de reforçar os pedidos do memorial, um telegrama foi enviado ao Interventor

Cordeiro de Farias, resumindo a situação e comunicando o contato realizado a Bonifácio Costa.15

De modo a evitar maiores conflitos e apaziguar os ânimos, o Diretor Geral do Departamento de

Saúde decidiu comparecer à cidade para interceder na situação.

Dessa maneira, chegou Bonifácio Costa no dia 5 de agosto de 1939 na cidade para uma

reunião com os envolvidos na sede da Associação dos Comerciantes. Segundo jornal local “a

reunião ocorreu num alto espirito da cordialidade, [...] tendo chegado felizmente, a um resultado

conciliatorio”16. Bonifácio declarou à imprensa que a solução procurou harmonizar interesses,

vindo “ao encontro direto dos interesses individuais e da saude publica”17. Segundo apontam os

representantes daquela classe profissional envolvidos na reunião,

“O dr. Bonifacio Paranhos da Costa, soube com admirável precisão, atender o comercio varejista désta cidade, sem sacrificar as salutares disposições do regulamento do Departamento Estadual de Saúde. S. s. deixou ao dr. Tulio Rapone, a tarefa de conciliar, em cada caso particular, os interesses, aparentemente em choque, mas que visam unica e exclusivamente os bens coletivos”.18

Um breve olhar sobre esses conflitos permitiu perceber que a aceitação ao Regulamento

não se deu de maneira amistosa e sem atritos. Os principais pontos de desencontro entre as

classes profissionais e o DES foram aqueles que atingiram o elemento econômico, exigindo dos

comerciantes grandes alterações materiais em seus estabelecimentos. Havia exigências inviáveis

em alguns casos. Por outro lado, o tempo para a regularização foi fator predominante em todas

as descrições.

Entretanto, mesmo com os ânimos conciliados pelas autoridades, satisfazendo os

negociantes caxienses, a situação desencadeada já havia colocado sob suspeita a eficácia e validade

do código sanitário estadual e de seus inspetores.

14 O Chefe do Posto de Saúde presta declarações. A Época, Caxias do Sul, 16 jul. 1939, p. 1. 15 Telegrama ao Sr. Interventor Federal. A Época, Caxias do Sul, 16 jul. 1939, p. 1. 16 Foi solucionada, ontem à noite, a momentosa questão da Classe Varejista com o Posto de Higiene local. A Época, Caxias do Sul, 6 ago. 1939, p. 1 17 Impressões do Dr. Diretor do Departamento Estadual de Saúde. A Época, Caxias do Sul, 6 ago. 1939, p. 1. 18 O que dizem o Presidente da Associação dos Comerciantes e seu consultor jurídico. A Época, Caxias do Sul, 6 ago. 1939, p. 1.

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Referências

ABREU, Luciano Aronne de. Um olhar regional sobre o Estado Novo. Porto Alegre: EdiPUCRS, 2007. p. 265. BRUM, Cristiano Enrique de. O “interventor da saúde”: trajetória e pensamento médico de Bonifácio Costa e sua atuação no Departamento Estadual de Saúde do Rio Grande do Sul (1938-1943). São Leopoldo: Unisinos, 2013. Dissertação (Mestrado em História). SERRES, Juliane Conceição Primon. O Rio Grande do Sul na Agenda Sanitária Nacional nos anos de 1930 e 1940. Boletim da Saúde, Porto Alegre, v. 21, n. 1, p. 39-50, 2007.

Referências Documentais

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Espaços de saber e poder: instituições e seus agentes na perspectiva da História Social

INSTITUIÇÕES ESPÍRITAS E SUAS AÇÕES SOCIAIS: A SOCIEDADE ESPÍRITA FEMININA ESTUDO E CARIDADE, SANTA MARIA - RS, DÉCADAS DE 1940 E

1950

BRUNO CORTÊS SCHERERCZ1

Introdução

No Brasil, o desenvolvimento de ações sociais por instituições de caráter religioso em

favor de grupos populacionais desamparados é um fenômeno que remonta ao período colonial,

quando se constituiu um modelo assistencial baseado nas ações das Santas Casas de Misericórdia

em benefício dos pobres, dos doentes e das crianças abandonadas. Contudo, segundo Martins

(2011), ao longo do século XIX esse modelo veio a alterar-se progressivamente a partir da maior

participação do Estado, especialmente nas ações de saúde pública, junto de iniciativas pontuais de

inserção da medicina experimental e incentivos filantrópicos.

Apesar disso, as ações assistenciais católicas continuaram a ter uma importância

significativa, assim como a atuação de outros segmentos religiosos, sobretudo após o advento do

regime republicano que contribuiu para a autonomização e para a pluralização do campo

religioso. Foi nesse contexto que o espiritismo se difundiu amplamente no Brasil em torno de

uma perspectiva caritativa que, ao longo do século XX, estimulou a organização e a manutenção

de diversas instituições de caráter beneficente, as quais contribuíram significativamente para sua

inserção e para sua legitimação social no país.

A trajetória do movimento espírita no Rio Grande do Sul insere-se nessa perspectiva, o

que a torna um interessante aspecto de análise para estudos da História Social e das Religiões e

Religiosidades. Estas investigações contam com um conjunto de evidências bastante expressivo,

na medida em que diversas instituições espíritas desse estado possuem acervos documentais de

suas atividades, os quais expressam as preocupações de seus líderes e adeptos em relação à

inserção social que devem realizar.

Este artigo apresenta as reflexões iniciais de uma pesquisa que tem como foco de análise

as ações sociais promovidas pelo movimento espírita na região central do Rio Grande do Sul,

notadamente, nas áreas da saúde, da educação e da assistência social. Mais especificamente,

analisa-se a atuação de uma das principais entidades da cidade de Santa Maria, a Sociedade

1 Graduação em História pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História – UFSM. Bolsista CAPES. E-mail: [email protected]

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Espírita Feminina Estudo e Caridade, considerando sua fundamentação nas disposições

doutrinárias do espiritismo.

Com enfoque nas décadas de 1940 e 1950, e adotando como principais fontes de análise

livros de atas e os relatórios anuais de atividades da instituição, almeja-se compreender as formas

de inserção e difusão dessa perspectiva religiosa na região. Nesse sentido, consideram-se suas

relações com diferentes segmentos da sociedade local, sobretudo aquelas referentes ao campo

religioso enquanto um espaço diversificado e de concorrência entre diferentes agentes.

O espiritismo e a prática da caridade do Brasil

Definindo-se como uma doutrina de caráter científico, filosófico e religioso, o espiritismo

tem como marco fundador a publicação de O Livro dos Espíritos, em 1857, por Allan Kardec,

pseudônimo do pedagogo francês Hippolyte Léon Denizard Rivail. Apresentando-se como uma

doutrina universalista, porque passível de ser aceita por adeptos de todas as crenças, e assentada

sobre bases científicas, o espiritismo tem como pressupostos básicos a existência de Deus, a

imortalidade da alma, a comunicabilidade dos espíritos, a reencarnação e a evolução universal e

infinita.

Por sua definição plural, o espiritismo foi interpretado de diversas maneiras e posto em

diálogo com outras formas de pensamento, o que, a despeito das oposições enfrentadas,

contribuiu para que obtivesse rápida e expressiva expansão na Europa e na América, incluindo o

Brasil, onde se difundiu em fins do século XIX e início do XX. Todavia, em terras brasileiras sua

conformação enquanto uma religião só se tornou predominante no decorrer do longo processo

de organização e consolidação do movimento espírita. Uma trajetória que, como assinalam

autores como Damázio (1994), Giumbelli (1997), Silva (2005) e Arribas (2010), foi marcada por

uma série de debates e disputas dentro e fora dos meios espíritas.

No plano interno, a própria diversidade de interpretações colocava entraves à organização

institucional e doutrinária dos agrupamentos, especialmente entre aqueles que enfatizavam seus

aspectos científico e religioso. No plano externo, o espiritismo era alvo de fortes oposições da

Igreja Católica, as quais se somavam as do saber médico oficial e as da legislação vigente, em

razão das práticas de cura espíritas expressas principalmente pela atuação de médiuns que

praticavam a medicina sem a devida habilitação.

Segundo Silva (2005), essas tensões adentraram o século XX, intensificando-se nas

décadas de 1930 e 1940, num contexto em que a Igreja Católica buscou reconquistar sua

hegemonia no campo religioso através de uma exitosa reaproximação com o poder estatal. De

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fato, o apoio do regime varguista lhe permitiria não apenas combater o “comunismo ateu”, como

também se impor como a religião hegemônica no país em detrimento das igrejas protestantes,

evangélicas, das religiosidades afro-brasileiras e do próprio espiritismo.

Da parte do Estado, essa aliança era proveitosa na medida em que este poderia valer-se da

influência católica sobre a classe trabalhadora, o que ia ao encontro das suas preocupações em

controlar o operariado e combater o comunismo. Essa reaproximação teve forte impacto nos

meios espíritas brasileiros, pois exigiu a tomada de posição de suas lideranças e a formulação de

estratégias que garantissem sua permanência e atuação no campo religioso.

Dessa forma, na medida em que a Federação Espírita Brasileira (FEB)2 despontou como a

principal instituição dirigente em nível nacional, a estratégia adotada pelo espiritismo foi o

afastamento de práticas que o colocassem em conflito com os agentes opositores. Também a

adoção de uma postura não conflitiva e de neutralidade político-partidária foi a ordem do dia em

relação ao Estado durante a “Era Vargas” (Silva, 2005; Miguel, 2007).

Tais iniciativas foram viabilizadas pela conformação de um modelo de espiritismo

religioso centrado na ideia de caridade, a qual veio definir as ações sociais como uma de suas

principais formas de legitimação social no país. Segundo Giumbelli (1997) e Arribas (2010), para

garantir sua sobrevivência, o espiritismo procurou adequar-se às condições da realidade brasileira

buscando a solução dentro do próprio sistema doutrinário.

Nesse sentido, ao assumir uma postura religiosa, instrumentalizava a noção da caridade de

forma a viabilizar intervenções práticas no meio social, as quais seriam capazes de conferir-lhe a

legitimidade de que necessitava. A ideia de que “fora da caridade não há salvação” se tornou a

divisa central da FEB, que, ao assumir a direção do movimento espírita nacional, consolidou a

orientação religiosa e a prática da caridade como eixo central de ação.

Com a difusão desse modelo, ao longo da primeira metade do século XX, em diversos

estados brasileiros grupos espíritas promoveram a organização de creches, escolas, enfermarias,

hospitais, farmácias, abrigos e orfanatos, em muitos casos complementando as ações dos poderes

públicos. Esse é o caso do Rio Grande do Sul, onde o espiritismo encontrou condições

favoráveis para sua difusão, especialmente pela expressiva presença no estado e aproximação

teórica com a homeopatia, o positivismo e a maçonaria, assim como pela promoção de ações

beneficentes (Weber, 1999; Miguel, 2007).

2 A Federação Espírita Brasileira (FEB) foi fundada em 1884 com o intuito de reunir de maneira institucional os

grupos espíritas dispersos no centro no Brasil. Nos últimos anos do século XIX e nas primeiras décadas do

século XX, atuou intensamente no sentido de efetivar a organização do movimento espírita nacional, assumindo

oficialmente sua direção no final da década de 1940. Sobre o processo de organização do movimento espírita

brasileiro e a FEB, ver Damazio, 1994; Silva, 2005; Miguel, 2007; e Arribas, 2010.

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A Sociedade Espírita Feminina Estudo e Caridade3

Situada numa região de trânsito entre o litoral e o interior do Rio Grande do Sul, o

município de Santa Maria foi fundado em 1858, destacando-se pela atividade comercial e por sua

diversidade cultural. Estas características se intensificaram com o advento da ferrovia, em 1885,

ligando a cidade a outras regiões do estado e do Brasil, o que proporcionou grande

desenvolvimento econômico e social para a região. As origens do movimento espírita na cidade

remontam a esse contexto e à fundação da Sociedade Espírita Paz, Amor e Caridade na

localidade de Água Boa, atual distrito de Arroio do Só, em 1903.

A primeira instituição de que se tem registro na sede do município data de 1910, a

Sociedade Espírita Mont’Alverne, seguida, em 1915, pela Sociedade Espírita Dr. Adolfo Bezerra

de Menezes. Em 1921, foi criada a Aliança Espírita Santa-Mariense (AES), com o objetivo de

congregar os grupos espíritas existentes. A partir de então, o movimento ganhou força com a

fundação de importantes entidades, nos anos subseqüentes, cujas atividades mantêm-se até o

presente.

Uma das instituições com significativa atuação, ocupando um lugar de destaque no

movimento espírita local, é a Sociedade Espírita Feminina Estudo e Caridade (SEFEC), fundada

em 13 de abril de 1927, a partir da iniciativa de um grupo de mulheres espíritas atuantes na

cidade. Há poucos indícios sobre as motivações em torno da criação de uma entidade de caráter

essencialmente feminino, mas é provável que ela esteja relacionada às possibilidades de ação

pública concebidas para as mulheres no início do século XX.

De fato, especialmente a partir das décadas de 1930 e 1940, verifica-se nas ações do

grupo, além do dever moral e cristão concebido pelo espiritismo, uma racionalidade de cuidados

que passou a ser defendida de forma mais geral na sociedade brasileira pelos discursos da

medicina, do serviço social e dos organismos governamentais, sobretudo durante a “Era Vargas”,

com a organização do Estado de bem-estar social (Martins, 2011).

Nessa perspectiva, os grupos a serem atendidos foram definidos como sendo os

desamparados e vulneráveis, isto é, os enfermos, mulheres, crianças e idosos. Por sua vez, os

agentes responsáveis por essas ações pertenciam às classes médias e altas da sociedade, contando

com uma importante atuação das mulheres. Esse parece ser caso das fundadoras da SEFEC,

cujos cônjuges, também colaboradores da instituição, exerciam profissões de prestígio como

3 As considerações apresentadas neste item e no seguinte sintetizam as reflexões contidas em meu estudo monográfico sobre a atuação da Sociedade Espírita Feminina Estudo e Caridade na cidade de Santa Maria – RS, entre as décadas de 1930 e 1950. Ver Scherer, 2013.

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comerciantes, médicos, jornalistas e advogados, com conexões públicas na sociedade santa-

mariense das primeiras décadas do século XX.

No mais, o que se sabe em relação à constituição da SEFEC, segundo consta em sua ata

de fundação, é que ela teria sido inspirada por uma comunicação espiritual de uma mulher

chamada Guilhermina de Almeida que, através do médium Fernando do Ó, conclamava o grupo

de mulheres a se organizarem a partir do estudo do espiritismo e da prática da caridade. Na

ocasião, a denominação do grupo é justificada, sendo a ideia de “caridade, por termos assumido,

perante Deus, o compromisso de ajudarmos tanto quanto possível, aos irmãos que sofrem sem

distinção; Estudo, por termos sede do saber”.4

Essa justificativa evidencia a vinculação entre a divisa assumida pelo grupo e as

perspectivas então definidas pelo movimento espírita brasileiro, as quais atribuíam à prática da

caridade uma importância central. De fato, todas as ações da instituição, desde o auxílio espiritual

até a assistência material aos necessitados, estão fundamentadas nesses princípios, os quais são

frequentemente mencionados na documentação institucional, diante da preocupação do grupo

em justificar suas ações sociais.

Em 1928, quando da posse de sua primeira diretoria definitiva e aprovação dos primeiros

estatutos, os fins da SEFEC foram definidos como o estudo, a prática e a difusão do espiritismo

fundamentado nas obras de Allan Kardec. A aplicação desses princípios resultou na organização,

em 1932, do “Abrigo Espírita Instrução e Trabalho”, com o objetivo de atender crianças

desamparadas da cidade. Essa instituição veio a tornar-se o centro de toda ação da SEFEC, de

forma que, ao longo das décadas de 1930 e 1940, ela reuniu as condições estruturais necessárias

ao oferecimento de uma série de serviços aos abrigados.

Esses foram definidos através do internato, alimentação, instrução profissional e religiosa,

ensino escolar e cuidados médicos. Inicialmente, o Abrigo deveria receber meninas órfãs ou cujas

famílias não dispusessem de recursos suficientes para mantê-las. Entretanto, nas décadas de 1940

e 1950, as atividades foram ampliadas com a fundação, em 1944, de uma Seção Masculina, no

então distrito de Itaara, que funcionou como uma espécie de escola rural até 1956,

proporcionando atendimento a meninos carentes da cidade e da região.

Dessa forma, um dos aspectos que recebeu especial atenção por parte da SEFEC foi o

ensino escolar, voltado inicialmente aos abrigados e, posteriormente, estendido a outras crianças

necessitadas da comunidade. Em 1934, foram organizadas as primeiras aulas para os internos,

serviço que foi ampliado em 1952 com a criação da “Escola do Abrigo Espírita Instrução e

Trabalho”, que contou com o respaldo das autoridades do município.

4 Ata n. 1, de 13 de abril de 1927. Livro de Atas n. 1. Acervo da Sociedade Espírita Estudo e Caridade.

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A saúde foi outra frente de atuação, também contemplando os abrigados, suas famílias e

membros da comunidade local. Em 1940 foi inaugurado um ambulatório médico junto à

instituição, a fim de atender os abrigados e os alunos da escola. Anos mais tarde, foi construída

uma enfermaria que, em 1952, deu origem ao “Hospital Infantil Nenê Aquino Nessi”, prestando

atendimento à comunidade em geral até o fim de suas atividades em 1963.

Por fim, todas as atividades oferecidas através do Abrigo Espírita Instrução e Trabalho

mobilizaram diversos esforços da SEFEC no sentido de angariar recursos humanos e materiais

necessários a sua execução. Isso se efetivou através da colaboração voluntária de professores,

médicos, dentistas e outros profissionais; doações de estabelecimentos comerciais e empresas;

solicitações aos poderes públicos e realização de eventos beneficentes.

Em 1959, o Abrigo passou a denominar-se “Lar de Joaquina” em homenagem à Joaquina

Flores de Carvalho, primeira diretora da instituição, e denominação pela qual a própria SEFEC

tornou-se mais conhecida na cidade. Estima-se que entre 1932 e 1997, ano em que o regime de

internato foi suspenso, a instituição tenha atendido cerca de 600 abrigados, a maioria em

permanência prolongada.

As ações sociais espíritas e o campo religioso

A articulação do espiritismo em Santa Maria deu-se num contexto de disputas no campo

religioso, marcadas pela afirmação da hegemonia católica como a resultante de um processo

iniciado nos últimos anos do século XIX e que envolveu uma série investimentos, tanto na esfera

religiosa, quanto nas áreas da educação, saúde e assistência social (Borin, 2010). Desse modo,

percebe-se que o movimento espírita santa-mariense defrontava-se com uma situação muito

semelhante àquela vivenciada pelo espiritismo em nível nacional, de forma que veio a adotar

estratégias de ação semelhantes.

Nesse sentido, as reflexões de Bourdieu (2011), sobretudo os conceitos de campo e capital,

permitem compreender a dinâmica dessas relações e das disputas entre diferentes agentes sociais,

considerando suas estratégias de ação. Dessa forma, há que se considerar o campo religioso como

um espaço de concorrência entre diferentes agentes religiosos, visando o monopólio da gestão

dos bens de salvação e, por conseguinte, a legitimidade para sua própria existência, discursos e

práticas.

Certos elementos presentes na trajetória da SEFEC podem elucidar como o movimento

espírita buscou agir no sentido de garantir sua permanência e atuação no campo religioso local.

Em primeiro lugar, destacam-se os nexos relacionais entre a instituição e o movimento espírita

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em níveis local, estadual e nacional, por meio de uma série de correspondências e intercâmbio de

informações sobre a organização das instituições, eleição de suas diretorias, emissão e

recebimento de materiais informativos, também notificações sobre projetos sociais em

desenvolvimento, bem como pedidos de auxílio para os mesmos.

Especialmente pelo contato mantido com a FEB e a Federação Espírita do Rio Grande

do Sul (FERGS), evidencia-se que o grupo tinha conhecimento das discussões e propostas que se

desenvolviam dentro do movimento espírita no período contemplado por esta análise. Os

periódicos O Reformador e A Reencarnação, respectivamente, editados por essas federações, estão

presentes no material de leitura e informação da SEFEC.

Esses meios de interação sugerem a existência de uma rede de cooperação entre os

grupos espíritas, o que certamente teria sido de grande importância para o desenvolvimento e

continuidade de suas atividades. Além disso, possibilitaria que as instituições encontrassem

orientação, tomando conhecimento das ações e estratégias a serem adotadas a fim de evitar

atritos com outros agentes e instâncias da sociedade.

A esse respeito, também por meio dos registros de correspondentes, identificam-se

contatos com os poderes públicos municipais, estaduais e federais, órgãos de imprensa, agências

bancárias, instituições filantrópicas, empresas comerciais, militares e profissionais liberais. Como

mencionado anteriormente, esses agentes aparecem como colaboradores das atividades da

instituição por meio de subvenções, convênios e prestação de serviços.

Contudo, pode-se considerar que o estabelecimento desses vínculos, especialmente com

indivíduos de prestígio social (médicos, advogados, políticos e autoridades), tenha contribuído

para o reconhecimento dessas ações pela sociedade santa-mariense. Com efeito, o fato de

prestigiarem as solenidades e inaugurações dos serviços promovidos pela SEFEC, como se pode

observar nos registros das atas, pode ter conferido aos mesmos um caráter positivo, enquanto

ações de utilidade pública e, inclusive, moralmente louváveis na visão da comunidade,

independentemente de adesão ou não ao espiritismo.

Dessa forma, a SEFEC contava com o capital social desses indivíduos e também sua

influência, por meio dos quais poderia obter mais facilmente auxílios e firmar parcerias, mas

também conquistar reconhecimento para suas ações. Assim, pode-se considerar que o espiritismo

buscava fora do campo religioso os subsídios que lhe permitiriam manter-se e atuar nesse espaço,

o que evidencia a dinâmica inter-relacional dos diferentes campos sociais.

No mais, encontra-se nas ações da SEFEC a mesma postura não conflitiva que foi a

ordem do dia para grande parte do movimento espírita durante o governo Getúlio Vargas, no

sentido de respeito às determinações legais justamente com vistas a evitar atritos com o Estado e

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com a legislação vigente. Exemplos dessa postura são os relatórios de atividades, elaborados

periodicamente e destinados aos associados e aos colaboradores da instituição.

Por fim, a SEFEC e as demais instituições espíritas que se dedicaram a esse tipo de

intervenção no meio social contavam com o capital simbólico representado pela prática da

caridade, enquanto uma qualidade moral cristã. De posse desses elementos, a SEFEC e outras

instituições locais5 que desenvolveram formas de atuação semelhantes foram capazes de garantir

sua inserção na sociedade local e também do próprio espiritismo enquanto integrante ativo no

quadro de diversidade do campo religioso.

Considerações finais

O desenvolvimento de ações sociais por instituições espíritas no Brasil é um fenômeno

cuja compreensão não pode ser desvinculada do processo de organização e consolidação do

movimento espírita entre fins do século XIX e primeiras décadas do século XX. De fato, foi em

meio a uma série de debates e disputas, internas e externas, que um modelo de espiritismo

religioso e centrado na ideia de caridade foi formulado e difundido por todo o país, tanto como

forma de organização institucional quanto de estratégia de ação para contornar as oposições da

Igreja Católica, da medicina oficial e da legislação vigente.

Com efeito, na conjuntura dos anos 1930 e 1940, em que essas oposições se

intensificaram, especialmente com a afirmação católica no campo religioso, o espiritismo foi

impelido a buscar formas de inserção na sociedade, sendo o investimento em obras assistenciais

uma das principais iniciativas para alcançar esse intento. O esforço desse artigo foi o de

compreender tal processo na região central do Rio Grande do Sul, a partir do estudo de caso

sobre a Sociedade Espírita Feminina Estudo e Caridade, considerando-se a relação entre os

contextos local e nacional do campo religioso e do próprio movimento espírita.

De fato, foi a partir das disposições doutrinárias do espiritismo, especialmente da ideia de

caridade, reforçada nesse contexto, que essa instituição promoveu um conjunto diversificado de

serviços em favor de setores economicamente desfavorecidos da população, os quais atingiram

seu ápice nas décadas de 1940 e 1950. Essa foi a via pela qual a entidade conquistou espaço e

reconhecimento social, o que é atestado por sua capacidade em reunir recursos nos mais diversos

setores da sociedade local.

5 Dentre elas destacam-se duas de ampla projeção na cidade, também contempladas pela pesquisa: o Instituto

Espírita Leocádio José Correa, fundado em 1936, com atividades voltadas para a instrução profissional e

assistência social em geral; e o Abrigo Espírita Oscar José Pithan, fundado em 1949, voltado para a assistência

integral a idosos carentes e/ou em estado de abandono social.

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Como se procurou demonstrar, os capitais sociais e simbólicos angariados por meio da

abrangência desses serviços e pelo apoio de indivíduos com prestígio social contribuíram, em

grande medida, para a legitimação do espiritismo na cidade. O êxito dessa proposta em Santa

Maria é atestado pela continuidade e pela expansão dessas ações que adentraram o século XXI, à

semelhança de outras instituições que surgiram a partir das décadas de 1930 e 1940.

Por fim, o estudo de casos como o da Sociedade Espírita Feminina Estudo e Caridade

apresenta-se como uma possibilidade para a compreensão da trajetória do espiritismo em Santa

Maria e no Rio Grande do Sul enquanto importante movimento social e religioso. Nesse sentido,

o patrimônio documental preservado por essa e por outras instituições, além de elucidar diversos

aspectos de sua constituição e de sua atuação, estimula a reflexão sobre as complexas relações

entre religião, sociedade e Estado na primeira metade do século XX.

Referências

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WEBER, Beatriz Teixeira. As Artes de Curar. Medicina, religião, magia e positivismo na República Rio-grandense. Santa Maria/Bauru: EDUFSM/EDUSC, 1999. 252 p.

Referências Documentais

1. ACERVO HISTÓRICO DA SOCIEDADE ESPÍRITA ESTUDO E CARIDADE - Livro de Atas de Sessões Ordinárias (1927-1954). - Livro de Atas de Sessões Extraordinárias (1942-1967). - Relatórios Anuais de Atividades (1953-1960). 2. ACERVO HISTÓRICO DA ALIANÇA ESPÍRITA SANTA-MARIENSE - Estatutos da Aliança Espírita Santa-Mariense, 1926. - Histórico da Aliança Espírita Santa-Mariense (1921-2001).

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Espaços de saber e poder: instituições e seus agentes na perspectiva da História Social

A CÂMARA MUNICIPAL E OS EXPOSTOS: A CARIDADE E A FILANTROPIA NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DO ABANDONO EM PORTO ALEGRE (1772-1822)

JONATHAN FACHINI DA SILVA1

Introdução

O abandono de crianças no passado colonial foi um fenômeno presente de norte a sul na

América portuguesa. Muitas crianças tiveram seus destinos traçados pelo abandono em

conventos, igrejas, Santas Casas, ou - o mais corriqueiro- foram deixados na soleira de uma porta

de algum fogo2. O fato é que a prática se tornou amplamente difundida no Brasil colonial em

diversas áreas com proporções econômicas e demográficas distintas. Os expostos ou enjeitados,

conforme as terminologias da época, tornaram-se um fardo para a Igreja e estavam entre as

preocupações da Coroa.

A freguesia Madre de Deus de Porto Alegre não esteve isenta desse contexto, de 1772 a

1822 foram contabilizadas um total de 474 crianças expostas conforme os registros de batismos

da paróquia, o que equivale à média de 6% do total dos batizados da Madre de Deus. Nesse

período, Porto Alegre não contava com uma Roda dos expostos3, assim a Câmara Municipal era a

principal responsável pelo acolhimento desses pequerruchos cabendo-lhe a responsabilidade pelo

seu sustento e criação.

Frente a esse contexto, o objetivo desse trabalho é perceber as medidas que foram

tomadas pela Câmara Municipal de Porto Alegre para organizar a administração do abandono

crianças. Também avaliar o perfil social das famílias que criavam esses expostos em troca de

salários pagos pela Câmara.

Para esse exercício, além dos registros paroquiais de batismos, foram coletadas

informações dos termos de vereanças, que são as atas de reunião da Câmara de Vereadores. O

recurso metodológico fundamental para a elaboração deste trabalho será o nome, o nosso fio de

1 Mestrando em História – Unisinos – Bolsista CNPq. E-mail: [email protected] 2 Assim eram tradicionalmente denominados os domicílios em Portugal e nas colônias portuguesas. Raphael Bluteau considera como sinônimo de “Família”, muito embora seja bastante ambíguo este conceito, para o século XVIII. Este dicionarista exemplifica, por exemplo, a utilização do termo: “Villa, que tem cem, ou dezentos fogos” [1712], o que reforça a ideia de família enquanto domicílio. (NADALIN, 2004, p.170). 3 O nome Roda – dado por extensão à casa dos expostos – provém do dispositivo de madeira onde se depositava o bebê. De forma cilíndrica e com uma divisória no meio, esse dispositivo era fixado no muro ou na janela da instituição. No tabuleiro inferior da parte externa, o expositor colocava a criancinha que enjeitava, girava a Roda e puxava um cordão com uma sineta para avisar à vigilante – ou Rodeira- que um bebê acabara de ser abandonado, retirando-se furtivamente do local, sem ser reconhecido. (MARCÍLIO, 1998, p.56).

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Ariadne4. Esse cruzamento nominativo nos dá o acesso a alguns destinos que tomaram essas

crianças que foram “dadas a criar” pelo “Senado da Câmara”.

Dessa forma é reservado para o primeiro momento, um breve panorama da Câmara de

Rio Grande, que após 1810 passa ser propriamente a de Porto Alegre, mostrando, também, como

foi institucionalizado e organizado o fenômeno do abandono. Tratado isso, os próximos

parágrafos ficaram destinados aos dois pensamentos panos de fundo que foram fundamentais

para a manutenção dos expostos. Um deles era a filantropia iluminista que a “monarquia

esclarecida” procurava colocar em prática, pressionando as Câmaras ultramarinas na salvaguarda

dos expostos, tornando-os vassalos úteis a coroa5. Em paralelo, a ação da Câmara, a “caridade

privada” que incentivava famílias a criarem expostos como forma de expiarem seus pecados a fim

de buscar redenção celestial e praticarem a caridade cristã. E por fim, mostro um pouco do perfil

social dos indivíduos e/ou famílias que criaram algum (ou mais de um) exposto.

A Câmara Municipal e a institucionalização do abandono

As Câmaras Municipais eram os pilares da monarquia portuguesa, através delas se poderia

estender a dimensão do poder real. Numa metáfora da organicidade do império português

podemos estabelecer que: o rei era a cabeça do reino e comandava os membros e órgãos

restantes (ministros, tribunais, conselhos), tidos como extensões de seu corpo, "órgãos" que

permitiam a realização de sua ação política, pois eram seus "olhos", "ouvidos" e "mãos". Nessa

ordem corporativa e organicista, o poder real agia como um centro coordenador e atuava como

árbitro que buscava a manutenção da harmonia, da paz e da segurança (COSENTINO, 2011,

p.67-82).

A capitania do Rio Grande de São Pedro contava apenas com uma Câmara com

jurisdição sobre todo o território, a da Vila de Rio Grande, entre 1751 a 1811. Entretanto, com a

invasão espanhola à localidade, os oficiais foram obrigados a deixar o local às pressas, refugiando-

se no povoamento de Viamão, quando corria o ano de 1763, levando consigo todo o aparato

4 Trata-se de uma metáfora, usada por Carlo Ginzburg (2007), referente ao mito grego (em que Teseu recebe, de Ariadne, um fio que o orienta pelo labirinto, onde encontrou e matou o minotauro). Nesse sentido, o nome é o fio que nos orienta, através do cruzamento de fontes, para se reconstituir a História. 5 Desde as Ordenações Manuelinas (1521), determinou-se que as Câmaras Municipais seriam, em última instância, as responsáveis pela proteção e criação de seus próprios expostos. Quando nem os pais, nem parentes pudessem responsabilizar-se pela criança, a comunidade deveria fazê-lo, mandando-as para hospitais ou casas de enjeitados. Na falta destes, as crianças deveriam ser criadas sob a supervisão municipal e através de fundos dos seus conselhos. Estes tinham autorização para criarem um imposto especial – a finta dos expostos – para arcar com esse encargo. Esta lei passou para as Ordenações Filipinas. (MARCILIO, 2010, p. 14-37).

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burocrático.6 Anos mais tarde (1773), por decisão do governador José Marcelino, a câmara foi

transferida novamente para a recém-fundada Freguesia Madre de Deus de Porto Alegre. Além da

Câmara, deste momento em diante, a freguesia passou a sediar a casa do governador, a

provedoria da fazenda real e a vara do juízo eclesiástico. Tornava-se, desse modo, capital do

continente do Rio Grande de São Pedro (MIRANDA, 2000, p.55-62). Nesse sentido, até 1810,

quando a freguesia de Porto Alegre foi oficialmente elevada ao estatuto de Vila, é a Câmara de

Rio Grande que se encontrava estabelecida naquela freguesia. Após esse período a Câmara

passava a ter jurisdição apenas sobre a Vila de Porto Alegre e seu termo foi formado pelas

freguesias: Nossa Senhora Madre de Deus de Porto Alegre, Nossa Senhora da Conceição de

Viamão, Nosso Senhor Bom Jesus do Triunfo e Nossa Senhora da Aldeia dos Anjos.

A Câmara de Rio Grande, e após a de Porto Alegre, a principio mantinham o

regulamento oficial das ordenações do reino e as exigências do vice-rei. Era composta pelos

oficiais da câmara, (seis oficiais eleitos anualmente) que se distribuíam entre juízes (dois ordinários),

vereadores (três, que se revezavam ao longo do ano); um tesoureiro; e o procurador do conselho

(geralmente estava sob a autoridade dele a distribuição das crianças expostas às famílias

criadeiras). Ainda havia outros cargos de menor importância e cargos específicos criados para a

localidade, como o escrivão da sisa (cobrava os impostos) e o arruador (avaliava os terrenos e

expedia licenças para construções das casas). Cabe ressaltar que esses oficiais da câmara não eram

elencados aleatoriamente, deveriam ser “homens bons”, designação que se referia a uma elite

local que deveria atender uma série de quesitos: ser maior de 25 anos, casado ou emancipado,

católico e sem "nenhuma impureza de sangue", isto é, nenhum tipo de mestiçagem racial.

Também era necessário que fossem homens de cabedal, o que significava, de alguma forma,

serem proprietários de terra7.

Podemos afirmar que a câmara, desde que foi transferida para Porto Alegre, colocou o

tema da exposição como primeira preocupação entre os assuntos tratados. Já na primeira ata de

reunião da Câmara realizada em Porto Alegre, datada de 06 de setembro de 1773, o Senado se

propôs a administrar a prática do abandono a partir da contratação de amas de leite, como já

vinha fazendo ao tempo em que a instituição atuava na vila de Rio Grande.

Acordaram que porquanto se tinham exposto várias crianças enjeitadas pelas portas de alguns moradores da capela de Viamão, e estes as iam entregar ao procurador do Conselho para que à

6 Em correspondências da Câmara de Rio Grande com o Conselho Ultramarino ficam registrado os danos que causou aos comerciantes e como tiveram que se retirarem as pressas. (COMISSOLI; GIL, 2012, p.242) 7 No capítulo “conselheiros municipais e irmãos de caridade”, Boxer ainda comenta que esses oficiais usufruíam de regalias como a dispensa do serviço militar e recebiam a isenção do confisco de qualquer bem para uso da Coroa. (BOXER, 1977, p. 263-282)

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custa deste as mandasse criar, e porque se não podia nem vinha no conhecimento de quem as enjeitava, determinaram todos que o procurador do Conselho procurasse amas e as custeasse para criar os ditos enjeitados expostos, dando-lhe algum vestuário para se embrulhar as mesmas crianças e reparar a desnudez das carnes com que as expuseram, e porque na forma da lei e costume da vila do Rio Grande assim o deviam fazer, mandaram fazer este acordo e nele formar os assentos dos mesmos enjeitados seus nomes, e de quem os cria e o quanto se lhe dava por mês8.

Desde a sua instalação, como pudemos perceber, a Câmara Municipal que funcionou em

Porto Alegre se mostrou preocupada com o abandono infantil. Logo nos primeiros anos, a

Câmara mandou preparar um livro de matrícula9 para os expostos e se propôs a pagar os

“salários” para as pessoas que se encarregassem da criação dos pequenos enjeitados. Esses

salários permaneceram estáveis e com o mesmo valor para o período analisado. Os salários pagos

as “famílias criadeiras” de expostos variavam de acordo com a idade da criança: até os três anos

de idade, o valor pago era de 3$200 réis por mês; dos três aos sete anos, o valor cairia pela

metade, passando para 1$600 réis por mês. A esses valores acrescentava-se ainda o pagamento

anual de 3$200 réis pelo vestuário da criança. Esse salário oferecido para criação de expostos

parece modesto, entretanto se somarmos os três primeiros anos de criação (3$200 réis mensais

por 36 meses) mais os três anos de vestuário (3$200 réis anuais por três anos) teremos o valor de

124$800 réis. Para termos uma dimensão desse pecúlio, um escravo de “primeira linha” (sexo

masculino, entre 20 e 29 anos de idade) custava, em média, 177$351 réis, entre 1812 e 1822

(BERUTE, 2006, p.98). Neste sentido, criar um exposto até os sete anos renderia mais que o

valor de um escravo de alta estima no mercado.

Contudo, apesar de ser estipulado que o valor devesse ser pago mensalmente, a Câmara

deixava acumular os montantes relativos a quatro ou cinco meses para pagar os indivíduos e/ou

as famílias que cuidavam dessas crianças. Além disso, em muitos casos, a Câmara administrava a

receita para o pagamento das despesas com os expostos com o auxílio da caridade de particulares.

8 AHPAMV, Termo de vereança, 06/09/1773. [grifos nossos] 9 Apesar dos termos de vereança deixarem claramente indicada a existência de livros de matrículas de expostos para Porto Alegre, infelizmente, até o presente momento, eles não foram localizados. É provável que tenham sido extraviados, em meados do século XX, quando os arquivos municipais e estaduais começavam a organizar e dividir seus acervos.

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A filantropia da Coroa e a caridade cristã

Desde o século XVI, a Coroa portuguesa e a Igreja se preocuparam em salvar essas almas

do destino iminente, a mortalidade infantil10. O procedimento padrão ao se receber uma criança

exposta era primeiramente batizar a inocente alma, seguindo os procedimentos estipulados pela

Igreja. No Brasil do século XVI até inicio do século XIX, as crianças expostas tinham como

escudo protetor a “caridade cristã”.

Era por essa corrente de pensamento que as Misericórdias tornaram-se uma das grandes

instituições de acolhimento dos expostos. A questão é que as Santas Casas ficavam restritas às

áreas de maior densidade populacional e desenvolvimento urbano. Como no caso de Porto

Alegre, que só em 1838 teve uma Roda dos Expostos aglutinada à Santa Casa11. Sendo assim, a

Câmara Municipal ficou como a responsável legal para custear a criação dos expostos, conforme

determinavam as Ordenações do Reino. Por numerosas vezes, a Câmara alegou não ter mais

condições financeiras para o custo da exposição. Nessa situação, a Câmara apelava ao chamado

da caridade ou de doações de particulares para a manutenção financeira destinada a criação dos

expostos.

Nesta mesma vereança se retificou a ordem dada ao escrivão desta Camara em vereança passada, para escrever um officio aos vigários deste termo a pedir-lhe o rol de seus freguezes cabeça de cazaes para serem multados no assento geral a que accordarão proceder para o pagamento das criações dos expostos, visto não haver no cofre do concelho dinheiro com que se lhes pague12.

Essas doações eram feitas por particulares, “caridade privada”, ou por vezes, “caridade

pública”. Também, a própria governadoria geral poderia financiar a caridade, na forma da

“caridade oficial”. É interessante ressaltar que tanto doadores particulares, quanto órgãos oficiais

justificavam suas doações como “dádivas”, e essas dádivas, como argumenta Guimarães Sá, eram

praticadas por todas as camadas sociais13.

Essas ações de proteção à infância abandonada, como salientei, tinham, num primeiro

momento, esse caráter caritativo pela prática cristã de particulares ou de instituições. Nesse

10 Estudos anteriores de Jonathan Fachini da Silva (2012) mostraram esses elevados percentuais de mortalidade infantil de expostos na Freguesia Madre de Deus de Porto Alegre, bem como as principais moléstias que os acometia. 11 A Roda dos Expostos em Porto Alegre foi contemplada no grandioso estudo de Jurema M. Gertze (1990). 12 AMPAMV, Termo de vereança, 25/08/1813. [grifos nossos] 13 O ato de dar, por sua vez, não envolvia apenas os ricos: generalizava-se a todos os que estivessem na situação de prescindir de algum bem material e, sobretudo, que quisessem servir aos outros. Na sociedade do dom, dar era um ato acessível a todos e não envolvia bens materiais mas sobretudo serviço. (SÁ, 1997, p.17).

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princípio de caridade cristã, criar uma criança exposta era salvar a pobre alma ao batizá-la, e

exercer um ato de benevolência, praticar a “dádiva”, que no mundo católico da época poderia

servir para redimir as culpas no pós-morte e receber prestígio social em vida.

Esse pensamento é cruzado pela racionalidade da filantropia, colocando em prática uma

nova Razão de Estado que vigorava na Europa iluminista. Não bastava apenas salvar a alma dos

expostos, mas torná-los úteis à nação. Podemos ilustrar esse contexto pela lei promulgada pelo

chefe da Intendência Geral, Pina Manique, em 1783. A lei ordenava a fundação de Casas da Roda

para acolher expostos em todas as vilas e cidades do reino14. Os expostos passaram a ser vidas de

interesse para a Coroa portuguesa, que a pátria não deveria perder. Eles poderiam servir aos

exércitos, trabalhar em serviços pesados e contabilizar vidas para a Coroa. Pode-se pensar esse

pensamento em relação aos expostos para o contexto ocupacional da Freguesia Madre de Deus

de Porto Alegre, no extremo sul da América portuguesa. Pois se tem evidenciado a pressão

sofrida da Câmara pela metrópole devido à sua política de ocupação territorial baseada no

principio do uti possidetis15. Por esse viés, salvar essas vidas era salvar vassalos aptos a ocupar o

território.

O perfil social dos criadores de expostos

Traçar o destino dos expostos é tarefa difícil ao pesquisador, podemos encontrar seu

primeiro paradeiro através das atas de batismo, entretanto era comum durante o Antigo Regime a

circulação de crianças16. Nesse caso, a porta que recebeu a criança poderia ficar com ela e recorrer

ao salário da Câmara para o pagamento pela sua criação, ou entregá-la diretamente ao procurador

geral do sanado que se encarregaria de encontrar-lhe um novo lar. Cabe salientar que a Câmara

cobria os custos pela criação do exposto até os sete anos, após esse período a família se

encarregaria da criança, ou a pobre alma ficaria mercê da caridade alheia, reduzido à um serviçal

ou a marginalidade social.

14 Esta circular ilustrava: “(...) o aumento da População como um dos objetos mais interessantes e próprios de uma bem regulada polícia, por consistirem as forças e riquezas de um Estado na multidão dos habitantes...”. (A Ordem Circular de Pina Manique, 1783, Livro 1º, fl 150). 15 Segundo Fábio Kühn (2007), tratava-se de um princípio de direito, segundo o qual os que de fato ocupam um território possuem direito sobre este. No século XVIII o tratado de Madri (o mais importante até então) reconheceu o princípio do uti possidetis, assegurando aos portugueses os territórios que haviam ocupado no Continente do Rio Grande a partir da década de 1730. 16 Segundo a já referida Guimarães Sá (1992, p.115), trata-se de um aspecto fundamental da infância no Antigo Regime: a circulação de crianças, isto é, a transferência temporária ou definitiva da criança biológica para outros grupos familiares. Esta circulação de crianças podia assumir várias modalidades, desde o aleitamento por amas de leite até ao abandono em instituições, passando pela educação dos adolescentes. O fato é, que uma vez considerada a mobilidade da criança, a qual podia ser confiada a vários grupos familiares desde o nascimento, muitas são as formas de que esta circulação se podia revestir.

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Nosso primeiro corpus documental, os registros paroquiais, somam um total de 465

crianças expostas batizadas entre 1772 e 1822. Nem toda receptora de expostos recorria ao

pecúlio camarário, como mencionado anteriormente, pois muitos criavam expostos como meio

para a prática da caridade cristã. É o caso de Dona Anna Marques de Sampaio, que recebeu seis

expostos em sua porta. Entretanto, não sabemos o paradeiro de todos os seus expostos, apenas

um podemos ter a certeza que fora criado por ela, pois tornou-se seu herdeiro em testamento17.

Se tratando da Câmara, entre 1773 e 1822 há um total de 685 recorrências de pagamentos de

salários entre criação e vestuário dos expostos. Pelas informações contidas nos termos de

vereança, podemos estabelecer que a Câmara assistiu à 289 crianças abandonadas em Porto

Alegre e freguesias vizinhas, o que equivale a 63% das crianças expostas batizadas na freguesia.

O interessante é que famílias e/ou sujeitos dos mais diversos estatutos sociais procuravam

o salário camarário para a criação dos expostos, desde famílias abastadas a pretas forras, como

veremos mais adiante. Entre as pessoas de estatuto superior, há a recorrências de militares,

clérigos e os próprios oficiais camarários. Um exemplo desses oficiais criadores de expostos pode

ser observado na vereança do dia 17 de julho de 1784, em que a Câmara paga o salário de 52$800

reis por dois anos de criação da enjeitada Esmeria ao Sargento mor Francisco pires Casado18. Francisco

Pires Casado é um “homem bom” que teve três ofícios efetivos na Câmara de Porto Alegre: em

1768 foi Juiz de barrete; em 1769 foi Juiz; em 1773 novamente Juiz de barrete. Entre os criadores

de expostos de famílias abastadas há também a recorrência de “Donas” e “viúvas”. O fato de

muitas serem as viúvas que recebiam para criar expostos pode indicar uma tentativa de recompor

uma situação de estabilidade, colocada em causa pela viuvez. Possivelmente, na ausência do

marido estavam angariando renda extra para sustento do lar.

Para Laura de Mello e Souza (2006, p.54), essas famílias exerciam esse papel para legitimar

sua posição social: “Para homens e mulheres melhor situados na sociedade, a criação dessas

crianças poderia ter o objetivo de aumentar o número de agregados e apaniguados, visando antes

conferir estima e status do que trazer vantagens pecuniárias”. Entretanto, uma questão fica em

aberto na investigação, se essas famílias abastadas criavam os expostos por prestígio social ou por

uma possível “moeda de troca” (em casamentos não muito vantajosos, ou mesmo reduzir o

exposto à um agregado). Nesse caso, a questão é: por que recorriam ao pecúlio camarário?

Entretanto essas famílias de prestígio social, geralmente, recorriam pelo salário de criação

de apenas um exposto. O que não se deve pensar que poderia haver outros expostos nos seus

fogos sendo criados gratuitamente. Também parece que era uma rede de criação, onde pagavam e

17 Sobre o caso de Dona Anna Marques de Sampaio como receptora de expostos ver: Denize T. Leal Freitas & Jonathan Fachini da Silva (2013). 18 AHPAMV, Termo de vereança, 17/07/1784.

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recebiam salários para esse fim. Já quanto às famílias composta por forros a demanda por salários

é maior, visto que criavam, geralmente, mais de um exposto, como é o exemplo do quadro

abaixo:

Quadro 01: Forros que criam expostos

Fonte: AHPAMV, Termos de Vereança 1773-1822.

Fica evidente que os interesses pela criação desses recém-nascidos abandonados podem

mudar conforme o estatuto social da família que recebeu o exposto em sua porta ou que recebeu

a criança por via da Câmara. Mesmo que nem todos os representantes de famílias abastadas, os

“homens bons”, procurassem o auxílio camarário, era raro um fogo desse nível não ter recebido

uma criança na soleira de sua porta. No caso das famílias forras, muitas foram “dadas a criar”, ou

seja, o exposto foi entregue a essas famílias pelo Senado da Câmara.

Assim, independente do destino da criança, a municipalidade mostrava algum interesse

em salvar essas vidas, contribuía como podia para essa administração, cumprindo seu papel.

Desde o início, parece que os oficiais sabiam de sua responsabilidade legal. Pelo menos assim se

mostrou nos princípios do processo de urbanização da Freguesia Madre de Deus de Porto

Alegre.

A questão é que a administração do abandono, de um lado, podia gerar uma grande

despesa para o cofre público, de outro, gerava um grande poder nas mãos do Procurador, o

responsável pela distribuição dos expostos. Nesse sentido, o papel desse sujeito é de fundamental

importância para esse estudo. Poderiam esses camaristas muito bem “traficar” essa influência,

pois, de certa forma, poderiam dispor dos expostos na casa de quem bem entendesse e poderiam

usar desse poder para próprios interesses.

CRIADOR (a) SEXO Cor/Cond. Jur. N.EXP.

Ana Luiza F Preta forra 2

Luiza Maria Ferreira da Conceição F Preta forra 2

Thomazia Cardoza F Preta forra 2

Christina Maria F Preta forra 4

Maria da Conceição F Preta forra,viúva 4

Francisco Vieira M Preto forro 3

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Considerações finais

Como em muitos outros lugares do Brasil meridional, a exposição de crianças se fez

presente também na Freguesia Madre de Deus de Porto Alegre. Entretanto, na medida em que a

Madre de Deus vai tomando forma e se urbanizando, paralelamente a exposição vai ganhando

novos contornos. Alegando falta de recursos, a Câmara proclama impostos e derramas para

tentar sanar o problema. Essa briga e o discurso camarário parecem se estender até 1837 quando

definitivamente passa o encargo pela criação dos expostos à Santa Casa de Misericórdia.

Nesse contexto, a Câmara mantinha os expostos sob sua administração, angariando

fundos para manter “famílias criadeiras” que exerciam essa função. A criança exposta poderia

passar por diversos lares até atingir certa idade. Essa mobilidade infantil poderia servir também

como uma forma de estratégia da própria Câmara Municipal para ocultar o destino da criança

daquele que a enjeitou, evitando assim “falsas exposições” que propositavam receber o pecúlio.

O que sabemos é que famílias abastadas criavam expostos para a manutenção de seu estatuto

social, enquanto famílias forras usufruíam desse recurso como fonte de renda para manutenção

de seus lares.

É nesse contexto que pensar o destino da criança exposta, ou sua inserção social,

dependia de muitos fatores. Começamos pelo lar em que foi acolhida ou “dada a criar”, seja a

atribuição que esse pequenino vai receber dentro do fogo. As hierarquias familiares do Antigo

regime eram rígidas, e, pelo que remete a historiografia, nem sempre ser abandonado em um lar

abastado garantiria o sucesso do inocente. Ele poderia ser um agregado ocupando o papel de

serviçal da família, ou uma moeda de troca para formar alianças. Entre as famílias forras, poderia

ter permanecido somente até os sete anos e após ser transferido para outra porta. Essa

multiplicidade de destinos possíveis é questão que fica aberta para reflexão e o futuro dessa

pesquisa.

Referências

BERUTE, Gabriel Santos. Dos escravos que partem para os portos do sul: características do tráfico negreiro no Rio Grande de São Pedro do Sul, c.1790 - c. 1825. Porto Alegre: UFRGS, 2006. Dissertação (Mestrado em História) BOXER, Charles H. O Império Colonial Português (1415-1825). 2. ed. Lisboa: Edições 70, 1977. COMISSOLI, Adriano. Os “homens bons” e a Câmara Municipal de Porto Alegre (1767-1808). Niterói: UFF, 2006. (Dissertação de Mestrado em História).

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Espaços de saber e poder: instituições e seus agentes na perspectiva da História Social

“MANDA QUEM PODE, OBEDECE QUEM TEM JUÍZO”: OS REGISTROS PAROQUIAIS COMO FONTES DE ACESSO ÀS RELAÇÕES DE PODER NUMA

PORTO ALEGRE DE ANTIGO REGIME (1772-1822)

DENIZE TEREZINHA LEAL FREITAS1

Os registros paroquiais são uma importante fonte de acesso ao mundo das relações

sociais e de poder no que tange aos estudos do passado colonial brasileiro. No caso de regiões

onde o processo de povoamento deu-se de maneira tardia comparada às outras áreas da América

Portuguesa, como é o caso de Porto Alegre, esse conjunto documental fornece dados

imprescindíveis para conhecermos a população que nasceu, viveu, casou, passou ou morreu nesta

localidade. Através dos párocos, nossos principais interlocutores desta sociedade, podemos

identificar diferentes nuances de como se refletiam nesses registros fragmentos das relações

sociais e de poder dessa época.

É através dos silêncios, ou da predileção dos párocos ao descrever quem batizavam, quem

casavam ou quem morria, que podemos observar a organização social e as diferenças sociais que

marcavam os jogos de poder implícitos numa sociedade com características que remetiam ao

Antigo Regime. Dentre os principais exemplos, podemos destacar as omissões relativas aos

registros da população escrava, liberta ou indígena; o destaque e a riqueza de detalhes dedicados

aos registros das famílias abastadas; a identificação de estereótipos que qualificavam ou – na

maioria das vezes – desqualificavam os indivíduos, os adendos de retificação quanto a

paternidades e maternidades ilegítimas, bem como as importantes referências às relações de

compadrio e demais laços constituídos e afirmados pelas alianças entre os diferentes grupos

sociais.

Mais do que pontuar as características das populações através das naturalidades, moradias,

idades e causas mortis, esses registros nos proporcionam identificar e classificar os diferentes

arranjos familiares e, a partir desses, perceber os inúmeros vínculos e laços de consanguinidade e

reciprocidade ao longo da vida dos indivíduos. Além disso, mapear através das trajetórias

possíveis estratégias de sobrevivência, mobilidade social e ascensão social através do imbricado

jogo das relações de poder envoltos das relações familiares e sociais que essas fontes nos revelam.

Pensar as relações de poder nesse período exige-nos refletir sobre o importante papel das

famílias nesse contexto. Não apenas no que tange às famílias pioneiras quanto ao povoamento,

mas, sobretudo, a inserção de outras famílias que chegam através do constante fluxo populacional

que marca essa localidade durante o período. A chegada de reinóis e demais luso-brasileiras

1 Doutoranda em História na UFRGS. E-mail: [email protected].

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somadas aos demais estrangeiros que aportam na Freguesia Da Madre de Deus de Porto Alegre

são indicativos fundamentais de como a inserção desses diferentes indivíduos exige pensarmos o

quanto os registros são importantes para a demarcação dos espaços e, sobretudo, do status de

poder de cada componente social.

Nossa intenção nos remete a compreender essas fontes como elos fundamentais para

destacar os complexos caminhos que os indivíduos tecem em suas vidas, tendo em vista a

dicotômica relação entre a teoria e a prática. Privilegia-se um olhar no qual se revele a outra face

da aplicação das normas de conduta aplicadas pela Igreja. Isto é, perceber o sutil entrelaçamento

entre o sagrado e o profano e, mais ainda, sinalizar os interesses que estavam por trás dos

silêncios e desdobramentos daquilo que se quer afirmar ou omitir no papel.

A Igreja e o seu papel nesta sociedade

Todavia, podemo-nos questionar até que ponto há como perceber espaços de poder

implícitos nesses maços documentais de cunho religioso? Compreendermos o papel da Igreja e

do Estado nesse momento torna-se fundamental para respondermos a essa questão. Segundo

Torres-Londoño (1999), o padroado régio forneceu à Igreja um poder local imprescindível e

inconfundível durante o processo de organização e manutenção da ordem na América

Portuguesa. Tal poder configurava situações singulares de desordem e improvisação no que diz

respeito à normatização stricto sensu desses diferentes grupos populacionais.

Durante o século XIX os párocos desempenharam um papel fundamental no cenário

social e político. Tanto que Graham (1997) nos alertara para a atuação deles na organização e

manutenção da ordem. Muitos chegavam a complementar suas rendas através do ofício de

capelães em fazendas, oratórios particulares e irmandades urbanas.

Essa circulação por diferentes esferas dos poderes locais nos permite inferir que a

Paróquia era um centro das relações de poder, tanto daqueles institucionais quanto daqueles que

se referem às demandas do cotidiano dos seus fregueses. Os párocos, detendo-se na sapiência de

quem casava com quem, quem apadrinhava quem, bem como nas circunstâncias de morte de

cicrano e fulano, permitiam-nos deter um conhecimento da população privilegiado.

Dessa forma, não é admirável o fato de que eles sabiam articular a dicotomia encontrada

entre a aplicação das legislações católicas perante a realidade. Não iriam hesitar em encontrar

brechas para adequar os cânones aos interesses particulares de alguns representantes dos poderes

locais. Em outros casos, eram enérgicos no cumprimento das regras eclesiásticas.

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Os registros e as relações de poder

É a partir do âmbito familiar que se iniciam os laços de reciprocidade e poder. A escolha

dos padrinhos, além do caráter espiritual, envolve os possíveis vínculos de segurança financeira e

social da criança caso lhe faltem os pais. No caso do casamento, as escolhas tornam-se ainda mais

refinadas. Está em jogo a formação de outro núcleo familiar no qual as questões patrimoniais e o

status social dos nubentes entram nas tramas das relações de poder. A possibilidade de escolha,

como no caso dos padrinhos e das alianças sacramentadas, dá margem para se observar as

infinitas “arquiteturas de poder” em que os indivíduos poderiam projetar e planejar quais seriam

as “melhores” oportunidades de extensão de seus laços, sejam eles movidos pelo afeto, interesse,

ou ambos.

Por esse caminho, cormo enfatiza Michel Bertrand, não é por acaso que a família é local

privilegiado onde se davam “os primeiros fenômenos de mobilidade social em uma sociedade de

ordens. Dessa maneira, a família servia como base para as demais formas de sociabilidade” (1999,

p. 117- 118). A família deve ser compreendida no período como a base na qual a sociedade se

alicerça. Não obstante, Graham (1997) irá enfatizar como sendo ela o centro catalisador das

relações de poder durante o século XIX, pelo menos no que tange ao clientelismo no Brasil do

século XIX.

O paradigma familiar orientava as relações sociais entre lideranças e liderados, e em seu interior mesclavam-se força e benevolência, obediência e lealdade compravam favores. Obediência e lealdade permitiam ao dependente escapar ao uso da força pelo patrão. Obediência e lealdade asseguravam assistência protetora e, por conseguinte, criavam uma importante defesa contra a força que outros possíveis líderes empregassem. (GRAHAM, 1997, p. 42)

Dessa maneira, transitamos num espaço de transformações, isto é, a transição do século

XVIII para o XIX, que marca o período em destaque neste estudo, é permeado por mudanças,

mas, sobretudo, por muitas permanências. No que se refere aos espaços de poder, temos a

Paróquia como palco de atuação das diferenças sociais. Os documentos mostram o quanto essa

sociedade estava moldada pelo “exemplo de outras arquiteturas políticas da Europa Moderna, a

portuguesa era polissinodal e corporativa, portanto existia concorrência e negociação entre seus

poderes”, conforme nos informa Fragoso (2012, p. 117). Daí as constantes disputas de poder

imbricadas nas entrelinhas dos documentos religiosos que encontramos avulsos no final do 6°

livro de batismo de Porto Alegre.

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As tensões de poder negociadas: registros de batismo, de casamento e de óbito

Num documento de 1824, encontramos Francisco Vieira de Castro e sua esposa D.

Francisca Innocencia de Castro reiterando ao pároco a necessidade de revisar os registros de

batismo de seu filho Antero. Na realidade, eles solicitam que seja realizado um novo assento de

batismo, visto que o casal, naquele momento, sacramentou sua união até então ilegítima aos

olhos da Igreja e da sociedade. Todavia, o que nos chama atenção não diz respeito à procura da

legitimação do filho tido fora dos auspícios do matrimônio sacramentado, mas sim, à maneira

como ambos queriam que fosse realizado o assento:

o Sucplicante pedir a [....] que para seu Respeitar Duplicado invalidado aquelle assentamento e seja novamente aberto outro pela forma seguinte = Antero, filho legitimo de Francisco Vieira de Castro natural de Portugal; e de D. Francisca Innocencia de Castro natural desta [...] neto parterno de Francisco Vieira de Castro e de Anna Angelica de Castro naturaes de Portugal de ambos já falecidos, e netto materna de pais incognitos, foi padrinho Custodio Joze Teixeira de Magalhaes e Madrinha D. Senhorinha Teixeira de Oliveira, e isso. (PARÓQUIA NOSSA SENHORA MADRE DE DEUS PORTO ALEGRE, 1824, 6° Livro de Batismo, s/fl.)

Noutro caso, encontramos Manoel Jose de Freitas Travassos, importante figura da

Câmara de Vereadores de Porto Alegre2, solicitando ao pároco a necessidade de legitimar “hum

seu filho natural” tido com D. Bernardina Candida dos Anjos de nome João. Segundo o

ilustríssimo vereador, João foi batizado “no Oratorio aprovado de sua chácara no caminho novo”

pelo “seu capelão que então hera o R. Ignacio Soares Vianna”. No entanto, “acontece que esse

acento não foi lançado no livro competente, e porque bem [sabe] de seu direito assim necessita

que se faça, para extrahir documento portanto”. Todavia, vale ressaltar que esse documento foi

requerido quando o solicitante encontrava-se viúvo.

Negociações à parte, os casos mostram uma tensão de poder no qual temos, de um lado,

os solicitantes redimindo suas faltas contra a “moral e os bons costumes vigentes da época”, e do

outro, os párocos sendo intimados a tomar atitudes “inconvenientes” dos ditos “homens bons”

da época. Mais do que isso, esses exemplos mostram a importância do batismo e das relações dos

párocos com a sociedade.

Para Farinatti (2007, p. 210) os batismos nos possibilitam verificar as relações de

compadrio e a imensa teia de relações ascendentes e descentes promovidas através da família.

Tais escolhas “tinham absoluta primazia na estruturação das lealdades e prestações entre os

sujeitos”. Não obstante, Kühn (2006, p. 25) salienta que “as relações de apadrinhamento criavam

2 A respeito do papel da Câmara de Vereadores e da atuação política e social desses ditos “homens bons” ver: Comissoli, 2008. Destaque para a importância dos cargos camarários e a formação de poderes locais de acordo com o estudo de Bicalho, 2001.

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obrigações morais recíprocas entre os indivíduos envolvidos”, que partindo da família

expandiam-se para além de seus horizontes.

As escolhas familiares eram de tal importância que a reiteração do poder do pater família

dava-se, sobretudo, a partir delas. Tanto que Brügger (2002) nos chama atenção para o uso do

termo familismo, ao invés do paternalismo, no que diz respeito aos espaços de poder nessas

sociedades. É tão oportuna tal constatação que é justamente no casamento que poderemos

perceber a atuação familiar permeando escolhas, renúncias e/ou articulando interesses em

benefício próprio. Isto é, o matrimônio também deve ser percebido como um importante palco

das tensões familiares.

Nos casamentos também encontramos diversas manifestações de registros que tentam

adaptar a teoria à prática. Nos diversos registros matrimoniais encontramos três tipos que

exemplificam as adaptações feitas pelos párocos: os casamentos “entre muito iguais”, os

casamentos “fora do casamento” e os casamentos “fora da localidade”. O primeiro corresponde

às inúmeras dispensas de casamentos entre nubentes com diversos graus de consanguinidade

entre si3. No segundo, corresponde aos casos como o referido no exemplo do Francisco Viera de

Castro e D. Francisca Innocencia de Castro que já viviam como casal, tinham filhos e, somente

depois de algum tempo de convívio numa relação consensual, resolvem sacramentar a união e,

por conseguinte, legitimar os filhos até então naturais.

Por fim, temos o terceiro tipo, os casamentos “fora da localidade”, que por se tratar de

uniões sacramentadas em outra localidade e reafirmadas na paróquia dão grande margem à

inexatidão dos acontecimentos, mesmo quando munidos de documentação comprobatória ou

sob a comprovação de testemunhas, na sua grande maioria ministrando um discurso muito

parcial. Não obstante, para a confusão geral do pároco local, encontramos o casamento do

Brigadeiro de Salvador Jozé Maciel com Dona Felicidade Perpetua Maciel, ambos portugueses

que tiveram, de acordo com o registro, uma trajetória matrimonial, no mínimo, bastante festejada:

No Primeiro dia do mez de Janeiro de mil oito centos e quatorze annos no Oratorio Approvado das Cazas de residencia do Chefe de Divisão Bernardino Joze de Castro na Cidade da Bahia, com as licenças necessarias e a do Reverendo Parocho da Freguezia de S. Pedro Velho Lourenço da Silva Magalhães Cardozo; forão recebidos em Matrimonio na forma do Sagrado Consilio Tridentino com palavras de prezente em que expressarão seu mutuo consentimento de Brigadeiro de Salvador Jozé Masciel natural e baptizado na Freguezia de Nossa Senhora das Mercez da Cidade de Lisboa filho legitimo de João Teixeira Pinto e de Dona Magdalena da Cunha com Dona Felicidade Perpetua Masciel natural baptizada na Freguezia de S. Nicolau da mesma Cidade de Lisboa, filha legitima de Antonio Jozé da Rocha e de Dona Maria dos Anjos da Cunha e Rocha. Receberão as Bençãos na forma do Ritual Romano depois do dia da Epiphania do mesmo anno pelo seu proprio Parocho sento Testemunhas deste Matrimonio Francisco de Paula da

3 Vale salientar que o número de casos encontrados avança progressivamente à medida que entramos no século XIX, para obter mais informações ver Freitas (2011).

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Cunha deprezente em Lisboa e Manoel Rodrigues ja falecido. O que tudo me constou por huma sentença em forma de Justificação de Matrimonio e manada deste Juizo do Reverendissimo Senhor Conego Provizor e Vigario Geral desta Provincia; E para seu comferimento diz abrir este assento, que assignei as vinte quatro dias do mez de Abril de mil oito centos evinte nove annos deixando averbada adicta Sentença, que devolvi a Parte esta ut supra. (PARÓQUIA NOSSA SENHORA MADRE DE DEUS PORTO ALEGRE, 1814, 4° Livro de Casamento, fl. 9v.)

O assento de casamento acima é exemplar, porque podemos perceber uma preocupação

do pároco em ressaltar que, por mais dúbia que pareça aos seus olhos a credibilidade dos

nubentes e suas reais condições perante as normativas da Igreja para se casarem, o sacramento se

consuma visto: “O que tudo me constou por huma sentença em forma de Justificação de

Matrimonio e manada deste Juizo do Reverendissimo Senhor Conego Provizor e Vigario Geral

desta Provincia” (4° Livro de Casamento – Porto Alegre, fl. 9v.), isto é, verifica-se uma reiteração

dos poderes superiores, mesmo que haja incoerência direta com os regulamentos. Mesmo porque

havia um controle daqueles que poderiam casar e daqueles cuja opção matrimonial não fazia

parte de um projeto de vida, seja por interesse particular ou familiar4.

Por fim, temos os registros de óbito, que nos fornecem uma visão privilegiada do final do

ciclo vital da população. Uma fonte estratégica que nos indica as circunstâncias da morte: a quem

e de que forma deu-se o falecimento: posição social, vínculos familiares, causa morte, condição

social, econômica e/ou política, etc.

No quadro a seguir, podemos identificar alguns casos nos quais é possível perceber os

indivíduos e suas relações de poder mesmo após a morte. Em outras palavras, as esferas sociais e

de poder refletidas nas últimas menções desses indivíduos em vida.

4 Para a realidade portuguesa, Scott (1999) demonstra em seus estudos que as condições de acesso a terra, a possibilidade de migração masculina e a condição econômica dos nubentes eram fatores indispensáveis no momento de optar ou não pelo matrimônio nessa sociedade.

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Quadro 1: Notas de alguns Registros Paroquiais de Óbitos da Freguesia Madre Deus de

Porto Alegre.

Nome Natural Causa Morte

Data Observações

Manoel Dias Ilha do Pico Diarreia 06/05/1808

"faleceu no Hospital"

Antonio Ferreira Leitão

Vila Peniche, Portugal

- 10/01/1808

"faleceu em sua Fazenda em Pedras Brancas"

Joseph Freitas Rio de Janeiro Afogado 02/02/1808

"viva na marinha'

Joana - Bexigas 14/10/1808

filha legitima de Isidoro de Tal, parda, "faleceu do outro lado do rio"

Maria - Parto 19/11/1808

filha legitima de pais negros forros, "faleceu na mesma hora em que nasceu"

Cirurgião Ricardo Joseph da Sylva

Desterro (Florianópolis)

Intrevado

17/04/1809

Casado, "não fez testamento por pobre"

João Ignacio Coelho do Passos

Ilha Terceira Molestia Interior

21/01/1810

"Não fez testamento por muito pobre"

Dona Rita Isabel de Castro

Ilha Terceira - 06/03/1812

Casada, "faleceu de repente sem sacramentos, não se lhe achou testamento por muito pobre"

Maria da Gloria

Lisboa Chagas pelo corpo

10/10/1814

Solteira. Sepultada em catacumba da Irmandade de S Miguel e Almas.

Sebasiana Missões Bexigas 06/07/1817

Índia,."estava em poder do capitão Jose da Silva"

João de Tal - Camaras de sangue

19/08/1819

“Correntino”, Faleceu "em poder do Rev. Doutor Joze Bonifacio Redruel"

Soldado Florencio Matheus

- Um tiro 07/10/1819

20 anos, na guarda da prisão militar; tiro de uma arma disparada casualmente.

Fonte: Elaboração da autora.

A escolha desses registros de óbito e a disposição das informações no quadro acima têm

como objetivo mostrar ao leitor como podemos dispor de dados referentes à posição social dos

sujeitos, bem como das suas relações de poder nessa sociedade. Podemos inferir, de modo geral,

que nem sempre a riqueza estava associada diretamente à hierarquia social e à disposição de

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títulos de nobreza. Todavia as manobras de beneficiamento desses grupos abastados devem ser

levadas em consideração5.

Dentre outros aspectos a serem analisados está a importância das Irmandades6, a

disposição do testamento e o recebimento dos sacramentos que mesclam os interesses terrenos e

espirituais e, portanto, distinguiam os sujeito mesmo depois da morte. Ganha destaque,

sobretudo, as condições precárias de vida das camadas menos abastadas socialmente. Conforme a

fonte, verificamos indígenas “sobre o poder” de Capitães, bem como, a tenra mortalidade das

crianças pobres, forras e/ou expostas7. Enfim, um verdadeiro caleidoscópio social que permite

identificar em diferentes ângulos e cores as relações sociais e de poder dos indivíduos no final da

vida.

Considerações Finais

De modo geral, podemos concluir que, ao refletirmos sobre o conteúdo desses

documentos, tendo em vista uma sociedade pautada sob a égide do Antigo Regime (adaptada aos

trópicos) e alicerçada sob o Padroado Régio, essas fontes são fundamentais para visualizarmos os

espaços de poder numa perspectiva da História Social.

Os registros paroquiais são um espelho dessas hierarquias sociais e, por sua vez, dão voz e

cores através das relações de poder entre as diferentes camadas sociais. Enfim, esses registros

eclesiásticos atuam como as chaves de identidades dessa população, atuam como fontes

privilegiadas para entender o ciclo de vida e os espaços de poder dos sujeitos tecidas ao longo do

tempo, sobretudo, durante as principais etapas da vida, isto é, o marco do nascimento, do

casamento e da morte.

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5 Em outras palavras, necessariamente nem todo nobre era rico, porém, de alguma maneira, a riqueza estava associada aqueles que detinham destaque e posição abastada na sociedade. 6 A respeito das Irmandades em Porto Alegre ver: Tavares, 2008. 7 Relativo aos índices de mortalidade de crianças expostas ver: Silva, 2012.

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Referências Documentais

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PARÓQUIA NOSSA SENHORA MADRE DE DEUS (PORTO ALEGRE). Livros de registros de casamentos. [manuscrito]. Porto Alegre, 1772-1835. 4° v. Localização: Arquivo Histórico Cúria Metropolitana de Porto Alegre. PARÓQUIA NOSSA SENHORA MADRE DE DEUS (PORTO ALEGRE). Livros de registros de óbitos. [manuscrito]. Porto Alegre, 1772-1835. 1° 2° v. Localização: Arquivo Histórico Cúria Metropolitana de Porto Alegre.

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Espaços de saber e poder: instituições e seus agentes na perspectiva da História Social

METODOLOGIA E FONTES PARA ANÁLISE DA PENITENCIÁRIA FEMININA MADRE PELLETIER1

DÉBORA SOARES KARPOWICZ2

A violência e a criminalidade no Brasil são temas de trabalhos em diversas linhas de

pesquisas, transitam em áreas como as das ciências jurídicas, médicas e humanas, nessa última,

em especial, na sociologia e antropologia. Entretanto, no que se refere ao sistema prisional

brasileiro, em particular ao sistema penitenciário feminino, os trabalhos não são expressivos. E os

relacionados ao contexto histórico e à análise da época de suas fundações são ainda praticamente

inexistentes.

No Brasil, o número de mulheres encarceradas é inferior ao de homens na mesma

situação. Tal constatação, a de que a população feminina detenta cresce mais rapidamente do que

a masculina, em termos percentuais, é verificada através dos dados do Sistema de Informações

Penitenciárias (INFOPEN)3.

Os números que retratam o sistema prisional feminino, hoje, inserem-se em um

contexto social diverso do da década de 30 do século XX, quando as tratativas para a construção

da primeira instituição prisional feminina do Brasil iniciaram.

Foi somente pelo Decreto-Lei n.º 2.848, de 7 de dezembro de 1940, que o Presidente da

República – fazendo uso das atribuições a si conferidas pelo art. 180 da Constituição Federal

vigente à época – fez menção ao cárcere feminino. Tal decreto ordenou a mudança na lei penal,

eis que determinou a separação física de homens e mulheres no interior do complexo prisional

brasileiro.

O artigo 29, em seu 2.º parágrafo trazia: “As mulheres cumprem pena em

estabelecimento especial, ou, à falta, em secção adequada de penitenciária ou prisão comum,

ficando sujeitas a trabalho interno.” (Código Penal, Decreto-Lei n.º 2.848, de 7 de dezembro de

1940). No ano seguinte, 1941, sob o Decreto-Lei n.º 3.689, foi estabelecido o Código de Processo

Penal de modo a garantir a estrita aplicação da lei penal e por meio do artigo 766 desse Código,

ficou determinado que “A internação das mulheres será feita em estabelecimento próprio ou em

seção especial”, passando este a vigorar a partir de janeiro de 1942 (Código de Processo Penal,

1 Parte do texto originalmente apresentado no XXVII Simpósio Nacional de História (ANPUH) com o título: Igreja

e Estado: proposta metodológica e de fontes no caso da Penitenciária Feminina Madre Pelletier. 2 Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em História da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do

Sul (bolsista CNPq). E-mail: [email protected] 3 INFOPEN (2008). Sistema Nacional de Informações Penitenciárias. Departamento Penitenciário Nacional. Ministério da Justiça. [Internet]. Disponível em <http:/www.mj.gov.br>. Acesso em 02/10/2012.

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Decreto-Lei n.º 3.689, de 03 de outubro de 1941). Em 1977, a Lei nº. 6.416 alterou a redação do

artigo, incluindo neste o benefício do trabalho externo a essas mulheres (Código Penal, Lei nº.

6.416, de 24 de maio de 1977).

Tal fato incitou-me curiosidade acerca da necessidade de proceder-se à separação dos

apenados no Estado do Rio Grande do Sul utilizando-se o critério de gênero, tendo em vista que

as tratativas para a fundação da obra de assistência às internas do Sistema Penitenciária do Estado

iniciaram quatro anos antes. Em 13 de junho de 1936, assinou-se o primeiro contrato entre a

congregação Bom Pastor d’Angers e o Estado, e em fevereiro de 1937 chegaram à casa do Bom

Pastor as primeiras internas, que, sob os cuidados das irmãs, foram recolhidas sem que ainda

houvesse uma estrutura física definida para acolhê-las. Em 5 de dezembro de 1938, pelo Decreto

Estadual n.º 7.601, essa instituição foi incorporada às instituições prisionais do Estado. Abaixo,

transcrevo um excerto da documentação existente:

No dia 13 de dezembro de 1936, chegaram a Porto Alegre, procedentes da Casa Provincial das irmãs do Bom Pastor, no Rio de Janeiro, oito irmãs, designadas fundadoras da grande obra de assistência às internas do Sistema Penitenciário do Estado do Rio Grande do Sul [...] Acertada as possibilidade de realizarem uma obra apostólica nesta cidade, a Supervisora Provincial delegou três Irmãs que vieram a Porto Alegre para contatos diretos com as Autoridades locais e, no dia 13 de junho de 1936, foi assinado o primeiro contrato celebrado entre a congregação e o Estado do Rio Grande do Sul.4

Os argumentos que justificaram a necessidade da criação dos presídios femininos

basearam-se tanto na necessidade de separar as mulheres dos homens, quanto no tipo de crime

praticado. No caso de delitos cometidos por mulheres, a gravidade dos atos não seria o mais

importante, mas sim, a questão da moral. Houve necessidade de redomesticação da mulher, isto

é, de trazê-la novamente ao exercício das funções que a sociedade julgava competir-lhe, quais

sejam, reprimir sua sexualidade de forma a reinseri-la em seu papel de boa mãe e boa esposa,

reconduzindo-a ao seu destino doméstico (UZIEL, 2004, p.170).

Para tanto, o Estado, com o auxílio da igreja e muitas vezes da própria comunidade –

além de buscar promover a reintegração de mulheres infratoras no modelo comportamental tido

como ideal à época –, tentou manter a moral e os bons costumes sociais.

Ainda, há de se destacar o papel das mulheres, quando – no século XIX– possuíam

papeis determinados e diretamente relacionados à limpeza, e a essa estética, segundo Mary

Douglas, pode-se relacionar a ordem que fundamenta todo um padrão de comportamento. Essas

mulheres foram responsáveis por manter esse padrão de limpeza, consequentemente, de ordem.

4 Disponível no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado (IPHAE) - Processos de Tombamento e Restauro da Capela Bom Pastor, Nº. 7261200906 – 02/07/1990.

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A desordem, no entanto, desde a antiguidade fora tratada de forma a não contaminar a ordem,

sendo o isolamento a prática mais usual. Tudo o que era insalubre, perigoso, deveria ser

bloqueado como forma de proteção aos locais limpos (GAUER, 2005, p. 399-402). Nesse

sentido, destaco as palavras de Ruth Gauer: “daí a importância de Mary Douglas quando lembra

que o reconhecimento de qualquer coisa fora do lugar constitui-se em ameaça, e assim

consideramos desagradáveis e os varremos vigorosamente, pois são perigos em potencial”

(GAUER, 2005, p. 412).

A tutela legada ao Estado e à religião encontrava justificativa nos primeiros estudos

sobre a criminologia feminina. Ainda no final do século XIX, em 1892, Cesare Lombroso em

obra – La Donna Delinquente – defendeu que a mulher tem uma imobilidade e passividade

particular que é determinada fisiologicamente. A imagem da mulher foi construída como a de um

objeto fraco, produto de falhas genéticas. Outra característica destacada foi a inclinação para o

mal, por sua menor resistência à tentação, pois nela predomina a carnalidade em detrimento da

espiritualidade, nesse sentido, porém, segundo Lombroso, a mulher se adapta melhor e obedece

mais às leis que os homens (ESPINOZA, 2002, p. 38).

Outro fator que, somado à visão endógena do final do século XIX, teve peso para a

tomada de decisão quanto à separação de apenados homens de mulheres, foram as mudanças

vindas com a modernidade. O início do século XX trouxe alterações no modo de vida das

sociedades, principalmente no que se refere à forma de ser dessas pessoas. Essa modernidade não

só investiu no embelezamento das cidades – exemplo disso foram as reformas urbanas do início

do século –, mas também se ocupou com a ordem e a disciplina, buscando o bom convívio nas

cidades que se modernizavam.

Nessa contenda, a mulher passou a ocupar espaços predominantemente masculinos.

Essa nova rotina das mulheres nas ruas, nas fábricas, enfim, nos espaços públicos – assim como

temas relacionados a sua sexualidade – começou a tornar-se motivo de críticas e de temor acerca

da possível desordem social e da quebra de valores morais vigentes. Sair do ambiente doméstico

poderia significar falar de tabus relacionados ao adultério, à virgindade, à prostituição e ao

casamento, e questionar instituições sólidas como a família e a igreja (ANDRADE, 2011, p.93).

No Brasil, a situação prisional feminina entrou em pauta em meados do século XIX,

quando passou a ser discutida por profissionais de diferentes áreas (ANDRADE, 2011, p. 68).

Era comum administradores de estabelecimentos prisionais participarem de debates sobre a

organização e funcionamento dos cárceres, faziam viagens ao exterior para se manterem

atualizados com as práticas desenvolvidas nos países da Europa e EUA, trazendo muitas vezes

para o Brasil tais exemplos. Além de debates sobre a motivação ao crime, o problema da

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delinquência e a importância da punição, eram pautados assuntos como a estrutura das prisões e

dos estabelecimentos para o cumprimento de penas, além de se questionar sobre o melhor

modelo punitivo e acerca das maneiras ideais de organizar o cárcere (ANDRADE, 2011, p. 67-

68). Também o contato dos penitenciaristas brasileiros com o exemplo dos países Latino-

americanos, que já possuíam cárceres femininos – Chile (1864); Peru (1871) e Argentina (1880) –

fomentaram os discursos sobre as práticas penais brasileiras (ANDRADE, 2011, p.192).

Através de relatórios esparsos e de alguns periódicos da época – que retratavam a

situação das mulheres nas prisões e casas de correções brasileiras – descrevendo não só a

condição em que se encontravam, mas também o pequeno número de apenadas condenadas,

esses profissionais foram de suma importância para a reflexão acerca do encarceramento no país

(ANDRADE, 2011, p. 25-26). Foram os responsáveis pelas principais reformas nas práticas

penais, aliando ciência ao destino que se há de dar àqueles que cometem delitos tipificados como

crime. Diversas foram as razões, segundo esses estudiosos, para a separação das apenadas, dentre

as principais, a promiscuidade sexual em ambientes nos quais conviviam juntos homens e

mulheres; a precariedade dos espaços que sobravam para as mulheres nas penitenciárias e cadeias;

a promiscuidade das próprias detentas entre si, e o inadequado convívio de detentas em situação

de “aguardando julgamento”, estarem juntas a reclusas com sentença transitada em julgado, pois

eram presas na mesma cela “mulheres honestas” e as “criminosas mais sórdidas” (ANDRADE,

2011, p. 191-192).

Como exemplo, trago um excerto do relatório produzido pelo penitenciarista Lemos de

Britto sobre as condições das penitenciárias já no ano de 1916:

Tínhamos nós uma penitenciaria que mais parecia um antro, amiúde devastados os reclusos por males epidêmicos, dadas as suas péssimas condições hygienicas. Alguns dos últimos governos melhoraram-n’a. Mas, na realidade, Ella em nada nos honra os foros de terra onde se formaram os maiores juristas deste paiz, como Teixeira de Freitas e Ruy Barbosa (BRITO, 1919, p. 24).

Tal pauta engendrou discussões no país inteiro, que, de toda a sorte, tiveram como foco

o resgate da moral, da feminilidade e do aprendizado das tarefas femininas como principais

objetivos daqueles que se dedicavam à causa das mulheres presas. Era esperado que a mulher,

enquanto sexo frágil, desempenhasse o papel de cuidar dos filhos, do lar e do marido, exigiam de

homens e mulheres papéis sociais específicos ditados por regras de condutas pré-estabelecidas.

O desvio deste ideal padrão, ditado pela sociedade tida como moderna no início do

século XX, foi enquadrado como inadequado e punido de acordo com as leis. Nesse contexto

social e com o intuito de resgatar a feminilidade e os valores de boa mãe e de esposa cativa,

enfim, de reintegrar tais mulheres nos parâmetros sociais a elas destinados como adequados, que

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o Estado, a exemplo dos países Latino-americanos, legou a guarda das mulheres condenadas às

irmãs da Congregação Nossa Senhora da Caridade do Bom Pastor d’Angers, responsável pelo

papel de administração do primeiro cárcere feminino do Brasil, que mais tarde terá o nome

Madre Pelletier, em homenagem à fundadora da Congregação Madre Maria Eufrásia Pelletier

(Informe Técnico nº. 5, 1998, p.21).

Fontes e Proposta Metodológica

A fim de viabilizar o estudo partiu-se, primeiramente, para leitura e revisão bibliográfica

em livros, artigos, impressos e registros documentais da época.

O primeiro local pesquisado foi a Escola Penitenciária Rio Grande do Sul (ESP),5 local

com importante arquivo histórico. Na ESP pesquisou-se e manipulou-se todo o acervo,

encontrando referências bibliográficas importantes para o início da pesquisa. Nesse acervo

selecionaram-se artigos, incluindo inéditos, de revistas acadêmicas e institucionais, todas elas com

referências ao cárcere feminino e/ou especificamente à Instituição Madre Pelletier.

Na sequência, partiu-se para a pesquisa em campo. Fez-se o primeiro contato com a

penitenciária onde foi possível conversar com um agente penitenciário que trabalha na SUSEPE

desde o ano de 1980, período de transição institucional na qual o Estado assumiu o papel antes

desempenhado pelas Irmãs do Bom Pastor d’ Angers. O Sr. Manoel Aristimunha testemunhou a

história dessa instituição como nenhum documento seria capaz de registrar.6

Coletaram-se dados valiosos dos quais se fez uso para conseguir o primeiro contato com as Irmãs

do Bom Pastor, que hoje não residem mais em Porto Alegre, existindo apenas um pensionato, ao

lado do Madre Pelletier, administrado por Marizabel Biedrzycki7 e pela irmã Maria do Carmo

Capuano, residente em Caxias do Sul, na sucursal do RS. Em São Paulo, a administração é feita

pela provincial irmã Suzana Franco, responsável pela Congregação em toda a América Latina

5 ESP – Escola Penitenciária Rio Grande do Sul. Voluntários da Pátria, 1358 - 4º andar CEP 90230-010 - Porto Alegre/RS – Brasil. Fundada em 1968 pela Lei nº 5.720 com o objetivo de qualificar os serviços penitenciários promovendo a pesquisa e a difusão de assuntos referentes à criminologia. Disponível em <http://www.susepe.rs.gov.br/especial.php>. Acesso em 03/10/2012. 6 Após diversas tentativas, o primeiro contato com o Sr. Manuel Aristimunha foi feito dia 24/07/2011, por telefone. O Sr. Manuel hoje está lotado na PASC (Penitenciaria de Alta Segurança de Charqueadas), mas por anos trabalhou no Madre Pelletier. O contato com o Sr. Manuel foi indicação da psicóloga e doutoranda em Psicologia pela PUCRS Daniela Canazaro, que além de ter contato diário com a penitenciária, desenvolve pesquisa sobre as mães presas do Madre Pelletier. O segundo contato com o Sr. Manuel foi dia 11/10/2012, em entrevista realizada na PUCRS. 7 Dia 30/10/2012 consegui a primeira entrevista com a administradora do Pensionato do Bom Pastor, Marizabel Biedrzycki. Com Marizabel consegui contatos e informações precisas sobre a administração das irmãs e onde encontrá-las. Tive acesso à bibliografia sobre a história do Bom Pastor d’Angers e fotos.

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(SAL).8 Nessa primeira etapa das entrevistas, chamada ponto zero (MEIHY; HOLANDA, 200,

p.49).9 em história oral, obtiveram-se os primeiros indicativos para dar continuidade à pesquisa.

Além da documentação específica sobre a congregação Bom Pastor d’Angers – que

conta com duas obras escritas pela própria congregação10 e alguns sites oficiais da instituição11 –,

também será utilizada como referência de consulta a dissertação de mestrado de Bruna Angotti

de Andrade, que dispõe de um capítulo sobre essa congregação. Como as fontes secundárias

existentes não abordam em específico o trabalho que foi desenvolvido pelas irmãs do Bom

Pastor em Porto Alegre, apenas contam a história da instituição de uma forma geral, far-se-ão

entrevistas com as irmãs remanescentes e com as pessoas que vivenciaram a administração da

congregação.

Na terceira etapa da pesquisa, optou-se por fazer um levantamento dos documentos

oficiais referentes à instituição Madre Pelletier. Iniciou-se a pesquisa pelo IPHAE (Instituto do

Patrimônio Histórico e Artístico do Estado), no qual havia referência a um Processo de

Tombamento e Restauro da Capela Bom Pastor, localizada dentro da penitenciária. Encontrou-se

não apenas um, mas dois processos – Nº. 7261200906 – 02/ jul de 1990; Nº. 47362200919 – 11/

jul de 1991 – que ficaram por 20 anos arquivados na secretaria da Cultura do Estado e somente

em 2011 foram retomados pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado IPHAE.

Tais processos forneceram dados valiosos sobre a fundação da instituição, datas de assinatura de

contratos e números de processos promulgados na época, além de imagens das irmãs junto às

presidiárias em comemoração aos 40 anos de administração do Bom Pastor.

Documentos referentes ao Reformatório de Mulheres Criminosas foram localizados em

catálogo do núcleo executivo, no Arquivo Público do Rio Grande do Sul (APERS). Também

foram encontradas, em caixas da Diretoria de Presídios e Anexos, informações que fazem alusão

ao contexto histórico da época de fundação da instituição, à Casa de Correção e documentos

sobre o Conselho Penitenciário. Esse material irá compor o corpus documental do primeiro

período analisado.

8 Informações coletadas em entrevista com Marizabel Biedrzycki dia 30/12/2012. 9 A fase do ponto zero deve fornecer elementos capazes de se aprofundar os pontos indicados na problemática e que devem ser perseguidos na investigação. 10 As duas obras existentes que contam a história da congregação são: CAMPOS, Margarida de Moraes. A Congregação do Bom Pastor na Província Sul do Brasil – pinceladas históricas. São Paulo: [s.n], 1981. POINSENET, Marie Dominique. Nada Impossível ao Amor. Tradução de Maria Margarida Campos. Salvador: Editora Mensageiro da Fé, 1968. 11 Sites oficiais da congregação disponíveis para pesquisa: Hermanas del Buen Pastor Vocaciones en Norteamérica: <http://www.goodshepherdsisters.org/>; Diocèse d’Angers: <http://catholique-angers.cef.fr/>; Congregación de Nuestra Señora de La Caridade Del Buen Pastor – Hermanas Del Buen Pastor: <http://www.buonpastoreint.org/>

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Na Assembleia Legislativa estão em publicações oficiais, como o diário oficial de 1936 e

diário oficial de 1981, datas que marcam o recorte temporal desta pesquisa. Assim como, na

biblioteca da assembleia, estão disponíveis algumas leis penais e decretos-leis.

Na ausência de alguns documentos, foi necessária a busca em outros acervos,

encontrando-se, no Arquivo da Casa Civil, os diários oficiais completos de 1938 e 1939 – não

disponíveis no arquivo da Companhia Rio-Grandense de Artes Gráficas (CORAG), tão pouco no

da Assembleia Legislativa. Também naquele acervo estão disponíveis pastas com documentos da

Secretaria do Interior e Exterior e Secretaria de Presídios e Anexos.

A partir dos momentos de pesquisa sinalizados propõem-se, então, reconstituir o

processo histórico que envolve a fundação do Madre Pelletier: do Convento ao Cárcere.

Uma vez reconstituído tal processo histórico, se encontra um caminho possível para a

investigação do pensamento dos penitenciaristas que articularam a mudança na estrutura penal

que vinha sendo aplicada até a década de 1930.

Pretende-se assim investigar o que Franklin Baumer chamou de disseminação do

conhecimento a um público mais vasto, que atinge os costumes, os hábitos, os mitos, por assim

dizer, a construção do conhecimento. Essa perspectiva tem como um dos principais objetivos a

descoberta de uma certa classe de ideias que subjazem e condicionam todo o pensamento formal

(BAUMER, 1977, p. 21-22). Assim, pretende-se orientar o olhar para uma análise competente

dos homens envolvidos no contexto histórico que cerca os eventos de 1936 e 1981, fundamentais

para a construção desta pesquisa. Em outras palavras, almeja-se analisar a órbita de pensamento,

que também pode ser chamada de crenças ou de convicções, que povoaram as mentes dos

penitenciaristas para, enfim, compreender as mudanças na estrutura do cárcere.

Em relação ao contexto social da época de fundação do presídio feminino e às

discussões acerca da necessidade de mudança, do aprimoramento das leis e do cárcere, tem-se

como ponto de partida a análise dos penitenciaristas: Lemos de Britto12, Victório Caneppa,13

Roberto Lyra14 e Cândido Mendes15, que colocaram em discussão a separação dos apenados

homens das apenadas mulheres (ANDRADE, 2011, p. 37; 69). Essa documentação foi

encontrada no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro.

12 Presidente do Conselho Penitenciário do Distrito Federal, inspetor geral penitenciário, ex-professor da faculdade Nacional de Direito e presidente da Sociedade Brasileira de Criminologia. 13 Diretor da Penitenciária central do Distrito Federal. 14 Livre-docente da faculdade Nacional de Direito, professor catedrático da Faculdade de Direito do Rio de Janeiro, promotor de justiça e conselheiro. 15 Jurista Brasileiro, nascido em 1866, participou de maneira ativa dos debates e das práticas em política criminal no início do século XX. Criou o Conselho Penitenciário e a Inspetoria Geral Penitenciária, carregava a bandeira de “elevar os nossos cárceres à altura da civilização brasileira”. Arquivos penitenciários do Brasil, Vol. I, 1940, p. 68.

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Não obstante toda a documentação oficial existente, percebe-se nos depoimentos das

irmãs, dos diretores do presídio e dos funcionários mais antigos, uma riqueza de fatos que o

documento por si só é incapaz de retratar, por isso, destaca-se a importância da utilização da

história oral como aporte metodológico. Todavia, salienta-se que a história oral será uma fonte

subsidiária, complementando as lacunas deixadas pela documentação oficial.

Nessas fontes, procurar-se-á analisar o contexto histórico e social dos anos de 1936 e

1981, bem como os anos circunscritos a esses períodos. Buscar-se-á compreender por que o

Estado legou às irmãs do Bom Pastor d’Angers a incumbência de cuidar das mulheres apenadas

do Estado, bem como buscar-se-á compreender o porquê da mudança administrativa, o que

levou as irmãs a deixarem o comando da penitenciária, já que a supervisão dos serviços esteve

sob seu comando por mais de 40 anos. Da mesma forma, buscar-se-á elencar as diferenças

administrativas ocorridas nesse período, o que mudou com a saída da congregação das irmãs do

Bom Pastor d’Angers.

Em suma, em termos de proposta metodológica, o estudo parte da revisão bibliográfica,

pesquisa de campo e levantamento de documentação oficial para a reconstrução da história do

Madre Pelletier; encontra na história das ideias um campo fértil para investigar o pensamento dos

penitenciaristas envolvidos no processo de modernização do cárcere; e, por fim, também percebe

no emprego a História Oral híbrida16 (MEIHY; HOLANDA, 2007, p.48) uma chave teórico-

metodológica para o desenvolvimento dos objetivos elencados no presente projeto de tese.

Referências

ANDRADE, Bruna Soares Angotti Batista de. Entre as leis da Ciência, do Estado, e de Deus: surgimento dos presídios femininos no Brasil. São Paulo: USP, 2011. Tese (Doutorado em Antropologia). ARTUR, Angela Teixeira. As origens do “Presídio de Mulheres” do estado de São Paulo. São Paulo: USP, 2011. Tese (Doutorado em História). ARMELIN, Bruna Dal Fiume; MELLO, Daniela Canazaro de; GAUER, Gabriel José Chittó. Filhos do Cárcere: Estudo sobre as mães que vivem com seus filhos em regime fechado. Revista da Graduação: Publicação de TCC, Porto Alegre, v.3, n.2, Dados eletrônicos, 2010. <http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/graduacao/article/viewFile/7901/5586>. BAUMER, Franklin L. O pensamento Europeu Moderno: séculos XVII e XVIII (Vol. 1). Lisboa: Edições 70, 1977. BIERRENBACH, Maria Ignês. A Mulher Presa. In: ILANUD (Instituto Latino-Americano das Nações Unidas para a Prevenção do Delito do Delinquente), São Paulo, n.º 12, 1998, p. 71- 91.

16 Os procedimentos utilizados em história oral são: História oral pura: feita com diálogos internos das falas apreendidas. História oral híbrida: quando as narrativas concorrem com outros suportes documentais.

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CONSTANTINO, Núncia Santoro de. Caixas no porão: vozes, imagens, histórias. Porto Alegre: BIBLOS, 2004. ESPINOZA, Olga. A prisão feminina desde um olhar da criminologia feminista. Revista Transdisciplinar de Ciências Penitenciarias, v.1, nº. 1, Jan-Dez de 2002, p. 35-59. FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Rio de Janeiro: Vozes, 2010. FOLGUERA, Pilar. Cómo se hace historia oral. Madrid: EUDEMA, 1994. GAUER, Ruth Maria Chittó. Da diferença perigosa ao perigo da igualdade: reflexões em torno do paradoxo moderno. Civitas - revista de ciências sociais, Porto Alegre, v.5, n.2, p. 399-413, 2005. MEIHY, José Carlos Sebe Bom; HOLANDA, Fabíola. História Oral: como fazer, como pensar. São Paulo: Contexto, 2007. UZIEL, Anna Paula. Radiografias da prisão Feminina: um mosaico. PHYSIS: Rev. Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 14 (1): 147-171, 2004.

Referências Documentais

BIBLIOTECA NACIONAL

Órgão do Conselho Penitenciário do Distrito Federal e da Inspetoria Geral Penitenciária –

Ministério da Justiça e Negócios Interiores.

Documento: Arquivos Penitenciários do Brasil – Imprensa Nacional - 1940 até 1958 – total de 12

volumes.

APERS – Arquivo Público do Rio Grande do Sul

Catálogo Secretaria da Justiça – Núcleo do arquivo executivo:

Conselho Penitenciário – 1928 até 1936

Casa de Correção – 1907 até 1948

Diretoria de Presídios e Anexos – 1939 até 1948

Reformatório de Mulheres Criminosas – 1939 até 1948

ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DO RIO GRANDE DO SUL / Biblioteca

Praça Marechal Deodoro, 101 - Porto Alegre/RS.

Publicações Oficiais – Diário Oficial (1935-1981) - alguns exemplares.

Textos Legais - Código penal de 1890, 1940.

Casa Civil do Estado do Rio Grande do Sul

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Praça Marechal Deodoro da Fonseca, s/nº - Porto Alegre - RS.

Publicações Oficiais: Leis e decretos nãos disponíveis na Assembleia foram encontrados no

acervo da Casa Civil.

ESP – Escola Penitenciária Rio Grande do Sul (SUSEPE)

Rua Voluntários da Pátria, 1358, Ala Sul, 3º andar.

Acervo com publicações de livros, revistas acadêmicas, trabalhos de conclusão de curso.

IPHAE – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado

Processos de Tombamento e Restauro da Capela Bom Pastor

Nº. 7261200906 – 02/ jul de 1990

Nº. 47362200919 – 11/ jul de 1991

AHRS – Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul

Registro de Indagações Policiais – 1933-1936

Registro de Indagações Policiais – 1937

Projetos arquitetônicos com plantas das principais alterações na estrutura do prédio do Madre

Pelletier.

FONTE ORAL

Helena Maria Bianchi – Madre Superiora da Congregação Bom Jesus – Contatos dias:

27/09/2012 e 01/10/2012

Luisa Celeste Biazus – Irmã da Congregação Bom Jesus – Contato dia: 01/10/2012.

Marília dos Santos Simões – Diretora da Penitenciária Madre Pelletier – contato dia 25/10/2012

Manoel Aristimunha – Agente Penitenciário – contatos dias: 24/07/2012, 11/10/2012.

Marizabel Biedzycki – Responsável pelo Pensionato Bom Pastor de POA – contato dia:

30/12/2012.

Irmã Maria do Carmo Capuano – responsável pela Congregação do Bom Pastor d’Angers no RS.

Irmã Suzana Franco – Provincial da América Latina da Congregação do Bom Pastor d’ Angers.

Irmã Maria Edith – Última administradora da Penitenciária Madre Pelletier quando estava sob os

cuidados das Irmãs do Bom Pastor d’Angers, trabalhou nos últimos 15 anos na instituição.

Entrevista dia: 15/05/2013.

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Espaços de saber e poder: instituições e seus agentes na perspectiva da História Social

A TRAJETÓRIA ADMINISTRATIVA DO MARQUÊS DE ALEGRETE NA CAPITANIA DE SÃO PEDRO DO RIO GRANDE DO SUL (1814-1818)1

CLARISSA MEDEIROS2

O presente artigo tem como propósito apresentar os estudos iniciais sobre o trabalho a

ser desenvolvido sobre a trajetória administrativa do Marquês de Alegrete no período de sua

administração como Governador e Capitão-General da Capitania de São Pedro do Rio Grande

do Sul (1814-1818).

A análise da trajetória administrativa do Marquês de Alegrete, proposta para a dissertação

de mestrado, tem como finalidade observar, a partir das cartas enviadas e recebidas pelo Marquês,

de forma a estabelecer a sua rede de relações sociais e políticas, além de avaliar os objetivos do

Império Português para esta região, a região da fronteira platina, nos âmbitos administrativos e

políticos. E a partir das relações sociais estabelecidas por ele, observar as estratégias de um

indivíduo em busca da inserção social e da continuidade política do Império Português.

A trajetória administrativa do Marquês de Alegrete é uma via de acesso interessante para

compreender as diferentes estratégias políticas e administrativas do Império Português na

América, em fins do período colonial. Sendo um português pertencente à nobreza, percebe-se em

sua trajetória as características propostas pela Coroa portuguesa para a melhor governabilidade de

seu Império ultramarino.

Vale frisar que não há nenhum estudo específico sobre a trajetória do Marquês de

Alegrete, que meramente figura como coadjuvante em obras e trabalhos que têm por objeto o

Rio Grande do Sul no período do Império Português. Esse, inclusive, é um dos fatos que

motivou o presente trabalho.

Além disso, é possível que este estudo revele questões interessantes a respeito da forma

de atuação do Marquês de Alegrete na sua posição de Governador da Capitania, como também

do funcionamento da sua rede de relacionamentos sociais e políticos e a consequente influência

desta na política regional.

Quanto à pesquisa documental, pretende-se analisar as correspondências do Marquês de

Alegrete no período de sua administração como Governador da Capitania de São Pedro (1814-

1818). As fontes utilizadas para a análise são as correspondências oficiais do Marquês do

Alegrete, existentes no Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul (AHRS). A partir das

1 O presente artigo tem por objetivo apresentar o trabalho que está sendo desenvolvido para a dissertação de

mestrado no Programa de Pós-Graduação em História na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), na Linha de Pesquisa “Integração, Política e Fronteira” tendo como orientador o Prof. Dr. Luís Augusto Ebling Farinatti. 2 E-mail: [email protected]

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correspondências, busca-se estabelecer e identificar a rede de relações sociais do Governador

para entender o seu processo de inserção social na Capitania e o desenvolvimento das estratégias

do Império Português.

Assim, o objetivo principal deste estudo é a investigação acerca das relações sociais que o

Marquês de Alegrete mantinha ou das que foram por ele construídas no período de sua

administração como Governador e Capitão-General da Capitania de São Pedro do Rio Grande

do Sul, analisando as relações sociais estabelecidas no processo de sua inserção social na

Capitania e de continuidade da governabilidade do Império Português.

Cabe recordar que a administração portuguesa do império ultramarino utilizou-se de dois

mecanismos essenciais para a sua melhor governabilidade: a economia política de privilégios e as

trajetórias administrativas de nobres portugueses no além-mar. Esses mecanismos estão

intimamente ligados, pois é com a concessão de privilégios que a Coroa portuguesa “procurou

hierarquizar, ao longo do tempo, as partes integrantes de seu Império, bem como os homens

encarregados de exercer o seu governo” (FRAGOSO; BICALHO; GOUVÊA, 2000, p. 81).

Diante disso, a economia política de privilégios:

deve ser pensada enquanto cadeias de negociação e redes pessoais e institucionais de poder que, interligadas, viabilizavam o acesso a cargos e a um estatuto político – como o ser cidadão -, hierarquizando tanto os homens quanto os serviços em espirais de poder que garantiam coesão e governabilidade ao Império (FRAGOSO; BICALHO; GOUVÊA, 2000, p. 79)

A trajetória administrativa desses homens formou uma memória de informações sobre as

diversas partes do Império, pois eles circulavam por mais de uma região e exerciam as mesmas

estratégias de governabilidade da Coroa portuguesa. Justamente a partir desses mecanismos que

se pode analisar a trajetória administrativa do Marquês de Alegrete como um homem a serviço da

Coroa portuguesa.

Luís Teles da Silva Caminha e Meneses, o 5.º Marquês de Alegrete, nasceu em Portugal no

ano de 1775, no seio do Império Português, Lisboa. O título de marquês foi-lhe concedido em

1795, por decreto de D. Maria I. Sendo de uma família nobre portuguesa, Luís Teles

compartilhou de todas as benesses de sua condição social. Entrou para Exército Português e em

pouco tempo já estava alocado em um posto do alto-escalão militar: Tenente-General.

Inexistem muitos registros ou informações acerca dos feitos do Marquês no Exército

Português, uma vez que a notícia que sobrevém a esses registros dá conta dele ter sido um dos

membros da comitiva que acompanhou a família real portuguesa ao Brasil, em 1807. Em

sequência, em 1814 foi nomeado Governador e Capitão-General da Capitania de São Pedro do

Rio Grande do Sul, onde permaneceu até 1818.

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Vale lembrar que o Marquês de Alegrete estava se inserindo em uma sociedade ainda

marcada pelas práticas do Antigo Regime, oriundas da própria Coroa portuguesa, que, por sua

vez, lançava mão dessas práticas como forma de vincular, identificar, os seus vassalos

ultramarinos com o Império português.

Assim, nesta perspectiva, a busca pelos indivíduos dentro de seus respectivos contextos objetiva perceber a condição social destes, como asseguram seu espaço na rígida estrutura social do Antigo Regime, e como para tanto, se inserem em diferentes círculos de sociabilidade perseguindo espaços de legitimação. (MENEGATTI, 2009, p. 29)

Isso posto, dados os motivos acima elencados, vê-se que a pesquisa acerca da trajetória

administrativa do Marquês do Alegrete é deveras interessante pelo prisma de suas relações sociais

e de poder, em que o objeto de estudo é um ícone do processo de integração política na fronteira

do Império Português.

Dessa forma, o presente trabalho será desenvolvido na perspectiva da micro-história

italiana, especialmente identificada com a história social, na qual está compreendida como um

sistema de observação que necessariamente se constitui a partir da análise em conjunto dos níveis

micro e macro. Isso faz dos dois níveis um sistema novo de entendimento e, portanto, de

interpretação. A partir da Linha de Pesquisa “Integração, Política e Fronteira”, pretende-se

trabalhar com as relações sociais e de poder do Marquês de Alegrete na sua trajetória como

Governador e Capitão-General da Capitania de São Pedro do Rio Grande do Sul (1814-1818).

A partir da proposta de Giovanni Levi (2001), procura-se ver um sujeito histórico dotado

de uma racionalidade específica do contexto em que vivia, “porém não em termos de uma

realidade cultural inconsciente destinada a sufocá-lo progressivamente. Essa racionalidade pode

ser mais bem descrita se admitirmos que ela (…) fosse também empregada na obra de

transformação e utilização do mundo social (...)”(LEVI, 2001, p. 45). Observa-se um indivíduo

que, apesar de possuir visibilidade naquela sociedade, precisou se adaptar e inserir nos modos de

ser e de viver das pessoas da localidade que fora governar.

Neste estudo procura-se mostrar o homem do seu tempo, um homem arraigado às

práticas de uma sociedade do Antigo Regime. O Marquês de Alegrete figura como um indivíduo

ciente da conjuntura em que vivia e que agia conforme as exigências do momento. Sua postura

política era coerente com a rede administrativa da qual fazia parte e tinha tato suficiente para um

bom relacionamento com as autoridades da Capitania de São Pedro do Rio Grande do Sul.

A pesquisa do presente estudo utiliza-se também do método onomástico denominado

por Carlo Ginzburg (1989), que consiste na utilização do nome como o fio condutor para

estabelecer a rede de sociabilidades na qual os indivíduos estão envolvidos. Para tanto, o Marquês

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de Alegrete, objeto de estudo deste projeto, deve ser analisado dentro da sociedade na qual tenta

se inserir - a Capitania de São Pedro do Rio Grande do Sul, no período de sua administração, de

1814 a 1818 -, observando as relações sociais e de poder que construiu.

Por se tratar de um trabalho que visa à análise das relações sociais e de poder do Marquês

de Alegrete, é necessário compreender o conceito de rede social adotado. Para isso, vale citar o

trabalho de Adriano Comissoli (2011):

Rede social é o conjunto de interconexões entre diversas pessoas dentro de um sistema social. Estas conexões resultam das interações desenvolvidas entre os sujeitos, de modo que as redes podem ser interpretadas tanto à luz de um tipo de uma relação específica quanto pelo conjunto das mesmas. Os nós destas redes incidem nas pessoas envolvidas em sua composição, pois de cada sujeito partem e chegam relações com inúmeros outros (…) Estes nós são interpretados como ponto de encontro das relações sociais que quando vistos em conjunto formam um determinado arranjo dotado de coerência. (COMISSOLI, 2011, p. 30)

Assim, no presente estudo, pode-se dizer que o Marquês de Alegrete pode ser chamado

de “estrela de primeira ordem” (COMISSOLI, 2011). É a partir dele e de suas relações sociais

que será possível perceber as interações entre diferentes indivíduos e a dinâmica dessas relações,

dando início, dessa forma, à análise da rede social desse indivíduo.

Nesse sentido, faz-se necessário esclarecer que essas relações sociais se constituem no seio

de uma sociedade com elementos herdados do Antigo Regime, manifestando-se, em Portugal,

sob a lógica do dom. Segundo Marcel Mauss, Ângela Barreto Xavier e António Manuel Hespanha

baseavam-se numa tríade de obrigações: dar, receber e restituir. Para cada benefício concedido a

uma pessoa havia o dever de retribuição, denominado contradom. Essa lógica estava arraigada em

todos os segmentos daquela sociedade, servindo de base para as suas relações políticas e sociais.

O dom podia acabar por tornar-se um princípio e epifania de Poder. Assim, era frequente que o prestígio político de uma pessoa estivesse estreitamente ligado à sua capacidade de dispensar benefícios, bem como à sua fiabilidade no modo de retribuição dos benefícios recebidos. (XAVIER; HESPANHA, s/d, p.382).

Esses princípios, a lógica do dom e contradom, também se reproduziram nas sociedades do

Império Português ultramarino, ou seja, a sociedade da Capitania de São Pedro do Rio Grande do

Sul, na qual o Marquês de Alegrete buscava se inserir, ainda exercia essa lógica.

Dessa forma, a compreensão do Antigo Regime se faz necessária para entender a

organização dessa sociedade e a lógica da hierarquização e de exclusão social exercida por ele,

pois os seus princípios não ficaram restritos a Portugal, mas foram levados ao seu Império

ultramarino.

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Antes de tudo, a hierarquia social colonial deriva daquilo que denomino de Antigo Regime nos trópicos. Portanto, além de seus aspectos econômicos, seria forjada por vetores políticos e culturais, onde os grupos sociais se percebiam e eram percebidos por suas qualidades. Como se sabe, na antiga sociedade lusa cabia ao governo cuidar do bem comum da República: dirigir a organização social e política das regiões, sendo isto feito pelas pessoas de melhor qualidade da localidade – reunidas na Câmara – e pelos ministros do Rei, ambos subordinados à Coroa. (FRAGOSO, 2002, p. 44)

Os trabalhos acima citados fundamentam a pesquisa, uma vez que tratam das trajetórias

individuais influenciadas pelo Império Português, dentro de uma sociedade em que as práticas do

Antigo Regime ainda permanecem. Dessa forma, a partir desse tipo de trabalho buscar-se-á

analisar as relações sociais e de poder construídas pelo Marquês do Alegrete.

Diante de tudo isso, o trabalho que está sendo desenvolvido tem como objetivo uma

análise em redução de escala do período colonial brasileiro, em especial da fronteira da Capitania

de São Pedro do Rio Grande do Sul nos anos de 1814 a 1818, através das correspondências

recebidas e expedidas pelo Marquês de Alegrete - português recém-chegado para atuar como

Governador e Capitão-General da Capitania - nesse período. Com essa análise, visa-se obter

conhecimento das práticas administrativas e políticas da época e também das estratégias militares,

políticas e administrativas desenhadas pelo Império Português para o ultramar aqui aplicadas pelo

enviado do Império, o Marquês de Alegrete.

Referências

COMISSOLI, Adriano. A serviço de Sua Majestade: administração, elite e poderes no extremo meridional brasileiro (1808c.-1831c.). Universidade Federal do Rio de Janeiro: Rio de Janeiro, 2011. (Tese de Doutorado) FARINATTI, Luís Augusto Ebling. Confins Meridionais: famílias de elite e a sociedade agrária na fronteira meridional do Brasil. Santa Maria: Ed. da UFSM, 2010. ______. Construção de séries e microanálise: notas sobre o tratamento de fontes para a história social. Anos 90 (UFRGS. Impresso), v. 15, p. 57-72, 2008. FRAGOSO, João; GOUVÊA, Maria de Fátima; BICALHO, Maria Fernanda. Uma leitura do Brasil Colonial: Bases da materialidade e da governabilidade no Império. Penélope, nº 23, 2000. p. 67-88. GINZBURG, Carlo. O nome e o como. Troca desigual e mercado historiográfico. In: A micro-história e outros ensaios. Lisboa: Difel, 1989. GOUVÊA, Maria de Fátima. Poder político e administração na formação do complexo atlântico português (1645-1808). In: FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVÊA, Maria de Fátima. O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.

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HESPANHA, Antonio Manuel. Depois do Leviathan. In: Almanack braziliense. S/l, nº5, maio de 2007. LEVI, Giovanni. A herança imaterial: Trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2001. LIMA, Henrique Espada. A micro-história italiana: escalas, indícios e singularidades. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2006. MENEGAT, Carla. O tramado, a pena e as tropas: família, política e negócios do casal Domingos José de Almeida e Bernardina Rodrigues Barcellos. (Rio Grande de São Pedro, Século XIX). Porto Alegre: PPG-História UFRGS, 2009. (Dissertação de Mestrado). XAVIER, Ângela Barreto; HESPANHA, António Manuel. As redes clientelares. In: MATTOSO, José (dir.). História de Portugal: o Antigo Regime. Lisboa, editorial Estampa, s/d. p. 381-393.

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Espaços de saber e poder: instituições e seus agentes na perspectiva da História Social

A TRAJETÓRIA DO GABINETE TOPOGRÁFICO DE SÃO PAULO: A FORMAÇÃO DE ENGENHEIROS PRÁTICOS CONSTRUTORES DE ESTRADAS NA

PROVÍNCIA DE SÃO PAULO (1835-1849)

JOSÉ ROGÉRIO BEIER1

1. Introdução

Se os séculos XVI e XVII foram marcados pela expansão marítima de alguns países

europeus e a consequente conquista de novos territórios coloniais na África, Ásia e América,

pode-se dizer que o século XVIII registra uma mudança desta “cultura de latitude”, ou expansão

marítima, para uma “cultura de longitude”, ou expansão terrestre. (BUENO, 2004, p. 230). O papel

desempenhado por padres jesuítas e engenheiros militares foi fundamental para o processo de

interiorização e formação do território da América Portuguesa, no qual se devassaram os sertões

e se levantaram as potencialidades econômicas e informações geográficas que garantiram melhor

controle do território sob domínio português (BUENO, 2004, p. 230).

Para a vinda de padres jesuítas e engenheiros militares à América Portuguesa, foi

determinante a leitura que Guillaume Delisle (1675-1726), primeiro geógrafo do rei da França, fez

de sua dissertação perante a Academia Real das Ciências de Paris. As correções feitas por Delisle

expunham a transferência de soberania operada pela cartografia portuguesa em relação ao vasto

território espanhol situado a oeste de Tordesilhas.

Assim que recebeu notícias das conclusões de Delisle, D. João V (1689-1750)

convenceu-se de que era indispensável renovar a cartografia portuguesa através dos novos

métodos, especialmente da cultura astronômica, a fim de conferir base científica à diplomacia

portuguesa e “obviar as futuras alegações do governo espanhol, fundadas na situação do meridiano de

Tordesilhas” (CORTESÃO, 2006, p. 277-280).

Assim, em 1722, D. João V manda vir a Portugal dois padres jesuítas napolitanos

especialistas em matemática, astronomia, geografia e cartografia: João Batista Carbone (1694-

1750) e Domingos Capacci (1694-1736). A eles juntou-se Diogo Soares (1684-1748), também

jesuíta, natural de Lisboa e professor da “aula de Esfera” no Real Colégio de Santo Antão. Em

1729, D. João V enviou Soares e Capacci ao “Estado do Brasil” com a tarefa de “fazerem-se mapas das

terras do dito Estado não só pela marinha, mas pelos sertões; (...) e para esta diligência nomeei dois religiosos da

1 Mestrando em História Social do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. E-mail: [email protected]

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Companhia de Jesus, peritos em matemáticas, que são Diogo Soares e Domingos Capacci, que mando na presente

ocasião para o Rio de Janeiro” (TOLEDO, 1981, p. 33-34).

Além dos padres matemáticos, outros profissionais a serviço da Coroa com a

responsabilidade de devassar e mapear os sertões da América Portuguesa foram os engenheiros

militares. Enviados a partir da segunda metade do século XVIII, vinham com a missão de

elaborar cartas topográficas que viabilizassem a execução dos tratados de limites celebrados entre

as coroas ibéricas, em especial os de Madri (1750) e Santo Idelfonso (1777). A obra científica

iniciada por padres matemáticos na primeira metade do século XVIII foi, portanto, continuada

na segunda metade por exploradores e demarcadores de limites, em boa parte engenheiros

militares.

De modo que, a partir da segunda metade do século XVIII, cartógrafos, astrônomos e

engenheiros militares constituíram importante elo de transmissão dos conhecimentos

estratégicos, tais como território e população, que subsidiaram a construção de novas alternativas

e alianças entre as elites regionais e a corte bragantina (KANTOR, 2012, p. 239).

2. Açúcar, estradas e engenheiros

A restauração da capitania de São Paulo, em 1765, ocorre em um momento de crise

econômica em Portugal, no qual a metrópole necessitava ampliar a produção de excedentes em

sua colônia americana para equilibrar suas contas. Mesmo São Paulo, que até então

desempenhava um papel secundário no processo de colonização, deveria entrar em um ritmo no

qual os administradores seriam responsáveis por criar uma infraestrutura de produção agrícola

capaz de gerar excedentes destinados ao comércio internacional (FERLINI, 2009, p. 241). Nesse

sentido, dois períodos são decisivos para a lavoura canavieira em São Paulo: um em 1765, com os

esforços do Morgado de Mateus no desenvolvimento de uma agricultura em um nível que

chegasse a ser “um empreendimento visando ao mercado mundial”; o outro até 1802, quando se

consolida a produção de açúcar para exportação em São Paulo (PETRONE, 1968, p. 12-15).

Em São Paulo, grandes quantidades de açúcar eram produzidas no assim chamado

“quadrilátero do açúcar”, isto é, Sorocaba, Piracicaba, Mogi Guaçu e Jundiaí, onde se plantavam as

quantias mais consideráveis de toda a província (FERLINI, 2009, p. 242). O crescimento cada

vez maior da produção açucareira no interior da capitania foi uma das forças que mais demandou

a presença de engenheiros em São Paulo. Esses, por sua vez, atuaram, dentre outros projetos, na

construção e manutenção de estradas para o escoamento do açúcar até o porto de Santos.

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Em 1814, cinco engenheiros militares atuavam na capitania de São Paulo a serviço da

Coroa portuguesa: “O coronel João da Costa Ferreira, o tenente-coronel Daniel Pedro Müller, o sargento-mor

Frederico Luiz Guilherme de Warnhagen (sic) e os segundos-tenentes Rufino José Felizardo e José Joaquim de

Abreu” (CHICHORRO, 1873, p. 207-208).

João da Costa Ferreira (1750-1822), por exemplo, chegara à capital em 1787,

acompanhando o capitão general Bernardo José de Lorena para as demarcações de limites com a

América Espanhola. Como essas não se efetivaram, foi empregado no levantamento de cartas

geográficas ou em obras públicas, como a famosa Calçada do Lorena.

Outro engenheiro militar português importante nas primeiras décadas do século XIX foi

Daniel Pedro Müller. Contava apenas com 17 anos de idade quando foi enviado a São Paulo, em

1802, no posto de capitão de infantaria agregado à primeira plana da corte, com o exercício de

ajudante de ordens do então governador e capitão general Antônio José da França Horta (Santos,

1965, p. 548). Permaneceu nesse cargo até 1811, quando passou ao Real Corpo de Engenheiros

por decreto de 24 de julho daquele ano (LAGO, 1938, p. 24).

A relação de Daniel Pedro Müller com o Gabinete Topográfico começa ainda na

primeira década do século XIX, antes mesmo da criação formal do mesmo, quando se tentou

organizar um “Instituto Topográfico de São Paulo”, em 1806, com uma aula para formação de oficiais

engenheiros (OBERACKER, 1977, p. 36). Fruto da demanda por engenheiros construtores de

estradas em decorrência da estratégia de dinamização da economia paulista a partir da produção

agrícola voltada para exportação, essa primeira tentativa acabou não tendo êxito.

3. O Gabinete Topográfico: uma vida efêmera e intermitente

Após a abdicação do imperador, a instauração do poder provincial através do Ato

Adicional de 1834 foi um dos momentos fundamentais do jogo político que se estabeleceu à

época. Com ele, o governo do Rio de Janeiro conferia certo grau de autonomia às elites regionais.

Através dessa iniciativa, delegava-se à província parte do poder tributário, coercitivo e legislativo

a ser exercido pelo grupo dominante na região (DOLHNIKOFF, 1993, p. 10).

A partir da conquista dessa autonomia tributária, as elites paulista puderam levar adiante

uma política econômica orientada para o desenvolvimento material da província, de modo que a

necessidade de investir no crescimento da agricultura de exportação materializou-se na forma do

reinvestimento dos recursos arrecadados com os impostos, na construção de estradas que

ligassem o interior da província à capital e essa, por sua vez, ao porto de Santos

(DOLHNIKOFF, 1993, p. 95-96).

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Visando verificar o resultado da política viária paulista após a criação da Assembleia

Legislativa Provincial, comparou-se a rede de estradas provinciais de 1837, representadas em um

mapa viário de Daniel Pedro Müller, com essa mesma rede, tal como descrita no relatório sobre o

estado das obras públicas de 1851. O resultado dessa comparação revelou que vinte e cinco

estradas descritas no relatório não constavam no mapa viário de Müller (DOLHNIKOFF, 1993,

p. 95-96).

Tal diferença revela a existência de uma quantidade de profissionais aptos a construir e

conservar estradas na província. Sabe-se que, nesse período, o governo provincial contratou

engenheiros e outros especialistas da área no exterior, além de ter solicitado o envio desses

profissionais da Corte. Contudo, para explicar melhor a expansão da rede viária observada no

período, deve-se considerar, junto com essas iniciativas, os profissionais formados pelo Gabinete

Topográfico no período em que esse funcionou, ainda que de forma intermitente.

A primeira fase do Gabinete Topográfico (1835-1838)

A história do Gabinete Topográfico começa, oficialmente, apenas dois meses após a

abertura da Assembleia Legislativa da Província de São Paulo, quando esse foi criado pela Lei

provincial de 24 de março de 1835. Segundo o texto da Lei, o Gabinete deveria conter: um diretor;

uma escola para estradas; os instrumentos necessários para trabalhos geodésicos; a coleção de todos os documentos

topográficos da província e uma biblioteca análoga ao estabelecimento. 2

Mais do que uma escola de engenheiros de estradas, o Gabinete Topográfico era uma

repartição provincial de obras públicas (CAMPOS JR., 1997, p. 69). Ao descrever as atribuições

do diretor do Gabinete Topográfico, o artigo 3º da Lei que criou o estabelecimento evidencia que

o objetivo principal da instituição era formar profissionais para a construção de estradas.

Levou mais de um ano para que o Gabinete Topográfico entrasse em funcionamento. Em

janeiro de 1836, como ainda não havia sido instalado, o então presidente da província, José

Cesário de Miranda Ribeiro (1835-1836), justificava em seu discurso aos membros da Assembleia

Legislativa que “o governo esperava installal-o [Gabinete Topográfico] brevemente, e já não o fôra por falta

de uma sala conveniente” (EGAS, 1926, p. 59).

Enquanto não era instalado, um diretor para o Gabinete Topográfico foi nomeado, a fim

de que providenciasse a organização, instalação e o colocasse em funcionamento. O oficial-

engenheiro nomeado para o cargo foi o tenente-coronel José Marcelino de Vasconcelos que, em

2 SÃO PAULO. Lei n. 10, de 24 de março de 1835. Cria nesta capital um gabinete topográfico. Disponível em: <http://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/lei/1835/lei%20n.10,%20de%2024.03.1835.pdf>. Acesso em: 01 fev. 2012.

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ofício de 14 de julho de 1836 dirigido ao presidente da província, se diz honrado pela nomeação

ao cargo, “aceitando-a com satisfação”. 3

O Gabinete Topográfico começou a funcionar na capital em 1º de Agosto de 1836, como

revela o ofício de José Marcelino de Vasconcelos enviado ao presidente da província nessa data.

(AESP, cx. 78, pasta 1, doc. 181). Meses depois, o próprio presidente Gavião Peixoto reafirmaria

essa informação no discurso de abertura dos trabalhos da Assembleia Legislativa Provincial, aos 7

de janeiro de 1837, informando que o Gabinete Topográfico já estava em funcionamento “desde o

dia 1º de Agosto do anno passado [e] que tem sido frequentado por 14 alumnos a tres dos quaes mandei contar

gratificação” (EGAS, 1926, p. 64).

Variando de 13 a 16 anos de idade, a maior parte dos alunos (9 de 14) eram filhos de

militares, sendo também nove o total dos estudantes naturais de São Paulo. A dotação destinada

pelo governo à organização, instalação e funcionamento do Gabinete Topográfico foi de:

3:200$000, sendo 600$000 para seu diretor, 438$000 para a gratificação dos alunos, 2:000$000

para a compra de livros e instrumentos e mais 162$000 para o expediente. 4

No entanto, em 1838, assim que uma nova legislatura tomou posse na Assembleia

Legislativa Provincial, o diretor José Marcelino de Vasconcelos foi chamado pelos deputados

para prestar esclarecimentos sobre os obstáculos que estariam “tornando infrutífero o estabelecimento”,

aventando, em função disso, a possibilidade de fechar o Gabinete Topográfico.

Em resposta aos deputados, Vasconcelos enviou um ofício, datado de 20 de fevereiro de

1838, discordando veementemente de que o estabelecimento estivesse se tornando infrutífero e

critica a legislatura que fez a Lei que derrubou o Gabinete Topográfico. Fala também da

importância do curso de engenheiros, mas informa que a acatará com a “obediência de um soldado

velho” caso a Assembleia decida mesmo fechar o Gabinete. 5

Embora apaixonada, a defesa de Vasconcelos não surtiu efeito e apenas dois anos após a

instalação do Gabinete Topográfico, a Assembleia suspendeu suas atividades, como se vê na Lei

nº 29, de 31 de março de 1838. 6

3 Arquivo Público do Estado de São Paulo. Ofícios diversos. Cx. 78, pasta 1, doc. 179. 4 Em termos comparativos, em 1836, um lente proprietário da Academia de Direito de São Paulo recebia a remuneração de 1:200$000, enquanto um substituto recebia o valor de 800$000 anuais. (Müller, 1978, pp. 256-261). Já um lente efetivo da Academia Militar do Rio de Janeiro recebia, em 1835, remuneração de 1:000$000. (Silva Telles, 1994, p. 102). 5 Arquivo Público do Estado de São Paulo. Ofícios diversos, cx. 84, pasta 2, doc. 36. 6 SÃO PAULO (Província). Lei n. 29, de 31 de março de 1838. Suspende a execução da Lei de 24 de Março de 1835, que criou o Gabinete Topográfico. Disponível em: <http://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/lei/1838/lei%20n.29, %20de%2031.03.1838.htm>. Acesso em: 6 de março de 2013.

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A segunda fase do Gabinete Topográfico (1840-1849)

Foram necessários dois anos até que o Gabinete Topográfico fosse restabelecido pela Lei

nº 12, de 12 de março de 1840. 7 Em janeiro de 1841, Rafael Tobias de Aguiar informava aos

deputados da Assembleia que o Gabinete ainda não havia podido principiar seus trabalhos, mas

já contava com um diretor muito capacitado que acabava de ser nomeado: Daniel Pedro Müller

(AGUIAR, 1841, p. 6-7). 8

Pouco antes de falecer, Müller trabalhava na reorganização do Gabinete Topográfico.

Para ele, seria impossível reorganizar o estabelecimento sem que se reformasse a Lei que o havia

restabelecido. A nova organização do Gabinete Topográfico pretendida por Müller deveria seguir

o exemplo da Escola dos Engenheiros Medidores de Niterói, por essa haver correspondido às

expectativas que se tinha dela.

A morte de Müller retardou o restabelecimento do Gabinete Topográfico e, como em

1842 o mesmo ainda não estivesse restabelecido, Miguel de Souza Mello e Alvim, então

presidente da província, discursou aos deputados da Assembleia lembrando a carência de

engenheiros nas obras públicas e da necessidade em se restaurar o Gabinete Topográfico.

Enquanto isso não ocorria, foi enviado da Corte o “2º Tenente do Imperial Corpo de

Engenheiros (sic)”, José Jacques da Costa Ourique (1815-1853), que logo foi nomeado diretor do

Gabinete Topográfico no lugar de Müller. (SOUZA E MELLO, 1844, p. 13-14). Tão logo

chegara, Ourique enviou um ofício ao presidente da província propondo alterações para a Lei de

criação daquele estabelecimento, expondo algumas adaptações que julgava necessárias no plano

de estudos do mesmo. 9

Para Ourique, o arranjo adequado para as novas matérias do Gabinete Topográfico

deveria privilegiar matérias teóricas que visavam formar “o pratico de Estradas”. Quanto aos

exercícios práticos que deveriam ser executados pelos alunos, sua sugestão era:

(...) nas férias os exercícios estabelleci um todos os dias uteis do anno inteiro para que pudesse encumbir os discípulos de vários pedaços, que reunidos deverião formar um exercício completo; para o que eu pedi então a V. Exa. que visto não haver quem cuide imediatamente do arruamento, e calçamento da cidade commuta-la ao Gabinete. V. Exa. bem sente que os discípulos lucrarão bastante com esta pratica. 10

7 SÃO PAULO (Província). Lei n. 12, de 12 de março de 1840. Restabelece o Gabinete Topográfico. Disponível em: <http://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/lei/1840/lei%20n.12,%20de%2012.03.1840.htm>. Acesso em: 06 mar. 2013. 8 Embora oficialmente nomeado diretor do Gabinete Topográfico, em 1840, Müller jamais chegou a exercer a função com o estabelecimento em funcionamento, já que acabou falecendo no dia 1º de agosto de 1841. 9 Arquivo Público do Estado de São Paulo. Ofícios diversos, cx. 88, pasta 1, doc. 31. 10 Idem.

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Segundo Eudes Campos Jr., o curso do Gabinete Topográfico tratava-se de um curso

rápido e incapaz de habilitar o profissional nele formado com a mesma aptidão de um

engenheiro. Após formados, os alunos daquele estabelecimento estariam mais próximos dos

“agrimensores”, ou ainda, “engenheiros práticos” que no desenvolvimento de suas vidas profissionais,

deparavam-se com “todo tipo de trabalho ligado à engenharia, correspondendo às expectativas na medida da

capacidade de cada um para o autodidatismo” (CAMPOS JR., 1997, p. 73).

Quanto aos alunos que frequentavam o Gabinete Topográfico em 1843, a relação dos

quinze estudantes matriculados encontra-se na transcrição do discurso do então presidente da

província, José Carlos Pereira d’Almeida Torres, por ocasião da abertura da Assembleia

Legislativa Provincial. (TORRES, 1843, Mappa n. 7). No ano seguinte, 1844, vinte e três alunos

haviam se matriculado, “dos quaes unicamente sete ficarão habilitados a fazer exames, sendo cinco approvados

plenamente e dous simplesmente”. (SOUZA E MELLO, 1844, p. 13-14). Os sete foram aprovados e,

dessa forma, concluíram o curso de engenheiro prático. 11

Contudo, naquele mesmo ano de 1844, houve uma mudança na organização do Gabinete

Topográfico quando a Assembleia Legislativa aprovou uma Lei criando a Diretoria de Obras

Públicas. De acordo com o artigo 6º dessa Lei, a escola do Gabinete Topográfico foi transformada

em um anexo à diretoria de obras públicas. 12

A Diretoria de Obras Públicas foi uma repartição de estrutura muito ambiciosa para a

época e, por essa razão, teve duração efêmera. Em 1845, a Assembleia resolveu aprovar uma Lei

dividindo a província em quatro seções de obras públicas. No ano seguinte, aprovou outra Lei

reduzindo a estrutura da diretoria e, além disso, decidiu que os alunos da escola não mais

receberiam gratificação ou sequer seriam aproveitados em trabalhos da diretoria, o que, na

prática, decretou o fim do Gabinete Topográfico (CAMPOS JR., 1997, p. 70-71).

Em 1846, anexo ao discurso do presidente da província à Assembleia, há uma lista dos

vinte e sete alunos matriculados no curso do Gabinete Topográfico. Não por acaso, no final

daquele ano letivo, onze alunos não concluíram o curso, dos quais, cinco foram para a Academia

de Direito (LIMA E SILVA, 1846, Mappa n. 7).

Dois anos mais tarde, em 1848, apenas três nomes constavam na lista dos alunos

matriculados “por causa do abandono em que tem estado seus alunos, desempregados e forçados a procurar outros

meios de vida” (RIBEIRO, 1848, p. 6). Assim, a Assembleia Legislativa Provincial decidiu suprimir

11 São eles: 1º Antônio Alexandrino dos Passos; 2º João José Soares; 3º Saturnino Francisco Villalva; 4º Gil Florindo de Moraes; 5º Antônio José Vaz; 6º Firmino Antônio de Campos Penteado e 7º Francisco Delfino de Vasconcelos. (Lima e Silva, 1845, pp. 12-13). 12 SÃO PAULO (Província). Lei n. 36, de 15 de março de 1844. Cria uma diretoria de obras públicas e autoriza o presidente da província a fazer os regulamentos necessários. Disponível em: <http://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/lei/1844/ lei%20n.36,%20de%2015.03.1844.pdf>. Acesso em: 18 mar. 2013.

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o Gabinete Topográfico. Vicente Pires da Motta foi quem sancionou a Lei n. 27 onde se lê: “Fica

supprimido o gabinete topographico, revogada a Lei de sua creação”. (SÃO PAULO, Lei n. 27, de 23 de

abril de 1849).

4. Os engenheiros formados pelo Gabinete Topográfico

Muitos alunos passaram pelas cadeiras do Gabinete Topográfico nos anos em que esse

funcionou em São Paulo. Alguns desses alunos chegaram a se formar como engenheiros práticos

e seus trabalhos contribuíram para o desenvolvimento viário da província de São Paulo.

José Porfírio de Lima (c. 1810-1887), por exemplo, foi um dos alunos da primeira fase do

Gabinete Topográfico. Tão logo concluiu o curso do Gabinete, ganhou uma bolsa para cursar a

Aula dos Arquitetos Medidores, em Niterói (CAMPOS JR., 1997, p. 71). Voltou para São Paulo em

1843 e, já no ano seguinte, foi nomeado membro da diretoria da recém-instituída Diretoria de

Obras Públicas. Em 1854, propôs projeto de pavimentação das ruas de São Paulo, tendo seu plano

negado pela câmara por essa se declarar desprovida de conhecimento técnico necessário para

executá-la (FAGGIN, 2009, p. 117). Aposentou-se do cargo de engenheiro da Câmara da Capital

em 1879 (CAMPOS JR., 1997, p. 71).

Francisco Gonçalves Gomide, aluno da segunda fase do Gabinete Topográfico, em 1852,

era membro do conselho de engenheiros chefes de seção de obras públicas da província de São

Paulo. Além disso, em 1858, substituiu o engenheiro inglês William Elliot na direção da estrada

que ia da Capital a Santos (Egas, 1926, p. 265).

Gil Florindo de Moraes, mais um da segunda fase do Gabinete Topográfico, tinha a seu

cargo as estradas da Penha e a de Jundiaí. Além dessas, também fora mandado a Taubaté para

verificar as condições para a realização de obras em uma estrada em São Bento do Sapucaí Mirim

que deveria substituir os antigos caminhos que levavam a Tremembé e Quererim. Tendo dado o

parecer de que tal obra custaria aos cofres provinciais a importância de 40:000$000 rs, Moraes era

favorável que se reparasse estrada que passava pela capela de Tremembé (Egas, 1926, p. 265).

Outros dois alunos premiados da segunda fase do Gabinete Topográfico, Antonio

Alexandrino dos Passos Ourique e João José Soares, foram contratados como primeiros

engenheiros municipais entre os anos de 1849 e 1853 (Campos Jr., 1997, p. 79). Soares, anos mais

tarde, foi encarregado de examinar a estada Taubaté-Ubatuba para organizar o orçamento das

despesas prováveis para a construção de uma estrada de rodagem entre as duas cidades (Egas,

1926, p. 266).

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Por fim, o engenheiro civil Antônio José Vaz, também da segunda fase, foi encarregado

dos reparos das pontes grande e pequena no aterrado de Sant’Anna, em 1858. (Egas, 1926, p.

269). Vaz também fora encarregado de averiguar o local mais apropriado para a construção de

uma ponte com cabeceiras de pedra sobre o rio Piracicaba na cidade de Constituição, tendo esse

engenheiro escolhido o local, realizado o plano e orçado a obra em 18.614$670 rs (Egas, 1926, p.

275).

Em 1894, por ocasião da inauguração da Escola Politécnica, Antônio Francisco de Paula e

Souza, organizador e primeiro diretor da Escola, fez menção honrosa aos criadores do Gabinete

Topográfico em sua oração:

A Victoria hoje alcançada, foi em lucta porfianda; porque a Idea que hoje venceu não é nova – Nossos avós já a tinham, tentaram realisal-a. – Elles bem avaliavam as grandes vantagens que a esta região adviria da divulgação de conhecimentos mathematicos – Crearam, por isso, uma escola de Engenheiros constructores de Estradas, que modestamente denominaram “Gabinete Topographico” (CAMPOS JR., 2004, p. 7).

Ao relembrar o Gabinete Topográfico como escola de “engenheiros construtores de estradas”,

Paula Souza refere-se a ele como uma espécie de precursor da Escola Politécnica. Se não se pode

dizer, tal como Eudes Campos lembrou, que a formação dos profissionais daquela instituição era

propriamente a de engenheiros, mas sim a de “práticos”, ainda assim, o Gabinete Topográfico

desempenhou papel importante no ensino de engenharia na província, tal como evidenciam os

alunos que dele saíram e exerceram posições na construção e manutenção de estradas, ou ainda,

em outras obras públicas provinciais.

5. Considerações finais

Desde o último quartel do século XVIII, a necessidade de construir e conservar estradas

para o escoamento da produção das vilas do interior de São Paulo até o porto de Santos se

intensificou. Tal necessidade foi, seguramente, uma das principais forças a demandar a presença

cada vez maior de engenheiros em São Paulo nas primeiras décadas do século XIX.

Embora o projeto de uma escola capaz de formar profissionais aptos a construir estradas

fosse imaginado desde 1806, a viabilização de tal estabelecimento só se deu muitos anos mais

tarde a partir da relativa autonomia legislativa e tributária conquistada com a criação da

Assembleia Legislativa da Província de São Paulo, em 1835.

Em um contexto de expansão da produção de açúcar e café, quanto mais essas lavouras

se expandiam para o interior da província, maior era a necessidade da expansão da rede viária

para o escoamento mais eficiente da produção.

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Ao destacar brevemente a vida profissional de alguns dos engenheiros práticos formados

pelo Gabinete Topográfico, evidenciou-se como essa escola de engenheiros foi pensada pela elite

política como instrumento de governo a serviço da administração provincial, na medida em que

seu principal objetivo era fornecer quadros para a construção e conservação de obras públicas na

província, em especial, as tão reivindicadas estradas.

Também deve ser destacado o papel desempenhado pelo Gabinete Topográfico como elo

na transição da engenharia militar para a engenharia civil em São Paulo. Antes de seu

estabelecimento, os engenheiros a serviço na província, excetuando-se os estrangeiros, eram

oficiais militares. Após a formação dos primeiros estudantes do Gabinete Topográfico, São Paulo

também passou a contar com seus primeiros engenheiros civis formados na própria capital da

província.

Referências

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ACERVO Histórico da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo. Série: Ofícios e Pareceres. ACERVO Histórico da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo. Legislação. Disponível em: <http://www.al.sp.gov.br/alesp/legislacao.html>. Acesso em: 18 mar. 2013. ARQUIVO do Estado de São Paulo. Fundo: Segov – Série: Ofícios Diversos. CHICHORRO, Manoel da Cunha de Azeredo Sousa. Memoria em que se mostra o estado econômico, militar e politico da capitania geral de S. Paulo, quando do seu governo tomou posse a 8 de dezembro de 1814 o Ilm. e Exm. Sr. D. Francisco de Assis Mascarenhas, conde de Palma do Conselho de S. A. Real e do de sua real fazenda. In: Revista Trimensal do Instituto Histórico, Geographico e Etnographico do Brasil, t. 36, parte 1, 1873, pp. 197-267. SÃO PAULO (Província). Discursos e relatórios dos presidentes da província de São Paulo (1835-1850). Disponível em: <http://www.crl.edu/brazil/provincial/s%C3%A3o_paulo>. Acesso em 22 abr. 2013. MÜLLER, Daniel Pedro. Ensaio d’um quadro estatístico da provincia de S.Paulo: ordenado pelas Leis provinciaes de 11 de abril de 1836 e 10 de março de 1837. Reedição litteral. São Paulo: secção de obras d’ “O Estado de S.Paulo”, 1923 (1838).

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Espaços de saber e poder: instituições e seus agentes na perspectiva da História Social

UMA TRAJETÓRIA, MUITAS RELAÇÕES: O LÍDER REPUBLICANO JÚLIO PRATES DE CASTILHOS E SEUS CORRELIGIONÁRIOS

CARINA MARTINY1

Introdução

Em 1882, um grupo de republicanos formados na Faculdade de Direito de São Paulo –

dentre os quais estavam José Gomes Pinheiro Machado, Júlio de Prates de Castilhos, Joaquim

Francisco de Assis Brasil e Antônio Augusto Borges de Medeiros2 – associados a propagandistas

republicanos, atuantes desde a década de 1870, como Apolinário Porto Alegre e Francisco Xavier

da Cunha, fundaram o Partido Republicano Rio-Grandense (PRR).3

Surgido mais tardiamente do que os partidos republicanos de outras províncias brasileiras,

o PRR não constituía maioria política no estado no momento da queda da Monarquia e

instauração da República. Em muitos municípios sul-rio-grandenses, o domínio político ainda

estava nas mãos do Partido Liberal naquela conjuntura de mudança de governo. Nos anos finais

do Império, o domínio do Partido Liberal no estado era notável, sendo os republicanos grupo

numericamente inferior. Como apontou Ana Luiza Setti Reckziegel (2007) esse domínio político

do Partido Liberal no Rio Grande do Sul deu-se através da Guarda Nacional, do Legislativo

Provincial e da presença na maioria dos governos municipais.

Proclamada a República, em 1889, o PRR assumia o poder no Rio Grande do Sul. Se em

muitas outras partes do país, a passagem da monarquia à República ocorreu com a associação

entre militares republicanos e membros do Partido Liberal, no Rio Grande do Sul, o início da

República foi marcado por uma clivagem entre republicanos e as lideranças do Partido Liberal

(HEINZ, 2009, p. 265). Esta clivagem ficou evidente na formação, em 1892, do Partido

Federalista, sob a liderança de Gaspar Silveira Martins, antes líder liberal. O Partido Federalista

tornou-se o grande adversário político de PRR.

Sob a liderança de Júlio Prates de Castilhos, o PRR construiu, ao longo da primeira

década republicana, sua hegemonia política, consolidando-se à frente do poder no estado.

Nascido em 1860, na freguesia de São Martinho, distrito de Cruz Alta, Castilhos bacharelou-se

1 Doutoranda em História na UFRGS, bolsista CAPES. E-mail: [email protected]. 2 Diferentemente dos demais citados, Borges de Medeiros estudou na Faculdade de Direito de São Paulo entre os anos de 1881 a 1884, mas formou-se, em 1885, em Recife. Durante o Império do Brasil existiram no Brasil duas faculdades de Direito, uma em São Paulo e outra em Olinda. Ambas foram criadas em 1827 e começaram, a funcionar no ano seguinte. Em 1854 o curso de Direito de Olinda foi transferido para o Recife (Carvalho, 2007). 3 Sobre o PRR ver Ramos (1990) e Grijó (1999).

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em 1881 pela Faculdade de Direito de São Paulo. De volta à província, participou da fundação do

PRR e do jornal republicano A Federação. Depois de proclamada a República, em 1889, exerceu

por duas vezes o cargo de presidente do Estado (em 1891 e de 1893 a 1898).

Este artigo analisa o papel central exercido por Júlio de Castilhos como líder republicano

nos anos iniciais da República, algumas estratégias de construção da hegemonia política

republicana no estado e a ação dos correligionários em busca de vantagens pessoais através da

prática da barganha e da negociação política.

O conjunto documental utilizado para a análise compreende as correspondências

enviadas por correligionários a Júlio de Castilhos entre novembro de 1889 e fevereiro de 1893.

Determinamos como marco inicial novembro de 1889 por corresponder à data da Proclamação

da República no Brasil e encerramos em fevereiro de 1893, por corresponder ao início da

Revolução Federalista, a guerra civil que opôs republicanos e federalistas no estado e que

encerrou apenas em 1895, com a vitória dos republicanos.

Através da análise quantitativa das correspondências determinamos os principais

remetentes, os períodos de maior envio de correspondências e os locais de origem delas. A

análise qualitativa, por sua vez, permite determinar, a partir do conteúdo das cartas, os assuntos

tratados e a natureza das relações que os correligionários teciam com o líder do partido.

Se, como já apontado pela historiografia, a Revolução Federalista foi importante para a

construção da hegemonia republicana no Rio Grande do Sul, este artigo intenta demonstrar que

outros fatores também foram determinantes, sendo um deles a construção de uma base de apoio

republicana nos municípios, assentada na ação política de correligionários.4 A hipótese que

buscamos demonstrar é que a prática da negociação foi utilizada pelos correligionários

republicanos ao tratar com Júlio de Castilhos. O PRR e o líder do partido, por sua vez, ampliaram

a base de apoio e construíram a hegemonia política no estado utilizando, em boa medida, a

negociação com seus correligionários.

Correspondendo-se com o líder: as correspondências de correligionários a Castilhos

Uma análise inicial, de caráter quantitativo, das correspondências enviadas por

correligionários a Castilhos, entre 1889 e 1893, aponta que, entre janeiro de 1890 e dezembro de

1892, 131 correspondências foram enviadas ao líder republicano. Após eliminarmos aquelas que

não tinham por origem algum lugar do Rio Grande do Sul e as que não continham informação

acerca do local de origem, ficamos com 102 correspondências, conjunto com o qual trabalhamos

4 Sobre a Revolução Federalista (1893-1895) ver Wasserman (2004) e Reckziegel (2007).

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neste artigo. Como é possível perceber, não contabilizamos nenhuma correspondência nos meses

de novembro e dezembro de 1889 e em janeiro de 1893, antes da eclosão da Revolução

Federalista. Das 102 correspondências, 84 foram enviadas no ano de 1890, uma no ano de 1891 e

17 no ano de 1892.

Gráfico 1 - Número de correspondências enviadas a Castilhos por correligionários entre nov/1889 e fev/1893

Fonte: AHRGS. Fundo Arquivo Particular Júlio de Castilhos. Correligionários, Correspondências recebidas, 1890-1892, Maços 28, 30, 31 e 32.

Para explicar o elevado número de correspondências no ano de 1890, bastante díspar em

relação aos demais anos em análise, apontamos uma hipótese. O fato de ser este o ano

subsequente à Proclamação da República, correspondendo, portanto, ao período de estruturação

do arranjo político-administrativo republicano, pode ter ocasionado uma maior emissão de

correspondências ao chefe do partido por parte dos líderes locais, que buscavam se inserir no

novo aparelho administrativo que então era construído ou obter alguma vantagem pessoal,

política ou econômica.

Ao analisar as 102 correspondências procedentes de municípios do Rio Grande do Sul em

1890, 1891 e 1892 contabilizamos 105 diferentes remetentes. Destes 105 indivíduos, apenas 15

enviaram mais de uma correspondência a Castilhos no período. A maioria, inclusive, enviou duas

correspondências. Os campeões de correspondências são: Júlio Pereira dos Santos, de São

Martinho e Silvestre Sabino Correia da Silveira, de Encruzilhada. Estes dois correligionários

enviaram, cada qual, cinco correspondências a Castilhos. Frederico Bastos, de Rio Grande,

enviou quatro correspondências. Outros dois autointitulados correligionários enviaram três

correspondências, sendo eles: Antonio Candido Ribeiro, de Rio Pardo e Francisco Neves, de

Santa Cristina. Do total de 20 correspondências deste conjunto de cinco indivíduos, 17 foram

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enviadas no ano de 1890, sendo que as demais três foram enviadas por Frederico Bastos no ano

de 1892.

Nesta fase inicial da pesquisa ainda é tarefa difícil caracterizar esse grupo de republicanos,

mas podemos arriscar algumas sinalizações. Podemos supor que eram membros ou simpatizantes

do PRR. Muitos deles, como demonstra o teor das correspondências, eram líderes republicanos

nos seus respectivos municípios. Silvestre Corrêa da Silveira, por exemplo, pecuarista em

Encruzilhada e Rio Pardo, um dos campeões de correspondências a Castilhos nos anos em

análise, foi o primeiro intendente de Encruzilhada e grande líder republicano no município.

Quanto ao local de origem das correspondências temos, no conjunto de 102

correspondências, 34 diferentes locais de origem no Rio Grande do Sul. Este dado, por si só, já

sugere que correligionários dos mais diferentes locais do estado entravam em contato com o

chefe do PRR. O quadro abaixo é demonstrativo dos locais de onde partiam as correspondências.

O quadro demonstra a grande diversidade de locais de origem das correspondências,

evidenciando que a base de apoio local ao PRR estava disseminada por todo estado.

Correspondências partiam da região do Planalto, da Serra, da Campanha e do Litoral. Assim,

percebe-se que, mesmo antes de estourar a guerra civil em 1893, o PRR já contava com uma base

de apoio em vários municípios do RS e com líderes que se intitulavam defensores da causa

republicana.

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Quadro 1 – Número de correspondências por local de origem

Local de origem das correspondências

Número de correspondências

Local de origem das correspondências

Número de correspondências

Bagé 2 Rio Pardo 6

Bom Princípio 1 Rosário 1

Cachoeira 3 Santa Cristina do Pinhal 4

Camaquã 3 Santa Maria 6

Caxias 1 Santa Vitória do Palmar 1

Cima da Serra 1 Santa Ângelo 1

Cruz Alta 1 São Borja 1

Encruzilhada 5 São Gabriel 3

Gravataí 1 São Jerônimo 3

Jaguarão 2 São José do Norte 1

Lagoa Vermelha 1 São Martinho 6

Livramento 1 Soledade 1

Margem 1 Taquara do Mundo Novo 1

Margem do Taquari 1 Triunfo 1

Pelotas 13 Uruguaiana 2

Porto Alegre 12 Vacaria 3

Rio Grande 11 Vila Rica 1

TOTAL 102 Fonte: AHRGS. Fundo Arquivo Particular Júlio de Castilhos. Correligionários, Correspondências recebidas, 1890-1892, Maços 28, 30, 31 e 32.

Foi de Pelotas que partiram o maior número de correspondências no período; 13, no

total. Seguem, como campeões de correspondências, os municípios de Porto Alegre e Rio

Grande, respectivamente com 12 e 11 cartas. De Rio Pardo, Santa Maria e São Martinho partiram

seis correspondências no período analisado. Tais municípios, ou representavam importância

econômica e política para o contexto da política regional, ou tinham alguma relação com

Castilhos ou sua família.

Resta-nos agora tentar delinear como esta base de apoio local ao poder do PRR e de

Castilhos era construída. Mais uma vez, as correspondências nos auxiliam. A análise qualitativa de

algumas das correspondências enviadas a Castilhos no período demonstra que o apoio político

local, essencial para garantir a hegemonia política principalmente em um momento em que

numericamente a oposição era muito forte, necessitava de constantes negociações. Não são raros

os casos de correspondências tratando de questões políticas e eleitorais. Este é o caso das

correspondências enviadas por Frederico Bastos, de Rio Grande. Entre outras questões tratadas

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na correspondência que enviou a oito de outubro de 1892, informa a Castilhos que “Estamos

trabalhando no alistamento eleitoral, que segundo cremos sahirá bem feito”.5

Em muitas das correspondências, os remetentes reafirmam seu apoio a Castilhos, ao

partido republicano e à causa republicana. Alguns fazem menção às inúmeras dificuldades que

têm encontrado por assumirem a defesa da causa. Outros lembram dos esforços empregados a

favor da República e do partido. Este costuma ser o tom introdutório da maioria das

correspondências, seguindo-se, então, pedidos a Castilhos. Favores a amigos e parentes ou a si

próprios, nomeações a cargos, promoções militares e outras barganhas políticas delineiam o

conteúdo de um grande número de correspondências. Vejamos mais especificamente através de

alguns casos.

Júlio Pereira dos Santos, o campeão de correspondências no período em análise, escreveu

a Castilhos a três de abril de 1890 afirmando que,

De acordo com os amigos de aqui recomendo-vos a pretensão do nosso amigo e Correligionário Manoel Dorvil, afim de ser confirmada a sua nomeação para o cargo de escrivão de órfão d’este Termo. Nesta data ele faz remeça de seus papeis devidamente legalizados, faltando apenas o atestado medico por não haver no lugar. Confiando pois que será satisfeito este nosso pedido, queira como sempre dispor de quem é com verdadeira estima seu amigo certo.6

Assim também, de Jaguarão, escrevia, em sete de setembro de 1892, José Ricardo de

Abreu Salgado a Júlio de Castilhos, a quem denominava de “amigo e chefe”. Diz a

correspondência:

Esta tem por fim fazer um grande pedido e estou certo que o atenderá pois é justíssimo. Trata-se de um nosso distinto amigo e correligionário que tudo tem feito em prol da santa causa que defendemos. Sei que há promoção ao primeiro posto agora em Novembro e desejo que empenhe-se bastante por este nosso amigo. Chama-se o distinto cadete a quem me refiro, Arthur Oscar de Souza, é praça há 9 para 10 anos. Não tem notas, e sim elogios. Peço que faça tudo por ele, pois o que por este nosso amigo fizer fará a mim. Desde já agradeço o grande favor que vem prestar-me. Bem vê que ele é justo, por ser, um rapaz distinto, nosso companheiro e antigo de praça e que tem sido muito preterido. A República ou a morte, eis o nosso lema.7

Ao finalizar a correspondência, Salgado assina intitulando-se “amigo sincero e

correligionário”. Percebe-se que, junto ao tom amigável da carta, acompanha um jogo político,

5 AHRGS. Fundo Arquivo Particular Júlio de Castilhos. Correligionários, Correspondências recebidas, Maço 32. Carta enviada por Frederico Bastos a Júlio de Castilhos. Rio Grande, 8 de outubro de 1892. 6 AHRGS. Fundo Arquivo Particular Júlio de Castilhos. Correligionários, Correspondências recebidas, Maço 30. Carta enviada por Júlio Pereira dos Santos a Júlio de Castilhos. São Martinho, 3 de abril de 1890.. 7 AHRGS. Fundo Arquivo Particular Júlio de Castilhos. Correligionários, Correspondências recebidas, Maço 32. Carta enviada por José Ricardo de Abreu Salgado a Júlio de Castilhos. Jaguarão, 07 de setembro de 1892.

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uma negociação: em troca dos préstimos prestados pelo cadete “que tudo tem feito em prol da

santa causa que defendemos”, sua promoção ao primeiro posto.

De Pelotas, em 1º de novembro de 1892 escrevia o advogado E. Piratinino de Almeida ao

“ilustríssimo amigo dr. Júlio de Castilhos” com o “único fim” de “pedir sua valiosa intervenção

para a nomeação do nosso bom correligionário Antonio Corteguso, de praticante ao Correio

neste Estado”.8 Luiz dos Reis Cabral de Teive, que servia no 3º Batalhão de Artilharia de Posição

de Rio Grande escreve a Castilhos em setembro de 1892 pedindo sua transferência para o

batalhão de Engenheiros de Porto Alegre, já que, segundo aponta, tem interesses de família na

capital.9

Como demonstram as correspondências, essa base de apoio local ao poder do PRR

assentava-se em negociações e barganhas políticas entre as partes, sendo estas fundamentais para

a afirmação do poder político dos republicanos no Rio Grande do Sul nos anos iniciais da

República, quando o partido ainda não era numericamente hegemônico no estado.

Considerações finais

A análise das correspondências enviadas por correligionários a Júlio de Castilhos

demonstra que republicanos de diferentes locais do Rio Grande do Sul usaram da prática de

corresponder-se com o líder republicano com o fim de conquistar vantagens econômicas,

políticas e sociais. Acesso a cargos e promoções era o que, em muitos casos, moviam os

correligionários, que buscavam em Castilhos a via de acesso a tais vantagens.

Se a prática de corresponder-se e negociar com o líder garantiu aos correligionários

vantagens e privilégios, a Castilhos e ao PRR a negociação com correligionários parece ter se

constituído como uma forma de garantir a ampliação da base de apoio político no estado,

fundamental para a construção da hegemonia política ainda não garantida nos anos iniciais da

República.

Referências

CARVALHO, José Murilo de. A Construção da ordem: a elite política imperial. Teatro de Sombras: a política imperial. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. GRIJÓ, Luiz Alberto. Foi o PRR em “partido político”? Logos, Canoas, p. 65-68, 1999.

8 AHRGS. Fundo Arquivo Particular Júlio de Castilhos. Correligionários, Correspondências recebidas, Maço 32. Carta enviada por E. Piratinino de Almeida a Júlio de Castilhos. Pelotas, 01 de novembro de 1892. 9 AHRGS. Fundo Arquivo Particular Júlio de Castilhos. Correligionários, Correspondências recebidas, Maço 32. Carta enviada por Luiz dos Reis Cabral de Teive a Júlio de Castilhos. Rio Grande, 05 de setembro de 1892.

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HEINZ, Flávio M. Positivistas e republicanos: os professores da Escola de Engenharia de Porto Alegre entre a atividade política e a administração pública (1896-1930). Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 29, nº 58, p. 263-289, 2009. RAMOS, Eloisa Helena Capovilla da Luz. O Partido Republicano Rio-Grandense e o Poder Local no Litoral Norte do Rio Grande do Sul – 1882/1895. 284 f. Dissertação (Mestrado em História) – Curso de Pós-Graduação em História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, 1990. RECKZIEGEL, Ana Luiza Setti. 1893: A Revolução além fronteira. In: RECKZIEGEL, Ana Luiza Setti; AXT, Gunter (dir.). República: República Velha (1889-1930). Passo Fundo: Méritos, 2007. v. 3, t. 1, p.23-56. (Coleção História Geral do Rio Grande do Sul). WASSERMAN, Claudia. O Rio Grande do Sul e as elites gaúchas na Primeira República: guerra civil e crise no bloco do poder. In: GRIJÓ, Luís Alberto [et al.]. Capítulos de história do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: UFRGS, 2004. p. 273-289.

Referências Documentais

AHRGS – Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Fundo Arquivo Particular Júlio de Castilhos. Correligionários, Correspondências recebidas, 1889-1900, Maços 28, 30, 31 e 32.

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Espaços de saber e poder: instituições e seus agentes na perspectiva da História Social

CASO DIÁRIOS ASSOCIADOS X JOÃO FREIRE, DE 1946 – POSSIBILIDADES DE PESQUISA HISTÓRICA

DANIEL AUGUSTO PEREIRA MARCÍLIO1

Na historiografia sobre a imprensa brasileira, tornou-se clichê utilizar como principal

fonte histórica da análise apenas os próprios jornais. As publicações assumiram um papel central

nessas pesquisas. É quase um vício de origem, pois parte-se da premissa de que os estudos sobre

o desenvolvimento dos meios de comunicação impressos só podem ser trabalhados

adequadamente por meio das peças jornalísticas. Consagrou-se a ideia de que as fontes periódicas

são a expressão máxima para criticar e avaliar a trajetória da imprensa no Brasil. Tal abordagem,

embora seja a mais comum e aceita, ignora várias outras maneiras existentes para problematizar

essa história. Outras fontes também podem e devem ser utilizadas, como, por exemplo, arquivos

judiciais que dizem respeito a empresas de comunicação.

No acervo do Memorial do Judiciário do Rio Grande do Sul, localizado no andar térreo

do Palácio da Justiça, há uma série de documentos catalogados sob o nome de Processos

Impactantes. Não deixa de ser uma definição arbitrária, pois é difícil estipular de forma categórica

quais processos teriam provocado maior ou menor impacto na sociedade gaúcha. Seja como for,

o importante é ressaltar que existe uma fonte, praticamente desconhecida até então, que está

guardada em duas caixas com o título Caso Assis Chateaubriand. Trata-se de seis volumes – alguns

estão ilustrados na Imagem 1 - de uma ação cível (n° 2.287), com 901 páginas, que iniciou na

comarca de Porto Alegre, mas tramitou em instâncias maiores, chegando ao Supremo Tribunal.

Da petição inicial até a sentença, o processo como um todo se constitui por uma série completa e

lógica de documentos diversos.

Entre as décadas de 1930 a 1950, a rede dos Diários Associados, de Assis Chateaubriand2,

havia se expandido para todo o país, ajudando a integrar as várias regiões brasileiras por meio dos

veículos de comunicação. Em Porto Alegre, o jornal Diário de Notícias, fundado em 1925,

pertencia ao grupo dos Associados desde 1931, próximo ao período em que Getúlio Vargas chegou

ao poder. É nesse periódico que João Freire, um dos personagens centrais desse processo judicial,

1 Estagiário Memorial do Tribunal de Justiça do RS. E-mail: [email protected] 2 O magnata Francisco de Assis Chateubriand Bandeira de Melo (1892 – 1968) manteve, sob o nome dos Diários Associados – corporação empresarial fundada no Rio de Janeiro em 1924 –, um império midiático que chegou a ser composto por quase cem jornais, revistas, estações de rádio e, posteriormente, televisão. Para mais detalhes, cf. MORAIS, 1994.

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foi escolhido, em 1939, para assumir o cargo de diretor-gerente. Era uma função de destaque,

pois ele era responsável pelo controle do caixa, cuidando do orçamento e das rendas com

publicidade.

Imagem 1 - Foto de alguns volumes do Processo-cível

Fonte: elaborada pelo autor.

Tal posição permitia que Freire tivesse contato direto com seus superiores

administrativos. Assim, ele viajou em 1943 para São Paulo, onde propôs a Assis Chateaubriand a

ampliação dos negócios no Rio Grande do Sul. João Freire sugeriu a aquisição de três empresas,

que estavam com dificuldades: as rádios Farroupilha e Difusora, ambas de Porto Alegre, e o jornal

A Razão, de Santa Maria. Na ocasião, Chateaubriand avisou que não poderia participar de tal

empreendimento, pois tinha uma dívida de mais de dez mil cruzeiros3 e não gostaria de arriscar

maiores perdas. João Freire, por sua vez, assumiu o compromisso de pagar, com a renda das

próprias empresas, o empréstimo que fosse feito. Ele figuraria como sócio-cotista das sociedades

e seu gerente-estatuário. Sobre isso, Nelson Sodré lembra que:

[...] as empresas jornalísticas usavam três caminhos para conseguir recursos: a

tomada de particulares, por processos mais variados (caminho largamente

palmilhado por Assis Chateaubriand para constituir seu império jornalístico); a

tomada a cofres públicos, em empréstimos de concessão e privilégio; e a

recebida pela publicidade. Das três, esta era a pior, conquanto “legal”, isenta de

3 No processo analisado, que é onde aparece essa informação, não está claro para quem Chateaubriand devia tal quantia.

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constituir-se em alvo de campanhas pretensamente moralistas, visto como não

infringira e nem mesmo arranhava qualquer lei. (SODRÉ, 2011, p. 589).

Portanto, a ideia era usar o lucro que surgisse das futuras publicidades para acertar os

débitos com os credores. Para isso, a Rede Diários Associados transferiu, em quatro parcelas, a soma

total de 7.825.000 cruzeiros a João Freire, sendo que, desse valor, 4 milhões estavam destinados

ao pagamento da cessão da Rádio Farroupilha. O dinheiro da operação provinha de empréstimos, e

Freire recebeu uma cota de 5 mil cruzeiros para figurar como sócio, podendo, assim, gerenciar a

empresa radiofônica. Ao todo, Freire figurava como proprietário de uma cota de 110 mil

cruzeiros distribuídos nos três veículos de comunicação, mesmo sem ter contribuído diretamente.

Na ordem externa, ele procedia como proprietário, mas agia, internamente, como mandatário das

decisões tomadas no Rio de Janeiro. Ao sugerir a ramificação, João Freire tomava a iniciativa para

que os Associados crescessem de forma rápida, ampliando a força dos empreendimentos de

Chateaubriand.

Tal expansão do centro à periferia conferiu aos Diários Associados um poder

nacional que poucas instituições dispunham na época e fez ecoar a palavra de

Chateau nos quatro cantos do país. [...] A expansão da rede se dá pelo faro

empresarial de Chateau, mas também por ter se tornado um endereço ao qual

acorriam empresários a lhe sugerirem negócios. (WAINBERG, 2003, p. 129)

Os três veículos de comunicação comprados pelos Diários Associados enfrentavam

problemas com a conjuntura do período da II Guerra Mundial. O jornal A Razão, por exemplo,

tinha como proprietário Floduardo Silva, um gaúcho de Uruguaiana, que, por suas simpatias ao

nazismo, sofria a oposição de seus próprios redatores (WAINBERG, 2003, p. 129). A PRH-2 –

Rádio Sociedade Farroupilha era considerada a maior broadcasting do país, pois, com 25 KW,

tinha a potência mais forte entre as emissoras brasileiras da época. Propriedade da família do

general José Antônio Flores da Cunha, a emissora atravessava uma grave crise financeira,

“consequência do posicionamento político de Luiz e Antônio Flores da Cunha, filhos do ex-

governador, que haviam sido recolhidos ao Presídio Dois Rios, na Ilha Grande, Rio de Janeiro”

(FERRARETO, 2002, p. 143). O Estado Novo, com as pressões do Departamento de Imprensa

e Propaganda, afetava a programação da Farroupilha, que se limitou, na prática, ao radioteatro.

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Por último, a Difusora, que havia sido criada como uma rádio estritamente comercial,

pertencia a Arthur Pizzoli, empresário que, no início da década de 1940, também possuía o

controle acionário da rádio Gaúcha. Assim, ele mantinha investimento em duas das três estações

radiofônicas de Porto Alegre, mas, em um mercado publicitário ainda incipiente, Pizzoli começou

a enfrentar dificuldades de comercialização. Por isso, optou pela venda da Difusora, permitindo

que seus capitais na área radiofônica fossem direcionados apenas para a Gaúcha (FERRARETO,

2002, p. 157).

Os Diários Associados deram as precisas instruções a João Freire e, como foi visto,

forneceram a quantia das várias aquisições por meio de empréstimos. Os valores exatos de cada

parcela e a procedência do dinheiro chegaram, inclusive, a ser divulgados pelo jornal Diário de

Notícias:

1- Os milhões de cruzeiros com que compramos a Rádio Farroupilha,

tomamo-los por empréstimo ao Banco do Distrito Federal – que ainda

neste mês inaugurará sua filial em Porto Alegre –, com garantia pessoal do

velho amigo do Sr. Assis Chateaubriand, o grande industrial Severino

Pereira.

2- Os três milhões e duzentos mil cruzeiros, que pagamos pela Rádio

Difusora, foram-nos emprestados pelo Banco Comercial do Estado de São

Paulo, estabelecimento com o qual os Diários Associados negociam por

mais de vinte anos;

3- A compra de A Razão, de Santa Maria, foi feita mediante empréstimo na

Cia. União Mercantil Financial com a garantia do Sr. Frederico Dahne,

amigo pessoal do Sr. Assis Chateaubriand [...].4

Após a aquisição das empresas, tratou-se a transferência das cotas e a formação de novas

sociedades. Por conveniência, as cotas foram distribuídas entre os dois sócios principais – Assis

Chateaubriand e Leão Gondim5 – e mais quatro pessoas de confiança, entre as quais estava João

Freire. Porém, nessa distribuição, não aparecia o nome da Sociedade Diários Associados Ltda., apesar

de ter sido a financiadora de todo o negócio. De qualquer maneira, foi assim que Assis

4 Diário de Notícias, Porto Alegre, 01/03/1944, p. 10. 5 Leão Gondim de Oliveira, primo de Assis Chateaubriand, exerceu altos cargos na gerência dos Diários Associados e foi diretor da revista O Cruzeiro.

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Chateaubriand, que já era o maior acionista do Diário de Notícias S.A., passou a ser o maior cotista

da Rádio Farroupilha, Rádio Difusora e da empresa A Razão Ltda.

No entanto, João Freire, que havia participado diretamente das negociações, entrou em

conflito com seus superiores nos Diários Associados. Ao que parece6, Assis Chateaubriand

mandava publicar anúncios nos jornais e ficava com o dinheiro – “mandava publicar sem que a

receita correspondente entrasse nos cofres da sociedade anônima”7 – e, em determinado

momento, chegou a dever ao Diário de Notícias e às emissoras associadas no Rio Grande do Sul

mais de cinco milhões de cruzeiros. João Freire teria colocado obstáculos a essa prática, vedada

por lei, e isso levou à sua demissão.

Freire acabou sendo destituído das funções do diretor do Diário de Notícias e despedido do

cargo efetivo de chefe de publicidade. O motivo alegado foi as faltas denunciadas por um dos

funcionários do jornal: Mário Borba Caminha, que exercia funções de caixa. Entre as tarefas

administrativas, estava incluída a retirada diária de duas vias das fichas que deviam ficar em poder

do chefe do escritório, Ernani de Oliveira, para o devido confronto após o expediente. Na mesa

de Freire, eram colocados todos os dias os mapas das operações feitas, com os devidos

comprovantes e vistos dos responsáveis. Contudo, certa vez, as duas fichas apareceram

misteriosamente nas mãos do caixa Mario Borba. Descoberto o desfalque, foram tomadas as

devidas providências – João Freire, que já estava em uma situação desconfortável, foi penalizado.

Acusado de má gestão, ele recebeu, em novembro de 1945, uma carta, exigindo que a

administração das empresas fosse passada para o jornalista Armando de Oliveira, chefe dos

escritórios dos Diários Associados em São Paulo.

Contrariado, Freire decidiu entrar com uma ação na Justiça do Trabalho, que julgou, em

duas instâncias, que não havia motivo para a rescisão do contrato. Ele ainda era o dono de parte

das cotas sociais das empresas dos Diários Associados no Sul. Por isso é que Freire resolveu pedir a

dissolução judicial da Rádio Farroupilha, a notificação na posse do jornal A Razão e a notificação

dissolutória da Rádio Difusora Porto-Alegrense – medidas que, se ele ganhasse, dar-lhe-iam meios de

sobreviver enquanto não encontrava um novo emprego. Proposta a ação, quando estava nos

embargos infringentes, foi Freire notificado que a liquidação nada daria, porque Chateaubriand,

usando seu prestígio, já tinha promessa de que, caso a sociedade fosse à liquidação, ele manteria a

frequência de onda da Farroupilha. Assim, desapareceu o maior valor da sociedade, e a partilha,

se ocorresse, pouco beneficiaria Freire.

6 As informações foram retiradas da defesa de João Freire, que consta no processo analisado, e não foi possível confirmá-las. 7 Correio do Povo, Porto Alegre, 15/05/1946, p. 6.

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O episódio, que chegou a ganhar as manchetes dos jornais da época – o “Caso

Farroupilha” –, é desconhecido pela bibliografia especializada. Ao consultar uma série de

trabalhos específicos sobre a imprensa gaúcha desse período8, constatou-se que nenhum deles

sequer cita João Freire como diretor do Diário de Notícias. No máximo, ele é mencionado de

passagem. A própria obra oficial do grupo, intitulada Brasil Primeiro: a história dos Diários Associados,

de Glauco Carneiro (cf. CARNEIRO, 1999), ignora esses acontecimentos. Por si só, tal

constatação é significativa. A impressão é que ocorreu um apagamento deliberado dos fatos,

numa tentativa de mostrar que a consolidação da rede de Chateaubriand, pelo menos na parte

empresarial, desenrolou-se sem grandes percalços. Aliás, os depoimentos indicam que João

Freire, como representante dos Diários Associados no Rio Grande do Sul, foi afastado do grupo

sem que maiores explicações fossem dadas. Freire afirmou que era coagido a sonegar a receita

bruta das empresas e, em virtude disso, foi que surgiu a desavença com Assis Chateaubriand.

De qualquer maneira, as cotas ainda permaneciam no nome de João Freire. O processo

judicial n° 2.287 exigia, portanto, que as rádios e o jornal passassem a ser reconhecidos como

propriedade apenas dos Diários Associados. Para conseguir isso, além de reunir provas

documentais, os autores da ação também testemunharam contra João Freire, levantando

argumentos para desqualificá-lo. Esses discursos, que ficaram cristalizados no tempo, oferecem

vários elementos para a análise histórica.

Nesse sentido, os trâmites legais, discutidos à exaustão ao longo do processo, não são os

pontos relevantes numa pesquisa histórica de cunho social que se proponha a discutir o

desenvolvimento da mídia e seus impactos diretos na sociedade. Os seis volumes estão

carregados com a linguagem jurídica, quase inacessível para pesquisadores leigos na área do

Direito: propriedade fiduciária, devedor-fiduciante, fiducia cum creditore, entre outros, são exemplos

dos termos que pontuam a ação e exigem conhecimento adicional ou, no mínimo, um dicionário

de expressões jurídicas. Mesmo assim, a fonte fornece uma série de elementos ao trazer os

testemunhos das diferentes partes do processo. Jornalistas renomados da época prestaram

depoimento, deixando transparecer seus pontos de vista sobre a situação e, mais do que isso,

permitem que um pesquisador possa contrastar as diferentes opiniões e recuperar as redes de

sociabilidade que ligavam um profissional ao outro. Cada um lançou informações para reforçar

seus argumentos, mas é nas entrelinhas que as revelações significativas aparecem. As versões

entram em conflito, revelando indiretamente as nuances do mundo empresarial nos meios de

comunicação dos Diários Associados.

8 Em particular, trata-se das obras escritas por FERRARETO (2002, 2007), RÜDIGER (2003) e DE GRANDI (2005).

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Por exemplo, Ernesto Corrêa, diretor do jornal Diário de Notícias, de Porto Alegre, diz

possuir conhecimento de que, por critério pessoal de Assis Chateaubriand, todas as indenizações

feitas a funcionários demitidos dos Diários Associados, como é o caso de João Freire, foram

superiores à legislação em vigor. Sobre isso, Say Marques, também jornalista do Diários de Notícias,

explicita que os Diários Associados são “um patrimônio comum, indivisível de todos os seus

funcionários e trabalhadores enquanto neles permanecerem”9. É uma colocação reafirmada

repetidas vezes, quando menciona, por exemplo, que: “os Diários Associados são integrados por

homens idealistas e dignos, antes de ser uma empresa comercial de tipo comum, é também um

pacto de honra, uma aliança moral”10. Por extensão, percebe-se que Say Marques desqualifica

João Freire com essa frase, já que este não teria honrado sua aliança com o grupo midiático de

Chateaubriand ao permanecer com as cotas sociais das empresas de comunicação gaúchas.

João Freire, por sua vez, afirma que não tinha nenhuma relação com os Diários Associados,

salvo as comerciais – ele era gerente administrativo e cuidava, em particular, da área publicitária.

Além disso, no processo existe uma cópia de uma carta confidencial de Freire a Leão Gondim,

algo que é citado de passagem no depoimento do réu ao Juiz. Foi uma resposta às acusações

contra a vida funcional e privada de João Freire, que “teria pecado contra a lealdade e a

sinceridade, que são o binômio das relações entre chefes e companheiros”11, segundo o escrito de

Freire. Mas o depoimento de Leão Gondim é ainda mais agressivo. Ele é o único entre as

testemunhas a comentar que “Freire entrou como empregado e como tal saiu, do qual saiu muito

mal”12. Em outra passagem, expõe atos íntimos e particulares de Freire, como o fato de “ter

abandonado mulher e filhos e de ser visto em estado de embriaguez no ambiente de trabalho”13.

Em termos de conservação, o conteúdo do processo encontra-se em bom estado. Como

a ação iniciou em meados da década de 1940 – mais precisamente no ano de 1946 –, época em

que as máquinas de escrever já eram comuns, a maior parte do material está datilografada, o que

facilita enormemente a leitura. Arquivos judiciais do começo do século XX eram feitos à pena de

tinta, em uma caligrafia apressada, exigindo esforço para serem compreendidos. Não é o caso

desse documento. Técnicas paleográficas não serão necessárias para estudá-lo, já que os raros

trechos escritos à mão utilizam letra de forma, simples de ler. Porém, algumas folhas estão

amareladas e rasgadas, com muitas dobras e borrões. A numeração das páginas está confusa, por

existirem diversos números concorrentes, e há anotações e riscos de lápis de cor ao lado de certos

depoimentos. Nada disso, entretanto, compromete o entendimento da fonte.

9 Processo-Cível nº 2.287, Comarca de Porto Alegre, fl. 184. 10 Ibid., fl. 184v. 11 Ibid., fl. 288. 12 Ibid., fl. 222. 13 Ibid., fl. 223.

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O processo termina em 1956, com ganho de causa para os Diários Associados. A ação foi

julgada procedente desde a primeira instância, mas os vários recursos apelados por João Freire

arrastaram a decisão por dez anos. Apesar da vitória, o grupo começou a decair nessa década,

pelo menos no Rio Grande do Sul. Basta lembrar as manifestações de 1954 em Porto Alegre,

quando uma multidão, revoltada com a campanha antivarguista da rede de Chateaubriand,

invadiu as instalações das rádios Difusora e Farroupilha, causando a destruição que culminou no

incêndio do prédio do jornal O Diário de Notícias.

Assim, perceber o contexto em que essa ação cível se desenrolou ajuda a destrinchar a teia

das relações de poder que se formava por trás das aparências das empresas de comunicação.

Nesse sentido, vale mencionar as palavras de Jacques Le Goff (1990, p. 545): “o documento não

é qualquer coisa que fica por conta do passado, é um produto da sociedade que o fabricou

segundo as relações de forças que aí detinham o poder”. A fonte aqui descrita não pode,

portanto, ser vista como um documento inócuo, um processo que permaneceu arquivado e foi

esquecido por um motivo qualquer. Seguindo o caminho apontado por Le Goff, deve-se

considerar o documento como monumento, ou seja, identificar quais intenções confluíram para

que ele existisse e fosse perpetuado.

Partindo dessa perspectiva, cabe novamente destacar que os detalhes desse processo são

desconhecidos pela historiografia especializada. Nos livros consultados, não há qualquer citação a

um caso semelhante, criando a imagem de que a inserção dos Diários Associados no sul do país, ao

menos na parte empresarial, ocorreu sem grandes percalços. Por si só, tal constatação é

significativa. Afinal, conforme registra Le Goff, a todo ato de lembrar corresponde um ato de

esquecer. O contrário também é verdadeiro – fatos são esquecidos para que outros possam ser

lembrados. Ao se construir a memória dos veículos de comunicação no Rio Grande do Sul,

ocorreu naturalmente uma escolha: apenas determinados acontecimentos foram selecionados, o

que implica omissões e esquecimentos. O Caso dos Diários Associados contra João Freire foi

deixado em segundo plano, apesar de ter ganho, no final do ano de 1946, espaço nas manchetes

dos principais jornais de Porto Alegre, o Correio do Povo e o Diário de Notícias. Jogar luz sobre esse

conflito judicial, pouco conhecido hoje, pode fornecer pistas para uma crítica mais aguçada da

história do jornalismo rio-grandense.

Sobre isso, o ambiente jurídico costuma dizer que “o que não está nos autos não está no

mundo”. Nessa função probatória é que reside a força e a fraqueza das fontes do Judiciário. Por

um lado, trata-se do problema da representação, pois a documentação de processos judiciais, com

sua linguagem formal e padronizada, restringe o que pode ser dito. Afinal, esse tipo de

documento é criado com uma finalidade administrativa, isto é, comprovar e legitimar os atos da

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Justiça, mostrando e justificando as razões que levaram os magistrados àquela conclusão.

Produzidas para, a princípio, serem vistas por apenas alguns “iniciados” – juízes, advogados e

promotores –, as fontes dos arquivos judiciais encerram uma ideia de verdade que, no entanto,

não deve ser encarada de forma ingênua.

O que ocorre numa ação cível é que as partes em conflito aceitam as regras previstas na

legislação processual e entram numa disputa retórica para fazer valer a sua argumentação como a

única verdadeira. Só que, nesse confronto, as forças tendem a ser desiguais – João Freire, por

exemplo, não tinha como combater o poderio dos Diários Associados, considerando que Assis

Chateaubriand era um dos homens mais ricos e poderosos do Brasil. Enfim, para os

pesquisadores que se debruçam nos arquivos judiciais, entender essas particularidades, descritas

brevemente acima, é fundamental. Levando em conta essas observações, o processo dos Diários

Associados abre novas e instigantes possibilidades de análise do jornalismo no Rio Grande do Sul,

permitindo abordagens até então inexploradas.

Referências

CARNEIRO, Glauco. Brasil, primeiro: A história dos Diários Associados. Brasília, Fundação Assis

Chateaubriand, 1999.

DE GRANDI, Celito. Diário de Notícias: O romance de um jornal. Porto Alegre: L&PM, 2005.

FERRARETO, Luiz Artur. Rádio e capitalismo no Rio Grande do Sul: As emissoras comerciais e suas

estratégias de programação na segunda metade do século 20. Canoas: Editora da Ulbra, 2007.

______. Rádio no Rio Grande do Sul (anos 20, 30 e 40): dos pioneiros às emissoras comerciais.

Canoas: Editora da Ulbra, 2002

LE GOFF, Jacques. História e memória. Ed. da Unicamp, 1990.

MORAIS, Fernando. Chatô: O rei do Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 1994.

RÜDIGER, Francisco. Tendências do jornalismo. Porto Alegre: EDUFRGS, 1993

SODRÉ, Nelson Werneck. História da imprensa no Brasil. Porto Alegre: EdiPUCRS, 2011.

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WAINBERG, Jacques. Império das palavras. Porto Alegre: EdiPUCRS, 2003.

Referências Documentais

Processo-Cível nº 2.287, Comarca de Porto Alegre – Memorial do Judiciário do Rio Grande do

Sul

Correio do Povo, Porto Alegre, 1946 (jornal).

Diário de Notícias, Porto Alegre, 1944 (jornal).

Page 223: I Encontro de História Ministério Público Do RS

Espaços de saber e poder: instituições e seus agentes na perspectiva da História Social

COMUNICAÇÃO – ATIVIDADE PERMANENTEMENTE EM CONSTRUÇÃO

JOÃO BATISTA SANTAFÉ AGUIAR1

A Lei Federal nº 11.904, de 2009, que instituiu o Estatuto dos Museus, prevê, em seu

capítulo II, que “as ações de comunicação constituem formas de se fazer conhecer os bens

culturais incorporados ou depositados no museu, de forma a propiciar o acesso público”2.

Nossas instituições de memória, em geral, apresentam grande incapacidade de criar, gerir e

manter, com a energia necessária, ações de comunicação.

A visualização da necessidade e do dever-agir é dificultada pelo pouco entendimento das

possibilidades advindas pelo uso de ferramentas efetivas de comunicação para a consecução dos

objetivos institucionais. Não se trata de utilizar as ações de comunicação somente para fins

educacionais, mas sim de agir mais amplamente para permitir o “acesso público” à história e à

construção da cultura ao longo do tempo.

É necessária a sensibilização dos gestores políticos de maior hierarquia para que

organicamente envolvam os profissionais de comunicação da própria instituição, de forma a

trabalharem com o órgão ou setor de memória para a construção de ações efetivas. Acresça-se a

isso, a possibilidade de estabelecer a formação continuada de comunicadores nas equipes – que

não precisam, necessariamente, da presença permanente de jornalistas.

O trabalho apresentado por Juliana Siqueira no IV ENEMU – Museologia e

Interdisciplinariedade, Goiânia, 2011, trata do “educomunicador”, que consistiria no

“profissional que atua na formação de cidadãos críticos, participativos e inseridos em seu meio

social na luta pelo direito à comunicação”. Aponta Juliana, que o educomunicador “assessora o

sistema de meios de comunicação e o sistema educativo, implementando programas e projetos e

pesquisando os fenômenos próprios da Educomunicação” (Idem).

Há diferentes entendimentos sobre quem pode informar e comunicar. Jaurês Palma, em

seu livro sobre jornalismo empresarial, e relevante neste artigo, considerando uma instituição

como “empresa” em sentido lato, destaca que “a política de informação na empresa, como em

outros setores, só pode ser criada, planejada e executada por profissionais especializados” (Palma,

1994, p. 69).

1 Jornalista do Memorial do Judiciário do Tribunal de Justiça do RS. E-mail: [email protected]. 2 BRASIL. Lei Nº 11.904, de 14 de janeiro de 2009. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2009/Lei/L11904.htm>. Acesso em: 16 dez. 2013.

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Interação

A comunicação e a informação estão umbilicalmente ligadas, afirma Palma:

“[...] devemos levar em conta que a empresa gera interações tanto entre as pessoas do quadro que a compõem, quanto com o público a que ela serve, dado seu objetivo e função social. Assim, para que o processo se estabeleça e se mantenha, a organização recebe, processa e dá informação, estabelecendo COMUNICAÇÃO. Sem a troca de informação, não haveria mudanças, não haveria desenvolvimento e, conseqüentemente, não sobreviveria qualquer sistema, qualquer forma”. (Palma, 1994, p. 58)

Diz ainda o mesmo autor que “a mensagem estará mais perto de alcançar os objetivos,

quando contiver perguntas ou estímulos que levem à oportunidade de manifestação escrita, falada

ou contida em posturas e reações” (Palma, 1994, p. 60-61).

Mais que representar mero interesse pessoal, procurar comunicar-se com a sociedade

deve ser vista como necessária atividade diária de quaisquer organismos das áreas de museus,

arquivos e de gestão de acervo do setor público. Poucas são as que se utilizam com grande

eficácia, por diferentes motivos, dos meios existentes para informar e educar os cidadãos, para

quem é dirigido, afinal, todo o trabalho.

Considerando dificuldades na viabilização da contratação de profissionais de

comunicação, urge se considerar a possibilidade de treinamento dos servidores do museu ou do

setor que cuida do acervo para que apoie efetivamente uma comunicação profissional, pré-

planejada e discutida.

As equipes encontram dificuldades no relacionamento com os profissionais da área de

comunicação ao não visualizarem maiores potencialidades na relação. O mesmo pode-se dizer

dos profissionais da imprensa da própria instituição em relação aos setores museais ou de

memória. A situação se agrava quando o atendimento a jornalistas externos acontece diretamente

pela própria equipe do centro de memória.

Tende-se a trabalhar sempre com o mesmo público, deixando de prospectar novos

segmentos e com eles se relacionar – lembrem que comunicação significa a informação

circulando, indo e vindo, provocando questões e dinâmicas a serem enfrentadas. Só assim há

aprendizagem e, afinal, comunicação. No mundo real, cada organismo encontra seus próprios

caminhos para “o mundo externo”, com maior ou menor sucesso, em formatos, ritmos e

intensidades diferentes.

Pesquisando nas bancas de revistas de Porto Alegre, verifica-se a ausência de publicação

impressa que divulgue as instituições de memória da própria cidade para o cidadão morador local

ou algum turista. Neste contexto, torna-se interessante questionar se o acesso às informações

destas instituições estaria acontecendo de outra forma, e buscar dados a respeito.

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Verifica-se que não há estatísticas recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e

Estatística (IBGE) sobre o uso de internet. A última referência de uma pesquisa sobre o assunto,

existente no site do IBGE, é de 20083. Neste documento, o alto índice de 43,9 % de pessoas de

Porto Alegre, com mais de 10 anos de vida, com acesso à Internet, não permite que se chegue à

conclusão da universalidade do uso da ferramenta, mesmo hoje, cinco anos depois.

Considerando o crescimento recente do Facebook como uma ferramenta com alta

possibilidade de interação e abrangência nesse público com acesso à internet, constata-se que

apenas o Museu Júlio de Castilhos, o Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa, o

Museu de História da Medicina, o Museu Comunitário da Lomba do Pinheiro, o Museu do Inter

e o Museu da Brigada Militar, além do Memorial do Judiciário do RS, dentre as instituições locais,

possuem conteúdos disponibilizados digitalmente, sempre utilizando muito pouco a capacidade

de troca e comunicação. Por outro lado, páginas institucionais informativas sobre os nossos

museus, pesquisados via Google, existem centenas.

Memorial do Judiciário

No caso específico do Memorial, já há muitos anos valoriza-se a necessidade de se

comunicar com seus públicos específicos, formado principalmente por magistrados e servidores

do Poder Judiciário, escolas, e pesquisadores. Informar e comunicar sempre foi considerado

como básico nas rotinas da equipe de trabalho.

Em levantamento junto ao setor de Imprensa do Tribunal de Justiça, com o apoio do

Departamento de Informática, foram localizadas 351 notícias com citação ao trabalho do

Memorial, entre 2002 e maio de 2013.

Informe-se que as notícias divulgadas pelo setor de imprensa são produzidas e

distribuídas a dezenas de jornais e rádios, multiplicando a repercussão.

Vejam-se os gráficos de apoio:

3 INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – Acesso à internet e posse de telefone móvel celular para uso pessoal – 2008. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/acessoainternet2008/internet.pdf>. Acesso em: 16 dez. 2013.

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Gráfico 1 – Notícias do Memorial do Judiciário publicadas no site do Tribunal de Justiça, por mês, de 2002 a maio de 2013

Fonte: Pesquisa em banco de dados de notícias arquivadas no Departamento de Informática do TJRS.

Tabela 1 – Notícias envolvendo o Memorial do Judiciário, por ano e quantidade, de 2002 a 2013

2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013

11 7 21 21 10 10 37 47 41 44 53 27*

*Até maio 2013. Fonte: Pesquisa em banco de dados de notícias arquivadas no Departamento de Informática do TJRS.

O número de notícias publicadas mostra-se ascendente, com picos positivos nas épocas

da anual Feira do Livro de Porto Alegre. Por iniciativa da equipe, há mais de três anos o

Memorial passou a remeter a cerca de 1400 pessoas e instituições, incluindo escolas, magistrados

e servidores, via e-mail, o Palavra do Memorial. E o número de destinatários está em contínuo

crescimento. Também incluiu noticiário impresso em seus principais projetos como no Formando

Gerações. Há alguns meses, criou e passou a manter duas contas no Facebook. O uso do Twitter é

mais antigo. O organismo do Tribunal de Justiça está procurando ampliar o público em geral

atingido.

A equipe é composta por cinco servidores, com variada formação acadêmica, e mais o

mesmo número de estagiários de História, Biblioteconomia e Museologia.

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I Encontro de História – Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul

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Conclusão

As instituições de memória do RS apresentam, com exceções, dificuldades de se

oferecerem ao diálogo com novos públicos. A utilização de meios que permitem a comunicação

diretamente com os cidadãos, organizados em grupos ou não, está recém se iniciando. Com a

intensificação do uso destas ferramentas, geralmente baseadas na internet, pretende-se atingir o

preconizado pela Lei Federal nº 11.904, de 2009, tudo sem o prejuízo da promoção da visita

presencial.

O caminho é priorizar o planejamento, o treinamento e o uso da energia pessoal do time

de servidores para a construção e a manutenção de rotinas permanentes e que viabilizem a

verdadeira comunicação, com a informação circulando da instituição para o cidadão e do cidadão

para a instituição.

Comunicação junto às instituições de memória não se constitui apenas na catalogação de

peças, ou na produção de um tour virtual, facilitando o conhecimento sobre o acervo, condições

de visitação ou projetos em realização. É mais. É a viabilização da troca permanente, do diálogo,

com as pessoas que têm diferentes interesses e características. Há muito ainda a construir nesta

área.

Referências

SIQUEIRA, Juliana. Educomunicação museal: ação educativa para museus vetores na construção de cidadania. Disponível em: <https://sites.google.com/site/educomunicacaomuseal/apresentacoes>. Acesso em 16 dez. 2013. PALMA, Jaurês. Jornalismo Empresarial. 2ª ed. Porto Alegre: Sagra-DC Luzzatto Editores, 1994.

Referências Documentais

BRASIL. Lei Nº 11.904, de 14 de janeiro de 2009. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2009/Lei/L11904.htm>. Acesso em: 16 dez. 2013. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – Acesso à internet e posse de telefone móvel celular para uso pessoal – 2008. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/acessoainternet2008/internet.pdf>. Acesso em: 16 dez. 2013.

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Esta publicação reúne parte dos trabalhos debatidosno I Encontro de História do Ministério Público doRS. Realizado entre os dias 05 e 06 de junho de 2013,com a organização do Memorial do MinistérioPúblico do RS e apoio do Laboratório de HistóriaComparada do Cone Sul/PUCRS/CNPq, o eventobuscou agregar trabalhos em torno do tema “Espaçosde saber e poder: instituições na perspectiva daHistória Social”. Deste modo, as pesquisas aquipresentes mostram as diferentes dimensões eperspectivas destes espaços em distintos períodos elocais – como se originaram e como se organizavam –e quem eram os indivíduos que neles atuavam.