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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE LONDRINA CENTRO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL Narrativas e lágrimas: A questão dos ressentimentos e a imigração alemã-judaica para o Brasil (1938-1981) Valdir Pimenta dos Santos Junior Londrina, Setembro, 2008.

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Page 1: I - A HISTÓRIA E OS RESSENTIMENTOS - UEL · SANTOS JUNIOR, Valdir Pimenta dos. Narrativas e lágrimas: A questão dos ressentimentos e a imigração alemã-judaica para o Brasil

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE LONDRINA

CENTRO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL

Narrativas e lágrimas: A questão dos ressentimentos e a

imigração alemã-judaica para o Brasil (1938-1981)

Valdir Pimenta dos Santos Junior

Londrina, Setembro, 2008.

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Narrativas e lágrimas: construções de ressentimentos e

fronteiras – A imigração alemã-judaica para o Brasil

(1938-1981)

Valdir Pimenta dos Santos Junior

Orientador (a): Marco Antonio Neves Soares

Dissertação de Mestrado apresentada ao

Programa de Pó-Graduação em História

Social do Centro de Letras e Ciências

Humanas, da Universidade Estadual de

Londrina – UEL, em cumprimento às

exigências para obtenção do título de

Mestre em História Social , na linha de

Culturas, Representações e

religiosidades.

Londrina, Setembro, 2008.

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Valdir Pimenta dos Santos Junior

Narrativas e lágrimas: construções de ressentimentos e

fronteiras – A imigração alemã-judaica para o Brasil (1938-

1981)

Avaliado em_____________com conceito ____________

Banca examinadora da Dissertação de Mestrado:

Profº ___________________________________________

Orientador

Profº___________________________________________

Examinador externo

Profº___________________________________________

Examinador interno

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DEDICATÓRIA

Gostaria de dedicar este trabalho a meu pai, por sua

inestimável presença e confiança. Também a minha mãe, por seu cuidado e

carinho.

Não poderia deixar de mencionar meu orientador, Prof. Doutor

Marco Antonio Neves Soares, do departamento de História da Universidade

Estadual de Londrina, pelas longas horas de conversa e orientação, por sua

amizade e paciência, a você sou muito grato.

Gostaria ainda de dedicá-lo a meus irmãos, Aline e Diego, pela

força incondicional que nos une.

Também aos queridos amigos Ana Albara e Manoel Nasser,

pela intensa caminhada nas ruas de Londrina. A Raquel Palma, por ter feito

meus dias mais ternos e mais vivos.

Dedico também a todos aqueles que participaram de alguma

forma de toda a minha história, familiares, oriundos de Itália ou Portugal,

amigos de diferentes lugares, professores, a vocês minha gratidão.

Por fim, gostaria de agradecer aqueles que iniciaram comigo

esta jornada em Londrina e sem os quais eu seria literalmente um peixe fora

d’água: Isadora Librais, Jaquis Greter e Jorge Bacco. A vocês três minha

imensa reverência. Sem me esquecer ainda de amigos conquistados por

aqui: Janaina Palmar, Igor Galdino e Thiago Pizutti . A vocês também sou

eternamente grato pelo tempo comparti lhado.

Ainda meus agradecimentos a outros não citados , mas não

menos importantes: Matheus Passianoto, Letícia, Gabriel Del Grossi , Daniel

Bruhl , Caroline Minorelli, Nilo, Juca San Martin, Raphael Batista, Diego

Velho, Fernando Murya, Thiago Roncon, Marcos Ursi, Lívia Harfuchi e a

todos os queridos amigos de Rancharia não mencionados aqui. Muito

Obrigado.

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O sofrimento é repartido ao longo da vida e

separado por blocos de esquecimento. (Carlos

Drummond de Andrade)

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AGRADECIMENTOS

Pela elaboração da pesquisa gostaria de agradecer a

Universidade Estadual de Londrina, que durante quase uma década me

acolheu enquanto estudante.

Gostaria de agradecer aos professores do departamento de

História por suas aulas ministradas ao longo desses anos.

Também aos colegas que participaram igualmente desta

caminhada desde a graduação em História.

Gostaria de agradecer aos imigrantes ainda vivos de Rolândia

por sua colaboração e também aos descendentes que muito nos ajudaram

com suas entrevistas e seu material fornecido para o desenvolvimento de

nosso trabalho.

Ainda meus agradecimentos a todos aqueles que direta ou

indiretamente participaram da construção desta pesquisa. A todos vocês

meus agradecimentos.

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PREFÁCIO

O presente trabalho foi elaborado a partir de uma pesquisa

desenvolvida na Universidade Estadual de Londrina acerca das relações

estabelecidas a partir dos eventos que se desenvolveram no contexto da

Segunda Grande Guerra (1939-1945).

Particularmente, a pesquisa se colocou sobre as questões que

envolvem o anti -semitismo praticado pela estrutura do nazismo alemão.

Foram util izadas fontes literárias para investigar a construção histórica dos

ressentimentos em refugiados estabelecidos no município de Rolândia -PR a

partir do final da década de 1930. Duas obras foram escolhidas como

fontes primárias: Um advogado de Frankfurt se torna cafeicultor na selva

brasileira – Relato de um imigrante (1938-1975), de Max Hermann Maier e

Os jardins de minha vida, de Mathilde Maier. A partir da narrativa dos dois

autores surgiu então a idéia de uma investigação da formação dos

ressentimentos. Ambos os autores refugiaram -se no Brasil em 1938, tendo

então estabelecido moradia em uma fazenda de nome Jaú aos arredores da

cidade de Rolândia, ainda em formação naquele momento.

Os livros esboçam aquilo que definimos como trabalhos

memorialíst icos, ou seja, buscam expor as expe riências a que foram

submetidos. Max Hermann Maier parte de uma análise ligada ao momento

em que abandonaram a Alemanha, seguindo até a chegada ao Brasil e a

conseqüente adaptação em terra estrangeira. Mathilde Maier trabalha de

forma distinta, aborda toda a trajetória de sua vida, desde a infância até a

imigração para o Brasil.

A história dos ressentimentos se revelou uma difícil abordagem

daquilo a que os homens possuem ampla dificuldade de expressão. Desta

forma, analisar o não dito em suas narrativas foi o objetivo principal da

pesquisa, procurando assim analisar de que forma sua análise seria possível

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através de um olhar histo riográfico de desconstrução de valores intrínsecos,

a fim de estabelecer como é possível sua viabilidade social.

Ao lado da historiografia foram utilizado s instrumentos

fornecidos pela antropologia, a partir daquilo que a mesma estabelece

enquanto interpretação dos grupos étnicos e a forma como definem valores

ou características que sejam pertinentes a identificação de tais grupos.

Desta forma, a pesquisa utilizou -se de fontes literárias e não

documentos formais para sua elaboração. Esta peculiaridade forneceu

caminhos interessantes ao trabalho historiográfico, de forma que a partir da

narrativa dos dois imigrantes é que buscamos definir nosso foco, nesse

caso, a investigação da construção histórica dos ressentimentos.

Sendo assim, aquilo a que chamamo s ressentimentos estaria

ligado a uma construção subjetiva, individual ou coletiva, mas sempre em

comunicação com os eventos que os precedem, ou seja, a form ação de um

sujeito ou grupo envolvido em ressentimentos se dá a partir da experiência

que produzem e comungam com os outros, entendidos aqui no sentido da

alteridade, onde a experiência sempre negativa de tal manifestação se

coloca somente na intervenção de um ou muitos sobre estes.

Part icularmente, a experiência histórica da etnia judaica,

apresenta nesse sentido um ilimitado campo de investigação para

historiadores, sobretudo quando tornamos relevante o anti -judaismo

praticado ao longo dos séculos em diversas regiões do mundo. É importante

ressaltar o caráter estritamente investigativo deste trabalh o, não se tratando

aqui de um discurso em defesa da vasta comunidade judaica ou ainda de

expor tal grupo enquanto vítimas da história, ao contrário, nosso objetivo se

debruça sobre a necessidade de desconstruir historicamente um paradigma

que não se abstém de ações igualmente humanas, e, por isso, inválidas de

serem concretizadas de outra forma .

Mantendo o ponto inicial que expunha a experiência judaica,

juntamente às fontes utilizadas, foram escolhidos outros personagens

históricos que pudessem também contribuir com o desenvolvimento da

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pesquisa, reforçando assim o estudo acerca dos ressentimentos. Para tanto,

dois autores e suas respectivas biografias foram escolhidos: Primo Levi e

Stefan Zweig, além destes o trabalho passa também por uma reflexão acerca

de ações de descendentes judaicos no Brasil dentro do contexto do período

militar no país. Tais passagens parecem demonstrar, no contexto da

pesquisa, construções de ressentimentos em momentos distintos , através de

igualmente distintas perspectivas. Os trabalhos a respeito da literatura

produzida por escritores de ascendência judaica renderam em outros

momentos pesquisas referentes a certa peculiaridade da produção li terária

judaica, de forma a demonstrarem como o fato de estarem ligados ao

judaísmo dava aos textos um tipo de melancolia, um humor específico.

Estes elementos configurariam assim uma relação textual estabelecida com

a procedência étnica de seus autores. Ao longo da dissertação essa questão

será abordada com mais detalhes e as devidas referência s.

Portanto, o trabalho que se desenvolveu aqui não é mais que

uma reflexão acerca das relações estabelecidas na história entre os

ressentimentos e a produção literária de escri tores de ascendência judaica.

O recorte temporal se estabelece no período contemporâneo, de 1938 a

1981, a data inicial foi escolhida por ser o ano da imigração do casal Maier

para o Brasil e a data final por ser o ano da publicação do livro de Mathilde

Maier, que evidentemente foi publicado posteriormente ao de Max Hermann

Maier. Este teve sua publicação em 1975, mas somente no idioma alemão,

mais tarde, entre 1976 e 1977, Mathilde Maier e Elmar Joenck, professor e

amigo do casal, finalizaram a versão em português iniciada por Max

Hermann Maier e não finalizada devido ao seu falecim ento em 1976.

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RESUMO

SANTOS JUNIOR, Valdir Pimenta dos. Narrativas e lágrimas: A questão dos

ressentimentos e a imigração alemã-judaica para o Brasil (1938-1981). [Dissertação de

Mestrado]. Londrina: UEL, 2010, pp.

O trabalho inti tulado Narrativas e Lágrimas – A questão dos ressentimentos

e a imigração alemã-judaica para o Brasil (1938-1981) se define como um

esforço historiográfico que buscou compreender a estruturação histórica que

permeia a formação dos chamados ressentimentos. A partir da análise de

duas obras produzidas por imigrantes alemães, Um advogado de Frankfurt

se torna cafeicultor na selva brasileira – Relato de um imigrante (1938-

1975), de Max Hermann Maier, editado em 1975 no idioma alemão e

traduzido para o português em 1977, e Os jardins de minha vida, de

Mathilde Maier, editado em 1981, o trabalho foi desenvolvido. As duas

narrativas utilizadas serviram como fontes para a investigação da

construção dos ressentimentos em refugiados de ascendência judaica no

município de Rolândia-PR. Tais refugiados chegaram ao Brasil no ano de

1938 após as restrições impostas pelo partido nacional socialista alemão aos

alemães-judeus residentes na Alemanha. Desta forma se configurou o

cenário que mais tarde levou Max e Mathilde Maier a produzirem suas

obras, tratadas aqui como relatos memorialíst icos, ou seja, narrativas que

buscaram expor suas experiências na Europa e em terra estrangeira.

PALAVRAS-CHAVE: Imigração – Judaísmo – Ressentimentos –

Religião – História – Memória

ABSTRACT

SANTOS JUNIOR, Valdir of pepper. Narratives and tears: The issue of resentment and

German-Jewish immigration to Brazil (1938-1981). [Dissertation]. Londrina: UEL, 2010,

pp.

The work entitled Narratives and Tears - The issue of resentment and German-Jewish

immigration to Brazil (1938-1981) is defined as a historiographical effort that sought to

understand the historical structure that permeates the formation of so-called resentment.

From the analysis of two works created by German immigrants, a lawyer from Frankfurt

becomes grower in the Brazilian jungle - Report of an immigrant (1938-1975), Max

Hermann Maier, published in 1975 in German and translated into Portuguese in 1977, and

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gardens of my life, Mathilde Maier, published in 1981, the work was done. The two

narratives were sources used to research the construction of the resentments of Jewish

refugees in the city of Rolândia-PR. These refugees arrived in Brazil in 1938 after the

restrictions imposed by the German National Socialist Party of German-Jewish residents in

Germany. This should set the scene who later took Max and Mathilde Maier to produce

their works treated here as reports memoirs, or stories that sought to explain their

experiences in Europe and in a foreign land.

KEY WORDS: Immigration - Judaism - Resentments - Religion - History -

Memory

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SUMÁRIO

I – INTRODUÇÃO........................ ...............................14

I.I – CONTEXTUALIZAÇÃO......................................21

II – JUSTIFICATIVA.............. .................................. ..26

III – A HISTÓRIA E OS RESSENTIMENTOS.............28

III,I – OS RESSENTIMENTOS E OS IMIGRANTES

ALEMÃES DE ROLÂNDIA-PR...................................44

IV – O OUTRO NA HISTÓRIA E A FIGUEIRA

BRAVA.............. ............................ ..............................57

IV.I – O ESTRANHAMENTO, O JUDEU E A

HISTÓRIA.................................... ...............................57

IV.II – MATHILDE MAIER E A FIGUEIRA BRAVA

OU O DISCURSO DO ESTRANHAMENTO.................70

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IV.III – OUTRAS DUAS HISTÓRIAS..........................77

V -CONSIDERAÇÕES FINAIS....................................82

VI – ANEXOS.................. ........................................... .87

VI.I – FOTOGRAFIAS................ .............................. ..87

VI.II – ENTREVISTA KLAUS KAPHAN........... ..........99

VII – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................109

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I – INTRODUÇÃO

A questão da memória, aos trabalhos historiográficos, é de

suma importância. Aos povos antigos, a ideia de tempo mítico, alheia ao

tempo histórico, tirava-lhes a necessidade de um significado na história.

Mais tarde, o significado na história, segundo alguns pesquisadores , passou

a ser significativo , com e para os judeus:

“Dizem que Heródoto é reconhecido como o “pai da his tór ia”

(af irmat iva que requer reaval iação, mas não me deterei aqui em

fazê- la) , e a té bem recentemente todas as pessoas cultas sabiam

que os gregos produziram uma l inhagem de grandes

his tor iadores, que podem ainda ser l idos com prazer e empatia .

Entre tanto , nem os his tor iadores gregos , nem a civi l ização que

os cr iou percebeu qualquer signi ficado transcendente ou

fundamental na histó r ia como um todo; realmente, e les nunca

chegaram a elaborar bem o concei to de histór i a universal , da

his tór ia “como um todo”. Heródoto escreveu com a asp iração

humana carac ter í s t ica de – em suas próprias palavras –

“preservar do perecimento a lembrança daquilo que os ho mens

real izaram e impedir as grandes e maravilhosas ações dos gregos

e dos bárbaros de perder sua merecida recompensa de glór ia”.

Para Heródoto, narrar a his tór ia era uma garant ia cont ra a erosão

inexorável da memór ia engendrada pela passagem do tempo. Em

geral , a his tor iografia grega fo i expressão daquela esplêndida

cur iosidade he lênica de conhecer , e invest igar , que a inda nos

aproxima deles, ou ainda de buscar no passado exemplos morais

ou insights polí t icos. Além d isso, a his tór ia não t inha verdades a

oferecer , e assim não t inha lugar na f i losofia ou re l igião gregas.

Se Heródoto, foi o pa i da histór ia , os pais do signi f icado na

his tór ia foram os judeus. O antigo I srael fo i quem primeiro

determinou um s igni f icado dec is ivo à histó r ia , e assim for jou

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nossa visão de mundo, cujas premissas fo ram essencia is foram

por f im apropr iadas pe lo cr i st ianismo a também pelo i slamismo.

“Os céus” nas pa lavras do salmis ta podem ainda proclamar a

“glór ia do senhor”, mas foi a histór ia humana que revelou seu

desejo e propósi to . Essa nova percepção não fo i resultado de

especulação f i losófica, mas da natureza pecul ia r da fé i srae l i ta .

Emergiu da compreensão intui t iva e revo luc ionár ia de Deus , e

fo i re finada a través de experiências his tór icas profundamente

vivenciadas.1

Desta forma, a afirmação se coloca sobre uma espécie de lugar

dominante da história no antigo Israel, ou seja, sobre o fato de que o

próprio deus judaico só se revela na medida em que é historicamente

conhecido. Yerushalmi acrescenta:

“Enviado para trazer as novas da l iber tação para os escravos

hebreus, Moisés não vem em nome do cr iador do Céu e da Terra,

mas em no me do “Deus dos antepassados”, is to é , o Deus

his tór ico: “Vai e reúne os anc iãos de I srael , d izendo -lhes : o

Senhor , o Deus de vossos pais, o Deus de Abraão, de Isaac e de

Jacó apareceu-me e d isse -me: Eu vos visi tei e vi o que se vos faz

no Egito . . .”2

Portanto, se assim direcionamos nosso olhar para a experiência

judaica, assim podemos concluir que a memória tornou -se fundamental para

o exercício da própria fé hebraica e, em última instância, para sua própria

existência.3 A ordem de lembrar-se é assim absoluta, havendo porquanto

uma sabedoria antiga que os remetia ao fato de compreender quão curta e

instável é a memória humana. Não se trata aqui de afirmarmos que o

judaísmo caminhou no sentido da formação de uma “nação” de

1 YERUSHALMI, Yosef Hayim. Zakhor: história judaica e memória judaica; tradução de Lina G. Ferreira

da Silva. – Rio de Janeiro: Imago Ed, 1992. Yosef Hayim Yerushalmi é professor de História, Cultura e

Sociedade Judaica e diretor do Centro de estudos Judaicos e de Israel da Universidade de Columbia. 2 O trecho citado por Yerushalmi encontra-se na Tora, livro máximo da expressão judaica, em Êxodo, 3:16.

3 Idem 2.

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historiadores, sobretudo por que se esta história é real , não poderá se

repetir, apenas o tempo mítico se repete, ou seja, a fuga do Egito ou a

libertação do cativeiro da Babilônia só poderiam uma vez dar -se

historicamente, o que obriga a todos os outro s que lá não estiveram, a um

exercício de preservação de tais acontecimentos, também porque, na

concepção hebraica, o homem,

“lançado na his tór ia , ve io para a f irmar sua exis tênc ia his tór ica,

apesar do sofr imento que esta encerra e , gradual e

laboriosamente, descobre que Deus o revela a ele próprio

durante o decurso da his t ór ia . Os r i tua is e fes tas no antigo I srael

não são mais repe tições de arquétipos mí t icos dest inados a

aniqui lar o tempo histór ico. Quando evocam o passado, não mais

se tra ta do passado p r imevo , mas do passado his tór ico, no qual

real izaram-se os momentos cruciais da histór ia de Israel . Longe

de tentar uma fuga da his tór ia , a rel igião bíb lica se permi te ser

impregnada por ela , e não pode ser concebida se apar tada da

his tór ia”4

Assim, se a preocupação com o tempo histórico está presente

na cultura judaica, esta se faz na narrativa e também nos rituais. As festas,

mesmo preservando seus laços orgânicos (primavera e primeiros frutos),

foram transformadas, por exemplo, em comemorações do Êxodo do Egito e

da estada no deserto. Em Deuteronômio 26, diz -se que um celebrante

israelita na cerimônia dos primeiros frutos deve proferir as seguintes

palavras:

“Meu pai era um arameu errante que desceu ao Egi to com poucas

pessoas e al i resid iu; e lá torno u-se uma nação grande , for te e

numerosa. Os egípc ios nos a f l igiram e nos opr imiram, impondo -

nos uma penosa servidão. Chamamos então ao Senhor , o Deus de

nossos pa is , e e le ouviu nosso c lamor e viu nossa a f l ição e nossa

misér ia e nossa opressão . E o Senhor nos t i rou do Egito com mão

4 YERUSHALMI, Yosef Hayim. Zakhor: história judaica e memória judaica; tradução de Lina G. Ferreira

da Silva. – Rio de Janeiro: Imago Ed, 1992. Página 29.

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for te e braço estend ido, e com grande terror , e com s inais, e com

prodígios. E e le nos trouxe até este lugar , e nos deu esta te rra ,

uma te rra onde mana le i te e mel . . .”5

Parece-nos um tipo de história concisa, onde o essencial a ser

lembrado está claramente presente sob uma forma ri tualizada. Não se trata,

é claro, de uma história “factual” no sentido moderno, mas aos povos

antigos tratava-se de tipos de percepção e interpretações históricas

legít imas. A historiografia bíblica n ão apresenta uniformidade nesse

sentido, mesmo porque sua narrativa foi escri ta em diferentes momentos

históricos e inevitavelmente, por diferentes autores. Sobre isto afirma

Yerushalmi:

“As narrat ivas histór icas que abrangem os per íodos dos inícios

da humanidade a té a conquis ta de Canaã são necessar iamente

mais lendár ias, os re la tos da monarquia mui to menos, e mesmo

dentro de cada segmento exis tem acentuadas var iações de grau.

Isso já era de se esperar . Os textos his tór icos da Bíblia , escr i tos

por di ferentes autores em épocas diversas , frequentemente eram

também produtos de um longo processo de transmissão de

t radições e documentos mais antigos”.6

Podemos expor, desta maneira, que mesmo aos sábios hebreus

que viveram após os tempos bíblicos, o tempo q ue lhes importou foi

sobretudo aquilo que sentiam ser relevante, ou seja, destaca -se aqui aquilo

que era então relevante ao avanço da vida religiosa e comunitária do povo

judeu. Não preservaram, portanto, a história polít ica da Antiguidade, ou

ainda revelaram escasso interesse na história de Roma, mas não

esqueceram a perseguição sofrida sob o imperador Adriano e o martírio

dos sábios.7 Há uma relação direta na compreensão histórica judaica entre

5 Deuteronômio 26:5-9, in Tora.

6 YERUSHALMI, Yosef Hayim. Zakhor: história judaica e memória judaica; tradução de Lina G. Ferreira

da Silva. – Rio de Janeiro: Imago Ed, 1992. Página 33. 7 Idem. Página 44.

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destruição e redenção, como se aquilo que pode emergir ou sustentar a

comunidade enquanto povo sagrado é sempre algo que não apenas surge da

interferência divina na história, mas também que esta interferência é

determinada por momentos de intensa ruptura, como o Messias que nascera

somente no dia em que o Templo fora destruído. Trata-se de uma história de

significados criados a partir de eventos históricos, de significações

escolhidas detalhadamente e, por conseguinte definidora não de uma

verdade, mas de uma interpretação específica da história.

Juntamente à interpretação histórica que os judeus criaram e

suas amplas necessidades de memória podemos observar a questão do

sofrimento e mais adiante aquilo que nos é mais importante neste trabalho:

a construção de seus ressentimentos, ou ainda a construção de seus

ressentimentos a partir da experiência histórica:

“Ele que respondeu a Abraão, nosso pa i , no monte Moriá.

Ele nos responderá, e a todas as comunidades sagradas,

e a todos imersos em sofr imento e a fl ição,

e a todos pr isioneiros de reis e pr ínc ipes.

Ele que respondeu a Moisés no Mar Vermelho,

Ele nos responderá.

Ele que respondeu a Josué em Gi lgal ,

Ele nos responderá.

Ele que respondeu a Samuel em Mizpah,

Ele nos responderá.

Ele que respondeu a Elias nos monte Carmel,

Ele nos responderá.

Ele que respondeu a J onas na barr iga da ba leia ,

Ele nos responderá.

Ele que respondeu a Davi e a Salomão em Jerusalém,

Ele nos responderá” .8

Não apenas a memória de seus antepassados e de suas

experiências frente a intervenção divina, mas também a memória de suas

8 Da liturgia de um jejum bíblico (baseado na Mishnah Ta’anit 2:4)

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dores e a memória daquilo que julgaram definidor de seu papel junto a

Deus. A memória trágica do povo judaico parece então definidora de sua

própria expectativa enquanto povo sagrado. Para uma comunidade que

impõe o tempo histórico como valor de pertença e símbolo para que as

gerações futuras atentem sobre sua responsabilidade, os acontecimentos

trazem e afirmam aquilo que os define, ou seja, para que possam somente

enxergar a si mesmos quando então evocam aquilo que seus antepassados

fizeram em nome da própria comunidade e a serviço de Deus, ou ainda

somente a partir da intervenção divina é que é feita a manutenção de sua

trajetória na história e estas intervenções quase sempre se manifestaram na

narrativa hebraica quando necessitavam de uma espécie de milagre para

livraram-se ou serem libertos de uma imposição terrena, como os períodos

de escravidão ou submissão a um grupo que lhes era hostil.

Sendo assim, como se formou ou como é definida a experiência

de dor do povo judeu? Quais são os elementos que definem aquil o que

julgam pertinente para a permanência, quais os acontecimentos mais

importantes para a memória do sofrimento judaico, ou ainda quais

acontecimentos devem jamais ser esquecidos? Quais fundamentos

justificam-nos? Ao que nos parece inicialmente, o sentim ento coletivo

colocado sobre situações de intensidade em hostilidade e violência, pode a

priori poder ser o mais rápido argumento para justificar a construção de

uma memória de tal grupo. No caso da história judaica, as constantes

dispersões e movimentos anti-judaicos a que seus antepassados foram

expostos, seriam suficientes para tal argumento. Embora isso, o tratamento

dado a este grupo poderia então encaixar -se a qualquer outro. Mas a questão

dos judeus parece possuir suas peculiaridades e assim necessit a de uma

investigação própria que justifique suas particularidades.

Na literatura judaica não é difícil encontrarmos o lamento, não

referimo-nos somente a palavra em seu sentido etimológico, mas

principalmente ao peso que tal expressão possui ao povo jude u, onde a

mesma refere-se ao conjunto de valores que define os elementos e não mais

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os coloca num mundo disperso e incerto. Ao contrário, a definição de

sofrimento de seus semelhantes justifica sua estada em qualquer local que

se encontrem e reforça sua al iança com um Deus que olha somente aos seus.

Tal é a importância disso, que a memória construída sobre os lamentos

praticamente atropela a memória rigidamente histórica, ou seja, embora

saibam de diversos acontecimentos que exigem seu lamento e devoção, o

momento ou datas exatas não requerem a mesma importância:

“Os judeus que lamentavam na s inagoga a queda do Templo

sab iam o dia do mês, mas duvido que a maior ia soubesse ou se

importasse com o ano exato em que o Primeiro ou o Segundo

Templos foram destruídos, quanto mais com as tát icas e armas

que foram empregadas. Sab iam que os bab ilônios e os romanos

haviam s ido os des truidores, mas nem um nem outros poder iam

ter sido rea l idades his tór icas para e les. As memór ia ar t iculadas

em cânticos melancól icos de gra nde poder poét ico eram básicas

e comovedoras, mas expressas em tendências que s implesmente

diferem de nossas noções de “saber histór ia”. Aqui es tá um

pequeno trecho de um longo lamento pelo nono dia de Ab, que

revela tão somente uma maneira pela qual a mem ória co let iva

judaica podia se es truturar :

“Um fogo me incendeia quando me lembro – quando de ixe i o

Egito . Mas levanto lamentos quando me lembro – quando deixe i

Jerusa lém. Moisés cantou uma canção que nunca ser ia esquecida

– quando de ixe i o Egi to . Jeremia s lamentou e gr i tou em

desespero – quando deixe i Jerusalém. As ondas do mar se

recolheram mas ficaram de pé como um muro – quando de ixei o

Egito . As águas transbordaram e cobriram minha cabeça –

quando deixei Jerusalém. Moisés me conduziu e Aarão me guiou

– quando de ixe i o Egi to . Nabucodonosor e o imperador Adriano

– quando de ixei Jerusalém” “.9

9YERUSHALMI, Yosef Hayim. Zakhor: história judaica e memória judaica; tradução de Lina G. Ferreira da

Silva. – Rio de Janeiro: Imago Ed, 1992. Segundo Yerushalmi o autor desse lamento é desconhecido. O

poema aparece em várias liturgias.

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I.I – CONTEXTUALIZAÇÃO

As recentes questões colocadas a partir de fim do século XIX e

princípio do século XX trazem reflexões que se colocam como fundamentais

aos historiadores e pensadores em geral. As ideias de civilização absoluta,

dotada de racionalidade, progresso e dinamismo , encontraram enfim, sua

síntese mais obscura, desta vez repleta d e uma racionalização que caminhou

contra os princípios racionais, mo rais e modernos dos novos tempos. 10

As sociedades modernas e o crescente desenvolvimento do

aparato estatal instalaram de fato um sentido plenamente antagônico na

humanidade, o progresso então inevitável em uma Europa industrializada

sob os mecanismos do desenvolvimento científico fez-se também aliada à

barbárie, o racional e o irracional como uma dicotomia explosiva que

resultou em processos de extremo terror na primeira metade do século XX.11

A instalação de regimes totalitários, nazista e fascista, na

Alemanha e Itália respectivamente, mostrou à Europa e ao mundo o poder

de destruição da união do desenvolvimento científico, da racionalidade

instrumental e do surgimento das grandes massas, agora concentradas em

centros urbanos e submetidas às formas de s ubmissão do Estado. Esta

instrumentalização forneceu os mecanismos ideais para os acontecimentos

que resultaram na Segunda Grande Guerra Mundial (1939 -1945). Terror ou

irracionalidade são termos util izados para representar não somente a

10

Em “Dialética do esclarecimento”, “Theodor Adorno e Max Horkheimer apontam para o que chamam

“crise da modernidade”:”. O indivíduo não precisa mais recorrer a si mesmo para decidir o que deve fazer.

[...] sua vida profissional é determinada pela hierarquia de organizações e pela administração pública, e sua

vida privada pelo esquema da indústria cultural. [...] as massas, privadas até da aparência de uma

personalidade, se conformam mais docilmente aos modelos e às palavras de ordem que as pulsões à censura

interna. Se, na época liberal a individualização de parte da população era necessária para adaptar a sociedade

em seu conjunto ao estado atingido pela técnica., hoje o funcionamento do aparelho econômico exige uma

administração das massas que não seja mais perturbada pela individualização”. Tomamos como pertinente

aqui somente a contextualização a que se remetem os autores, observando sobretudo a construção teórica das

relações estabelecidas neste novo momento, não sendo nosso objetivo o aprofundamento conceitual ou

metodológico dos mesmos. 11

ADORNO, Theodor W. Dialética Negativa. 1966.

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formação do totali t arismo, mas, sobretudo, a perseguição, exclusão e

extermínio de significativa parte das comunidades judaicas espalhadas por

toda a Europa.

Porém, o ofício historiográfico, de maneira muito interessante,

permite não permanecer ligado somente a esta primeir a reflexão. Embora o

termo anti -semitismo apareça somente em 1879 na Alemanha , o

antijudaísmo como acontecimento social é velha prática na Europa. E, como

reforça Rabinovitch, o antijudaísmo não desaparece com a modernidade,

ele se reposiciona. O anti -semitismo agrava mais ainda sua propensão

mortí fera.12

Desta forma, é possível distinguir práticas de intolerância

contra os israelitas, de formas distintas e movidas por razões igualmente

distintas, onde cada época é filha de seu próprio tempo. Massacres em

massa e violências cíclicas poderiam ser apontados aqui por toda a História

(Alemanha em 1096, Espanha em 1391, Polônia em 1648 -1649), e, após

1881 é na Rússia que se agrava a prática de pogroms contra as populações

judaicas mais pobres13

. O anti-semitismo moderno é político:

“A democracia que emerge no decorrer do século XIX no

continente europeu permanece de substrato cr i stão. A perda de

inf luência pol í t ica das autor idades ec lesiást icas deixa intac ta no

coração dos combates os mais seculares a pregnância an t i juda ica

do pagano -cr is t ianismo. A recomposição norma tiva do discurso

público, que passa do teo lógico ao po lí t ico , não acarre ta a

decomposição da vind ita anti juda ica. A função de “bode

exp ia tór io” que pesou sobre os judeus é re tomada. Ao lado da

perpetuação do ant i judaísmo c láss ico desenvolve -se um ant i -

semi t ismo pol í t ico, socia l ou nacional is ta , progress is ta ou

reac ionário”.14

12

RABINOVITCH, Gérard. Schoá: Sepulcros nas nuvens. São Paulo: Perspectiva, 2004. 13

Em 1905, a Okhrana, polícia secreta do Czar russo, fabrica o conhecido “Protocolos dos sábios de Sion”,

plano secreto de dominação mundial atribuído à comunidade judio-maçônica. Os fantasmas do anti-semitismo

estavam de volta, o falso plano funcionou como uma espécie de “licença para matar”. 14

Cit. pág. 33. Lembrado aqui o “afair Dreyfus” no início do século XX, onde o o então capitão da marinha

francesa foi acusado de conspiração e apoio aos alemães.

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Com o início das perseguições muitos abandonaram a Europa,

sobretudo após os episódios que culminaram com a Kristallnacht15

e se

dirigiram a regiões consideradas seguras, entre elas o Brasil, que acabou

por ser o destino de muitos imigrantes de origem judaica na primeira

metade do século XX.16

Os fenômenos de massa antes orientados pelas tradições

utópicas do período clássico chega ram ao fim do século XX com uma

emergência da memória como fonte de orientação. A força da memória na

construção dos mitos identitários que tem informado contemporaneamente

as ações de reconhecimento social e político.17

Toda memória é criação do

passado, reconstrução e manipulação, ou seja, desempenha um papel

fundamental na maneira como os grupos sociais apreendem o mundo

presente e reconstroem sua identidade. Desta forma, a relação mais evidente

se torna a que se coloca entre memória e poder, onde também o

esquecimento é igualmente vital na construção de uma memória coletiva .

Phillipe Poutignat e Jocelyne Streiff -Fenart alertam sobre a necessidade de

esquecimento no imaginário coletivo francês, visto os confli tos étnicos no

país. 18

Neste sentido, a relação entre História e memória é pertinente,

sendo notório que a historiografia tem recorrido à memória voluntária,

produzida através do desenvolvimento cognitivo, desqualificando assim a

memória involuntária, tida como irracional e muitas vezes avessa à

História.

15

Ou noite dos cristais. Episódio que a partir de 1938 define a intolerância fascista e a perseguição

exacerbada contra os judeus. 16

PRÛSER, Friedrich. O Rolasnd e Rolândia in Roland und Rolandia. Bremen. Robert Bargman: 1957. 17

DE SEIXAS, Jacy Alves. Percursos de Memórias em terras de História: Problemáticas atuais. in:

BRESCIANI, Stella e NAXARA, Márica. Memória e (res) sentimento. Campinas: Unicamp, 2004. 18

POUTIGNAT, Phillipe. & STREIFF-FENART, Jocelyne. Teorias da Etnicidade. UNESP, 1998. A noção

de esquecimento desempenha uma relação com as forças dogmáticas de um determinado grupo étnico. Desta

forma, os valores a que estaria ligada a sociedade francesa não permitem a estes se interessar pelo fato de que

sua nação formou-se historicamente por meio da conquista, migrações ou anexações de povos distintos.

Assim, o esquecimento desempenha o papel que permite ao grupo agarrar-se convictamente a conjunto de

valores étnicos.

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A relação entre memória e História, somamos a já apontada

noção de ressentimentos , mas como uma espécie de dinâmica dos

ressentimentos, criadora de valores, de finalidades sentidas como desejáveis

pelos indivíduos e que eles buscam realizar . Tal movimento conduz à ação,

à exteriorização, levando em consideração as satisfações e benefícios que

os ressentimentos podem proporcionar. No caso das manifestações anti -

semitas, o ódio19

recalcado e posteriormente manifestado acaba por criar um

vínculo afetivo que permite uma forte identificação de cada um com seu

grupo de pertença. Como um reagrupamento de indivíduos que se unem para

gritar sua agressividade, inventando signos que exprimam desejos hostis,

como apedrejar símbolos alheios ou queimar figuras sagradas de um grupo

ao qual se manifesta ódio e desejo de vingança.

As experiências afetivas a que os atores se propõem são em

escalas diferenciadas recalcadas e evitadas, de forma a não serem reveladas

freqüentemente. Poderia então, a memória dos ressentimentos conduzirem

sempre à das violências e perseguições, uma espécie de dever da memória,

onde fatos e sofrimentos suportados não são levados ao esquecimento.

A partir destas referências podemos nos valer de considerações

da História Cultural , a refazer trajetórias de vida que operam como que

janelas ou portas de entrada para a compreensão de formas de agir, de

pensar e de representar o mundo em uma determinada época20

, ou seja,

buscando representações que revelem fatores previamente não observados,

dando voz a personagens que de outra maneira ficariam no esquecimento, o

que segundo Jaques Revel nos proporciona uma descida ao rés do chão. A

abordagem da obra de Max Hermann Maier e de Mathilde Maier parece

revelar exatamente essa fragmentação, a possibilidade de compreender os

fenômenos decorrentes da segunda grande guerra e principalmente aqueles

que se relacionam com a memória e com os ressentimentos desenvolvidos

19

É preciso esclarecer que o elemento “ódio” se configura em todas as partes envolvidas, de forma que assim

como aqueles que praticam do anti-semitismo podem ser movidos por tal sentimento, os hostilizados

desenvolvem também o ódio pelos anti-semitas, além também daquele deferido por seu próprio grupo de

pertença. 20

PESAVENTO, Sandra Jatahy. História e História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2005

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nestes imigrantes. Esta análise se fará no discurso embutido em suas obras,

naquilo que não se revela claramente em suas palavras. Como o s

ressentimentos se manifestam, a quais comportamentos servem de fonte, que

atitudes inspiram, conscientes ou não?

O trabalho utiliza como fontes duas obras principais: 1)

MAIER, Max Hemann. Um advogado de Frankfurt se torna cafeicultor na

selva brasileira - Relato de um imigrante(1938-1975). Título do original

alemão: Ein Franfurter Rechtsanwalt wird Kaffeepflanzer in Urwald

Brasiliens. Bericht Eines Emigranten (1938 -1975). 2) MAIER, Mathilde. Os

jardins de minha vida. São Paulo: Versão: Roswitha Kempf. Massao Ohno

Editor, 1981. Do original Alle Gärten meines Lebens. Verlag Josef Knecht -

Carolusdrukerei . Frankfurt am Main.

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II – JUSTIFICATIVA

As pesquisas que se debruçaram sobre , não apenas, os

fenômenos da modernidade, mas , também, os regimes totalitários e as duas

grandes guerras mundiais se esforçaram também no sentido de compreender

a trajetória daqueles que sofreram todo o terror e trauma das perseguições,

assim como o trabalho forçado nos campos de concentração e de extermínio.

As diversas linhas de pesquisa historiográficas revelaram e continuam a

revelar um ilimitado campo de interpretações e possibilidades de

investigações dentro do efeito imigratório durante a segunda guerra

mundial, os sobreviventes, a passagem pelos campos nazistas, a perseguição

em território alemão, a investida em terra hostil e toda a tragédia causada

pela experiência da barbárie fornecem ferramentas suficientes para a

pesquisa histórica. Uma possibilidade de apoio em uma concepção

multidimensional da realidade social , onde cada nível ou dimensão traça

sua própria história, ao mesmo tempo em que se articula com outras, a fim

de restabelecer o movimento de uma sociedade. A própria história judaica,

enquanto grupo étnico dentro dos acontecimentos da segunda grande guerra

tornou-se extremamente fragmentada quando relacionada às questões que

envolvem imigração, exílio ou mesmo fuga do território alemão. A presença

de famílias imigradas ao Brasil revela ao s historiadores um amplo campo de

pesquisa e também possibilita ao presente trabalho a utilização de

instrumentos variados , como os recursos oferecidos pela História Oral ou

consulta de arquivos públicos e privados.

Partindo deste movimento o trabalho pre tende realizar esforços

nas discussões historiográficas que envolvem o s ressentimentos. Conceito

que revela uma multiplicidade de interpre tações e significados, desde a

psicanálise freudiana ou mesmo a filosofia de Nietzsche, em ambos os casos

é sempre presente a relação direta desta dimensão psicológica com as

construções sociais.

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As práticas de anti -semitismo como ódio aos judeus são

escolhidas como potenciais para a investigação da gênese dos

ressentimentos, o que nos permite igualmente relacioná-lo com a memória.

Para Freud não há erradicação dos sentimentos, antes dele Maquiavel

teorizou que o medo é o principal motor do ódio. Temos, portanto, uma

busca da compreensão não apenas dos conflitos humanos ou dos grupos

étnicos em sua essência política, mas também das relações emocionais, de

teor mais subjetivo, que revelam o surgimento de ressentimentos a part ir de

experiências trágicas. Vinculados a intensidade e força dificilmente não

possuíram consequências ou manifestações na conduta dos indivíduos. Não

objetivamos um trabalho de defesa de grupos supostamente vitimizados pela

História, pois, ao passo em que escolhemos uma determinada maneira de

encarar o objeto, é importante atentarmo -nos para a ilimitação da produção

hstórica desses ressentimentos. Seja estarmos falando de personalidades

caracterizadas como ressentidas, feito Adolf Hitler, seja observarmos os

distanciamentos entre as diferentes confissões religiosas. Portanto, os

ressentimentos a que nos referimos são amplamente produzidos pelos

grupos em ordens e ritmos inconstantes, escolhidos assim em determinados

momentos como mais pertinentes ou não, de forma a optarmos a dar mais

relevância a este ou aquele, e, assim, não estarmos nos posicionando para

um entre eles, mas sim, estarmos optando por uma conduta de pesquisa.

O trabalho busca uma contribuição para os variados estudos de

anti-semitismo, conflitos étnicos e intolerância, além da própria

contribuição à historiografia e seus estudos acerca do século XX e seus

acontecimentos, mas ainda também uma possibilidade de ampliação das

discussões no que se refere ao lado mais subjetivo da experiência, buscando

a compreensão do fenômeno dos r essentimentos e as construções que

permeiam as relações de afeto e memória política assim inserida.

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III - A HISTÓRIA E OS RESSENTIMENTOS

“Existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro, o medo

grande dos ser tões, dos mares , dos desertos, o medo dos

soldados, o medo das mães, o medo das igre jas, can taremos o

medo dos ditadores , o medo dos democrat as, cantaremos o medo

da morte e o medo de depois da morte, depois morreremos de

medo e sobre nossos túmulos nascerão f lores amarelas e

medrosas”.21

“A morte a vida estão no poder da palavra”.22

Sigmund Freud, em sua obra Reflexões para os tempos de

guerra e morte23

, aponta para as relações estabelecidas entre aqueles que

sobreviveram a primeira grande guerra (1914 -1918), de forma a buscar a

compreensão dos traumas e consequentemente da postura assumida após

1918 diante da vida. De certa forma essa pers pectiva se aproxima daquilo

que o autor buscou explicar através da constituição do psiqu ismo e as raízes

intolerância. Segundo Mara Selaibe:

[ . . . ] o t ipo de natureza paranóica de nosso narcisi smo básico e

fundante a f im de complexizar em d ireção ao reconh ecimento e a

acei tação – inc lusive a admiração – por aqui lo que nos é

es tranho, que nos é outro ou apenas díspar . Tornamo -nos únicos

e humanos pe la via dupla da identi f icação e da

di ferenciação /separação. Tal paradoxo permanece sempre e

recrudesce a cada s i tuação de perseguição, de impedimento da

af irmação da divers idade, de ataque f í sico e psíquico à

21

Carlos Drummond de Andrade. 22

Provérbios, 18-21. 23

FREUD, Sigmund. Reflexões para os tempos de guerra e morte. Obras completas de Freud, vol. XIV.

Imago Editora, 2006.

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alter idade visando imobil izá - la e neutral izá - la . A vio lênc ia

contra um outro humano se impõe total i tár ia e faz va ler a par t ir

dela a homogeneização , o exterm ínio da d i ferença.24

Desta forma, inspirada na reflexão freudiana, a autora caminha

também no referencial psíquico de alteridade do indivíduo, tomando por

conseqüência a coletividade desses mecanismos de ação e diferenciação que

quando tomados em grandes proporções resultaram em episódios de

massacre e extermínio, numa profunda exteriorização da intolerância. No

caminho traçado pela psicanálise o principal texto para pensar as

diferenças, a diferenciação – bem como as resistências a elas – seja nos

indivíduos seja nos grupos, nas instituições e nas massas foi O mal estar na

civilização de 1929.25

Temos nesta obra a solidificação da diferenciação , do

mal estar recalcado nas sociedades e a relação estabelecida entre o próprio

sujeito atuante e o meio social ao qual esteve vinculado e assim voltamos

nossa atenção sobre não apenas as diferenças reconhecidas pelos atores,

mas principalmente como operam tais diferenciações e como os mesmos

atores se sensibil izam em relação a elas e comportam -se reciprocamente no

contato de suas fronteiras.

Ora, aquilo que pretendemos – observar historicamente os

ressentimentos – só poderia inicialmente ser abordado na relação

identificada com a idéia de alteridade ou estranhamento26

, estabelecer as

condições de sua existência e não d e sua validade, ou seja, tomamos a

verdade como uma produção histórica, onde tal análise nos remete ao

aparecimento, organização e transformação de determinados valores. A

regularidade da pesquisa por sua vez individualizada no espaço do

conhecimento estabelece compatibilidades e incompatibilidades.

Em sua Microfísica do Poder , Michel Foucault afirma que o

poder não se dá, não se troca nem se retoma, mas se exerce, só existe em

ação, como também da afirmação que o poder não é manutenção e

24

SELAIBE, Mara. Raízes da intolerância. In: Psicanálise e intolerância. São Paulo: 2005. 25

SELAIBE, Mara. Raízes da intolerância. In: Psicanálise e intolerância. São Paulo: 2005. 26

Detalhes no capítulo O outro na História e a figueira brava. Págs. 30 à 51.

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reprodução das forças econômicas, mas acima de tudo uma relação de

força.27

Desta forma, o poder se configuraria em um exercício, um exercício

de compreensão dos mecanismos de repressão, onde as relações de poder

nas sociedades atuais têm essencialmente por base uma rela ção de força

estabelecida, em um momento historicamente determinável. Em seu

percurso rumo à realização de um projeto em relação à história do

pensamento, o autor procurou mostrar como porções particulares de

conhecimento limitaram a liberdade humana e qua is recursos seriam válidos

para a superação de tais restrições. Des ta forma, Michel Foucault apontou

para o que chama de regimes de verdade, ou seja, relações circulares onde

sistemas de poder as produzem e sustentam. Sobre a questão diz o a autor:

“Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua “pol í t ica geral”

de verdade: i s to é , os t ipos de d iscurso que ela acolhe e faz

funcionar como verdadeiros; os mecanismos e instâncias que

permi tem d ist inguir os enunciados verdadeiros dos fa lsos, a

maneira como se s anc ionam uns e outros; as técnicas e os

procedimentos que são va lor izados para a obtenção da verdade;

o estatuto daqueles que têm o encargo de d izer o que funciona

como verdadeiro”. 28

As relações de força e a produção de discursos refletem de

maneira inquestionável na conduta dos indivíduos. Aquilo a que Michel

Foucault chama “política geral” manifesta -se de maneira heterogênea em

cada sociedade. A transformação dos discursos, o surgimento de novos, o

desaparecimento de outros, a mudança lentamente se fe z vencedora, de

forma que se dist inguem inevitavelmente em tempo e espaço. Jean

Delumeau, em sua obra sobre o medo no Ocidente29

, dedica pelo menos um

27

FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1989. 28

FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. São Paulo: Martins

Fontes, 1987. A verdade, no pensamento foucaultiano é entendida, portanto, como um sistema de

procedimentos ordenados para a produção, regulação, distribuição, circulação e operação dos discursos. A

questão fundamental da Filosofia deve ser buscada a partir da relação que estabelece entre nós e a verdade, ou

seja, de que forma devemos conduzir-nos? Através desse trabalho vemos modificadas as relações com a

verdade e, principalmente, vemos modificada a conduta dos homens. 29

DELEMEAU, Jean. História do medo no Ocidente (1300-1800). São Paulo: Cia. Das Letras, 1989. De

início o autor questiona-se: “Por que esse silêncio prolongado sobre o papel do medo na história?” Trata-se

aqui, assim como em nossa pesquisa sobre os ressentimentos, de não apenas abordar o medo puro e

simplesmente, mas de relacionar o complexo de sentimentos que desempenharam um papel crucial na história

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capítulo ao anti -semitismo e às relações entre a “Europa e os judeus”.

Chama-nos a atenção nesse momento a contextualização e constatação do

autor ao verificar “idas e vindas” ou “altas e baixas” da comunidade

israelita e a relação desta com a população de forma geral e as insti tuições

de época. Segundo Delumeau, durante parte da História a intolerância

deferida aos judeus aconteceu, sobretudo, pela existência de um anti -

judaísmo popular, ocorridos principalmente nas cidades com episódios

sangrentos anteriores ao século XVI30

, sendo relatados casos onde a

intervenção papal se fazia necessária quando da acusação de algum cidadão

judeu em relação a qualquer crime, a população insana e determinada não se

contentava senão com a morte dos israelitas31

. Na Idade Média e em sua

sequência, principalmente após o século XVI, a instituição religiosa passou

por modificações s ignificativas no tratamento e no discurso. O aparente

“medo” da ameaça judaica solidificou-se no pensamento cristão, o povo

judeu estava, agora, ligado a tudo aquilo que determinasse efetivamente o

mal, o demônio, as trevas. Desta forma, regiões como a Esp anha, antes

conhecida como “terri tório das três religiões”32

, pela tolerância religiosa

das sociedades humanas. Sobre o assunto o autor cita o texto Pour l’histoire d’um sentiment: Le besoin de

sécurité, de 1956 publicado na Annales e escrito por L. Febvre: “Não se trata [...] de reconstruir a história a

partir da exclusiva necessidade de segurança – como G. Ferrero estava tentado a fazer a partir do sentimento

do medo (no fundo, de resto, os dois sentimentos, um de ordem positiva, o outro de ordem negativa, não

acabam por encontrar-se?) – [...], trata-se essencialmente de colocar em seu lugar, digamos de restituir seu

quinhão legítimo a um complexo de sentimentos que, considerando-se as latitudes e as épocas, não pôde

deixar de desempenhar um papel capital na história das sociedades humanas para nós próximas e familiares”.

Aqui o medo fora detectado sobretudo pela análise da segurança, ou seja daquilo que os grupos humanos

fizeram registrar-se em suas preocupações com as edificações, grandes portais, muralhas, feito a descrição

detalhada das fortificações de entrada na Augsburgo do século XVI. 30

Segundo Jean Delumeau “...Os pogroms que acompanharam a Peste Negra na Alemanha e na Catalunha e as

violências de que os judeus foram vítimas em Paris e no resto da França com o advento de Carlos VI (1380)

revelam, no plano local, os ressentimentos de uma população - ou antes de uma fração desta – em relação aos

israelitas. Usurários ferozes, sanguessugas dos pobres, envenenadores das águas bebidas pelos cristãos: assim

os imaginam freqüentemente os burgueses e o povo miúdo urbano no final da Idade Média. Eles são a própria

imagem do “outro”, do estrangeiro incompreensível e obstinado em uma religião, dos comportamentos, de

um estilo de vida diferente daqueles da comunidade que os recebe”. 31

C it. pág. 279: “Essa estranheza suspeita e tenaz aponta-os como bodes expiatórios em tempos de crise.

Inversamente, muitas vezes aconteceu – por exemplo na Espanha e na Alemanha no decorrer da Peste Negra,

mas também na Boêmia no século XIV e na Polônia no século XVII – que soberanos e nobres tomassem a

defesa dos judeus contra a cólera popular. Do mesmo modo, os papas tiveram por muito tempo uma atitude de

compreensão em relação a eles”. 32

Sobre este afirma Jean Delumeau: “O país que, nos séculos VXI e VXII, se tornou mais intolerante em

relação aos judeus, a Espanha, foi o que, anteriormente, melhor os acolhera. No final do século XIII, eles

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durante parte da Idade Média, transformaram-se em palcos de terror e

perseguição, mas desta vez haviam sido fortemente estimuladas pelo

discurso religioso:

“Do mesmo modo que o rac ismo hit ler i s ta deu ao ant i -semi t ismo

alemão do começo do século XX uma agressividade e uma

dimensão novas , assim também o temor ao judeu – verdadei ro

“rac ismo rel igioso” – exper imentado pe la Igrej a mil i tante entre

os séculos XIV e XVII , numa p sicose de cerco um pouco

comparável , não só exacerbou, legit imou e genera l izou os

sentimentos hosti s em relação aos judeus das co let ividades

loca is , mas a inda provocou fenômenos de rejeição que, sem essa

inci tação ideológica, sem dúvida não se te r iam produ zido.

Reencontra -se então um juízo já enunciado por H. C. Lea quando

ele escrevia no começo de sua monumental History of the

Inquis i t ion of Spa in: “ Não é exagerado dizer que a Igreja foi a

pr incipal ou mesmo a única responsável pe la mul t idão de

sevícias so f r idas pe los judeus no decorrer da Idade Média”. E eu

acrescentarei es ta emenda: mais a inda durante a Renascença”.33

Desta forma, o discurso produzido aponta para momentos

diferentes, primeiro aquele onde a “discursividade ideológica” tem papel

determinante nos movimentos anti -judaicos, e segundo, onde a

agressividade popular era tamanha que aqueles mais favorecidos dentro da

hierarquia social tomavam a defesa dos judeus frente à intolerância popular.

Ambos apontam também para períodos distintos na Históri a, mas embora

tudo isso comunga da mesma hostil idade a um mesmo povo, sendo assim os

judeus vistos como “aliança do mal” e a quem deferem todos os males

surgidos para as comunidades.

A idéia de Delumeau e de outros autores que o mesmo nos

aponta corre em d ireção à formação de um discurso, de uma “incitação

eram ali perto de 300 mil e vivam misturados ao resto da população. Cristãos e israelitas convidavam-se à

mesa uns dos outros. Iam aos mesmos banhos públicos e muitas vezes nos mesmos dias, a despeito de certas

interdições pouco respeitadas. Cristãos assistiam às circuncisões e judeus aos batismos. [...] Tal era, na Idade

Média, a Espanha das “três religiões”, um país tolerante porque não homogêneo”. Também a Polônia por

muito tempo destacou-se como região de tolerância. Na segunda metade do século VXI dizia o estatuto dos

judeus poloneses: “Nessas regiões, encontram-se massas de judeus que não são desprezados como em outras

partes. Não vivem na submissão e não estão reduzidos aos ofícios vis. Possuem terras, ocupam-se do

comércio, estudam a medicina e a astronomia. Possuem grandes riquezas e não são apenas contados entre as

boas pessoas, mas por vezes as dominam. Não usam nenhum sinal distintivo, e lhes é permitido até mesmo

portar armas. Em suma, dispõem de todos os direitos do cidadão”. 33

Idem 7. cit. pág 278-279.

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33

ideológica” que predominantemente determina o percurso da análise,

sobretudo naquilo em que lhes confere o sentimento, a subjetividade do

medo. O ditado popular “se não podes com eles junte -se a eles” é aqui

utilizado às avessas. Cabia aos judeus atender a uma oportunidade de

conversão, de permanência, de partilhar valores, ainda que de qualquer

maneira jamais o fosse plenamente. Era -lhes em muitos momentos a única

chance:

“No momento em que Lutero confes sava seu imenso medo do

per igo turco, enfurec ia -se também contra os judeus que, em um

primeiro tempo, esperara conquistar para o Evangelho. A

simul tane idade das duas denúncias não era for tui ta . Ao

contrár io , e la esc larece uma s i tuação his tór ica. Na Europa

Ocidenta l , o ant i juda ísmo mais coerente e mais doutr inal se

manifes tou no per íodo em que a Igreja , percebendo inimigos por

toda par te , sent iu -se presa entre os fogos cruzados de agressões

convergentes. De modo que, no começo da Idade Moderna, o

temor aos j udeus se s i tuou sobre tudo no níve l re l igioso”.34

Esta passagem aponta para o momento em que Lutero acreditou

ainda poder converter os judeus e trazê -los para o interior da reforma

protestante. Ao mesmo tempo, a Igreja, que ainda sangrava após o cisma do

cristianismo no Ocidente, reagiu imediatamente contra tudo aquilo que lhes

parecesse igualmente passível de estranhamento. Portanto, os israelitas não

encontraram diálogo seguro com nenhuma das confissões cristãs. E assim , a

longa crise da Igreja começada com o grande Cisma, e depois continuada

pelas guerras hussitas, o avanço turco e finalmente a secessão protestante

engendraram nos meios eclesiásticos endurecimentos doutrinais e um medo

maior do perigo judeu.35

Séculos mais tarde os acontecimentos que culm inaram nas duas

grandes guerras e, sobretudo nas práticas de intolerância e anti -semitismo

durante a segunda guerra mundial elevaram fortemente o prestígio do

Estado, sendo atribuída a ele uma força legít ima sobre a vida, a morte e a

liberdade. As massas, privadas até da aparência de uma personalidade, se

34

Cit. pág. 278. 35

Cit. pág. 282.

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conformaram mais docilmente aos modelos e às palavras de ordem. Ou seja,

as massas são submetidas à exploração e à dominação, por de trás do bem -

estar recalcou-se todo um ambiente caótico. Temos uma maneir a diferente

de manifestação anti -semita, embora alguns elementos, como a ideologia

religiosa, que foram ainda estimulados e ainda assim ao esti lo nazista, de

forma que a Igreja não exerceu participação determinante nas perseguições,

formações de campos de concentração ou mesmo extermínios. Nos tempos

de Hitler, segundo Jean Delumeau, o antijudaísmo

“teve dois co mponentes que mui tas vezes se somaram: de um

lado, a hosti l idade experimentada por uma colet ividade – ou por

uma par te desta – em relação a uma minoria empreendedora,

considerada inassimi lável e chegando a ul trapassar um l imiar

toleráve l no p lano do número ou do êxito , ou nos dois ao mesmo

tempo; e , do outro, o medo sent ido por doutr inár ios que

ident i ficam o judeu com o mal abso luto e o perseguem com seu

ódio implacável mesmo quando e le fo i repe lido para fora das

frontei ras”.36

Embora o contexto da primeira metade do século XX possa

assim pensar o anti -semitismo na Europa e o próprio nazismo, as práticas de

intolerância deferidas aos israelitas rem etem a momentos bem mais remotos

da História européia e principalmente não se vinculam necessariamente à

expressão dos sentimentos populares ou a uma situação social e econômica.

Delumeau acrescenta que:

“Do mesmo modo que o rac ismo hit ler i s ta deu ao ant i -semi t ismo

alemão do começo do século XX uma agressividade e uma

dimensão novas , assim também o temor ao judeu – verdadei ro

racismo “rel igioso” – exper imentado pe la Igrej a mil i tante entre

os séculos XIV e XVII , numa psicose de cerco um pouco

comparável , não só exacerbou, legit imou e genera l izou os

sentimentos hosti s em relação aos judeus das co let ividades

loca is , mas a inda provocou fenômenos de rejeição que, sem essa

inci tação ideológica , sem dúvida não se ter iam produzido.”37

Desta forma, o antijudaísmo popular não deve ser visto como

única ou principal força motora das agressões contra os judeus. Há uma

36

DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente. São Paulo: Cia. Das Letras, 1989. 37

Cit. pg. 278.

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relação entre os chamados “afetos” – conjunto de manifestações e

percepções subjetivas ligadas sobretudo à moral e hombridade dos atores –

e o político, ou seja, aquilo que por ventura age diretamente no objeto em

questão: a formação dos ressentimentos.

A partir destes acontecimentos, tomando principalmente nosso

recorte temporal, remetidos, portanto, ao século XX e ao anti -semitismo

praticado durante sua primeira metade, com os conseqüentes extermínios em

massa nos campos de concentração e os grupos de refugiados espalhados

por todo o mundo no antes e pós -1945. Temos assim articuladas

problemáticas que permitem observar a construção dos ressentimentos entre

os descendentes judaicos.

As perspectivas do medo e das formações discursivas em suas

subjetividades dão aos ressentimentos aquilo que podemos colocar como um

pós-operatório, ou seja, como a herança de tempos em que as piores

expectativas confirmaram-se tragicamente para os israelitas. A expressão do

sobrevivente ou do hostilizado é manifesta , consciente ou não, em relação

ao seu algoz.

Observamos anteriormente que o antijudaísmo encontra sua

fonte em conflitos antigos entre grupos distintos e nas riv alidades

teológicas. A evangelização dos povos europeus o propagou no Ocidente,

daí os estudos sobre anti -semitismo ocuparem-se da relação deste com as

sociedades ocidentais. Transformam as populações judaicas em “bode

expiatório”.38

Desta forma a perseguição e exclusão aos judeus tornou-se

frequentemente praticada em território ocidental .

38

RABINOVITCH, Gerard. Sepultos nas nuvens. São Paulo: Perspectiva, 2004. Expressão esta utilizada

também por Jean Delumeau na “História do medo no Ocidente”. O chamado “bode expiatório” caracterizou-

se como aquele a quem são creditados feitos ou intervenções, ou seja, se justificou ações muitas vezes

conspiradas por outros ao elemento judeu, de forma que o peso de sua ascendência por si só era suficiente

como prova e podia convencer a grande maioria do grupo. Antes da primeira guerra mundial o caso do oficial

da marinha francesa, Dreyfus, acusado de alta traição e conspiração com os alemães tornou-se um dos mais

famosos julgamentos internacionais da História e fonte de inspiração para a reflexão nas expressões sociais,

feito a obra de 1925 “O Processo”, de Franz Kafka. Na narrativa kafkiana Josef K. é um bancário de 30 anos

que acorda certa manhã, e, sem motivos sabidos, é preso e sujeito a longo e incompreensível processo por um

crime não revelado, quando se declara inocente é questionado “inocente de quê?”. K. termina morto nos

portões da cidade. Por outro lado, em meio a estes acontecimentos, tivemos também a formação e

estruturação do pensamento sionista, sobretudo com a atuação de seu principal mentor, Theodor Herzl. O

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Em uma observação particular, tomando aqui os anos que

antecedem o fenômeno nazista, o sociólogo Zygmunt Bauman, em sua obra

Holocausto e Modernidade , alerta para o fato de que a Alemanha, antes da

ascensão do partido nacional socialista, comparada a outras regiões da

Europa, não apresentou naquele momento (sobretudo a partir do início da

década de 1930) um sentimento extremo de ódio aos judeus, algo muito

mais visto em outras regiões do continente.39

A explosão do sentimento

anti-semita não é inédita nem formulada ao pé do século XX, trata -se de

valores recalcados, que em momentos de incitação tomam lugares de

destaque no cenário social .

A intolerância dos alemães levou mais de cinco milhões judeus

à morte no período compreendido entre os anos de 1939 -1945. Foram estes

trazidos de várias regiões da Europa, dentre estes a maior parte de judeus

russos e poloneses.40

O discurso da violência e sua heroificação apresentam -se

também como forma de conduta, de salva -guarda de valores de um povo

considerado forte e honrado. Segundo Gérard Rabinovitch:

“Berto ld Brecht em sua peça A resist íve l ascensão de Arturo Ui

comparava os naz istas aos gangsters. Os traba lhos dos

soc iólogos e dos antropólogos sobre a máfia tradic ional podem

confirmar a intuição do autor . A hero i ficação da violência como

maneira de “es tar no mundo” , é o ponto mais flagrante de

simi l i tude ent re a subcul tura mafiosa e o naz ismo (que lhe é

poster ior) . As regras de ast úcia, de ferocidades , de prát icas de

roubo e de embuste, a concepção real de honra baseada na

aptidão para a violênc ia homic ida, a prát ica do duplo d iscurso,

sionismo foi caracterizado como um movimento de direito à autodeterminação do povo judeu e à existência

de um Estado judaico. Em 1896, o livro "Der Judenstaat" ("O estado judaico") de T. Herzl apontava para a

necessidade da formação de um Estado judaico, onde somente assim o problema do anti-semitismo seria

resolvido. 39

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Holocausto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. O autor aponta para

um recorte muito específico que engloba as relações mais superficiais dentro do território alemão, não

expandindo a análise a uma conjuntura de longa duração. A expressão anti-semita deflagrada no Ocidente,

como já exposto aqui, foi hora e outra exteriorizada, em uma relação de continuidade com rupturas

estruturais, feito a incitação ideológica por parte de um ou outro. 40

R. Hilberg. La destruction des Juifs d’ Europe. Fayard, 1988. & E. Jäckel. P. Longerich, J. H. Shoeps,

Enziklopädie dês Holocaust, Argon, 1993. Segundo os autores, que divergem em números totais por uma

questão de demarcações e fronteiras, o número de russos mortos está entre 700.000 e 1.100.000 e o número de

poloneses entre 2.900.000 e 3.000.000. Estima-se que o total de judeus mortos durante a guerra esteja entre

5.100.000 e 5.860.000.

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do logro, do impera tivo de subord inação, da hierarquia

fundamentada na predominância do mais for te , da l ivre

disposição sád ica sobre os fracos e os sem -defesa, da

fanfarronada, os mafiosos têm seus homólogos nos Schwarze

Korps e na Schutzsaffe l (SS) . “Nos castelos de minha ordem,

crescerá uma juventude que a terror izará o mundo. Eu quero uma

juventude v io lenta, despótica, sem medo, cruel . . .” dirá Hi t le r . O

emprego da vio lência homicida é ind ispensável ao homem de

honra . A hierarquia no se io da soc iedade honrada está baseada

na agressividade, na ferocidade, , na so lidez dos nervos, na

ausência to ta l de esc rúpulos, na se lvager ia , na capacidade de

tomar dec isões rap idamente. A heroi f icação do “Super -Homem”

nazista lhe é homóloga quase te rmo a termo. Ela está no centro

das expressões de Hi t ler , Goebbels e de Himmler . É a da SS

como guarda pre tor iana na qualida de de corpos de el i te e na

função de núcleo da “nova ordem” do Reich de mi l anos”.41

Uma vez instauradas as noções de intolerância e de anti -

semitismo podemos agora dirigir -nos à questão da formação dos

ressentimentos e seu apelo junto à História, quais di scursos viabilizaram, de

que maneira foram operados, quem os manteve e como aconteceram nas

sociedades ou mesmo grupos que compartilharam da experiência da

hostilidade sobretudo no anti -semitismo moderno.42

Para tanto a idéia dos ressentimentos deve concentrar-se em

uma diversidade de formas, para que assim possamos trabalhar com a

definição de ressentimentos e não ressentimento. Em seu estudo sobre

memória e (res)sentimentos, Márcia Regina Naxara e Maria Stell a Bresciani

alertam os lei tores:

“Não pensamos aqui somente na co municação voluntár ia de

experiências ou na prát ica da transmissão oral de lendas e

tradições entre populações , o mais das vezes i le tradas; a

preocupação maior busca também o avesso da face

his tor icamente datada da obrigação à memória, es sa memór ia

voluntár ia construída como estratégia de luta po lí t ica, a f irmação

posi t iva de identidade pelos que se vêem excluídos dos d ire i tos

41

RABINOVITCH, Gérard. Schoá: Sepultos nas nuvens. São Paulo: Perspectivas, 2004. Em seu breve ensaio

sobre o Holocausto e as “raízes do antijudaísmo” o autor expõe dentro daquilo que denomina “cultura da

corja” elementos da formação do ideário e práxis nazista, tais como anti-semitismo, o mito ariano, a cultura

da morte e a heroificação da violência. Desta forma, o conjunto de valores dignos de um representante ariano

deveriam não confrontar-se com estes. Segundo o autor, assim como pensou o poeta alemão Bertold Brecht,

os valores do nazismo estavam próximos daqueles vistos entre as famosas máfias de início do século XX. 42

Entendemos aqui como anti-semitismo moderno as práticas de intolerância deferidas aos judeus a partir da

primeira metade do século XX e a ascensão dessa militância que culminou no movimento nazista na

Alemanha.

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à cidadania; rememoração dolorosa, mas não menos afirmat iva,

de perseguições polí t icas, re l igiosas, é tnicas, por ve zes

acompanhadas de prá t icas vio lentas de genocídio. Como separar

essas memór ias de sent imentos negat ivos , humilhações, a fe tos

ressentidos, rancores e desejos de vingança das evocações da

par te so mbria , inquie tante e frequentemente terr í fica da

his tór ia?”43

Portanto, a memória dos ressentimentos pode conduzir os

indivíduos a uma manutenção negativa de suas experiências passadas, de

forma a preservarem sentimentos hostis .

Uma noção envolvida com a psicologia social definiria os

ressentimentos a partir das relações entre os afetos e o polí tico, entre os

sujeitos individuais em sua afetividade e as práticas sociais e políticas,

como expresso por Max Hermann Maier:

“No dia 10 de novembro de 1938, após doze anos de uma vida

conjugal fel iz e traba lhosa, após se is anos sob o terror naz is ta ,

depois da “Noite dos Vidros Quebrados” (Kristal lnacht , em

alemão); depois do “pogrom” ordenado pe los naz istas, pude

enfim sair da minha cidade nata l (Frankfurt sobre o Meno) com a

minha famí lia . Pudemos sa lvar -nos das perseguições do últ imo

dia da nossa es tada em Frankfurt co m a ajuda de bons amigos;

sem essa ajuda não ter íamos conseguido pegar o t rem da no ite

para a Holanda. Antes da fronteira , na cidade de Emmerich,

fomos de tidos pe la “SS” e tra tados de maneira humilhante. Na

noi te de onze de novembro, fel izmente nos l iber taram.” 44

Desta forma, a multiplicidade de idéias permite ao termo

ressentimentos uma variedade de abordagens, sendo, porém, presente na

maioria delas uma questão delicada, pois nos obriga a explorar regiõ es e

temas a que somos resistentes. Questão sensível a das memórias

acorrentadas a ressentimentos.45

Portanto, a referência a memórias

43

BRESCIANI. Stella (org) e NAXARA. Márcia. Memória e ressentimento.Unicamp: 2004. 44

Pág. 4, cap. 2 in: MAIER, Max Hermann. Um advogado de Frankfurt se torna cafeicultor na selva

brasileira – Relato de um imigrante (1938-1975) Nesta passagem Max Hermann Maier narra o desepero da

família que saiu tardiamente da Alemanha, daí as dificuldades em ultrapassar as barreiras nazistas rumo a um

lugar qualquer que lhes fosse mais amistoso . 45

BRESCIANI. Stella (org) e NAXARA. Márcia. Memória e ressentimento.Unicamp: 2004. A advertência

das autoras parece-nos bastante pertinente ao passo em que a pretensão da história dos ressentimentos se nos

apresenta de maneira bastante subjetiva, sendo necessário a exploração de memórias noturnas, àquelas para as

quais desenvolvemos resistências colossais, estando ainda sujeitos a uma deformação dessas memórias,

delírios, invenções. É necessário atenção e cuidado ao trabalho historiográfico.

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acorrentadas a ressentimentos podem ter na perspectiva historiográfica uma

intensa relação com estudos multidisciplinares, onde as utilizações de

ferramentas fornecidas pela psicologia, filosofia e sociologia podem

fornecer suportes para a investigação em história.

Pierre Ansart em seu estudo sobre os ressentimentos e suas

implicações com a memória já apontava tamb ém para uma abordagem plural

do tema, ou seja, uma diversidade das formas de ressentimento , que podem

estar relacionados a uma intensidade na perspectiva da psicanálise, a

representações, ligadas a crenças, religiões, imaginários ou ideologias além

de relações entre grupos e a reciprocidade entre eles.46

Assim, a tomada de

manifestações cotidianas, feito a leitura de um livro ou o trabalho em um

pequeno jardim transformam-se em meios diretamente relacionados ao

ressentimento, exteriorizam valores e revelam a memória:

“Eu vos digo amadas árvores, que p lante i já pressentindo . . .

cresçam como que saindo de minha a lma ao puro ar , pois que

dores e prazeres enter rei sob vossos pés . Cada dia t ragam

sombra , t ragam frutos, regozijos , mas que eu possa per to , per to ,

per to de la vos fruir .”47

Estas palavras de Goethe foram inspiradoras para Mathilde

Maier, que assim as comentou:

“Esta poesia Goethe escreveu para Charlo tte v. S tein , quando

plantou seu jardim – um presente do duque – fo ra dos portais da

cidade de Weimar. I númeras vezes reci tamos es ta poesia e

ident i ficamo -nos com e la. Da mesma maneira como este jardim

em Weimar poss ibi l tou a separação def ini t iva de Goethe de

Frankgur t – e há mui tas provas dis to – assim o plant io do nosso

jardim, seu cresc imento, sua floresc ência e frut i f icação, f izeram -

nos radicar profundamente nes te país novo e esquecer o

sofr imento ind izível da separação da pá tr ia e dos entes quer idos,

e as amargas exper iênc ias do tempo do naz ismo. E assim como o

sofr imento em comum aprofunda o amor , ass im a formação e a

construção conjunta de jardim e casa nos confor tou” .48

46

Também BARISH, Louis e BARISH, Rebecca. O problema do sofrimento in: Crenças Básicas do

Judaísmo. São Paulo: Ed. Edigraf, 1967. 47

Citação de Goethe feita Mathilde Maier em sua obra “Os jardins de minha vida”. 48

Pág. 64 in: MAIER, Mathilde. Os jardins de minha vida. Massao Ono Ed. São Paulo: 1981.

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40

Há, portanto, uma espécie de dinâmica dos ressentimentos,

criadora de valores, de finalidades sentidas como desejáveis pelos

indivíduos e que eles buscam realizar. Assim, dificilmente se pode aceitar a

hipótese de que um sentimento do qual sublinhamos a intensidade e força,

não tenha conseqüências nem manifestações na conduta dos indivíduos. 49

Ou seja, não se livraram desse passado noturno, ele os acompanha ainda que

no Brasil estejam desde o amanhecer ao fim dos dias e a Alemanha tão

distante. Tal movimento conduz à ação, à exteriorização, levando em

consideração as satisfações e benefícios que os ressentimentos podem

proporcionar. No caso das manifestações anti -semitas, o ódio recalcado e

posteriormente manifestado acaba por criar um vínculo afetivo que permite

uma forte identificação de cada um com seu grupo de pertença. Como um

reagrupamento de indivíduos que se unem para gritar sua agressividade,

inventando signos que exprimam desejo s hostis, como apedrejar símbolos

alheios ou queimar figuras sagradas de um grupo ao qual se manifesta ódio

e desejo de vingança.

Mas, qual a solidariedade viabilizada pelos ressentimentos

coletivos, ou ainda, como se operam os movimentos que conduzem à a ção?

Os ressentimentos se constituiriam em sentimentos criadores, fei to a inveja,

ciúme, rancor, maldade, desejo de vingança, humilhação e medo. Devemos

duvidar de que algum tipo de sociedade possa fazer desaparecer a

experiência do ódio, inferioridade, humilhação e potencialidades

permanentes de agressividade. Segundo a perspectiva freudiana as pulsões

inconscientes nos confrontam à dualidade pulsional do amor e do ódio, onde

esta dualidade é redescoberta e incessantemente posta e recomposta.

Ao tentar problematizar os ressentimentos e a História devemos

buscar restituir e explicar o devir dos sentimentos individuais e coletivos.

Segundo Pierre Ansart,

49

RABINOVITCH, Gerard. Sepultos nas nuvens. São Paulo: Perspectiva, 2004.

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41

“A d i ficuldade é redobrada quando se tra ta não somente de

anal isar os ód ios, mas de compreender e explic ar aqui lo que

precisamente não é di to , não é proc lamado; aquilo que é negado

e se consti tui , entre tanto, como um móbi l das at i tudes,

concepções e percepções soc ia is . O objeto esquiva -se, é p rec iso

formular a hipó tese de sua importância e reconsti tuir o inv isível

que , se não é tota lmente inconsciente, ao menos em par te é não

consc iente” .50

E acrescenta:

“O his tor iador encontra -se na obrigação de acumular o es tudo

dos indícios, dos signos, dos traços: es tudar a distr ibuição dos

camponeses nos so los, es tabe le cer a curva dos casamentos

mis tos, observar as est ratégias de a fas tamento, considerar os

l imi tes das terras e dos l i t ígios, recompor os r i tua is rel igiosos,

observar qual imagem, do outro é ai apresentada, re traçar a

his tór ia par t icular de um estupro e dos rumores que o tornaram

público e o transformaram em cr ime simbólico. Tarefa de licada

que diz mais respe ito ao es tudo dos costumes, dos usos da vida

cotid iana que à grande his tór ia pol í t ica .”51

Portanto as experiências afetivas a que nos propomos , sejam

elas ligadas a circunstâncias particulares, como a história privada de

famílias ou, sejam elas ligadas a valores contidos em situações públicas,

fei to os conflitos étnicos, são, em escalas diferenciadas , recalcadas e

evitadas, de forma a não serem reveladas f reqüentemente. Poderia então, a

memória dos ressentimentos nos conduzir sempre à das violências e

perseguições, uma espécie de dever da memória, onde fatos e sofrimentos

suportados não são levados ao esquecimento.

Por outro lado a investigação de tais val ores remete o

historiador a uma observação mais minuciosa, de forma que os pormenores

50

ANSART, Pierre. História e Memória dos Ressentimentos in: BRESCIANI, Stella. Memória e (res)

sentimento. Campinas: Ed. Unicamp, 2004.

51

Cit. pág. 29.

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42

da vida cotidiana é que irão de fato nos conduzir dentro da pesquisa,

revelando mais tarde acréscimos e subtrações no devir histórico, naquilo

que os grupos tomam para si e naquilo que recusam de bom grado, com

hostilidades maiores ou não. No caso dos israelitas alguns autores refletem

sobre a assimilação do judeu em relação à Europa, ao passo em que

reconhecem nos povos europeus uma porção de judaísmo. Sobre isso

afirmou Georg Simmel:

“O per igo da absorção não ameaça de modo algum os judeus,

pelo contrár io , encontram-se no estágio de judaização da

Europa. Se examinarmos i sso com uma lupa psico lógica,

encontraremos e lementos judaicos no sangue de todos os povos

de cultura e essa juda ização do não judeu ocorre para lela à

europeização dos judeus. Quanto mais os judeus se ass imi lam,

tanto mais e les se assimilam a s i mesmos, e o momento da maior

assimilação dos judeus coinc idirá com o momento de sua maior

inf luência enquanto e l emento psíquico ( . . . ) europeus e judeus

encontram-se em uma profunda l igação cultura l . Eles são

ind ivis íve is.”52

Árdua tarefa a da memória dos ressentimentos, configurados em

discriminação, repressão, terror, intolerância, tortura ou violência. Na

perspectiva historiográfica buscar ainda a transformação, no sentido de

compreender a memória que o indivíduo conserva de seus ressentimentos, a

memória que conserva dos ressentimentos daquele de quem foi vítima e

ainda a memória conservada pelo grupo de seus p róprios ressentimentos. A

memória híbrida de civilização e barbárie:

“O mundo dos campos da mor te e a soc iedade que engendra

revelam o lado progressivamente mais obscuro da civi l ização

judaico -cr is tã . Civil ização s igni f ica escravidão, guerras,

exp loração, e campos da morte . Também signi fica higiene

médica, elevadas idé ias rel igiosas, be las ar tes e requintada

52

Georg Simmel (1858-1918)

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43

música. É um erro imaginar que c ivi l ização e crueldade

se lvagem sejam ant í teses. Em nosso tempo as c rue ldades, como

mui tos outros aspec tos do nosso mu ndo, passaram a ser

adminis tradas de manei ra muito mais a fet iva que em qualquer

época anter ior . Não deixaram e não deixarão de exist ir . Tanto a

cr iação como a destruição são aspec tos inseparáveis do que

chamamos civil ização”. 53

A passagem de Rubenstein at enta para um ponto fundamental

em qualquer pesquisa que pretenda elaborar algo realmente significativo

sobre o holocausto e as perseguições anti -semitas: não se deve partir de

pressupostos de isolamento, ou seja, a observação da imigração semita para

o Brasil deve ser encarada como parte integrante de um movimento de todas

as sociedades, e mais do que isso, igualmente integrante à mentalidade que

conduziram nossos semelhantes às práticas de intol erância. Ora, o

holocausto nasceu e foi executado em nossa sociedade moderna e racional,

no auge do desenvolvimento cultural humano, por essas razões é um

problema dessa sociedade, dessa civilização e cultura. Como aponta

Rubenstein a barbárie aconteceu juntamente à música e belas artes. 54

A presença dos Maier e de outros imigrantes no norte do Paraná

configuram aos historiadores e pesquisadores das Ciências Humanas uma

vasta área de investigações, seja a partir da constituição dos grupos étnicos

e suas imigrações ou dos ressentimentos desenvolvidos, recalcados e ain da

assim, manifestados. A estruturação dos imigrantes torna possível a

possibilidade de apoio em uma concepção multidimensional da realidade

social, onde cada nível ou dimensão traça sua própria história, ao mesmo

tempo em que se articula com outras, a fim de restabelecer o movimento de

uma sociedade. A própria história judaica, enquanto grupo étnico dentro dos

acontecimentos da segunda grande guerra tornou -se extremamente

fragmentada quando relacionada às questões que envolvem imigração, exílio

53

Richard Rubenstein. The Cunning of History. New York: Harper, 1978. in: BAUMAN, Zygmunt.

Modernidade e Holocausto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. 54

Assim como nos salientou Benjamin nas famosas teses sobre o conceito de história: “não há um

monumento da cultura que não seja também um monumento da barbárie”.

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44

ou mesmo fuga do território alemão. As presenças de famílias com sangue

judaico na cidade de Rolândia revelam aos historiadores um amplo campo

de pesquisa.

Parece-nos que o movimento aqui exposto relaciona -se mais

fundamentalmente com a cultura, entendida aqui de fo rma ampla, ou seja,

tudo que o homem construiu para tornar humanizado o seu espaço. Todos os

elementos do humano estão inscritos no campo da cultura. Desta forma a

postura não visa uma discursividade sobre espaços específicos que

pretendam dar visibilidade para determinados grupos sociais e legitimar o

seu poder. Ao contrário, as manifestações das sensibilidades e a

constituição de imigrantes como grupo étnico em “terras longínquas” são

fenômenos que buscamos compreender no movimento histórico através da

investigação de vontades individuais dentro da estrutura geral da sociedade

humana.

III.I – OS RESSENTIMENTOS E OS IMIGRANTES

ALEMÃES EM ROLÂNDIA-PR

A obra de Mathilde Maier, Os jardins de minha vida55

, pode ser

compreendida como um retrospecto de sua p rópria história enquanto

personagem de um cenário habitado por outras centenas de histórias que a

precederam. O abandono da Europa em 1938 e a exposição de seu último

jardim em solo alemão refletem não mais que um aspecto de tragédia, a

guerra que se anunciava novamente frente os olhos de uma geração que já

havia passado pelos horrores da primeira grande guerra (1914 -1918):

“ninguém ainda pressentia o terror da Primeira Guerra Mundial que afetou

55

O livro de Mathilde Maier, publicado em 1981, foi editado pela primeira vez pela Editora Massao Ohno, de

São Paulo-SP. A versão é de Roswitha Kempf. Kempf foi também uma refugiada alemã que veio ao Brasil e

mais tarde casou-se com Massao Ohno. Os Maier já os conheciam dos tempos vividos em Rolândia.

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45

tão gravemente a nossa geração”.56

Desta forma, para uma geração mais

madura, o anúncio da segunda grande guerra representava não mais espanto,

mas temor e medo, frente ao a experiência de que já haviam comungado

antes. Aos jovens, segundo Mathilde Maier, causava menor angústia a idéia

de transferência para terras est rangeiras, embora o não reconhecimento, o

estranhamento em relação ao tempo que viviam fosse o mesmo para todos.

“Quando depois da emigração, que se deu em 1938 , fomos pela

pr imeira vez visi tar a Alemanha, então foram os amigos que

sobreviveram ao terror do nazismo e da guerra; a casa de Goethe

o jardim das palmeiras, que nos facul taram de novo es te

sentimento de so lidar iedade com a ve lha pátr ia” 57

Não é difícil identificar entre os imigrantes alemães -judeus

que vieram para Rolândia uma espécie de a bandono ao modus operandi

germânico. Embora não pudessem eliminar traços característicos de sua

formação, muitos buscaram evitar a permanência de laços com a antiga

pátria. Alguns se recusavam a falar o idioma alemão, outros jamais

retornaram à Alemanha e com o tempo seus descendentes foram criando,

segundo relatos e observações, um desapego ainda maior, e desta vez não

somente com a cultura germânica, mas também com o próprio judaísmo.58

Ao que parece, o casal Maier não adotou postura tão radical.

Retornaram algumas vezes à antiga pátria, registraram seu estranhamento e

não deixaram de viver no Brasil até o fim de suas vidas. Isto não caracteriza

de certa forma, uma menor formação de ressentimentos em relação aos

episódios que os fizeram abandonar a Alemanh a, mas talvez uma relação

diferenciada para com suas próprias experiências:

“Em 1938, o des t ino nos levar ia às regiões tropica is com seu

pujante crescimento . Talvez a lembrança do despertar t ímido da

56

MAIER, Mathilde. Os jardins de minha vida. Do original alemão: Alle Gärten meines Lebens. Verlag Josef

Knecht-Carrolusdrukerei. Frankfurt am Main. São Paulo: Massao Ohno Editor – versão Roswitha Kempf

(primeira edição), 1981. Cit. p. 22. 57

Cit. P. 23. 58

Para compreender esta questão está inserido em anexo, ao final da dissertação, uma entrevista com Klaus

Kaphan, filho de imigrantes e antigos sócios do casal Maier que chegaram a Rolândia ainda no início da

década de 1930.

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46

natureza depois do inverno , as campânulas de neve e as

pr imeiras viole tas na grama, sejam o que res ta da saudade do

paraíso perdido da infância, do qual não podemos ser

expulsos”.59

A narrativa de Mathilde Maier, ao contrário de Max Hermann

Maier, possui uma grande metáfora recalcada em seus jardins, que se

referem não somente às suas experiências de infância, juventude e

maturidade, mas também uma forma bastante específica de expor seu

lamento, de exemplificar de que maneira poderia ela ou não manter seus

laços com aquilo que ninguém poderia lhe arrancar. Neste caso, a vivência

da infância parece ser aquela que melhor traduz o que não podem lhe t irar,

o paraíso perdido como a autora mesma coloca. E os momentos ligados aos

seus jardins são vastos em toda a narrativa:

“Feliz a cr iança que pode br incar num jar dim. O meu jard im

es tendia -se atrás de uma be la ant iga casa renana que, na frente,

apresentava uma portentosa escadaria e atrás , para o lado do

jardim, um largo terraço de pedra onde se viam grandes vasos

com o leandros vermelhos, cor de rosa e brancos. No verão, es tes

arbustos sempre f lor iam abundantemente, porque eram bem

tratados , regados e adubados e nisto o co mprido cachimbo de

meu pa i desempenhava uma função s igni f icat iva : as c inzas do

tabaco eram co locadas nos vasos . Na minha memór ia o estranho

per fume sul ino das flores de o leandro ficou para sempre

assoc iado a um leve che iro de cachimbo”60

Ou ainda:

“Como era pací f ica a Alemanha, na perspect iva de uma cr iança

de antes da grande guer ra mundia l ! Agora, aqui no Bras i l ,

quando a no ite estou deitada na n ossa casa de madeira, mui tas

vezes depr imida pe las no tíc ias dos jornais, eu passo em

pensamentos pelos aposentos e jardins de minha infância . E

então escuto o estorninho cantar do al to da casa, onde está

sentado na entrada de seu ninho , as plumas pre tas e lus trosas, e

à sua frente a pereira que esbanja o mister ioso e doce per fume

de suas flores . Este estorninho canta em louvor do Criador do

59

MAIER, Mathilde. Os jardins de minha vida. Do original alemão: Alle Gärten meines Lebens. Verlag Josef

Knecht-Carrolusdrukerei. Frankfurt am Main. São Paulo: Massao Ohno Editor – versão Roswitha Kempf

(primeira edição), 1981. Cit. p. 10. 60

MAIER, Mathilde. Os jardins de minha vida. Do original alemão: Alle Gärten meines Lebens. Verlag Josef

Knecht-Carrolusdrukerei. Frankfurt am Main. São Paulo: Massao Ohno Editor – versão Roswitha Kempf

(primeira edição), 1981. Cit. p. 9.

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47

universo e em seu canto eu reencontro a fé na per fe ição da

cr iação”.61

Aliado à perspectiva de seu passado, Mathild e expressa um

sentimento depressivo, uma nostalgia do lar e da infância, dos tempos de

paz. A redenção parece querer surgir através de seu louvor à natureza. Os

jardins representam a forma mais sutil de permanência em um ambiente

ausente da violência e hos tilidade daqueles dias.

Depois de imigrados, os Maier se estabeleceram em uma

fazenda, num cenário próximo aquele que a autora imaginava enquanto

liberto, juntamente a isto outro fator determinante para a estabil ização,

sobretudo emocional, parece ter sido o apego a literatura, que na passagem

de ambos, Max Hermann Maier e Mathilde Maier, ocupou um lugar especial

após a fuga para o Brasil:

“Ser ca tól ico ou judeu, não fazia d i ferença na est ima humana

recíproca e nos conceitos de ordem divina no mundo. A c ruz inha

de cinzas na tes ta de Hede, eu a olhava com o acanhado respei to

por uma trad ição que para mim era estranha. Desde cedo, eu me

t inha desl igado das rel igiões trad icionais em favor de um

concei to rel igioso mais ou menos no sentido dos Hypsistár ios,

uma sei ta do século três , cuja doutr ina consiste numa mistura do

judaísmo e paganismo. O nome é der ivado do grego e s igni f ica a

veneração de um Deus só. No Bras i l , depois de ve lhos, onde para

meu marido e para mim, Goethe se tornara uma figura

or ientadora, e ncontramos numa car ta dele escr i ta em 1831 a seu

amigo Boisserée, o seguinte t recho que, para mim, fo i

concludente : “Nenhum ho mem se l ivrará do sent imento

rel igioso. . .entre todas as confissões ainda não achei uma, à qual

eu pudesse me confessar plenamente. Agora nos meus velhos

dias chego a saber de uma se i ta dos Hypsistár ios que, s i tuados

entre pagãos, j udeus e cr i stãos , dec laram es t imar o melhor , o

mais per fe i to que viesse a seu saber , admirá -lo e venerá - lo e ,

desde que es teja em íntima relação com uma d i vindade, também

adorá -lo . De uma época obscura surgiu de repente uma luz

alegre, po is eu senti que durante toda minha vida tentara

quali f icar -me como Hypsis tár io , e isso não fo i coisa fác i l” .62

61

Idem. Cit. P. 15. 62

Idem. Cit. P. 19.

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48

Nesta passagem, além dos valores religiosos a que a autora se

coloca, há claramente o valor dedicado ao escri tor alemão Johann Wolfgang

Von Goethe (1749-1832), a quem o casal declara em alguns momentos uma

interferência direta em sua estabilidade psicológica, a uma nova concepção

de mundo, que menos antes, quando já o conheciam, não haviam ainda

conseguido exercer tal olhar sobre sua obra . Sobre isso escreveu Max

Hermann Maier:

“Seguir incondic ionalmente um homem, e endeusá - lo a té , fo i

possíve l unicamente porque os seus sequazes, numa obediência

cega, não t inham mais fé em Deus e , por i sso mesmo, não

sentiam mais remorsos em tr ipudiar sobre a dignidade humana de

seus semelhantes. No es trangeiro lemos co m novos o lhos o ve lho

Kant , para o qual a crença em Deus cr iador era a razão prát ica

das necessidades inatas ao ser humano. Em nenhum lugar ,

porém, a soberania e as exigências de Deus vêm tão claramente

delineadas quanto na Bíblia , na qual al iás se mencionam

inúmeras, arrogantes e fracassadas tentat ivas humanas de

usurpar -se o lugar de Deus. A Bíb lia torna -se sempre o l ivro

mais importante do emigrante. Sempre de novo l ida, comentada e

exp licada e la pode ser encontrada na casa de cada emigrante da

Alemanha, mui tas vezes em vár ias edições e exemplares. No

es trangeiro, pudemos chegar também a uma nova noção do maior

poeta a lemão, Goethe. Essa noção já nos havia sido anunciada

antes, por Alber t Schweitzer e Karl Jaspers , mas ela se tornou

viva e rea l somente pela própria experiência. Got thold Ephraim

Less ing expressou de maneira ímpar o que signi fica experiência

própria: “A r iqueza da experiência obt ida a través de lei tura e

l ivros se chama erud ição. Experiência própria é sabedor ia . O

capí tulo menor da sabedoria va le por mi lhões de erudição”. Em

1947, após receber o prêmio Goethe da cidade de Frankfurt ,

d isse Kar l Jaspers: “É do esp ír i to de Goethe que se par t ic ipe da

sua vida, lendo -o cada ano, a ele , suas obras, car tas e discursos.

Ele se torna nosso companheiro e auxi l iar constante em todas as

fases da nossa vida. Viver com Goethe nos torna alemães, nos

transforma em pessoas humanas”. Por desejo de minha esposa ,

por ocasião da emigração, t rouxemos a edição de 8 vo lumes das

car tas de Goethe, apesar das l imi tações de bagagem. Tornaram -

se um tesouro em nossa casa, ao lado de outras obras, c lássicas e

românt icas. A lei tura des sas car tas tornou-se jus tamente uma

fonte de a firmat ivas para se viver em tempos di fíceis. Embora

Goethe mesmo t ivesse t ido suas horas e temporadas de

sofr imento e preocupações, quando “adormecia entre lágr imas”,

tendo a té chegado a dizer a seu amigo Ecker mann que em seus

75 anos não t ivera “nem um mês de a legria”, suas obras e car tas

são che ias de amor e entusiasmo pe lo homem e seu futuro:

“Como quer que ela seja , a vida é um bem, e la é boa”. Sentenças

desse teor , axiomas ou regras de vida, são freqüentes em seus

epigramas: “O que cada dia quer de t i , deves perguntar , o que

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49

ele deseja, va i te responder . Alegra -te em tuas obras, e dá valor

às a lheias. Que a menor das coisas te dê sat is fação. Aprovei ta

bem a hora presente. Acima de tudo , não odeies a pessoa

a lguma. E de ixa o futuro nas mãos de Deus”.63

E acrescenta:

“Ele foi , i sso s im, um ser humano de profunda sensibi l idade,

vivendo entre semelhantes, de mui ta bondade e pac iênc ia. Para

poder conservar suas energias para o traba lho , construiu como

que um muro ao seu redor e , como d isse seu venerador Karl

Jaspers, Goethe vis lumbrou as mais te rr íve is coisas, mas não

permi tiu que elas o at ingissem. Por i sso mesmo é que para nós,

ví t imas de fatos horr íveis e desumanos os quais não soubemos

evitar em nossas vida s, para nós Goethe se tornou mais que um

guia ou ajudante , tornou -se mestre universa l que, pela sua

personalidade e suas obras, nos adverte a que nos empenhemos

todos, e em tudo, para sermos pessoas d ignas , que honrem a

humanidade”.64

Desta forma, a importância do pensamento goethiano se fez

bastante presente entre os Maier. A necessidade de uma orientação naquele

momento representava não apenas novas condições de sobrevivência, mas

acima de tudo uma possibilidade de manter -se vivo. A experiência da

hostil idade e violência que levou muitos alemães -judeus a refugiarem-se em

localidades distintas fez com que muitos não encontrassem essa espécie de

porto seguro como os Maier e consequentemente buscaram soluções radicais

para aquilo que enfrentavam.65

Para Mathilde Maier, o fato de estarem vivendo em uma região

de mata tropical , trazia talvez além da perspectiva literária uma relação

construída com suas experiências passadas, com a construção de vida desde

a infância:

63

MAIER, Max Hermann. Um advogado de Frankfurt se torna cafeicultor na selva brasileira. Relato de um

imigrante (1938-1975). Título do original alemão: Ein Franfurter Rechtsanwalt wird Kaffepflanzer im

Urwald Brasiliens. Berich Eines Emigranten (1938-1975). Josef Knecht Verlag-Frankfurt am Main, 1975.

Rolândia: Gráfica Velox-PR, 1976. Cit. P. 55. 64

Idem. Cit. P. 56. 65

Sobre este assunto ver o item IV. III. Para muitos refugiados a solução mencionada foi o suicídio.

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50

“Aqui , no nosso jardim bras i le iro , temos u ma arcada com tr inta

videiras de vár ias espéc ies. Quando na pr imavera brasi lei ra , em

se tembro, passo pe la arcada e s into doce che iro da f lor da uva,

então vejo o jardim de Trier , vejo o r io Mosela entre os morros

cobertos de vinhedos. Um bem-estar independ ente do tempo se

apodera de mim, s into a natureza eterna, na qual nos é permi t ido

f icar por um tempo de terminado . Este sentimento de fazer par te

da na tureza eu já t ive naquele tempo do terraço , onde os ramos

das parreiras se enroscavam nas co lunas e onde n o fim do outono

colhíamos as uvas Moscate l avermelhadas . Estas uvas têm bagos

f irmes, sua casca é grossa e são um t ipo bem origina l de uva,

per fumosas e de boni to aspecto, porém não mui to doces”.66

Assim, a construção dos ressentimentos, com efeitos não

menores, diga-se aqui, se faz apenas de maneira distinta. Não significa

imaginar que para os Maier os acontecimentos ligados à investida nazista

tenham repercutido com pouca intensidade. A formação de tal subjetividade

implica em um auxílio buscado por ambos em formas de superação de sua

própria tragédia. Assim como colocou Max Hermann Maier ao mencionar

Karl Jaspers em seu discurso sobre Goethe, o poeta teria construído ao seu

redor um muro para que pudesse continuar a trabalhar e manter suas

perspectivas em relação à condição humana, ainda que tenha vislumbrado

coisas terríveis ele não permitiu que elas o atingissem. Os Maier buscaram

também não se permitir atingir, e como Goethe ou em Goethe, buscaram tal

inspiração.

Em Rolândia, na comunidade formada p or diversas famílias de

refugiados, é presente a figura de Max Hermann Maier como alguém que

reivindicou entre todos a continuação de práticas e valores antes

66

MAIER, Mathilde. Os jardins de minha vida. Do original alemão: Alle Gärten meines Lebens. Verlag Josef

Knecht-Carrolusdrukerei. Frankfurt am Main. São Paulo: Massao Ohno Editor – versão Roswitha Kempf

(primeira edição), 1981. Cit. p. 18.

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experimentados. Por ocasião de seu falecimento, em 1976, durante o elogio

fúnebre, disse o pastor da igreja luterana Hermann Muelhaeuser:

“Não preciso fa lar da valiosa e s ingular importância que teve o

Dr. Maier para a comunidade rolandense. Não ser ia esta a minha

incumbência . Menos a inda ser ia tarefa minha aval iar uma vida

des tas. Quem ser ia capaz disso? Muito ousado ser ia pretender -se

fazer o retrospecto ou descr ição de uma vida assim, moldada e

esculpida ao mesmo tempo por profec ias b íbl icas, pela eterna

f i losofia , pela míst ica juda ica e pela teologia dos rabinos, pe la

ét ica rel igiosa e prát ica, pe la poesia de Goethe , pela

par t icipação no desenvolvimento e sobrevivência de I srael , e

pelos mais a tua is e pessoais esforços pela obtenção da paz para

o mundo. Acima de tudo, a formação e a sabedoria do nosso

quer ido Dr . Maier nunca const i tuíram puro d il e tanti smo, um

destaque pessoal em si e para s i – mas seu esp ír i to viveu neste

mundo e fo i preocupado com a pessoa humana a quem ele

devotava um vivo e amoroso interesse. Dif ici lmente haveria

entre nós alguém que não t ivesse de alguma maneira sido tocado,

inf luído ou benefic iado pela for te e marcante personalidade do

Dr. Maier”.67

Embora se trate aqui de um discurso fúnebre que naturalmente

se inclina no intuito de expor quali tat ivamente aquele que morre, o pastor

coloca Max Hermann Maier como uma figura de determinada importância na

formação da cidade de Rolândia. Por outro lado, o trabalho de campo

realizado com outros imigrantes apontou para uma diferenciação entre

aqueles que viveram na cidade e aqueles que foram a área rural aos

arredores da cidade, sendo assim, as famílias que se estabeleceram fora da

zona urbana seriam aquelas com maior potencial financeiro, que

abandonaram a Alemanha e que lá possuíam poder econômico antes da

ascensão nazista. Desta forma, a dist inção entre estes imigrantes existiu,

sobretudo no contato entre os mesmos. Não entendemos aqui uma reflexão

67

Idem. Cit. P. 72.

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com uma determinante econômica, onde a influência dos Maier e sua

sobrevivência no Brasil tenha se dado apenas por suas condições materiais,

mesmo porque aqueles que abandonaram a Alemanh a, mesmo possuindo tais

condições, foram desvalorizados pelos nazistas e acabaram por perder muito

do que possuíam. Sobre estas diferenças escreveu Mathilde Maier:

“Ganhar o suf ic iente, te r comida , um telhado sobre a cabeça , te r

alguém para cuidar em caso de doença ou quando nasc ia uma

cr iança, i sto cr iava uma a tmosfera de confiança recíproca

agradável para todos. Este compor tamento básico sempre

considere i como condicionado por rel igião. Muitas vezes

ouvíamos dizer : “Tem gente r ica e gente pobre, se somos bons

uns com os outros é possível viver em harmonia””.68

Por outro lado, naquilo que consistia em experiência prática,

não haviam os refugiados passado por si tuações tão dist intas assim. Cabe

aqui, ainda sobre a formação destes alemães, acrescentar que durante a

primeira guerra mundial (1914-1918), tiveram, alguns deles uma

participação direta como qualquer outro alemão. Sobre isso escreveu

Mathilde:

“Os eventos da guerra se aba tiam como um pesadelo sobre nós.

Vinham notícias de colegas de escola que to mbaram, ou uma

amiga no iva perd ia o bem-amado. O entus iasmo pe la guerra,

grande a pr incíp io, era fomentado exageradamente nas esco las e

também na nossa. Queriam que nós , alunas do segundo ano

colegial , cantássemos de manhã no início das aulas: “Deus

cast igue a Ingla terra”, (nós não o f izemos, devo d izer para a

honra de minha c lasse) . – Este entusiasmo cedeu à um luto

abafado pe los terr íveis acontecimentos na frente de guerra. Só

mais ta rde, na convivência co m meu mar ido que sempre foi um

homem da pol í t ica, percebi como éramos pouco esco lados nessa

matér ia . As questões de Estado, de comunidade humana e de

convivência dos povos deviam ocupar um grande espaço na

educação de todo jovem. Nós, es tudantes femininas, fomos

convocadas em 1917, no “inverno das beterra bas”, pe la

Univers idade de Muenchen para o “Serviço de Ajuda

Espontânea”. Fel izes por finalmente poder fazer alguma co isa

pela cole t ividade, nós nos apresentamos ao rei to r”.69

68

Idem. Cit. P. 61. 69

MAIER, Mathilde. Os jardins de minha vida. Do original alemão: Alle Gärten meines Lebens. Verlag Josef

Knecht-Carrolusdrukerei. Frankfurt am Main. São Paulo: Massao Ohno Editor – versão Roswitha Kempf

(primeira edição), 1981. Cit. p. 26.

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Também Max Hermann Maier havia participado da primeira

grande guerra enquanto recruta do exército alemão. Por conta de círculos

filosóficos realizados em Frankfurt no pós -guerra (1919), onde se

estudavam as Teorias do Direito de Fries e mais tarde O Estado de Platão, é

que Max Hermann Maier e Mathilde Maier se conheceram. Estas reu niões

foram organizadas por jovens que eram todos marcados pela guerra70

, de

forma que eram igualmente envolvidos com as questões políticas. Max

Hermann Maier era quem orientava estas reuniões.

Desta forma, as obras escolhidas enquanto fontes deste trabalh o

representam mentalidades enraizadas na experiência da guerra. Tinham já o

conhecimento da primeira grande guerra em suas memórias. Fato este que

não deve simplificar ou diminuir o terror vivido frente ao regime nazista,

mas que de qualquer forma não os coloca como inexperientes em um cenário

de barbárie promovido por uma Europa às portas de mais um conflito

armado.

Concluímos, portanto que, a exteriorização, a prática cotidiana,

traz em sua simplicidade a capacidade de revelar os sentimentos ocultos,

recalcados, que tem o jardim com a saída de Goethe da cidade de Frankfurt?

Aparentemente nada, assim como a construção dos jardins de Mathilde não

teriam, não fosse a história a que se ligam com profundidade e a elas

remetem em seus dias. Ainda que a autora revele o contexto em que está

inserida, os ressentimentos não permitiram uma exposição explícita da

argumentação:

“As fantas ias do nacional soc ia l i smo que prometia tudo a todos,

era como um veneno mortal que infestava toda a Alemanha e que

mais tarde exigiu sacr i fíc ios ind iz íveis de todo o mundo

civi l izado. Sobre i sto não quero escrever”.71

70

Idem. Cit. P. 30. 71

MAIER, Mathilde. Os jardins de minha vida. Do original alemão: Alle Gärten meines Lebens. Verlag Josef

Knecht-Carrolusdrukerei. Frankfurt am Main. São Paulo: Massao Ohno Editor – versão Roswitha Kempf

(primeira edição), 1981. Cit. p. 39.

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54

Certamente é mais atraente ao escritor narrar os feitos de suas

histórias, sobretudo quando se expõe a própria história, num regime de

escri ta autobiográfica, de maneira a concretizar sua subjetividade, suas

emoções, através de um viés, de uma metáfora que sintetize pacificamente

uma trilha obscura, de obstáculos diversos que possuem mais experiências

trágicas do que harmoniosas: “A separação dos velhos amigos sempre foi

ferida que não se fecha na alma”. 72

No prefácio da obra de Max Hermann

Maier escreveu Elmar Joenck:

“Este é um re lato di ferente. Não se procurem nele bara tos

suspenses e empolgações. Para isso exis tem out ros l ivros. Este é

um relato que deverá agrad ar a todos aqueles que souberem

reconhecer como “mais perene que o bronze” o va lor e o

exemplo de uma vida enraizada e vivida conforme as mais puras

tradições da cultura germânica, e i luminada pelo humanismo

europeu e judaico. Além d isso, o rela to nos at in ge de frente,

pois essa vida veio encerrar entre nós sua peregr inação, a

conse lho de mestres como Goethe e Alber t Schwei tzer , faróis

como poucos, a inda capazes de nos sa lvar do naufrágio no meio

das tempestades em que todos navegamos.”73

O comentador refere-se a um texto que os atinge de frente, não

o leitor que mais tarde conhecerá o texto de Max Hermann Maier, mas eles

próprios, também refugiados alemães que vieram para Rolândia -PR, onde a

experiência narrada do autor confunde -se com a do tradutor, que fi nalizou a

obra começada pelo imigrante. De alguma forma, a manutenção de valores

construídos na Europa tinha na figura de Max Hermann Maier um papel

importante na comunidade formada em terras brasileiras: “Árvores hoje

pujantes devem seu viço a seivas antigas. E o respeito às suas raízes é a

melhor garantia ao verdor de seus ramos ansiosos de flores e frutos.” 74

72

MAIER, Max Hermann. Um advogado de Frankfurt se torna cafeicultor na selva brasileira. Relato de um

imigrante (1938-1975). Título do original alemão: Ein Franfurter Rechtsanwalt wird Kaffepflanzer im Urwald

Brasiliens. Berich Eines Emigranten (1938-1975). Josef Knecht Verlag-Frankfurt am Main, 1975. Rolândia:

Gráfica Velox-PR, 1976. 73

Idem. Cit. P. 2. 74

Esta passagem foi escrita por Elmar Joenck ao final do prefácio do livro de Max Hermann Maier. Encontra-

se na página 6. Joenck fala neste prefácio da maneira como concluíram a tradução do livro, feita em parceria

com Mathilde Maier.

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55

Por outro lado, o autor apresenta em seu texto uma participação

efetiva no desenvolvimento das questões políticas, como aqu elas que

envolviam diretamente os refugiados no Brasil:

“Para nós, banidos da Alemanha, fo i uma grande ajuda podermos

f icar sossegados co mo relação aos t í tu los das terras da

Companhia, e sermos também aco lhidos de maneira agradável

pela direção, inclusive com conse lhos acer t ados e importantes.

Imigrantes de mui tas par tes do Brasi l e da Europa foram

chegando antes e depois de nós às terras da Co mpanhia. Os

gerentes davam ajuda a todos e les, a começar pelo dire tor gera l ,

o escocês Arthur Thomas, auxil iado pelo bras i le iro Will ie Davis,

também de or igem inglesa . Ajudaram também a aconse lhar os

colonos o Boris Kleswerk, um fugi t ivo da Rússia comunis ta , e

que falava bem o alemão, sem esquecer o velho of icial da força

aérea inglesa, Gordon Fox Rule. A mental idade desses homens

se caracter iza por um ar t igo que Rule escreveu mais tarde , no

qual se lê : “Não podia imaginar , depois da pr imeira guerra

mundial , que alguns anos mais tarde eu receberia esses a lemães ,

soldados na pr imeira guer ra e que haviam cumpr ido seu dever

com a pátr ia , eu os receberia como expulsos da sua pá tr ia , para

ajudá- los e instruí -los. Nós os ajudávamos sem acei tar nem

esperar agradec imentos . Esses imigrantes va lentes, para melhor

dizer , fugit ivos, co mpraram as terras da Companhia e cr iaram

Rolândia. Foram exemplos v ivos das vir tudes dos heró is com

cujo nome bat izaram a c idade: Rolândia , terra de Roland.”75

Portanto, havia ainda a relação com estrangeiros de partes

diversas, os ingleses, que fundaram a Companhia de Terras e expuseram na

Europa uma forma de negociação, sendo assim, portanto, a maneira como os

alemães tiveram acesso a essas informações e assim puderam comprar os

vale-terras e refugiar-se no Brasil, visto que os nazistas não permitiam que

alemães-judeus retirassem o dinheiro que tinham de dentro da Aleman ha.

Max Hermann Maier comenta o fato de ter deixado na Alemanha parte de

seus livros:

“Para pôr um t i jolo defini t ivo sobre o passado, reso lvi não levar

nenhum l ivro jur íd ico comigo para o Bras i l . Com o correr dos

anos em Rolândia, comecei a lamentar essa decisão. Precise i

comprar de novo tais l ivros porque a lgumas ta refas vinham -me

75

MAIER, Max Hermann. Um advogado de Frankfurt se torna cafeicultor na selva brasileira. Relato de um

imigrante (1938-1975). Título do original alemão: Ein Franfurter Rechtsanwalt wird Kaffepflanzer im Urwald

Brasiliens. Berich Eines Emigranten (1938-1975). Josef Knecht Verlag-Frankfurt am Main, 1975. Rolândia:

Gráfica Velox-PR, 1976. Cit. P. 18, capítulo 7.

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56

ao encontro. No meio do mato, como se diz , percebi que um

jur ista , que aprendeu a amar sua profissão, recebe uma marca

indelével , um character indelebi l i s .”76

.

Havia uma comunicação entre os imigrantes, e desta forma

puderam organizar-se no sentido de resolver os problemas imediatos a que

foram expostos, a sobrevivência econômica era sem dúvida uma questão que

não podia ser deixada para outro momento, nesse sentido o contato com os

ingleses foi fundamental : Os ingleses nos ajudaram, e a muitos e muitos

fugitivos do nazismo, a começar uma vida nova, em liberdade, no Brasil77

.

Alheio a isso, o advogado Max Hermann Maier desenvolveu atividades

políticas e não deixou de manter rel ações constantes com aqueles que

permaneceram na Alemanha, não menos intensa foi a participação nas

questões ligadas aqueles que estavam no Brasil . Havia uma espécie de

plano, onde outros alemães poderiam também ser trazidos para o Brasil e

aqui fixarem residência.78

Portanto, a reinvenção de práticas cotidianas após a imigração

é o fator que permite a investigação das fontes, de forma a nos possibilitar

assim uma aproximação com o objeto e a observação dos ressentimentos

desenvolvidos.

76

Idem. Cit p. 2. Capítulo 1. 77

Idem. Cit. P. 12. Capítulo 1. 78

Sobre esta questão ver entrevista com Klaus Kaphan. Kaphan era do filho de Heinrich Kaphan, antigo sócio

de Max Hermann Maier na fazenda Jaú. Sobre ele escreveu: “Numa viagem profissional a Berlim, no fim de

1935, falei com amigos mais idosos sobre nossos planos de emigração, na esperança de ganhá-los para o

Brasil. Mas já tinham outros planos em vista. Eles nos puseram em contato com o agricultor Heinrich

Kaphan, de Emilienhof, perto do Dramburg na Pomerânia. Este já estava resolvido a emigrar para o Brasil,

com sua mulher Kaete e com três meninos. Após um contato telefônico, o resoluto prussiano apareceu em

Berlim, já no dia seguinte, para conhecer-nos”. Klaus Kaphan fala em sua entrevista sobre a formação de uma

espécie de alojamento que abrigaria estudantes alemães refugiados, mas a idéia não chegou a ser concretizada.

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57

IV – O OUTRO NA HISTÓRIA E A “FIGUEIRA

BRAVA”

IV.I – O ESTRANHAMENTO, O JUDEU E A HISTÓRIA

Investigar as origens de atração e repulsa na civil ização não é

tarefa das mais fáceis. Compreender os diferentes grupos humanos,

separados em espaço, tempo ou cultura somente, seria limitar a reflexão.

Quem é o “outro”? Na História, quem é o “outro”? Sabemos que o exército

nazista era um e que o soviético era outro. Teríamos ai um perfeito exemplo

de alteridade: alemães e russos. Cada qual identificou no adversário o

“outro”, distintos geograficamente ou politicamente. Desta forma, o

estrangeiro configura-se claramente no embate bélico, na oposição política

que sacudiu a Europa e fez evidenciar a heterogeneidade do velho

continente. Seguindo este raciocínio podemos elabora r um mapeamento

histórico e concluir que, com conflitos explícitos ou não, o “outro” é aquele

que se estabelece fora do grupo de origem, que não compartilha dos mesmos

valores de pertença.

Esta análise parece bastante superficial quando um olhar

profundo é lançado sobre o problema. O estrangeiro, termo há tempos

ligado a uma persona non grata79

, estabelece em uma sociedade relações de

valores que ocupam posições privilegiadas em suas estruturas morais, no

desenvolvimento das práticas coletivas, que ori entam a sustentação do

grupo enquanto tal. Ginzburg diz aos seus leitores: “ Sou um judeu nascido

79

Persona non grata é um termo do latim, cujo significado literal é pessoa não bem-vinda.

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num país católico; nunca tive educação religiosa; minha identidade judaica

é em grande parte fruto da perseguição” 80

. E conclui:

“Compreendi melhor algo que já pensava saber , i s to é , que a

fami liar idade, l igada em últ ima anál ise à per tença cultural , não

pode ser um cr i tér io de relevância. [ . . . ] o mundo é nossa casa

não quer dizer que tudo seja igual ; quer dizer que todos nos

sentimos es trangeiros em relação a a lguma coisa e a alguém”.81

Assim, aquilo que por vezes chamam o estranhamento pode ser

encarado como definidor das característ icas de pertença, ou ainda afirmá -

las ou reafirmá-las como elemento de manutenção. O embate nestas

fronteiras subjetivas torna o grupo reconhecedor de valores específicos e

aquilo que por vezes poderia desaparecer, pode permanecer sob olhares de

definição do outro.

A história obscura da perseguição à comunidade judaica se

encontra entre acusações de envenenamento das águas, homicí dios,

bruxarias, encontros noturnos, feitiçaria; uma porção de caracterizantes

pode ser encontrada na história dos judeus em solo estrangeiro . Fato

interessante é aquele ainda onde temos absorvida a delirante construção

deste estrangeiro. Tal sentimento, muitas vezes configurado em ódio é

expresso de forma não direta e não assumida, mas sempre interiorizado e

mesmo denegado, podendo até fazer -se como construção de um possível

auto-ódio para com os iguais e, sobretudo para com os próprios judeus,

onde uma tragédia comum entre os grupos étnicos que são hostilizados ou

perseguidos é o fato de que muitas vezes acabam introjetando a deletéria

imagem que deles é construída. 82

Assim sendo, se os dizem as multidões é

por que devem ter razão.

80

Este trecho está na obra Olhos de madeira – nove reflexões sobre a distância, onde o autor italiano Carlo

Ginzburg expõe diferentes olhares sobre o estranhamento, sobre a sensação de reconhecer o estrangeiro e de

perceber-se igualmente como um. “Grandes olhos de madeira, por que olham para mim”, pergunta Collodi,

pseudônimo de Carlo Lorenzini, escritor também italiano autor de Pinóquio, obra infantil do final do século

XIX. 81

GINZBURG, Carlo. Olhos de madeira – nove reflexões sobre a distância. São Paulo: Cia. Das Letras,

2001. 82

BAIBICH, Tânia Maria. Fronteiras da identidade - o auto-ódio tropical. Curitiba: Ed. Moinho, 2001.

Ainda sobre esta passagem é interessante destacar o papel de certos elementos constitutivos da cultura

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59

O hostilizado assume vo luntariamente o papel do estrangeiro,

embora possa em quase todos os seus aspectos compartilhar de valores

culturais deste mesmo grupo e ter seus descendentes ligados aos mesmos há

séculos83

. A presença não só dos Maier, mas de diversos imigrantes

refugiados em Rolândia enfatizam tal argumento. A manutenção do grupo

enquanto possuidor do espírito cultural alemão é mais presente que as

relações mantidas com o judaísmo. O mais forte expoente da cultura alemã

entre os Maier e outros imigrantes foi sem dúvi da Goethe. O poeta serviu

principalmente ao casal Maier como uma figura orientadora em seus novos

dias.

Portanto, a relação estabelecida com a literatur a alemã e,

sobretudo com Goethe, revela-se na narrativa do advogado como um ponto

seguro e redefinidor suas emoções ligadas ao desespero e tragédia vividas

outrora. Em outras palavras, a esperança e vontade de viver encontravam na

sua voz a liderança. A respeito da coleção particular de livros dos Maier é

interessante destacar o conflito entre os hábitos de brasi leiros e alemães.

Tendo sido mais tarde declarada guerra à Alemanha pelo Estado brasileiro,

muitos imigrantes foram intimados a pr estar esclarecimento devido ao peso

de suas bagagens. Muitos traziam caixas enormes e pesadas que continham

somente livros. Tal prática não havia sido compreendida pelas autoridades

brasileiras:

“Como nossos viz inhos , quando chegamos da Europa , t rouxemos

caixões de l ivros que eram cuidadosamente transportados da

es tação de trem a té nossas casas. No co meço da Segunda Guer ra

Mundia l , uma denúncia junto às autor idades mil i tares a f irmava

que nós, os a lemães , escondíamos armas e munições nas casas,

humana, feito a religião, a música, a literatura, como referenciais imprescindíveis para a superação de práticas

intolerantes por parte dos grupos hostilizados. Sobre isso trataremos mais detalhadamente em outro momento. 83

Uma análise permitiria reconhecer a heterogeneidade dos grupos étnicos. Sobre esta questão, enfatizando o

não reconhecimento desta heterogenia pelos membros dos grupos, no prefácio de Teorias da Etnicidade, nos

diz Jean-Willian Lapierre ao pensar a sociedade francesa: “A ideologia jacobina de nossa república, em nome

do dogma do Estado-nação, sempre negou a diversidade étnica da população francesa. [...] Mas a maioria dos

franceses não está interessada em saber que sua nação formou-se historicamente por meio da conquista, da

migração ou da anexação de povos muitos diferentes e também por uma imigração proveniente de diferentes

regiões da Europa central ou meridional, inclusive das “colônias”, de modo que muitos dos cidadãos franceses

da atualidade são descendentes de imigrados que se integraram a nós durante o século XIX ou na primeira

metade do século XX.

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porque nenhuma outra coisa podia esta r nessas caixas pesadas

que chegavam da Alemanha”.84

De qualquer forma, não é difíci l perceber as ín timas relações

estabelecidas com a Alemanha e com toda a cultura envolvida. A primeira

aventura literária de Max Hermann Maier apresentou -se em obra de 1973:

Lembranças da Alemanha – impregnadas em nós, profunda e

maravilhosamente.85

Poucos anos depois tivemos editadas suas impressões

sobre a imigração para o Brasil .

O outro da história fica até aqui como legitimador de práticas

culturais, obriga o estrangeiro a apegar -se àquilo que pode redefini -lo

enquanto ser humano, enquanto agente controlador de seu pr óprio destino.

Depois de estabelecidos em solo brasileiro, os alemães se depararam com o

cenário exótico das matas americanas. Muitas experiências estão descritas

entre a fauna e flora observadas, mas poucas chamaram tamanha atenção na

narrativa de Max Hermann Maier como a figueira:

“A maior par te da nossa fazenda era então mata virgem, na qual

se encontravam grossos troncos de perobas, cedros, paus d ’alho ,

canelas e f igue iras. As figueiras têm enormes copas e ra ízes

aéreas que se derramam tronco aba ixo. S uas sementes numerosas

só se desenvolvem depois de passarem pelo es tômago dum

pássaro. Nós observamos com cur ios idade um pequeno pé de

f igueira brava se desenvolvendo na bi furcação duma árvore no

nosso jardim. Co m os anos, ela abraçou a árvore -supor te como

uma cobra para no f im acabar com e la, estrangulando -a ; daí seu

nome “f igueira -brava”. Presenciamos como que uma tragédia na

na tureza”86

Como compreender as conseqüências de tal experiência? A

assimilação fez-se, sobretudo, pelo reconhecimento da “tragédia ” natural

84

MAIER, Max Hermann. Um advogado de Frankfurt se torna cafeicultor na selva brasileira. Relato de um

imigrante (1938-1975). Título do original alemão: Ein Franfurter Rechtsanwalt wird Kaffepflanzer im

Urwald Brasiliens. Berich Eines Emigranten (1938-1975). Josef Knecht Verlag-Frankfurt am Main, 1975.

Rolândia: Gráfica Velox-PR, 1976. Trecho do capítulo VII: Brasil, terra de asilo, página 19. 85

Tais lembranças, caracterizadas com as palavras do poeta Rainer Maria Rilke, saíram pela editora Josef

Knecht, de Frankfurt, a mesma que em 1975 lançou seu relato de imigrante. A primeira edição é composta de

208 páginas e editada somente em língua alemã. 86

MAIER, Max Hermann. Um advogado de Frankfurt se torna cafeicultor na selva brasileira. Relato de um

imigrante (1938-1975). Título do original alemão: Ein Franfurter Rechtsanwalt wird Kaffepflanzer im

Urwald Brasiliens. Berich Eines Emigranten (1938-1975). Josef Knecht Verlag-Frankfurt am Main, 1975.

Rolândia: Gráfica Velox-PR, 1976. Trecho do capítulo IV: O norte do Paraná e a fazenda Jaú, página 13.

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expressa poeticamente por Max através da figueira -brava, planta que com o

passar do tempo sufoca sua hospedeira primária. A analogia do anti -

semitismo e da figueira -brava pode ser estabelecida em direção ao viés da

imigração, o papel da terra est rangeira em meio aos conflitos do continente

europeu. Após o movimento anti -semita e o nazismo, puderam estes

encontrar, na imigração e em algum momento, sua síntese mundana, mas

síntese de perenidade, de anti -tragédia, de aventura goethiana, de Thomas

Mann e Bach em meio aos pássaros e toda a mata tropical . A figueira -brava

da intolerância não é um olho que tudo vê. Puderam os fugit ivos escapar e

não serem sufocados pela figueira -brava.

Desta forma, o Ostranienie, o estranhamento, desde o lar até

terras longínquas, assume aqui um novo papel no devir humano. No campo

lítero-teatral87

podemos apreendê-lo como sinônimo de arte em geral ou

produção específica? Ele se manifesta na arte por ser ela edificante aos

homens, tornando possível suportar a realidade, o estranhamento é

necessário para que os homens possam encarar a existência e suas

implicações.

No universo religioso a idéia do estranhamento está presente na

medida em que se criaram instrumentos de distanciamento, para encarar,

cada qual à sua forma, a realidade. O que se tentou de fato foi caracterizar

o grupo, mantendo os outros distantes, como a fantasia popular da eleição

divina, o mito grego ou a proibição judaica da idolatria, onde a imagem é

vista como presença de algo que não existe.

87

O termo ostranienie fora empregado pelo alemão Bertold Brecht, que buscou expor o estranhamento

humano, assim como Tolstoi em suas passagens. Em seus escritos o imperador Marco Aurélio atentava para o

reconhecimento da comoção e do envolvimento com aqueles que despertam paixões que deveriam ser

compreendidas: “Cada uma dessas admoestações implicava uma técnica moral específica destinada a adquirir

o domínio sobre as paixões, que nos transformam em marionetes. A voz melodiosa de um canto deve ser

subdividida em cada um dos seus sons e, tomando-os um de cada vez, tu te perguntarás se ele te

comove”.Também Viktor Chklovski: “Para ressucitar nossa percepção da vida, para tornar sensíveis as coisas,

para fazer da pedra uma pedra, existe o que chamamos de arte. O propósito da arte é nos dar uma sensação da

coisa, uma sensação que deve ser visão e não apenas reconhecimento. Para obter tal resultado, a arte se serve

de dois procedimentos: o estranhamento das coisas e a complicação da forma, com a qual tende a tornar mais

difícil a percepção, é de fato um fim em si mesmo e deve ser prolongado. A arte é um meio de experimentar o

devir de uma coisa, para ela, o que foi não tem a menor importância”.

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A experiência dos Maier pode atentar -nos para a legitimação

deste distanciamento na identificação dos judeus que abandonaram a

Alemanha na década de 1930, para além da caracterização f ísica, feito a

estrela de Davi costurada junto às roupas ou seus passaportes, documento

fundamental para qualquer viajante e que trazia um “J”, em vermelho,

destacado na primeira página. Max Hermann Maier apontou as

conseqüências de portar tais sinais : “Os passaportes alemães de judeus

traziam na primeira página um “J” carimbado em vermel ho, que tornava

impossível ao portador o retorno para a Alemanha, e visava tornar o

portador “persona non grata” no estrangeiro”.88

Mais tarde seria a vez do

advogado explicitar suas primeiras impressões sobre o Brasil e o

distanciamento destas com sua cultura de origem:

“Logo após nossa chegada ao recinto da a l fândega em Santos,

aprendi que no Brasi l é mais conveniente a pessoa entender -se

tanto com as autor idades como com os par t iculares com um

jei t inho amigável do que se apoiar em leis ou cumprimento de

decre tos. O brasi leiro es tá quase sempre d isposto a dar um

“je i to” (uma pa lavra d i fíc i l de traduzi r : uma “sa ída” ou um

“acer to”) . Max conclui: “Toda a vida aqui era di ferente da nossa

hab itual vida na Europa”.

Portanto, o estranhamento configurou -se de maneira a atingir

todos os envolvidos, falta -nos aqui apenas o contraponto, a percepção de

estranheza do brasileiro em relação ao alemão. As possibilidades de

pesquisa podem vir a contribuir nesse sentido.

A produção dos hábitos no plano do inconsciente pod e também

ser uti lizada como argumento agravante, de forma que a manutenção dos

mesmos cria o auto-reconhecimento e muitas vezes define o distanciamento.

Viktor Chklovski refletiu sobre a questão:

“Se estudarmos com suficiente a tenção as leis da percepção, não

tardaremos a perceber que os a tos tendem a se tornarem

automáticos . Todos os nossos háb itos provêm da esfera do

inconsciente e do auto matismo. O peso dos háb i tos inconsc ientes

88

Esta passagem encontra-se no início do livro, capítulo dois, página quinze.

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é tão for te que a vida passa, se anula. A automatização engole

tudo: co isas , roupas , móveis, a mulher e o medo da guerra”.89

Portanto, quando Brecht nos fala de seu ostranienie, da

excessiva distância, do estranhamento, devemos reconhecer a construção

historicamente persuadida. Os movimentos, físico, geográfico e também

cultural e psicológico, permitem acumular à experiência individual ou

coletiva uma coleção de novos hábitos, onde, consciente ou não, há um

“sincretismo cultural”, a adoção de novos hábitos, posturas, códigos de

comportamentos que passam a ser novos orientado res de conduta. Mais

adiante poderemos notar as transformações dos refugiados em solo

brasileiro, de forma a percebê-los também orientados por aquilo que nunca

fez parte do universo cultural alemão ou europeu.

Há também uma espécie de inversão, ou seja, nota -se

claramente a manutenção dos valores germânicos, desde a língua

amplamente falada até as mínimas manifestações cotidianas, como a

alimentação ou a leitura. Embora isso, agora há uma luta incessante para se

fazer manter a perspectiva cultural ligada aos an cestrais, ao universo

europeu sempre impregnado, mas agora apenas na memória, nas lembranças,

nas histórias, não se respira mais o inverno da Europa, quem os acorda é o

verão americano.

A experiência judaica, de grupo “legitimamente” apátrida,

assim definido pelos “outros”, é caracterizada levando em conta a

ascendência que não se define exatamente nem como religiosa nem como

étnica.

Não se chama este ou aquele de “cristão”, no que se refere ao

seu valor étnico pelo simples fato de fazer ou não parte de uma cultura

mergulhada no cristianismo. Quando colocamos o que não se diz, apelamos

ao fato da distinção operada pela terminologia quando ela é aplicada ao

elemento judeu. Ou seja, ele o é independente de suas forças autônomas e

subjetivas. O papel dos judeus na filosofia contemporânea, a influência do

89

Citado por Ginzburg em “Olhos de madeira”, páginas quinze e dezesseis.

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judaísmo nas revoluções socialistas do século XX, a participação dos judeus

na militância de esquerda durante a ditadura militar no Brasil, enfim, de

diversas formas podemos representar a passagem destes ator es na

experiência civilizatória. A relação estabelecida com a religião criou e

ainda cria sugestões interessantes para a compreensão do fenômeno.

Para alguns autores que interpretaram a participação dos judeus

em movimentos mais tardios, como as transform ações na década de 1960,

estes possuem estreita relação com o mito do Éden, de forma a definirem o

romantismo revolucionário como aquele que

Apresenta uma cr í t ica da modernidade, i sso é , da civi l ização

capi tal i sta moderna, em nome de valores e ideais do p assado

(pré -cap ital is ta , pré -moderno) . [ . . . ] Um romantismo

revoluc ionár io e /ou utópico, [que objet ivava] instaurar um

futuro novo, no qual a humanidade encontrar ia uma par te das

qualidades e va lores que t inha perd ido com a modernidade:

comunidade, gratuidade , doação, a harmonia com a na tureza,

t raba lho como ar te , encantamento da vida.90

Dessa forma, a luta armada no Brasil contra a ditadura “não foi

senão uma das manifestações mais radicais do romantismo revolucionário

naqueles anos, presente não só no cam po político-partidário, mas também

político-cultural, na música popular, no cinema, no teatro, nas artes

plásticas e na literatura”91

. A intensidade deste período e de seus eventos

aproxima-se de nosso objeto em questão, sobretudo quando definidos a

partir de conceitos contextuais, como afinidade eletiva, onde a definição de

uma época aproxima valores e ideais naqueles colocados como

historicamente distintos:

A definição sobre esse concei to base ia -se na definição de

Michael Lövy ( Redenção e Utopia: o judaí smo l iber tário na

Europa Central . São Paulo : Cia. Das Letras, 1989, p . 13 -8) . O

autor o def ine co mo “um tipo mui to par t icular de relação

dialét ica que se estabe lece entre duas configurações sociais e

90

LOWY, Michael; SAYRE, Robert. Romantismo e política. São Paulo: Paz e terra, 1993.

_____________________________. Revolta e melancolia: o romantismo na contramão da modernidade.

Petrópolis: Vozes, 1995. 91

RIDENTI, Marcelo. O romantismo revolucionário nos anos 60, cit., p.414.

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culturais, não redutíve l à determinação causal d ireta ou à

“influência” no sentido tradicional . Trata -se, a par t ir de uma

cer ta ana logia es trutural , de um movimento de convergência, de

atração rec íproca, de confluência a t iva , de combinação capaz de

chegar a té a fusão. [ . . . ] Essa força é a a finidade , determinand o a

combinação dos corpos he terogêneos numa união que é uma

espécie de casamento, de enlace químico, procede antes do amor

que do ódio. [ . . . ] Mui tos dão o no me af inidade ao que chamamos

atração. [ . . . ] Afinidade é um caso par t icular de atração. [ . . . ]

formam um ser que tem propriedades novas e dis t intas daquelas

que per tencem a cada um desses corpos antes da co mbinação.

[ . . . ] A afinidade elet iva não é a a finidade ideo lógica inerente às

diversas var iantes de uma mesma corrente soc ial e cultural . [ . . . ]

A afinidade elet iva também não é s inônimo de influência, na

medida em que implica uma re lação bem mais at iva e uma

ar t iculação rec íproca (podendo chegar à fusão) . É um concei to

que nos permi te jus t i f icar processos de interação que não

dependem nem da causa lidade d ire ta , nem da re lação expressiva

entre forma e conteúdo (por exemplo , a forma rel igiosa como

expressão de conteúdo polí t ico ou social) . [ . . . ] A af inidade

ele t iva não se dá no vazio ou na placidez da espir i tual idade

pura : ela é favorec ida (ou desfavorec ida) por condições

his tór icas e soc ia is.92

Assim, a atração entre jovens judeus que se tornaram militantes

armados no Brasil no fim dos anos 60 não representa igualmente a

experiência dos judeus fugitivos da Segunda Grande Guerra, nem o que

ocorreu nos anos trinta entre imigrantes e nativos pode ser descrito como

uma afinidade neste sentido. O que torna válido o argumento é a relação

desenvolvida entre os próprios imigrantes, que submetidos a um contexto

92

KUSHNIR, Beatriz. Nem bandidos nem heróis: os militantes judeus de esquerda mortos sob tortura no

Brasil (1969-1975). In: Cadernos de Língua e Literatura hebraica. São Paulo: Humanitas-FFLCH-USP, 2001.

A autora trata neste ensaio de dez diferentes casos de tortura e morte durante o auge da repressão militar no

Brasil. Todos os militantes envolvidos eram de ascendência judaica e participaram dos principais grupos

armados de esquerda no país. O primeiro caso citado é o do estudante de medicina e militante da VPR

(Vanguarda Popular Revolucionária) Chael Charles Schreier, primeiro militante torturado e morto nas

dependências do DEOPS (Destacamento de Operações de informações/Centro de Operações de Defesa

Interna do II Exército) no Rio de Janeiro no ano de 1969. Nos anos seguintes a autora passa por outros

militantes com o desenlace final nos casos Wladimir Herzog e Iara Iavelberg, ambos certamente torturados e

mortos pela polícia política embora ainda hoje se mantenha em alguns setores a versão de suicídio em ambas

mortes. Wladimir Herzog e Iara Iavelberg jazem na ala reservada aos suicidas no cemitério israelita do

Butantã em São Paulo (setor G. Iara está no G/quadra 26/lápide 57 e Herzog no G/28/64). Em 1996, o artista

plástico Carlos Zílio, ex-militante do MR-8 (Movimento Revolucionário 8 de Outubro), expôs no MAM

(Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro) sua arte e política entre os anos de 66/76. No catálogo da

exposição, a dedicatória é para os amigos perdidos, sobretudo para José Roberto Spiegner, morto em 1970:

“Fico espantado em pensar como tão jovens tínhamos a certeza de poder mudar o mundo e modelar a história.

As mortes e o sofrimento me comovem. Experimentamos a dura realidade da derrota. [...] Gostaria de dedicar

esta exposição a todos que morreram nessa luta, alguns, inclusive, de maneira bastante cruel. Mas queria

homenagear, sobretudo, José Roberto Spiegner. Foi meu primeiro amigo a morrer [...] De certo modo, devo-

lhe a vida”.

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histórico sem precedentes e sem nada que pudessem faze r desenvolveram

uma reciprocidade mútua, uma alavanca para a superação de males maiores,

seja incorporando novos padrões valorativos e cotidianos ou fazendo

permanecer as manifestações germânicas.

No Brasil , durante a repressão militar após o golpe de 1964,

havia a expressão do Estado que dizia “Ame -o ou Deixe-o”. De certa forma

muitos o deixaram mesmo sob juras de amor eterno. Décadas anteriores,

sobretudo os anos da era Vargas , apresentam não só a repressão e

manipulação da máquina estatal em todos os se tores da sociedade, mas

também uma relação peculiar com os estrangeiros e precisamente com os

estrangeiros de ascendência judaica. Em 1933, publica -se no Rio de Janeiro

uma coletânea de art igos entre intelectuais brasileiros, cujo tí tulo era: “Por

que ser anti-semita?”. Neste livro, embora a maioria crit icasse o anti -

semitismo percebe-se certa ambigüidade de opiniões, apesar daquilo que

declaravam sobre os judeus:

“Única raça pura que ta lvez ainda exista no mundo, vem desde

séculos real izando es te mi lagre único : o de um grande povo , uma

verdadeira nação, sem o menor pa lmo de terr i tór io . São, ass im,

os pr imeiros humanistas do mundo. Como bras i le iro , porém,

f i lho de um país novo e ainda fraco, aber to a todas as invest idas,

sem defesa, pr incipa lmente, para to da e qualquer manifes tação

de caráter mais espir i tua l do que rea l , não deixo de receiar mui to

que os judeus se implantem vitor iosamente no Bras i l . Bastará

que o queiram, esta é a verdade . Não acred ito mui to que o

desejem, porém, pois a inda es tamos, apesar de tudo, no per íodo

do desbravamento e os judeus preferem chegar mais tarde : no da

colhe ita”. 93

Assim, persiste no discurso a construção de idéias

questionáveis, como a pretensa formação de uma “raça” judaica, distinta de

outros tipos de ”raça”, de outros tipos de pessoas. A definição étnica é

realmente

Naqueles anos o controle sobre os estrangeiros era amplo,

segundo Helena Lewin,

93

NETTO, Américo. Dois pontos de vista. In: Vários Autores. Por que ser anti-semita. Rio de Janeiro:

Civilização Brasileira, 1933.

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“O controle não se rest r ingiu à correspondência, inc luía jorna is

e chamadas te le fônicas ; out ras providências foram adotad as ,

como a e laboração de l i stas do movimento portuár io de

passageiros desembarcados no Bras i l ou em trânsi to para outros

países, informações sobre passaportes, sobretudo de cidadãos

russos , ident i ficação de todos os est rangeiros, a lém das f ichas de

registro em hoté is da cidade e exame detalhado dos pedidos de

na tura l ização. Por outro lado, as inst i tuições judaicas eram

obrigadas a d ispor , para conhecimento da pol íc ia , seus esta tutos,

composição da dire tor ia e , em alguns casos, a l is ta de todos os

seus sócio s, pr incipalmente no caso de assoc iações que t inham

vínculo externo, como o Joint , Ica, Wizo, organizações s ionis tas

e outras como a Socorro às Vít imas da Guerra, obrigator iamente

dependente da Cruz Vermelha Bras i le ira . Em mui tas ocas iões, a

políc ia re futa va os nomes apresentados para aprovação que

deviam ser preferentemente brasi le iros ou na tural izados, e , a té

que se pro movesse a subst i tuição, a inst i tuição não obt inha

l icença para funcionar ” .94

Desta forma, os vestígios históricos da questão judaica

convencem àqueles que querem ver. Seja na mili tância armada ou na

imigração forçada, os judeus estavam etnicamente identificados, com um

distanciamento, uma subjetiva fronteira, não geográfica, mas cultural , por

que implica na proximidade, no contato entre seus atores. Assim, a

permanência de valores depende do desenvolvimento no choque dessas

fronteiras, do sucesso ou não da reciprocidade estabelecida entre os grupos,

desviando assim o foco da importância fundamental dada ao fato de se

compartilhar uma mesma cu ltura.95

A interpretação teórica dos grupo s étnicos ligada à

antropologia traz-nos assim um forte campo de discussão e análise,

sobretudo quando parte de uma reflexão contrária à chamada antropologia

94

LEWIN, Helena. Dops: o instrumental da repressão política. In: CAD. Líng. Lit. Hebr., n. 3, p.267-294,

2001. 95

Teorias da etnicidade. Seguido de Grupos Étnicos e suas fronteiras de Fredrik Barth/Phillipe Poutignat,

Jocelyne Streiff-Fenart; São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1998. Esta visão a respeito dos grupos

étnicos é principalmente encontrada na obra do antropólogo Fredrik Barth. Em Grupos étnicos e suas

fronteiras Barth expõe que o argumento é lucrativo quando visto como uma implicação ou um resultado, mais

do que como uma característica primária e definicional da organização do grupo étnico. Coloca ainda que “a

classificação de pessoas e grupos locais como membros de um grupo étnico deve depender do modo como

demonstram os traços particulares da cultura. [...] A atenção é dirigida à análise das culturas, não à

organização étnica. [...] O ponto de vista abrange igualmente uma “etno-história” que faz a crônica dos

ganhos e das mudanças culturais e procura explicar por que razão determinados itens foram tomados de

empréstimo”.

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tradicional no que se refere a uma concepção dos grupos étnicos, onde os

designa como populações que: a) perpetuam -se biologicamente de modo

amplo, b) compartilham valores culturais fundamentais, c) constituem um

campo de comunicação e interação, d) possuem um grupo de membros que

se identifica e é identificado por outros. Tal definição se aproxima em

conteúdo da proposição postulada de que uma raça = uma cultura = uma

linguagem e que uma sociedade = entidade que rejeita e discrimina outras.

Esse modelo sem dúvida aproxima-se de várias situações, de objetos

estudados à luz etnográfica, mas desenvolve de maneira problemática uma

concepção ideal dos grupos étnicos, sobretudo em relação à gênese,

estrutura e função dos grupos. Isso nos impediria de compreender o

fenômeno étnico e seu papel na cultura humana. A manut enção das

fronteiras nesse caso decorreria do isolamento de cada grupo. Segundo o

pensamento barthiano:

“O mais grave de tudo é que e la nos induz a assumir que a

manutenção das fronte iras não é prob lemática e decorre do

iso lamento implicado pelas carac te r í s t icas: di ferença racia l ,

d i ferença cultural , separação socia l e barre i ras l ingüíst icas,

host i l idade espontânea e organizada. I sso l imi ta igualmente o

âmbito dos fa tores que ut i l izamos para exp licar a divers idade

cultural : somos levados a imaginar cada g rupo desenvolvendo

sua forma cultura l e soc ia l em iso lamento re lat ivo,

essencia lmente, reagindo a fa tores ecológicos loca is , ao longo

de uma his tór ia de adaptação por invenção e emprés t imos

se let ivos. Esta his tór ia produziu um mundo de povos separados,

cada um com sua cultura própria e organizado numa sociedade

que podemos legit imamente i solar para descrevê -la co mo se

fosse uma i lha” .96

Desta forma, o autor não apenas afirma a importância das

fronteiras como elemento fundamental da compreensão do grupo, d e sua

interação com os demais e evitando assim formulações hostis e por vezes

violentas como também dá um papel de destaque à h istória, enquanto

reveladora dos resultados pragmáticos dessa concepção. Jean Delemeau, em

96

BARTH, F. Grupos étnicos e suas fronteiras. In: POUTIGNAT, Phillipe. & STREIFF-FENART, Jocelyne.

Teorias da Etnicidade. UNESP, 1998.

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seu trabalho sobre o medo no Ocidente contextualizou a relação entre os

diversos grupos e os judeus em meio a isso, destacando alguns pontos para

compreender a gênese daquilo que colocaria o judeu como uma face do mal:

[ . . . ] out ras verdades his tór icas devem ser ressal tadas : a) as

relações entre cr is tãos e judeus, antes do tempo dos pogroms,

não haviam sido sempre más; b) o fato r re l igioso desempenhou

um papel importante nessa degradação ; c) no século XVI, esse

fa tor rel igioso tornou -se o e lemento motor , a caracter í st ica

dominante do anti juda í smo ocidenta l .97

Somente uma visão de isolamento poderia influenciar

excessivamente na relação entre os grupos ou entre judeus e cristãos. Uma

história que produziu um mundo de povos separados, cada qual podendo ser

observado particularmente. É a política do estranhamento. Das dificuldades

de realizar uma manutenção de suas fronteiras e do que podemos dizer

também como uma impossibilidade de suas assimilações plenas, surgindo

assim a obrigatoriedade de sua tolerância mútua. A História mostra que

poucos momentos assim se mantiveram. O judeu foi identifica do, sobretudo

após o ano 1.000 d.C. como uma das faces do diabo.98

O estranhamento de

cristãos e a exteriorização desses levaram a episódios sangrentos em

diversas partes da Europa, sobretudo na Espanha após o século XVI, França,

Inglaterra, Portugal, além de outras regiões como Polônia ou Alemanha. De

forma geral a hostilização sofrida pelos judeus foi amplamente

caracterizada com expulsões, extermínios, acusações ou sinais de

identificação exteriores .

97

DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente (1300-1800). São Paulo: Cia. Das Letras, 1989. Sobre

esta passagem, ao falar do fator religioso o autor cita Jean Paul Sartre em sua obra Reflexões sobre a questão

judia de 1961: “Foram os cristãos que criaram o judeu ao provocar sua assimilação”. Assim, os elementos

apontados por Delemeau implicam nas relações historicamente produzidas entre, sobretudo, cristãos e judeus,

de forma que a variação ou períodos de maior ou menor hostilidade entre os grupos são provocadas pela

alteração ideológica, que se manifestou principalmente através do discurso de pregadores cristãos. Embora

essa compreensão, o autor aponta também os fatores econômicos, desde as mudanças geográficas das

comunidades israelitas e seus períodos de manutenção, sucesso e decadência até o desenvolvimento tardio dos

cristãos nas relações comerciais, sobretudo nas internacionais. 98

Ibid. p. 280.

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IV.II – MATHILDE MAIER E A FIGUEIRA-BRAVA OU O

DISCURSO DO ESTRANHAMENTO

“. . . Lá nos p i lares da sa la de es tar e da biblio teca es tão

penduradas três cápsulas de metal , como é costume entre os

judeus, nas quais estão escr i tos sobre pergaminho em le tras

hebraicas os versos do quinto l ivro de Moisés: Amarás o Eterno

teu Deus de todo coração e com toda tua alma. Para nós i sto

sempre s igni f icou que só o amor de Deus manifes tado a través da

beleza da natureza , pode ajudar ao homem”. 99

Escrever sua própria histór ia, reencontrar largos caminhos

percorridos, trilhados. O homem, Deus e a natureza. Assim Mathilde Maier

poderia ter sua narrativa, inti tulada Os jardins de minha vida100

, justificada

ou interpretada. Inicialmente publicada em alemão, a obra teve, assim como

a Max Hermann Maier, uma versão traduzida ao português101

. O labirinto

percorrido pela autora e a chave que a conduz ao fim de um escuro e

99

MAIER, Mathilde. Os jardins de minha vida. Do original alemão: Alle Gärten meines Lebens. Verlag Josef

Knecht-Carrolusdrukerei. Frankfurt am Main. São Paulo: Massao Ohno Editor – versão Roswitha Kempf

(primeira edição), 1981. Cit. p. 82. 100

Segundo Ethel V. Kosminsky, em seu artigo Literatura judaico-feminina de imigração nos Estados

Unidos e no Brasil, publicado no Caderno de Língua e Literatura Judaica da USP (Universidade de São

Paulo), volume 3 (2001), o estudo da autobiografia e do romance de cunho autobiográfico, escritos por

mulheres imigrantes judias e suas filhas, possibilita a colocação de algumas questões, como o que é possível

conhecer dos processos migratórios e de adaptação à nova sociedade de famílias judias por meio da literatura

feminina? Coloca ainda que: “A ampliação do movimento feminista provocou o levantamento da vida de

mulheres, daquelas que tinham sido mantidas à parte, isoladas pelo silêncio. Segundo a socióloga inlgesa

Mary Evans, o reconhecimento dos limites das grandes teorias teria conduzido, provavelmente, ao crescente

interesse pela pesquisa, em menor amplitude, do particular e, ainda, a legitimação do crescente

individualismo, com as suas idéias de ressocialização do indivíduo. O novo pluralismo que valoriza a

singularidade e a autonomia social implicou a liberação de uma série de possibilidades, ampliando os limites

do que é aceitável. Esse sentimento de liberação ocorre de forma paralela a dois importantes

desenvolvimentos do uso da biografia: a crescente ênfase na documentação das experiências de pessoas

comuns e o surgimento de um novo tratamento dos dados pessoais, nos quais a vida é entendida como uma

repetição de certos padrões, que provavelmente se formaram a partir da infância”. Sendo assim, a pertinência

do uso da obra de Mathilde Maier pode ser justificada não apenas pelas transformações de postura, mudanças

sociais ou alterações de métodos acadêmicos, mas, sobretudo por aquilo em que pode sua obra contribuir à

narração do devir migratório de ascendentes israelitas, ou como diz Kosminky: ampliação e adaptação à

nova sociedade por meio da literatura feminina. 101

Feita por Roswitha Kempf, editora, que se estabeleceu em Rolândia juntamente com sua família, em 1936.

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interminável túnel é a natureza. A memória encontrada e reencontrada

através da mais involuntariosa possibilidade de s e lembrar, de recordar de

sua própria experiência vivida, por vezes tida como sonho no misto com a

aproximação da realidade. Através dos jardins constituídos em seus

diversos lares pela Europa e culminando no jardim da grande casa de

madeira na fazenda Jaú, Mathilde Maier traz a história sua que é também a

história do turbulento século XX, com suas aflições e alegrias, relacionadas

à natureza e ao homem, sendo este sua parte essencial. Caminhava pelos

oitenta e três anos de vida quando se dedicou à elaboração do livro. Viúva

em terra estrangeira foi através da reconstituição da caminhada por estes

imensos e memoriosos jardins que a imigrante alemã -judia recompensou

seus últ imos momentos de vida no Brasil.

Quando da elaboração e edição do l ivro os Maier já estavam

no Brasil há mais de quarenta anos. A experiência de fugit ivos em solo

desconhecido já não era mais tão evidente. Os colonos alemães -judeus

imigrados já desfrutavam de forte assimilação, sobretudo nas relações

comerciais e na estruturação de fun ções, atividades, novos hábitos, além do

conhecimento da língua local e reciprocidade com os brasileiros. O norte do

Paraná não mais se caracterizava em torno da atividade ferroviária e da

presença estrangeira. A modernidade já havia estruturado grandes ci dades,

centros de produção econômica, todo um aparato civilizatório bastante

distinto daquilo que os imigrantes encontraram nos anos 30. Mathilde

encontrou nos jardins seu próprio consolo:

“As mulheres em gera l não se des tacam na l i teratura sobre

jardins. Não obstante, encontre i mui tas mulheres cr iat ivas para

as quais o jardim era uma fonte de vida. Si tuado no meio de

Base l , este jardim era tão grande que ocupava dois jard ineiros o

tempo todo. Sobre aterros em forma de pequenas e levações havia

jardins de p edra, então em p lena f lorescência com aubrécias

l i lazes, iber is brancas, tul ipas p recoces vermelhas e narcisos

amare los . Nos lados do jardim vi es tufas com orquídeas

tropicais. Quantas horas boas es te jardim deve ter proporcionado

a estes exi lados” .102

102

Cit. p. 42.

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Ao que parece, o mito judaico-cristão do Éden se faz,

consciente ou não, tranqüilizador enquanto simbolicamente manifestado em

jardins públicos, mas principalmente nos particulares, aqueles que foram

caseiramente cuidados, onde era possível encontrar algum ti po de conforto:

“Também nós encontramos confor to no nosso jardim, nestes anos

di fíceis da perseguição, em nossa casa aber ta para o jardim que

abrigou tantos amigos , nos úl t imos d ias antes de emigrarem,

quando não t inham onde f icar . Ajudar os out ros na d i f íci l

desped ida da pá tr ia tornou -se nossa missão. Os jovens confiantes

e i sto com toda razão; para os mais velhos era penoso . [ . . . ] Os

úl t imos anos em Frankfurt foram d i fíceis e só va leram pela ajuda

que pudemos dar a outros. Muitos de nossos conhecidos pus eram

f im à própr ia vida. Nós os compreendíamos, sem aprová -los,

porém. [ . . . ] O últ imo jardim em Frankfur t foi o do consulado

inglês. Era um jard im pobre, mal tratado e mesmo assim ele nos

confortou com suas poucas f lores enquanto esperávamos pelo

Visto , tão vi talmente necessár io ” .103

Nesse sentido, a tragédia natural da figueira brava, que ainda

não havia chegado aos olhos dos Maier, já se fazia sobre o espectro do

nazismo. Após 1938 e consequentemente o início da guerra a Europa já

deixara de ser um local at rativo aos judeus, e entre aqueles que puderam ou

conseguiram de algum modo deixar o continente, já o haviam feito.

O capítulo oitavo da obra de Mathilde Maier traz suas

primeiras impressões sobre o Brasil e, consequentemente, suas primeiras

formas de es tranhamento:

A primeira saudação do Bras i l fo ram as palmeiras de uma i lha,

pouco antes de nosso navio, o Cap Arcona, atracar em Santos.

Era dezembro, a época quente do ano. Na travess ia t ínhamos

es tudado por tuguês e tentado imaginar como ser ia nossa vida no

campo. Na bagagem vinham caixas co m sementes e mudas e eu

tentei visua lizar o futuro jard im. Max faz ia projetos para a

103

Idem / p. 43. O último jardim antes de abandonar a Europa não poderia vir senão como um aspecto trágico.

Assim a autora o descreve, seu estranhamento de cores e formas sob o manto do início da segunda grande

guerra. Frankfurt não é a mesma, entre eles reconheceu-se apenas a solidariedade. Nada mais era reconhecível

aos judeus no final da década de 1930 na Alemanha. Aos jovens menor temor causava o estrangeiro, a

longínqua terra, se não hostil ao menos desconhecida. Nestes casos o estranhamento é para com todos, não se

define senão naquilo que não pode ser, em um não reconhecimento, expatriado dentro de um mundo que não

oferece mais espaço.

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construção de uma casa e estes foram real izados , ao cont rár io do

que aconteceu com minhas idé ias sobre jard inagem neste c l ima

tota lmente di ferente. [ . . . ] Soubera eu, que tudo ser ia em vão ,

porque a terra e o cl ima estranho acabariam em cur to tempo co m

elas. 104

Seguindo a narrativa, a autora adentra pelo universo que os

conduziu até seu últ imo lar. O casal Maier não obteve maior problema até

sua chegada em Rolândia-PR. Naquele momento grande parte do norte do

Paraná estava dentro de um desbravamento territorial ligado ao

desenvolvimento econômico e realizado por parcerias entre empresas

estrangeiras e investidores brasileiros. O que se vi u pelas janelas daquele

trem não pareceu muito acolhedor ao casal: “Em 1939, só uma estrada de

ferro primitiva conduzia ao interior, a locomotiva era movida a lenha”.105

No interior dos vagões chamou-lhes a atenção o “desnível, às vezes grande

entre a camada baixa sem pretensões e primitiva, e a camada alta por vezes

sofisticada demais”. 106

De fato não foram boas as expectativas naquele

momento e o cenário fez-se como que um espelho dos angustiantes dias que

viveram na Europa. Max Hermann Maier comenta a paisa gem sob seus

olhos:

“Quando da janela do trem o lhamos para a pa isagem,

compreendemos porque t ínhamos de viajar seiscentos

qui lômetros para chegar ao nosso dest ino: abso lutamente não era

convida tiva . Pas tos magros, plantações de milho mirradas, um

pobre bosque de euca lip tos e áreas imensas de capoeira”. 107

O ambiente tragicamente descrito foi o cenário da incerteza, da

expectativa, do distanciamento entre o que eram e o que viam, mas era

também o cenário do alívio, de uma esperança pela vid a distante dos

campos de concentração e de toda a segunda guerra na Europ a. As

104

O jardim europeu em terras brasileiras nunca se realizou. Mas o processo de interação e manutenção levou

a novas formas de invenção desses novos cotidianos, sobretudo naquilo em que os despertou o exotismo do

Brasil. Mathilde descreve sua primeira experiência com uma manga ou um mamão e aponta aquele que foi o

primeiro jardim a acompanhar suas memórias: o de um hospital em São Paulo em que se hospedaram por

alguns dias por ocasião de um problema de hérnia em Max H. Maier. 105

Cit. p. 51. 106

Idem. 107

Idem.

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impressões do casal Maier vieram a transformar -se com o correr dos anos .

Mathilde acrescenta sobre a viagem: “De vez em quando o trem parava em

pequenas estações de aspecto caót ico com nomes que soavam estranho para

nós, como Ibiporã”.108

Em Rolândia foram recebidos pelo sócio de Max H.

Maier109

e seguiram até a fazenda. Sobre os primeiros dias na Fazenda Jaú

comentou:

“Na fazenda fomos recebidos com mui ta amabil idade pe la

famí lia de nosso sócio . Eles moravam com os três fi lhos numa

modesta casa de madei ra; ao lado havia outra cas inha para o

professor par t icular e sua mulher . Nós fomos acomodados na

“casa dos estagiár ios” e logo na pr imeira no ite pudemos dormir

em lençóis l impos. [ . . . ] A casa dos es tagiár ios t inha sido

construída para um grupo de jovens que , instruídos em

agr icultura na Fazenda Experimenta l de Grossbreesen na Silés ia ,

deviam emigrar ao Brasi l . Mas o governo fascista de Getúlio

Vargas, influenciado pelos naz istas, nego u o vis to de entrada

para estes jovens e quase todos pereceram em campos de

concent ração. Is to fez com que uma sombra escura pairasse

sobre nosso começo, uma sombra que não podíamos afasta r e

nem o queríamos. A casa, na qual a lém de nós só morava um

es tagiár io , es tava no meio de uma p lantação de algodão . Pela

pr imeira vez vimos f locos brancos de a lgodão sair das cápsulas

arrebentadas. Dos 114 alqueires co mprados, 36 t inham sido

transformados em terra de cultura com 10.000 pés de café e

plantações de mi lho , a rroz, fe i jão e algodão. Atrás da casa

desc ia um bar ranco a té a mina de água; na frente via -se a mata

vi rgem que sub ia ao lado dos cafezais a té o espigão. Ali , onde

havia mata, reso lvemos fazer a nossa casa porque uma fonte

garant ia o abastecimento abundan te de água , o que era mui to

importante . Ainda hoje, após quarenta anos, essa fonte é o nosso

suprimento de água e de alegr ias. Ela a inda al imenta o pequeno

chafar iz per to da varanda , no qual se banham os beija -f lores

exibindo sua p lumagem bri lhante, - um espetáculo incr ivelmente

belo”.110

108

Cit. P. 64. 109

Heinrich Kaplan era também alemão e refugiado, recebeu a família Maier ainda quando de seu

desembarque, mas por ocasião de uma consulta médica para Max Hermann Maier, ele e a esposa

permaneceram em São Paulo enquanto a sobrinha seguiu para Rolândia com o imigrante alemão Heinrich

Kaplan. In: MAIER, Max Hemann. Um advogado de Frankfurt se torna cafeicultor na selva brasileira -

Relato de um imigrante(1938-1975). Título do original alemão: Ein Franfurter Rechtsanwalt wird

Kaffeepflanzer in Urwald Brasili

ens. Bericht Eines Emigranten (1938-1975). 110

Em 11 de março de 1828 Goethe escreveu a Eckermann: “O ar puro do campo é realmente o lugar ao qual

pertencemos, é como se o espírito de Deus ali envolvesse o homem diretamente e como se uma força divina

exercesse sua influência”. Os Maier consideravam-se felizes por poder passar a segunda metade da vida no

campo, em terra tão aventurosamente estranha. De alguma maneira os fatores externos podem vir a

contribuir com o desenvolvimento dos grupos? Os fatores econômicos? De fato, o quase isolamento na mata,

afastados dos grandes centros urbanos do Brasil e com uma excelente quantidade de terras e estrutura já

desenvolvida, são fatores que poderiam justificar a estada de mais de sessenta anos desses imigrantes. Ma isso

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Havia, portanto, um evidente distanciamento entre os

imigrantes e a nova terra. A experiência da narrativa expõe o

estranhamento. Mathilde Maier revela seus personagens, mas de forma a

pouco descrevê-los, talvez pela intenção de não causar-lhes ares de

romance, o que tornaria a lei tura menos biográfica ou memorialística do que

romancista. Embora isso, a narrativa é certamente bastante instigadora à

compreensão do fenômeno migratório alemão -judaico para o sul do Brasil,

tomado aqui evidentemente o caso da comunidade de Rolândia. O elemento

judaico parece igualmente presente, sobretudo na perspectiva digamos

talmúdica de sua obra, ou seja, aquela que segundo a tradição israelita não

permite uma interpretação unívoca e definitiv a pelo respeito ao livro divino

que impede sua cristalização e redução a um sentido único. A visão sobre o

novo mundo que a cerca torna possível a descoberta de novas camadas de

sentido até então ignoradas . Sobre esta influência apontou Walter

Benjamin: “Eu nunca pude pesquisar ou pensar senão num sentido, se me

atrevo a dizê-lo, teológico – isto é, de acordo com a doutrina talmúdica dos

quarenta e nove níveis de sentido de cada passagem da Torá”.111

Para Berta

Waldman vistas com distância, essas interpretaçõ es de interpretações

seria limitar a reflexão do movimento migratório. É preciso que se observe os fatores que operam nas

instâncias morais, psicológicas e emocionais, passando por seus conflitos intra e extra grupo. Sendo assim,

não existem regras de avaliação, diferentes casos foram relatados e caracterizam igualmente um mesmo

fenômeno, por ocasião do início da segunda guerra Mathilde disse: “e também na nossa pequena comunidade

em Rolândia houve vítimas; alguns não agüentaram a tensão e se desesperaram”. Certamente que se trata de

um eufemismo para suicídio entre os emigrados. De qualquer forma, os Maier sobreviveram aos anos

juntamente com a maior parte dos imigrantes alemães. Goethe talvez lhes tenha sido a principal inspiração

literária, onde certos olhares sobre suas palavras parecem ter sido escritos sob encomenda ao destino dos

refugiados. 111

BERTA, Waldman. A letra e a lei no texto de Clarice Lispector. Cad. Ling. Lit. Hebr., n.3, p. 295-309.

São Paulo, 2001. Segundo a autora essa afirmação de Walter Benjamin sublinha sua ligação não aos preceitos

ou aos dogmas da religião judaica, mas a um modelo de leitura herdado do estudo dos textos sagrados. Na

tradição teológica judaica, e especialmente na tradição talmúdica ( o Talmud integra duas linhas de

comentários: a Halakhá, da raiz hebraica halakh que significa andar ou caminhar, e a Agadáh, da raiz hebraica

higuid que significa dizer ou falar. A primeira inclui a parte normativa da Tora epassou a designar a tradição,

a regra ou o regulamento. Já a segunda é o repositório de vôos imaginativos de muitas gerações de sábios,

podendo ser traduzida por lenda ou fábula.), a interpretação não pretende delimitar um sentido definitivo. [...]

Que Benjamin reivindique essa tradição religiosa no contexto de uma análise materialista dos textos literários

é absolutamente notável: significa que a crítica materialista, para ele, não tem como meta estabelecer a

verdade definitiva sobre uma obra ou sobre um autor, mas tornar possível a descoberta de novos sentidos.

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desenham uma linha que põe em movimento sentidos que não se agrupam

nem se fixam numa figura única.112

Assim, o argumento da autora parte da

idéia de uma multiplicidade de sentidos revelados nas obras de autores de

ascendência judaica, como Clarice Lispector, Kafka ou o próprio Walter

Benjamin, conscientes ou não estariam ancorados na tradição talmúdica das

interpretações da Tora, é como se estivessem sempre sobre um manto

ilimitado da compreensão. Mathilde Maier referencia em sua obra a atenção

que davam à natureza (alguns trechos de Goethe aparecem naquilo que o

escri tor mencionou a respeito da natureza), inclusive o pequeno temor que

tiveram quando se depararam com cobras, por exemplo. Ou seja, a

preocupação pareceu ter sido a de explanar a perspicácia, a tolerância ou

reciprocidade com que tentavam encarar a tudo e a todos.

A genealogia humana e as facetas de seus grupos

invariavelmente recorrem a elementos similares de sobrevivência.

Experiências traumáticas como a Schoá113

aproximaram, na mesma medida

em que os repeliram de sua pátria mãe, daqueles que comumente eram

vistos, sobretudo com distanciamento e com a clareza de tratarem -se eles

todos de universos distintos. Portanto, a possibilidade de adequação e

fixação dos imigrantes em solo estrangeiro permitiu, ao menos em partes, a

transgressão dessas fronteiras, sua violação e contato contínuo. Nas

palavras de Poutignat e Streiff -Fenart , por que

a e tnic idade não é um conjunto imutável de traços culturais

(crenças, va lores, símbolos, r i tos, regras de conduta e tc . ) ,

t ransmitidos da mesma forma de geração para geração na

his tór ia do grupo, ela provoca ações e reações ent re es te grupo e

os out ros em uma organização socia l que não cessa de evo luir114

.

112

Cit. p. 297. 113

Catástrofe. Termo hebraico que simboliza as mortes de israelitas durante a segunda grande guerra. 114

POUTIGNAT, Phillipe. & STREIFF-FENART, Jocelyne. Teorias da Etnicidade. UNESP, 1998.

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IV.III – OUTRAS DUAS HISTÓRIAS

“Um grupo de sobreviventes de Auschwitz e da Grande Guerra

viaja erra t icamente por entre escombros da barbár ie , ao sabor do

arbítr io e da burocracia dos vencedores. Numa Europa

semidestruída, esta trégua soa como ironia t rágica, inte rvalo

entre a indús tr ia do genocídio e a memór ia da danação eterna em

cada sonho matinal ; também, ent re lugares -fantasmas de um

mapa pont i lhado de setas para o nada. Lento movimento de trens

até a es tepe russa, o jogo da sobrevivência é o único retalho do

sentido que se des locou da histór ia .” 115

Francisco Foot Hardman116

inicia com estas palavras a breve

apresentação da obra de Primo Levi. La tregua foi publicada pela primeira

vez em 1958, alguns anos após o fim da Segunda Grande Guerra. Primo

Levi nasceu em Turim em 1919, foi químico e destacou-se também como

escri tor, atividade a qual se dedicou , sobretudo nos anos pós-nazismo. De

família judaico-piemontesa117

, foi um sobrevivente de Auschwitz e, pode -se

dizer que dessa condição se esboçou toda a sua obra. A na rrativa118

, que

segundo Levi conta “coisas verdadeiras, mas filtradas” , situa-se no

ambiente silencioso que se instalou na Europa depois de 1945.

Sobreviventes de um dos maiores campos de extermínio da guerra,

Auschwitz, um grupo de pessoas inicia mais um longo capítulo da queles

tempos, que inevitavelmente e mesmo com a memória trágica do terror,

trouxe junto a si inúmeros conflitos: que é agora a Europa? A que

chamamos lar? Por onde devemos seguir? A condição perpetua -se entre os

vitoriosos, a narrativa de Levi apresenta p rincipalmente o contato com o

exército soviético, este o primeiro a estar no coração do III Reich e que

115

LEVI, Primo. A trégua. São Paulo: Cia. Das Letras, 1997. 116

Francisco Foot Hardman é professor titular do Departamento de Teoria Literária da Universidade Estadual

de Campinas. 117

Piemonte é uma região situada ao norte da Itália cuja capital é Turim. 118

A Trégua faz parte de uma “trilogia” escrita por Primo Levi, conta ainda com as obras “É isto um

homem?” e “Os afogados e os sobreviventes”.

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conduziram este grupo até a Cracóvia, onde foram concentrados em

hospitais, escolas e outros espaços públicos juntamente com outros

sobreviventes.

O argumento não só interessante, mas acima de tudo instigante

do autor nos remete a reflexão que expõe a fragilidade da idéia de que com

o fim dos conflitos os sobreviventes estariam a salvo e rapidamente se

reconstruiria suas antigas posições sociais. Em A trégua somos convidados

a reconhecer a ineficiência de readequação destas pessoas, as inúmeras

vezes em que foram desacreditadas por suas histórias de cárcere, as pessoas

realmente não podiam acreditar em suas experiências.

“Tínhamos a esperança de uma via gem breve e segura, para um

campo preparado para nos receber , para um subst i tuto acei tável

de nossas casas ; e tal esperança faz ia par te de uma esperança

maior , a de um mundo reto e justo , mi lagrosamente restabelecido

em seus fundamentos na tura is após uma e ternidade de

transtornos, erros e tragédias, após o tempo de nossa longa

paciência. [ . . . ] Mas não ; acontecera a lgo que somente

pouquíss imos sáb ios dent re nós haviam previs to . A l iberdade, a

improvável , impossíve l l iberdade tão dis tante de Auschwitz, que

apenas nos sonhos ousávamos imaginar , chegara: mas sob a

forma de uma impiedosa p lanície deser ta . Esperavam por nós

out ras provas, outras fadigas, outras fomes, out ros gelos, outros

medos”.119

A relação entre estranhamento e liberdade pode se configurar

de diferentes maneiras. Embora não estivessem mais sob os olhos dos

algozes nazistas, o que evidentemente lhes causou o mais profundo dos

anti-reconhecimentos, o estranhamento e o medo, a idéia de liberdade em

seus imaginários conectava-se diretamente ao reconhecimento, de sons,

cores, cheiros e tudo o que lhes permitisse de volta o mundo que lhes

antecedeu o cárcere. Ingenuamente não se deram conta da nova forma de

liberdade que os aguardou, outras provas, outras fadigas, outras fomes,

outros, outros medos. Percebe-se, talvez totalmente perplexo, o

distanciamento pela própria vida, o estranhamento desta, e não somente

119

LEVI. Cit. p. 54.

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destes ou aqueles, definitivamente tudo havia mudado e tais feridas jamais

poderiam cicatrizar -se.120

Uma semana depois do carnaval, no dia vinte e três de

fevereiro de 1942, o casal de empregados domésticos encontrou Lotte e

Stefan Zweig mortos em duas camas, na casa alugada em Petrópolis

próximo ao Rio de Janeiro. O médico atestou “morte por ingestão de

substância tóxica – suicídio”.121

O choque e a emoção foram grandes, como comprovam

testemunhas e jornais da época. As fotos da po lícia , mostrando o

casal mor to, abraçado nas camas s imples colocadas lado a lado,

ainda comovem e causam arrep ios, e quem as vê não pode de ixar

de sentir -se, ao mesmo tempo, um intruso. [ . . . ] Como na época,

ainda hoje as pessoas se perguntam por que Stefan Zweig, autor

famoso no mundo inte iro , suic idou -se, e por que sua jovem

esposa, El isabe th Charlotte , de 34 anos, procurou a mo rte junto

com ele .122

Certamente, a morte do famoso escritor alemão em um duplo

suicídio com sua esposa ainda antes do fim da segunda guerra chocaram a

todos no Brasil e no mundo. Segundo o próprio autor em carta para sua ex -

mulher “a solidão, que no começo tinha efeito tão calmante, começou a ser

opressiva” . Ainda em 1941, Zweig e a esposa conseguiram permissões

120

Segundo a revista judaica Morashá, edição 41de junho de 2003 a morte de Levi trouxe alguns

questionamentos sobre um possível suicídio: “Em abril de 1987, aos 68 anos, Primo Levi é encontrado morto

no poço da escadaria do apartamento no qual vivera toda a vida. Na época, sua morte foi atribuída a suicídio.

Acreditou-se que o grande escritor havia posto um fim à vida, pois esta se tornara pesada demais. Mas, nos

últimos anos, três importantes biografias (duas na Inglaterra e uma na França) colocam em dúvida esse

suposto suicídio. Afirmam que, provavelmente, foi um acidente provocado pelos remédios que Primo Levi

tomava na época. Uma das mais completas biografias é da escritora e pesquisadora Myriam Anissimov,

publicada na França em 1996. Primo Levi é retratado como um homem gentil, um tanto reservado. Em sua

essência, era um otimista. Enfrentou a crueldade em sua forma mais irracional. Foi forçado a testar suas

certezas racionais e humanas contra a máquina nazista, determinada a transformar suas vítimas em seres

desprezíveis antes de exterminá-los. Mas, mesmo assim, não perdeu a lucidez, nem sua fé na racionalidade,

sua curiosidade em observar e analisar, mesmo nas horas mais desesperadoras. Por que um homem assim

escolheria o suicídio, pergunta Myriam Anissimov em seu livro. E se ele realmente queria acabar com sua

vida, por que, sendo químico, não usou uma forma menos traumática? Por que não deixou algo escrito, uma

última mensagem? Acreditar que um homem assim se suicidou é difícil, porém a verdade sobre os últimos

instantes do grande escritor nunca será descoberta. Talvez, no fim, Auschwitz tenha atingido seu objetivo,

cobrando-lhe a vida tantos anos depois. Mas não resta dúvida que a vida de Primo Levi pode ser dividida em

dois períodos distintos: antes e depois de Auschwitz. 121

Informações colhidas no prefácio de Ingrid Schwamborn, doutora em Letras Romanas pela Universidade

de Bonn, Alemanha em Grandes mestres da literatura contemporânea – Stefan Zweig, Ed. Record. 1996. 122

Idem.

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permanentes para a estadia no Brasil. Viveram em uma modesta casa de

veraneio em Petrópolis, local este onde escreveu sua obra Schachnovelle ou

Novela de Xadrez , obra que obteve toda a atenção de Zweig em seus últimos

dias. Trata-se esta de uma das primeiras obras literárias com reflexos da

política alemã, ao contrário de suas outras obras, nessa Zweig diminui a

distância em relação a seus próprios sentimentos e também entre tempo

fictício e tempo real .

Trata-se aqui não de um distanciamento nacional ou territorial,

vemos um personagem em puro distanciamento da vida, da impossibilidade

da sensibilidade, da arte, dos espíritos criadores frente à barbárie dos

tempos vividos. Ainda que tendo decla rado amor ao país acolhedor, o seu

paraíso, em pleno inferno mundial, a vida se tornou insuportável para ele.

Antes de morrer tomou todas as providências necessárias para que sua obra,

finanças e todas as atividades particulares em geral fossem devi damente

deixadas em ordem pelo escritor , preocupava-se sobretudo com o destino de

sua produção literária, tendo por isto enviado diversos exemplares para

amigos e editores, entre eles um brasileiro, Abrahão Koogan, que recebeu

de Zweig um exemplar de Schachnovelle. Anos mais tarde a editora

Guanabara, de Waismann e Koogan, com tradução do médico Odilon Galotti

foi a primeira a publicar a obra em âmbito mundial.

Naqueles anos trinta no Brasil , dizem os biógrafos, Stefan

Zweig foi um dos escritores mais fotografad os e l idos no país123

, recebeu

homenagens de autoridades políticas e também da Academia Brasileira de

Letras, onde em discurso dizia estar envergonhado por todos conhecerem

tanto de sua obra e ele tão pouco sobre a literatura brasileira. Tais

depoimentos deixou em “Pequena viagem ao Brasil” (Kleine Reise nach

Brasilien) e “Brasil, país do futuro” . Este último, o mais famoso de seis

livros no Brasil, escreveu em 1940, publicado pela editora Guanabara em

1941. As belezas naturais, a popularidade, a cultura do p ovo, o caráter

123

Os livros de Stefan Zweig foram queimados na Alemanha em 1933 e sua antiga editora Insel, não mais o

publicava.

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“amável e pacífico” das pessoas, a aparente ausência de barreiras, tudo isso

proporcionou a Stefan Zweig um sentimento tranqüilizador, apaixonante

pelo Brasil, como ele mesmo disse “eine Seelenkur” ou uma “cura de alma”.

Porém, as estreitas relações surpreendentemente construídas tão

rapidamente não foram suficientes para Stefan Zweig, o horror daqueles

tempos o abatera profundamente. Paradoxalmente, o escritor abandonou o

solo de seus ancestrais e de seus contemporâneos pátrios, teve seu tr abalho

destruído e sua família ameaçada, os amigos mortos ou expulsos de suas

casas e de seus países. Chegando ao Brasil , uma acolhedora recepção, em

pouco tempo um visto definitivo, o clima tropical, a popularidade, os

livros. Não haveria outra palavra senão mesmo paraíso para aqueles que

conseguiram refugiar -se fora da Alemanha ou dos terri tórios anexados, feito

Zweig, que era austríaco e não alemão.

Embora as transformações pudessem permitir uma tranqüila

estadia no Brasil, o suicídio lhe veio como a ta ntos outros, a depressão, a

solidão e a angústia daqueles dias foram insuportáveis a ele. Em sua últ ima

novela, “Schachnovelle”, alguns dizem que buscou expor uma nova

modalidade de tortura, mas para outros queria apenas relaçar a luta da

sensibilidade e intelectualidade contra a brutalidade e a barbárie, as

questões que atormentam o personagem Dr. B, que havia sido enterrogado

pela Gestapo, certamente incomodavam também a Stefan Zweig. Não por

acaso, o suicídio é uma temática abordada na maioria de suas ob ras, em

“Schachnovelle”, seu único livro escrito inteiramente no Brasi l, nenhum

dos personagens pensa em suicidar -se. Segundo Ingrid Schwamborn “A vez

agora, era do próprio autor. Xeque -mate no paraíso”124

.

124

Grandes mestres da literatura contemporânea – Stefan Zweig, Ed. Record.

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V - CONSIDERAÇÕES FINAIS

O caráter historiográfico da pesquisa é essencial neste trabalho.

Aquilo que foi pretendido aqui foi somente uma tentativa de ampla

exposição de um tema antes determinado: a construção histórica dos

ressentimentos a partir da experiência de refugiados alemães -judeus

estabelecidos na cidade de Rolândia-PR.

A segunda grande guerra (1939-1945), sem dúvida alguma,

trouxe e ainda reflete em toda a comunidade israelita, um tipo de memória

recente que expõe talvez o evento de maior teor trágico para a história deste

grupo. Desta forma, aquilo a que nos submetemos resolver, foi de encontro

a um tema bastante delicado, sobretudo quando pretendemos realizar uma

reconstrução ou ainda desconstrução de um lado assim por dizer, bastante

subjetivo da experiência individual e coletiva da queles que se

estabeleceram em território brasileiro.

A pesquisa permitiu, através do contato com a narrativa

produzida por Max Hermann Maier e Mathilde Maier, observar não apenas

como reagiram aos eventos que marcaram a Europa entre as décadas de

1930 e 1940, mas ainda como estes imigrantes desenvolveram sua memória

a respeito destes eventos e também como a construção de um “porto seguro”

lhes permitiu superar de alguma maneira a experiência da hostilidade e da

aversão étnica.

Quando tratamos aqui de uma superação, não estamos nos

referindo a um tipo de esquecimento, mesmo porque o esquecimento das

tragédias coletivas não faz parte da tradição judaica, ao contrário, é preciso

sempre reforçar tais acontecimentos, de forma que estes identificam e

marcam as características do grupo ao longo de sua própria história. E isto

o fazem com seriedade.

A questão dos ressentimentos apresenta uma referência social,

de forma que a sua possibilidade de existência se faz a partir de uma

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relação entre os sujeitos e as prá ticas socialmente determinadas. Sendo

assim, não tratamos aqui de subjetividades alheias e independentes, ao

contrário, é preciso que a reflexão seja inteiramente relacionada ás práticas

sociais e assim podê-las determinar historicamente.

A literatura enquanto fonte da investigação historiográfica

permite ao historiador uma observação que nos parece diferenciada.

Enquanto o tratamento com documentos ditos formais exigem uma precisão

e um tipo específico de questionamento, o uso de obras ditas literárias e em

nosso caso, memorialísticas, exige uma atenção porque aparece como uma

mistura entre aquilo que a priori é entendido enquanto relato de uma

experiência e aquilo que pode esporadicamente ser construído por seus

autores enquanto ocultação, ou seja, um cui dado dado ao tratamento de suas

narrativas, de forma que isto é, então, a determinante para o investigador.

Desconstruir as formas como se criam narrativas e a elas dão um teor de

verdade, de narração exata de uma experiência trágica. Ora, o caráter

trágico de suas narrativas é justamente o elemento que nos conduziu a este

estudo. E sendo assim, o objetivo foi retirar de seus “não ditos” aquilo que

pudesse ser pertinente ao nosso trabalho.

No caso do texto de Mathilde Maier, Os jardins de minha vida,

a narrativa possui, por detrás de uma história aparentemente particular, que

busca um retrospecto desde a infância, uma experiência do cotidiano, uma

exposição de ressentimentos l igados a formação de jardins, que

simbolicamente expuseram tudo aquilo que a autor a possuía dificuldade em

relatar explicitamente. A violência, seja física ou moral, não é algo que se

trate facilmente, sendo assim a conveniência de um texto escrito a partir de

memórias individuais, pode de alguma forma, retroceder a tudo aquilo que

porventura se vive com resistência. Em outros casos, poderíamos sim,

encontrar pensamentos que se colocaram de forma a serem igualmente

violentos, taxativos, denunciadores de uma situação vivida. Embora

Mathilde fale constantemente dos dias experimentados na A lemanha, da

saudade de outros tempos, e a idéia de uma narrativa autobiográfica deixa

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isso bastante claro, os ressentimentos não são expostos trivialmente. Há um

cuidado com aquilo que pretende falar de si mesma e da forma como

lidaram com os acontecimentos.

O texto de Max Hermann Maier possui grandes diferenças. Sua

narrativa é feita de maneira mais formal, ou como escreveu Elmar Joenck,

professor que auxil io Mathilde Maier no término da tradução de Um

advogado de Frankfurt se torna cafeicultor na selva b rasileira – relato de

um imigrante (1938-1975), Max se expressou em exata terminologia,

clássica, científica e jurídica.125

Sendo assim, Max Hermann Maier

procurou escrever de maneira mais concisa, onde os eventos não são

evitados, mas escritos de forma dife rente.

As narrativas se encontram em muitos momentos, embora sejam

diferentes naquilo que poderíamos chamar de uma estrutura pessoal na

natureza de seus discursos. A questão da imigração para o Brasil, os

primeiros acontecimentos em São Paulo por ocasião da chegada, alguns

elementos da perseguição nazista e a forma como foram tratados no

momento em que deixavam a Alemanha, enfim, não poderiam de outra

forma tratar de assuntos distintos que não tomassem estes acontecimentos

como importantes no decorrer da e scrita, ainda assim, Max Hermann Maier

se utiliza de um discurso que percorre os ressentimentos de forma

redentora, ou seja, se preocupa com a maneira como expõe a construção de

novos cotidianos, da superação de eventos de outrora.

Entre livros, música, t eatro, política, plantações de café e

percepções imediatas de um mundo que se transformava a cada momento, os

Maier e outros imigrantes criaram novas maneiras de cotidiano, de

experimentação e construção de realidade. Os ressentimentos se refletem

sobretudo na fragmentação de valores antigos, na permanência de tradições

germânicas orientadas pela filosofia, literatura e religião.

125

MAIER, Max Hermann. Um advogado de Frankfurt se torna cafeicultor na selva brasileira. Relato de um

imigrante (1938-1975). Título do original alemão: Ein Franfurter Rechtsanwalt wird Kaffepflanzer im

Urwald Brasiliens. Berich Eines Emigranten (1938-1975). Josef Knecht Verlag-Frankfurt am Main, 1975.

Rolândia: Gráfica Velox-PR, 1976. página 6.

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O elemento religioso, presente nas narrativas de ambos os

autores, não é tomado da maneira como se poderiam imaginar judeus

praticantes de uma ortodoxia. O judaísmo os servia mais como uma

referência étnica e transmissora de valores e não uma postura assumida

radicalmente. Certamente, que os chamados “judeus de Hitler” , que pela

expressão polí tica do partido nazista foram necessari amente assim

designados, estavam mais assimilados a cultura germânica e ao espírito

europeu do início de século do que ao próprio judaísmo instituído enquanto

prática determinante de suas personalidades.

Talvez seja este um ponto importante para a reflexã o acerca

daqueles que foram obrigados a abandonar seu país de origem. Embora

judeus, eram alemães. Em alguns momentos isto se tornou um problema no

Brasil para os refugiados, visto que uma vez fora da Alemanha, era

determinado que se colocassem como “sem p átria”, não podendo estes, por

exemplo, em situações formais, apresentarem -se enquanto alemães:

“Meu sóc io e eu nos inscrevemos num pequeno albergue , onde

quer íamos pernoi tar , informando sermos “sem nac ional idade”,

que nesse tempo era uma espéc ie rea l de estado civil . O governo

nazista da Alemanha recusara aos judeus a nac ional idade alemã.

Em seguida mandaram-nos dar uma chegada, à noite , ao gab ine te

do chefe de pol ícia . Este disse ser obrigado a nos prender no

caso de ins ist irmos ser sem nac ionalidade”.126

Desta forma, os problemas com a Alemanha não foram extintos

no momento em que se refugiaram no Brasil , sobretudo no período em que

os nazistas ainda governavam o país. Eles mantiveram -se e trouxeram aos

alemães-judeus uma confusão acerca de suas própri as identidades. E o

chamado aqui de confusão, é por outro lado, a reflexão que permeia uma

formação direta de um tipo de ressentimento para com aqueles que lhe

negaram o direito de permanecerem alemães: Profundas eram nossas raízes

126

MAIER, Max Hermann. Um advogado de Frankfurt se torna cafeicultor na selva brasileira. Relato de um

imigrante (1938-1975). Título do original alemão: Ein Franfurter Rechtsanwalt wird Kaffepflanzer im

Urwald Brasiliens. Berich Eines Emigranten (1938-1975). Josef Knecht Verlag-Frankfurt am Main, 1975.

Rolândia: Gráfica Velox-PR, 1976. Cit. P. 19.

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na Alemanha; gostávamos demais de nossa casa, linda, com grande jardim,

no bairro de Holzhausen Park, na Rua Kleeberg.127

Questões identitárias, formações de jardins em diversas partes

da Europa e novos jardins no Brasil, a guerra, a violência; variados

elementos que permearam a s ituação de refugiados que se espalharam por

muitas regiões do continente americano. A experiência aqui demonstrada

surgiu da relação entre potencialidades de uma perspectiva política que se

utilizou do anti -semitismo como valor de ordem e manutenção de uma

verdade e a coisa em si refletida pragmaticamente, ou seja, na forma como

aqueles que se tornaram hostilizados reagiram, mantendo assim a

possibilidade de sobrevivência.

127

MAIER, Max Hermann. Um advogado de Frankfurt se torna cafeicultor na selva brasileira. Relato de um

imigrante (1938-1975). Título do original alemão: Ein Franfurter Rechtsanwalt wird Kaffepflanzer im

Urwald Brasiliens. Berich Eines Emigranten (1938-1975). Josef Knecht Verlag-Frankfurt am Main, 1975.

Rolândia: Gráfica Velox-PR, 1976. Cit. P. 10.

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VI – ANEXOS

VI.I – FOTOGRAFIAS

Ilustração 1 128

128

A Menorah significa candelabro, suporte para lâmpadas. Tradicionalmente a Menorah

possui 07 lumes de lâmpadas, uma haste central e 03 braços que saem de cada lado.

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Ilustração 2129

129

Interior da casa de Max e Mathilde Maier.

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89

Ilustração 3130

130

Biblioteca da casa.

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90

Ilustração 4131

131

Piano vertical.

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Ilustração 5132

132

Visão lateral.

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Ilustração 6133

133

Varanda.

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Ilustração 7134

134

Detalhe da construção, o desnível do terreno fez com que a arquitetura da casa recorresse a uma estrutura

lineadora.

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Ilustração 8135

135

Varanda.

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Ilustração 9136

136

Visão frontal.

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Ilustração 10137

137

Visão lateral.

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Ilustração 11138

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Mata ao redor da casa.

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Ilustração 12139

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Entrada da fazenda Jaú, Rolãndia-PR.

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VI.II – ENTREVISTA

ENTREVISTA - Klaus Kaphan – 20/10/2006 – 15 horas – Fazenda Jaú

K. K:[...] Tudo bem. E, agora, vocês querem que eu conte o que?

Bom, quanto tempo faz que o senhor está aqui em Rolândia?

K.K.:Faça a conta, de 1936 pra cá. Junho de 36.

E como que o senhor veio pra cá?

K.K.:Como ou por quê?

Como...

K.K.:Eu vim de trem (risos)

O senhor desceu em Santos?

K.K.:Desci em Santos, paramos em São Paulo e viemos pra cá.

Mas, quais foram as circunstâncias, por que Rolândia.?

K.K.:Bom, o negócio foi o seguinte, como você disse, nós fomos judeus e meus pais

reconheceram em tempo o que tava ... o que iria acontecer na Alemanha e teve a

possibilidade de escolher entre ir para Israel e vir para o Brasil. E, como naquele tempo

tinha a Companhia de Terras Norte do Paraná que vendia, que tinha essa concessão, uma

área grande aqui no norte do Paraná para colonizar e vender terras. Estavam vendendo

terras na Alemanha. Meus pais...meu pai conseguiu vender a propriedade dele lá e com esse

dinheiro comprar um vale para x hectares de terra dessa companhia. Essa companhia, pelas

informações que meus pais receberam, era uma companhia séria, como realmente foi, mas

ele poderia ter também chegado aqui no Brasil com um pedaço de papel na mão, com a

esposa e três crianças pequenas e não encontrar nada, né. Mas, deu tudo certo, então...foi

assim que nós chegamos. Chegamos em São Paulo, depois pegamos o trem, ai os meus pais

me deixaram em São Paulo com as crianças na casa duma senhora que tinha uma pensão e

meus pais vieram de trem pra Rolândia que foi a ultima estação que tinha naquele tempo

Terminava ai ... Quer tomar um suco?

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Então, pelo que o senhor fala foi muito tranqüila a vinda do senhor pra cá.

K.K.:Nossa vinda foi tranqüila, que as coisas ficaram feias mesmo só depois disso, só em

38, 39, que... Agora já quando nós saímos da Alemanha, minha irmã mais velha já sentiu

muita discriminação contra judeus na Alemanha, na escola, pelos professores e tudo isso.

Eu era menor e tava numa escolinha, numa vila perto da fazenda do meu pai, então eu

quase num...

Qual era a idade do senhor?

K.K.:Eu tinha nove anos e... chegamos aqui em Rolândia, meu pai alugou uma casinha na

cidade. A cidade que tinha acho tinha dez, quinze casas, ou menos. Então ele pôde, com a

ajuda do pessoal da Companhia de Terras, pôde escolher onde ele queria a terra, escolheu

essa área aqui, abriu uma clareira e construiu a casa, que é logo ali na frente. Aquela casa

amarela lá pra frente. E, hoje minha filha mora lá. E estamos aí desde 15 de janeiro de

1937, que nós moramos aqui na fazenda.

E, assim, a família do senhor seguia o judaísmo?

K.K.:Não, éramos... meus pais eram bastante liberais, vamos dizer assim. Não éramos

ortodoxos, nem nada, como a maioria das famílias que vieram pra cá naquele tempo. E a

gente... Eles, os adultos se, como posso dizer, eles se juntaram em grupos muito menos pela

religião do que pela descendência de país, por causa da língua e tudo isso. Cultura que

tinham. Então não houve mesmo uma comunidade judaica por aí. Teve relativamente

poucos, não teve oitenta imigrantes judaicos aqui em Rolândia, de maneira nenhuma.

Não chega?

K.K.:Não chega a isso, nem de longe. Não sei se vocês sabem que para certas cerimônias

judaicas[...] quando precisavam fazer uma cerimônia, por exemplo, mesmo um enterro ou

qualquer coisa, tinha que ter treze pessoas, treze homens para poder fazer uma celebração

de qualquer coisa judaica, né. E, às vezes era difícil encontras treze pessoas, treze homens

adultos para fazer.

Aqui em Rolâdia?

K.K.:Aqui em Rolândia. Eu acredito que, assim pode ser que não existam oitenta então, que

seja, né. Mas, existe então um número significativo de famílias judias aqui em Rolândia.

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Bom, hoje tem muito menos ainda, mas não vieram oitenta famílias pra cá. Hoje a maioria

ou voltaram pra Alemanha, a maioria também já morreram do pessoal que vieram, também

os meus pais e nossos vizinhos, inclusive.

Mas, vieram algumas famílias de judeus pra cá. E, aqui? Vocês se sentiam seguros aqui, em

relação às perseguições que vocês estavam sofrendo?

K.K.:Se a gente se sentia seguro? Sim. Muito, muito, nossa! Bom, meus pais se sentiram

muito bem aqui e nós, crianças, nós... Bom, eu não tenho mais nenhuma ligação com a

Alemanha, eu falo alemão porque meus pais falaram, mas vivi aqui, to naturalizado, meus

filhos são brasileiros, meus netos são brasileiros, então...

O senhor nunca teve a intenção de voltar pra lá?

K.K.:Não.

O senhor se sente brasileiro?

K.K.:Me sinto brasileiro e to muito bem aqui. O pouco tempo que me resta, quero ficar

aqui.

E, quanto ao judaísmo, o senhor se considera um judeu?

K.K.:Bom, eu me considero judeu de descendência, vamos dizer assim. Eu não sou

religioso, nem nada. Não sou praticante. Eu sou judeu porque meus pais eram e na

Alemanha, naquele tempo eu seria considerando judeu, como era, não sei quantas gerações

pra trás.

Sim, mas aqui existiu certa separação entre os judeus e os outros que não eram judeus.

Existe até o clube concórdia que dizem ter sido um clube nazista, fundado por eles...

K.K.:Bom, principalmente naquele tempo existiam alguns, talvez ainda existam alemães

que vieram, às vezes são descendentes de alemães que ainda acham, que se acham nazistas,

mas nós não... aqui muito pouco. Mas aqui, quando eles vinham pra cá, não tinham...Tinha.

Tinha os alemães que eram nazistas, tinham.

E como eles tratavam vocês?

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K.K.:Bom, a gente não se misturava, eles formavam o grupo deles e a gente se mantinha

separados, não queria saber de política (risos) e cada um queria viver em paz.

E os judeus que vieram pra cá, houve uma união entre essas famílias aqui?

K.K.:Houve uma união assim, não tanto pela religião, quanto pelo grupo dos judeus. E

houve também, teve muitos imigrantes não-judeus e que faziam parte do grupo, teve muita

gente que saiu por motivos políticos ou simplesmente não concordavam com o que tava

acontecendo lá.

O Sr. Max Hermann Maier, era sócio do senhor?

K.K.:Era sócio do meu pai.

Eles tinham um alojamento para estudantes, não tinham?

K.K.:Tinha. Isso era aqui na fazenda. Eram, meu pai com doutor Maier, juntos e, eles eram

sócios, os dois eram donos daqui da fazenda e tinham, existia um plano de trazer filhos de

proprietários de gente que tinham comprado terras também mais que não vieram e os filhos

deles eram pra vir pra cá pra tomar posse da terra que os pais compraram e aqui ia ser um

centro de treinamento de adaptação eram pra vir quinze, dezesseis jovens, principalmente

de uma escola agrícola alemã, mas judia e desses quinze, dezesseis, não sei mais quantos

eram um único conseguiu vir. A maior parte não conseguiu sair da Alemanha, morreram

em campos de concentração e outros conseguiram sair para outros paises e não

conseguiram vir ao Brasil. Então só teve uma pessoa desse grupo de jovens que chegou.

Chegou aqui, morou aqui, e inclusive depois casou com uma irmã minha e ele já faleceu há

tempo também. O nome dele era Hans Rosenthal. Depois ele casou com dona Inge, não sei

se vocês já... Inge Marie Rosenthal que ainda mora aqui na fazenda inclusive.

Então assim, a princípio a ideia era trazer estudantes e refugiados, ao mesmo tempo? Ou

eram só estudantes?

K.K.:Eram estudantes e refugiados ao mesmo tempo. Não, não, judeus, porque aquela

escola era judia. Era uma fazenda – escola. E era pra vir pra cá, se adaptar aqui pra depois

cada um ir pro seu lado.

Existe alguma coisa, mesmo que ruína desse alojamento?

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K.K.:Não. Foi demolido. Existe da madeira daquele lá, ai onde vocês pararam ai, a casa da

direita, o escritório da fazenda, isso foi feito de parte da madeira. Mais isso já faz muitos

anos.

E a adaptação da família do senhor aqui. Não era cidade, né, mas era tudo, acredito que

mato fechado. Foi difícil a adaptação?

K.K.:Bom, quando gente já de idade, não era fácil, né? Chegar num país estranho,

praticamente sem dinheiro, três filhos pequenos, sem saber falar a língua e conhecer... e o

clima diferente e tudo mais, não foi fácil. Agora, meu pai sempre era otimista, meu pai se

adaptou mais fácil, ele não falava o português no começo, mas se fazia entender. E no fim

ele era um dos poucos agricultores já que tinha propriedade na Alemanha antes, que tinha

propriedade agrícola, então ele ajudou muito os outros aqui, aconselhando e na parte

agrícola, coisa que ele sabia, ele conseguiu ajudar muita gente aqui.

Ele tinha intenção de voltar para Alemanha?

K.K.:Nunca. Nunca. Bom, depois que se sai tocado de um lugar, de um lugar onde

assassinaram teus parentes todos, que quase ninguém escapou de lá, você tem... eu pelo

menos não pretendo, nunca quero voltar pra lá, que pras pessoas mais velhas eu não posso

olhar nem na cara assim dizer: será que você tava no meio disso? Será que você matou

meu tio?

Mas o senhor voltou para lá depois?

K.K.:Não.

Nem pra visitar?

K.K.:Nem pra visitar. Não quero, não. Eu falo alemão, tenho amigos alemães e tudo isso,

mas eu não me sentiria à vontade lá, de jeito nenhum.

Tem alguém da família do senhor lá?

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K.K.:Na Alemanha não. E mesmo que tivesse, eu pessoalmente, eu não... eu sempre falei

que não quero, e não vou, não vou mesmo.

Veio a família do senhor para cá, seus pais e seus irmãos, mais ficaram ainda familiares do

senhor na Alemanha?

K.K.:Ficaram. Ficou minha vó, que é a mãe da minha mãe e ficou o pai do meu pai. E eles

conseguiram vir em 38. Eles ainda vieram, viveram aqui com a gente até falecer. Fora os

outros parentes que conseguiram sair, estão esparramados pelo mundo, em Israel, uns

foram pra China primeiro e outros lugares. O único parente nosso que veio para cá,

independente da gente, não sei se vocês já ouviram falar do Max Moser? Ele era primo do

meu pai.

O senhor falou que a maioria das famílias que vieram para cá, já eram mais liberais, que

não seguiam tanto o judaísmo, mas em alguns momentos vocês tentavam seguir a tradições

porque o senhor mesmo fala que...

K.K.:Bom, meus pais tentaram manter as festas religiosas, por exemplo. Nós tínhamos no

começo, como não tinha escola, a gente tava longe da cidade, mesmo na cidade não tinha

escola, então veio uma moça junto com meus pais para ser professora nossa no primeiro

ano, depois ela foi embora, veio um casal também eram refugiados alemães, também eram

professores e viveram aqui por três anos.

Quem era esse casal?

K.K.:Esse casal era, ele chamava [...], acho que ninguém menciona, eles moraram aqui na

fazenda e deram aulas em alemão, um curso mais ou menos escolar e deram aula de

religião também. Sabiam um pouquinho de religião. Mas ficou nisso, quando tinham as

festas, ano novo e o dia do perdão, tudo ai então eles celebravam com a gente, pra manter a

tradição. Agora, tem outras famílias que mantém mais a religião ainda, por exemplo, a

senhora Inge Rosenthal, ela é muito mais, não é ortodoxa nem nada, mas é mais, como

posso dizer? Se identifica muito mais ainda com a religião judia, entendeu?

Tem famílias que, mesmo que não fossem tão praticantes lá, na Alemanha, quando eles

vieram pra cá, eles tentaram resgatar esse passado deles.

K.K.:Não, claro. No começo era isso e era a cultura alemã, que a geração anterior a minha,

quer dizer, esses que vieram, tentaram manter a cultura, que é uma cultura diferente da

cultura daqui.

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Sim. Existia até um clube, né, que é o Pró- Arte.

K.K.:Tinha o Pró-Arte, que o Dr, Max Hermann Maier era, naquele tempo ele era o líder,

faziam palestras e convidavam, tinha alguma pessoa em São Paulo, que entendia de alguma

coisa, e todos ficavam pra dar uma palestra aqui...e, uma porção de coisa assim, né.

Então, mas nós percebemos, assim, que nos dois cemitérios daqui, que a maioria desses

judeus, em suas sepulturas, eles acabam seguindo um pouco a tradição.

K.K.:Como assim?

Da própria arquitetura tumular, a questão do túmulo ser perpétuo...

K.K.:Sim, mas isso não é, não é típico judeu, isso é típico alemão e mesmo aqui, talvez, o

jeito de pedra das lápides ai, dos meus pais, vocês devem ter visto lá, tem uma pedra pesada

que nós pusemos lá. E, mas...mas isso não é tradição, assim...é mais, é...pessoal.

E, quanto ao velório dos pais do senhor? Como que foi?Vocês seguiram a tradição?

K.K.:Foi seguida a tradição um pouco, que tinha uma pessoa em Londrina que...que

ajudava, que vinha celebrar um pouco. Mas não, sabe, eu, pessoalmente não...não, como se

costuma dizer? Não simpatizava, não é certo. Mas eu não fazia questão, vamos dizer assim.

Quando o senhor veio pra cá, se o senhor lembrar, vocês trouxeram muitas coisas?

K.K.:Bom, o que a gente podia trazer, trazia. As caixas, caixote grande de coisas que

podiam trazer, que gente vinha de navio então não era tão difícil. Naquele tempo não tinha

avião. Tinha avião, mas não tinha aviões de passageiros, assim constantes como tem hoje,

então a gente podia trazer mais coisas. Trazia utensílios de casa, um pouco de ferramentas

que a gente achava que um dia podia usar aqui. Ferramentas de carpinteiro, ferreiros, de

coisas que podiam usar ai, na fazenda, né.

Livros?

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K.K.:Livros, muitos livros. Isso, como eu falei sobre a cultura dessas pessoas. Tem na casa

do Max Hermann Maier ainda existe, ela está aqui, está vazia no momento, está muito bem

conservada.

Nós podemos fotografá-la?

K.K.:Pode. O meu filho assumiu aquela casa. Meu filho mora em São Paulo, mas ele tem a

família, e eles querem, tão logo que eles podem, eles querem renovar a casa e usar ela para

férias e tudo isso. E, na sala você vai ver que tem a biblioteca ainda, é uma parede enorme,

cheia de livros, ta lá ainda, os livros estão lá. A dos livros deles estão lá.

Eram romances?

K.K.:Tinha de tudo, né. De todo. Mas, mais era literatura.

Filosofia?

K.K.:È, filosofia e. como te diria, autores antigos e conhecidamente... não sei como

explicar (risos). Que tudo isso fazia parte da cultura européia e a cultura alemã, né. Eram os

...

E assim, o senhor veio para cá quando tinha nove anos, o senhor era pequeno. Os pais do

senhor incentivavam o senhor a ler aqueles livros?

K.K.:É, mais eu nunca era de ler muito aqueles. Eu li muito pouco daquilo, li e sei sobre

eles alguma coisa, mas tem gente muito mais culta (risos).

Não ter se formado então essa comunidade judaica, então o senhor realmente atribui isso ao

fato de que esses judeus não seguiam tanto a tradição, eles eram mais liberais, não envolve

questão financeira, de não conseguir construir uma comunidade...?

K.K.:Não, não.

A questão da perseguição, aqui também não tinha perseguição?

K.K.:Não, perseguição não tinha nenhuma.

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Nenhuma?

K.K.:Ao contrário, durante a guerra os alemães que eram... eles não podiam falar alemão na

rua. Eu estudei em Londrina, estive um ano do ginásio londrinense, que nem existe mais

hoje e quando eu vinha para casa em algum fim de semana, tinha que ir na delegacia tirar

salvo conduto para poder ir viajar de jardineira ou de trem de Londrina a Rolândia. E tem

alemães nazistas que ficaram presos, foram presos por se manifestarem nazistas. Ficaram

presos durante a guerra.

E, assim quanto à questão do senhor Nixdorf, senhor Oswald Nixdorf, existem alguns

relatos de que ele seria nazista.

K.K.:É o que dizem. Pessoalmente não sei, ouvi falarem isso e acredito que tenham sido,

agora, dizer que ele foi eu não posso porque ele nunca me falou nada (risos).

Mas assim, aqui o senhor não tinha contato com ele assim, e com a família dele?

K.K.:Não, muito pouco. Eu conheço o filho dele, o Klaus Nixdorf, mas também conheço,

né? Ele é uma pessoa que gosta de cultivar o germanismo que disso eu mantenho longe, né?

[...] dos judeus que ainda moram aqui em Rolândia, ela, Suzanne Behrend...

Que também era liberal.

K.K.:Era liberal e a dona Inge Rosenthal, o Bruch, inclusive vocês entrevistaram a filha

dele por acaso?

A Léa? Sim, temos entrevista marcada.

K.K.:O Bruch passou um tempo aqui na fazenda trabalhando com a gente, trabalhou em

muitas fazenda ai, e só tem ela agora, a Lea do pessoal daquela família.

Se eu não me engano, a dona Mathilde Maier, ela não dava aula de hebraico?

K.K.:Ela dava aula de hebraico, tentou dar para nós, tentou dar aulas para os meus filhos.

Ela era uma personalidade interessante. Ela escrevia. Vocês leram os livros dela, Os jardins

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da minha vida, ela dava aula, mas hoje em dia ela não esta mais ai, nem o Rafael nem

ninguém se interessou pela religião (risos). Agora você diz ai no cemitério São Rafael...

você vê que tem muito poucas sepultura de judeus lá. Poucas, tem muitos alemães, não sei

porque eles se uniram lá...[...]

K.K.: Existe até uma certa diferença, uma certa simbologia, a questão das pedras...

Sim. Mais eu vejo isso muito mais uma questão individual, pessoal do que... cavar o

terreno, não sei se você viu que tem a sepultura dos meus pais e atrás nos pusemos a lapide

do meu avô, e tem a estrela de Davi nela e logo atrás a da minha avó também.Mas isso ai é

tudo diferente, cada um faz do seu jeito, ninguém fala que tem que ser assim, que tem que

ser daquele jeito. Pra mim, pessoalmente, eu nunca vou negar que sou judeu, inclusive que

nasci judeu, judeu para mim não é uma raça, como Hitler queria que fosse, para mim judeu

é uma religião como posso ser muçulmano, posso ser católico ou budista. Eu pessoalmente

sou mais hinduísta do que judeu, nós temos um grupo de meditação em Londrina, que

segue um guru indiano. Se quiser assim, não sou mais judeu. Eu sou judeu porque nasci

judeu, nunca vou negar que sou, né.

[...]

K.K.:Ele (Max Hermann Maier) levanta umas questões de não ter se formado uma

comunidade pelo fato da questão financeira, porque...

Eu não acredito que seja isso.

[...] A Companhia de Terras tinha um contrato com o governo brasileiro de construir uma

estrada de ferro atravessando essa concessão de terras que eles tinham e de fundar, ao longo

dessa estrada de ferro, a cada dez, quinze quilômetros um núcleo, para ser uma futura

cidade. É o que fizeram. E, para construir essa estrada de ferro, eles compraram na

Alemanha trilhos, locomotivas, vagões, pagando em dinheiro alemão e, meus pais e muitos

imigrantes pagaram para a companhia inglesa lá pelo vale de terras, judeu quando saia de

Rolândia não podia levar dinheiro, podia levar cinqüenta marcos, que não era nada. Mas

teve esse vale de terras, então meu pai vendeu a propriedade com o dinheiro que comprou

as terras e aquele dinheiro ficou lá e pagou pelos trilhos e etc da estrada de ferro e salvou

vida de muita gente, com isso muita gente conseguiu sair de lá, compreende? Cinqüenta

marcos pra sair de um país com a família e tudo, não era...Para sair da Alemanha, então,

não podia levar dinheiro. Não podiam levar nada.

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