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INTRODUÇÃO Se discutere col vostro fidanzzato è come sbattere la testa contro il muro di Berlino… tranquille: prima o poi crolla. No princípio do ano de 2002, estava na Itália, e, por todas as livrarias que passava ou entrava, via em destaque um livro com capa sugestiva e título não menos: Sola come un gambo di sedano (Sozinha como uma talo de aipo). Numa capa branca, a foto de uma perna com o pé pinçando uma talo de aipo, entre o hálux e os outros dedos. O nome da autora em caixa-alta no alto da página, em preto, e o título em letras menores, também em preto. A foto da capa seguia pela lombada e pela capa posterior do livro, com a dona da perna sendo vista como uma ruiva de olhos arregalados e vestido verde, numa expressão bastante engraçada. O conjunto todo apelativo de forma divertida, causando logo a curiosidade de manuseá-lo e ver do que tratava.

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Page 1: Humorismo e comicidade - Setor de Ciências Humanas · 3 tarefa de encontrar um companheiro. Ele, o livro, agrada a todos, encontra leitores em ambos os sexos. Não é o primeiro

INTRODUÇÃO

Se discutere col vostro fidanzzato è come sbattere la testa contro il muro di Berlino… tranquille:

prima o poi crolla.

No princípio do ano de 2002, estava na Itália, e, por todas as livrarias que passava ou

entrava, via em destaque um livro com capa sugestiva e título não menos: Sola come un gambo

di sedano (Sozinha como uma talo de aipo). Numa capa branca, a foto de uma perna com o pé

pinçando uma talo de aipo, entre o hálux e os outros dedos. O nome da autora em caixa-alta no

alto da página, em preto, e o título em letras menores, também em preto. A foto da capa seguia

pela lombada e pela capa posterior do livro, com a dona da perna sendo vista como uma ruiva de

olhos arregalados e vestido verde, numa expressão bastante engraçada. O conjunto todo apelativo

de forma divertida, causando logo a curiosidade de manuseá-lo e ver do que tratava.

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Sou uma leitora contumaz e devo confessar que, muitas vezes, compro o livro movida

única e exclusivamente, em primeiro momento, pelo apelo da capa. Logicamente que o segundo

movimento imediato, antes da aquisição, é o de olhar a orelha e dar uma passeada pelas páginas

para confirmar a atração causada pela vista da capa.

Raramente me engano. A atração pela capa costuma ser para mim um bom indício de

boa leitura a seguir.

Desta vez, no entanto, a seqüência não foi assim tão imediata. Tratava-se do feriado

de Ano Novo, as lojas encontravam-se fechadas e eu não podia manusear o livro, muito menos

comprá-lo. A tentação tinha iniciado o seu jogo, que continuou por alguns dias, sendo mais e

mais instigado em meu espírito. Como estava de férias, viajando, por várias vezes, nos trens e

ônibus, via pessoas com expressões divertidas nas faces, manuseando a mesma obra. Minha

curiosidade foi aumentando, o que fez com que, na primeira oportunidade, comprasse o livro e

iniciasse logo a sua leitura.

As expectativas não se frustraram. Já nas primeiras linhas, o texto promete bons

momentos de crônica, humor e divertida leitura. Falando de forma ágil e engraçada de assuntos

os mais diversos, da vida cotidiana, mais especificamente, das mulheres às voltas com a difícil

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tarefa de encontrar um companheiro. Ele, o livro, agrada a todos, encontra leitores em ambos os

sexos.

Não é o primeiro livro da autora, mas dá início à sua Trilogia da Verdura, sucesso de

vendas, encabeçando a lista de best-sellers por meses seguidos.

Luciana Littizzetto é a autora. Escritora, atriz, dubladora e vedete italiana. Nascida

em Torino, a 9 de outubro de 1964, filha de comerciantes. Tem formação em música pelo

conservatório de Torino e inicia a sua carreira como professora de escola média, o que faz por

nove anos. Colabora para um jornal mensal o Gioventù Operaia (Juventude Operária), com

artigos sobre ensino e resenhas musicais e cinematográficas, mostrando já o estilo próprio e

bastante irônico que a caracteriza. Nesse meio tempo, se forma em Materie Litterarie (Matérias

de Literatura), pela faculdade de Magistério, com uma tese sobre o melodrama intitulada La luna

nel romanticismo (A Lua no Romantismo); faz aulas de teatro no Istituto d’Arte e Spettacolo, na

época dirigido por Arnoldo Foà, criador do seu primeiro espetáculo de cabaré – Lacrime, Sogni e

Sesso (Lágrimas, Sonhos e Sexo) –, com que se exibe em teatros locais, seguidamente com outros

artistas. Faz dublagens, concorre e vence concursos e participa de vários shows televisivos, até

que abandona a função de professora para dedicar-se exclusivamente aos seus espetáculos.

Em 1993, volta ao teatro para estrelar o espetáculo Parlami d’amore Manú (Fala-me

de amor Manú), do qual participa também como autora dos textos, e que mete em cena

personagens típicos de sua verve, extravagantes vítimas da sociedade que se remetem a uma

misteriosa conselheira para resolver seus dilemas. Neste mesmo ano, participa de um espetáculo

televisivo, Cielito Lindo (Ceuzinho Lindo), com o personagem Sabrina, ao qual se deve uma

frase que se tornou um chavão em voga naquele período – Minchia Sabbry! (que se poderia

traduzir educadamente, Caraca Sabbry!)1. Sucessivamente aparece no rádio, conduzindo

juntamente com Piero Chiambretti2 uma transmissão para RadioDois, a Hit Parade.

Entre 1995 e 1997, participa de inúmeros programas televisivos e radiofônicos

sozinha ou com outros cômicos conhecidos e de renome, tornando-se mais e mais célebre e 1 Sabrina é uma personagem meridional, de classe baixa, que vai para o norte, trabalha em subempregos e mantém maneiras e forma de falar típicas, estereotipadas, da região de origem. Mincchia Sabry é uma expressão que usa exageradamente como vocativo expletivo e transforma-se num raio em expressão popular. Mais tarde, vai ser o título do livro L’agenda de Mincchia Sabry (O diário de Mincchia Sabry), no qual a palavra Mincchia aparece 260 vezes, segundo o P.S., incluído na última página. 2 Piero Chiambretti (Aosta, 30 de maio de 1956) é um apresentador de televisão e showman italiano. No meio do espetáculo, é conhecido também como Pierino la peste (Pierino o peste).

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requisitada, como atriz ou autora de textos. O último ano marca seu début no cinema, com dois

filmes, quase paralelamente, Tutti giù per terra (Tudo por terra abaixo), do homônimo romance

de Giuseppe Culicchia, escritor nascido em Torino, como ela; e do festejado filme de estréia de

Aldo, Giovanni e Giacomo3, Tre uomini e una gamba (Três homens e uma perna), cujo sucesso a

lança em um período muito fértil de sua carreira.

De 1998 em diante, participa pela primeira vez de numerosos episódios de Mai dire

gol (Nunca diga gol). Em abril desse ano, recebe a tarefa de apresentar o programa radiofônico

Titanic(a), todos os domingos após o almoço. Para cada apresentação, o programa tem uma cor

associada, em torno da qual Littizzetto constrói um monólogo de uma hora. Logo depois, aparece

também em Zelig – Facciamo Cabaret (Zelig – Façamos Cabaret), outro programa humorístico,

apresentado por Simona Ventura4, no qual a atriz coroa sua fama de cômica, há muito já

consolidada.

A Copa do Mundo de futebol de 1998 lhe dá a ocasião de improvisar como

comentarista, desta vez pela rádio Gialappa’s Band. Contemporaneamente, volta ao rádio com

um novo programa de nome curioso, Quizzaz. Na televisão, continua empenhada com Mai dire

gol, no qual introduz novos personagens muito populares: a pianista Nives e a ninfomaníaca

Lolita.

Em 1999, faz um novo filme com Luca Bizarri e Paolo Kessisoglu, E allora mambo

(E agora mambo), e continua com o programa Mai dire gol, repropondo sua personagem Sabrina,

então como uma caixa de um fast-food. O ano termina com a publicação de seu primeiro livro,

L’agenda de Minchia Sabbry (O diário de Minchia Sabbry).

No novo milênio, continua a sua carreira de atriz de cinema, aparecendo em vários

filmes; como co-roteirista e atriz principal em Ravanello Pallido (Rabanete pálido). Embora não

correspondendo ao cânone, posa para um ensaio sexy na revista italiana Max e publica seu

segundo livro, Ti amo bastardo (Te amo desgraçado).

Cria novos personagens, ou ainda, cria novos papéis para os antigos, do público

conhecidos. Participa de programas televisivos e radiofônicos, como Le parole che non ti ho

3 Aldo, Giovanni & Giacomo é o nome artístico de um popularíssimo trio cômico de atores e diretores de teatro, televisão e cinema italianos. O trio é formado por Aldo Baglio (1958), Giovanni Storti (1957) e Giacomo Poretti (1956). Disponível em: < http://it.wikipedia.org/wiki/Aldo,_Giovanni_&_Giacomo> Acesso em: 20 nov. 2007. 4 Simona Ventura (Bologna, 1º de abril de 1965) é apresentadora de televisão. Disponível em: <http://it.wikipedia.org/wiki/Simona_Ventura> Acesso em: 20 nov. 2007.

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chiesto (As palavras que não te pedi), centrado nos problemas da relação a dois. Não pára de

escrever; em 2001, após Un attimo, sono nuda (Um momento, estou nua), em co-autoria com

Roberta Corradin5, obtém inesperado sucesso editorial com Sola come un gambo di sedano

(Sozinha como um talo de aipo), publicado pela Mondadori. Com mais de um milhão de cópias

vendidas6, o livro dá início à Trilogia della verdura (Trilogia da Verdura), como foi denominada

pela autora, objeto do presente estudo.

Este primeiro livro é seguido, em 2002, por La principessa sul piselo (A princesa e a

ervilha) e, em dezembro de 2003, sempre pela Mondadori, sai o terceiro e último componente da

série, Col cavolo (Com o repolho), quando os dois primeiros livros já haviam sido traduzidos e

publicados em Portugal, Espanha, Alemanha, Hungria, Rússia, República Tcheca e Lituânia.

Concomitantemente, continua sua escalada e carreira de sucesso na mídia televisiva e

no cinema. Seu último livro, Revirgination (Revirginação), publicado em 2006, também pela

Mondadori, alcança rapidamente o topo da lista dos mais vendidos.7

A Trilogia trata das questões da mulher em suas lidas com os problemas de relações

com os homens e com as questões da atualidade e da vida. O primeiro livro, como sugere o título,

fala da mulher single em busca do par perfeito, ou menos que isso; o segundo, daquelas já às

voltas com o par, mais ou menos encontrado; e finalmente o terceiro enfatiza os trabalhos e as

lidas com as imperfeições do par, da relação sob o mesmo teto e da vida.

O motivo de ter-se chamado a Trilogia da Verdura está nos títulos e no fato que a

própria autora explica, quando questionada em uma entrevista sobre o filme Ravanello Pallido.

Ho sempre sostenuto che esistono due categorie di donne: le donne-fiore e le donne-verdura. Le donne fiore sono quelle belle, profumate, quelle che ti fanno fare bella figura in ogni occasione, della serie ‘dove le metti stanno’. Le donne-verdura sono invece quelle donne che dall'esterno non appaiono bellissime, ma hanno un sapore buonissimo. Ce ne sono di vario tipo: c'è la donna ravanello che è quella che si fa l'henné in casa, le donne sedano sempre spettinate, le donne patate americane, che gli fai i buchetti e fanno i germogli. Ebbene, la differenza è proprio qui: quando invecchiano, le donne-fiore appassiscono, perdono colori, profumi e fanno le ‘farfalline’. Le donne verdura invece le riutilizzi, le metti sott'olio, sotto sale, le secchi e le sbricioli sulla pasta... E' un po' la nostra consolazione, quella delle donne che non sono proprio bellissime.8

5 Roberta Corradin é jornalista, escritora, tradutora e crítica culinária italiana. 6 Disponível em: <http://www.deejay.it/dj/personaggio?idPersonaggio=32> Acesso em: 20 nov. 2007. 7 Disponível em: <http://it.wikipedia.org/wiki/Luciana_Littizzetto#_note-2> Acesso em: 20 nov. 2007. 8 Disponível em: <http://interviste.intrage/it?littizzetto> Acesso em: 20 nov. 2007.

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As mulheres-verduras são, portanto, a imensa e esmagadora maioria das mulheres

comuns, não belíssimas, não supermodelos, não presas à ilusão narcísica de que basta ser bela

para tudo ter, motivo de admiração e endeusamento por todos os homens e de admiração e inveja

por todas as outras mulheres, dentro da sociedade do espetáculo; as mulheres-verduras, não

podendo apaixonar-se à primeira vista por si mesmas, devem necessariamente darsi da fare ou

fazer por si mesmas, desembrulhando-se com que armas puderem contar, para sobreviver nesta

sociedade de consumo espetaculosa que vive aos pés das “outras”, que elas não podem ser.

É com esse espírito, ou com esta perspectiva, feminina, humorística, que os assuntos

da dupla, da mulher, das relações e da vida como um todo são tratados, discutidos, lamentados ou

festejados.

Há que se dizer que, desta perspectiva, a partir desse filtro, humorístico, cômico,

muitas vezes sarcástico, mais há o lamento ou a crítica, das coisas e do mundo, que o festejo.

São as mulheres-verduras que povoam as páginas da Trilogia, elas e seus haveres na

busca de um companheiro, no encontro com este, ou no desencontro. Mas também nas simples

lidas da vida, no encontro com amigos e amigas, do dia-a-dia, no ler o jornal ou ser notícia dele,

nos sobressaltos com as novidades da ciência, com as questões políticas, com os programas de

televisão, com as propagandas, com o consumismo. E ainda com as questões do corpo e sua

imagem, com o viver, comer e envelhecer. Enfim, o modus vivendi da mulher-verdura na

sociedade do espetáculo dos dias de hoje.

E a voz que nos conta essas peripécias, que olha, analisa, critica e ri, de si mesma e de

todas e todos, é esta personagem cômica, que vestiu tantas personagens no teatro, na televisão, no

rádio e se desdobra em vários tipos de mulher-verdura, olha para si mesma e para o seu mundo

em torno e, sem falsa piedade, vai delatando todas as risíveis e dolorosas indiossincrasias das

pessoas e do próprio mundo da atualidade.

Sola come un gambo di sedano constitui-se de 106 crônicas, La principessa sul

pisello, de 71 e Col cavolo, de 78.9 Nos títulos das crônicas e nos textos, a constante é sempre o

9 No anexo, encontram-se todos os títulos das crônicas dos três livros.

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jogo humorístico com as palavras. Há sempre um segundo, terceiro ou quarto sentido, escondido

e explicitado no texto que segue. Logicamente, existem imagens e piadas que são melhor

entendidas pelos italianos. Por vezes, uma crônica inteira depende de se conhecer ou não

determinado personagem, citado direta ou indiretamente no texto, mas algum sentido sempre se

constrói e o que varia então é o efeito da comicidade ou a intensidade do efeito cômico.

Este trabalho pretende analisar como tal efeito se arquiteta no texto da Trilogia e

como se mantém, mesmo distante do universo do espetáculo ou mediático, compartilhado pela

autora e leitores/espectadores italianos.

A autora, figura multimídia, performática, se apresenta também nos textos como

espetáculo, se impõe de uma forma determinada, caracteristicamente cômica, irônica e

irreverente. No entanto, o texto escrito que reflete a performance teatral ou televisiva, ou a

persona criada pela autora e atriz/comediante, tem autonomia com relação ao espetáculo,

sustenta-se como texto apenas e suficientemente. Para o leitor italiano, há um referencial fora

dele, no real, isto é, a figura pública, biográfica, que vêem e ouvem quase diariamente, no rádio,

na televisão, no cinema, no teatro, que podem até encontrar pela rua, no supermercado, no posto

de gasolina. Para todos os demais, não necessariamente.

No próprio texto, a autora se reporta ao fato de ter se tornado notória, conhecida e

reconhecida, e usa-o como instrumento e assunto na dialética do texto e na sua conformação.

Como começa Intro, a primeira crônica de Sola come un gambo di sedano:

Succede. E mi è successo. Dopo anni di sbattimenti, spettacoli nelle bettole e transmissioni invedibili (in tutti i sensi), le cose sono cambiate. Le persone giuste si sono accorte finalmente di me e adesso moltissimi apprezzano il mio talento. Da imbecile a genio. Ma io non mi sento affatto cambiata. Sarà che sono rimasta imbecille o sono sempre stata un genio? Tant’è.10

O início da Trilogia já põe claro a maneira como vai ser encarada, dentro do texto, a

vida espetacular, aquela não reservada para as mulheres-verduras. A autora se coloca no texto, se

anuncia narradora, e delata sua posição no mundo do espetáculo não sendo espetacular. O

sucesso não a transforma, apenas lhe oferece outro ponto de vista. É a mesma mulher-verdura,

apenas com novo tempero.

10 LITTIZZETTO, Luciana. Intro. Sola come un gambo di sedano. Milano: Mondadori, 2002. p. 7.

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A ironia e o risível da vida são trazidos para o texto e dialogam de maneira cômica e

humorística com a própria vida, com o leitor e com o próprio texto.

O cômico é o traço comum ao espetáculo e ao texto. Interessa pois estudar o modo

como ele é construído no texto e as conseqüências para o sentido da narrativa, pois a comicidade

não tem um fim em si mesma, pelo contrário, subverte o que está sendo dito.

Assim, no primeiro capítulo, estudarei a diferença entre humor e cômico, tal como

propõe Luigi Pirandello em L’umorismo (O humorismo). Para este autor, o humorismo tem uma

característica a mais que o cômico, qual seja, a capacidade de trazer em si mesmo o sentido do

contrário, e inspirar, com isso, uma reflexão. Ver uma cena cômica nos faz rir, ver o humorismo

nos traz o riso e a consciência do sentido oposto que é o trágico da vida ou da própria cena.11

Se pensarmos que, tradicionalmente, e falo da comédia antiga, aquela de Aristófanes,

e antes dele até, o cômico já se constituía como uma maneira de ensinamento para o homem

vulgar, uma forma de criticar o político para o povo, uma maneira até mesmo de se colocar

politicamente e criticar as autoridades em seus desmandos e tiranias sobre os menos

privilegiados, vemos que, já ali, havia no cômico tal idéia, de representar as coisas de certa forma

pelo seu contrário. No entanto, o objetivo maior era fazer rir, era distrair e divertir o público,

além de falar verdades e denunciar o estado das coisas. Mais a catarse que a reflexão. E de certa

forma, de modo desprovido do enlevado da arte, segundo Aristóteles12, justamente por utilizar-se

da imitação de homens de baixa índole, de ações ignóbeis, sendo compostas com vitupérios,

palavras de baixo calão, escatologias, não sendo assim recomendada para os homens de mais alta

estirpe e menos ainda para as mulheres, que, àquela época, mantinham-se restritas ao ambiente

doméstico, não sendo permitido às de mais alta posição social nem mesmo sair de casa para

realizar tarefas a céu aberto, desacompanhadas e à vista de todos.13

O que pensar da mulher que faz a comédia, e não só para mulheres, mas para o

anônimo e imenso público contemporâneo e consumidor de produções multimídias. Como se lê

em sua notícia biográfica num site da Internet: 11 PIRANDELLO, Luigi. L’umorismo. Milano: Mondadori, 1992. 12 “A comédia é, como dissemos, imitação de homens inferiores: não, todavia quanto a toda espécie de vícios, mas só quanto àquela parte do torpe que é o ridículo. O ridículo é apenas certo defeito, torpeza anódina e inocente; que bem o demonstra, por exemplo, a máscara cômica, que, sendo feia e disforme, não tem [expressão de] dor”. ARISTÓTELES. Poética: a poética clássica. v. 22. São Paulo: Cultrix, 1997. 13 LIMA, Maria de Fátima de Souza. Políticos e mulheres na comédia grega. Conferência proferida na Faculdade de Letras do Porto, em 12 de março de 1986.

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Una delle spinte fondamentali che la animano, fra l'altro, è quella di sfatare il mito secondo cui le donne sono costituzionalmente poco in grado di far ridere o infelici nell'usare l'arma del doppio senso, solitamente riservata ai soli uomini. Con una buona dose di coraggio e di bravura, la comica torinese dimostrerà che non è così, spesso anche calcando appositamente la mano su certe tematiche, trattate sempre con gran senso del grottesco e del surreale.14

No mundo atual, globalizado, capitalizado, distante, de todas as maneiras, da antiga

pólis grega, já não há mais, oficialmente, uma divisão abissal entre o mundo feminino e o

masculino. As mulheres estão em toda parte, em todas as profissões, teoricamente em condições

de igualdade. No entanto, o machismo ainda é um constructo de extrema força nas diversas

sociedades ditas culturais, e dentro das pessoas ainda persiste a idéia de que algumas profissões

ou atribuições são mais adequadas a este ou aquele sexo. Assim, mantém-se certo “preconceito”

de que as mulheres seriam menos adaptadas e aptas para este gênero, isto pensando-se não apenas

na capacidade de lidar com formas menos finas, ou educadas, de se expressar, como ainda na

capacidade de usar sua delicada inteligência no jogo de palavras necessário para produzir o efeito

cômico ou humorístico.

Pretende-se, desse modo, analisar e questionar como o riso, o cômico e o humorismo

se constroem na narrativa, fazendo ver a diferença de visão do feminino refletindo sobre si

mesmo, rindo de si mesmo. Olhar o mundo feminino revelado pela voz feminina para o mundo

totalizante e globalizado, dentro da sociedade do espetáculo, com a ruptura de estereótipos,

principalmente aquele do feminino domesticalizado. Olhar de perto a reflexão provocada pela

constatação do trágico inserido no cômico.

No segundo capítulo, analisarei algumas das crônicas que compõem a Trilogia,

mostrando que elementos de estilo, figuras de linguagem e vocabulário concorrem para a

construção do cômico nessa produção.

Mergulhando no próprio texto, pinçando fragmentos dentro da unidade da Trilogia,

pretende-se fazer um estudo mais aprofundado do porquê dos textos se sustentarem por si só, sem

o espetáculo, ou seja, fazer uma análise textual: as figuras de linguagem, os jogos com palavras,

metáforas, metonímias, imagens, trocadilhos e símiles… como tudo isso constitui o texto e se

14 Disponível em: <http://biografie.leonardo.it/biografia.htm?BioID=324&biografia=Luciana+Littizzetto> Acesso em: 20 nov. 2007.

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constitui dentro deste como “start” para uma reflexão sobre a questão humana e filosófica do ser

e do nada. Como, nos jogos de linguagem, no trabalho com a mesma, o feminino, o riso, a

comida, o universo da mulher – aqui revelado por uma voz feminina de certa forma emancipada e

adonada de sua força cômica e humorística – se revela ao mundo e revela uma nova ótica.

A tentativa será dar um caráter lúdico ao questionamento do texto, o qual se coloca

como uma forma divertida de tratar da vida e suas questões.

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CAPÍTULO I

Não há nada que um humor inteligente não possa

resolver com uma gargalhada, nem mesmo o Nada.15

O ser humano tem duas características que o diferenciam dos outros animais: é o único que sabe que vai morrer e que ri. Será que o riso não existe exatamente para consolá-lo dessa amarga tristeza?16

15 PETITJEAN, Armand. Imagination et réalisation, apud MINOIS, George. História do riso e do escárnio. Tradução de Maria Elena Ortiz Assumpção. São Paulo: Ed. UNESP, 2003. Orelha da capa. 16 MINOIS, op. cit., orelha da capa.

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A primeira crônica do segundo livro, cuja capa e foto da contracapa estão aqui

reproduzidas, tem o título de Le finte felici (As falsas felizes) e começa com o seguinte parágrafo:

E vissero tutti felici e contenti. Vorrei scrivere una storia che parta così. E che magari finisca anche, così.Una storia dove non succeda nulla. Che stia bloccata sul tasto pausa. Dove tutti vivano quieti, senza crucci e senza impicci. E invece passiamo giorni che iniziano con ‘ma crepassi’ e si concludono con ‘allora crepa’. Giornate che finisci per sentirti a pezzi, segata in quattro come nel famoso numero di Silvan.17

É uma crônica que aborda a condição feminina no mundo atual, mas a condição

humana também, ou desumana, do ponto de vista da autora. O texto fala de modo irreverente da

impossibilidade de se viver um conto de fadas de final feliz na sociedade moderna. Possibilidade

essa que, se nos reportarmos à história, nunca existiu, mas continua sempre sendo buscada ou

decantada na crônica hodierna, na sociedade do espetáculo, no mundo capitalista selvagem, onde

tudo se resume ou se transforma em mercadoria e tem seu valor reduzido às leis de mercado e

aviltado pela quimera do dinheiro, pela banalização dos valores e sentimentos. E principalmente

na literatura de massa produzida para mulheres desde sempre.

O título do livro, antes, já começa o jogo das palavras e das idéias, uma vez que faz

referência a um conto de fadas chamado A princesa e a ervilha e conta a história de uma princesa

de um reino desconhecido, que chega ao reino do seu príncipe encantado e é testada na sua

origem nobre, pela rainha mãe, com um estratagema de exagero. É colocada para dormir em uma

cama com doze colchões supermacios feitos com as penas mais perfeitas dos mais nobres gansos

do reino, e embaixo dos doze colchões é deixada propositadamente uma ervilha. Quando, no dia

seguinte, a princesa se apresenta à mesa para o café-da-manhã, a rainha lhe pergunta se teve uma

boa noite. E a princesa, com profundo respeito e temor, lhe diz insegura que, infelizmente, não

pode conciliar o sono, pois, certamente, por descuido, devem ter deixado uma enorme pedra

embaixo do colchão que a perturbou e fez sofrer toda a noite. Diante dessa demonstração de

intensa sensibilidade e delicadeza, a rainha mãe se rende à constatação de que somente uma

criatura de extrema nobreza e habituada ao extremo conforto teria tal percepção e concede no

casamento.

17 LITTIZZETTO, Luciana. Le finte felice. La principessa sul pisello. Milano: Mondadori, 2002. p. 7.

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O próprio conto se prestaria a uma análise crítica e sem dúvida demonstra uma visão

irônica e sarcástica da questão da nobreza ou das questões de classe e gênero já na época de sua

concepção, pelo menos visto à luz de nossa interpretação atual. Junte-se a isso o trocadilho que se

impõe ao conhecedor da língua italiana. Piselo é o nome dado na gíria popular ao órgão sexual

masculino, donde La principesa sul piselo (literalmente, A princesa sobre a ervilha), guarda um

sentido engraçado e malicioso.

E então a primeira crônica vem falar dessa relação entre o conto de fadas e o faz-de-

conta que nos impomos nos dias de hoje para nos relacionarmos com os outros, com o mundo e

com nós mesmas. Fala do desejo que temos de criar ilusões para fugirmos da coisificação que

sofremos e das dificuldades com que esbarramos a cada patética tentativa. Ela desconstrói o

conto e a ilusão e nos joga, rindo, na reflexão dolorosa da nossa realidade atual.

Aí e dessa forma se constrói seu humor, como aquele didatizado por Pirandello.

Caratteristiche pìu comuni, e però più generalmente osservate, sono la ‘contraddizione’ fondamentale, a cui si suol dare per causa principale il disaccordo che il sentimento e la meditazione scoprono o fra la vita reale e l’ideale umano o fra le nostre aspirazioni e le nostre debolezze e miserie, e per principale effetto quella tal perplessità tra il pianto e il riso; poi lo scetticismo, di cui si colora ogni osservazione, ogni pittura umorística, e in fine il suo procedere minuziosamente e anche maliziosamente analítico.18 Falando de como se constrói o efeito humorístico, Pirandello nos diz que ele decorre

justamente do fato de mostrar uma imagem (cena ou situação), a um primeiro olhar engraçada,

que, no entanto, provoca imediata reflexão pelo sentimento do seu contrário, como no trecho

citado, entre a vida real e o ideal humano ou entre nossas aspirações e nossas fraquezas e

misérias. A contradição está posta, não de uma forma explícita, mas no jogo de palavras ou

imagens com que se engendra o texto.

Mais adiante esclarece:

Nella concezione di ogni opera umoristica, la riflessione non si nasconde, non resta invisibile, non resta cioè quasi una forma del sentimento, quasi uno specchio in cui il sentimento si rimira, ma gli si pone innanzi, da giudice; lo analizza spassionandosene; ne scompone l’immagine; da questa analisi però, da questa scomposizione, un altro sentimento sorge o

18 PIRANDELLO, op. cit., p. 121.

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spira: quello che potrebbe chiamarsi, e che io difatti chiamo il sentimento del contrario [grifo meu].19 Quando começa a crônica dizendo que gostaria de ser capaz de escrever, nos dias de

hoje, uma história como um conto de fadas, a autora já coloca em evidência, a começar pelo

título, a impossibilidade de tal, e continua a mostrar evidenciando que a situação atual é em tudo

oposta àquela do conto de fadas, do final feliz, diz mesmo que ao invés da história, que começa

feliz e continua feliz, vivemos dias em que se começa desejando a morte e se termina sentindo-se

mais que morta, numa total incapacidade de se manter qualquer ilusão de sonho.

Muitas partes da estudada trilogia compõem imagens de situações, que nos provocam

esse riso divertido, mas não desprovido de uma tristeza causada pela reflexão do exato

sentimento contrário. O leitor se identifica com a situação e a personagem exposta e se empatiza

com ela e com o seu sentimento. O leitor se reconhece e daí surge uma enorme simpatia,

juntamente uma dor da conscientização da miséria ali retratada.

*

A Itália é um país europeu de pequena extensão territorial, ao visualizarmos o mapa-

múndi, se nos aparece como um pequeno apêndice em forma estilizada de bota, quase saindo e

abandonando o “velho continente”, mergulhada no Mar Mediterrâneo, mantendo vizinhança

bastante próxima com a Grécia e a África.

19 Ibidem, p. 125-26.

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É, no entanto, um país de grandiosa e extrema extensão cultural e literária. Não

somente foi o berço do grande Império Romano, como guardou e nutriu em seus espaços, na

Antiguidade, as raízes e confins do Mundo Helênico.

Foi e é o berço de todo o mundo latino, por assim dizer. É também um país

historicamente repleto de contradições. Um dos últimos a se unificar politicamente como nação

dentro da Europa. Em questões de língua, guarda ainda hoje extrema diversidade, embora se

considere a terra mãe da língua latina vinda diretamente do tronco principal: o Latim Clássico,

(na verdade, o Latim Vulgare foi a língua que Dante usou para publicar a sua obra).

Abriga em seu âmago o Vaticano, centro de poder religioso-político de extrema força,

antiga e atual; e em suas bordas e confins mantém tradições telúricas e pagãs sobreviventes da

antiguidade clássica e conservadas nos costumes e dialetos diversos, falados nas diferentes

regiões.

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Popularmente, fala-se do machismo do homem latino, ao mesmo tempo em que se

conhece e ironiza a força matriarcal reinante por toda a Itália. Quem nunca ouviu falar do poder

da “mamma italiana”?

Natural que, sendo assim, apresente-se como o cadinho ideal para o desenvolvimento

de inúmeras experiências alquímicas na área do pensamento. Toda essa tradição e culturas por

vezes antagônicas, aliadas às forças político-religiosas de repressão e contenção, dadas até pela

extensão territorial e situação histórico-geográfica, deram origem a fantásticos movimentos

culturais. Não há mesmo como pensar a nossa cultura hoje sem pensar no Renascimento italiano,

por exemplo.

É também de longa duração e extensão a tradição do cômico na literatura italiana.

Já em sua Poética, Aristóteles faz referimento aos primórdios da comédia, indicando

como pátria de seus autores, ainda que de desconhecido nome, o sul da Itália.20 E nos diz Nino

Borsellino, no prefácio de seu livro La tradizione del comico: L’eros l’osceno la beffa nella

letteratura italiana da Dante a Belli (A tradição do cômico: o amor, o obsceno, a burla, na

literatura italiana de Dante a Belli): “Più che una astratta nozione teorica, i saggi qui raccolti

fanno riferimento a una pratica letteraria e teatrale che ha fondato e sviluppato, in Italia più che

altrove, un’originale e fervida tradizione del cômico”.21

Basta pensarmos nos inúmeros personagens conhecidos hoje que tiveram seu

nascimento e criação na Comedia dell’Arte italiana e sobrevivem transvestidos em cores e moldes

modernos, seja como figuras carnavalescas ou personagens de novelas de sucesso em nossa mídia

televisiva.

Mas ele também nos diz, no início do primeiro capítulo do mesmo livro, que Vitalino

Brancati denunciava um persistente medo do cômico “como de um poder diabólico”, e afirma:

È certo comunque che oggi il rapporto del comico col tragico appare invertito, non solo nella letteratura ma anche nella vita, pur se si riaffacciano periodicamente nello scenario pubblico della società dei simulacri e della comunicazione di massa spettacolari petizioni in favore di ideali eroici e tragici di ritorno. Da oltre un secolo nella letteratura anche chi ha nutrito l’ambizione più alta di ricostituire il legame tra coscienza e destino – col proposito a volte

20 “Não se sabe quem introduziu máscaras, prólogos, números de atores e semelhantes particularidades; o compor fábulas é de Epicarmo e Fórmis. O começo foi na Sicília”. ARISTÓTELES, op. cit., p. 24. 21 BORSELLINO, Nino. La tradizione del comico: l’eros l’osceno la beffa nella letteratura italiana da Dante a Belli. Milano: Garzanti Editore s.p.a., 1989.

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vistosamente inattuale di rimettere in discussione quella drammatica circostanza che fino a ieri si chiamava condizione umana – ha dovuto affrontare il rischio di trasformare il tragico in un’infrazione comica, dando una forma inedita alla tragedia rispetto al suo statuto di commemorazione rituale di un evento extraumano, divino all’origine.22

Parece-nos que seja exatamente este o caso de que trata o presente estudo, seja em

seus aspectos cômicos ou humorísticos, como vimos nas observações de Pirandello. Não que

tente nossa mulher-verdura abordar a tragédia humana transformando-a sem querer numa

“infração cômica”, mas sim que, consciente da atual condição tragicômica da humanidade na

sociedade dos simulacros e da comunicação de massa espetacular, põe esta em evidência, nos faz

rir e economiza energia, na trágica reflexão.

Ou seja, dentro da dinâmica de extrema velocidade do mundo atual, no qual já não se

tem tempo e condições de muito pensar, falando de maneira geral, da massa populacional, a

autora emprega a forma mais simples e descomplicada, do ponto de vista de quem lê, de provocar

a reflexão, através do curto-circuito do riso, trabalhando com o cômico, irônico ou humorístico

das situações e imagens.

La condizione comica, comunque antieroica, propria del personaggio moderno (come del resto del poeta moderno, albatros catturato e trivializzato), è sentita e compatita, non più percepita e derisa. E sentimento e compassione stanno alla base della poetica più consciente della dissociazione del personaggio rispetto ai valori morali convenzionali e ai risultati più conclamati della scienza: la poetica dell’Umorismo, il testo in cui Pirandello rimette in discussione il rapporto romantico tra comico e tragico. Sentimenti e compassione blocanno inoltre l’effetto nullificante del riso ed esorcizzano quella demonizzazione del reale che già Baudelaire individuava, e paventava, dentro il comico.23

É a mulher-verdura, na Trilogia, esse personagem anti-heróico por excelência, que

nos desperta simpatia e compaixão, ao mesmo tempo, intensa identificação e nos provoca, além

da catarse do riso, pelo cômico ou irônico que mete em evidência em suas peripécias na vida

comum, a reflexão desta mesma condição totalmente anti-heróica e por demais humana pelo

humor com que é tratada. 22 V. Brancati Il comico nei regimi totalitari (1954), e i precedenti Appunti sul comico (1952), in Il borghese e l’immensità. Scritti 1930-1954, a cura di S. De Feo e G. A. Cibotto, Milano 1937, pp. 376-81, apud BORSELLINO, op. cit. 23 Le rire est satanique, il est donc profondémente humain. – Ch Baudelaire, De l’essence du rire et généralement du comique dans les arts plastiques (1855) in Euvres, a cura di Y.-G. Le Dantec, II. Curiosités esthétiques, Paris, 1932, p. 171, apud BORSELLINO, op. cit., p. 13.

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E provavelmente aí se deva encontrar o mecanismo pelo qual o texto se torna

independente do espetáculo e se sustenta por si só. Ganha, na verdade, uma força que ultrapassa

barreiras de nacionalidade, especificidades de sexo e gênero e agrada a todos os tipos de leitores,

dentro e fora do país de origem, fazendo um sucesso imenso de vendas.

ll comico, quando non assume una maschera che cancelli ovvero renda iperbolici i segni di riconoscimento locali, quando non si traduca in puro significante scenico (lazzi, gags mimiche, clownerie), è più legato alla particolarità del costume e più ancora della lingua, ed è quindi suscettibile di perdere la sua efficacia nel tempo e nello spazio: è inesportabile, come dice Eco.24

Em algumas das crônicas da Trilogia, são citados personagens e situações que

realmente requerem certo conhecimento local e específico, ainda assim, a crônica como um todo,

o efeito cômico ou humorístico sobrepõe-se, permitindo extrapolações e determinado

reconhecimento do leitor qual seja, e em que país esteja, fazendo sobrestar, ainda que em menor

intensidade, o efeito do riso e reflexão intencionados.

Como tratam de assuntos gerais, questões relacionadas com o cotidiano, o universo

feminino, o universo do casal, o universo circundante, com questões da atualidade globalizada,

das mais gerais às mais absolutas minúcias da vida comum, encontram sempre algum ponto de

apoio no senso comum, ou em alguma semelhança extraterritorial que sustenta o reconhecimento.

Non sappiamo quando gli uomini abbiano scoperto il comico. Se ridevano nel loro stato felice, quel riso manifestava un’innocenza e una concordia imperturbate, al riparo da ogni sorpresa. La differanza tra comico e riso è messa in evidenza da questo scarto tra malizia e innocenza, ed è in questo senso esemplificata dalla Divina Commedia, dove il comico invade l’inferno e il riso pervade il paradiso (lasciando al purgatorio la libertà di un gioco allusivo alla materialità del primo e alla spiritualità dell’altro). Altra volta quel riso innocente si rinnova quando l’adulto pargoleggia col bambino. E infatti, se regrediamo a una condizione infantile, il tempo produttivo s’interrompe e il riso rivela di nuovo uno stato di concordia, senza disparità di livelli. Ma è una concordia già eccitata, non più quieta, come in una festa.25

Seja falando de acontecimentos reais, comentando o lançamento deste ou daquele

artigo de uso íntimo, de alimentação, de meio de transporte, de questões prosaicas, de situações

triviais e ridículas por vezes, no jogo de palavras, nas ironias postas, no uso das figuras de

24 BORSELLINO, op. cit., p. 19. 25 Ibidem, p. 20

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linguagem ou apenas pela mistura dos campos semânticos das palavras escolhidas, fazendo surgir

um sentido inusitado no texto, a autora nos joga e entra no jogo de liberdade entre a materialidade

do cômico e a espiritualidade do riso. E inferno e paraíso mergulham no purgatório do dia-a-dia

moderno, no qual muitas vezes deixamos de saber se somos personagens de comédias de mau

gosto ou dramas trágicos, e só nos resta rir da confusão criada em torno de nossa ilusão de vida.

Como o faz em outra crônica deste mesmo segundo volume da Trilogia, Utero a equo

canone (Útero a preço módico), no qual comenta a notícia da criação de um útero artificial,

trazendo logicamente a tiracolo a questão da reprodução assistida, útero ou barriga de aluguel, e a

discussão ética suscitada desde o início dos estudos e trabalhos sobre manipulação genética de

embriões.

Certe volte me va di traverso la vita. Come un sorso di aranciata che sbaglia percorso. Allora guardo in alto, il cielo, alla ricerca di un uccellino, un passerotto, un piccione striminzito in bilico su una grondaia. Sto a testa in su per un po’ e poi mi passa tutto. Questa volta non c’è verso. L’ultimo strangolamento risale alla notizia dell’utero artificiale. Ma la smettiamo o no? Vogliamo lasciare ‘sto utero dov’è? Qui qualcuno ha fatto un po’ di confusione. È il cuore che è uno zingaro e va. Non l’utero. L’utero non è nomade, è un organo stanziale, un bougia nen. Abbiamo cominciato dandolo in prestito. Pensa te. Io non presto i libri, figuriamoci l’utero?26

Vai, pela ironia decompondo a questão maior e nevrálgica, que alguém já chamou de

“o mal-estar na procriação”, parafraseando Freud, falando exatamente deste mal-estar causado

pela banalização do assunto, até então de certa forma sagrado e deixado nas mãos de Deus ou do

destino. Não, os homens tragicamente abandonaram as garras do destino e meteram as suas em

todas as coisas antes intocadas. A ponto de se cogitar a criação de um útero artificial. Notícia

essa, que uma mulher, por mais que tente, não consegue engolir. Critica a questão da “barriga de

aluguel”, comparando o empréstimo desse órgão vital à reprodução da espécie humana, com o

empréstimo de livros (vitais à reprodução do saber desta mesma espécie), e faz um jogo irônico e

cômico, que finaliza humorístico, cotejando o aluguel do útero ao aluguel ou mercado de aluguéis

imobiliários. Compara ainda o uso do útero artificial com a experiência infantil de se fazer brotar

o feijão num copo sobre um leito de algodão úmido. Banaliza ao máximo dizendo que, conforme

o poder aquisitivo, se produzirão úteros de marca e design assinado ou um modelo popular.

26 LITTIZZETTO, Luciana. Utero a equo canone. La principessa..., op. cit., p. 29.

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Termina dizendo que, depois disso tudo resolvido, apenas faltará resolver o problema da

desocupação das cegonhas.

Ou seja, através de comparações risíveis discute toda a ética implicada na reprodução

assistida, irresoluta e incomodativa pela falta de precedentes na história da humanidade e nos

joga rindo nesta reflexão, como ela mesma diz, doída de engolir e que nos fica atravessada na

garganta, necessitando de uma boa gargalhada para desopilá-la.

Faz isso tudo, com extrema perspicácia, sagacidade e graça. Ainda com uma

agilidade incrível. Duas páginas de fonte grande a serem lidas num intervalo de um cafezinho, na

espera da partida ou da chegada de um trem ou ônibus. Cinco minutos para a reflexão de uma

questão crucial da medicina, da ética e da vida moderna. Para nos darmos conta de que a

banalização da vida chegou mais que ao âmago da própria, mas até ao órgão de sua geração.

E é ainda Nino Borsellino que nos diz na parte final do segundo capítulo de seu livro,

já várias vezes citado:

Ma è poi vero che neppure il comico formalizzato è una costellazione fissa; è anch’esso una galassia dai confini dilatabili. E non è un genere, ma abita nei tre generi classici: l’epico, il lirico e il drammatico, e li degrada (il che non vuol dire che ne riduce il quoziente estetico). Le forme di queste degradazione portano vari nomi: parodia, ironia, mimo, beffa, umorismo, satira; il tempo le modifica e ne caratterizza il contenuto ludico fino ad espanderlo nel tragico. La storia del comico è appunto una vicenda di modificazione; e forse più d’ogni altra la letteratura italiana ce ne dà il grafico sensibilissimo delle oscillazioni, sin dalle origini.27 Assim todos os assuntos e os gêneros e a própria vida, ao serem tratados com

humorismo e comicidade, a partir de um ponto de vista de uma mente arguta, sensível,

observadora e ágil, tornam-se material plástico e explosivo no sentido de promoverem um

profundo impacto, não de desagradável sensação, mas de intensa força reflexiva naquele que lê o

texto e se apaixona por ele.

27 BORSELLINO, op. cit., p. 19.

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CAPÍTULO II

Per far durare una coppia bisogna mordere l’aglio e dire che è dolce.

Il riso e le lacrime non possono farsi vedere nel paradiso delle delizie, raccontava Baudelaire dopo aver affermato che il riso umano è intimamente legato all’incidente di una caduta antica, d’una degradazione fisica e morale. Ma è vero che su Adamo ed Eva incombeva un destino tragico; ed e impensabile che cedendo alla tentazione essi si mettessero a ridere.28

28 BORSELLINO, op. cit., p. 20.

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Como dito anteriormente, a Trilogia da Verdura é um conjunto de crônicas que trata

da vida moderna, dos fatos que nela sucedem, tendo como protagonistas principais as mulheres-

verduras em suas mais variadas formas e manifestações, se havendo com todos os tipos de

questões das mais nobres e filosóficas às mais triviais e por vezes ridículas. Tudo tratado pela

autora/narradora/personagem principal, e mulher-verdura assumida, com humor, comicidade e

ironia, dando ao texto uma hilariante leveza.

Olhar mais de perto e analisar como se dá o efeito cômico no próprio texto é o

objetivo deste capítulo.

Não se pretende aqui analisar detalhadamente todas as crônicas, mas pinçar uma ou

outra e nela buscar os elementos demonstrativos de como esse efeito do riso surge como

resultado do jogo e trabalho com as palavras e imagens.

Brutta fuori (dentro chissenefrega) (Feia fora – dentro quem se importa) Reduce dai bagordi televisivi, mi corre l’obbligo di farvi partecipi di alcune deboli (come peraltro mi si confà) riflessioni. Number one. Perchè i nostri maschi si dimostrano implacabili nel giudicare le belle donne pubbliche pur dividendo spesso la vita con esemplari di femmine dallo charme e dall’avvenenza assai discutibili? ‘La Casta? Ma dài? Bella quella lì? Ma ti prego! Ci ha tutti i denti storti!’Amoreee… a me lo dici, che a quaranta anni tengo ancora l’apparecchio di notte perchè ci ho i canini al posto degli incisive e un surplus impressionante di denti del giudizio? Ma se la Marini per te è obesa, la Falchi è troppo finta e la Schiffer è racchia, spiegami com’ è possibili che a me tu rivolga anche solo la parola! Number two. Le belle donne. Quando vengono intervistate non fanno che ripetere la stessa tiritera: ‘Quello che più mi fa soffrire è che gli uomini si fermino solo all’aspetto esteriore e non cerchino di vedere come siamo fatte dentro’. Ecco. A parte il fatto che, invece, in qualche modo che non sto qui a raccontare, ‘sto dentro non vedrebbero l’ora di perlustrarlo, care bellone, tranquilizzatevi! Non è che per noi, che siamo così così, la solfa sia tanto diversa. Vi posso assicurare che nessuno ci salta addosso per vedere come siamo fatte dentro visto che di fuori lasciamo quell tantino a desiderare! Number three. Quando un giornalista chiede a una bella donna quali siano i suoi difetti è assolutamente certo che lei rispondirà elencando pregi. Tipo: ‘Sono molto sensibile’oppure: ‘Ho il difetto di essere troppo generosa’. Ma senti un po’ orgoglio dei manicomi…quelli sono pregi, non difetti! Perchè non racconti che sei scorbutica come una cocorita, ignorante come una capra e con un cervello elastico quanto un cicles masticato da ore? Sarà come dice Gaber: ‘Ognuno ha l’infinito che si merita’.29

29 LITTIZZETTO, Luciana. Brutta fuori (dentro chissenefrega). Sola come..., op. cit., p. 25-26.

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A discussão da beleza, a mulher-verdura com a sua impressão sobre a impressão e o

comportamento dos homens em geral, em relação às mulheres-flores ou aquelas da vida

espetacular e sobre estas mulheres e seu comportamento na vida espetacular.

Começa no título a ironia. Mulher feia por fora, a quem importa como é por dentro. E

nos diz no primeiro parágrafo: “recuperada dos crápulas televisivos, me sinto obrigada a

participar algumas débeis (como aliás me condiz) reflexões”.30

É a mulher-verdura usando suas armas de utilidade, no caso a ironia, para antepor à

beleza que lhe falta, alguma virtude: a capacidade de pensar sobre o comportamento espetaculoso

e a certa injustiça ou hipocrisia que reina em torno dos valores no meio televisivo e na sociedade

do espetáculo como um todo.

E enumera:

Número um. Porque os nossos homens são implacáveis em julgar as belas mulheres públicas embora dividindo freqüentemente a vida com exemplares femininos de charme e atração extremamente discutíveis? A Casta? Para! Bela aquela ali? Pelo amor de Deus! Tem os dentes todos tortos! Amoooor… diz isso para mim, que aos quarenta anos uso ainda aparelho à noite porque tenho os caninos no lugar dos incisivos e um excesso impressionante de dentes do ciso? Se para ti a Marini é obesa, a Falchi é muito falsa e a Schiffer é uma sem graça me explica como é possível que te dignes minimamente a falar comigo!31 Expõe indignada a hipocrisia e a fragilidade da escala de valores usada na sociedade

das aparências, onde até o homem que convive com ela – mulher-verdura, não bela pelos padrões

do estereótipo – critica invejosamente a beleza inalcançável das mulheres-espetáculo, como a

querer destruir aquilo que não pode ter. Compara-se por antítese com a mulher criticada e,

fazendo inclusive um jogo com os nomes e os defeitos imputados às belas e famosas, denuncia a

incoerência de julgamento dele, que a ofende, na sua consciência de menos que bela.

Número dois. As mulheres belas. Quando entrevistadas, não fazem outra coisa que repetir o mesmo discurso: ‘Aquilo que mais me faz sofrer é que os homens se prendam apenas no aspecto exterior e não procurem ver como somos feitas por dentro’. Pronto. A parte o fato que, pelo contrário, em uma maneira que não sou eu que vou te explicar, este dentro eles não vêem a hora de explorá-lo minuciosamente, queridas bonitonas, estejam tranqüilas. Não é que para nós, que somos mais ou menos, a música seja tão diferente. Posso lhes garantir que

30 Ibidem, p. 25. Em todas as citações, foi utilizada tradução livre. 31 Idem.

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ninguém nos ataca para ver como somos feitas por dentro uma vez que por fora deixamos um pouquinho a desejar.32

Continuando ironicamente, se dirige agora à falha de julgamento já assimilada pelas

mulheres bonitas que, de certa forma, se lamentam de serem vistas como belos objetos, numa

objeção bastante débil. Sarcasticamente faz um jogo com os sentidos do “dentro” metafórico a

que se prende o discurso estereotipado da beleza com o “dentro” concreto e malicioso, que seria

mais que desejado de ser conhecido pelos homens ao olharem para elas. Novamente se colocando

como antítese, persiste no jogo de palavras, dizendo justamente que não há nesse quesito

diferença entre as mulheres mais ou menos (para não dizer feias, utiliza o eufemismo, “deixamos

um pouquinho a desejar”) e as bonitas. Delata que na sociedade de aparências ninguém está

interessado no “dentro” maior, que teria conteúdo e profundidade mais amplos. Faz ainda o justo

lamento, ao contrário do supérfluo da bela, de que para as menos favorecidas na beleza é menor

ainda o interesse pelo que está dentro.

Numero três. Quando um jornalista pergunta a uma mulher bonita quais são os seus defeitos, é absolutamente certo que ela vai responder elencando virtudes. Tipo: ‘Sou muito sensível’ ou ainda: ‘Tenho o defeito de ser muito generosa’. Mas escuta aqui ô orgulho dos manicômios… estas são virtudes, não defeitos. Por que não contas que és desnutrida como uma maritaca, ignorante como uma cabra e tens um cérebro tão elástico quanto um chiclete mastigado horas. É como diz Gaber: ‘Cada um tem o infinito que merece’.33

Na reflexão final, o golpe de graça da mulher-verdura, que antepõe à beleza ou à

virtude gratuita o engenho e a arte. As belas não primam pela inteligência. A mulher coisificada,

objeto, fica melhor de boca fechada. Quando abre a boca demonstra um total desconhecimento

dos valores perenes. O parágrafo final, citação de uma frase de um cantor de rock e ator italiano,

fecha a reflexão total da crônica: “cada um tem o infinito que merece”. O da beleza, já se sabe,

não dura muito. É raso e curto como as virtudes que se tornam defeitos quando mal citadas.

A crônica se utiliza no todo dos estereótipos da mulher que é bela e burra em

contraposição à feia e inteligente. A argumentação da mulher-verdura, as suas reflexões sobre a,

de certa forma injusta, facilidade que têm na sociedade do espetáculo as mulheres belas e, ao

32 Idem. 33 Ibidem, p. 26.

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mesmo tempo, o reconhecimento de que nem isso basta para se ter tudo, é engraçada e provoca o

riso espontâneo e imediato. Mas esse é um riso histriônico, no sentido de humor de que nos fala

Pirandello, trazendo embutido o sentido do contrário, da triste realidade que é a dos valores

esvaziados, do simulacro avassalando a ilusão da possibilidade da felicidade de conto de fadas.

É uma crônica do Sola come un gambo di sedano, o primeiro livro da Trilogia, que

fala das mulheres em busca de um companheiro e nas dificuldades de encontrarem este e, à

tiracolo, o amor e a felicidade.

Outra crônica do mesmo volume que fala da mesma tristeza, do destino trágico das

mulheres nessa busca inglória, é:

Donne all’Opera (Mulheres na Ópera) É più forte di me. Devo assolutamente prendere provedimenti. Non posso andare tutte le volte all’opera e, pur sapendo che finirà in tragedia, aspettare l’happy end. Sarà che ho un innato senso del lieto fine, io che ancora mi dispero rivedendo la scena del cacciatore che spara alla mamma di Bambi. É che ‘ste eroine romantiche son tutte delle deliziose sfigate senza scampo, sensa cugnisiun [senza buon senso]. Il brutto è che lo capisci da subito. Norma si fa alla brace, Butterfly si affetta con un pugnale, Tosca si schianta da un parapetto, Lucia di Lammermoor tira l’ala battendo i coperchi e Aida si seppelisce viva nella tomba di Radames. Per non parlare de Violetta e Mimì, due tisiche di gran classe. È vero che da una tragedia non ti puoi aspettare più di tanto, ma le donne crepano a tambur battente. Anche tu, Aida… lo sapevi da prima come erano fatti gli egizi: si mettono di profilo, ti guardono con l’occhietto sifulo e poi ti fregano. E quell’altra? Sì, ti chiamano Mimì, ma il tuo nome è Lucia… No, dolcezza, ti chiamo io cretina, con ‘ste mani ghiacciate come due stick all’anice.Svegliati! Fattele scaldare da qualcun altro, non da quel pezzente di Rodolfo che non ci ha neanche gli occhi per piangere e dipinge come un madonnaro di Alassio, E la Butterfly? Lei e il suo chignon? Pinkerton è uscito à prendere le sigarette e per tre anni non si è più fatto vivo. E tu lo aspetti? Sei scema? Cio-Cio-san? Ascolta me. Fatti sbatterflare da qualcun altro, vedi che fil di fumo. E poi Violletta. La vera, assoluta e grandissima eroina romantica. Naturalmente tisica. Si innamora de quel rintronato di Alfredo, libano belli ebeti dai loro calici, vanno pure a convivere… niente. Arriva Germont (che ci ha pure il nome di un camembert) a sfinire l’esistenza. E lei bella tisica, con i giorni che si contano sulle dita di una mano, rinuncia all’amore, rinuncia ad Alfredo, pura siccome un angelo ma idiota come una tinca. Hai un bel dire “Parigi o cara”: la penicilina non c’è e tu ci rimani, santa donna che sei. Io non capisco. Più che opere liriche mi sembrano puntate speciali di cronaca nera.34 O título avisa, as Mulheres na Ópera. Vai-se falar do melodrama, e inicia a crônica

dizendo:

34 LITTIZZETTO, Luciana. Donne all’Opera. Sola come..., op. cit., p. 89.

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É mais forte que eu. Devo absolutamente tomar providências, não posso toda a vez ir à opera e mesmo sabendo que acabará em tragédia, esperar o final feliz. Talvez tenha uma tendência nata para o final feliz, eu, que ainda me desespero revendo a cena do caçador que dispara matando a mãe de Bambi.35 Começa o jogo. Contrapõe duas formas de representação melodramática da vida.

Dois extremos, da vida. Com a diferença de que um tem final feliz, mas é escrito e representado

para crianças (fala de Bambi, um dos primeiros e mais famosos desenhos animados da Disney); o

outro termina sempre em tragédia, é composto e representado para adultos, é um drama lírico,

musical. Fala da imaturidade desta personagem que vai à ópera querendo que ela proporcione a

mesma satisfação e garantia de fé, na vida e no amor, que o desenho animado dá às crianças. E

vai à ópera sabendo que vai ver, ouvir e sentir exatamente o contrário: “É que essas heroínas

românticas são todas umas deliciosas azaradas sem jeito, sensa cugnisium [sem juízo]. E o pior é

que você logo vê”.36

A incoerência humana, de gostar de sofrer, de gostar de ver a dor do outro e achá-la

deliciosa. O prazer sádico de ver o belo da dor. Isso tudo provoca em quem lê um divertimento,

provoca o que Clément Rosset, em sua Lógica do pior (1971), caracteriza como o que seria o “o

riso exterminador” ou “riso trágico”, cuja principal fonte cômica é o desaparecimento, a

exterminação sem restos, a passagem gratuita do ser ao não-ser, que dá ao riso uma perspectiva

trágica, “porque a incongruência do desaparecimento revela tarde demais o caráter insólito do

aparecimento que o precedera: ou seja, o acaso de toda a existência”.37

Norma se joga nas brasas, Butterfly se trucida com um punhal, Tosca se espatifa de um parapeito, Lucia de Lammermoor enlouquece de bater tampa e Aída se enterra viva na tumba de Radamés. Pra não falar de Violeta e Mimì, duas tísicas da maior classe. É verdade que de uma tragédia não se pode esperar muito, mas as mulheres morrem a toque de caixa. Mesmo tu, Aída, já sabias como eram feitos os egípcios: se colocam de perfil, te observam de esguelha e depois te tapeiam. E aquela outra? Sim te chamam Mimì, mas teu nome é Lucia… Não, doçura, te chamo eu de cretina, com estas mãozinhas geladas como dois picolés de aniz. Acorda! Faz-te esquentar de qualquer um outro, não daquele pobretão do Rodolfo que não tem nem os olhos para chorar e pinta como um pintor de santinho de calçada de Alassio. E a Butterfly? Ela e seu coquezinho? Pinkerton saiu pra comprar cigarros e por três anos não deu sinal de vida. E tu a esperá-lo. Mas és estúpida? Ton-ton-san? Escuta-me. Faz-te esborboletear de outro, olha que fiozinho de fumaça. E depois, Violeta, a verdadeira, absoluta

35 Idem. 36 Idem. 37 Apud ALBERTI, Verena. O riso e o risível na história do pensamento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, Ed. FGV, 1999.

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e grandissíssima heroína romântica. Obviamente tísica. Se apaixona por aquele tonto do Alfredo, provam idiotizados de seus cálices, vão até morar juntos… nada. Chega Germont (que tem até o nome de um camembert) a amargar com a existência. E ela, bela tísica, com os dias contados nos dedos de uma mão só, renuncia ao amor, renuncia a Alfredo, pura como fosse um anjo mas idiota como uma sardinha. Tens uma bela frase ‘Paris oh cara’: a penicilina não existe e tu permaneces, santa mulher que és. Eu não entendo. Mais que óperas líricas, me parecem edições especiais de crônicas criminais.38

Elencando as heroínas das óperas mais famosas e mais dramáticas. Uma a uma

descreve sua morte, numa variedade macabra de escolhas. Todas morrem, uma de forma mais

trágica e violenta que a outra. “A toque de caixa”, como diz a narradora. Todas em nome de um

amor desmedido por um homem errado. Radamés é um Egípcio com uma obliqüidade posta na

sua escrita e arte, Rodolfo um pobretão incapaz, Pinkerton um safado que escapa sob um pretexto

lúrido, Alfredo um tonto, um idiota. As mulheres todas se imolam em nome de um amor

sublimemente vão.

E é logicamente engraçado pensar na incongruência desta mulher moderna, que vai à

ópera, na ilusão vazia de encontrar um modelo e uma mensagem de esperança para a sua busca

do amor e do companheiro. Se nas grandes obras já está posto que isso é impossível, que o único

fim é o desaparecimento trágico. E essa personagem confessa sua inaptidão, sua incapacidade de

entendimento e sentencia: “mais que óperas líricas me parecem episódios de crônica criminal”,

casos de polícia. O efeito cômico se dá, não pelo sentimento do contrário, o riso vem pela noção

do exagero e a contraposição do enlevo trágico com a desqualificação adjetiva das mulheres na

sua atitude dramática.

“Ver naufragar as naturezas trágicas e ainda poder rir, apesar da mais profunda

compreensão, da emoção e da compaixão, isto é divino” é uma frase de Nietzsche mencionada

várias vezes por Bataille em seus escritos sobre o riso, por sua vez citado em O riso e o risível na

história do pensamento, de Verena Alberti, que refere ainda do mesmo Bataille, em O limite do

útil, “o que traímos ao rir é o acordo (…) de nossa alegria com um movimento que nos destrói”, e

segue ela, “em última instância com a própria morte. Nesse caso, não é por rir da morte, e sim por

se confundir com a morte, que esse riso se torna inseparável de um sentimento trágico”.39

38 LITTIZZETTO, Donne all’Opera, op. cit., p. 89-90. 39 ALBERTI, op. cit., p. 22.

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É sem dúvida dentro desse mecanismo, o do riso trágico, que embarcamos levados

pela narrativa em questão e, assim, explorando esse universo, ou essa possibilidade de se

confundir com a morte, com a negação da possibilidade de vida, que o efeito cômico se produz.

Essas crônicas são do primeiro livro da Trilogia e falam claramente das agruras e

dificuldades da mulher solteira na procura de um amor ou de um companheiro para com ele viver

uma história de amor e felicidade. Quase como um D. Quixote, nos faz ver a falácia romântica

desconstruída na triste realidade da sociedade dos simulacros, em que o individualismo impera e

as pessoas já não crêem mais nem em si mesmas.

No segundo livro, a saga continua, a mulher persiste em sua busca que ademais não é

só dela, é de homens e mulheres, de todos e de todas. Mas, como nossa autora mesma diz em uma

entrevista, quando perguntada se existe uma comicidade no feminino: “claro, aquela feita pelas

mulheres”40, assim são as mulheres as protagonistas, as mulheres-verduras mais propriamente.

São elas que agem e sofrem e refletem as questões cotidianas do difícil estar no mundo.

Na primeira crônica, como citado no primeiro capítulo deste estudo, ela quebra a

expectativa do título do livro La principessa sul pisello (A princesa e a ervilha) de que se vai

falar de contos de fadas, e fala das “falsas felizes”, desconstruindo já de início a idéia de que,

uma vez encontrado o par tão procurado, possa-se viver “feliz para sempre”.

A segunda crônica segue na mesma esteira, e falando dos “noivos das outras” (I

Fidanzati delle altre) faz um jogo extremamente engraçado, desqualificando estes para consolar

aquelas que ainda não arranjaram ou encontraram o seu.

I Fidanzati delle altre (Os noivos das outras) In confidenza. Parlandovi proprio da imbecille a imbecille. Care Sheherazade che non avete ancora trovato una stracccio di sultano a cui raccontare uno straccio di storia che vi faccia passare la notte, non disperatevi. Smettete di affogarvi in cisterne di Fiori di Bach e datemi retta. Quando vi sentite sconfinatamente single, quando la malinconia di essere sole vi blocca il gozzo e non riuscite a mandar giù neanche un goccio di succo di frutta, fate così. Guardate i fidanzati o i mariti delle vostre amiche. Guardateli bene. E poi domandatevi se c’è ancora da piangere perché siete da sole. Pensate a Marcella che sta con un insetto da almeno vent’anni. O a Bea che ha un marito che fa il galante, la chiama ‘la mia signora’ ma da anni a tavola la costringe a rosicchiare il pane secco come i conigli. Certo, perché ‘il suo signore’ tutti i giorni le fa comprare il pane fresco, ma prima le fa mangiare quello vecchio, datosi che lui combatte la crociata contro gli sprechi.

40 LITTIZZETTO, Luciana. Corriere della Sera, Roma, 16 set. 2001. Disponível em: <http://www.melba.it/csf/articolo.asp?articolo=180> Acesso em: 20 nov. 2007.

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Pensate che cosa significa dividire il talamo con Ettore che russa come un trattore. Elvira, prima ha tentato di ovviare all’inconveniente mettendosi i tappi nelle orecchie, ma visti i risultati scadenti ha pensato di fare di più. Li ha infilati nel naso a lui. Prima l’uno e poi l’altro. Tragedia. Ettore dopo qualche secondo di apnea li ha sparati come proiettili terra-aria contro Fernet, il gatto di casa, che dallo spavento si è cacciato nel cesto della roba sporca e da giorni fa lo sciopero della fame e della sete. E pensate a Molly. Tanto brava e tanto sfortunata. Si è inamorata di un uomo-formaggino che fa il sarto e si chiama Orazio. Ma purtroppo è già scattato l’allarme… Pare che l’abbia sentito dire a un cliente, mentre gli prendeva le misure dei calzoni, questa frase inquietante: ‘Da che parte lo tiene il disturbo?’A Molly è partito un embolo che è ancora in circolazione adesso. Disturbo? In trenta-cinque anni di vita e in diciannove di attività abbastanza costante, per lei quella roba lì non è mai stata un disturbo. Tutt’altro. E dire che qualche dubbio l’aveva avuto. Già la prima notte d’amore Orazio le aveva confessato che lui considerava come preliminari guardare insieme al partner i dibattiti di ‘Porta a port’a tarda sera.41

A autora inicia a crônica já com um tom mais intimista, e embora se refira às

Sherazades, o deboche está explícito. Não se fala aqui de heroínas românticas de óperas famosas,

não se refere também às beldades televisivas do mundo do espetáculo. Mas se fala entre

“imbecis”, o adjetivo para a mulher-verdura que ainda sonha com um conto maravilhoso para

representar sua vida, ou sua futura vida a dois. Claramente, se está na vida comum e corriqueira

de hoje, no ambiente mais que doméstico daquelas mulheres que não foram agraciadas com, nem

mesmo, o simulacro de uma vida de princesa.

E o conselho dado é para pararem de buscar remédios milagrosos ou de se enganarem

que o encontro do par, simplesmente, signifique o final feliz de sua vida desencantada.

Confidencialmente. Falando mesmo de imbecil para imbecil. Caras Sherazades que ainda não encontraram um pedacinho de sultão a quem contar um pedacinho de história que as faça passar a noite, não se desesperem. Parem de se afogar em baldes de Florais de Bach e me escutem. Quando se sentirem desgraçadamente solteiras, quando a tristeza de estarem sozinhas lhes bloquear a garganta e não conseguirem mandar goela abaixo nem mesmo um gole de suco de fruta, façam o seguinte. Olhem os noivos ou os maridos de suas amigas. Olhem-nos bem. E depois se perguntem se ainda têm motivos para chorar por estarem sós.42

41 LITTIZZETTO, Luciana. I fidanzati delle altre. La principessa..., op. cit., p. 13-14. 42 Ibidem, p. 13.

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E parte com os antiexemplos ou anti-heróis com quem têm que se haver aquelas que

pensaram ter encontrado seu Príncipe Encantado. O marido da primeira não merece nem ser

nominado. É um inseto de vida longa, com quem Marcella está por mais de vinte anos.

Pensem na Marcella que tá com um inseto há quase vinte anos. Ou na Bea que tem um marido que faz o galanteador, chama-a de ‘minha senhora’ mas há anos que, na mesa, a obriga a roer pão seco como os coelhos. Sim, porque ‘o seu senhor’ todos os dias a faz comprar pão fresco, mas primeiro a faz comer o velho, uma vez que ele batalha na cruzada contra o desperdício. Pensem no que significa dividir o tálamo com Heitor que ronca como um trator. Elvira primeiro tentou remediar o inconveniente colocando tampões nos ouvidos, mas vistos os péssimos resultados, pensou em fazer mais. Colocou os tampões no nariz dele. Primeiro um, depois o outro. Tragédia. Heitor depois de alguns segundos em apnéia, disparou-os como projéteis antiaéreos contra Fernet, o gato, que no susto se jogou no cesto de roupa suja e, há dias, faz greve de fome e sede.43

Heitor tem nome de herói verdadeiro e épico, mas ronca como um trator, e mesmo

desacordado causa um clima de quase guerra dentro de casa, quando sobrevive a inocente

tentativa de sufocamento com que Elvira pensou silenciá-lo. O gato da casa ainda não se

recuperou do susto, fazendo greve de fome e sede.

Aqui é o cômico na sua forma mais pura e inocente, a construção de uma cena

engraçada digna de uma Sessão Pastelão, provocando aquele riso de economia a que se reporta

Freud nos seus escritos sobre o chiste, em que a origem do prazer está “no jogo com as palavras e

os pensamentos na infância” (que cessa tão logo a crítica ou a razão declaram sua ausência de

sentido).44

E pensem na Molly. Tão corajosa e tão azarada. Apaixonou-se por um Homem-Polenguinho que é alfaiate e se chama Horácio. Mas infelizmente o alarme já disparou... Parece que ela o ouviu dizer a um cliente enquanto lhe tirava as medidas dos calções a seguinte inquietante frase: ‘De que lado o senhor deixa o incômodo? À Molly se desprendeu um êmbolo que lhe está na circulação até agora. Incômodo? Em trinta e cinco anos de vida e dezenove de atividade bem constante, para ela, aquela coisinha ali nunca foi um incômodo. Pelo contrário. Verdade que alguma dúvida já tinha tido. Já na primeira noite de amor, Horácio lhe

43 Idem. 44 ALBERTI, op. cit., p. 17.

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confessou que ele considerava como preliminares assistir juntos os debates do ‘Porta a porta’∗ no madrugadão.45

Também à Molly, a grande amiga da mulher-verdura narradora, mais seu alter ego,

um pouco mais promíscuo, toca ater-se com um anti-herói da mais dúbia qualidade, um Homem-

Polenguinho com um grande nome, mas uma dificuldade clara de encarnar o papel de herói do

qual leva o nome, por ter claramente uma inadequação de sua sexualidade, uma interpretação

errônea e infantilóide do que seja uma noite de amor. Aqui o duplo sentido dado ao texto

carregado de malícia e sexualidade apela para um humor ou comicidade mais tendenciosa, a

segunda classificação do chiste, de Freud.

Amore in tubetto o amore in vasetto? (Amor em tubo ou amor em vidro?) La coppia è come la maionese. A chi riesce al primo colpo e a chi non riesce mai. Ed è un casino quando impazzisce. Hai voglia di rimescolare. E, se alla fine riesci a non farla colare giù dal lavandino ma a recuperarla in extremis, non sarà mai una maionese che vale un granchè. E neanche una coppia. Che vale un granchè. Io la maionese la compro in tubetto. La spremo finchè ce n’è e poi la butto via. Non mi va il barattolo di vetro. Perchè quando sta per finire devos raschiare il fondo e mi vengono i nervi. Il tubetto è più pratico. Quando è quasi tutto spremuto succhi un po’e se vien su solo aria che sa di plastica capisci che è ora di buttarlo. Facile. La mia amica Margherita è sempre stata una schiappa in fatto di maionese. Troppo olio. Troppe uova. A un certo punto, per non stare senza, la comprava addirittura all’ingrosso in confezioni maxi, tipo quelle per le mense. Ma adesso si sposa. Incredibile. Marghe non sai mai dove aspettarla. È un po’ come i pezzi della stazione spaziale Mir che possono cadere da qualsiasi parte. Si sposa un’anima persa, alto come una tibia di vacca ma di faccia carino. Lo chiamano Ikea, per via dei tratti svedese. Bello suonato. Se ti avvicini alla sua testa senti proprio i rintocchi del campanile. Batte la mezzanotte. Marghe mi ha fatto vedere il suo abito da sposa. Con quel coso addosso sembra una bomboniera in vetro Murano. Soffiata a caldo. Un enorme avocado. Una gigantesca pastiglia Valda. Dice che così assomiglia a una delle tre fatine della Bella addormentata nel bosco. Ma non si ricorda se è Fauna, Flora o Serenella. L’abito bianco era troppo. Marghe ha due certezze nella vita e una è che non è più vergine. Una cosa le invidio. La lista nozze ai casalinghi. Quei meravigliosi servizi di piatti. Quei deliziosi bicchieri colorati. E anche la pentola a pressione. Di quelle tedesche che scoppiano soltanto se ci cuoci dentro una bomba. Io mi sposerei soltanto per avere finalmente dei bicchieri che non siano quelli della Nutella. E per evitare che un giorno, chissà come, mi salti in testa di farlo, quando spazzo per terra mi do sempre una scopattina ai piedi. Così. Per precauzione.46

∗ Programa televisivo da rede Raiuno italiana, que consiste em entrevistas com personagens de destaque e respeito no mundo político e no mundo do espetáculo. 45 LITTIZZETTO, I fidanzati delle altre, op. cit., p. 14. 46 LITTIZZETTO, Luciana. Amore in tubetto o amore in vasetto? La principessa sul pisello. Milano: Mondadori, 2002. p. 23.

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Amor em tubo ou amor em vidro? Qual o melhor? O universo feminino, o reino da

dona de casa, o mediatismo de consumo dos grandes supermercados, como metáfora da vida, e da

luta na busca do amor, abrindo a comparação. Um jogo rápido e delicioso de relativização usando

símiles, não homéricas, mas prosaicas.

O casal é como a maionese. Há quem consegue na primeira tentativa e há quem não consegue nunca. E é uma zona quando dá pra trás. Dá vontade de remisturar. E, se ao final consegue-se ser capaz de não mandá-la ralo abaixo na pia, mas recuperá-la in extremis, não será jamais uma maionese que valha grande coisa. E nem o casal. Que valha grande coisa.47

Essa comparação valendo, logicamente, para aquelas verdadeiras mulheres-verduras de

antigamente, donas de casa de mão-cheia, que faziam inclusive a maionese em casa. Mas também

para a dona de casa moderna, a mulher moderna, que não faz, mas compra pronta, a maionese, e

daí saber escolher qual tipo vai ser.

As de antigamente, não tinham muita escolha, faziam a maionese com as próprias

mãos e tinham que engoli-la ficasse como ficasse. Assim o casamento, o amor institucionalizado.

Era aquele e dá-lhe colocar mais óleo ou mais ovo e continuar misturando, até mesmo comer

rançoso.

Hoje não, pode-se escolher que tipo de contrato vai ser. A mulher escolhe. A nossa

mulher-verdura, expert, prefere o tipo mais descartável, quando começa a ter gosto de plástico vai

para o lixo, não fica enrolando e sofrendo, raspando o fundo do vidro onde já não há mais nada,

só o vidro vazio com que se haver.

Eu, a maionese compro em tubo. Espremo enquanto tem e depois jogo fora. Não me agrado da embalagem de vidro. Porque quando está acabando devo raspar o fundo e isso me dá nervoso miudinho. O tubo é mais prático. Quando tá quase todo espremido chupa-se um pouquinho e se vem só ar com gosto de plástico, entende-se que tá na hora de jogar fora. Fácil.48

Posto está o medo e assumida a incapacidade de lidar com as coisas, ou melhor, com os

sentimentos com seus nomes nos devidos bois. Aqui também o jogo tem dois lados. É mais fácil

usar a comparação mudando o campo semântico para falar da dificuldade, e é na mudança que 47 Idem. 48 Idem.

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surge o efeito cômico, que o humor se refina e o riso vem para a economia psíquica, para o curto-

circuito que permite a reflexão no riso, no terreno do não ser.

A minha amiga Margarida foi sempre uma incapaz, em matéria de maionese. Azeite demais. Ovo demais. Ao ponto que, para não ficar sem, comprava no atacado em tamanho maxi, tipo aqueles dos refeitórios. Mas agora vai casar. Inacreditável. Marga, nunca se sabe o que esperar dela. É um pouco como os pedaços da estação espacial Mir que podem cair em qualquer lugar. E casa-se com uma alma perdida, alto como uma tíbia de vaca mas até bonitinho. Chamam-no Ikea, por conta dos traços suecos. Bonito e burro. Aproximando-se da sua cabeça pode-se escutar os ecos dos gongos. Bate a meia-noite. Marga me mostrou o seu vestido de noiva. Com aquele negócio sobre si parece uma bomboniere de vidro de Murano. Soprada quente. Um enorme abacate. Uma gigantesca pastilha Valda. Diz que assim se parece com uma das fadinhas da Bela adormecida, mas não sabe se a Fauna, a Flora ou a Serena. Vestido branco era demais. Marga tem duas certezas na vida e uma é que não é mais virgem.49

Novamente, o conto de fadas, a ilusão delatada, banalizada e transformada em risível.

A mistura, digna de um supermercado gigantesco, do vidro de Murano, o abacate e a pastilha

Valda, mais o Ikea50, cria a idéia inaceitável de um vestido de noiva verde absurdo, para um

casamento mais que de ilusão, de simulacro, de total degadração da possibilidade de final feliz. A

mulher moderna assume a ilusão do conto e se faz a própria fada, ainda que ridícula. Mantendo

um mínimo de coerência: o vestido branco seria abusar demais da piada.

Numa coisa o invejo. Na lista de presentes dos casadoiros. Aqueles maravilhosos aparelhos de jantar. Aqueles deliciosos copos coloridos. E também a panela de pressão. Daquelas alemãs que explodem somente se você tentar cozinhar uma bomba dentro. Eu me casaria só pra ter, finalmente, copos que não sejam aqueles da Nutella. E para evitar que um dia, sabe-se lá como, me dê na cabeça de fazê-lo, quando varro a casa, me dou sempre uma varridinha nos pés. Assim. Por precaução.51

Na confissão da inveja, a desqualificação total e a continuação do jogo de palavras, não

é do amor, do casamento, da vida a dois, é dos badulaques que se arranjam, dos pequenos

elementos descartáveis que compõem a ilusão. A panela de pressão alemã, com uma válvula de

escape quase mágica, que só explode se se tentar cozinhar dentro dela uma bomba. Novamente a

metáfora, que embora só possa ser captada em sua inteireza por um intelecto mais desenvolvido,

49 Idem. 50 Cadeia sueca de hipermercados de objetos para casa, comercializa de móveis a talheres. Há lojas Ikea no mundo todo, o que torna seus produtos muito baratos. 51 LITTIZZETTO, Amore in tubetto..., op. cit., p. 24.

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mas trabalha com uma imagem que na superfície faz rir até mesmo uma criança. O jogo entre o

que é caro e barato ou sem valor denuncia a banalização da questão, e força a reflexão.

O final, com o uso da superstição popular, denota uma vez mais a ambivalência da

nossa atualidade. Por via das dúvidas, é melhor se resguardar de tentar lidar com qualquer coisa

mais seriamente.

Mas a vida continua. De um jeito ou de outro se vai avante. Rir é o melhor remédio

para tudo e esta é, sem dúvida, a filosofia da mulher-verdura-narradora.

No terceiro livro da Trilogia, Col cavolo (Com o repolho), o salto no escuro foi feito e

vai-se lidar e rir com as confusões da dupla vivendo junto, compartilhando o mesmo espaço. O

lugar-comum a que chega uma boa parte da população mundial, e onde permanece, nos dias de

hoje, por maior ou menor tempo a depender da sorte.

Moglie, nome comune di cosa (Esposa nome comum de objeto) Così dicono gli esperti.Tre anni. L’amore vero dura tre anni. Qualcosina in più di mille giorni. Dopodichè buongiorno bignola, ciao contadina. Non è più la stessa cosa. Prima saliva il desiderio e calavano le mutande, poi succede il contrario. Cala il desiderio e risalgono le mutande. E non solo in senso metaforico, perchè si abbandonano i tanga e si ritorna al caldo abbracio della braga ascellare. Perlamiseria. Bisogna imparare a rinverdire ‘sto desiderio. Che è già un bel controsenso. Come faccio a desiderare il mio Godzilla se ce l’ho già tutte le notti spaparanzato di fianco che dorme a bocca aperta con un alito che non è certo segnalato dallo Slow Food? E come fa lui, poverino, a desiderare una bergera che passa le serate a ricamare a punto croce il primopiano di un cavallo e a letto grida ‘basta, basta’ solo quando le schiacci il nervo sciatico? Il Massimo che puoi fare è passare la domenica alla Casa del mobile. Cara mia. Se dopo la prima gravidanza hai cominciato a chiamare il tuo boy ‘papà’ poi non devi lamentarti se il tuo maschio angioino vagola per casa in mutande e De Fonseca a forma di rana. E tu pure, mister mandarino. Cosa pretendi? Visto da nudo sembri la cartina dell’Africa, è naturale che a letto lei preferisca la tisana cent’erbe a te. E avanti così fin quando… “Mio marito s’è fatto l’amante”… ‘Mia moglie s’è fatta l’amante’. Patapam giù dal pero. Eh, certo. Anni e anni di Incantesimo qualche conseguenza la portano.Si tradisce per dare una risciacquatina all’amor proprio. Lui non mi desidera più? Lei non mi desidera più? Molto bene. Nell’eventualità che conosca quella giusta che me gusta mi metto sul mercato. Oddio, non sarò proprio la Kidman ma con un adeguato dondolio pelvico qualche ormoni lo faccio ancora risvegliare. Va be’, certo che Banderas è un’altra cosa, però io se mi metto d’impegno faccio ancora ballare la giga alle giovani pollastre. E si tradisce. E si ci fa l’amante. Participio presente. Quella che ama. Che non è la moglie. O la fidanzata, Nomi comuni di cosa. Banali sostantivi che non sono un’azione. Per i tradimenti però, credetemi, bisogna esserci portati. Avere ‘sta dote lì. Altrimente è come fare in banca un investimento as alto rischio. Senza capitale garantito. Finisci che perdi tutto. Nella vita, nulla rimane mai uguale a se stesso. Perchè la coppia dovrebbe? Bisogna imparare a trasformarsi. L’ha fatto persino la Pivetti. Fino a qualche anno fa si vestiva come Madame Curie adesso sembra Madame Brutal. Io, sulle questioni d’amore, mi fido solo del filosofo Marco Ferradini e del suo Teorema. ‘Non esistono

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leggi in amore’, dice lui. Giusto. Che ogni coppia trovi la sua. Lui sì che la sa. Non si sarebbe garantito la pensione con i diritti della Siae.52

A primeira crônica do terceiro livro começa diretamente no jogo de palavras. O título

Esposa nome comum de objeto. Esposa é o nome que se dá à parte feminina do casal, e é um

substantivo comum. A contraposição a esse termo é dada no meio do texto, quando fala da

amante, que tem o duplo sentido, substantivo (a amante), mas que também é um verbo, particípio

presente, designa uma ação (aquela que ama). No jogo das imagens com a realidade, está posta a

crítica ao comportamento dos homens e das mulheres que entram no universo dos casados,

comportamento dos humanos em geral, esses seres incoerentes.

Assim dizem os especialistas. Três anos. O amor verdadeiro dura três anos. Um pouquinho mais de 1000 dias.∗ Depois é bom dia bomba, oi caipira. Não é mais a mesma coisa. Primeiro sobem os desejos e descem as calças, depois acontece o contrário. Desce o desejo e sobem as calças. E não só de forma metafórica, porque se abandonam as tangas e se retorna ao quente abraço da cintura axilar. Pela miséria. É preciso aprender a reverdejar este desejo. O que já é um bom contra-senso. Como posso desejar o meu Godzila se já o tenho todas as noites esparramado ao meu lado dormindo de boca aberta com um hálito que seguramente não é de Slow Food?∗* E como pode ele, pobrezinho, desejar uma poltrona que passa as noites bordando em ponto de cruz a imagem de um cavalo e que na cama grita ‘chega, chega’ só quando lhe distende o nervo ciático. O máximo que se pode fazer é passar os domingos na Casa do Móvel.53 Mesmo na tradução livre aqui apresentada fica claro o jogo de palavras ágil e

riquíssimo, nas suas referências, e nos sentidos que se formam. A imagem da mulher dormindo

ao lado do monstro Godzila esparramado, de boca aberta, com um hálito que não é de Slow Food,

contrapondo-se à da mulher bergera que remete a bergère, que em italiano, como em português,

significa poltrona. Além de trazer a imagem da imensa e confortável cadeira de repouso, faz jogo

com poltrone, pessoa preguiçosa, e, em português pelo som, com potrona – potro fêmea – e joga,

por sua vez, com o quadro de bordar um cavalo em ponto de cruz. Todo o jogo de imagens

52 LITTIZZETTO, Luciana. Moglie. Col cavolo. Milano: Mondadori, 2004. p. 11-12. ∗ Ana dos Mil Dias, filme de inglês de 1969, do diretor Charles Jarrott, conta a história de Ana Bolena, a segunda esposa do rei Henrique VIII, que é acusada de adultério por uma armação do rei e condenada à morte, mudando o destino de toda a Inglaterra. A referência é sutil, mas não há como não lembrá-la. ∗ Movimento ecogastronômico internacional, nascido na Itália, em torno da idéia de cultivo de um hábito alimentar em tudo contrário ao Fast Food. 53 LITTIZZETTO, Moglie, op. cit., p. 11.

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suscitado é muito engraçado, bizzarro até, e contrário em tudo à idéia de reverdejar ou reacender

o desejo do casal, que passa a não ter nada melhor a fazer do que ir à loja de móveis, nos

domingos, quando tem tempo e é quase que obrigado a ficar junto.

O conjunto também cria uma “antiimagem” do casamento, da vida a dois, do lugar

comum ligado à idéia de felicidade dos seres humanos, homens e mulheres pós-românticos.

Lugar este que é buscado e perseguido, em teoria, e na Trilogia até aqui, principalmente pelas

mulheres.

E continua na sua análise crítica dos caminhos naturais e mais comuns do casamento.

Minha cara. Se depois da primeira gravidez começaste a chamar o teu boy de ‘papai’, não deves depois lamentar-te se o teu nobre macho vagueia pela casa de cueca e De Fonseca∗ em forma de rã. E tu também, mister mandarim. O que pretendes? Uma vez que nu pareces o mapa da África, é natural que na cama ela prefira uma infusão cem ervas a ti.54 Nesta passagem especificamente, o jogo de palavras sons e imagens se constrói

melhor em italiano, principalmente na última linha quando ela fala em “preferir uma infusão cem

ervas a ti”. Em italiano, tisana cent’erbe tem um sentido de chá curativo, remédio, geralmente

com gosto forte e amargo, e tè é chá, remete a uma bebida mais agradável e degustável, podendo

ser até afrodisíaca, e ao jogo de sentido duplo aí posto no te, que é pronome pessoal da segunda

pessoa singular. Mas o que continua é a imensa crítica dos defeitos que sempre aparecem nos

componentes do casal, com a rotina do dia-a-dia, juntos no decorrer do tempo. Indo ao encontro

da idéia bastante difundida e usada como desculpa por muitos homens, e mesmo mulheres, de

que o casamento é uma armadilha a transformar as pessoas em seres menos que humanos, para

fugirem a esse compromisso.

E continua assim até quando… ‘Meu marido tem uma amante’… ‘Minha esposa se arranjou um amante’. Patapam caiu da árvore. Mas claro. Anos e anos de sortilégio alguma consequência portarão. Trai-se para dar uma enxaguadinha no amor próprio. Ele não me quer mais? Ela não me deseja mais? Muito que bem. Na eventualidade que conheça justo uma que me agrade, me meto no mercado. Meu Deus, tá bom que não sou bem a Kidman mas com uma adequada reboladinha ainda mexo com alguns hormônios. Tudo bem, claro que Banderas é uma outra estória, porém se me meto empenhado ainda faço balançar a ginga de algumas franguinhas. E se trai. E se arruma amante. Particípio presente. Aquela que ama.

∗ Marca italiana de chinelos e pantufas de todos os tipos. 54 LITTIZZETTO, Moglie, op. cit., p. 11.

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Que não é a esposa. Ou a noiva. Nomes comuns de coisas. Substantivos banais que não são uma ação.55 Feito o jogo, mostrado o processo de coisificação do casamento e de cada um dos

elementos dentro dele, mostra a saída natural dentro dos valores da atual sociedade. A sociedade

do espetáculo, imediatista, de valores descartáveis. Justifica o ato da traição na fraqueza humana,

no apelo da mídia, do simulacro. O Godzila se espelha em Banderas, a poltrona pode ser a

Kidman. E a esposa, a noiva, nomes comuns que não são ações, cedem lugar à amante, aquela

que ama. Que é uma ação.

Para a traição, não obstante, acreditem, precisa-se nascer feito. Tem que ter dom. Do contrário, é como fazer no banco um investimento de alto risco. Sem capital garantido. Acaba que perde tudo. Na vida, nada permanece igual a si mesmo. Por que deveria o casal? É preciso aprender a se transformar. Até a Pivetti∗ se transformou. Até poucos anos atrás se vestia como Madame Curie agora mais parece Madame Brutal. Eu, nas questões de amor, confio somente no filósofo Marco Ferradini∗* e no seu Teorema. ‘Não existem leis no amor’, diz ele. Justo. Que cada casal encontre a sua. Ele sim que sabe. Não se teria garantido a aposentadoria com os direitos da Siae∗**.56 Já não mais tão engraçado, o jogo com as palavras trai o princípio de realidade. A

comicidade dá lugar a um humor mais sutil e reflexivo. A dança do acaso pode não ser impune.

Há que se saber jogar ou acaba-se por perder tudo.

A mulher-verdura, por sua vez, sabe transformar-se. Mais que um simples objeto, ela

sabe onde se calçar e busca ajuda na filosofia, ainda que de um filósofo popular, um

cantor/compositor, poeta. O poeta moderno, albatroz capturado e trivializado, na sua situação

anti-heróica e, portanto, cômica.

O salto no último parágrafo é rápido e a crítica e a ironia são afiadas, abarcando todos

os pilares da realidade atual: o espetáculo, o simulacro o jogo da vida e do dinheiro. Mesmo o

55 LITTIZZETTO, Moglie, op. cit., p. 12. ∗ Irene Pivetti (Milão, 4 abril 1963) apresentadora de televisão, jornalista e politica italiana. Disponível em: <http://it.wikipedia.org/wiki/Irene_Pivetti> Acesso em: 20 nov. 2007. ∗* Marco Ferradini (Como, 28 julho de 1949) cantor e compositor italiano. Teorema uma de suas músicas mais famosas. Disponível em: <http://it.wikipedia.org/wiki/Marco_Ferradini> Acesso em: 20 nov. 2007. ∗** SIAE (Sociedade Italiana dos Autores e Editores). 56 LITTIZZETTO, Moglie, op. cit., p. 12.

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casamento, o amor e o filósofo/poeta embarcam na coisificação promovida pela teocracia do

poder monetário.

Nada escapa. E tudo é motivo e objeto de uso na sua filosofia de riso. Como nos diz

Verena Alberti:

O riso é, portanto, a experiência do nada, do impossível, da morte – experiência indispensável para que o pensamento ultrapasse a si mesmo, para que nos lancemos no ‘não-conhecimento’. Ele encerra uma situação extrema da atividade filosófica: permite pensar (experiência refletida) o que não pode ser pensado.57 A crônica seguinte, a última a ser analisada neste trabalho, é um exemplo da maestria

dessa mulher-verdura em transformar qualquer objeto e sujeito, os aspectos mais espontâneos e

prosaicos do cotidiano, neste elemento desencadeador do riso prazeroso e reflexivo da nossa

condição tragicômica.

Il rotolo finito della carta igienica (O rolo de papel higiênico vazio) Peccato che l’impollinazione non sia contemplata nelle abitudini sessuali della nostra specie. Sarebbe fantastico. Noi qui col nostro bocciolo, loro li con i respettivi pistilli, ciascuno nella propria aiuola e fanno tutto le api. E invece no. Sempre lì a pestarci gli alluci. L’uomo del mio destino ha un’abitudine che lo ammazzerei con le mie mani non fosse che pesa otto volte me. Quando deve riavvitare la caffettiera la stringe fino allo spasimo. La lucchettta in una morsa diabolica. Potesse ci piazzerebbe sopra anche i sigilli di ceralacca. E se io decido di farmi un caffè per riaprirla devo prenderla a morsi o chiamare i vigili del fuoco. Tanto svitarla per lui… tric, è un attimo. E che ci vuole? Ci vuole che ti odio. Ci vogliono dei bicipiti come i tuoi, esondato nel cranio! Stessa cosa per il freno a mano. Tira che ti ritira prima o poi si staccherà. Prego il cielo ogni giorno. E poi cosa metti il freno a mano a fare? Abitassimo a Salice d’Ulzio lo capirei. Ma via Juvarra è tutta in piano. Non posso passare le mattine a prendere a roncolate la leva del freno col tacco dello stivale che è di gomma e mi rimbalza sul naso. Per quanto tempo ancora dovrò chiedere aiuto ai passanti che già da anni si erano fatti l’idea che fossi deficiente e in questo caso ne hanno la conferma? E poi ditemi. I vostri boy come sparecchiano? Il mio, che è un pirla praticante, con la tecnica del discobolo. A lancio. Tutto si tira e tutto si destrugge. Si butta in frigo a caso, a mosca cieca. Così la mozzarella finisce nel portauovo, il prosciutto nel cassetto della verdura e la pentola della minestra, visto che scagliarla è un po’un azzardo, la si appoggia in bilico su due mandarini, Un raro caso di minestra basculante. E lo strazio della lavastoviglie? Il maschio per sua natura aborre il caricamento della lavapiatti. Proprio non ce la fa. Troppo complicato. D’altra parte è molto complesso arrivare con la mente a immaginare che il manico della padella messo così di punta impedisce alle pale di girare. E che magari prima che si intasi il tubo di scarico togliere dai piatti le pelli del cotechino, le lische di triglia e le bucce pelose dei kiwi è meglio. Mi pesa aprire la questione ‘rotolo finito della carta igienica’ ma il dovere della

57 ALBERTI, op. cit., p. 14.

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denuncia mi chiama. Quanto deve passare prima che il nostro lui se ne accorga? Il tubetto di cartone grigio topo pelato è un segno che la vita ci lascia lì sul nostro cammino. Non vorrà forse dire che è giunto il momento di sostituirlo? Ma l’ amore della vita nostra non ci pensa nemmeno. Quello è un lavoro da femmina. Lui in bagno ha ben altro da fare: per esempio leggere sulle pagine rosa la cronaca dello stiramento di Del Piero minuto per minuto.58

Os assuntos e situações mais comezinhos da vida a dois, no cotidiano, são aqui

expostos e criticados fazendo aparecer, na sua repetitividade, a imensa diferença entre o modo de

ser de um e de outro, provocando a reflexão de que talvez fosse melhor não apenas não se viver

junto, conviver, mas até mesmo nem ser gente. Esta espécie de seres que para garantir a sua

perpetuação precisa submeter-se a ritos e hábitos que se transformam, na convivência, em

verdadeiros tormentos da dupla para a dupla. “Pena que a polinização não seja uma opção nos

hábitos sexuais da nossa espécie. Seria fantástico. Nós com nosso botão, eles com seus

respectivos pistilos∗, cada um no seu canteiro e as abelhas fazem tudo. E em vez disso, não.

Estamos sempre ali a pisar nos pés um do outro”.59

As plantas aparentemente não brigam, também não pensam ou fazem sexo. Estão ali

plantadas em seus canteiros e as abelhas se encarregam de fazer a polinização que promove a

fertilização e a reprodução das espécies. Esse é o modelo que nossa mulher-verdura evoca como

talvez o ideal para a vida humana. A ausência de contato para a troca de material genético

necessária à reprodução. Um terceiro se ocupando de todo o processo enquanto elas ficam ali

simplesmente belas e perfumadas. Enquanto nós, seres humanos, temos que conviver com as

pequenas e irritantes diferenças um do outro.

O homem do meu destino tem um hábito que me dá vontade de matá-lo com minhas próprias mãos não fosse ele oito vezes mais pesado que eu. Quanto tem que enroscar a cafeteira, o faz apertando até o espasmo. A serradura num arroxo diabólico. Se pudesse metia ainda em cima o lacre de cera. E se eu decido de fazer-me um café, para reabri-la tenho que arranjar um torno ou chamar os bombeiros. Mas pra ele desenroscá-la… tric, é um minuto. E precisa tanto? Precisa que eu te odeie. Precisa ter bíceps como os teus, cabeça alagada! Mesma coisa para o freio de mão. Puxa que puxa uma hora ou outra arrebenta. Rezo aos céus todos os dias. E depois de que serve o freio de mão? Se morássemos em Salice d’Ulzio∗* eu entenderia.

58 LITTIZZETTO, Luciana. Il rotolo finito della carta igienica. Col cavolo. Milano: Mondadori, 2004. p. 17. ∗ Aqui o termo é usado para jogo de palavra com imagem, uma vez que pistilo é, na verdade, parte do órgão sexual feminino da planta, correspondente aos ovários, e vem usado como órgão masculino pela semelhança com a palavra piselo, nome de uso popular para o órgão sexual masculino ou pênis. 59 LITTIZZETTO, Il rotolo..., op. cit., p. 17. ∗* Cidade de montanha, situada na costa noroeste e que dá vista para o Val di Susa. Localidade de prática de esqui.

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Mas a rua Juvarra é toda plana. Não posso passar a manhã inteira a martelar a alavanca do freio com o salto da bota que é de borracha e me rebate no nariz. Por quanto tempo ainda vou ter que pedir ajuda aos passantes que há anos acham que eu sou imbecil e nesse caso têm a confirmação. E depois digam-me. Os vossos boys, como tiram a mesa? O meu, que é um troglodita praticante, com a técnica do arremessador de disco. No lançamento. Tudo se joga e tudo se destrói. Se coloca na geladeira ao acaso, à mosca cega. Assim a muzzarela acaba no porta-ovo, o presunto na gaveta da verdura e a panela da sopa, visto que arremessá-la é um pouco perigoso, apoiada instavelmente sobre duas laranjas. Um caso raro de sopa basculante. E o tormento da lavadora? O homem, por natureza detesta carregar a lava-louça. Simplesmente não agüenta. Muito complicado. De outro lado é muito complexo chegar com a mente a imaginar que o cabo da panela colocado assim de ponta, impede as pás de girar. E que talvez, antes que se entupa o tubo de escoamento, tirar dos pratos as peles do salame, as escamas da trilha e as cascas peludas do kiwi, seja melhor. Me pesa abrir a questão ‘rolo de papel higiênico vazio’ mas o dever da denúncia me obriga. Quanto tempo há de passar antes que o nosso ele, perceba? O tubinho de papelão cinza rato nu, é um sinal que a vida nos deixa ali, no nosso caminho. Não quererá talvez dizer que chegou o momento de substituí-lo. Mas o amor da nossa vida nem pensa nisso. Aquele é um trabalho de mulher. Ele, no banheiro, tem muito mais o que fazer: por exemplo ler nas páginas rosas a crônica da distensão do Del Piero∗* minuto a minuto.60

Da cozinha ao banheiro, a casa, por muito tempo o reino do feminino, onde o homem

pouco permanecia, hoje circunstancialmente muito mais compartilhado, torna-se o palco de

pequenas batalhas, risíveis. Não há como não se ver em uma ou outra das situações ali descritas.

O rolo do papel higiênico vazio é o porta-estandarte do desfile de pequenos conflitos

desencadeados pela simples diferença sexual.

O estereótipo do papel feminino e masculino serve de base para as tiradas irônicas e

engraçadas da nossa mulher-verdura que reclama a atenção do companheiro e critica a sua falta

de atenção e sensibilidade no fazer as coisas.

Homens e mulheres são, no modo de ver da crônica, duas espécies feitas

completamente diferentes. Aprender a viver com a diversidade é a saga da vida humana.

Pensamos e por isso percebemos o não igual. Estranhamo-nos quando não nos vemos refletidos.

Narciso acha feio o que não é espelho.61 O encontro com essa separação gera angústia e

dificuldade. O pensar impede ou anuvia o sentir. A ironia, o deboche, a graça, compõem um

∗* Alessandro Del Piero (Conegliano, 9 de novembro de 1974) é um atacante italiano, que joga atualmente na Juventus com a camisa número 10. É titular na seleção italiana, vestindo a camisa 7. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Alessandro_Del_Piero> Acesso em: 20 nov. 2007. 60 LITTIZZETTO, Il rotolo..., op. cit., p. 18. 61 Trecho de Sampa, música da autoria de Caetano Veloso, poeta e músico popular brasileiro.

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quadro que novamente permite refletir no não necessário pensar. O riso alivia a tensão provocada

pelo impasse da diferença. Para Lévi-Strauss, o riso resulta de uma conexão rápida e inesperada de dois campos semânticos distanciados – conexão, aliás, que também recebe o nome de ‘curto-circuito’. Em nossa apreensão do mundo, teríamos sempre uma ‘reserva de atividade simbólica para responder a todo tipo de solicitação de ordem especulativa ou prática’. No caso do cômico, diz Lévi-Strauss, essa reserva ‘acha-se privada de ponto de aplicação: subitamente liberada e sem poder se dissipar no esforço intelectual, ela se desvia em direção ao corpo, que, com o riso, dispõe de todo um mecanismo montado para que ela se gaste em contrações musculares’. Desse modo o riso corresponde a uma ‘gratificação da função simbólica, satisfeita a um preço bem menor do que esta se dispunha a pagar’.62

Dessa forma, nossa autora, circula a imagem vil do universo feminino, faz a crítica, o

lamento e provoca a reflexão, de uma forma leve e absolutamente irreverente, obtendo por isso

tanto sucesso, seja na mídia televisiva, radiofônica ou no texto pura e simplesmente, perto ou

longe dos seus referenciais imediatos.

Independentemente de quem lê o texto, onde esteja, compartilhe ou não da realidade

circunstante, tenha ou não conhecimento parcial ou total das personagens e situações utilizadas

como âncoras, na construção das cenas e imagens cômicas e humorísticas, não há como não

assimilar o efeito. E qualquer um dos três livros é garantia de boas risadas e bom entretenimento

– como já dito inúmeras vezes antes –, não isento de uma atividade reflexiva que nos leva além

do simples riso, que nos provoca uma tomada de consciência na visão da nossa realidade atual, da

nossa sociedade, que é extremamente superficial e absurda e tragicamente cômica.

Como se pode ler numa resenha, justamente do último volume da Trilogia, feita por

uma crítica italiana:

A chiunque sarà capitato, leggendo qualche pagina scritta da questa autrice, di chiedersi come sia possibile che riesca a rendere divertenti tutte quelle piccole situazioni che giornalmente ci paiono così irritanti. Infatti il lettore, dopo aver ‘studiato’ un suo libro, si ritrova immancabilmente a scrutare nel proprio partner una conferma delle descrizioni lette e, sorridendo, constata che, in fin dei conti, quei lievi atteggiamenti così odiati possono avere delle sfumature un po’ ridicole. ‘Col cavolo’ rispecchia sorprendentemente la realtà ed affronta con schietta ironia diverse tematiche: l’amicizia, la moda, la famiglia, la dieta, le vacanze estive…63

62 ALBERTI, op. cit., p. 18. 63 GIANNINI, Ilaria. NSC, a. II, n. 24, 20 set. 2006. Disponível em: <http://www.nonsolo cinema.com/nsc_articolo.php3?id_article=5120> Acesso em: 20 nov. 2007.

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Não há temática, fato ou situação interditada à nossa autora na produção do cômico.

Com extrema coragem e desenvoltura, ela põe o dedo sobre qualquer que seja a ferida, com um

humor inteligente e sem reservas, tornando a dor em riso, sem dó nem piedade. Não poupa nada

nem ninguém, nem ela mesma, nem o próprio universo feminino, nem o ambiente do espetáculo,

televisivo, o espaço do seu ganha-pão, nem o espaço do poder, seja político ou religioso. Nem o

sagrado é poupado no ser despido de sua intocabilidade e mostra seu lado incongruente e por isso

cômico, tornando-se assim noutra forma do sublime.

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CONCLUSÃO

A amostragem aqui utilizada, poucas crônicas de cada um dos livros, talvez não seja

suficiente para dar a idéia do todo divertido que é a Trilogia, mas penso que alcance uma leve

noção do texto e do modo de pensar e construir a comicidade utilizado pela autora, a ponto de

fazer despertar a curiosidade sobre a obra e mostrar a razão do seu sucesso.

Não se pretendeu esgotar a discussão sobre a obra em si ou abarcar toda a questão

sobre a comicidade e o humorismo dentro dela. Mostrar alguns aspectos e fundamentá-los numa

discussão maior sobre o humor, o cômico e o riso e sua função na literatura e na forma de pensar

a vida foi um pouco o intuito.

Poder-se-ia com mais tempo, e num estudo mais amplo, analisar mais acuradamente

como o humorismo e a comicidade se fazem de forma especial nas tintas do feminino, como se

constitui uma comicidade do feminino. O universo da mulher-verdura, como afirmado, é o

mundo feminino: suas rotinas, eternas ou modernas, suas pequenas coisas, da cozinha ao

banheiro, o quarto, a casa, a vida solitária (do imenso número de mulheres por todo o sempre) ou

compartilhada.

Essa comicidade, seja olhando o próprio universo ou quando olha para o mundo em

geral, se tinge de nuances e cores por vezes bastante feministas, e seria interessante e divertido

tracejar isso nas diversas crônicas.

O corpus da Trilogia, 257 textos sobre os mais diversos assuntos, passeia por todos os

aspectos da vida moderna e atual, criticando ou analisando, lamentando ou festejando, mas

expressando sempre o ponto de vista da mulher-verdura, que é aquela que, não servindo para

adorno, não se furta ao direito e ao dever de pensar o mundo e a si mesma, de forma ampla,

filosófica e humana. Calcando-se para isso num vasto conhecimento de mundo e literatura,

denotado no seu texto, tornando-o dessa maneira largo e universal, capaz de atravessar barreiras

de espaço e tempo. Transformando o texto num verdadeiro documento de hábitos e costumes,

num retrato arguto, fiel e, por vezes, cruel da nossa sociedade.

Outro viés que poderia ter sido melhor escrutado é o do mundo dos alimentos. A

analogia das mulheres-flores ou mulheres-verduras nos porta a um espaço semântico possível de

ser divertidamente analisado e esmiuçado nas diversas crônicas. Mas, como dito, isso excederia o

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tempo e o âmbito deste estudo, que se quer uma monografia, uma notícia e não um tratado amplo,

uma dissertação ou tese. Objetivo, por sua vez, a que a Trilogia se prestaria deliciosamente,

tamanha é sua riqueza.

Tentou-se fazer a demonstração e a análise de uma forma lúdica, seguindo assim o

mais de perto possível o próprio estilo da autora, que no meu entender é o que torna a obra de

uma vastidão imensa, apresentada de maneira inversamente proporcional em leveza.

O questionamento a que me propus, indicando no texto os traços de humorismo,

segundo a forma de ver de Pirandello, e a comicidade, como de resto existe na tradição, já antiga

e bem plantada, na literatura italiana, tentou-se fazer dentro do jogo sugerido e oferecido pelo

próprio texto. Acredito ter alcançado revelar elementos de um e outro na pequena amostra eleita

da obra, suficiente, se não para esgotar a discussão, para iniciá-la, sugerindo assim a validade do

enfrentamento da sua leitura como entretenimento e diversão, passível também de promover o

objetivo maior de pensar a vida e suas coisas de forma lúdica e agradável.

A comédia com sua função didática como nos seus primórdios, com seu papel de

denúncia política, com seu efeito catártico e libertador, encontra-se nas páginas da Trilogia,

confirmando seu lugar no mundo literário, agregando a qualidade de best-seller. Dado esse não

sem importância na atual situação do mundo e da sociedade, onde tanto se fala da falência da

cultura, da ameaça do fim do livro, da diminuição vertiginosa no contingente de leitores.

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REFERÊNCIAS FONTES LITTIZZETTO, Luciana. Sola come un gambo di sedano. Milano: Mondadori, 2002. ____ . La principessa sul pisello. Milano: Mondadori, 2002. ____ . Col cavolo. Milano: Mondadori, 2004. BIBLIOGRAFIA ALBERTI, Verena. O riso e o risível na história do pensamento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, Ed. FGV, 1999. ARISTÓTELES. Poética: a poética clássica. v. 22. São Paulo: Cultrix, 1997. BORSELLINO, Nino. La tradizione del comico: l’eros l’osceno la beffa nella letteratura italiana da Dante a Belli. Milano: Garzanti Editore s.p.a., 1989. DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

DI NATALE, Francesco; ZACCHEI, Nadia. In bocca al lupo! Espressioni idiomatiche e modi di dire tipici della lingua italiana. Perugia: Guerra Edizioni, 1996.

DIZIONARIO Garzanti di Italiano. Milano: Garzanti Editore s.p.a., 1998.

LIMA, Maria de Fátima de Souza. Políticos e mulheres na comédia grega. Conferência proferida na Faculdade de Letras do Porto, em 12 de março de 1986. MINOIS, George. História do riso e do escárnio. Tradução de Maria Elena Ortiz Assumpção. São Paulo: Ed. UNESP, 2003. NOVO Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.

PIRANDELLO, Luigi. L’umorismo. Milano: Mondadori, 1992.

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ANEXO

Os títulos das crônicas de cada volume:

Sola come un gambo di sedano

Intro Luciana Littizzetto in Soffritto Gnomi e vichinghe Mucche pazze e maiali pirla Dolcetto e gorgonzola Teste biondo ottone Ed è subito herpes Donna baffuta, sempre piaciuta. Ma a chi? Namibia mon amour Un’estate al verde Nel Regno di Epiland Su la testa Tette & matite Da domani in palestra Il fascino perverso di una tartaruga Ninja Centaure col pannolino O la borseta o la vita Istruzioni per l’uso Gli uomini normali non esistono La donna ha il cuore nelle scarpe Se lui è traditor Tre mesogne di conquista Afrodisiaci all’ingrosso Le parole che non ti ho chiesto Fine di una love story La crisi del settimo L’unico bacio Racchi o figoni? L’eleganza è dentro di te.Ma dove? Se un boy ama una girl Mister Boia Sospiri d’amore Cani da punta Chissenefrega dell’amore Bollini Dov’è finito Orfeo?

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Amore a prima svista L’uomo che sa di sciropo Un’odalisca sfatta Donne all’Opera La vita è corta ma larga (parola di Ya Ya sister) Lo star man Maschi distratti, maschi pignoli I saputelli L’uomo nelle caverne Sorriso alla rughetta For ever Fiori d’arancio Fritto misto a Ferragosto Pene d’amor vissute Questione di cesso Bimbo a bordo La flebo del successo Un Magnum più umano Mistero semplice Femmine violente L’auto dell’uomo e l’auto della donna Auto stop I truzzi della California Non esistono uomini perfetti. Per noi No, viaggiare Overdose da diapo Il collezionista ma non di ossa Casa, dolce casa Abasso l’open space Candele al rogo! X-Files domestici Il caso delle cose VaffanGiga! Il saldista doc Gli architetti in cucina Pippoli strascicati in bagna all’erba finocchia Piatti biologici, no grazie L’invasione della rughetta Nostalgia pitupitumpa Riflessioni sull’ossobuco L’orologio che va a unghie Dubbi amletici Conto alla rovescia Anno nuovo, vita identica Parla come mangi

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La Quaresima del Carnevale L’uomo giusto sa svitare i tappi Leggere attentamente le avvertenze. Per dimenticare il nome E colpa del DNA Fermate Megan Gale Io e Rocco Siffredi Donne da caserma Il piacere e tutto tuo Le liti della Litti La vocazione del vigile urbano Io, la figlia del lattaio Parenti invadenti Stessa spiaggia Al centro del benessere Elogio del pareo multiuso Aria condizionata Camera singola vista discarica Ferie all’Ikea Solo sugo Prodigi di imbecillità Ai don spich inglisc Ho visto la felicità Sans souci Buon compleanno La principessa sul piselo Le finte felici I fidanzati delle altre Il principe azzurro Guardami Dietro una grande donna Siamo fritte? Amore in tubetto o amore in vasetto? Femmine a quattro ruote Jam session di parolacce Uteri a equo canone Prendila bassa Il bem tenebroso Donne fiore o donne verdura? Pinzimonio femminile Assorbenti volanti Il pallino Sei ore con Sting

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L’eterno figlio All’antica, non antichi Uffa che noia Amore da cuocere in umido Fissate con le fisse Passione flambé Trapani e mimose Gli allergici mi dano l’allergia Mani di fata Lo scaldacapezzoli Nei di donna Si sposano tutti. Persino i cardinali Uomini balsamici Che satisfescion Amore borderline Giorni storti Pronto? Chi pirla? Pentola- party L’importante è opacizzare Santissima Barbie Casalingaggine Spirito guida senza patente Son doni del cielo Diverse specie dell’animale suocera Mamme full time I mostruosi premaman Parto scordato Non nominare invano Naturisti col grano L’orgoglio dei puffi L’energi e l’aura Lo shopping da edicola Masochismo a dispense Le riviste ciccione Letterina di Natale Conciàti per le feste Il morbo del calendario Mississima Si saldi chi può Boiate col brevetto L’eroina dell’orrore Vaniglia taxi L’assemblea di condominio La Fata dei cassetti Via che si va

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Il vermino della Grande Mela Guarda che così la allunghi Cara Donna Letizia Niente calze, siamo a settembre Salutami a tua sorella Perchè io valgo Goldrake col trilama Compagni pennuti Amice e bugie Ringraziamenti Col cavolo Moglie, nome commune di cosa Donne con le palle La coppia primitiva Il rotolo finito della carta igienica Mi è sparito il punto G L’indice di virilità Meglio di lui Gli uomini in bagno Tapparella: su o giù Elettro intelligenti Rumori modesti Cosa fa battere il cuore agli uomini? Il pacemaker L’unica ragione per sposarsi Chi porta giù la spazzatura? Codici di coppia Ranuncoli di plastica I love you s.q. Via il tanga via il dolore Il mare è pieno di pesci Gli animale e le bestie Le loro cose L’artigiano dei miei sogni Quando gli uomini dicono che vanno a gioccare a calcetto Carlo Azeglio inciampi Il gambaletto antistupro Gli amiche di lui Le amiche di lei Gli uomini quaglia Una brutta piega

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C’è da rifare la facciata L’intimo tormento La vita è bassa La mia compgna miss La pillola Quattro stagioni Fidanzati di riserva Gli uomini preferiscono le mute Tan tan tan! Ci mancavano I metrosessuali Nonna Jessica e nonno Maicol Fratelli e coltelli Interdet La dieta del gorgonzola Il biscione e la tarma L’assorbente da treno Donne panate Che cellulare c’hai? Dichiarazioni d’amor I masochisti della pizza Colleghe scollegate La minestrina Il pirlificio Lui russa Le comesse mastrolindo Oh, happy day! Il concerto di Capodanno É Natale e io ti odio Cosa c’è dietro al retrogusto? Gli aggenti immobiliari No Mascheroni Macedonia cinese La patologia del camaleonte Nonni di oggi Lo sposo in bianco Una pratica bomboniera sturalavandini Quelli che le han tutte Scicocco shopping Citofoni spanati Siamo serial Dalla Romania a casa mia La seccatura dell’umido Hai provato il fidanzato flambé? Vacanze: evitiamo quasi tutto Standing ovulation

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Che vacanze! Ricordi, souvenir e chili in più L’essenziale è crederci Offinito Ringraziamenti