horta historia constituicoes e reconstitucionalizacao do brasil

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Análise das Constituições Brasileiras

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  • 1

    Histria, Constituies e reconstitucionalizao do Brasil*

    Prof. Dr. JOS LUIZ BORGES HORTA**

    Para EDGAR GODI DA MATA-MACHADO,

    ORLANDO M. DE CARVALHO e RAUL

    MACHADO HORTA, catedrticos na Casa de

    Afonso Pena e integrantes da Comisso de

    Notveis de 1985.

    Sumrio: 1. Para uma leitura histrica do

    Direito. 2. Constitucionalismo Clssico: do

    texto imperial (1824) ao modelo de RUI

    BARBOSA (1891). 3. Constitucionalismo

    Social: a Constituio Corporativista

    (1934), o texto ditatorial (1937), a

    Constituio Democrtica (1946) e o

    Regime de Exceo (1967). 4.

    Constitucionalismo Democrtico: a

    Constituio Federal de 1988. 5. Preldios

    de reconstitucionalizao. Referncias

    bibliogrficas. Resumo. Palavras-chave.

    hoje o dia maior, que o Brasil tem tido, dia, em que ele pela primeira vez comea a

    mostrar ao mundo que Imprio, e Imprio

    livre. DOM PEDRO I, na Sesso de Abertura da

    Constituinte de 18231

    1. Para uma leitura histrica do Direito.

    * O presente ensaio recompe conferncias e reflexes que desenvolvemos, nos ltimos anos, acerca das Constituies brasileiras no devir da Histria, e integra elementos histricos que utilizamos na construo

    de passagens de nosso HORTA, Jos Luiz Borges. Direito Constitucional da Educao. Belo Horizonte:

    Declogo, 2007. Agradecemos doutoranda KARINE SALGADO e ao bolsista de iniciao cientfica

    THIAGO CARLOS DE SOUZA BRITTO, pela colaborao de ambos na idealizao do texto, e ao Programa

    de Auxlio Pesquisa dos Recm-Doutores da Pr-Reitoria de Pesquisa da UFMG, pela viabilizao de

    nosso gabinete de pesquisa.

    ** Doutor em Filosofia do Direito e Mestre em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito da

    UFMG. Professor permanente do Programa de Ps-Graduao em Direito da UFMG e colaborador do

    Programa de Ps-Graduao em Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Diretor da

    Revista Brasileira de Estudos Polticos (2004-2005).

    1 Apud BONAVIDES, Paulo. ANDRADE, Paes de. Histria Constitucional do Brasil. Braslia: Senado

    Federal, 1989, p. 18.

  • 2

    A Histria do Direito permite revelar dimenses extremamente ricas para a

    construo dos tempos futuros. Em retorno imagem hegeliana da coruja como smbolo

    mtico da atitude filosfica2, tivemos j a oportunidade de identificar uma dimenso

    evidente de historicidade: a coruja possui pescoo girvel, e portanto viso de trezentos

    e sessenta graus v o passado, que se agiganta em seu vo que s ele faz possvel, mas antev o futuro, que se anuncia com a aurora

    3.

    imperativo que lancemos um olhar reflexivo acerca da experincia

    constitucional brasileira para, despidos de medos e bravatas, saber auscultar nossas

    tradies em busca de respostas para as angstias do tempo presente.

    O presente texto, assim, percorrer a experincia constitucional brasileira

    nos trs momentos da Histria do Estado de Direito4 em que ela se estruturou, reunindo

    as lies que a Histria nos apresenta. Tem o presente ensaio, assim, duplo carter: a um

    tempo, de propedutica histria constitucional brasileira5; a outro, de firme tomada de

    posio quanto ao polmico tema da convocao de nova Assemblia Nacional

    Constituinte, intensamente debatido por ocasio do 18 aniversrio da Constituio de

    1988.

    2. Constitucionalismo Clssico: do texto imperial (1824) ao modelo de RUI

    BARBOSA (1891)

    A primeira das Constituies brasileiras tambm a mais longeva, e de

    maior impacto, portanto, para a formao de nossas instituies: o Texto Imperial,

    outorgado pelo Imperador em 1824. Em conjunto com a Constituio Republicana

    2 HEGEL, G.W.F. Princpios da filosofia do direito. Trad. Orlando Vitorino. So Paulo: Martins Fontes,

    1997, p. XXXIX.

    3 Ora, a Filosofia no somente eco do passado, florada de crepsculo: ela tambm o novo que se insinua e brota da tradio, rumo ao horizonte infinito; para ns, o novo Direito e o novo Estado, tomados

    como desdobramentos, ora utpicos, ora ucrnicos, dos valores revelados exatamente pelo olhar

    jusfilosfico; cf. HORTA, Jos Luiz Borges. Ratio juris, ratio potestatis; breve abordagem da misso e das perspectivas acadmicas da Filosofia do Direito e do Estado. In: Anais do XIV Encontro Nacional do

    Conpedi (Conselho Nacional de Pesquisa e Ps-Graduao em Direito), Fortaleza, 03-05 nov. 2005, p.

    11. (publicao em cd-rom).

    4 Cf. HORTA, Jos Luiz Borges. Horizontes jusfilosficos do Estado de Direito; uma investigao tridimensional do Estado liberal, do Estado social e do Estado democrtico, na perspectiva dos Direitos

    Fundamentais. Belo Horizonte: Faculdade de Direito da UFMG, 2002 (Tese, Doutorado em Filosofia do

    Direito).

    5 Um pas que possui uma obra de referncia como a de PAULO BONAVIDES e PAES DE ANDRADE

    evidentemente est muito bem alicerado em matria de estudos histrico-jurdicos. Recomendamos

    enfaticamente seu manual (BONAVIDES, ANDRADE, Histria Constitucional do Brasil, cit.), e ainda a

    interessantssima coletnea digital BONAVIDES, Paulo. ANDRADE, Paes de. Textos polticos da

    Histria do Brasil. V. 1 a 10. Braslia: Senado Federal, 2005 (cd-rom).

  • 3

    federativa e presidencial projetada sob forte influncia de RUI BARBOSA em 1891, a

    Carta de 1824 forma o legado clssico6 do constitucionalismo brasileiro.

    Evidentemente, os dois textos possuem grandes e inconciliveis

    divergncias, mas ambas so legtimas peas do Estado liberal de Direito, atentas

    formalizao do Direito, pouco ou nada afetas eficcia social da norma (ou, antes disto, possibilidade de sua concretizao).

    Ainda assim, a matriz da nacionalidade forjada no sculo XIX, a partir e

    no entorno dos dois textos.

    O impetuoso e arrogante Imperador DOM PEDRO I tinha grande clareza da

    importncia de uma constituio escrita para a consolidao do processo de

    Independncia deflagrado em 1822. Possua, tambm, uma absoluta convico de seu

    papel, de seu poder e de seu trono. No por outras razes que, ao ser coroado,

    testemunharia:

    Juro defender a Constituio que est para ser feita, se ela for digna do Brasil e de mim7.

    A impacincia, as intrigas, e o prprio ambiente de tenso entre liberais e

    nacionalistas, capitaneados pelos irmos ANDRADA8, e absolutistas adeptos dos

    interesses lusitanos, contriburam para que o Monarca, manu militare9, dissolvesse a

    Constituinte. Nas palavras de PAULO BONAVIDES e PAES DE ANDRADE:

    Era o primeiro desastre dos constitucionais na histria do Pas, com graves sinais de repercusses futuras. [...] Elemento

    importantssimo na formao da conscincia constitucional do

    pas desde os primrdios de nossa emergncia poltica como

    povo e nao sob o signo da liberdade, a Constituinte de 1823 se

    inscreve no rol das batalhas de alforria do povo brasileiro10.

    Em sentido semelhante, o Baro FRANCISCO IGNCIO MARCONDES HOMEM

    DE MELLO, em rico estudo originalmente publicado em 1863, pretendeu enlevar a figura

    dos constituintes de 1823, e seu papel fundamental na construo das bases do sistema

    6 Sobre os constitucionalismos clssico e social, v. BARACHO, Jos Alfredo de Oliveira. Teoria geral do constitucionalismo. Revista de informao legislativa, Braslia, Senado Federal, a. 23, n. 91, jul.-

    set. 1986, p. 35 et seq.

    7 BONAVIDES, ANDRADE, Histria Constitucional do Brasil, cit., p. 47. [Grifos nossos].

    8 ANTNIO CARLOS DE ANDRADA MACHADO, MARTIM FRANCISCO RIBEIRO DE ANDRADA e JOS BONIFCIO DE ANDRADA E SILVA todos eles batizados Ribeiro de Andrada Machado e Silva, mas assim diferenciados pela Histria e pela atuao na Constituinte, onde brilharam.

    9 Em toda histria constitucional do Brasil a nica Constituinte que a fora militar dissolveu foi a de 1823, anotam BONAVIDES e ANDRADE. Cf. BONAVIDES, ANDRADE, Histria Constitucional do Brasil, cit., p. 74.

    10 BONAVIDES, ANDRADE, Histria Constitucional do Brasil, cit., p. 71. [Grifos nossos].

  • 4

    constitucional brasileiro foram, em sua evocao, verdadeiros mrtires da ptria, cidados ilustres que esperavam plcidos e serenos a hora suprema do sacrifcio

    11.

    Na imediata seqncia do golpe, DOM PEDRO I cria o polmico Conselho de

    Estado, e o incumbe de elaborar um projeto de Constituio a ser submetido ao debate.

    O projeto que vem a lume baseia-se no Projeto Antnio Carlos elaborado pelo Relator da Constituinte de 1823, ANDRADA MACHADO, e em debate quando da

    dissoluo da Constituinte: a verdade que a fonte oculta dessa grande lei no seno o antigo projeto de Constituio12.

    JOS JOAQUIM CARNEIRO DE CAMPOS, futuro Marqus de Caravelas, e

    suposto autor do projeto constitucional divulgado pelo Imprio, nele incluiria o peculiar

    Poder Moderador, entre outras medidas, fortalecendo sobremaneira as prerrogativas do

    Monarca. O projeto sofre violentas crticas, mas o Imperador acaba por outorgar a

    Constituio Imperial.

    O Imperador seria, a partir de ento, duramente contestado. Em outro

    arroubo, abdica do trono em 7 de abril de 1831, evento que TEFILO OTONI compararia

    Revoluo Inglesa de 168813

    ; os liberais triunfam sobre os absolutistas: o pas v

    crescer a idia de uma monarquia federativa14

    .

    O Regente DIOGO ANTNIO FEIJ planeja aprofundar as conquistas:

    encomenda um projeto de nova Constituio, a ser promulgada por aclamao, depois de transformada a Cmara dos Deputados em Assemblia Nacional, caso vingasse a

    tentativa do golpe de estado parlamentar de 30 de julho de 183215. Apelos legalistas, no entanto, impedem a manobra. Malogra a chamada Constituio de Pouso Alegre.

    Dois anos depois, os liberais, com o apoio da Cmara, e sem a deliberao

    do Senado16

    , fazem aprovar o Ato Adicional, que concede relativa autonomia s

    Provncias17. Nem o Poder Moderador caiu nem a Federao se proclamou18, como

    registram BONAVIDES e PAES DE ANDRADE, mas mudanas verificaram-se.

    11 HOMEM DE MELLO, Francisco Igncio Marcondes, Baro. A Constituinte perante a Histria. 2. ed.,

    fac-similar. Braslia: Senado Federal, 1996, p. 15.

    12 BONAVIDES, ANDRADE, Histria Constitucional do Brasil, cit., p. 77. Para uma detalhada comparao entre o Projeto Antnio Carlos e a Constituio de 1824, v. HOMEM DE MELLO, A

    Constituinte perante a Histria., cit., p. 31-107.

    13 Apud BONAVIDES, ANDRADE, Histria Constitucional do Brasil, cit., p. 169. Sobre a Revoluo Inglesa, recomendamos CARVALHO NETTO, Menelick de. A Sano no Procedimento Legislativo.

    Belo Horizonte: Del Rey, 1992, p. 32 et. seq., e ainda: CHURCHILL, Sir Winston. Histria dos Povos de

    Lngua Inglesa; V. II, O Novo Mundo. Trad. Enas Camargo. So Paulo: IBRASA, 1960, passim.

    14 BONAVIDES, ANDRADE, Histria Constitucional do Brasil, cit., p. 111 et. seq.

    15 BONAVIDES, ANDRADE, Histria Constitucional do Brasil, cit., p. 163.

    16 BONAVIDES, ANDRADE, Histria Constitucional do Brasil, cit., p. 115.

    17 BONAVIDES, ANDRADE, Histria Constitucional do Brasil, cit., p. 116.

    18 Ibid, loc. cit.

  • 5

    No tardaria a reao, materializada na Lei de Interpretao de 12 de maio

    de 1840, um contragolpe conservador, que traria uma hermenutica restritiva dos poderes das cmaras provinciais, em proveito da autoridade central, nomeadamente em

    favor da competncia do poder legislativo geral19.

    Abalada por crises como a Confederao do Equador, no Nordeste, que

    durou semanas, e o Movimento dos Farrapos, que por vrios anos20

    sustentou a

    existncia de uma Repblica Rio-Grandense21, a Constituio de 1824 se manteve

    durante 65 anos, foi a mais longa de nossa histria constitucional e singularmente

    aquela que recebeu uma nica emenda, a Lei Constitucional de 12 de agosto de 1834, o

    chamado Ato Adicional22.

    Tal longevidade deve-se no somente personalidade e s qualidades

    mpares de DOM PEDRO II, mas tambm ao fato de que a verdadeira Constituio imperial no estava no texto outorgado, mas no pacto selado entre monarquia e a

    escravido23.

    De fato, a Constituio de 1824 fora produto de uma profunda tenso, no

    s entre brasileiros e portugueses, liberais e conservadores, centralistas e federalistas,

    mas uma dualidade manifesta nos prprios anseios do Monarca outorgante:

    Tudo terminou como Dom Pedro queria: uma Constituio outorgada; liberal em matria de direitos individuais, mas

    centralizadora e autoritria na soma dos poderes que concedia ao

    monarca constitucional24.

    Vale o registro da veemente imagem resgatada por BONAVIDES e PAES DE

    ANDRADE, que comparam a Carta de 24 a aquele xiquexique da imagem do nordestino vtima da seca a rvore que no dava sombra nem encosto, portanto, a Constituio que no dava liberdades nem limitava poderes25.

    Entretanto, a primeira Constituio brasileira, conquanto maculada, na

    origem, pela outorga imperial, apresentava curiosa sensibilidade precursora para o social, sem embargo de todo o teor individualista, no dizer de PAULO BONAVIDES e

    19 BONAVIDES, ANDRADE, Histria Constitucional do Brasil, cit., p. 122.

    20 BONAVIDES, ANDRADE, Histria Constitucional do Brasil, cit., p. 175.

    21 Chegando mesmo a instalar a Constituinte do Alegrete, cujos ideais foram obra precursora do constitucionalismo republicano e federativo que vingou depois no Brasil, com a queda da monarquia. Cf. BONAVIDES, ANDRADE, Histria Constitucional do Brasil, cit., p. 189.

    22 BONAVIDES, ANDRADE, Histria Constitucional do Brasil, cit., p. 94.

    23 BONAVIDES, ANDRADE, Histria Constitucional do Brasil, cit., p. 7.

    24 BONAVIDES, ANDRADE, Histria Constitucional do Brasil, cit., p. 80.

    25 BONAVIDES, ANDRADE, Histria Constitucional do Brasil, cit., p. 110.

  • 6

    PAES DE ANDRADE26, albergando algumas regras de constitucionalismo social, to

    peculiares s conquistas de nosso sculo27. que j

    No Projeto Antnio Carlos havia j o germe de uma declarao social de direitos, isto h mais de 150 anos. Com efeito, ele

    prometia escolas primrias em cada termo, ginsio em cada comarca e universidade nos mais apropriados locais (art. 150)28...

    Derrubado o Imprio pela via do golpe militar de 1889, proclamado sob os

    auspcios de grandes proprietrios, recm-expropriados de seus escravos, no tardaria a

    reconstitucionalizao do pas.

    Porm, mesmo RUI BARBOSA razes teve para se arrepender amargamente

    da cpia, infidelssima, que ento se promoveu da Constituio norte-americana.

    O grande jurista, que PINTO FERREIRA proclama o pai espiritual da carta republicana29, considerado por HOMERO PIRES, compilador dos seus Commentarios, o mais autorizado interprete do texto constitucional, aquelle que lhe redigiu quasi todos os artigos30.

    A Constituio de 1891, para PINTO FERREIRA esculturada segundo o estilo da Constituio norte-americana, com as idias diretoras do presidencialismo, do

    federalismo, do liberalismo poltico, e da democracia burguesa31, representou a consolidao do Estado laico no Brasil.

    Ainda assim, o carter pernicioso s instituies brasileiras da Constituio

    republicana basta lembrar a natural marcha para o Parlamentarismo, que DEODORO DA FONSECA obstara mais que patente. Entre outros, mencionamos BONAVIDES E ANDRADE:

    26 BONAVIDES, ANDRADE, Histria Constitucional do Brasil, cit., p. 100. A sociedade excludente de

    ento se preocupou com a construo de um texto avanado, e de modo especial alvissareiro no tocante

    Ordem Educacional, consagrando o ensino primrio gratuito: pode orgulhar-se o Brasil: o mais clssico dos princpios constitucionais reconhecidos em matria educacional , precisamente, o princpio da

    gratuidade de ensino; cf. HORTA, Direito Constitucional da Educao, cit., p. 41-2.

    . Com certo exagero, e em conexo com o tema deste estudo, lembraro BONAVIDES e PAES DE ANDRADE que a Constituio de 1824, entre outros avanos, declarava a instruo primria gratuita a todos os cidados; regras, portanto, de constitucionalismo social, to peculiares s conquistas de nosso sculo

    27 BONAVIDES, ANDRADE, Histria Constitucional do Brasil, cit., p. 101.

    28 Ibid, loc. cit.

    29 PINTO FERREIRA. Princpios Gerais do Direito Constitucional Moderno. 5. ed. T. I. So Paulo: RT,

    1971, p. 111.

    30 BARBOSA, Rui. Commentarios Constituio Federal Brasileira. V. I. Coligidos e ordenados por

    Homero Pires. So Paulo: Saraiva, 1932, p III.

    31 PINTO FERREIRA. Princpios Gerais do Direito Constitucional Moderno, cit., p. 111.

  • 7

    Durante o perodo republicano, o constitucionalismo de fico teve seu ponto culminante com a Carta de 1891 vazada no

    bacharelismo de Rui Barbosa e na confiana imitativa do

    modelo americano32...

    A iluso inicial do constitucionalismo brasileiro patente nas palavras de

    RUI:

    nossa lmpada de segurana ser o direito americano, suas antecedncias, suas decises, seus mestres. A Constituio

    Brasileira filha dele e a prpria lei nos ps nas mos esse foco

    luminoso33.

    Aps um processo constituinte recheado de formalismos (uma assemblia

    que no debate, uma comisso redatora que no chega a produzir um texto, um revisor

    que na verdade introduz linhas mestras), a Constituio afinal consagrada pela pressa34

    dos rebeldes de 1891 jamais esteve altura de suas grandes tarefas.

    curioso registrar que para PEDRO LESSA a falha maior no seria do texto:

    Que contristador espetculo ofereceramos ao mundo civilizado se lhe dissssemos: fizemos uma constituio superior nossa

    cultura intelectual e moral; sem capacidade para a compreender

    e praticar, vamos ensaiar uma inferior; constituies como a

    nossa atual servem unicamente para naes como a Amrica do

    Norte e a Repblica Argentina35.

    Sob o plio do Texto republicano, as oligarquias estaduais atingiram o

    apogeu; se o Imprio as sufocara, ante uma Constituio permissiva estruturaram no

    Pas um jogo de poder a clebre poltica dos governadores e de torpeza no uso da mquina pblica que at aqui no pde ser sepultado.

    A Carta, imprecisa e imprpria, permitiu de tal modo a degenerao da vida

    poltica brasileira que mesmo a Reviso Constitucional de 1926, que poria fim a quatro

    anos de estado de stio no Governo ARTHUR BERNARDES, no seria capaz de estabelecer

    a continuidade da governabilidade do Pas.

    32 BONAVIDES, ANDRADE, Histria Constitucional do Brasil, cit., p. 7 [grifos nossos].

    33 BARBOSA, Rui. Apud FONSECA, Annibal Freire da. A Constituinte de 1891, o Sistema Constitucional Brasileiro, objees e vantagens. In: PORTO, Walter Costa [Coord.]. A Constituio de

    1891. Braslia: Ministrio do Interior; Fundao Projeto Rondon, 1987?, p. 7.

    34 Alis, comenta OCTACIANO NOGUEIRA: O desejo de apressar a votao da Constituio, para que o pas entrasse o quanto antes no regime legal, levou os constituintes a s discutirem os pontos principais

    do projeto. NOGUEIRA, Octaciano. A Constituinte Republicana. In: PORTO, A Constituio de 1891, cit., p. 3.

    35 LESSA, Pedro. Apud FONSECA, A Constituinte de 1891, o Sistema Constitucional Brasileiro,

    objees e vantagens. PORTO, A Constituio de 1891, cit., p. 9.

  • 8

    Em termos de Direitos Fundamentais, a Carta de um laconismo altamente

    censurvel36

    . Era de mera formalizao, ora j superada.

    3. Constitucionalismo Social: a Constituio Corporativista (1934), o texto

    ditatorial (1937), a Constituio Democrtica (1946) e o Regime de Exceo (1967)

    O Constitucionalismo Social brasileiro filho de um dos mais belos

    momentos da histria poltica de nosso pas. A Revoluo de 1930, forjada na

    resistncia mineira ao predomnio paulista na Federao, talvez a nica verdadeira

    revoluo verificada no curso de nossa histria. Marca o incio do Estado social de

    Direito, com sua preocupao igualitarista, vazada no projeto jurdico do Estado de

    Bem-Estar Social, a partir de Weimar37

    universalizado no Ocidente, pela via da incluso

    no horizonte do constitucionalismo de dois elementos: os direitos sociais e as normas

    programticas (ou, como preferimos, polticas).

    RAUL MACHADO HORTA, com propriedade, assinalou:

    A introduo sistemtica dos direitos sociais na Constituio, alargando o contedo material das normas constitucionais,

    uma conquista do sculo atual38.

    Tais movimentos atendiam a um anseio evidente, que FBIO LUCAS, em

    interessante ensaio, assim traduziria: A tendncia de todos os povos de vocao democrtica fazer da liberdade uma garantia real e no mero postulado formal39.

    Neste sentido, FBIO LUCAS registraria ainda a importncia das

    constituies sociais, que teriam sobre si a responsabilidade de refletir os conflitos sociais dominantes e resolver os mais prementes problemas polticos do povo40.

    Por Estado social de Direito, numa perspectiva lata, estamos nos referindo

    tambm a fenmenos que, muito embora no constituam tcnica e ideologicamente

    Estados de Direito, possuem incontestveis conexes com o Estado social. Assim, a era

    do Constitucionalismo Social marcada no somente pelo Wellfare State, mas tambm

    36 Ainda que o artigo 78, moda que at hoje perdura, registre que A especificao das garantias e direitos expressos na Constituio no exclue outras garantias e direitos no enumerados, mas

    resultantes da frma de governo que ella estabelece e dos princpios que consigna.

    37 Weimar , para o Direito Constitucional europeu, uma espcie de microcosmo cultural, anota RAUL MACHADO HORTA [HORTA, Raul Machado. Constituio, Direitos Sociais e Normas Programticas.

    Revista do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais, Belo Horizonte, v. 29, n. 4, out.-dez. 1998, p.

    19.] Para uma detida anlise dos paradoxos e do contexto weimariano, THALMANN, Rita. A Repblica

    de Weimar. Trad. lvaro Cabral. Rio de Janeiro: Zahar, 1988.

    38 HORTA, Constituio, Direitos Sociais e Normas Programticas, cit., p. 18.

    39 LUCAS, Fbio. Contedo Social nas Constituies Brasileiras. Belo Horizonte: Faculdade de Cincias

    Econmicas da Universidade de Minas Gerais, 1959, p. 32.

    40 LUCAS, Contedo Social nas Constituies Brasileiras, cit., p. 38.

  • 9

    pelos totalitarismos de direita e de esquerda que assolaram o mundo, a includas tanto as ditaduras de cunho nazi-fascista e os militarismos quanto a mais radical e

    extremista manifestao dos valores do Estado social: o Estado Socialista.

    O ingresso do Brasil no Estado social de Direito era historicamente

    inevitvel, e imprescindvel a concesso de direitos sociais a ele afeta.

    Lastimavelmente, tivemos VARGAS, e no ANTNIO CARLOS41

    . E o

    constitucionalismo social brasileiro, filho da idia democrtica de ricas expresses nas

    Constituies de 1934 e de 1946, seria adotado pelo autoritarismo de exceo (paradoxalmente uma regra na histria republicana brasileira) e suas natimortas cartas

    de 1937 e 1967/1969.

    Registre-se a ponderada lio de BONAVIDES e PAES DE ANDRADE:

    Alis, o constitucionalismo social das quatro Constituies brasileiras deste sculo jamais operou por via eliminatria,

    cancelando direitos e garantias expressos nas antecedentes

    declaraes, mas antes obrou com vistas a conserv-los,

    modificando-lhes to-somente a ndole e o esprito, de tal

    maneira que os acrscimos de inspirao social se impusessem

    dominantes42.

    Aps a Revoluo Constitucionalista de So Paulo, em que os derrotados

    em 1930 exigiram o retorno do ditador aos marcos do Estado de Direito, foi imperativa

    a elaborao de nova Constituio.

    O Texto de 1934, que no dizer de PINTO FERREIRA sofreu decisiva influncia da Constituio de Weimar, um reflexo sul-americano dela43, representou significativo avano em matria de direitos fundamentais.

    Em que pesem os princpios corporativistas consagrados no s no Texto

    Constitucional, como no prprio processo constituinte, visualiza-se na democracia

    41 O presidente ANTNIO CARLOS, criador da UFMG (ento Universidade de Minas Gerais), democrata genuno, das mais slidas convices, governou Minas Gerais com grande xito, e deveria ter sido

    indicado pelo paulista WASHINGTON LUS para suced-lo na Presidncia da Repblica. Preterido pelo

    presidente paulista JLIO PRESTES, acabou apoiando a chapa encabeada pelo presidente gacho,

    GETLIO DORNELLES VARGAS. Houvesse ANTNIO CARLOS sido o ungido para comandar o pas,

    teramos certamente ingressado no Estado social pela via democrtica, jamais pelo getulismo

    ditatorialesco. Veja-se o resgate de FERNANDO CORREIA DIAS: O Presidente Antnio Carlos fundador da Universidade no um coronel nem representante muito fiel e muito menos exclusivo dos coronis. Tem compromisso com um esprito liberal mais refinado, que inclui certo respeito opinio pblica [DIAS, Fernando Correia. Universidade Federal de Minas Gerais: projeto intelectual e poltico. Belo

    Horizonte: Editora UFMG, 1997, p. 29].

    42 BONAVIDES, ANDRADE, Histria Constitucional do Brasil, cit., p. 321.

    43 PINTO FERREIRA, Princpios Gerais do Direito Constitucional Moderno, cit., p. 112.

  • 10

    social ento forjada, como o faz PINTO FERREIRA, smbolo de um compromisso do constitucionalismo com as novas tendncias proletrias, que dormitavam no mundo44.

    Como anotam BONAVIDES E ANDRADE,

    o contedo esttico do constitucionalismo republicano, por obra do reformismo da chamada Revoluo de 1930, acolheu

    uma novidade maior e substantiva: os ttulos sobre a ordem

    econmica e social, bem como sobre a famlia, a educao e a

    cultura45.

    Os sonhos revolucionrios, apenas formalizados com o trabalho da

    Constituinte de 1933/1934, jamais obtiveram respaldo do poder central. Dos

    comentaristas que trataram da mais breve Constituio brasileira trazemos os augrios

    dos sombrios tempos que sucederiam a poca analisada neste item; PONTES DE

    MIRANDA, por exemplo:

    Os autores da Constituo teem sido os seus maiores adversrios. O Ministrio da Justia e Negcios Interiores, a que

    cabia a obra de constitucionalizao do pas, manteve-se

    indiferente sorte da carta de 16 de julho de 1934. Certeza de

    que em breve caria?46

    E as palavras profticas de JOO MANGABEIRA47

    , falando sobre o ecletismo

    sadio da era que viviam:

    Constituio sem ecletismo, expresso total e absoluta de um systema, smente ser possivel, quando, aps uma revoluo

    social triumphante, uma grande personalidade impuser ao seu

    partido victorioso o predominio indiscutivel de sua intelligencia,

    seu prestigio e sua vontade [...].

    No era, nem poderia ser o caso da revoluo brasileira de 930,

    em cujo leito desaguavam correntes partidas de pontos oppostos,

    em cujo bojo se abrigavam os interesses mais antagonicos, em

    cujas fileiras se atropelavam as idas mais adversas, numa

    escala cromatica, que se distendia do vermelho das

    reinvindicaes marxistas ao negro da reaco clerical48.

    44 PINTO FERREIRA, Princpios Gerais do Direito Constitucional Moderno, cit., p. 113.

    45 BONAVIDES, ANDRADE, Histria Constitucional do Brasil, cit., p. 9.

    46 PONTES DE MIRANDA. Comentrios Constituio da Repblica dos E. U. do Brasil. T. I. Rio de

    Janeiro: Guanabara, 1936-7?, p. 590.

    47 Alis, relator-geral do anteprojeto governamental apresentado Assemblia Nacional Constituinte em 1933, cf. BONAVIDES, ANDRADE, Histria Constitucional do Brasil, cit., p. 307.

    48 MANGABEIRA, Joo. Em Torno da Constituio. So Paulo: Companhia Editora Nacional, 1934, p.

    13.

  • 11

    O ecletismo da Constituio de 1934, verdadeiro marco no territrio constitucional brasileiro49, transparece tambm nas palavras de RAUL MACHADO HORTA:

    O constitucionalismo liberal, que ainda permanece, recebeu o acrscimo do constitucionalismo social, lanando novos

    fundamentos e novas concepes, em latente conflito com o

    constitucionalismo liberal e individualista50.

    Fruto de uma legtima assemblia constituinte, e no de um congresso

    investido na funo, merece de BONAVIDES e PAES DE ANDRADE o elogioso registro:

    Em verdade, s houve na histria constitucional do Brasil, uma Constituinte que efetivamente cumpriu risca, em razo da

    forma correta de sua convocao, esse mandamento da doutrina

    mais escorreita: a de 193351.

    A Constituio Corporativa, que consagrou o princpio ambguo da representao profissional, no dizer de BONAVIDES e PAES DE ANDRADE, com escndalo de quantos liberais viam nele, primeiro, uma excrescncia perante os cnones

    da teoria representativa do Direito Constitucional, e, segundo, uma contradio viva

    com a doutrina liberal da Revoluo de 193052, no tardaria a ser substituda. A Constituio da instabilidade da ambigidade53, na feliz expresso dos mestres cearenses, uma tentativa, moda weimariana, de conciliao de opostos:

    A Carta uma colcha de retalhos, em que pese seu brilhantismo jurdico e sua lio histrica. Princpios

    antagnicos (formulados antagonicamente, inclusive) so postos

    lado a lado. Eles marcam duas tendncias claramente definidas,

    dois projetos polticos diversos. Um deles havia de prevalecer. O

    que efetivamente aconteceu: sobreveio a ditadura getulista a

    partir de 193754.

    Evidentemente, a Constituio de 1934, nos projetos getulistas, serviria

    apenas para legitimar sua condio de Presidente da Repblica; sob a Constituio, em

    1934, ele foi finalmente eleito Presidente, para um mandato de quatro anos. Em plena

    campanha sucessria, um ano antes do termo do mandato, enceta um golpe de Estado,

    que o permitiria permanecer no poder, como Ditador.

    49 HORTA, Raul Machado. Direito Constitucional. 4. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 55.

    50 HORTA, Direito Constitucional, loc. cit..

    51 BONAVIDES, ANDRADE, Histria Constitucional do Brasil, cit., p. 289.

    52 BONAVIDES, ANDRADE, Histria Constitucional do Brasil, cit., p. 301.

    53 BONAVIDES, ANDRADE, Histria Constitucional do Brasil, cit., p. 319.

    54 BONAVIDES, ANDRADE, Histria Constitucional do Brasil, cit., p. 320.

  • 12

    E a Constituio de 1934 perde vigncia, trs anos depois de promulgada,

    para ser substituda pela Carta de 1937, Carta semntica, nos termos da clssica

    tipologia das constituies de KARL LOEWENSTEIN55

    , quanto qual alertam PAULO

    BONAVIDES e PAES DE ANDRADE: A Carta de 1937, exceo feita aos dispositivos autoritrios que serviam aos interesses imediatos do poder, no teve aplicao56.

    Pouqussimas vezes na histria brasileira o povo e suas instituies

    representativas foram to vilipendiados quanto durante o chamado Estado Novo. O

    texto, em si, padece de redao imprecisa, e de uma torpe viso do Brasil e dos anseios

    dos brasileiros.

    Grandes mudanas sociais foram empreendidas, mas sempre sob a chefia

    inconteste de um Ditador sanguinrio, partcipe dos anseios totalitaristas de seu tempo

    (a expresso A Polaca57, pela qual a Constituio de GETLIO VARGAS conhecida58, bem o denota).

    O jamais realizado plebiscito, em que a populao poderia legitimar a Carta,

    no passava de um despistamento para facilitar o jogo do poder59.

    Evidentemente, o autor da Carta, catedrtico de Filosofia do Direito na

    UFMG e Ministro de Estado FRANCISCO CAMPOS, homem de grande inteligncia, vai

    amalgamar aos valores nazi-fascistas frmulas nacionalistas e de carter liberal60

    , quase

    numa salada ideolgica, como propem BONAVIDES e PAES DE ANDRADE61.

    Ainda assim, a Carta ditatorial traduz-se apenas na manifestao meramente

    formal de uma ditadura pessoal de inspirao fascista e totalitria62, felizmente expurgada no calor dos acontecimentos que se seguiram vitria dos Aliados

    democrticos na Grande Guerra de 1939/1945.

    Em pgina memorvel acerca da Constituio que deu fundamentos

    experincia democrtica brasileira, anotam BONAVIDES e ANDRADE:

    55 LOEWENSTEIN, Karl. Rflexions sur la valeur des Constitutions dans une poque rvolutionnaire. Revue Franaise de Science Politique, p. 21, jan.-jun. 1952, apud HORTA, Direito Constitucional, cit., p.

    56.

    56 BONAVIDES, ANDRADE, Histria Constitucional do Brasil, cit., p. 342.

    57 BONAVIDES, ANDRADE, Histria Constitucional do Brasil, cit., p. 331.

    58 Em referncia evidente Constituio da Polnia, da qual recebe maiores influncias, cf. BONAVIDES, ANDRADE, Histria Constitucional do Brasil, cit., p. 339.

    59 BONAVIDES, ANDRADE, Histria Constitucional do Brasil, cit., p. 340.

    60 Cf. CARONE, Edgard. A Terceira Repblica; 1937-1945. So Paulo: DIFEL, 1976, p. 142, apud

    BONAVIDES, ANDRADE, Histria Constitucional do Brasil, cit., p. 345.

    61 BONAVIDES, ANDRADE, Histria Constitucional do Brasil, cit., p. 345.

    62 BONAVIDES, ANDRADE, Histria Constitucional do Brasil, cit., p. 349.

  • 13

    A Constituio de 1946 nos traz a certeza de que toda ditadura, por mais longa e sombria, est determinada a ter um fim. E, no

    caso da ditadura de Vargas, pode-se dizer que a luz que se

    seguiu s trevas foi de especial intensidade: o liberalismo do

    texto de 46 deve ser motivo de orgulho para todos os brasileiros.

    Foi parmetro importante para nossa recente experincia

    constituinte e h de ser lembrada com ateno e respeito63.

    visvel, no caso do processo constituinte de 1946, no somente a intensa

    presena do contraditrio que caracteriza a democracia, inclusive com a respeitvel

    presena de representantes comunistas, mas principalmente o esforo dos constituintes

    na produo de um texto preciso, claro, afeto a um povo que se levantava de um longo

    pesadelo e acordava disposto a construir seu prprio futuro.

    como registram os mestres cearenses:

    Entre o autoritarismo de Vargas e o dos militares do movimento de 64 soprou um vento renovador e liberal em solo

    brasileiro: o da Constituio de 194664.

    claro que a perfeio no existe. Mas, como crtica e defesa do texto final

    produzido pela Constituinte, mais uma vez acompanhamos BONAVIDES e ANDRADE:

    A obra dos constituintes de 1946 representou evidente compromisso entre foras conservadoras e foras progressistas

    atuantes, compromisso que repartiu doutrina e tcnica, ficando a

    doutrina principalmente com o futuro e as tcnicas

    preponderantemente com o passado65.

    Esteio da nica e verdadeira grande experincia democrtica verificada na

    histria brasileira (at porque essencialmente fundada em partidos polticos claramente

    definidos), a Constituio de 1946 um monumento ao pas, que apenas quedou ante a

    profunda extremizao ideolgica que se abateu sobre o Brasil, e que acabou nos

    deixando um triste legado de vinte anos de represso e medo, incompetncia e

    autoritarismo.

    Afinal, em menos de vinte anos o Pas novamente seria vtima de pretenses

    autoritrias. Os golpes e contragolpes que sucederam maro de 1964 transformaram os

    agitados anos da Experincia Democrtica em nostalgia.

    Comenta RAUL MACHADO HORTA:

    63

    BONAVIDES, ANDRADE, Histria Constitucional do Brasil, cit., p. 409.

    64 BONAVIDES, ANDRADE, Histria Constitucional do Brasil, cit., p. 333.

    65 BONAVIDES, ANDRADE, Histria Constitucional do Brasil, cit., p. 416.

  • 14

    A Constituio Federal de 1946, obra de equilbrio poltico e documento que exprimiu o amadurecimento da experincia

    constitucional brasileira, submergiu na voragem de 21 emendas

    constitucionais, de 4 atos institucionais e de 33 atos

    complementares66.

    Emergia o constitucionalismo de exceo, que imps ao pas uma tecno-

    ditadura ainda maior e mais longa que a de VARGAS.

    Sobre tal fase, pontifica JOSAPHAT MARINHO:

    No quadro do Direito, tda lei polmica. Destinada a regular fatos e formas de comportamento variveis no espao e no

    tempo, a norma jurdica submetida, incessantemente, a

    contrastes que abalam seu contedo lgico e sua fra

    imperativa. A rebeldia da realidade mutvel disciplina

    uniforme torna sempre discutida a dimenso das regras

    estabelecidas, ainda quando seguramente elaboradas. [...] A

    Constituio do Brasil, de 1967, mais do que polmica, um

    estatuto que nasceu impugnado, por sua origem, por seu

    contexto, por suas contradies67.

    Dificilmente, entretanto, pode supor-se que o Brasil possuiu Constituio

    escrita, fora dos dispositivos dos abominveis atos institucionais. BONAVIDES e PAES DE

    ANDRADE so certeiros: a verdadeira Constituio daqueles anos foram os atos institucionais68.

    O texto, que serviu para transmitir a impresso de que vivamos em um estado democrtico69, absolutamente secundrio num movimento que (como anuncia o Ato Institucional de abril de 1964), vitorioso, legitima-se a si mesmo. Mas havia que

    se institucionalizar a revoluo, e para isto seria preciso tempo70 (da o sucessivo adiamento do retorno do pas normalidade democrtica) e tambm uma nova Carta

    Constitucional71

    , aprovada numa verdadeira farsa constituinte72

    at porque, nos dizeres do prprio AI-1,

    66 HORTA, Direito Constitucional, cit., p. 60.

    67 MARINHO, Josaphat. Prefcio. SARASATE, Paulo. A Constituio do Brasil ao alcance de todos. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1968, p. XXIX.

    68 BONAVIDES, ANDRADE, Histria Constitucional do Brasil, cit., p. 430.

    69 BONAVIDES, ANDRADE, Histria Constitucional do Brasil, cit., p. 433.

    70 BONAVIDES, ANDRADE, Histria Constitucional do Brasil, cit., p. 429.

    71 BONAVIDES, ANDRADE, Histria Constitucional do Brasil, cit., p. 431.

    72 BONAVIDES, ANDRADE, Histria Constitucional do Brasil, cit., p. 432.

  • 15

    Fica, assim, bem claro que a revoluo no procura ligitimar-se

    atravs do Congresso. ste que recebe dste Ato Institucional,

    resultante do exerccio do Poder Constituinte, a sua ligitimao.

    Muitos dos homens de 1964, definitivamente, no so homens de 1967, e

    menos ainda de 1969. Talvez o exemplo mais evidente seja CARLOS LACERDA, lder em

    1964, cassado pouco tempo depois. Como tantos, LACERDA acreditara num breve

    retorno democracia (seria candidato, contra JUSCELINO KUBITSCHEK, em 1965); a

    sombria realidade, entretanto, traiu o sentido do movimento de 1964, legando ao Pas

    mais uma ditadura.

    Na constatao de nossos mestres cearenses:

    A interveno cirrgica acabou durando mais do que se imaginava. O arbtrio se instalou definitivamente e a sociedade

    foi emudecida, seus lderes perseguidos, torturados,

    assassinados73.

    A escalada do arbtrio, que atinge seu pice com o AI-5 (13 de dezembro de

    1968), consolida-se com a Emenda n. 1, de 1969, outorgada por uma junta militar, que

    reeditou a Constituio de 1967 com alteraes em parte significativa de seu texto.

    JOS RIBAS VIEIRA refere-se ao ocorrido como um Estado de Exceo

    hbrido, com alto grau de pouca densidade de legitimao e de profunda presena autoritria74.

    4. Constitucionalismo Democrtico: a Constituio Federal de 1988

    O Constitucionalismo dito democrtico opera, em nossos tempos, a anlise

    do Estado democrtico de Direito, com suas nuanas e vicissitudes.

    O Estado democrtico de Direito, enquanto momento do Estado de

    Direito75

    , parece deitar suas razes na perspectiva de internacionalizao das conquistas

    humanas, que ganhou grande dimenso no ps-guerras, sobretudo com a criao da

    ONU (Organizao das Naes Unidas).

    Um novo valor, como anota BONAVIDES, vai passar a ocupar o centro das

    indagaes da Teoria do Estado: o valor solidariedade76

    . Assim, surge em 10 de

    73 BONAVIDES, ANDRADE, Histria Constitucional do Brasil, cit., p. 431.

    74 VIEIRA, Jos Ribas. O autoritarismo e a ordem constitucional no Brasil. Rio de Janeiro: Renovar,

    1988, p. 59.

    75 HORTA, Horizontes Jusfilosficos do Estado de Direito, cit.

    76 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 5. ed. So Paulo: Malheiros, 1994, p. 522 et

    seq.

  • 16

    dezembro de 1948 a Declarao Universal dos Direitos do Homem, documento de

    enorme importncia histrica e que situamos como o marco inicial do Estado

    democrtico de Direito, tal como Weimar marcou o constitucionalismo social e as

    revolues na Inglaterra, Estados Unidos da Amrica e Frana, o Estado liberal.

    Urge conferir ao Estado democrtico de Direito tambm dimenses internas,

    consolidadas tanto na lei e na doutrina como no plano dos valores.

    fato que, at aqui, os juristas que vm se debruando sobre o tema acabam

    perdendo-se em divagaes nada jurdicas e comportando-se como socilogos

    enfadonhos ao justificarem o Estado democrtico de Direito em bases fticas de graves

    conseqncias, na medida em que, ao identificarem-no a partir de manifestaes tais

    como aumento de mecanismos de participao popular na democracia, gradual

    fortalecimento de associaes civis e comunitrias, e sobretudo da reduo do espao

    estatal em relao ao espao pblico, acabam caindo no canto da sereia da ideologia neo-liberal.

    Um caminho possvel, e antevisto por JOAQUIM CARLOS SALGADO, o de

    aliar a legitimidade formal do estado democrtico (trata-se, aqui, de sua forma poltica) material do estado de direito (estado com ratio tica), perspectiva que pode suprir uma evidente carncia da doutrina jurdica: propiciar contornos precisos para o

    Estado Democrtico de Direito, embasados no em leituras sociologizantes ou

    concepes ideolgicas, mas no consagrado cnon da tradio filosfica ocidental77

    .

    O constitucionalismo desta virada de milnio, assim, assinalado

    substancialmente por conflitos e angstias. As instituies polticas passam por detido

    reexame, e o saber avana de modo sem par.

    A Constituio Federal de 1988 formaliza sua adeso ao Estado

    democrtico de Direito j em seu primeiro artigo. Urge, ento, que proporcionemos

    respostas altura do Texto, que preencham as insofismveis lacunas que vo da

    Constituio formal vivncia plena (e plenificadora) do Estado democrtico de

    Direito.

    A precisa descrio de BONAVIDES e PAES DE ANDRADE impe-se

    considerao de todos ns:

    Foi ela a primeira Constituinte brasileira que no se originou de uma ruptura anterior das instituies [...] a ruptura [...] se operou

    na alma da Nao, profundamente rebelada contra o mais longo

    eclipse das liberdades pblicas: aquela noite de 20 anos sem

    parlamento livre e soberano, debaixo da tutela e violncia dos

    atos institucionais, indubitavelmente um sistema de exceo,

    77 HORTA, Horizontes Jusfilosficos do Estado de Direito, cit.

  • 17

    autoritarismo e ditadura cuja remoo a Constituinte se

    propunha faz-lo, como em rigor o fez78.

    A reconstitucionalizao do pas havia sido exigida, em praa pblica, pelas

    elites e pelas massas; o milagre econmico do incio da dcada de 1970 esgotara-se;

    greves sacudiram o regime; a volta de grandes lderes, pela via da Anistia, somara-se ao

    gradual sucesso da oposio, nas urnas, conquistado desde as eleies senatoriais de

    1974. A resistncia ao regime, em 1966 acomodada num Movimento Democrtico

    Brasileiro de fora controlada, ameaara o equilbrio do poder ao final da dcada de

    1970, restando ao establishment, na sequncia da Anistia, divid-la: se LEONEL BRIZOLA

    queria um partido, no seria a histrica sigla PTB; se BRIZOLA queria um partido

    sindical, ento era preciso criar um Partido dos Trabalhadores para a ele opor-se; se a

    oposio seduzia-se pela idia de pluripartidarismo79

    , ento o General GOLBERY DO

    COUTO E SILVA seria o perfeito articulador da transio democrtica80

    .

    Sobrevinda a Nova Repblica de TANCREDO NEVES, o Presidente JOS

    SARNEY, a 18 de julho de 1985, nomeia a clebre Comisso de Notveis81

    , cujos

    78 BONAVIDES, ANDRADE, Histria Constitucional do Brasil, cit., p. 451.

    79 Somos de opinio que, naqueles anos, cometeram-se, por parte da oposio, dois grandes erros. O

    primeiro deles foi fragmentar-se, a partir das estratgias de GOLBERY; houvesse o PMDB recebido o

    contingente de lderes que o Regime acomodou no PDT (Partido Democrtico Trabalhista), no PT (Partido dos Trabalhadores) e no PTB (Partido Trabalhista Brasileiro) e teria atingido uma hegemonia

    inconteste, podendo, num segundo momento, inclusive gerar dois partidos em vez disto, em prol da democracia, temos sofrido com partidos sem consistncia ideolgica, criados pelo apelo pessoal de um ou

    dois lderes de expresso regional; no bipartidarismo teramos tido uma maior identificao ideolgica,

    ainda que tal fosse apenas uma transio para um pluripartidarismo natural, no artificializado pelos

    generais. O segundo grande erro, que dispensa comentrios, foi exigir diretas para presidente, ao invs de

    propor o parlamentarismo. H recente biografia do PMDB, organizada pelo respeitado lder poltico

    mineiro, TARCSIO DELGADO, que elucida muitos importantes momentos da vida brasileira: DELGADO,

    Tarcsio. A histria de um rebelde; 40 anos 1966-2006. Braslia: Fundao Ulysses Guimares, 2006.

    80 Interessante notar que o modelo GOLBERY continua vigente; dos cinco partidos de 1980 o partido nmero 1, Democrtico Social (PDS, hoje, aps a incorporao de partidos nanicos, PP, Partido Progressista, com a sigla 11), o partido nmero 2, Democrtico Trabalhista (PDT, hoje 12), o partido

    nmero 3, dos Trabalhadores (PT, hoje 13), o partido nmero 4, Trabalhista Brasileiro (PTB, hoje 14, e o

    partido nmero 5, do Movimento Democrtico Brasileiro (PMDB, hoje 15) apenas o PTB no est entre os sete maiores partidos polticos brasileiros, conforme as eleies parlamentares de 2006. Na

    condio de grandes e mdios partidos, aos demais agregaram-se apenas o Partido da Frente Liberal

    (PFL, legenda 25, criado para abrigar a dissidncia do ento PDS que viabilizaria a candidatura de

    Tancredo Neves e Jos Sarney pelo PMDB presidncia da Repblica em 1985), o Partido Socialista

    Brasileiro (PSB, legenda 40, refundao de antigo partido gerado a partir da Unio Democrtica

    Nacional) e o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB, legenda 45, criado em plena Constituinte).

    81 Os catedrticos da Faculdade de Direito da UFMG, nossa alma mater, integrantes de tal comisso

    foram: EDGAR DE GODI DA MATTA MACHADO, ORLANDO MAGALHES CARVALHO e RAUL MACHADO

    HORTA. V., a propsito, o interessante quadro comparativo (entre a Carta de 1967 e o Anteprojeto dos Notveis) organizado pela equipe tcnica do Senado, RANGEL, Leila Castelo Branco. [Dir.] Anteprojeto

    Constitucional. Braslia: Senado Federal, 1986. ITAMAR DE OLIVEIRA, em enriquecedor texto, anota que a

    Comisso Afonso Arinos possua diversos comits regionais: Braslia ficou sob a responsabilidade do Ministro da Justia Paulo Brossard; Recife sob a coordenao de Josaphat Marinho; Belo Horizonte, sob

    a coordenao do professor Raul Machado Horta; Rio de Janeiro, coordenao de Evaristo de Morais

    Filho; So Paulo, sob a presidncia de Miguel Reale; cf. OLIVEIRA, Itamar, O PMDB e a Constituio

  • 18

    trabalhos concluram-se a 18 de setembro do ano seguinte, sendo arquivados pelo

    Governo (e no remetidos Constituinte que, a estas alturas, j havia sido convocada

    pela Emenda n. 26, de 27 de novembro de 1985).

    A Constituinte, os vinte meses mais fecundos de nossa histria constitucional, no dizer de BONAVIDES e PAES DE ANDRADE, foi assim uma espcie de universidade popular, de aula de civismo, que funcionou com toda abertura e

    liberdade82; ao final de seus trabalhos, ao todo 61.020 emendas foram debatidas, 122 delas emendas populares, subscritas por centenas de milhares de cidados.

    O pas respirava otimismo, cidadania, brasilidade. O discurso do grande

    timoneiro da nacionalidade, na promulgao do Texto, reflete plenamente a pujana da

    Constituinte de 1987-1988. Nas imortais palavras de ULYSSES GUIMARES:

    Chegamos! Esperamos a Constituio como o vigia espera a aurora. [...] Quanto a ela, discordar sim. Divergir, sim.

    Descumprir, jamais. Afront-la, nunca. Traidor da Constituio

    traidor da Ptria. Conhecemos o caminho maldito: rasgar a

    Constituio, trancar as portas do Parlamento, garrotear a

    liberdade, mandar os patriotas para a cadeia, o exlio, o

    cemitrio. [...] Todos os dias, quando divisava, na chegada ao

    Congresso, a concha cncava da Cmara rogando as benos do

    cu e a convexa do Senado ouvindo as splicas da terra, a

    alegria inundava meu corao. [...] O Estado autoritrio prendeu

    e exilou; a sociedade, com Teotnio Vilela, pela anistia, libertou

    e repatriou. A sociedade foi Rubens Paiva, no os fascnoras que

    o mataram. [...] Que a promulgao seja nosso grito Mudar para vencer. Muda Brasil!83.

    Nem todo o otimismo da nao, entretanto, foi suficiente para efetivar a

    Constituio.

    Os setores conservadores, numa triste melodia, tm desferido todo tipo de

    ataque ao Texto, mormente aps a queda do Muro de Berlim, em 1989, e que

    simbolizou para muitos o fim de toda e qualquer divergncia ideolgica, com a absoluta

    preponderncia dos valores liberais sobre os igualitarismos de matriz socialista. A

    direita venceu a Guerra Fria, e ento somos, todos, social-democratas, vo defender

    aos brados.

    de 1988, apud DELGADO, A histria de um rebelde, cit., p. 351. (As biografias dos coordenadores

    regionais do conta da excelncia da Comisso, no sem razo chamada de Notveis). de orgulhar-se

    que a Comisso foi dirigida por dois mineiros de grande projeo: AFONSO ARINOS DE MELLO FRANCO,

    seu Presidente, e MAURO SANTAYANA, seu Secretrio-Executivo.

    82 BONAVIDES, ANDRADE, Histria Constitucional do Brasil, cit., p. 516. Acerca dos bastidores da

    Constituinte, na perspectiva do partido poltico nela hegemnico, v. OLIVEIRA, Itamar, O PMDB e a

    Constituio de 1988, apud DELGADO, A histria de um rebelde, cit., p. 348-59.

    83 Apud BONAVIDES, ANDRADE, Histria Constitucional do Brasil, cit., p. 921-5.

  • 19

    O discurso subjacente s eleies brasileiras de 198984

    , e a guinada direita

    dos fundadores do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) verificada na

    dcada de 1990, e do Partido dos Trabalhadores, nos anos 2000, simbolizam perfeio

    a crise da utopia libertria. (Crise, todavia, no implica em fim. Por todos, veja-se

    NORBERTO BOBBIO e sua excelente reflexo Direita e Esquerda85

    .)

    5. Preldios de reconstitucionalizao.

    Observe-se, com RAUL MACHADO HORTA86

    , que a Constituio de 1946

    sofreu 21 emendas em 21 anos de vigncia (alm de 4 atos institucionais), a Carta de

    1967 recebeu 27 emendas, em 21 anos, e a Constituio de 1988, em seus 15 anos, j

    recebera mais de quarenta emendas. Em dados verificados no momento de concluso

    deste ensaio, j se promulgaram 59 (cinqenta e nove) emendas constitucionais.

    Jamais uma Constituio brasileira foi to barbaramente retalhada; os

    ataques Constituio, perpetrados nos governos FERNANDO COLLOR DE MELLO,

    FERNANDO HENRIQUE CARDOSO e LUS INCIO LULA DA SILVA, tm desfigurado

    aspectos significativos da manifestao nacional de 1988. J no existem mais os pactos

    fundantes, firmados diante da Nao, entusiasmada, pelos constituintes.

    Anuncia-se, portanto, a incerta hora da recomposio do tecido

    constitucional, esgarado pela insensibilidade poitica87

    .

    Temos j os prenncios da reconstitucionalizao do Brasil.

    84 Em 1989, os presidenciveis FERNANDO COLLOR DE MELLO (Partido da Reconstruo Nacional, PRN) e LUIS INCIO LULA DA SILVA (PT) manifestaram-se social-democratas, enquanto GUILHERME AFIF

    DOMINGOS (Partido Liberal, PL), MRIO COVAS (PSDB) e ROBERTO FREIRE (Partido Comunista

    Brasileiro, PCB) empreenderam tentativas de fuso dos valores de esquerda e de direita.

    85 BOBBIO, Norberto. Direita e Esquerda; razes e significados de uma distino poltica. So Paulo: EdUNESP, 1995.

    86 HORTA, Direito Constitucional, cit., p. 13.

    87 A expresso Estado poi t ico proposta por JOAQUIM CARLOS SALGADO [SALGADO, Joaquim

    Carlos. O Estado tico e o Estado Poitico. Revista do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais,

    Belo Horizonte, v. 27, n. 2, abr.-jun. 1998, p. 42-3] a partir do grego poiein (fazer, produzir): o Estado

    que se rege pela lei econmica do supervit e do lucro: O Estado Poitico a ruptura no Estado tico contemporneo que alcanou a forma do Estado de Direito (p. 54). A nfase na poiese implica em tornar secundria a rat io tica do Estado de Direito: O elemento central e essencial do Estado de Direito postergado, pois o jurdico, o poltico e o social so submetidos ao econmico. O Estado

    poitico no tem em mira a produo social. Entra em conflito com a finalidade tica do Estado de Direito, abandonando sua tarefa de realizar os direitos sociais (sade, educao, trabalho), violando os

    direitos adquiridos, implantando a insegurana jurdica pela manipulao sofstica dos conceitos jurdicos

    atravs mesmo de juristas com ideologia poltica serviente, exercendo o poder em nome de uma faco

    econmico-financeira (p. 58). Tal faco (nossa velha conhecida, no caso brasileiro) age margem do Direito, ocupando postos chave na construo das polticas pblicas: O grave risco do Estado poitico a sua natureza para tender para a autocracia atravs da burotecnocracia. que, depois de ter criado as

    premissas da catstrofe econmica, com ela ameaa para obter mais poder (p. 63). Escrevemos contra o Estado poitico em nosso HORTA, Horizontes Jusfilosficos do Estado de Direito, cit.

  • 20

    Ponderou RAUL MACHADO HORTA:

    Nas proximidades dos quinze anos de sua existncia, a Constituio de 1988 vem experimentando intensa atividade

    revisionista [...] Pelo volume da sua abrangncia e a velocidade

    de sua manifestao, alcanou as dimenses mais avanadas do

    revisionismo, sem precedentes na histria constitucional

    brasileira [...] No Direito Constitucional Brasileiro, o volume

    pletrico de emendas, identificando a pluralidade das leis

    constitucionais, tem conduzido ruptura da Constituio

    existente e elaborao de nova Constituio, em procedimento

    cuja regularidade de suas etapas sucessivas dispe das

    caractersticas de lei de fenomenologia constitucional de nosso

    pas. o que demonstra a relao de causalidade, verificada sob

    a vigncia das Constituies de 1946 e 196788.

    (Interessante anotar: a Constituio de 1946 sofreria abalo inequvoco aos

    dezoito anos de vigncia, com o 31 de maro de 1964, e teria vigncia formal at os

    vinte e um anos, em 1967; a Carta de 1967 sofreria abalo inequvoco aos dezoito anos

    de vigncia, com a convocao da Constituinte pela via da Emenda n. 26, de 1985, e

    teria vigncia formal at os vinte e um anos, em 1988. A Constituio de 1988 acaba de

    completar dezoito anos...)

    A ruptura da Constituio de 1988 no parece verificar-se na conscincia

    dos juristas, que ainda no se deram conta de sua fraqueza jurdico-poltica. Os imensos

    dficits de legitimidade vem sendo atribudos, equivocadamente, s instituies, e no

    ao Poder que as institui. Critica-se o Estado em todas as suas dimenses, demonstra-se o

    amplo descrditos das instituies democrticas e governos, do Judicirio e do aparato

    policial.

    A cidadania e seu plexo de direitos, outrora f inabalada, hoje no passam

    de desiluso. Alguns direitos tornaram-se efetivos (sobretudo no tocante igualdade e

    no discriminao e ao respeito diferena); outros, pginas vazias ou arriscadas

    (direito ao trabalho, educao, sade, previdncia). Avanamos em direitos

    individuais e transindividuais; retrocedemos em direitos sociais e econmicos. No

    campo dos direitos polticos, onde era de esperar-se a maturidade da democracia

    brasileira, temos a absoluta despolitizao da poltica: partidos hegemnicos

    semelhantes, ausncia de debates ideolgicos, repetio de estratgias governamentais,

    abolio das militncias (estudantil, sindical etc). Sombrios tempos de anomia e de

    anemia poltica.

    A apatia e descrena na participao popular e na militncia partidria so

    evidente prova do esgotamento do modelo pluripartidrio gestado pelo Gal. GOLBERY

    DO COUTO E SILVA, a que j nos referimos. Nossos partidos no nos representam mais.

    88 HORTA, Direito Constitucional, cit., p. 13.

  • 21

    A Reconstitucionalizao do Brasil exigida pela sua estrutura jurdica, que

    j no comporta tamanho descompasso entre a Constituio em retalhos e a necessidade

    de um norte real e efetivo para a atuao do Estado.

    No necessria uma revoluo para que seja iniciado o processo

    (re)Constituinte; nossa prpria histria mostra o sucesso da convocao da Assemblia

    Constituinte por via de Emenda Constituio de 1988. Alm de evidenciar-se a

    maturidade poltica do Brasil, a convocao por Emenda preserva as clusulas ptreas,

    como lembra JOAQUIM CARLOS SALGADO, particularmente os direitos fundamentais89

    .

    A ser instalada adequadamente, pela via de genuna Assemblia

    Constituinte, exclusiva em seus altos misteres, e no pela via da concesso de poderes

    constituintes ao Congresso Nacional, poderemos retomar importantes debates, parte

    deles j travados na tradio brasileira. Com temrio vigoroso, pode-se repensar: o

    pacto de direitos fundamentais (ampliando o elenco de direitos, particularmente com

    direitos culturais), o pacto poltico (corrigindo a indita federao tripartite, formulando

    ampla reforma poltica, redimensionando a estrutura tributria), o pacto social (j se fala

    em concertao), o pacto econmico (com a constitucionalizao de limites

    globalizao). Pauta, como se v, o que no falta90

    .

    No precisamos temer uma nova Constituinte. Ao contrrio, sua convocao

    j se insinua na linha do horizonte, na forma de verdadeiro imperativo da restaurao da

    vida poltica brasileira. J hora de uma nova gerao inscrever suas idias e

    perspectivas na histria constitucional brasileira.

    Referncias Bibliogrficas

    BARACHO, Jos Alfredo de Oliveira. Teoria geral do constitucionalismo. Revista

    de Informao Legislativa, Braslia, Senado Federal, a. 23, n. 91, p. 5-62, jul.-set. 1986.

    BARBOSA, Rui. Commentarios Constituio Federal Brasileira. V. I. Coligidos e

    ordenados por Homero Pires. So Paulo: Saraiva, 1932.

    BOBBIO, Norberto. Direita e Esquerda; razes e significados de uma distino

    poltica. So Paulo: EdUNESP, 1995.

    89 SALGADO possui interessante reflexo sobre o tema dos direitos fundamentais, pensada no contexto da Constituinte de 1988 e republicada em SALGADO, Joaquim Carlos. Os Direitos Fundamentais. Revista

    Brasileira de Estudos Polticos, Belo Horizonte, UFMG, n. 82, p. 15-69, jan. 1996, que inspirou nosso

    ensaio Filosofia dos Direitos Fundamentais, a ser publicado em 2007.

    90 E o exame das inmeras sugestes construdas pela Comisso de Notveis pode apresentar ainda muitas

    outras, como sugere MAGALHES, Marcos. O caminho dos notveis; Anteprojeto de Constituio

    elaborado h 20 anos por representantes da sociedade poderia enriquecer o debate sobre a reforma

    poltica. In: http://www.congressoemfoco.com.br/DetArticulistas.aspx?articulista=302&colunista=3,

    disponvel em nov. 2006.

  • 22

    BONAVIDES, Paulo. ANDRADE, Paes de. Histria Constitucional do Brasil. Braslia:

    Senado Federal, 1989.

    BONAVIDES, Paulo. ANDRADE, Paes de. Textos polticos da Histria do Brasil. V. 1

    a 10. Braslia: Senado Federal, 2005 (cd-rom).

    BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 5. ed. So Paulo: Malheiros,

    1994.

    CARVALHO NETTO, Menelick de. A Sano no Procedimento Legislativo. Belo

    Horizonte: Del Rey, 1992.

    CHURCHILL, Sir Winston. Histria dos Povos de Lngua Inglesa; V. II, O Novo

    Mundo. Trad. Enas Camargo. So Paulo: IBRASA, 1960.

    DELGADO, Tarcsio. A histria de um rebelde; 40 anos 1966-2006. Braslia: Fundao

    Ulysses Guimares, 2006.

    DIAS, Fernando Correia. Universidade Federal de Minas Gerais: projeto intelectual e

    poltico. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1997.

    HEGEL, G.W.F. Princpios da filosofia do direito. Trad. Orlando Vitorino. So Paulo:

    Martins Fontes, 1997.

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    HORTA, Jos Luiz Borges. Direito Constitucional da Educao. Belo Horizonte:

    Declogo, 2007.

    HORTA, Jos Luiz Borges. Filosofia dos Direitos Fundamentais, indito.

    HORTA, Jos Luiz Borges. Horizontes jusfilosficos do Estado de Direito; uma

    investigao tridimensional do Estado liberal, do Estado social e do Estado

    democrtico, na perspectiva dos Direitos Fundamentais. Belo Horizonte: Faculdade de Direito da UFMG, 2002 (Tese, Doutorado em Filosofia do Direito).

    HORTA, Jos Luiz Borges. Ratio juris, ratio potestatis; breve abordagem da misso e

    das perspectivas acadmicas da Filosofia do Direito e do Estado. In: Anais do

    XIV Encontro Nacional do Conpedi (Conselho Nacional de Pesquisa e Ps-Graduao em Direito), Fortaleza, 03-05 nov. 2005. (publicao em cd-rom).

    HORTA, Raul Machado. Constituio, Direitos Sociais e Normas Programticas.

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    HORTA, Raul Machado. Direito Constitucional. 4. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003.

    LUCAS, Fbio. Contedo Social nas Constituies Brasileiras. Belo Horizonte:

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    MAGALHES, Marcos. O caminho dos notveis; Anteprojeto de Constituio

    elaborado h 20 anos por representantes da sociedade poderia enriquecer o debate

    sobre a reforma poltica. In:

    http://www.congressoemfoco.com.br/DetArticulistas.aspx?articulista=302&colun

    ista=3, disponvel em nov. 2006.

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    Resumo

    O artigo percorre a histria constitucional brasileira e rene elementos para a

    compreenso do iminente processo de reconstitucionalizao do pas.

    Palavras-chave

    Brasil: Histria constitucional; Constituies brasileiras; Constituinte.