constituicoes brasileiras v4 1937

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Constituição brasileira de 1937 e o contexto histórico.

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  • AlexNotahttp://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/137571/Constituicoes_Brasileiras_v4_1937.pdf?sequence=9

  • Principal autor da Constituio de 1937, Francisco Campos entendeu no haver diferena conceitual entre plebiscito e referendo...

  • 1937

    Senado FederalSecretaria especial de editorao e Publicaes

    Subsecretaria de edies Tcnicas

    3a edioBraslia 2012

    CONSTITUIES BRASILEIRASVolume IV

    Walter Costa Porto

  • edio do Senado FederalDiretora-Geral: Doris marize Romariz Peixoto Secretria-Geral da mesa: Claudia lyra Nascimento

    Impresso na Secretaria especial de editorao e PublicaesDiretor: Florian Augusto Coutinho madruga

    Produzido na Subsecretaria de edies TcnicasDiretora: Anna maria de lucena RodriguesPraa dos Trs Poderes, Via N-2, unidade de Apoio IIICeP: 70165-900 Braslia, DFTelefones: (61) 3303-3575, 3576 e 4755Fax: (61) 3303-4258e-mail: [email protected]

    organizador da coleo: Walter Costa PortoColaborao: elaine Rose maiaReviso de original: Angelina Almeida e marlia ColhoReviso de provas: maria Jos de lima Francoeditorao eletrnica: Rejane Campos limaFicha catalogrfica: Marilcia Chamarelli

    ISBN: 978-85-7018-427-6

    Porto, Walter Costa 1937 / Walter Costa Porto. 3. ed. Braslia : Senado Federal, Subsecretaria

    de edies Tcnicas, 2012.120 p. (Coleo Constituies brasileiras ; v. 4)

    1. Constituio, histria, Brasil. I. Brasil. [Constituio (1937)]. II. Srie.

    CDDir 341.2481

  • A COLEO CONSTITUIES BRASILEIRAS

    A elaborao da Constituio Brasileira de 1988 se deu sob condies fundamental-mente diferentes daquelas que envolveram a preparao das Cartas anteriores.

    em primeiro lugar, foi, de modo extraordinrio, alargado o corpo eleitoral no pas: 69 milhes de votantes se habilitaram ao pleito de novembro de 1986. o primeiro recenseamento no Brasil, em 1872, indicava uma populao de quase dez milhes de habitantes, mas, em 1889, eram somente 200.000 os eleitores. A primeira eleio presidencial verdadeiramente disputada entre ns, em 1910, a que se travou entre as candidaturas de Hermes da Fonseca e Rui Barbosa, contou com apenas 700.000 eleitores, 3% da populao, e somente na escolha dos constituintes de 1946 que, pela primeira vez, os eleitores representaram mais de 10% do contingente populacional.

    em segundo lugar, h que se destacar o papel dos meios de comunicao da televiso, do rdio e dos jornais , tornando possvel a mais vasta divulgao e a discusso mais ampla dos eventos ligados preparao do texto constitucional.

    Desses dois fatores, surgiu uma terceira perspectiva que incidiu sobre o relacionamento entre eleitores e eleitos: da maior participao popular e do dilatado conhecimento da elaborao legislativa resultou que a feitura de nossa atual Constituio foi algo verdadeiramente partilhado; e que o mandato representativo, que estabelecia uma dualidade entre eleitor e eleito, teve sua necessria correo, por acompanhamento, e uma efetiva fiscalizao por parte do corpo eleitoral, com relao s ideias e aos programas dos partidos.

    o conhecimento de nossa trajetria constitucional, de como se moldaram, nesses dois sculos, nossas instituies polticas, , ento, indispensvel para que o cidado exera seu novo direito, o de alargar, depois do voto, seu poder de caucionar e orientar o mandato outorgado a seus representantes.

    Walter Costa Porto

  • SUmRIO

    A Constituio de 1937A falta de iseno dos analistas ................................................................................ 9os comentrios de Pontes ...................................................................................... 10Prticas plebiscitrias ............................................................................................. 11A vigncia da Constituio de 1937 ....................................................................... 12A Constituio fascista ........................................................................................... 13A crise universal ..................................................................................................... 14A guerra perdida ..................................................................................................... 15Getlio Vargas e Francisco Campos ...................................................................... 16Como no lembrar maquiavel? .............................................................................. 18o modelo: a Constituio polonesa ....................................................................... 18A Constituinte do Rio Grande do Sul .................................................................... 19os dissdios partidrios .......................................................................................... 22Silncio sobre os partidos ...................................................................................... 23A Justia eleitoral .................................................................................................. 24O nmero de deputados por Estado ....................................................................... 26O Autor .................................................................................................................. 29A Constituio de 1937 e sua vignciaI entrevista de Francisco Campos ao Correio da manh do Rio de Janeiro, em 3 de maro de 1945 o golpe de estado de 1937 .................................................................................. 31 A Constituio e o fascismo ................................................................................. 31 Atualizao das instituies polticas ................................................................... 32 liberdade de opinio ............................................................................................ 34 estado de guerra art. 171 da Constituio ........................................................ 35 estado de guerra e estado de emergncia ............................................................. 36 Reforma da Constituio arts. 174 e 180 .......................................................... 37 Vigncia da Constituio de 1937 o plebiscito ................................................. 38 o Ato Adicional lei Constitucional no 9 ........................................................... 38 Governo de fato .................................................................................................... 39 Concluses ........................................................................................................... 40II Parecer da Faculdade Nacional de Direito do Rio de Janeiro, publicado no Correio da manh, em 3 de maro de 1945 ........................................................... 40 Poder Constituinte ................................................................................................ 41 As leis constitucionais .......................................................................................... 43 Arts. 174 e 180 da Constituio ........................................................................... 43 lei Constitucional no 9 ......................................................................................... 45

  • Concluses ........................................................................................................... 46Ideias-Chaves ........................................................................................................ 49Questes Orientativas para Autoavaliao ........................................................ 51Leituras Recomendadas ...................................................................................... 53A Constituio Brasileira de 1937Constituio dos estados unidos do Brasil ........................................................... 57Emendas e Outros Dispositivoslei Constitucional no 2 de 16 de maio de 1938 ...................................................... 97lei Constitucional no 5 de 10 de maro de 1942 .................................................... 98lei Constitucional no 7 de 30 de setembro de 1942 .............................................. 100lei Constitucional no 8 de 12 de outubro de 1942 ................................................ 101lei Constitucional no 9 de 28 de fevereiro de 1945 .............................................. 102lei Constitucional no 12 de 7 de novembro de 1945 ............................................ 110lei Constitucional no 13 de 12 de novembro de 1945 .......................................... 111lei Constitucional no 14 de 17 de novembro de 1945 .......................................... 112lei Constitucional no 15 de 25 de novembro de 1945 .......................................... 113lei Constitucional no 19 de 31 de dezembro de 1945 ........................................... 115Crdito das Ilustraes ...................................................................................... 117Bibliografia .......................................................................................................... 119

  • 9Volume IV 1937

    A CONSTITUIO DE 19371WALTER COSTA PORTO

    A falta de iseno dos analistas

    Quando se reuniu, no incio de 1946, a Assembleia Constituinte, as primeiras discus-ses se centraram no que deveria ser o ponto de partida para a elaborao da nova Carta. As normas regimentais disse o Deputado maurcio Grabois, eleito pelo Partido Comunista do ento Distrito Federal

    no poderiam ter qualquer vnculo com a Carta caduca e parafascista de 10 de novembro de 1937.

    Mas ns fomos eleitos em virtude da Carta de 1937,

    respondeu o Senador Nereu Ramos, lder da maioria e Presidente da Comisso de Constituio da Assembleia.

    No lhe devemos respeito,

    contestou Hermes lima, eleito pela esquerda Democrtica do Distrito Federal.

    e continuou: Se o Tribunal Eleitoral me tivesse pedido declarao de respeito Cons-tituio de 1937, eu teria recusado meu mandato.

    Nereu insistiu: No desejamos que os Senhores Constituintes aqui reunidos respeitem seno os princpios democrticos da Carta de 37.

    Nereu Ramos Nem com essa ressalva,

    reagiu Prado Kelly.2

    o grande obstculo, passado meio sculo, para o exame da Constituio de 10 de novembro de

    1 Ne: Artigo submetido para publicao em 1999, quando da organizao da primeira edio da Coleo.2 Silva, Abdias. Uma Constituio nascida do debate, in Jornal do Brasil, edio de 19 de novembro de 1976.

    Nereu Ramos

  • 10 Constituies Brasileiras

    1937 exatamente essa falta de respeito que lhe devota o meio poltico e, afinal, a falta de iseno dos analistas, raros, de seu contedo.

    Os comentrios de Pontes

    Foi de Pontes de miranda ao lado de obras de circunstncia, laudatrias impressas, em grande parte, pelo poder oficial3 o melhor texto de interpretao da Constituio de 1937.4

    Indicou ele como caractersticas principais do texto: a coordenao, entregue ao presidente, da atividade dos rgos representativos, com a

    promoo e a orientao da poltica legislativa de interesse nacional;

    a possibilidade, no intuito de assegurar a continuidade da poltica nacional, de indicao, pelo Presidente, de um dos candidatos ao cargo, caso em que, em vez de ser eleito o novo chefe do executivo pelo Colgio eleitoral (eleio indireta), passaria a escolha a ser feita pelo povo, em sufrgio universal;

    a atribuio aos vereadores s Cmaras municipais, e, em cada municpio, a dez cidados eleitos por sufrgio direto no mesmo ato de eleio da Cmara municipal, da tarefa de eleger os representantes dos Estados-Membros na Cmara dos Deputados;

    e, por mais arraigada que estivesse entre ns a convico de ser o princpio da sepa-rao e da independncia dos poderes essencial s Constituies modernas (o que Pontes

    3 obras impressas pelo prprio Departamento de Imprensa e Propaganda do Governo, tais como A Constituio de Dez de Novembro, Explicada ao Povo, de Antnio Figueira Almeida, e O Estado Nacional e a Constituio de Novembro de 1937, de lvaro Bittencourt Berford.4 Pontes de miranda, Francisco Cavalcanti. Comentrios Constituio Federal de 10 de Novembro 1937, Rio de Janeiro, Irmos Pongetti editores, 1938.

    Prado Kelly

  • 11Volume IV 1937

    denunciara como superstio), a eliminao desse princpio, como tambm a adoo da feitura das leis em parte pelo executivo com o nome de decretos-leis e a permisso ao Par-lamento, por iniciativa do Presidente da Repblica, do exame da deciso final que declarou inconstitucional uma lei;

    a criao do Conselho de economia.

    Publicando os Comentrios, em 1938, no poderia Pontes antecipar os problemas trazidos pela no convocao do plebiscito ordenado na Carta ou das eleies para os rgos representativos. mas curiosa a advertncia pgina 20 de seu prefcio:

    Nada mais perigoso do que fazer-se uma Constituio sem o propsito de cumpri-la. ou de s se cumprirem os preceitos de que se precisa, ou se entende devam ser cumpridos o que pior.5

    Prticas plebiscitrias

    um aspecto que diferencia a Carta de 1937 que, sendo a segunda Constituio outor-gada do Brasil, foi, no entanto, a que mais largo espao abriu s prticas plebiscitrias.

    empregada a expresso, no texto, nove vezes nos artigos 5o, pargrafo nico; 63 e seu pargrafo nico; 174, 4o; 175; 178 e 187 , o plebiscito foi previsto para os casos:

    a) de subdiviso ou desmembramento de estados para anexao a outros ou a formao de novos estados (art. 5o);

    b) de serem conferidos ao Conselho Nacional de economia poderes de legislao sobre algumas ou todas as matrias de sua competncia (art. 63);

    c) de emenda, modificao ou reforma da Constituio, na hiptese de ser rejeitado projeto de iniciativa do Presidente da Repblica, a propsito, ou na hiptese em que o Parlamento aprovasse, apesar da oposio daquele, o projeto de iniciativa da Cmara dos Deputados (art. 174, 4o);

    d) finalmente, de deliberao sobre a prpria Constituio, na forma como se regularia em Decreto do Presidente da Repblica (art. 178).

    As Constituies anteriores a monrquica, de 1823, e as republicanas, de 1891 e 1934 no se referiram ao plebiscito. A de 1946 o manteve (art. 2o), para o pronuncia-mento das populaes interessadas, na incorporao, subdiviso ou desmembramento de Estados. A de 1967 menciona apenas (art. 14) a consulta prvia s populaes, a ser regulada por lei Complementar, para a criao de municpios.

    certo que sob a vigcia da Constituio de 1946 se realizou o nico plebiscito no pas, o que decidiu sobre a revogao da emenda Constitucional no 4, de 2 de setembro de 1961, e restabeleceu o sistema presidencial de Governo. mas foi aquela prpria emenda adotando a frmula parlamentarista e permitindo a substituio do Presidente Jnio Quadros, que renunciara, pelo seu vice, Joo Goulart que havia previsto, em seu artigo 25:

    5 Pontes de miranda, Francisco Cavalcanti, ob. cit.

  • 12 Constituies Brasileiras

    A lei votada nos termos do art. 22 poder dispor sobre a realizao do plebiscito que decida da manuteno do sistema parla-mentar ou volta ao sistema presidencial, devendo, em tal hiptese, fazer-se consulta plebiscitria nove meses antes do atual perodo presidencial.

    Principal autor da Constituio de 1937, Fran-cisco Campos entendeu no houvesse diferena conceitual entre plebiscito e referendo, utilizando unicamente o primeiro termo para a consulta popu-lar quer sobre um ato prvio de rgo estatal , o prprio texto constitucional de 10 de novembro , quer sobre um acontecimento, como a subdiviso ou desmembramento de estados.

    Alguns autores franceses tm reservado a expresso plebiscito para a segunda hiptese, guardando a denominao de referendo para a deliberao sobre atos normativos. mas a distino no pacfica, havendo quem veja o plebiscito como um pronunciamento a respeito de um indivduo.

    A vigncia da Constituio de 1937

    o primeiro problema posto pela Constituio de 10 de novembro de 1937 o da sua vigncia.6

    Francisco Campos reconhecido como o principal autor do texto , quando de seu rompimento espetacular com o ditador, em entrevista concedida ao Correio da Manh, do Rio de Janeiro, em maro de 1945, disse exatamente que ela era um documento que no podia invocar em seu favor o teste da experincia, pois no foi posta prova, permanecendo em suspenso desde o dia de sua outorga.7

    A Constituio de 1937, insistia Campos naquela entrevista, no tinha mais vigncia, era:de valor puramente histrico. Entrou para o imenso material que, tendo sido ou podendo ter sido jurdico, deixou de o ser ou no chegou a ser jurdico por no haver adquirido ou haver perdido sua vigncia.

    6 Segundo alguns autores, este no um verdadeiro problema. Para Inocncio mrtires Coelho, por exemplo, o que menos pesa na Carta de 37 sua estrutura jurdico-fomal, j que, no sentido material, todo Estado tem uma Constituio; por isso, pouco importa que a Carta de 37 tenha ou no tenha tido vigncia do ponto de vista formal, que no tenha passado de uma Constituio-fantasma, como ironizaram alguns de seus adversrios. Aspectos Positivos da Constituio de 1937, in Revista de Cincia Poltica, Fundao Getlio Vargas, Rio de Janeiro, V. 21, no 2, pp. 103-108.7 Pela importncia da entrevista, ela foi transcrita neste fascculo (pgs. 31-40).

    Joo Goulart

  • 13Volume IV 1937

    A constatao, para Campos, deflua cla-ramente do texto da prpria Constituio, que, em seu art. 175, declarava:

    O atual Presidente da Repbli-ca tem renovado o seu mandato at a realizao do plebiscito a que se refere o artigo 187, ter-minando o perodo presidencial fixado no artigo 80 se o resultado do plebiscito for favorvel Constituio.

    e o art. 80, por sua vez, dispunha: O perodo presidencial ser de seis anos.

    Resultava, para Francisco Campos, da combinao dos dois artigos que:

    1o o mandato do Presidente comearia a correr da data da Constituio;

    2o esse perodo no poderia exceder a seis anos e, estabelecendo o artigo 175 que o Presidente s terminaria esse perodo de seis anos se o plebiscito fosse favorvel Constituio, o plebiscito deveria realizar-se, impreterivelmente, dentro dos seis anos a que se referia o artigo 80.

    ora, prosseguia ele, no se tendo realizado o plebis-cito dentro do prazo estipulado pela prpria Constituio, a vigncia desta, que antes da realizao do plebiscito seria de carter provisrio, s se tornando definitiva mediante a aprovao plebiscitria, tornou--se inexistente.

    A Constituio fascista

    Nessa entrevista que causou o impacto que podemos imaginar, voltando-se o prin-cipal responsvel pelo texto contra sua criao, que entendia desvirtuada, mutilada por sua no execuo , Francisco Campos criticava os que tinham a Carta como fascista.

    Francisco Campos

  • 14 Constituies Brasileiras

    Est muito em moda argumen-tava acoimar-se de fascista a todo indivduo ou toda instituio que no coincide com as nossas opinies polticas.

    Bastava, para ele, o exame mais superfi-cial das linhas gerais da Constituio para que se verificasse, mesmo a partir da mais elementar cultura poltica, que o sistema da Constituio de 1937 nada tinha de fascista.8

    No se conceberia, com efeito, pudesse ser acoimada de fascista uma Constituio que assegura

    ao Poder Judicirio as prerrogativas constantes da Constituio de 1937, que abre, no prprio texto constitutional, todo um captulo destinado a garantir a estabilidade dos funcionrios pblicos.

    e esclarecia que, se o artigo 177 autorizava a aposentadoria dentro do prazo de 60 dias a contar da data da Constituio,

    a faculdade era estritamente limitada no tempo e se continuou a ser aplicada depois, foi por exclusivo arbtrio do Governo.

    Apontava ele ainda a responsabilidade do Chefe do Governo, acolhida pela Carta de novembro, atribuindo-se ao Parlamento a faculdade de processar o Presidente; e a mais completa autonomia assegurada aos estados federados.

    Defendia Campos, afinal, sua obra: Os males que porventura tenham restado para o Pas do regime inaugurado pelo golpe de estado de 1937 no podem ser atribudos Constituio. esta no chegou sequer a vigorar e, se tivesse vigorado, teria certamente constitudo importante limitao ao exerccio do poder.9

    A crise universal

    A Constituio de 1937 fora, segundo Francisco Campos, outorgada em um momento de crise de ordem e de autoridade em todo o mundo. A disputa poltica ultrapassara os moldes de uma luta dentro dos quadros clssicos da democracia liberal. os atores, nesse conflito, tinham, como objetivo explcito, a destruio tradicional no somente no domnio poltico como no domnio social e econmico. o estado se via, ento, desarmado ante a aura de agressividade que,

    8 Curiosamente, na entrevista, depois de insistir em negar o carter fascista da Constituio, Campos termina por trazer um elogio ao modelo europeu, ao afirmar que o regime brasileiro, de 1937 at ento, tinha sido uma ditadura plenamente pessoal, nos moldes clssicos das ditaduras sul-americanas, sem o dinamismo caracterstico das ditaduras fascistas. 9 entrevista citada.

    Francisco Campos, 1934

  • 15Volume IV 1937

    como nos ataques comerciais, anuncia a transformao das lutas sociais e polticas, inspiradas por ideologias extremadas, nas convulses da guerra civil.

    Impunha-se, assim, a transformaes das instituies polticas antes que elas fossem destrudas;

    armar o estado contra a agressividade dos partidos de extrema tanto mais quanto esses parti-dos pretendiam, valendo-se das franquias liberais do regime, atac-lo nos seus fundamentos, usar da liberdade precisamente para destru-la.

    A guerra perdida

    mas, explica Campos, com a 2a Grande Guerra, a disputa ideolgica, perdendo seu sentido nacional, passou a desenvolver-se no mais entre partidos, mas entre Naes, transportou-se do quadro interno de cada pas para o plano internacional.

    e na batalha, tomamos um partido e, precisamente, o partido cuja ideologia poltica est em manifesto desacordo com a estrutura ideolgica da Constituio.

    Para Francisco Campos, na transformao que o movimento de 1937 havia operado nas nossas instituies,

    adotamos, por motivo de estratgia poltica, muitos conceitos que a guerra e, particularmente, o seu desfecho tornaram caducos e inviveis no mundo a ser modelado pelas naes vitoriosas e pela ideologia que elas representam e decla-radamente arvoram como bandeira de luta e de vitria.

    Campos dava razo, assim, a tantos que, examinando a redemocratizao de 1945, veem como principal deflagrador de seu processo a vitria das foras aliadas na Europa.

    lutando ao lado do 5o Exrcito americano na Itlia, os oficiais brasileiros se tinham dado conta

    da anomalia de lutar pela democracia no exterior enquanto persistia uma ditadura em seu prprio pas.10

    essas palavras de Skidmore repetem a constatao de todos os historiadores do pe-rodo, que insistem no quanto a situao externa colaboraria para o fim da ditadura de Vargas.11

    No podemos, insistia Campos, militarmente vitoriosos na guerra, deixar que

    10 Skidmore, Thomas. Brasil, de Getlio a Castello, Rio de Janeiro, edit. Saga. 1969, p. 72. 11 V., entre outros, Dulles. John W. F. Getlio Vargas Biografia Poltica, Rio de Janeiro, edit, Renes, s/d; Almeida Jnior, Antnio Mendes de Do Declnio do Estado Novo ao Suicdio de Getlio Vargas, in Histria da Civilizao Brasileira, III o Brasil Republicano, 3o v., Sociedade Poltica, Cap, IV, p. 22.

  • 16 Constituies Brasileiras

    subsistam motivos para sermos colocados, do ponto de vista ide-olgico, no campo dos vencidos. A nossa organizao poltica foi modelada sob a influncia de idias que no resistiram ao teste da luta.

    Ideias que o prprio Campos, afinal, infun-dira na Carta de 1937. mas nenhum trauma lhe parece advir dessa reviso que, para outro, poderia ser dolorosa. Antes, prope uma antecipao aos acontecimentos, se no queremos ser violentados por eles. Nisto consistiria, para ele, a funo da poltica: o tino poltico, a razo de Estado

    aconselham aos homens responsveis pela situao que, ao invs de esperar o impacto daquelas foras e daquelas circunstncias sobre a nossa organizao poltica, se antecipem ao choque promovendo, desde j, a atualizao de nossas instituies no sentido indicado pelos acontecimentos mundiais. Nisto consiste a sabedoria poltica.

    E faz uma recomendao final: O Sr. Getlio Vargas j pensou demais em si mesmo. tempo que pense um pouco no Brasil e no seu povo, cuja magnanimidade, cordura e tolerncia lhe tem dispensado fatores e prerrogativas de maneira mais copiosa do que a qualquer dos seus filhos de merecimento igual ou superior. Atente o Sr. Getlio Vargas os sofrimentos e humilhaes do povo brasileiro. No queira agrav-los ainda mais. Restitua-lhe a posse do futuro, uma vez que no pode recuperar o passado, irremediavelmente perdido.

    Getlio Vargas e Francisco Campos

    Quando acadmico de Direito, em discurso de homenagem ao Conselheiro Afonso Pena, Francisco Campos utilizou-se de uma frase de Emerson;

    Toda instituio a sombra alongada de um homem.

    em prefcio ao livro dedicado a Francisco Campos, na srie Perfis Parlamentares, editada pela Cmara dos Deputados, Paulo Bonavides diz que, com a citao, o mineiro parecia

    definir e cultivar com zelo um estranho culto de personalidade, que uma crena antecipada no homem do destino, no chefe eleito e providencial, tanto de sua simpatia, e festejado depois com a retrica do estado Novo, semelhana dos modelos europeus imitados e cuja luz iluminava aqui o retrato do Ditador.12

    12 Bonavides, Paulo. Francisco Campos Perfis Parlamentares 6, Braslia, Cmara dos Deputados, 1979.

    Getlio Vargas

  • 17Volume IV 1937

    mas a frase serve tambm para retratar como a Consti-tuio de 1937 e o modelo institucional ali debuxado se-riam a extenso de duas personalidades a de Francisco Campos, que lhe redigiu o texto, e a de Getlio Vargas, que dele usufruiu para o exerccio de seu mando.

    A de Francisco Campos, Deputado estadual por minas, em 1917, Federal, em 1921, Secretrio de educao de seu Estado, primeiro Ministro da Educao e Sade depois de 1930, ministro da Justia do estado Novo, de 1937 a 1942; autor, afinal, em 1964, do Ato Institu-cional. Abraado, como o dir Paulo Bonavides,

    desde os seus primeiros passos na vida pblica, a uma obsessiva sugesto de ordem, segurana e conservao.13

    A de Getlio Vargas, Deputado Federal de 1924 pelo Rio Grande do Sul, ministro da Fazenda de Washington luiz, Governador de seu estado em 1928.14 ele assume o Governo do Rio Grande em virtude do Acordo de Pedras Altas que, pacificando o Estado, afasta Borges. e se mostra um conciliador, substituindo a intolerncia de Castilhos e Borges, o candidato da Aliana liberal contra Jlio Prestes, que Washington fora, desaten-dendo minas com sua soluo natural, de alternncia ao poder paulista.

    ainda conciliador aps 30, fazendo conviver os grupos os constitucionalistas e os nacionalistas-autoritrios, na expresso de Skidmore , os primeiros desejando a salvaguarda dos ideais liberais clssicos, os outros lutando pela implantao de um modelo no democrtico, capaz de assegurar as fundas modificaes sociais e econmicas.15

    E no final do Estado Novo, ao pressentir a reabertura, pretendeu respaldar seu mando no processo eleitoral. Considerou que se haviam criado as condies necessrias para que entrasse em funcionamento o sistema dos rgos representativos previstos na Constituio; que

    o processo indireto para a eleio do Presidente da Repblica e do Parlamento no somente retardaria a desejada complementao das instituies, mas tam-bm privaria aqueles rgos de seu principal elemento de fora e deciso, que

    13 Bonavides, ob. cit.14 Assumindo o Governo do Rio Grande do Sul, Vargas cortaria sua ligao com as medidas financeiras de Washington Luiz que, em breve, viriam se tornar desastrosamente impopulares, como notou Skidmore, Thomas, in Brasil De Getlio a Castello, p. 27.15 Skidmore, ob. cit., p. 27/28.

    Getlio Vargas, por Jefferson.

  • 18 Constituies Brasileiras

    o mandato notrio e inequvoco da vontade popular, obtido por uma forma acessvel compreenso geral e de acordo com a tradio poltica brasileira.

    Com essas palavras, justificou a edio da Lei Constitucional no 9, de 28 de fevereiro de 1945, que dispunha sobre as eleies para o segundo perodo presidencial para os governadores de estado e as Assembleias legislativas.

    mas, apeado do Poder, somente em outubro de 1950 voltaria Presidncia, pelo mandato inequvoco da vontade popular, com 48,7% dos votos do Pas.

    Como no lembrar maquiavel?

    Como no lembrar, em relao a esses dois vultos, maquiavel?

    Quanto ao mineiro que, cortejando o novo Prncipe, elabora, para o Chefe, a receita do poder sem disfarces; que lhe justifica o mando; e que mergulha, como o florentino, na tragdia do servidor recusado.

    Quanto ao gacho, a aproximao foi muitas vezes feita. Um livro de Affonso Hen-riques leva, mesmo, esse ttulo: Vargas, o Maquiavlico.16 Skidmore comenta:

    Essa denominao era exata. Vargas tambm a teria achado lisonjeira.17

    O modelo: a Constituio polonesa

    Tantas vezes se disse que a Constituio brasileira de 10 de novembro de 1937 teve como parmetro a Constituio polonesa, promulgada em 23 de abril de 1935, que nossa Carta se juntou sempre o apodo de Polaca.18

    Defensores da Constituio polonesa afirmam que ela teve por tendncia consolidar, antes de tudo, o Estado social, no havendo investido o Presidente da Repblica na tarefa de fazer uma poltica pessoal, mas dado a ele a funo de regular as atividades autnomas, visto que

    o sistema de autonomia era geral e de autonomia econmica em particular foi considerado como uma das principais instituies do Estado.19

    o ponto mais delicado da reforma seria o fortalecimento do Governo pelo reforamento do executivo, sem estabelecer o poder pessoal e absoluto.

    16 Henriques, Affonso Vargas, o Maquiavlico. So Paulo, Palcio do livro, 1961.17 Skidmore, ob. cit., p. 61.18 Essa Constituio, dir Pontes de Miranda, no saiu s do Brasil, veio de outros sistemas, velhos e novos, e seria falsear-lhe os ditames quer-la separar do mundo e dos seus modelos que a contrrio do que sucedera de 1891, mais americana algo de intermedirio entre o norte-americano do sculo XVIII e o europeu de aps a guerra. mas j menos norte-americana que a de 1934 e menos liberal que a Carta, a linhas retas, de 1891, in Comentrios Consti-tuio de 10 de novembro de 1937, Rio de Janeiro, Irmos Pongetti editores, 1938, p. 13/1419 Waciaw makovski, citado por Augusto e. estellita lins, in A Nova Constituio dos Estados Unidos do Brasil, Rio de Janeiro, Jos Konfino Editor, 1938.

  • 19Volume IV 1937

    e o mesmo se poderia dizer de nossa Carta de 1937 a concluso dos que elogiam seu texto, como estellita lins.20

    mas muito se cuidou, em defesa da Constituio de 1937, em dar nfase aos pontos que a distanciariam da Carta polonesa de 1935.21

    Esta prescrevia, por exemplo, que o Presidente no seria responsvel pelos seus atos oficiais.

    A nossa indicava, em seu artigo 85, que seriam crimes de responsabilidade os atos do Presidente, definidos em lei, que atentassem contra a existncia da Unio, a Consti-tuio, o livre exerccio dos poderes polticos, a probidade administrativa, a guarda e emprego dos dinheiros pblicos e a execuo das decises judicirias.

    Divergncias foram, tambm, apontadas no captulo da organizao do governo, na demissibilidade dos ministros, nos direitos de elegibilidade, nas imunidades parla-mentares, na elaborao legislativa, no controle da constitucionalidade das leis.

    mas as proximidades so evidentes. A comear pelo modo por que, sem dissimulao, ressaltada a proeminncia do Poder executivo:

    A autoridade nica e individual do Estado concentrada na pessoa do Presi-dente da Repblica,

    reza o artigo 2o da Constituio polonesa. O Presidente da Repblica, autoridade suprema do Estado, coordena a atividade dos rgos representativos, de grau superior, dirige a poltica interna e externa, promove ou orienta a poltica legislativa de interesse nacional e superintende a administrao do pas,

    diz o artigo 73 de nossa Constituio.

    e as convergncias prosseguem no poder do Presidente de adiar as sesses do Parla-mento; de dissolver o Legislativo, limitado, no caso brasileiro, a uma nica hiptese; da iniciativa e matria de leis; nos prazos para exame do oramento, pelo Congresso; nas disposies sobre estado de stio ou de emergncia.

    A Constituinte do Rio Grande do Sul

    Nunca foi devidamente salientada, no entanto, a aproximao entre certas linhas da Constituio Federal de 1937 e a Constituio estadual do Rio Grande do Sul, de 14 de julho de 1891.

    Destoando do quadro geral de conformidade aos parmetros da Constituio Federal, a Carta do Rio Grande do Sul fazia ressaltar aquela anomalia em que, tanto na

    20 estellita lins, Augusto e., ob. cit. 21 Segundo Pontes de Miranda, a Constituio de 1937 herdou, um tanto atavicamente, o que 1934 apagara: o poder pessoal do Chefe do Executivo; ob. cit, p. 15.

  • 20 Constituies Brasileiras

    economia como na poltica, o estado se destacava na Repblica Velha.22

    A primeira Constituio republicana do Rio Grande do Sul divergia da Constituio Federal de 1891 no voto proporcional, que abrigava o sistema Borges de Medeiros, de lista, visando garantir a representao das minorias (corrigia-se, assim, a Constituio Federal que falava na representao da minoria, mas cujo sistema distrital findava por negar essa representao); na permisso a que reelegesse o Presidente do estado, caso merecesse o sufrgio de trs quartas partes do eleitorado; na escolha, livre, dentro dos seis primeiros meses de gesto, pelo Presidente, do Vice-Presidente, que o substituiria no caso de impedimento temporrio, no de renncia ou morte, perda do cargo ou incapa-cidade fsica; no processo de elaborao das leis, com a publicao do projeto, pelo Presidente do estado, acompanhado de uma detalhada exposio

    de motivos, com o projeto e a exposio enviada aos intendentes municipais que lhe dariam toda a publicidade nos respectivos municpios e que transmitiriam as emen-das e observaes que, no prazo de trs meses, fossem formuladas pelos cidados; examinando cuidadosamente essas emendas e observaes, o Presidente manteria inaltervel o projeto ou o modificaria, de acordo com as que julgasse procedentes; convertido em lei, seria esta revogada se a maioria dos Conselhos municipais repre-sentasse contra ela ao Presidente.

    e tendo em vista esse processo de elaborao das leis, divergia a Constituio estadual na reduo do papel da Assembleia legislativa, reunida somente pelo prazo de dois meses durante o ano e com funes limitadas votao do oramento e fiscalizao do chefe do executivo.

    Divergia, finalmente, da Constituio Federal, pela nfase dada imperatividade do mandato concedido aos deputados; segundo o seu artigo 39, o mandato dos represen-tantes poderia ser cassado pela maioria dos eleitores.

    verdade que a Constituio Federal de 1891 no acolhia, inteiramente, como os textos recentes, o mandato que se denomina agora livre ou representativo, que no considera eleitores e eleitos numa relao que vincule esses ltimos mera execuo da vontade dos primeiros. mas no chegou ela a admitir o chamamento de volta, pelos eleitores, de eleitos que falhassem na representao, o recall anglo-americano.

    22 love, Joseph. O Rio Grande do Sul como fator de Instabilidade na Repblica Velha, in His-tria Geral da Civilizao Brasileira, III o Brasil Republicano, So Paulo, Difel, 1977, p. 99.

    Borges de Medeiros

  • 21Volume IV 1937

    Divergia, finalmente, no exagero positivista de considerar livre o exerccio de todas as profisses, afastando os privilgios de diplomas escolsticos ou acadmicos, quaisquer que sejam.23

    Para a aproximao dos dois modelos o da Constituio do Rio Grande do Sul, de 14 de julho de 1891, e o da Constituio Federal de 10 de novembro de 1937 , contribuiu, obviamente, o discpulo de Castilhos24, e o sucessor de Borges no Governo estadual, Getlio Vargas, ele prprio que dirigira o Rio Grande do Sul com os poderes pelos quais a autoridade legal do governo equivalia ditadura.25 e que desejou, a partir de 1937, ficasse tambm afeta ao Executivo a elaborao das leis. Por uma maneira indireta, a da no convocao de eleies para instalao do Poder Legislativo; e, de modo muito direto, pelo espao que abriu os decretos-leis.

    os decretos-leis, pela Carta de 10 de novem-bro, poderiam ser expedidos com autorizao do parlamento, mediante as condies e nos limites fixados pelo ato de autorizao (artigo 12); nos perodos de recesso do Parlamento ou de dissoluo da Cmara dos Deputados, em matrias de competncia legislativa da unio (artigo 13); e, finalmente, poderiam ser expedi-dos livremente sobre a organizao do governo e da administrao federal, o comando supremo e a organizao das Foras Armadas (artigo 14).

    o que resultou em que toda a elaborao le-gislativa do perodo dependesse, apenas, do Presidente da Repblica, anulando-se a parti-cipao do Parlamento e, mesmo, dos cidados, essa tambm s formalmente assegurada pela Constituio do Rio Grande do Sul.

    E exagerando em seu discricionarismo, Get-lio Vargas, por onze vezes, por meio de Leis Constitucionais, alterou o texto da Carta

    23 obra fundamental ao conhecimento da Carta de 14 de julho de 1891 a Constituio do Rio Grande do Sul: Comentrio, de Joaquim luiz osrio, reeditada pela Cmara dos Deputados e editora universidade de Braslia, em 1981. em apresentao, excelente, ao texto, Antnio Paim diz que este se tornou o documento bsico do castilhismo.24 Os bigrafos de Getlio esquecem geralmente um fato: pouco mais de um ms aps a morte de Castilhos, um jovem acadmico gacho o homenageou em uma sesso fnebre: Resta-me uma satisfao: que ele no semeou em terra sfara e os belos ensinamentos que nos deixou sero continuados por aqueles que o seguiram e o compreenderam. Era Getlio, aos 20 anos. Ver Costa Franco, Srgio da, in Jlio de Castilhos e sua poca, Porto Alegre, edit. Colombo, 1967, p. 203.25 love, Joseph, ob. cit.

    Jlio de Castilhos

  • 22 Constituies Brasileiras

    de 1937, entendendo, assim, reter o Poder Constituinte originrio, cada reforma correspondendo, para seus crticos, a uma nova outorga, a um golpe de Estado complementar.26

    No tendo entrado em vigor antes do plebiscito, a Constituio no podia, no sentido jurdico do termo, ser reformada, pois que a reforma de um estatuto tira sua validade dos prprios termos deste, da interao que ele traa, das condies que obriga a preencher. Se o estatuto no entrou em vigor como lei constitucional, por lhe faltar a aceitao do Poder Constituinte soberano, toda reforma mera norma de fato, ato complementar da outorga, que o povo aceitar ou repelir.

    o que diro professores da Faculdade Nacional de Direito, entre eles Benjamim morais Filho, San Tiago Dantas, Joaquim Pimenta, Jos Carlos de matos Peixoto, Sampaio de lacerda e Haroldo Valado, em parecer publicado pelo Correio da Manh, em sua edio de 3 de maro de 1945.27

    Como no ver, finalmente, identidade entre os dois textos o do Rio Grande do Sul, de 1891, e o federal, de 1937 no modo de encarar a substituio do Chefe do Poder executivo? No primeiro, previa-se a escolha, livre, pelo Presidente, de seu Vice, dentro dos seis meses iniciais do Governo; no segundo, haveria a designao do substituto, pelo Presidente da Repblica, em cada caso de impedimento temporrio ou de visitas oficiais a pases estrangeiros (artigo 77).

    Os dissdios partidrios

    Ao outorgar a Constituio de 10 de novembro de 1937, Getlio Vargas dizia atender as legtimas aspiraes do povo brasileiro paz poltica e social, profunda-mente perturbada por conhecidos fatores de desordem resultantes da crescente agravao dos dissdios partidrios.

    muitos dos bigrafos do Ditador, no entanto, atribuem-lhe a maior parcela de respon-sabilidade no agravamento daqueles dissdios, com a manipulao, por ele, a partir de 1934, da ameaa subversiva para reunir, em suas mos, os poderes autoritrios que a Carta de 1934 respaldou.

    Pela primeira vez, no Brasil, haviam surgido partidos de mbito nacional e de funda conotao ideolgica, a repetir o quadro europeu, na repercusso, aqui, do conflito entre o comunismo e o nazifascismo.

    o desenvolvimento poltico ingls havia, h tempos, mostrado como os partidos, aceitando as linhas gerais do arcabouo institucional do estado, apresentavam maior rea de consenso que de dissenso. Acostumaram-se os dirigentes e a opinio pblica

    26 Parecer de professores da Faculdade Nacional de Direito, do Rio de Janeiro, publicado na edio de 3 de maro de 1945, no Correio da Manh. Ver o texto completo, a seguir, neste fascculo (pgs. 41-48). 27 Parecer citado.

  • 23Volume IV 1937

    na Gr-Bretanha a ver os oponentes polticos como adversrios eventuais, meros defensores de policies divergentes, nunca como inimigos irreconciliveis, a serem destrudos.

    mas a consolidao do comunismo na unio Sovitica e sua expanso, a partir da dcada de 30, e o crescimento do nazifascimo no continente europeu, transmudaram esse quadro. Ambos os movimentos reservaram aos partidos o papel excepcional de propagadores da doutrina, de mquinas ideolgicas aguerridas e, no caso do fascismo, exasperou-se a agremiao na funo de milcia atuante, de agrupamento militar. e em um caso e outro, desejou-se para o partido, como nico, a exclusividade da ao na cena poltica.

    em versos de 1942, de seu livro A Rosa do Povo, nosso maior poeta, Carlos Drummond de Andrade, afirmava, melancolicamente,

    Este tempo de partidotempo de homens partidos.28

    Pesava ao poeta ver como a luta de ideias se degra-dava em intolerncia, rumor e fria.

    A tais agremiaes talvez se devesse melhor re-servar a expresso de faces, que, nos tempos iniciais, tanto serviu para injuriar os partidos (era como faces que a eles se referia, por exemplo, ao final do sculo XVIII, Madison).29

    Silncio sobre os partidos

    No surpreende que a Constituio de 1937 no se refira a partidos. Nem a Constituio que a

    precedeu a de 1934 nem a de 1891 ou a de 1924 faziam qualquer meno a eles.

    S muito recentemente, em verdade, que o direito positivo comeou a abrigar disposies sobre a organizao e o funcionamento dessas organizaes, o mais das vezes numa viso restritiva, a aparar-lhe excessos, a vedar o registro de partidos confessionais, a proibir uniformes e militarizao.

    Se hoje numeroso e mesmo casustico esse disciplinamento, os primeiros momen-tos da vida partidria encontraram, mesmo, a suspeio dos dirigentes e da opinio pblica nos Estados. E at a crnica poltica no lhes reservava ateno, limitando-se os estudiosos ao exame dos ramos formais de governo.

    28 Drummond de Andrade, Carlos. A Rosa do Povo, in Nova Reunio, Rio de Janeiro, liv. Jos olympio editora,1983, p. 120.29 madison, James. O Federalista, Braslia, ed. universidade de Braslia, 1984.

    Carlos Drummond de Andrade

  • 24 Constituies Brasileiras

    mas surpreende que em sua ao poltica Var-gas no tenha procurado se apoiar, no estado Novo como o modelo europeu lhe sugeria , em qualquer base partidria.

    J se mostrou como a histria dos partidos no Brasil um percurso de descontinuidade foi marcada pelas intromisses estatais. Nas sete formaes partidrias que o Brasil j teve, mos-tram Bolvar lamounier e Rachel meneguello com o 2o Reinado, com a 1a Repblica, com a 2a Repblica, com a redemocratizao, de 1946 at 1964, com a emenda Constitucional no 5/69, com a reforma partidria de 1979 e com a reestruturao trazida pela emenda no 25/85 ,

    com exceo da ltima e, parcialmen-te, da penltima, as passagens

    de um sistema a outros sempre foram mediados pela interveno coercitiva do Poder Central.30

    Com o golpe de 37, houve o nico hiato nessa trajetria partidria. E transformando, por decreto de 30 de novembro daquele ano, os partidos polticos em sociedades culturais ou beneficentes, Getlio no cuidou de reanim-los.

    em entrevista coletiva imprensa, em 1945, ele descreveria o nazifascismo como sistema

    caracterizado por um partido nico, oficial e pelo poder absoluto do Estado sobre a vida econmica e espiritual dos indivduos, com preconceito racial e repdio da religio. Segundo Getlio, nada disto tinha acontecido no Estado Novo.31

    A Justia Eleitoral

    lamentvel que uma das maiores conquistas da Revoluo de 30, a Justia eleitoral, tenha recebido o repdio da Constituio de 1937.

    A Primeira Repblica encontrara sua maior mancha na manipulao dos pleitos, que serviam ao jogo fcil das oligarquias. os processos fraudulentos, que, no Imprio, haviam merecido a declarao pattica de Francisco Belisrio Soares de Souza Tudo tornou-se artificial nas eleies32 , prolongaram-se com o novo regime: tinham incio 30 lamounier, Bolvar e meneguello, Rachel. Partidos Polticos e Consolidao Democrtica. O Caso Brasileiro, So Paulo, editora Brasiliense, 1986, p. 21.31 Dulles, John V. F., ob. cit., p. 275.32 Soares de Souza, Francisco Belisrio. O Sistema Eleitoral no Imprio, Braslia. Senado Federal e universidade de Braslia. 1979, p. 6.

    Getlio no Catete

  • 25Volume IV 1937

    na qualificao, com parcialidade, dos votantes, e no despudor das mesas eleitorais, e seu coroamento na verificao e no reconhecimento, em cada uma das Cmaras, dos poderes de seus membros.

    o Cdigo eleitoral de 1932 e, depois, a Constituio de 1934 vieram ferir de morte o inquo sistema que recebera aprimoramento com a reforma de Campos Salles33 e atriburam a uma justia eleitoral o alistamento dos eleitores, o exame das arguies de inelegibilidade e incompatibilidade, a apurao dos sufrgios, a proclamao dos eleitos, em suma, todo o processo das eleies (art. 83).

    Com o silncio da Constituio de 1937, somente um decreto de maio de 1945 viria restabelecer os rgos dos servios eleitorais inscritos na Carta anterior.

    33 Campos Sales incumbiu o lder Augusto Montenegro de promover a reforma do Regimento da Cmara, introduzindo-lhes duas modificaes substanciais. A primeira, estabelecendo que a presidncia da mesa provisria de instalao, em vez de ao mais idoso, caberia ao presidente da legislatura anterior, ao qual competia nomear comisso de verificao de poderes. A segunda, definindo o que se deveria entender por diploma: a ata geral da apurao da eleio, assinada pela maioria da Cmara municipal competente. fcil perceber os resultados de medidas primeira vista to singelas. A nomeao da co-misso de poderes no ficava mais ao capricho da sorte, passando a uma autoridade sada da fina flor do governismo e a presuno de legitimidade, em favor dos candidatos com diplomas expedidos por juntas controladas pelos situacionismos, dava a estes poderes discricionrios, no se elegendo quem lhes fosse hostil. Costa Porto, Jos. in Pinheiro Machado e seu tempo, Rio Grande do Sul, l & P m, 2a edio, 1985, p. 105.

    O republicano:

    eis uma faixa constitucional que lhe oferecem. Getlio:

    mas eu sou ditador... o republicano: Sim, mas como ditador tem-se revelado um excelente presidente legal, e esperamos que como presidente legal no se revele um timo ditador.

    (Careta, 28-10-33)

  • 26 Constituies Brasileiras

    O nmero de deputados por Estado

    Tem sido amplo, no Brasil, o debate sobre a participao poltica dos estados na Federao. Esse tema envolveu, muito obviamente, a implantao da Repblica em nosso Pas, com a adoo do modelo federativo e se constituiu em uma das principais discusses em redor da Constituio de 1891.

    um dos que participaram inicialmente desse debate foi epitcio Pessoa. Ele via o artigo 27, 1o, do projeto de Constituio que o Governo Provisrio havia submetido, em 1890, Assembleia e que determinava: O nmero de Deputados ser fixado pelo Congresso, em proporo que no exceder de 1 por 70 mil habitantes como

    um elemento indispensvel da verdade poltica aos governos unitrios, mas, tambm, como uma injustia grave e inconveniente nos governos federativos.

    epitcio dizia no conceber como se concedesse a quatro ou seis Estados, apenas, o di-reito de s eles decidirem de assuntos que se referem a todos os outros tambm, de s eles gerirem interesses de toda a Unio.

    No compreendia como quatro ou seis Estados que, por mera casualidade, foram ocupar, no tempo do Imprio, regies mais povoadas ou mais vastas ou que, por favores do Governo, hajam sido alimentados por uma corrente migratria mais caudalosa, tenham o direito exclusivo de decidir naquilo que diz igualmente respeito aos interesses de quinze ou dezessete Estados.34

    Argumentou-se, ento, contra epitcio, que ele no fazia diferena entre a vida local e a vida nacional; para o local, toda a autonomia; para a nacional, a proporcionalidade.

    A ele se ops a tese, tradicional, de que o Senado representa os Estados; a Cmara, o povo.

    Em um aparte, chegou-se a comentar que ele bulia com um formigueiro.35

    A nossa primeira Constituio republicana, de 1891, no atendeu pretenso de epitcio Pessoa, de que os estados se igualassem em sua representao Cmara. Disps o artigo 28, 1o, repetindo o texto do projeto, que:

    O nmero de Deputados ser fixado por lei, em proporo que no exceder de 1 por 70 mil habitantes.

    34 epitcio Pessoa. Perfis Parlamentares 7, Seleo e intr. do Jos octvio, Braslia, Cmara dos Deputados, p. 73 e segs. 35 epitcio Pessoa, ob. cit, p. 76.

    Epitcio Pessoa

  • 27Volume IV 1937

    mas se acrescentou: no devendo esse nmero ser inferior a quatro por Estado.

    Garantindo um mnimo de representantes Cmara, por estado, trazia-se um critrio federativo prevalecente no Senado tambm para a outra Casa do Congresso.

    A Constituio de 1934 determinou que o nmero de Deputados os do povo, pois foram criados ali, tambm, os deputados das profisses seria proporcional populao de cada estado,

    no podendo exceder de 1 por 150 mil habitantes at o mximo de vinte e, desse limite para cima, de 1 por 250 mil habitantes.

    Foi a Constituio de 1937 que introduziu o critrio, depois seguido pelas Constitui-es de 1946 e 1967, de uma limitao tambm do nmero mximo de representantes. Dizia, em seu artigo 48:

    O nmero de Deputados por Estado ser proporcional populao e fixado por lei, no podendo ser superior a dez e nem inferior a trs por Estado.

    Essas duas linhas a do estabelecimento de uma proporo ao nmero de habitantes e a de uma limitao quanto ao mnimo e quanto ao mximo de representantes foram conjugadas na Constituio de 1946: o nmero de Deputados seria fixado em pro-poro que no exceda 1 para 150 mil habitantes; mas seria de 7 o nmero mnimo de Deputados por Estado e pelo Distrito Federal.

    Hoje, pela nossa atual Constituio, nenhum estado pode ter mais de 70 nem menos de 8 deputados.

    O que leva insatisfao ao Professor Miguel Reale: nada justificaria, para ele, queconsideraes peculiares ao sistema federalista se insinuem na problemtica da representao popular, influindo na composio da Cmara dos Deputados.36

    e chega ele a uma concluso amarga ao proceder a um clculo da representao com base nos critrios que cr artificialmente impostos pela Constituio: a de que, no Brasil, existiria, apenas

    aparncia de representao proporcional

    pois seria gritante a desigualdade entre os cidados pertencentes aos grandes e pequenos Estados.37

    Como corrigir, no entanto, a outra desigualdade, a verdadeira desigualdade, que a dos prprios estados, to grandes uns como minas e So Paulo, em sua concentrao

    36 Reale, miguel. O Sistema de Representao Proporcional e o Regime Presidencial Brasileiro, in Revista Brasileira de Estudos, no 7, nov. 1959.37 Reale, miguel. ob. cit.

  • 28 Constituies Brasileiras

    demogrfica e de poder econmico, em sua fora eleitoral, em suma a se alternarem nas posies de mando; e outros, to pequenos, a deter a curul presidencial somente em situaes atpicas, de solues de fora ou de morte do Chefe de executivo?

    Uma soluo. Rui Barbosa com Altino Arantes, Nilo Peanha, Pedro Lessa, Lauro Mller, Dantas Barreto, Francisco Sales, Assis Brasil e Borges de Medeiros.

  • 29Volume IV 1937

    O AUTOR

    Pernambucano, nascido em Nazar da mata, Walter Costa Porto formou-se em Direito pela Faculdade de Direito da universidade Federal de Pernambuco. Dirigiu o Depar-tamento de Assistncia s Cooperativas e foi Secretrio do Trabalho e da Assistncia Social em seu estado.

    Em Braslia, presidiu o Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria, chefiou o Gabinete do ministrio da Justia e ocupou a Secretaria-Geral daquele ministrio.

    Jornalista, militou na imprensa do Recife e da Capital Federal.

    Integrou o Conselho Federal de educao e foi professor de Direito Constitucional e de Direito da Cidadania da universidade de Braslia, alm de ministro do Tribunal Superior eleitoral.

    Publicou, entre outras obras, Cooperativismo de Produo Industrial, Trs Experi-ncias (1906), Racionalizao Legislativa (1985), O Voto no Brasil Da Colnia V Repblica (1989) e Dicionrio do Voto (1995).

  • 31Volume IV 1937

    A CONSTITUIO DE 1937 E SUA VIGNCIA

    I ENTREVISTA DE FRANCISCO CAmPOS AO CORREIO DA MANH DO RIO DE JANEIRO, Em 3 DE mARO DE 1945

    O Golpe de Estado de 1937

    o Golpe de estado de 1937 foi dado num momento de graves ansiedades e apreenses pblicas. Foi-lhe dada por causa imediata uma situao de profundas desordens po-tenciais. A sua finalidade no poderia ser to somente a de proteger a ordem poltica e social do Pas, mas tambm a de realizar uma grande obra administrativa, procurando resolver alguns problemas da mais transcendental importncia para o Pas. Dentro de pouco, porm, revelou-se que o golpe de estado, ao invs de favorecer ou exaltar o dinamismo do Governo, contribuiu, ao contrrio, para acentuar a sua adinamia e o seu hbito inveterado de preferir, sempre, e em todas as circunstncias, s decises as dilataes.

    Desde o princpio, portanto, falhou o golpe de estado ao que deveria ser uma das suas principais finalidades. O desnimo e o desencanto apoderaram-se desde logo dos principais colaboradores do Governo, particulamente dos que, pelas circunstncias de se apresentarem como chefes visveis das Foras Armadas, em cujo nome e sob cuja responsabilidade havia sido desferido o golpe, sentiam enfraquecer-se dia a dia a sua situao moral perante as grandes e nobres instituies que haviam de boa-f solenemente comprometido perante a Nao. malogrado, assim, o golpe de estado, em relao a um dos seus objetivos fundamentais, malogrou-se, igualmente, no seu propsito de resguardar das agresses dos extremismos as nossas tradicionais insti-tuies polticas, pois estas viriam a ser literalmente destrudas pelo Governo, que as invoca como justificativa de golpe de Estado.

    Pode qualificar-se a obra do Governo no terreno das instituies polticas como sendo a do mais absoluto niilismo. A obra de restaurao das nossas instituies polticas ser tanto mais difcil quanto mais se prolongar esse perodo de negativismo, des-truio e arrasamento da obra secular de adaptao do Brasil s instituies polticas do mundo civilizado.

    A Constituio e o fascismo

    A Constituio de 1937 no uma Constituio fascista. Alis, est muito em moda acoimar-se de fascista a todo indivduo ou toda instituio que no coincide com as nossas opinies polticas. No tempo em que o comunismo representava la bte noire, a moda era inversa. Comunista era todo indivduo ou a instituio que julgvamos em desacordo com as nossas convices polticas. A ascenso do comunismo e o declnio do fascismo no horizonte poltico mundial determinaram essa inverso. Basta o exame mais superficial das linhas gerais da Constituio, para que qualquer indivduo, da mais elementar cultura poltica, verifique que o sistema da Constituio de 1937 nada tem de fascista. No se conceberia, com efeito, pudesse ser acoimada de fascista uma

  • 32 Constituies Brasileiras

    Constituio que assegura ao Poder Judicirio as prerrogativas constantes da Consti-tuio de 1937, que abre no prprio texto constitucional todo um captulo destinado a garantir a estabilidade dos funcionrios pblicos.

    o art. 177 autorizava a aposentadoria dentro do prazo de 60 dias, a contar da data da Constituio, isto , at 10 de janeiro de 1938. ora, como v, a faculdade era estri-tamente limitada no tempo e, se continuou a ser aplicada depois, foi por exclusivo arbtrio do Governo.

    A Carta de novembro estabelece, ainda, a responsabilidade do chefe do Governo, atribuindo ao Parlamento a faculdade de process-lo e de destitu-lo do mandato; tambm assegura aos estados federados a mais completa autonomia.

    os males que, porventura, tenham resultado para o Pas do regime inaugurado pelo golpe de estado de 1937 no podem ser atribudos Constituio. esta no chegou sequer a vigorar. e, se tivesse vigorado, teria, certamente, constitudo importante limitao ao exerccio do poder.

    Poderia haver, ao lado ou sombra da Constituio de 1937, ideologias ou individu-alidades fascistas. eram, porm, fascistas frustes, larvados (no bom sentido latino), sem o fundo das grandes culturas histricas, cujo esprito os autnticos fascistas europeus haviam trado, assinalando o seu aspecto tcnico e dinmico e esquecendo os seus valores de sentido e direo.

    mas a Constituio de 1937 no fascista, nem fascista a ditadura cujos fundamen-tos so falsamente imputados Constituio. o nosso regime, de 1937 at hoje, tem sido uma ditadura puramente pessoal, sem o dinamismo caracterstico das ditaduras fascistas, ou uma ditadura nos moldes clssicos das ditaduras sul-americanas.

    Se a Constituio tivesse sido aplicada, no nos encontraramos, hoje, no impasse em que nos encontramos. Ela poderia ter sido oportuna e pacificamente atualizada, sem que se precisasse de recorrer aos expedientes, aos malabarismos e aos sofismas que tanto enfraqueceram o Governo perante a Nao.

    Atualizao das instituies polticas

    A Constituio de 1937 foi outorgada num momento de crise universal de ordem e de autoridade. J existia no mundo o estado potencial de guerra e dentro de cada pas esboava-se o quadro da luta ou da oposio ideolgica que a guerra viria transpor-tar do espao nacional para o espao internacional, conferindo ao conflito mundial o carter ideolgico que extrema, de maneira to acentuada uma da outra, as duas guerras mundiais que se abateram sobre a humanidade no perodo de uma gerao.

    A Constituio de 1937 foi, assim, imposta pelas circunstncias. A luta poltica no era apenas uma luta pelo poder dentro dos quadros clssicos da democracia liberal. As ideologias externas que se assenhoreavam do campo da luta tinham como obje-tivo declarado a destruio tradicional, no somente no domnio poltico, como no

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    domnio social e econmico. Nesta atmosfera carregada de ameaas ordem poltica e social, o estado seria desarmado diante da aura de agressividade que, como nos ataques comiciais, anuncia a transformao das lutas sociais e polticas, inspiradas por ideologias extremadas, nas convulses da guerra civil.

    Impunha-se, portanto, transformar as instituies polticas antes que elas fossem des-trudas. Foi o que fez a Constituio de 1937. Ela refletiu as contingncias do momento. Impunha-se armar o estado contra a agressividade dos partidos da extrema, tanto mais quanto estes partidos pretendiam, valendo-se das franquias liberais do regime, atac-lo nos seus fundamentos. eles pretendiam usar da liberdade precisamente para destru-la. Sobrevindo, porm, a guerra, a luta ideolgica perdeu o seu sentido nacional, passando a desenvolver-se no mais entre partidos, mas entre naes, transposta do quadro interno de cada pas para o plano internacional.

    Na guerra tomamos um partido, e, precisamente, o partido cuja ideologia poltica est em manifesto desacordo com a estrutura ideolgica da Constituio.

    Mudou a fisionomia do mundo. Na transformao operada nas nossas instituies adotamos, por motivo de estratgia poltica, muitos conceitos que a guerra e, particu-larmente, o seu desfecho tornaram caducos e inviveis no mundo a ser modelado pelas naes vitoriosas e pela ideologia que elas representam e declaradamente arvoram como bandeira da luta e da vitria.

    Por sua vez, no h no pas, e muito menos poder haver, depois da vitria, uma opo-sio ideolgica nos mesmos termos de violento antagonismo que caracterizou a luta poltica no perodo imediatamente anterior Segunda Guerra mundial. necessrio que nos antecipemos aos acontecimentos, se no queremos ser violentados por eles. Nisto consiste a funo da poltica. No podemos, militarmente vitoriosos na guerra, deixar que subsistam motivos para sermos colocados, do ponto de vista ideolgico, no campo dos vencidos. Atualizemos as nossas instituies polticas, transformando-as no sentido das correntes espirituais e culturais que j anunciam claramente a configurao do mundo de amanh. Neste mundo no podemos ter o lugar que nos compete se no comparecermos com trajes que obedeam aos padres da propriedade e da decncia, estabelecidos pelo comum acordo das naes vitoriosas.

    atualizao das nossas instituies cumpre, porm, no fiquemos demasiadamente aferrados a um documento que no pode invocar em seu favor o teste da experincia. A Constituio no foi posta prova. Permanece em suspenso desde o dia de sua outorga at o dia de hoje. onde se deve ceder no se deve fazer mais concesses. A meia concesso como a meia medida: enfraquece, ao invs de fortalecer. A conces-so franca e liberal mais til, do ponto de vista poltico, do que a meia concesso, que apenas o caminho para que a concesso inteira seja, mais tarde, arrancada em condies menos favorveis.

    onde se deve ceder, deve, pois, ceder-se franca e decididamente, liberalmente e sem reservas.

  • 34 Constituies Brasileiras

    As formas polticas no so um dado constante ou invarivel; so atos, e, como tais, sujeitos s contingncias da atualidade, s dominantes espirituais que informam, em dado momento, o pensamento poltico e o sentimento pblico. Ora, as foras plsticas que neste momento dominam o pensamento poltico e o sentimento pblico so de fundo democrtico e, assim sendo, intil qualquer tentativa destinada a subtrair sua influncia a modelagem das instituies polticas.

    No s intil, como perigoso. Seria elevar barreiras de carter puramente acadmico, a profundos movimentos de opinio, que acabariam por se impor, mais tarde, mediante abalos de mais amplas repercusses do que seriam as resultantes de uma inteligente e oportuna acomodao com elas.

    o problema pe-se em termos muito simples: a Constituio de 1937, na sua parte poltica, reflete as correntes de opinio vitoriosas no mundo de hoje? No haver duas opinies sobre este ponto. A nossa organizao poltica foi modelada sob a influncia de idias que no resistiram ao teste da luta. mudou, a datar de dois anos para c, a fisionomia poltica do mundo. As idias democrticas, que at o comeo da guerra pareciam condenadas derrota e que eram por esta, antecipadamente, responsabiliza-das, resistiram galhardamente ordlia da guerra. Fizeram a sua prova e no apenas de maneira indireta; as naes aliadas deram a esta guerra um sentido definido. Elas transformaram esta guerra em uma guerra ideolgica, e a vitria no poderia deixar de ser uma vitria ideolgica. Que repercusso este fato poder ter entre ns e sobre a nossa organizao poltica? Poderemos subtra-la influncia de circunstncias to notrias, to claras, to definidas e to poderosas?

    Se no podemos, o tino poltico, o senso poltico, a razo de estado aconselhavam, evidentemente, aos homens responsveis pela situao que, ao invs de esperar o im-pacto daquelas foras e daquelas circunstncias sobre a nossa organizao poltica, se antecipassem ao choque, promovendo, desde j, a atualizao das nossas instituies no sentido indicado pelos acontecimentos mundiais. Nisto consiste a sabedoria poltica.

    Liberdade de opinio

    o Ato Adicional no corresponde s transformaes que se impunham Consti-tuio. A nica modificao, entretanto, no suficiente para integrar o Brasil num regime constitucional de carter democrtico. A ela no se faz uma referncia nesse documento. ora, a Constituio radicalmente contrria liberdade de opinio. ela postula, em princpio, essa liberdade, mas, logo em seguida, a condiciona e limita em tais termos que acaba por negar o que havia postulado. ela estabelece, com efeito, a censura prvia da imprensa. ora, o regime da censura prvia , precisamente, o regime da suspenso da liberdade. No se concebe regime democrtico ou representativo em que no haja liberdade de opinio. A liberdade de opinio da substncia do regime democrtico. De nada vale prescrever na Constituio que os rgos supremos do estado sero eleitos por sufrgio direto se ao mesmo tempo e no mesmo documento se proscreve a liberdade de opinio, sujeitando a expresso do pensamento censura prvia do Governo.

  • 35Volume IV 1937

    Reconhecemos que a questo da imprensa uma das mais graves e das mais deli-cadas que as condies do mundo moderno criaram no domnio poltico e social. A imprensa de grande tiragem, a imensa difuso do papel impresso, dentre massas cada vez mais densas e excitveis, constitui um dos problemas que desafiam a inteligncia e a competncia dos governos. Ser, porm, que a supresso da liberdade de opinio constitua a soluo adequada do problema?

    Se constitui, ento, no se poder conciliar a soluo com os postulados do regime democrtico e representativo. Neste caso, o nico regime possvel ser o das ditaduras. No acreditamos, porm, que assim seja. possvel regular a imprensa mediante uma lei adequada que lhe deixe a liberdade e torne efetiva a sua responsabilidade. No pode haver em regime democrtico poder irresponsvel. Quanto maior o poder, tanto maior deve ser a responsabilidade. Que os homens do Governo tenham a coragem necessria para fazer uma lei de imprensa que, sem lhe diminuir a liberdade, faa com que, ao invs de nociva, ela se torne til ao bem comum.

    As restries liberdade de imprensa vigentes entre ns nos ltimos anos contriburam para a degradao cvica, intelectual e moral a que se chegou no Brasil. A liberdade de opinio no apenas um conceito poltico. um conceito de civilizao e de cultura. Todo o edifcio do mundo moderno repousa sobre este fundamento. A educao, a investigao, as invenes e os progressos tcnicos e cientficos em todos os dom-nios somente so possveis graas a esse postulado, sem o qual os povos da terra se viriam reduzidos condio das tribos africanas. No se concebe que um pas como o Brasil haja vivido tantos anos da privao da liberdade de opinio sem graves danos sua civilizao e sua cultura. certo que existem evidentes indcios desse dano ao patrimnio histrico da nossa cultura.

    Estado de guerra art. 171 da Constituio

    Alis, essa situao que tantos malefcios trouxe, no s imprensa como ao povo do Brasil, perdura atualmente, uma vez que no h no Ato Adicional qualquer es-clarecimento quanto aos efeitos do art. 171 da Constituio, o qual declara que, na vigncia do estado de guerra, deixar de vigorar a Constituio nas partes indicadas pelo presidente da Repblica.

    o ponto de capital importncia.

    Pela interpretao que se deu a esse artigo, anula-se pela raiz o regime constitucional em toda a sua plenitude. Fundado nesse artigo, o chefe do Governo chegou mesmo a prorrogar o seu mandato.

    E, servindo-se dele, com a amplitude do sentido que se lhe atribui, o que fica dis-crio do Governo a Constituio inteira. A inteligncia, porm, que se atribuiu ao artigo em questo absolutamente infundada.

    o estado de guerra criao da reforma constitucional de 1935. Pelas emendas feitas Constituio de 1934, foi, com efeito, criado o estado de guerra e autorizado o Go-

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    verno a suspender a Constituio nas partes indicadas no ato da declarao do estado de guerra. Que efeitos, porm, decorrem da suspenso da Constituio? Poder ela ser suspensa em qualquer das suas partes ou suspensa em sua totalidade? So questes que permanecem sem resposta. Conferir, porm, ao Presidente da Repblica a faculdade de suspender a Constituio nas partes por ele indicadas no decreto de declarao do estado de guerra autoriz-lo a suspender todo o regime constitucional e, portanto, o funcionamento dos demais poderes. Poder, portanto, haver um interregno em que deixe de existir qualquer regime jurdico, abrindo-se ao presidente o ilimitado campo de discrio poltica, legislativa e administrativa. No haver limites ao seu poder pessoal. Ser a mais totalitria das ditaduras, pois mesmo nos regimes totalitrios subsistiam certas formas, processos e limites ao poder do ditador. uma vez, porm, suspensa a Constituio, no haver mais limites ao exerccio do poder. Ser o naked power, o poder inteiramente nu e absoluto, sem contrastes, formalidades e limites. Poder o presidente fechar as Cmaras e os tribunais, confiscar a propriedade, destruir ad libitum a vida e os bens dos cidados. Ser este o pensamento que se contm no artigo relativo suspenso da Constituio? Se , no poderia ser concebida mais crua negao do regime jurdico na sua prpria substncia, ficando facultado ao presidente, sem autorizao do Poder Parlamentar, investir-se da totalidade dos poderes do gover-no, e, mais do que isto, investir-se na totalidade desses poderes para exerc-los alm dos limites que a Constituio pe ao seu exerccio, pois, por hiptese, no haveria Constituio e os poderes do Governo seriam poderes absolutos.

    No pode ser este, evidentemente, o pensamento do artigo que autoriza a suspenso da Constituio. Que efeito, porm, ter o estado de guerra, e que significa a suspenso da Constituio? Que diferena existe entre o estado de emergncia e o estado de guerra?

    Estado de guerra e estado de emergncia

    o que distingue o estado de emergncia do estado de guerra apenas o emprego das Foras Armadas para a defesa do estado. o estado de emergncia se destina a evitar a co-moo intestina. o estado de guerra se declara quando a comoo intestina se manifesta, tornando-se necessrio o emprego das Foras Armadas para suprimi-la. A suspenso da Constituio se torna, portanto, necessria apenas nas zonas de operaes militares para que o comando militar possa agir com o desembarao necessrio s operaes de guerra. A Constituio se suspende apenas na poro do territrio em que a comoo intestina torna impossvel o exerccio da autoridade civil. Somente nesta poro do territrio em que existe realmente o estado de guerra que a Constituio se suspende, para dar lugar ao pleno exerccio da autoridade militar e vigncia das leis de guerra aplicadas pelos tribunais militares. O domnio da lei marcial no significa, porm, a abolio do regime jurdico; ao passo que a suspenso da Constituio de maneira ilimitada, como tem sido entendida em todo o territrio nacional, sem que em nenhum ponto dele ocorra o emprego das foras armadas em operaes de guerra, significa, pura e simplesmente, o colapso total da ordem jurdica. Convm fique bem esclarecido que este no pode ser o pensamento da Constituio, que este estado de absoluta negao da ordem jurdica no se concebe em pas algum, em nenhum tempo e em qualquer circunstncia, mesmo no caso de guerra externa e em relao s pessoas e bens do inimigo.

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    ora, se o Ato Adicional mantm as restries liberdade de opinio e conserva o artigo relativo suspenso da Constituio, com a interpretao que lhe d o Governo, as demais outorgas constantes do Ato Adicional perdem todo o seu valor. Nem se argumente que a Constituio no prescreve diretamente a censura da imprensa, mas apenas faculta que a mesma seja instituda por lei, pois em regimes democrticos nem mesmo ao Parlamento poder caber, a no ser em estado de emergncia, a instituio da censura de imprensa. Acresce, porm, que, cabendo ao presidente da Repblica, enquanto no se reunir o Parlamento, o poder de expedir decretos-leis sobre todas as matrias da competncia do legislativo, poder ele, a qualquer momento, instituir a censura por decreto-lei. Como, sendo assim, processar-se uma eleio se a liberdade de propaganda fica ad libitum do Poder executivo?

    e para que se processar essa eleio se, pela faculdade que tem o presidente de suspen-der a Constituio com a latitude que o prprio Governo empresta a essa faculdade, poder ele tornar ineficaz o prprio pronunciamento eleitoral, suspendendo a vigncia da Constituio sob cujo regime se fez a eleio?

    Seria, porm, desnecessrio qualquer exame do Ato Adicional. em primeiro lugar, porque o Governo no poderia expedi-lo, e, em segundo, porque o Ato Adicional no encontra mais em vigncia a Constituio de que pretende ser uma correo ou complemento.

    Reforma da Constituio arts. 174 e 180

    Passemos a demonstrar esses dois pontos. A Constituio de 1937 uma Constituio outorgada. Se ao Poder que a outorgou fosse facultado introduzir-lhe modificaes, a Constituio perderia precisamente o seu carter constitucional. A Constituio ou-torgada s representa uma garantia quando, pela outorga, se desprende ou desgravita do poder que a outorgou, passando a ser uma regra normativa desse mesmo poder. Com a outorga se esgota o poder do outorgante e devolve-se ao poder constituinte a faculdade de modificar ou revogar a Constituio. E isto mesmo o que se acha expressamente reconhecido pela Constituio de 1937. Primeiro: quando no art. 187 se declara que ela ser submetida ao plebiscito nacional; em segundo lugar, quando estabelece um processo especial para a sua emenda ou reforma. ela s pode ser emendada ou reformada mediante processo por ela mesma estabelecido. o art. 180, invocado como fundamento para a expedio do Ato Adicional, s se refere matria legislativa ordinria e em nenhum artigo mais da Constituio se encontra qualquer dispositivo que, diretamente ou mediante ilao, atribua ao Presidente da Repblica a faculdade de emendar ou reformar a Constituio. Ao contrrio, o art. 174 estabelece peremptoriamente que a Constituio s pode ser reformada pelo processo especial que esse artigo minuciosamente regula. o Ato Adicional, portan-to, ao invs de fundado na Constituio, contraria dispositivos expressos nela. uma nova Constituio outorgada no abusivo exerccio do Poder Constituinte que a prpria Constituio de 37 reconhece, determinando o plebiscito como um atributo inalienvel da Nao.

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    Vigncia da Constituio de 1937 o plebiscito

    Acontece, porm, o que mais grave, que a Constituio de 1937 no tem mais vign-cia. um documento de valor puramente histrico. entrou para o imenso material que, tendo sido ou podendo ter sido jurdico, deixou de o ser ou no chegou a ser jurdico, por no haver adquirido ou haver perdido a sua vigncia. o que resulta claramente do texto da prpria Constituio. Com efeito, o art. 175 declara:

    O atual presidente da Repblica tem renovado o seu mandato at a realizao do plebiscito a que se refere o art. 187, terminando o perodo presidencial fixado no art. 80 se o resultado do plebiscito for favorvel Constituio.

    ora, o art. 80 declara: O perodo presidencial ser de seis anos.

    Resulta, pois, claramente, da combinao dos dois artigos: 1o, que o mandato do presidente comearia a correr da data da Constituio; 2o, que esse perodo no pode exceder de seis anos, e, estabelecendo o art. 175 que o presidente s terminaria esse perodo de seis anos se o plebiscito fosse favorvel Constituio, o plebiscito deveria realizar-se impreterivelmente dentro dos seis anos a que se refere o art. 80. ora, no se tendo realizado o plebiscito dentro do prazo estipulado pela prpria Constituio, a vigncia desta, que antes da realizao do plebiscito seria de carter provisrio, s se tornando definitiva mediante a aprovao plebiscitria, tornou-se inexistente. A Constituio de 1937 no tem mais, portanto, vigncia constitucional. , como j dissemos, um documento de carter puramente histrico e no jurdico.

    O Ato Adicional Lei Constitucional no 9

    A tese implcita no Ato Adicional que o Poder Constituinte, ao invs de residir no povo, reside no chefe do Goveno. ora, essa tese o fundamento do regime totalitrio e o primeiro postulado desse regime. Aqui est, por exemplo, o constitucionalista oficial da Alemanha nazista, o professor Karllreutter. Eis o que ele diz a propsito de Constituio:

    No estado de chefe, ou no estado totalitrio, a Constituio a vontade do Fuchrer. Todo o ato do Fuchrer relativo estrutura do estado um Ato Cons-titucional.

    este , precisamente, o postulado no qual se funda o Ato Adicional. o Poder Consti-tuinte a vontade do chefe do Governo. enquanto no for convocado o Parlamento, o chefe do Governo exerce em toda a sua plenitude o Poder Constituinte. e como a todo o momento, por ato exclusivo da sua vontade, ele pode expedir atos de ca-rter constitucional, resulta inevitavelmente que a Constituio a sua vontade. A Constituio de hoje pode no ser a de amanh. Diante disto, que garantias pode oferecer o Ato Adicional? Ainda que ele fosse radical, o que no acontece, nas pou-cas concesses que faz s aspiraes democrticas do Pas, amanh, pelo mesmo poder que o outorgou, poderia ele ser modificado ou revogado, pois, em virtude do aludido postulado, o Poder Constituinte do chefe do Governo inesgotvel e pode

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    exercer-se a jato contnuo e sem nenhuma limitao. No h dvida, portanto, que o Ato Adicional inoperante e ineficaz. Tem o mesmo valor que a Constituio qual pretendeu aderir, isto : o de um Ato sem qualquer vigncia jurdica. Alis, s se pode concluir em relao ao futuro, recorrendo ao passado e ao presente. A Constituio de 1937 nunca vigorou. outorgada, foi imediatamente posta de lado, somente sendo invocada na parte relativa aos poderes conferidos ao chefe do Governo. Se assim foi em relao Constituio, de se presumir que assim ser em relao ao Ato que se intitula Adicional. o acessrio ter a sorte do principal.

    Admitamos, porm, que a Constituio de 1937 estivesse em vigor e que o Ato Adi-cional pudesse ser expedido em virtude de poderes conferidos pela Constituio ao chefe do Governo. Ainda assim, no sei como se pudesse admitir a possibilidade de se realizarem as eleies de maneira sria, eficaz ou positiva. A Constituio est, com efeito, suspensa, em grande parte dos seus artigos. Particularmente nos relativos s garantias constitucionais. Admitamos, porm, que o Governo restabelea no seu vigor os artigos por ele suspensos. Permanecer, em todo caso, a faculdade de, a qualquer momento, suspender novamente a Constituio em parte, ou integralmente, a juzo exclusivo do chefe do Governo e para os efeitos que ele quiser, como, por exemplo, seria o caso para novamente prorrogar o seu mandato, ou para conferir-se um novo mandato, pois faculdade de suspender a Constituio ele j atribuiu precisamente esse efeito.

    Governo de fato

    estamos, porm, numa situao de governo de fato, que s poder legitimar-se mediante o exerccio pleno e livre do Poder Constituinte, que pertence Nao. So-mente a Nao, no exerccio de seu Poder Constituinte, pode dar incio ao processo de constitucionalizao do Pas. e isto mesmo estava expresso na Constituio de 1937, quando reservava ao povo, mediante o plebiscito, pronunciamento definitivo sobre a Constituio.

    De como o chefe do Governo se julga investido de poderes ilimitados, seja em con-seqncia de acreditar que nele reside o Poder Constituinte, seja em conseqncia da faculdade de suspender a Constituio, o que se revela em dois artigos do Ato Adicional. Refiro-me aos artigos que prorrogam o mandato do atual chefe do Governo e dos governadores que tenham tido o seu mandato confirmado pelo Presidente da Repblica.

    essa prorrogao no mais do que a outorga pura e simples de um novo mandato de carter eletivo, com a agravante de que, no fixando termo a esse mandato, poder ele exercer-se indefinidamente, sem nenhuma limitao no tempo. Ora, esse poder no o tem o chefe do Governo, por fora de qualquer artigo da Constituio de 1937. o uso de um poder inteiramente arbitrrio ou discricionrio a prorrogao em questo; portanto, no tem nenhum carter constitucional. o exerccio do poder, por qualquer dessas personagens, seja o chefe do Governo, seja o governador de estado, ser o exerccio de um poder de fato e no de um poder jurdico.

  • 40 Constituies Brasileiras

    Concluses

    Realmente, estamos em presena de um impasse, no, porm, de um impasse para a Nao, mas de um impasse para o Governo. Somente a Nao poder resolver o impasse e o resolver no exerccio do seu poder constituinte. No acredito, porm, que o possa fazer sob o Governo atual. o Governo perdeu por vrios motivos a au-toridade necessria para presidir a um ato de tamanha importncia. ele destruiu de maneira sistemtica a confiana pblica indispensvel para que se possa processar sob a sua autoridade o pronunciamento da Nao. em primeiro lugar, por haver revelado, durante tantos anos, o seu deliberado propsito de subtrair os seus atos e, particular-mente, a Constituio por ele outorgada ao julgamento nacional. em segundo lugar, criando, pelas mltiplas restries aos direitos dos cidados e liberdade do Pas, uma atmosfera inadequada a qualquer manifestao sria e honesta dos comcios eleitorais e sobrelevando a tudo o ato do chefe do Governo, prorrogando, de maneira sub-reptcia, envergonhada e mesmo clandestina, o seu mandato, criou para ele uma situao incompatvel com a magistratura que exerce. Diante dos erros irreparveis cometidos pelo Governo, que teve a fraqueza de, em questes morais e polticas da importncia mais capital, ceder presso dos seus ulicos, escribas e leguleios, s vejo uma soluo, atendendo o Sr. Getlio Vargas aos conselhos da sua conscincia e s inspiraes do seu patriotismo: restituir Nao o governo de si mesma, e, para isto, passar o poder a uma autoridade capaz, eminente e responsvel, para que esta, imediatamente, convoque o Pas primeira e inadivel deliberao, que eleger uma Assemblia com a autoridade necessria para tomar decises fundamentais de carter constitucional. Assim, talvez, se possa salvar o que ainda resta do Brasil, depois de um to longo perodo do niilismo poltico e administrativo. Talvez que, se o Sr. Getlio Vargas consultasse os fiadores do golpe de Estado de 1937, isto , as classes armadas, outro no seria o seu conselho, ou outra no poderia ser a sua deciso.

    O Sr. Getlio Vargas j pensou demais em si mesmo. tempo que pense um pouco no Brasil e no seu povo, cuja magnanimidade, cordura e tolerncia lhe tm dispensado favores e prerrogativas da maneira mais copiosa do que a qualquer dos seus filhos de merecimento igual ou superior. Atente o Sr. Getlio Vargas nos sofrimentos e humi-lhaes do povo brasileiro. No queira agrav-los ainda mais. Restitua-lhe a posse do futuro, uma vez que no pode recuperar o passado irremediavelmente perdido.

    II PARECER DA FACULDADE NACIONAL DE DIREITO DO RIO DE JANEIRO, PUBLICADO NO CORREIO DA MANH,

    Em 3 DE mARO DE 1945

    1. No difcil instante de transio poltica que est sendo vivido pelo povo brasileiro, e em que os esforos se unem para fazer emergir da ditadura uma nova ordem demo-crtica nacional, os professores de Direito da universidade do Brasil julgam-se no dever de romper o silncio que envolve o labor universitrio, para trazer a pblico a contribuio sincera da sua meditao sobre os problemas que assoberbam a cons-cincia jurdica do Pas.

  • 41Volume IV 1937

    A este momento de transio e de crise fomos conduzidos pelo antagonismo em que se colocaram, e cada vez mais se extremaram, o tipo de governo imposto ao pas em 1937 e os sentimentos e idias de que se formara aquela conscincia jurdica. um ideal de Estado estranho a nossa compreenso do poder pblico, uma mstica da autoridade pessoal incompatvel com o nosso senso humanstico, uma passividade popular inconcilivel com a nossa formao libertria divorciavam e contrapunham a Nao brasileira e o estado que sobre ela implantou o golpe revolucionrio de 1937. Desse divrcio entre a Nao brasileira e o estado nasceu a incoerncia aparente de nossa participao no conflito mundial, pois, embora o tipo ideolgico de Estado nos impelisse para a faco totalitria, a nao reagiu vitoriosamente sob a armadura po-ltica, e imps a aliana com as democracias unidas. Desse divrcio tambm se gerou e fomentou a presente crise do estado para cuja superao o Governo no dispe, como dentro em pouco veremos, de meios jurdicos idneos.

    Poder Constituinte

    2. Toda anlise do estado implantado em 1937 e da atual ordem jurdica interna tem como ponto de partida a identificao do Poder Constituinte, por obra do qual a Carta de 10 de novembro teria alcanado vigor.

    No o nome de constituio que confere a uma lei esse carter, bem definido e de-terminado na cincia jurdica. Pelo fato de ser lanada como lei constitucional pelo detentor de fato do poder, no cobra uma norma poltica aquela qualidade, da qual defluem to essenciais conseqncias. Para que uma Constituio o seja, requisito primordial que a sua adoo emane de um Poder Constituinte, o qual no pode ser outro que o detentor originrio da soberania.

    Dentro da concepo absolutista do Estado, esta soberania residiu no prncipe; den-tro da concepo democrtica, passou, porm, a residir no povo, acima do qual no se reconhece outro poder. Pelo termo soberano, escreve Jameson, entende-se a pessoa ou corpo de pessoas, a quem, politicamente, nada existe superior, num estado determinado.

    pelo fato de emanar do soberano, no exerccio do Poder Constituinte, e no em virtude de qualquer caracterstica formal ou material, que a Constituio cobra a na-tureza de lei fundamental, vincula o Poder legislativo ordinrio e obsta aplicao de toda lei que a contradiga.

    3. A histria constitucional no nos revela a existncia de Constituies outorgadas, seno em estados onde se reconhecia a soberania de um monarca. o caso da Cons-tituio de lus XVIII, de 1814, outorgada como graa, pelo prncipe, na plenitude do Poder Constituinte, de que, como soberano, se revestia.

    4. Cedo, porm, a prpria ndole do movimento constitucionalista em todo o mundo reagiu contra as cartas concedidas unilateralmente pelos prncipes, e preferiu con-ceitu-las como um pacto entre os soberanos e seus povos. J as idias democrticas ligavam o ideal constitucional soberania do povo; durante a Revoluo Francesa,

  • 42 Constituies Brasileiras

    Sieys desenvolvera a tese do povo titular do Poder Constituinte. o clssico Kluber, e com ele a cincia jurdica em diversos pases monrquicos do sculo XIX, repele a doutrina da outorga e reclama para o ato constitucional um carter bilateral.

    O ato constituinte, escreve ele, , por sua natureza, uma obra sinalagmtica; um ato entre partes, das quais uma e outra do e recebem por sua vez.

    Com este carter de pacto entre o prncipe e o povo, prevalecendo s vezes o poder de um sobre o do outro, fizeram-se j no sculo XIX as constituies de dezenas de reinos, principados, ducados e cidades livres europias.

    5. Nas grandes e pequenas democracias, onde a soberania reside no povo, fonte nica do poder poltico, foi sempre este, por obra de seus representantes ou mediante sufrgio direto, que criou ou legitimou suas cartas bsicas.

    Teramos de chegar ao nacional-socialismo alemo, de cuja doutrina constitucional dentro em pouco trataremos, para encontrar de novo a constituio legitimada com a simples enunciao da vontade do Fuehrer.

    6. Poderia a Carta constitucional de 10 de novembro legitimar-se com o simples fato de outorga pelo chefe do golpe de estado triunfante? Claro que no. A deteno do poder de fato no lhe transferiria parcela mnima que fosse da soberania popular e, no sendo soberano, no podia ele exercer o Poder Constituinte, que o apangio indeclinvel da soberania. Isso mesmo reconheceu a Carta de 10 de novembro, ao dispor, no seu art. 1o, que o poder poltico emana do povo e ao ordenar, no art. 187, que a Constituio seria submetida ao plebiscito nacional, na forma regulada em decreto do Presidente da Repblica.

    7. esta aprovao plebiscitria deveria ter lugar, como se depreende do art. 175, 2a parte, dentro de um prazo breve, em caso algum superior aos seis anos fixados para a durao do primeiro mandato presidencial, e graas a ele, por fora dele, se legiti-maria a Constituio.

    O povo manifesta seu Poder Constituinte mediante qualquer expresso recognosc-vel de sua imediata vontade de conjunto, escreve, na sua Teoria da Constituio (1927), o constitucionalista C. Schmitt e admite, entre esses modos de expresso, o plebiscito geral sobre uma proposta surgida de um modo determinado, de que so exemplos os plebiscitos napolenicos.

    Poderia, pois, a Constituio de 1937 ter sido adotada como lei fundamental do nosso Pas se, em tempo hbil, o povo brasileiro, no exerccio do Poder Constituinte, atributo de sua soberania, houvesse declarado, por meio de um plebiscito, que a ela queria conformar o seu estado e as condies bsicas de sua ordem jurdica. A falta desse plebiscito, entretanto, tolhe Carta outorgada toda a legitimidade e, podemos dizer, toda vigncia, tra