honoré de balzac - uma paixão no deserto

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Ttulo: Uma paixo no deserto.Autor: Honor de Balzac.Dados da edio: EDIES PAULINAS - 1988 - SO PAULO.Gnero: Conto.Digitalizao e correo: Vera Lcia Figueiredo.Estado da obra: corrigida.Numerao de pgina: rodap.Esta obra foi digitalizada sem fins comerciais e destina-se unicamente leitura de pessoas portadoras de deficincia visual. Por fora da lei de direitos de autor,este arquivo no pode ser distribudo para outros fins, no todo ou em parte, ainda que gratuitamente.HONOR DE BALZACUma paixono deserto(Contos)Traduo do francsLcia Machado de AlmeidaEDIES PAULINASDiagramao e capaPaulo Bernardo Ferreira VazEdies PaulinasRua Dr. Pinto Ferraz, 18304117 - So Paulo - SP (Brasil)End. telegr.: PAULINOSEdies Paulinas - So Paulo, 1988ISBN 85-05-00800-6Apresentao Abrir caminhos: esta a proposta fundamental da Coleo ASA-DELTA. Caminhos rumo aventura, viagem, ao alargamento dos limites, ao eterno sonho humano: ovo livre. Retomar percursos: o que ASA-DELTA procura oferecer. O mito do desinteresse dos jovens pela leitura dos grandes autores de todas as pocas e lugares picadaaberta para a literatura achatada, simplista, digestiva, apenas. Insistir no mito banir das publicaes destinadas a jovens a literatura, esta fora capaz de conduziro leitor beira do imenso abismo, para saltar no vcuo protegido apenas por um par de asas. (Um livro com suas pginas abertas asa-delta e todo leitor, caroem situao). Em quase todos os cantos - e o canto escolar ocupa um grande espao na vida juvenil - foram aceitos os percursos do empobrecimento da inteligncia,da sensibilidade, da emoo, da imaginao. Resgatar: verbo que se impe a quem esteja interessado em repensar os limites do universo cultural dos jovens. Abrir portas5para a criao, a experincia e a aventura de, em tempos e espaos diversos, soltar as rdeas para a busca da Histria que se esconde sob as estrias contadasdesde sempre: eis ambio que parece salutar em poca de todas e de poucas memrias, como a nossa. Interrogar, instigar, desafiar; fazer rir, chorar, pensar, imaginar; "deslocar"; conduzir a novo local, novos patamares - so estas algumas das preocupaes queesto na base da Coleo ASA-DELTA. A expectativa ver o pblico juvenil crescendo no apenas em idade, mas tambm em experincia de si e do mundo, em sabedoria: Na Coleo ASA-DELTA esto reunidos trabalhos de escritores universais, oferecidos, de preferncia, em verso integral. Adaptaes, desde que elas mesmas abramcaminhos, podem - devidamente indicadas - caber na lista de ttulos. Por outro lado, a direo editorial procura sempre propor textos capazes de serem absorvidospor leitores jovens, valendo-se, para tanto, de alguns recursos sua mo: textos no excessivamente longos, tramas bem delineadas, humor, mistrio, problemas existenciaise afetivos, conflitos extremos entre o amor e o desamor, a vida e a morte, a aceitao e a recusa. Todavia, o recurso maior o talento daqueles 6a quem o tempo incumbiu-se de nomear - grandes escritores. Seja a ASA-DELTA veculo e impulso, desafio e proteo para os que sonham com as mais belas viagens, com os grandiosos vos livres que homens e mulheres realizaramdesde sempre na e pela literatura.Edmir Perrotti7UMA PAIXO NO DESERTOQue o jovem leitor da era do tomo e do computador no se assuste diante do estilo prolixo, minucioso, com que Honor de Balzac apresenta seus personagens e aatmosfera que os rodeia. Pouco a pouco ir sendo envolvido pela fascinao queemana da beleza, por vezes terrvel, destes contos de um dos maiores escritores franceses de todos os tempos. Essas pginas representam um mergulho profundo na almahumana que desperta reflexes e problemas de conscincia especialmente ligados ao tema da morte. So trs histrias dramticas baseadas em casos reais, acontecidosem pleno sculo dezenove, tendo a guerra como pano de fundo Em "Uma Paixo no Deserto, considerado uma obra-prima, o Autor comea e termina o conto por um dilogo entre uma mulher no identificada e o narrador. De tcnica muito especial a engenhosa novela 'A Estalagem Vermelha', na qual a histria contada atravs do relato, entremeado de dilogos e interrupes,de certo conviva de um jantar, que participara da tragdia. O conto "O Carrasco"; talvez o mais pungente dos trs, desafia o leitor para que o leia sem experimentar sensao de horror.9A tradutora fez o possvel para ser fiel ao colorido e belo estilo deHonor de Balzac (Tours, Frana, 1799-1850), tambm autor de EugnieGrandet, Le Pre Goriot, Le Lis dans la Vale e de outros livros quecompem a srie de narrativas intituladas "A Comdia Humana".A Tradutora10Mas que espetculo assustador! - exclamou ela, saindo do circo do Sr. Martin.Acabava de ver aquele ousado domadorde feras... "trabalhando" com sua hiena, para usarmos linguagem de cartaz.- Como ser que ele conseguiu domesticar seus animais e estar certo de sua afeio a ponto de...- Esse fato, que lhe parece um problema - respondi, interrompendo-a - , no entanto, uma coisa muito natural.- Oh! - exclamou ela, sorrindo com incredulidade.- Voc acha ento que os animais so inteiramente desprovidos de paixes? - perguntei-lhe. - Pois fique sabendo que ns lhes poderemos atribuir todos os vcios denossa civilizao.Ela olhou-me com espanto.- Mas - continuei eu - ao ver o Sr. Martin pela primeira vez, confesso que deixei tambm escapar uma exclamao de surpresa. Eu me achava ento perto de um antigomilitar que tinha a perna direita amputada, e que entrara junto comigo. Sua figura me impressionou.Tinha uma dessas fisionomias destemidas,11marcadas pelo selo da guerra e sob as quais esto gravadas as batalhas de Napoleo. Esse velho soldado possua sobretudo aquele ar de franqueza e de bom humor quesempre me predispe favoravelmente. Ele seria com certeza um desses veteranos que no se surpreendem com coisa alguma, que acham motivos para rir diante da derradeiracareta de um camarada, enterram-no ou saqueiam-no alegremente, intimam a responder as balas com autoridade, enfim, cujas deliberaes so rpidas e capazes de confraternizaremat com o prprio diabo. Depois de olhar atentamente o dono do circo quando ele saa de sua barraca, meu companheiro franziu os lbios, mostrando um zombeteiro desprezo atravs dessaespcie de significativo muxoxo a que se permitem os homens superiores para se diferenciarem dos tolos. Assim sendo, quando me espantei da coragem do Sr. Martin,ele sorriu e me disse com ar suficiente, abanando a cabea:- Isso no nada! - Nada, como? - retruquei. - Se quiser explicar-me esse mistrio, eu lhe ficarei muito grato. Depois de alguns instantes durante os quais travamos relaes, fomos jantar no primeiro restaurante que encontramos. sobremesa uma garrafa de champanha devolveus lembranas desse curioso soldado toda a sua nitidez. Contou-me sua histria e eu reconheci que ele tinha razo quando exclamara: "Isso no nada"!12 Voltando para casa, ela fez-me tantos agrados e promessas, que eu concordei em redigir-lhe as confidncias do soldado. No dia seguinte ento ela recebeu esteepisdio de uma epopia que se poderia chamar "Os Franceses no Egito".*.*. Quando da expedio realizada no Alto Egito pelo General Desaix, um soldado provenal, tendo cado em poder dos berberes, foi levado por estes a um deserto situadoalm das cataratas do Nilo. A fim de colocar entre eles e o exrcito francs um espao suficiente para sua tranqilidade, os rabes empreenderam uma marcha foradada qual s pararam noite. Acamparam em torno de um poo disfarado entre palmeiras, junto das quais haviam anteriormente enterrado algumas provises. No imaginandoque a idia de fugir pudesse ocorrer a seu prisioneiro, eles se limitaram a amarrar-lhe as mos. E todos dormiram depois de comerem algumas tmaras e dado cevadaa seus cavalos. Quando viu que seus inimigos no estavam em condies de o vigiar, o ousado provenal usou os dentes para se apoderar de uma cimitarra. Ento, valendo-sedos joelhos para fixar a lmina, cortou as cordas que lhe impediam o uso das mos e ficou livre. Em seguida apoderou-se de uma carabina e de um punhal, fez uma provisode tmaras secas, de um saquinho de cevada, de plvora e de balas. Cingiu a cimitarra, montou a cavalo e disparou na direo onde supunha13achar-se o exrcito francs. Impaciente por avistar algum acampamento, ele forou de tal modo o cavalo, que este j exausto, e com as entranhas dilaceradas, acaboumorrendo e deixando o francs no meio do deserto. Depois de ter andado algum tempo na areia com toda a coragem de um forado que foge, o soldado foi obrigado a parar,pois o dia j findava. Apesar da beleza do cu durante as noites do Oriente, ele no teve foras para continuar seu caminho. Por sorte pudera alcanar um lugar maiselevado no qual havia palmeiras cuja folhagem, percebida antes, lhe despertara no corao as mais doces esperanas. Seu cansao era to grande que ele se deitousobre uma pedra de granito caprichosamente talhada em forma de cama, e adormeceu sem tomar nenhuma precauo relativa prpria defesa durante o sono. Sacrificarasua vida. Seu ltimo pensamento ao adormecer foi de arrependimento. Arrependimento de ter abandonado os berberes, cuja vida errante comeava a sorrir-lhe depoisque se achava longe deles e sem recursos. Foi despertado pelo sol, cujos raios implacveis, caindo diretamente sobre o granito, produziam um calor insuportvel. Ora, o francs tivera a m idia de colocar-seem sentido inverso ao da sombra, projetada pelos verdejantes e majestosos galhos das palmeiras. Olhou para aquelas rvores solitrias e estremeceu: lembraram-lheos fustes elegantes e coroados de longas folhas, caractersticos das colunas sarracenas14da catedral de Arles. Mas quando, depois de contemplar as palmeiras, ele olhou em torno de si, o mais terrvel desespero tomou conta de sua alma. Via um oceanosem limites. As areias escuras do deserto se estendiam a perder de vista em todas as direes, e brilhavam como uma lmina de ao batida por luz fortssima. Eleno sabia se era um mar de gelo ou lagos unidos como um espelho. Levado por ondas, um vapor de fogo turbilhonava acima daquela terra movedia. O sol tinha um brilhooriental de uma pureza desesperadora, que nada deixava desejar imaginao. Cu e terra estavam em fogo. O silncio amedrontava por sua selvagem e terrvel majestade.O infinito, a imensidade oprimiam a alma de todos os lados: nem uma nuvem no cu, nem um sopro no ar, nenhuma desigualdade no seio da areia agitada por vagas midas.Enfim, o horizonte terminava, como no mar quando faz bom tempo, por uma linha luminosa to fina quanto o fio de um sabre. O provenal abraou o tronco de uma palmeira como se fosse o corpo de um amigo, e depois, abrigado pela sombra tnue e reta que a rvore riscava sobre o granito,ele chorou, sentou-se, e assim ficou, contemplando com profunda tristeza a cena que se oferecia a seus olhos. Gritou como que para desafiar a solido. Sua voz, perdida nas cavidades da colina, deu ao longe um som fraco e sem eco: o eco estava dentro15de seu corao. O provenal tinha vinte e dois anos e armou sua carabina. - Nunca ser tarde! - disse ele para si mesmo, colocando em terra a arma libertadora. Olhando alternadamente o espao escuro e o cu azul, o soldado sonhava com a Frana. Sentia com delcia as guas de Paris, lembrava-se das cidades pelas quaishavia passado, das fisionomias de seus camaradas, das menores circunstncias de sua vida. Enfim, sua imaginao meridional logo lhe fez ver as pedras da sua queridaProvena no espetculo do calor que ondulava sobre a toalha estendida no deserto. Receando os perigos de to cruel miragem, ele desceu pelo lado oposto ao que navspera subira. Sua alegria foi enorme, descobrindo uma espcie de gruta, cavada nos imensos fragmentos de granito que formavam a base daquele monte. Os farraposde uma esteira revelavam que aquele abrigo fora anteriormente habitado. Em seguida, pouco adiante, ele viu tamareiras carregadas de frutos. Acordou ento, em seucorao, o instinto que nos prende vida. Esperou viver o suficiente para aguardar a passagem de alguns berberes ou talvez - quem sabe? - ouvir em breve o barulho de canhes, pois Bonaparte estava naquelemomento passando pelo Egito. Reanimado por esse pensamento, apanhou algumas pencas de frutas maduras a cujo peso as tamareiras pareciam vergar, e, diante daqueleinesperado man, teve a certeza que o habitante da gruta havia cultivado as rvores:16a polpa saborosa das tmaras revelava realmente os cuidados de seu predecessor. O provenal passou subitamente de um sombrio desespero a uma alegria quaselouca. Tornou a subir at o alto da colina e passou o resto do dia cortando uma das palmeiras estreis que na vspera lhe havia servido de teto. Uma vaga lembranao fez pensar nos animais do deserto, e prevendo que eles poderiam vir beber na fonte perdida nas areias que aparecia ao p das rochas, resolveu se proteger contravisitas, levantando uma barreira porta de sua ermida. Apesar de seu empenho e das foras que lhe deu o medo de ser devorado durante o sono, foi-lhe impossvelcortar a palmeira em pedaos aquele dia. Conseguiu derrub-la finalmente. Quando noitinha caiu aquela rainha do deserto, o barulho de sua queda ecoou ao longee ouviu-se uma espcie de gemido lanado pela solido. O soldado estremeceu como se tivesse escutado alguma voz a lhe predizer desgraas. Mas, assim como um herdeiro que no lamenta por muito tempo a morte de um parente, ele despojou a bela rvore de suas largas e longas folhas verdes, que eramseu potico ornamento, e usou-as para consertar a esteira na qual iria se deitar. Cansado pelo calor e pelo trabalho, adormeceu sob o forro vermelho de sua midagruta. No meio da noite, seu sono foi perturbado por um rudo extraordinrio. Ergueu-se, e o silncio profundo que ali reinava permitiu-lhe reconhecer o ritmo alternadode uma respirao,17cuja selvagem energia no podia pertencer a uma criatura humana. Um medo pavoroso, aumentado pela escurido, pelo silncio e pelas fantasias do acordar,gelou-lhe o corao. Quase nem sentiu a dolorosa contrao de seu couro cabeludo, quando, de tanto dilatar as pupilas dos olhos, ele percebeu na sombra dois claresamarelos e fracos. De incio, atribuiu aquelas luzes a algum reflexo da menina de seus olhos. Logo, no entanto, como a claridade da noite o ajudasse a distinguirgradativamente os objetos que se achavam na gruta, percebeu um enorme animal deitado a dois passos dele. Seria um leo, um tigre, ou um crocodilo? O provenal no tinha suficientes conhecimentos para saber em que subgnero estaria classificado o seu inimigo. Seuterror foi ainda mais violento, porque a ignorncia fazia-o imaginar todos os males ao mesmo tempo. Ele suportou o cruel suplcio de escutar e captar os caprichosdessa respirao, sem perceber nada e sem ousar permitir-se o mnimo movimento. Um cheiro to forte como o exalado pelas raposas, mas mais penetrante, mais gravepor assim dizer, enchia a gruta, e quando o provenal o degustou com as narinas, seu terror chegou ao auge, pois no podia haver mais dvidas quanto existnciado terrvel companheiro cujo antro real lhe servia de acampamento. Em breve os reflexos da lua que saa rumo ao horizonte, clareando a toca, fizeram insensivelmenteresplandecer a pele malhada de uma pantera.18 Esse leo do Egito dormia enroscado como um grande co, calmo dono de um nicho suntuoso, porta de uma grande hospedaria. Seus olhos, abertos durante um momento,se haviam fechado de novo. Tinha a face voltada para o francs. Mil pensamentos confusos passaram pela alma do prisioneiro da pantera. De incio pensou em mat-lacom um tiro de carabina, mas percebeu que no havia espao suficiente entre ambos para o ajuste, pois o cano teria ultrapassado o corpo do animal. E se ele acordasse?Essa hiptese imobilizou-o. Ouvindo seu corao bater no meio do silncio, ele amaldioava as pulsaes demasiado fortes que a afluncia do sangue produzia, temendoperturbar aquele sono que lhe permitia procurar algum expediente salvador. Duas vezes ele tocou na cimitarra com a tentao de cortar a cabea de sua inimiga, masa dificuldade de ferir um plo raso e duro o obrigou a desistir do ousado projeto. "E se falhasse? Seria morte certa" - pensou ele. E preferiu arriscar um combate, esperando o dia. Este no se fez esperar por muito tempo. O francs pde entoexaminar a pantera, cujo focinho estava sujo de sangue. "Ela deve ter-se alimentado bem!" - pensou sem indagar se o festim constara de carne humana. - No dever, portanto, ter fome ao acordar. Era uma fmea. O plo do ventre e das coxas resplandecia de brancura. Vrias pequenas19manchas que pareciam de veludo, formavam lindos braceletes em torno das patas. A cauda musculosa era igualmente branca e terminava por anis pretos. A parte de cimada pele, amarela como ouro fosco, mas bem lisa e suave, apresentava essas manchas caractersticas em forma de rosas que servem para distinguir as panteras de outrasespcies de felinos. Essa tranqila e temvel hspede roncava numa atitude to graciosa como a de uma gata deitada numa almofada. Suas patas sangrentas, nervosase bem armadas estavam frente da sua cabea, que sobre elas pousava, e da qual partiam essas barbas raras e retas, semelhantes a fios de prata. Se ela estivesseassim em uma jaula, o provenal teria certamente admirado a graa da fera e os vigorosos contrastes das cores vivas que davam a sua, digamos, vestimenta, um brilhoimperial. Mas nesse momento, ele sentiu a vista turvada pela sinistra viso. A presena da pantera, mesmo adormecida, o fazia experimentar o efeito que, dizem, osolhos magnticos das serpentes produzem no rouxinol. A coragem do soldado acabou por desaparecer um instante diante do perigo enquanto, sem dvida, ela se teriaexaltado ante a boca dos canhes vomitando a metralha. No entanto, surgiu-lhe na alma um pensamento corajoso, que fez secar na fonte o suor frio que lhe escorriapela testa. Agindo como os homens que, levados ao extremo pela desgraa, chegam a desafiar a morte e se oferecem a seus golpes, ele sem perceber viu uma tragdia20nessa aventura e resolveu desempenhar seu papel com honra at a cena final. "Anteontem talvez os rabes me tivessem matado!" - pensou ele. Considerando-se como morto, ele esperou corajosamente, e com inquietante curiosidade, o despertar de sua inimiga. Quando o sol apareceu, a pantera subitamente abriu os olhos. Depois estendeu violentamente as patas como que para as desentorpecer e desfazer as cibras. Finalmentebocejou, mostrando o assustador aparelho de seus dentes, e sua lngua fendida, to dura quanto uma lima. "Ela como uma pequena mulher!" - pensou o francs, vendo-a rolar-se e fazer os movimentos mais suaves e mais coquetes. Ela lambeu o sangue que tingia suas patas, o focinho, e coou a cabea com gestos cheios de graa. "Bem, faa um pouco a sua toalete..." - disse o francs para si mesmo, recuperando seu bom humor e recobrando a coragem. "Agora vamos nos dar bom-dia".E ele segurou o pequeno punhal curto. Nesse momento a pantera voltou a cabea para o soldado e olhou-o fixamente, sem avanar. A severidade de seus olhos metlicos e sua insuportvel claridade fizeramestremecer o francs, sobretudo quando a fera se encaminhou para ele. Mas ele olhou-a com um ar carinhoso, e mirando-a como se quisesse magnetiz-la,21deixou-a se aproximar dele. Em seguida, com um movimento to doce, to amoroso, como se estivesse acariciando a mais linda mulher, passou-lhe a mo sobre todo ocorpo, da cabea cauda, roando com suas unhas as vrtebras que dividiam o dorso amarelo da pantera. A fera ergueu voluptuosamente a cauda, e seus olhos se amansaram.E quando, pela terceira vez, o francs executou esse gesto adulador, ela deixou escapar um daqueles ronrons que os gatos soltam quando sentem prazer. Mas esse murmriopartia de uma goela to poderosa e profunda, que ecoava na gruta como se fossem os ltimos acordes de um rgo numa igreja. O francs, compreendendo a importnciade suas carcias, redobrou-as, de modo a atordoar, entorpecer a imperiosa cortes. Quando se sentiu seguro de ter dominado a ferocidade de sua caprichosa companheira,cuja fome fora to oportunamente aplacada na vspera, ele se levantou e quis sair da gruta. A pantera deixou-o partir, mas quando ele galgou a colina, ela saltoucom a rapidez dos pardais, pulando de um galho a outro e veio se esfregar contra as pernas do soldado, arqueando o dorso moda das gatas. Depois, contemplandoseu hspede com um olhar cujo brilho se tornara menos agressivo, soltou esse grito selvagem que os naturalistas comparam ao rudo de um serrote. - Ela exigente! - exclamou o francs sorrindo.Tentou brincar com suas orelhas, acariciar-lhe22o ventre, e coar-lhe a cabea com as unhas. Percebendo seu xito, fez-lhe ccegas no crnio com a ponta do punhal, esperando o momento de mat-la; mas a durezados ossos fez-lhe temer um fracasso. A sultana do deserto aprovou os talentos de seu escravo, erguendo a cabea, esticando o pescoo, revelando sua embriaguez pela tranqilidade de sua atitude. Subitamenteo francs lembrou-se de que, para assassinar de um s golpe aquela feroz princesa, deveria apunhal-la na garganta. J ia erguendo a lmina, quando a pantera, certamentesaciada, veio se deitar graciosamente a seus ps, lanando-lhe, de tempos em tempos, olhares nos quais, apesar de um rigor nativo, se desenhava confusamente a benevolncia. O pobre provenal comeu suas tmaras, apoiado a uma das palmeiras, lanando alternadamente um olhar investigador para o deserto, procurando libertadores, e mirandosua terrvel companheira esperando uma incerta clemncia. A pantera olhava para o lugar onde os caroos caam, cada vez que ele jogava um, e seus olhos exprimiamuma incrvel desconfiana. Examinava o francs com uma prudncia comercial, mas esse exame lhe foi favorvel, pois to logo ele acabou sua magra refeio, ela comeoua lamber-lhe os sapatos, e, com sua lngua rude e forte, retirou milagrosamente a poeira ali incrustada.23 "Mas... e quando ela tiver fome?..." - pensou o provenal. Apesar do arrepio que lhe causou essa idia, o soldado se ps a medir curiosamente as propores da pantera, certamente um dos mais belos exemplares da espcie,pois ela tinha trs ps de altura e quatro ps de comprimento, sem contar a cauda. Essa poderosa arma, redonda como um bordo, media cerca de trs ps. A cabea,to grossa como a de uma leoa, distinguia-se por uma rara expresso de finura. A fria crueldade dos tigres predominava nela sem dvida, mas havia tambm uma vagasemelhana com a fisionomia de uma mulher artificiosa. Enfim, a face dessa rainha solitria revelava, nesse momento, uma espcie de alegria semelhante de Neroembriagado, saciado de sangue e querendo brincar. O soldado tentou andar de um lado para outro. A pantera deixou-o livre, contentando-se em segui-lo com os olhos,lembrando assim menos um co fiel do que um grande angor, inquieto com tudo, at com os movimentos de seu dono. Quando ele se voltou, viu, ao lado da fonte, osrestos de seu cavalo, pois a pantera tinha arrastado o cadver at ali. Cerca de dois teros j haviam sido devorados. Esse espetculo tranqilizou o francs. Foi-lhefcil ento explicar a ausncia da pantera e o respeito que ela tivera por ele durante o sono. Como essa boa sorte o animasse a desafiar o futuro, ele alimentou a louca esperana de viver s boas com a pantera durante aquele dia24todo, sem negligenciar nenhum meio de aprision-la e de conseguir suas graas. Voltou para junto dela e teve a inefvel felicidade de v-la agitar a cauda num movimentoquase insensvel. Ento, sem medo, ele sentou-se perto dela e os dois puseram-se a brincar: ele pegou-lhe as patas, o focinho, revirou-lhe as orelhas, deitou-ade costas e arranhou fortemente seus flancos, quentes e sedosos. Ela prestou-se a tudo e, quando o soldado tentou alisar-lhe o plo das patas, ela encolheucuidadosamente suas unhas curvas como alfanjes. O francs, que mantinha seu punhal numa das mos, ainda pensava em o mergulhar no ventre da demasiado confiante pantera, mas teve receio de ser estrangulado naconvulso final que a agitasse. E, de resto, sentiu no corao uma espcie de remorso a bradar-lhe que respeitasse uma criatura inofensiva. Tinha a sensao de terencontrado uma amiga nesse deserto sem limites. E involuntariamente pensou em sua primeira amante, a quem apelidara de Mimosa por antfrase, e cujo cime era to feroz que, durante todo o tempo que durou suapaixo, ele vivia apavorado, receando o punhal com que ela o ameaava. Essa lembrana de sua juventude sugeriu-lhe que desse esse nome jovem pantera, da qual admirava,agora com menos receio, a agilidade, a graa e a languidez. No fim do dia, ele j estava familiarizado com sua perigosa situao, quase at gostando da angstia. Finalmente sua companheira acabara25por se habituar a olh-lo, quando ele gritava com voz de falsete: "Mimosa!" Ao pr-do-sol, Mimosa por vrias vezes soltou um grito profundo e melanclico. "Ela bem educada!" - pensou o soldado contente. - "Est fazendo suas oraes, com certeza". Mas essa brincadeira mental s lhe veio depois que notou a atitude pacfica de sua camarada. - Anda, minha loirinha, vou te deixar deitar em primeiro lugar - disse-lhe ele, contando com a agilidade de suas pernas para fugir o mais depressa possvel, tologo ela dormisse, a fim de procurar outro abrigo durante a noite. O soldado esperou com impacincia a hora de fugir, e, quando esta chegou, ele caminhou rapidamente na direo do Nilo. No andara um quarto de lgua pelas areias,quando sentiu a pantera, saltando atrs dele, soltando, a espaos, aquele grito de serrote, mais assustador que o barulho pesado de seus pulos. - Ora, vamos! - disse ele. - Ela simpatizou comigo! Esta jovem pantera talvez ainda no tenha encontrado ningum, e lisonjeiro ser o seu primeiro amor! Nesse momento o francs caiu numa dessas areias movedias to temidas pelos viajantes e das quais impossvel algum sair. Sentindo-se preso, ele soltou um gritode alarme. A pantera agarrou-o com os dentes pela gola, e, saltando26vigorosamente para trs, tirou-o do precipcio como que por magia. - Ah! Mimosa! - exclamou o soldado, acariciando-a com entusiasmo. - Agora entre ns para a vida e para a morte! Mas... nada de brincadeiras! E voltou para trs. O deserto ficou desde ento como que povoado. Encerrava um ser a quem o francs podia falar, e cuja ferocidade se abrandara para ele, semque atinasse com as razes daquela incrvel amizade. Por mais forte que fosse o desejo do soldado de ficar em p, de guarda, ele adormeceu. Ao acordar, no viu maisMimosa. Subiu a colina e, ao longe, viu que ela vinha correndo aos saltos, conforme hbito entre esses animais, aos quais a marcha interdita, devido extremaflexibilidade de sua coluna vertebral. Mimosa chegou com o focinho ensangentado, e recebeu as carcias que lhe fez o companheiro, testemunhando atravs de vriosronrons o quanto estava feliz. Seus olhos, cheios de languidez, se voltaram ainda com mais doura para o provenal, que lhe falava como a um animal domstico: - Ah! Ah! senhorita, voc uma boa mocinha, no ? Ora veja s. Bem que gosta de uns carinhos, heim? No tem vergonha? V ver que voc andou comendo algum berbere!Bem, esses so animais, como voc. Mas pelo menos no me v mastigar os franceses. Nesse caso, eu no gostaria mais de voc!Ela brincou tal qual um cachorrinho brinca27com seu dono, deixando-se rolar, bater e acariciar alternadamente. s vezes provocava o soldado, atirando para ele a pata num gesto de solicitao. Alguns dias se passaram assim. Essa companhia permitiu ao provenal admirar as maravilhas do deserto. Mas enquanto tinha horas de medo e de tranqilidade, alimentos,e uma criatura na qual pensava, ele sentiu sua alma agitada por contrastes. Tratava-se de uma vida cheia de coisas opostas. A solido revelou-lhe todos os seus segredos,envolvendo-o com seus encantos. Descobriu no nascer e no pr-do-sol espetculos desconhecidos pelo mundo. E soube estremecer, sentindo acima de sua cabea o doceruflar das asas de um pssaro - raro passageiro! - e vendo as nuvens se confundirem - viajantes coloridos e mutantes! Ele estudou durante a noite os efeitos da luano mar das areias, nas quais o vento simum desenhava vagas, ondulaes e rpidas mudanas. Viveu com o dia do Oriente, e admirou-lhe as maravilhosas pompas. E freqentemente,aps ter gozado o terrvel espetculo de um furaco naquela plancie onde as areias levantadas produziam neblinas vermelhas, secas, e nuvens mortferas, ele viachegar a noite com delcia, pois era quando se espalhava o benfazejo frescor das estrelas. E escutava msicas imaginrias nos cus. Depois, ento, a solido lheensinara a explorar os tesouros do sonho. Passava horas inteiras lembrando-se de pequenos nadas, a comparar sua vida passada com28o presente. Enfim, ele se apaixonou por sua pantera, pois bem que precisava de uma afeio. Seja porque sua vontade fortemente projetada tivesse modificado o carterde sua companheira, seja porque ela tivesse achado alimento abundante, graas s batalhas que ento se travavam naqueles desertos, o fato que ela respeitou a vidado francs, que acabou perdendo o medo, vendo-a to bem domesticada. Ele passava a maior parte do tempo dormindo, mas era obrigado a vigiar, assim como uma aranhano meio de sua teia, a fim de no deixar escapar o momento de sua libertao, caso algum passasse na esfera do horizonte. J tinha sacrificado a camisa para fazeruma bandeira erguida no alto de uma palmeira sem folhas. Aconselhado pela necessidade, encontrou um meio de mant-la desfraldada, esticando-a com varinhas, poiso vento poderia no agit-la no momento em que o esperado viajante sondasse o deserto. Era durante as longas horas, em que a esperana o abandonava, que ele mais se divertia com a pantera. Acabou por conhecer as diferentes inflexes de sua voz,a expresso de seus olhares, e estudar os caprichos de todas as manchas que matizavam o ouro de seu plo. Mimosa nem mesmo rugia quando ele pegava no tufo pelo qualterminava sua temvel cauda, a fim de contar-lhe os anis pretos e brancos que, de longe, brilhavam ao sol como pedras preciosas. Ele sentia prazer em olhar as linhassuaves e finas de seus contornos, a brancura do ventre, a graa29da cabea. Mas era sobretudo quando brincava que ele a olhava com mais complacncia. A agilidade, a juventude de seus movimentos sempre o surpreendiam e ele admiravaa sua leveza quando ela se punha a saltar, a rastejar, a escorregar, a rolar, a se encolher, a se lanar por todos os lados. Por mais rpido que fosse o seu impulso,por mais escorregadio que fosse um bloco de granito, ela parava de repente ao chamado de "Mimosa". Num dia de sol brilhante um pssaro imenso pairou nos ares. O provenal largou sua pantera para examinar o novo hspede. Mas depois de um momento de espera, asultana abandonada rugiu surdamente. - Valha-me Deus! Ela ciumenta! - exclamou ele, notando que aos olhos da pantera voltava a antiga dureza. - Com certeza a alma de Virgnia passou por esse corpo... A guia desapareceu nos ares, enquanto o soldado admirava o talhe arredondado da pantera. Mas que graa e juventude havia em seus contornos! Eram belos como osde uma mulher. O loiro plo das costas combinava muito bem, atravs de finas tonalidades, com os tons de branco-fosco de suas coxas. A luz profusamente jogada pelosol fazia brilhar esse ouro vivo, essas manchas pardas, de maneira a lhe dar um encanto indefinvel. O provenal e a pantera olhavam um para o outro com ar inteligente.A faceira estremeceu quando sentiu as unhas do amigo arranhando-lhe o crnio. Seus olhos brilharam30como relmpagos, depois se fecharam fortemente.- Ela tem uma alma! - disse ele, estudando a tranqilidade daquelarainha das areias, dourada como elas, branca como elas, solitria eardente como elas...- E ento - disse-me ela - li a sua defesa em favor dos animais. Mas como teriam acabado essas duas pessoas to feitas uma para a outra?- A que est. Elas acabaram assim como acabam as grandes paixes. Por um mal-entendido. Acredita-se, de um lado e de outro, em alguma traio. Ningum se explicapor orgulho e ambos rompem por pura teimosia.- E s vezes, nos mais belos momentos - disse ela. - Basta um olhar, uma exclamao... Pois bem, acabe a histria.- terrivelmente difcil, mas voc compreender o que j me havia confiado o veterano, quando, terminando sua garrafa de champanha ele exclamou:- No sei que mal eu lhe fiz, mas ela se virou como se estivesse raivosa e, com seus dentes agudos, me mordeu a coxa, levemente, sem dvida. E eu, pensando que quisessedevorar-me, mergulhei o punhal em seu pescoo. Ela rodou e soltou um grito que gelou meu corao. Eu a vi debater-se, e olhando-me sem raiva. Eu desejaria por tudono mundo, pela cruz, que eu31ainda no tinha, faz-la voltar vida. Foi como se eu tivesseassassinado uma pessoa. E os soldados que haviam visto minha bandeira eque vieram em meu socorro, encontraram-me em prantos.- Pois bem, meu senhor, - continuou ele, aps um momento de silncio. -Eu continuei depois a guerra na Alemanha, na Espanha e Rssia, emFrana. Passeei bastante o meu cadver, mas no vi nada parecido com odeserto. Como aquilo era lindo!- Como que o senhor se sentia?- Oh! Isso no se fala, meu rapaz. Alis, eu no lamento sempre o meugrupo de palmeiras e a minha pantera... Isso s acontece quando estoutriste. No deserto, como voc v, h tudo, e no h nada.- Mas ainda assim, explique...- Pois bem - disse ele, deixando escapar um gesto de impacincia. - Deus sem os homens...Paris, 183232O CARRASCOO campanrio da pequena cidade de Menda acabara de dar meia-noite. Nesse momento um jovem soldado francs, apoiado no parapeito de um comprido terrao que contornavaos jardins do castelo de Menda, parecia mergulhado numa contemplao mais profunda do que se poderia esperar da despreocupao tpica da vida militar. Diga-se,no entanto, que nunca hora, lugar e noite foram mais adequados meditao. O belo cu da Espanha estendia uma abbada azul por cima da cabea daquele jovem. O brilhodas estrelas e a doce luz do luar iluminavam um vale delicioso que se desenrolava graciosamente a seus ps. Apoiado numa laranjeira em flor, o chefe do batalho podia ver, a cem ps abaixo, a cidade de Menda, que parecia abrigada dos ventos do norte, aos ps do rochedosob o qual fora construdo o castelo. Ao virar a cabea, ele via o mar, cujas guas brilhantes emolduravam a paisagem por um largo friso de prata. O castelo estava iluminado. O alegre tumulto de um baile, os sons da orquestra, o riso de alguns oficiais e de seus pares chegavam at ele, misturados com olongnquo murmrio das ondas. A frescura da noite dava uma espcie de33energia a seu corpo cansado pelo calor do dia. No jardim estavam plantadas rvores to odorferas, e de flores to suaves, que o jovem se sentiu mergulhado num banhode perfumes. O castelo de Menda pertencia a um grande de Espanha, que nele morava com sua famlia. Durante toda essa noite, a mais velha das filhas olhou para o oficial com um interesse impregnado de tal tristeza, que o sentimento de compaixo revelado pelaespanhola poderia bem despertar o devaneio do francs. Clara era bela, e se bem que tivesse trs irmos e uma irm, os bens do Marqus de Leganes eram suficientementeconsiderveis para fazerem Victor Marchand acreditar que a jovem teria um rico dote. Mas como ousar crer que a filha do ancio mais orgulhoso de suas grandezas existentena Espanha poderia ser dada ao filho de um simples merceeiro de Paris! Alm disso, os franceses eram odiados. O general G...t...r, que governava a provncia, suspeitou que o Marqus preparara uma sublevao em favor de Fernando VII. Diante disso, o batalho comandadopor Victor Marchand fora acantonado na pequena cidade de Menda, para conter os destacamentos vizinhos, que obedeciam ao Marqus de Leganes. Uma recente mensagemdo Marechal Ney provocou receios de que os ingleses desembarcassem brevemente na costa e denunciou o marqus como a pessoa que mantinha entendimentos com o gabinetede Londres. Assim sendo, apesar da boa acolhida34que o espanhol dera a Victor Marchand e a seus soldados, o jovem oficial continuava em guarda. Ao dirigir-se parao terrao de onde examinava o estado da cidade, das companhias e do campo confiados a sua guarda, a si mesmo ele perguntava como deveria interpretar a amizade queo Marqus no cessara de lhe testemunhar, e como a tranqilidade do pas podia se conciliar com as inquietudes de seu general. Mas pouco depois esses pensamentos foram expulsos do esprito do jovem comandante, por um sentimento de prudncia e por uma curiosidade bem legtima. Ele acabavade perceber na cidade uma grande quantidade de luzes. Apesar da festa de So Tiago, havia ordenado naquela mesma manh que as mesmas se apagassem na hora prescritapelo regulamento. Apenas o castelo fizera exceo a essa medida. Ele bem viu as baionetas de seus soldados brilharem aqui e ali nos postos habituais. Mas o silncioera solene e nada indicava que os espanhis estivessem entregues embriaguez de uma festa. Aps ter procurado explicar-se pela infrao de que os habitantes da cidade eram culpados, ele encontrou nesse delito um mistrio incompreensvel, pois haviadeixado alguns oficiais encarregados do policiamento noturno e das rondas. Com a impetuosidade da juventude, desceu apressado por uma vereda para atingir rapidamenteos rochedos, chegando, assim, mais depressa do que se passasse pelo caminho normal,35at um pequeno posto situado na entrada da cidade ao lado do castelo. E foi quando um rudo fraco o deteve em sua carreira. Julgou ter ouvido a areia das alamedas crepitar sob os leves passos de uma mulher. Voltou a cabea e noviu nada, mas seus olhos foram surpreendidos pelo extraordinrio brilho do oceano. De repente viu um espetculo to desastroso que ficou imobilizado pela surpresa,julgando fosse um engano de seus prprios sentidos. Os raios esbranquiados da lua permitiram-lhe ver algumas velas de navios a uma grande distncia. Ele estremeceue tratou de convencer-se de que aquele espetculo era uma iluso de tica, provocada pelas fantasias das ondas e da lua. Nesse momento, uma voz rouca pronunciou o nome do oficial, que olhou em direo da vereda - e viu lentamente se erguer a cabea do soldado que o acompanhara aocastelo.- o senhor, comandante?- Sim. O que h? - disse-lhe em voz baixa o rapaz, a quem uma espcie de pressentimento avisou que agisse com mistrio.- Aqueles patifes se mexem como vermes e eu me apresso, se o senhor o permite, em transmitir-lhe minhas breves recomendaes.- Fale - respondeu Victor Marchand.- Acabo de seguir um homem do castelo que se dirigia para aqui, com uma lanterna na mo. Lanterna uma coisa muito suspeita! No acredito que esse cristo tenhanecessidade de36acender crios numa hora como esta... "O que eles querem nos comer", disse eu para mim mesmo. E pus-me a examinar-lhe os calcanhares. Assim sendo, meu comandante,eu descobri, a trs passos daqui, num bloco da rocha, um feixe de lenha mida. Sbito um grito terrvel repercutiu na cidade, interrompendo o soldado. Um claro inesperado iluminou o comandante. O pobre granadeiro levou uma bala na cabeae caiu. Um fogo de palha e de lenha seca brilhou como um incndio a dez passos do rapaz. Os instrumentos e os risos cessaram na sala do baile. Um silncio de morte,interrompido por gemidos, substituiu de repente os rumores e a msica da festa. Um tiro de canho repercutiu sobre a plancie lquida do oceano. Um suor frio escorreupela testa do jovem oficial, que estava sem espada. Ele percebeu que seus soldados tinham perecido, e que os ingleses iriam desembarcar. Viu-se desonrado se vivesse,e levado a um conselho de guerra. Mediu, ento, a profundeza do vale, e ia atirar-se nele, quando sentiu a mo de Clara segurando a sua. - Fuja! - disse ela. - Meus irmos esto me seguindo para mat-lo. Ao p da rocha, por ali, voc encontrar o cavalo andaluz de Juanito. V! Ela empurrou-o. O rapaz, estupefacto, fitou-a por um momento. Mas em seguida, obedecendo ao instinto de conservao que nunca abandona o homem, mesmo o mais forte,ele se arremeteu37pelo parque, tomando a direo indicada. E correu atravs daqueles rochedos que apenas as cabras freqentavam. Ouviu Clara gritar a seus irmos que o perseguissem. Ouviu o passo de seus assassinos, e escutou nos ouvidos o sibilar de vrias descargas de balas. Mas conseguiualcanar o vale, encontrou o cavalo, montou-o e desapareceu com a rapidez de um relmpago. Poucas horas depois, o jovem oficial chegou ao quartel do general G...t...r, que encontrou jantando com seu estado-maior.- Trago-lhe minha cabea! - exclamou o chefe do batalho, que estava plido e desfeito. Sentou-se e contou a horrvel aventura. Um silncio apavorante acompanhou o seu relato.- Voc mais infeliz do que criminoso - respondeu finalmente o terrvel general. - No responsvel pela ao vergonhosa dos espanhis, mas, a menos que o marechaldecida de outra forma, eu o absolvo. Essas palavras deram pouco consolo ao infeliz oficial.- Quando o imperador souber disso! - exclamou o oficial.- Ele capaz de mandar fuzil-lo - disse o general. - Mas veremos. Enfim, no falemos mais nisso - acrescentou em tom severo - a no ser para tirarmos uma vinganaque provoque um terror salutar neste pas, onde se faz guerra moda dos selvagens.Uma hora depois, um regimento inteiro, um38destacamento de cavalaria e um comboio de artilharia j se achavam a caminho. O general e Victor marchavam frente dessa coluna. Os soldados, sabendo do massacre de seus camaradas, estavam dominados por um furor sem igual. A distncia que separava a cidade de Menda do quartel-general foipercorrida com uma rapidez quase milagrosa. A caminho, o general encontrou vilas inteiras armadas. Cada um desses miserveis povoados foi cercado e seus moradoresdizimados. Por uma dessas fatalidades inexplicveis, os navios ingleses sofreram pane e no avanaram. Soube-se mais tarde que s transportavam a artilharia, e que elesforam mais rpidos do que o resto dos transportes. Assim sendo, a cidade de Menda, privada dos defensores que esperava, e que a apario das velas inglesas lhe prometia,foi cercada por tropas francesas sem resistncia. Os habitantes, tomados de terror, renderam-se discretamente. Por um desses devotamentos, que no foram raros na pennsula, os assassinos dos franceses, prevendo,devido crueldade do general, que Menda seria talvez incendiada e toda a populao passada a fio de espada, propuseram denunciar-se eles prprios ao general. Esteaceitou o oferecimento, pondo, porm, uma condio: os habitantes do castelo, desde o ltimo lacaio at o marqus, deveriam lhe ser entregues.Aceita essa capitulao, o general prometeu39perdoar o resto da populao e impedir que seus soldados saqueassem a cidade ou a incendiassem. Uma enorme contribuio foi exigida e os mais ricos habitantes foramfeitos prisioneiros para garantirem o pagamento, que deveria ser efetuado dentro de vinte e quatro horas. O general tomou todas as precaues relativas segurana de suas tropas, providenciou a defesa da regio, e recusou alojar os soldados nas casas. Depois deos ter acampado, subiu ao castelo e tomou posse dele militarmente. Os membros da famlia Leganes e os criados foram cuidadosamente vigiados, amarrados e encerradosno salo onde se realizara o baile. Das janelas dessa sala, podia-se facilmente ver o terrao que dominava a cidade. O estado-maior instalou-se numa galeria vizinha,onde o general logo convocou um conselho para decidir sobre as medidas a serem tomadas, a fim de impedir o desembarque. Depois de ter mandado um ajudante de campoao Marechal Ney e de ter dado ordens para a instalao das baterias na costa, o general e seu estado-maior se ocuparam dos prisioneiros. Duzentos espanhis que oshabitantes tinham entregado, foram imediatamente fuzilados. Aps essa execuo militar, o general ordenou que fossem erguidas no terrao tantas forcas quantas fossemas pessoas que estivessem na sala do castelo. E que viesse o carrasco da cidade. Victor Marchand aproveitou o tempo antes do jantar para ir ver os prisioneiros.E voltou logo para o general.40- Venho - disse ele com voz comovida - pedir-lhe graas.- Voc! - replicou o general com amarga ironia.- Ai de mim! - respondeu Victor. - E peo tristes graas. O marqus, vendo as forcas serem erguidas, manifestou a esperana de que o senhor mudasse esse tipo desuplcio para sua famlia, e lhe suplica que mande decapitar os nobres.- Seja - disse o general.- Eles pedem ainda que lhes sejam concedidos os socorros da religio, e que os libertem de suas cordas. Prometem no procurar fugir.- Consinto - disse o general. - Mas voc ficar responsvel por eles.- O velho oferece-lhe tambm toda a sua fortuna se o senhor consentir em perdoar seu filho moo.- Ora essa! - respondeu o chefe. - Os bens dele j pertencem ao rei Jos. Dito isso, ele se calou. Um pensamento de desprezo franziu-lhe a testa, e ele acrescentou.- Irei alm dos desejos dele. Bem adivinho a importncia de seu ltimo pedido. Muito bem: que ele compre a eternidade de seu nome, mas que a Espanha se lembre parasempre de sua traio e de seu suplcio! Eu deixo sua fortuna e a vida quele de seus filhos que desempenhar o ofcio de carrasco... Saia e no me fale mais nisso.41 Estava servido o jantar. Os oficiais sentados mesa satisfaziam um apetite que a fadiga aguara. Um nico entre eles, Victor Marchand, no compareceu ao banquete. Depois de ter hesitado muito tempo, ele entrou no salo onde gemia a orgulhosa famlia de Leganes,e lanou um olhar triste sobre o espetculo que agora apresentava aquela sala, na qual na antevspera vira rodopiar, ao som de uma valsa, as cabeas de duas moase trs rapazes. Ele estremeceu, pensando que, dali a pouco, elas rolariam decepadas pelo sabre do carrasco. Amarrados a suas poltronas douradas, o pai, a me, ostrs filhos e as duas filhas permaneciam totalmente imveis. Oito criados estavam de p, com as mos atadas atrs, nas costas. Essas quinze pessoas olhavam-se gravementee seus olhos traam apenas os sentimentos que os animavam. Lia-se em suas faces uma resignao profunda e o pesar por terem fracassado os seus planos. Soldados imveisguardavam-nos, respeitando a dor desses cruis inimigos. Um movimento de curiosidade animou os rostos, quando Victor apareceu. Deu ordem para que desamarrassem os condenados, e foi ele prprio desatar as cordas quemantinham Clara presa na sua cadeira. Ela sorriu tristemente. O oficial no pde deixar de roar o brao da moa e de admirar sua cabeleira negra e seu talhe esbelto.Tratava-se de uma verdadeira espanhola: Clara tinha a tez espanhola, os olhos espanhis,42longos clios recurvados e pupilas mais negras do que a asa de um corvo. - Voc conseguiu? - disse ela, com um sorriso fnebre, no qual ainda existia algo da mocinha. Victor no pde deixar de gemer. Olhou para os trs irmos de Clara.Um, o mais velho, tinha trinta anos. Pequeno e mal feito, ar arrogante e desdenhoso, no deixava de ter certa nobreza nas maneiras. E no parecia alheio a estadelicadeza de sentimentos que tornou clebre outrora a galanteria espanhola. Chamava-se Juanito. O segundo, Filipe, teria cerca de vinte anos e parecia-se com Clara.O ltimo tinha oito anos. Um pintor teria encontrado nos traos de Manuel um pouco dessa constncia romana que David* emprestava s crianas em suas pginas republicanas.O velho marqus tinha uma cabea coberta de cabelos brancos, e parecia ter sado de um quadro de Murillo. Ante tal aspecto, o jovem oficial meneou a cabea, semesperana alguma de ver aceita por um desses personagens a proposta do general. Entretanto ousou confi-la a Clara. A espanhola estremeceu de incio, mas recuperousubitamente um ar calmo. E foi ajoelhar-se ante seu pai. - Oh! - disse ela. - Faa Juanito jurar que obedecer fielmente s ordens que o senhor vai lhe dar, e ficaremos contentes. A marquesa estremeceu de esperana. Mas quando, inclinando-se para o marido, ouviu a* Louis David (1748-1825) foi pintor do tempo da Revoluo Francesa e foi pintor deNapoleo.43horrvel confidncia de Clara, a pobre me desmaiou. Juanito compreendeu tudo e pulou como um leo enjaulado. Victor chamou a si a responsabilidade de fazer os soldados se retirarem, depois de ter obtido do marqusa promessa de obedincia total. Os criados foram levados e entregues ao carrasco que os enforcou. Quando a famlia ficou s com Victor, como guarda, o velho pai se levantou.- Juanito! - disse ele. Juanito respondeu apenas por uma inclinao de cabea equivalente a uma recusa. Tornou a cair na cadeira e fitou os pais com um olhar seco e terrvel. Clara veio sentar-se em seus joelhos, com ar alegre.- Meu querido Juanito, - disse ela, passando-lhe o brao em volta do pescoo e beijando-lhe as plpebras - se soubesse como a morte dada por voc me seria doce!No terei de sofrer o contato odioso das mos de um carrasco! Voc me livrar dos males que me esperam, e..., meu bom Juanito, voc no quereria me ver pertencera ningum, pois ento... Seus olhos aveludados lanaram um olhar de fogo para Victor como para acordar no corao de Juanito o horror aos franceses.- Tenha coragem - disse-lhe o irmo Filipe. - De outro modo nossa estirpe, quase real, ficaria extinta.Subitamente Clara se levantou e o grupo que44se formara em torno de Juanito se desfez. E aquele filho to justamente revoltado, viu, em p, sua frente, o velho pai, que, em tom solene, exclamou:- Juanito, ordeno-lhe! Tendo o jovem conde ficado imvel, seu pai ajoelhou-se a seus ps. Insensivelmente, Clara, Manuel e Filipe o imitaram. Todos estenderam as mos para aquele quedeveria salvar a famlia do esquecimento, e como que repetiram as palavras paternas.- Meu filho, ser que lhe falta energia espanhola e sensibilidade verdadeira? Quer me deixar por muito tempo ajoelhado e deve considerar sua vida e seus sofrimentos?E ele o meu filho, senhora? - acrescentou o ancio, virando-se para a marquesa.- Ele consente! - exclamou a me, desesperada, vendo Juanito fazer um movimento de sobrancelhas cujo significado s ela conhecia. Mariquita, a segunda filha, continuava de joelhos, apertando a mo com seus bracinhos fracos. E como chorasse lgrimas sentidas, seu irmozinho Manuel veio ralharcom ela. Nesse momento o capelo do castelo entrou e foi logo rodeado por toda a famlia que o levou a Juanito. Victor, no podendo suportar por mais tempo estacena, fez um sinal a Clara e apressou-se a fazer uma ltima tentativa junto ao general. Encontrou-o de bom humor, em pleno festim, bebendo com seus oficiais e trocando com eles ditos picantes.45 Uma hora depois, cem dos mais importantes habitantes de Menda chegaram ao terrao para serem, segundo ordens do general, testemunhas da execuo da famliaLeganes. Um destacamento de soldados foi colocado para conter os espanhis, que foram alinhados embaixo das forcas nas quais tinham sido enforcados os criados domarqus. As cabeas desses burgueses quase se encostavam nos ps daqueles mrtires. A trinta passos erguia-se um cepo e brilhavauma cimitarra. O carrasco ali estava para o caso de uma recusa de Juanito. Logo os espanhis ouviram, no meio do mais profundo silncio, os passos de vrias pessoas, o som ritmado da marcha de um piquete de soldados e o leve tinidode seus fuzis. Esses diversos rudos vinham misturados com as vozes alegres do festim dos oficiais, assim como h pouco as danas de um baile tinham disfarado os preparativosda sangrenta traio. Todos os olhares se voltaram para o castelo, e eles viram a nobre famlia que caminhava com incrvel segurana. Todas as fisionomias estavamcalmas e serenas. Um s homem, plido e desfeito, se apoiava no padre, que prodigalizava todos os consolos da religio ao nico dentre eles que deveria viver. Ocarrasco compreendeu, como todos, que Juanito tinha aceitado tomar o seu lugar por um dia. O velho marqus e a mulher, Clara, Mariquita e seus irmos vieramajoelhar-se a alguns passos do lugar fatal.46Juanito foi levado pelo padre. Quando chegou ao cepo, o carrasco,puxando-o pela manga, chamou-o parte, e deu-lhe provavelmentealgumas instrues. O confessor colocou as vtimas de modo que nopudessem ver o suplcio. Mas eram verdadeiros espanhis, e ficaram dep, sem fraqueza.Clara foi a primeira a dirigir-se ao irmo:- Juanito - disse-lhe ela - tenha piedade de minha pouca coragem ecomece por mim!Nesse momento, os passos precipitados de um homem ressoaram. Victorchegou ao lugar daquela cena. Clara j estava ajoelhada, e seu pescooalvo como que chamava a cimitarra. O oficial empalideceu, mas teveforas para vir s pressas.- O general concede-lhe a vida se quiser casar comigo - disse-lhe em vozbaixa.A espanhola lanou ao oficial um olhar de desprezo e orgulho.- Vamos, Juanito! - disse ela num tom de voz profundo.Sua cabea rolou aos ps de Victor. A marquesa de Leganes deixou escaparum movimento convulsivo ao escutar o barulho. Foi o nico sinal de suador.- Ser que estou bem assim, meu caro Juanito? - foi a pergunta que opequeno Manuel fez a seu irmo.- Ah! Est chorando, Mariquita! - disse Juanito a sua irm.- Oh! sim, replicou a menina. Penso em voc,47meu pobre Juanito. Vai ser muito infeliz sem ns! Logo apareceu a grande figura do marqus. Olhou o sangue dos filhos, virou-se para os espectadores, mudos e imveis, estendeu as mos para Juanito e disse comvoz forte:- Espanhis! Dou a meu filho minha bno paterna. Agora, marqus, fira sem medo! Voc est impecvel! Mas quando Juanito viu se aproximar sua me, sustentada pelo confessor, ele gritou:- Ela amamentou-me! Sua voz arrancou um grito de horror da assistncia. O rudo do festim e os risos dos alegres oficiais cessaram diante do horrvel clamor. A marquesa compreendeu que a coragem de Juanito estava esgotada. Precipitou-secom um salto por cima da balaustrada e foi esmagar a cabea sobre os rochedos. Ouviu-se um grito de admirao. Juanito cara desmaiado.- Meu general, - disse um oficial meio embriagado - Marchand acaba de contar-me alguma coisa desta execuo. Aposto como o senhor no a ordenou...- Esquecem-se vocs - gritou o general G...t...r, - de que dentro de um ms quinhentas famlias francesas estaro em lgrimas, e que ns estamos na Espanha. Estoquerendo deixar aqui os nossos ossos?Aps esta alocuo, no houve ningum,48nem mesmo um segundo-tenente, que ousasse esvaziar seu copo. Apesar do respeito de que cercado, apesar do ttulo de Carrasco, que o rei de Espanha deu, como ttulo de nobreza, ao marqus de Leganes, ele est consumidopelo desgosto, vive solitrio e aparece raramente. Acabrunhado sob o fardo de seu admirvel crime, ele parece esperar com impacincia que o nascimento de um segundofilho lhe d o direito de ir juntar-se s sombras que o acompanham incessantemente.Paris, outubro de 183049A ESTALAGEM VERMELHAIntroduoNo me lembro bem em que ano, certo banqueiro de Paris, que tinha relaes comerciais muito intensas na Alemanha, festejavaum desses amigos que os negociantes fazem num e noutro lugar, mas que s se conhecem por correspondncia. Esse amigo, chefe no me recordo de que casa importanteem Nuremberg, era um bom e gordo alemo; homem de erudio e gosto, homem, sobretudo, de cachimbo com seu belo e largo rosto nurembergus, de testa quadrada bemdescoberta e enfeitada de alguns raros cabelos louros. Ele representava o tipo dos filhos dessa pura e nobre Germnia, to frtil em caracteres honrados e cujoshbitos pacficos nunca foram desmentidos, mesmo aps sete invases. O estrangeiro ria com simplicidade, escutava com ateno, bebia razoavelmente bem e parecia gostar de champanha tanto quanto dos vinhos brancos de Johannisberg.Chamava-se Hermann, como quase todos os alemes citados pelos autores. Como homem que nada faz com ligeireza, ele se achava comodamente instalado na mesa do banqueiro,comia com aquele apetite tedesco to clebre na Europa e dava um51consciencioso adeus cozinha do grande Carme. Para homenagear seu hspede, o dono da casa convidou alguns amigos ntimos, capitalistas ou comerciantes, vrias senhoras amveis, bonitas, cujo tagarelar graciosoe maneiras francas se harmonizavam com a cordialidade germnica. Realmente, quem pudesse ver - como eu tive esse gosto - a alegre reunio de pessoas que tinham recolhido suas garras comerciais para especularem sobre os prazeresda vida, ser-lhe-ia difcil odiar os descontos usurrios ou amaldioar as falncias. O homem no pode fazer sempre o mal. Assim sendo, mesmo na sociedade dos piratas,ele deve se dar doces momentos durante os quais acreditaramos estar no seu sinistro barco como sobre um balano. - Antes de nos deixar, o senhor Hermann vai nos contar uma histria alem que nos d muito medo. Estas palavras foram pronunciadas sobremesa, por uma jovem plida e loura, que certamente tinha lido os contos de Hoffmann e os romances de Walter Scott. Tratava-seda filha nica de um banqueiro, criatura encantadora, cuja educao estava se concluindo no Gymnase, e que adorava as peas ali representadas. Nesse momento os convidadosse achavam naquela feliz disposio de preguia e silncio em que uma refeio deliciosa nos deixa, quando avaliamos52demasiadamente nossa capacidade digestiva. Com as costas apoiadas na cadeira, os pulsos levementes sustentados na beira da mesa, cada convidado brincava indolentemente com a lmina dourada de sua faca.Quando um jantar chega a esse ponto de declnio, certas pessoas mexem nas sementes de uma pra; outros fazem bolinhas de po entre o polegar e o indicador; os namoradosriscam letras disformes com restos de fruta; os avarentos contam caroos e os enfileiram em seu prato, assim como os dramaturgos dispem seus comparsas no fundoda cena. So essas pequenas felicidades gastronmicas que Brillat Savarin, alis, to completo, no registrou em seu livro. Os criados tinham desaparecido. A sobremesa lembrava uma esquadra aps o combate, completamente desarvorada, saqueada, abatida. Os pratos vagavam sobre a mesa, apesar da obstinao da dona dacasa que insistia em os fazer voltar a seus lugares. Algumas pessoas olhavam paisagens da Sua simetricamente penduradas nas paredes cinza da sala. Nenhum convidadose aborrecia. No conhecemos homem algum que porventura tenha se entristecido durante a digesto de um bom jantar. Nesses momentos gostamos de ficar em no sei bemque calma, uma espcie de justa medida entre o devaneio do pensador e a satisfao dos53animais ruminantes, que poderamos chamar de melancolia material da gastronomia. Assim sendo, os convivas se viraram espontaneamente para o bom alemo, encantados por ouvirem uma balada, mesmo que fosse sem interesse. Durante essa benditapausa, a voz do narrador sempre parece deliciosa a nossos sentidos entorpecidos, cuja felicidade negativa ela favorece. Sempre buscando espetculos, eu admirava aqueles rostos alegrados por um sorriso, iluminados pelas velas, e que o delicioso banquete tinha enrubescido. E suasexpresses diversas produziam efeitos picantes atravs dos candelabros, das cestas de porcelana, dos frutos e cristais. Minha imaginao foi subitamente atrada pelo aspecto do conviva que se achava precisamente em minha frente. Tratava-se de um homem de estatura mediana, risonho,que tinha o aspecto e os modos de um corretor. Parecia ser dotado de um esprito bem vulgar o que eu no havia ainda notado. Nesse momento sua fisionomia certamentesombreada pela luz artificial, pareceu-me ter mudado de qualidade. Ela se tornou terrosa, sulcada por tonalidades arroxeadas. Dir-se-ia o rosto cadavrico de umagonizante. Imvel, como os personagens pintados num diorama, seus olhos atnitos continuavam fixos nas cintilantes facetas de uma rolha de cristal. Mas ele nose preocupava com elas, pois parecia abismado em alguma contemplao fantstica do futuro ou do passado. Depois de examinar54por bastante tempo aquele rosto equvoco, me pus a pensar: "Ser que ele est sofrendo? Teria bebido demais? Estaria arruinado com a baixa dos fundos pblicos? Pensaria em lograr os seus credores?"- Ora veja - disse eu a minha vizinha, mostrando-lhe o rosto do desconhecido. - No parece uma falncia em perspectiva?- Oh! - respondeu-me, - ele estaria mais alegre, Depois, meneando graciosamente a cabea, ela acrescentou: - Se esse se arruinasse algum dia, eu iria contar issoem Pequim! Ele possui um milho em terras! Trata-se de um antigo fornecedor das armadas imperiais, um homem bom, mas um tanto original. Casou-se pela segunda vezpor especulao; apesar disso, faz sua mulher muito feliz. Ele tem uma linda filha, que durante longo tempo no quis reconhecer, mas que o falecimento de um filho,morto em duelo, o obrigou a cham-la para junto de si, uma vez que no podia ter mais descendentes. A pobre moa ento se converteu, de um momento para outro, numadas mais ricas herdeiras de Paris. A perda de seu filho nico mergulhou esse bom homem numa tristeza que reaparece por vezes. Nesse instante o fornecedor ergueu os olhos para mim. Seu olhar fez-me estremecer, de tal modo era sombrio e pensativo! Certamente aquele olhar reunia uma vidainteira. De repente, sua fisionomia ficou alegre. Ele pegou na rolha55de cristal, e, com um gesto maquinal, colocou-a num garrafo que se achava em frente de seu prato, e virou a cabea, sorrindo, para o senhor Hermann. Aquelehomem, beatificado por seus prazeres gastronmicos, certamente no tinha duas idias no crebro, e no pensava em nada. Assim sendo, de certa maneira, eu me envergonheide prodigalizar minha cincia divinatria "in anima vili"* de um grande financista. Enquanto, em pura perda, eu fazia observaes frenolgicas, o alemo enchia o nariz com uma boa pitada de rap e comeava sua histria. Ser-me-ia bastante difcilreproduzi-la nos mesmos termos, com suas interrupes freqentes e suas digresses prolixas. Por isso, escrevi-a a meu modo, deixando os erros para o nurembergus e apoderando-me do que ela tem de potico e interessante, com a candura dos escritores quese esquecem de colocar no ttulo de seus livros: "traduzido do alemo".A Idia e a AoL pelos fins do primeiro ms do ano republicano em Frana, que atualmente corresponde ao 20 de outubro de 1799, dois jovens que tinham sado deBonn pela manh, ao entardecer chegaram aos arredores de Andernach, pequena cidade situada na margem esquerda do rio Reno, a algumas lguas deCoblena. Nessa ocasio, o exrcito francs, comandado* Sobre a alma vil.56pelo general Augereau, manobrava na presena dos austracos, que ocupavam a margem direita do rio. O quartel-general da diviso republicana estava em Coblena,e uma das meias-brigadas do corpo de Augereau se achava acantonada em Andernach. Os dois viajantes eram franceses. A julgar por seus uniformes azuis misturados de branco, com ala-mares de veludo vermelho, seus sabres e, sobretudo, o chapucoberto por uma tela verde envernizada, e ornado de um penacho tricolor, os prprios camponeses alemes teriam reconhecido neles cirurgies militares, homens decincia e de mrito, queridos no apenas no exrcito, mas tambm nas regies invadidas por nossas tropas. Nessa poca vrios filhos de famlia, arrancados de seu estgio mdico pela recente lei do recrutamento devida ao general Jourdan, tinham certamente preferidocontinuar seus estudos no campo de batalha, em vez de serem sujeitos ao servio militar, pouco de acordo com sua educao e seus destinos pacficos. Homens de cinciae de paz, muito prestativos, esses jovens faziam algum bem no meio de tantas desgraas e se entendiam com os eruditos de diversos pases pelos quais passava a cruelcivilizao da Repblica. Munidos um e outro de um salvo-conduto e de uma comisso de cirurgio-ajudante assinada por Coste e Bernadotte, esses dois jovens iam prestarservios meia-brigada qual estavam ligados. Ambos pertenciam a famlias burguesas de Beauvais, mediocremente ricas, nas quais os hbitos de mansido e a lealdadedas provncias se transmitiam como uma parte da herana. Levados ao teatro da guerra antes da poca indicada para sua entrada em funo, eles, por uma curiosidade natural nos jovens, tinham viajado de diligncia atEstrasburgo.57 Ainda que a prudncia materna s os tenha deixado levar uma pequena quantia, eles se julgavam ricos por possurem alguns lulses, verdadeiro tesouro num tempoem que o papel-moeda tinha atingido o ltimo grau de desvalorizao, e o ouro valia muito dinheiro. Os dois ajudantes, que tinham no mximo vinte anos, entregaram-se poesia de sua situao com todo o entusiasmo da mocidade. De Estrasburgo a Bonn, tinham visitado o Eleitorado, e as margens do Reno, como artistas, filsofos eobservadores. Quando temos um destino cientfico, nessa idade somos seres verdadeiramente mltiplos. Mesmo fazendo o amor, ou viajando, um ajudante deve acumularos rudimentos de sua fortuna ou de sua glria por vir. Os dois rapazes estavam, portanto, entregues a essa admirao profunda que toma conta dos homens instrudosante as margens do Reno e as paisagens da Subia, entre Mayence e Colnia. Natureza forte, rica, poderosamente acidentada, cheia de recordaes feudais, verdejante,mas que guarda por todos os lugares as marcas de ferro e fogo. Lus XIV eTurenne cauterizaram essa encantadora regio. Aqui e ali runas testemunham o orgulho etalvez a previdncia do rei de Versailles, que mandou derrubar os admirveis castelos que outrora ornavam essa parte da Alemanha. Diante dessa terra maravilhosa,coberta de florestas, nas quais abunda, ainda que em runas, o pitoresco da Idade Mdia, podemos conceber o gnio alemo, seus sonhos e seu misticismo. No entanto, a estadia dos dois amigos em Bonn tinha uma finalidade no s de cincia, mas de prazer tambm. O grande hospital do exrcito galo-batavo e da divisode Augereau se achava instalado no prprio palcio do Eleitor. Os novos cirurgies-ajudantes logo foram ver os colegas, entregar cartas de recomendaes a seus chefes,58e familiarizar-se com as primeiras impresses de seu ofcio. Mas tambm l, como em outra parte, eles se despojaram de alguns desses preconceitos exclusivosaos quais ficamos fiis tanto tempo em benefcio dos monumentos e das belezas de nosso pas natal. Surpresos com o aspecto das colunas de mrmore que ornam o palcioeleitoral, continuaram admirando a grandiosidade das construes alems, encontrando a cada passo novos tesouros antigos ou modernos. De momento a momento, os caminhos pelos quais os dois amigos passavam rumo a Andernach, os levavam ao pico de uma montanha de granito mais elevada do que as outras.L, por um corte da floresta, e por uma depresso dos rochedos, eles perceberam uma vista do Reno, enquadrada na pedra ou com festes de exuberante vegetao. Osvales, os caminhos, as rvores exalavam aquele odor outonal que leva ao devaneio. O topo dos bosques comeava a dourar, a adquirir tons quentes e castanhos, sinaisde velhice. As folhas caam, mas o cu ainda tinha um belo azul, e os caminhos secos se desenhavam como linhas amarelas na paisagem, ento iluminada pelos raiosoblquos do sol poente. A uma meia lgua da Andernach, os dois amigos caminhavam em profundo silncio, como se a guerra no estivesse devastando esse belo pas. E seguiam um trilho abertopor cabras atravs das altas muralhas de granito azulado, entre as quais o Reno escorre aos borbotes. Pouco depois, eles desceram por uma vertente do desfiladeirono fundo do qual havia uma pequena cidade graciosamente plantada beira do rio, oferecendo um belo porto aos marinheiros. - A Alemanha um pas belssimo! - exclamou um dos rapazes, chamado Prosper Magnan, no momento em que viu as casas pintadas de Andernach,59apertadas como ovos num cesto, separadas por rvores, jardins e flores. Depois, admirou por momentos os telhados pontudos de vigas salientes, as escadasde madeira, as galerias de mil moradas tranqilas e as barcas a se balanarem nas ondas do porto.Primeira InterrupoNo momento em que o Sr. Hermann pronunciou o nome de Prosper Magnan, o fornecedor segurou a garrafa, ps gua em seu copo e esvaziou-ode um trago. Tendo esse movimento chamado minha ateno, percebi um ligeiro tremor nas mos e uma umidade na testa do capitalista.- Como se chama o antigo fornecedor? - perguntei minha complacente vizinha.- Taillefer - respondeu ela.- Sente-se indisposto? - exclamei, vendo aquele estranho personagem empalidecer.- Absolutamente - disse ele, agradecendo-me com um gesto de polidez. - Estou ouvindo - acrescentou ele, fazendo um sinal de cabea aos convivas, que simultaneamenteo olharam.- Eu me esqueci - disse o Sr. Hermann - do nome do outro rapaz. Mas as confidncias de Prosper Magnan me informaram que seu companheiro era moreno, bastante magroe jovial. Se me permitirem, eu o chamarei de Wilhelm para tornar mais clara esta histria. O bom alemo recomeou sua narrativa, depois de ter desrespeitado o romantismo e a cor local, batizando o cirurgio-ajudante francs com um nome germnico.60ContinuaoJ era noite fechada, quando os dois jovens chegaram a Andernach. Presumindo que perderiam muito tempo procurando seus chefes, para se fazeremreconhecer e obter um alojamento militar numa cidade j cheia de soldados, eles resolveram passar sua ltima noite de liberdade numa estalagem situada auma centena de passos de Andernach, e cujas ricas cores, embelezadas pelo sol poente, haviam admirado do alto dos rochedos. Inteiramente pintada de vermelho, essaestalagem produzia um efeito curioso na paisagem, seja se destacando da massa geral da cidade, seja opondo sua larga cortina escarlate ao verde das diversas folhagens,e suas tintas vivas ao tom acinzentado da gua. Essa casa tinha esse nome por causa da decorao exterior, certamente imposta desde tempos imemoriais pelos caprichosde seu fundador. Uma superstio mercantil, bem natural aos diferentes donos dessa morada, famosa entre os marinheiros do Reno, preservara-lhe a cor. Ouvindo o trote dos cavalos, o dono da Estalagem Vermelha chegou soleira da porta.- Por Deus, senhores! - exclamou ele. - Um pouco mais tarde e vocs seriam forados a dormir ao relento, como a maior parte de seus compatriotas que acamparam dooutro lado de Andernach. Aqui est tudo ocupado. Se vocs quiserem deitar numa boa cama, s lhes posso oferecer meu prprio quarto. Quanto aos cavalos, vou lhesarranjar uma cama de palha num canto do ptio. Hoje minha estrebaria est cheia de cristos.- Os senhores vm da Frana? - continuou ele, depois de ligeira pausa.- De Bonn - exclamou Prosper. - E desde a manh no comemos nada.61 - Oh! quanto aos vveres - disse o estalajadeiro, meneando a cabea - vem gente de dez lguas daqui s para farrear na Estalagem Vermelha. Vocs vo ter um festimde prncipe... o peixe do Reno! Est dito tudo. Depois de terem confiado suas cansadas montarias aos cuidados do hoteleiro, que chamava seus criados em vo, os rapazes entraram na sala comum da estalagem. Asnuvens espessas e esbranquiadas exaladas por uma numerosa assemblia de fumantes no lhes permitiram distinguir de incio as pessoas com as quais iriam estar. Mas quando se sentaram perto de uma mesa, com a pacincia desses viajantes filsofos que reconheceram a inutilidade do barulho, eles distinguiram, atravs dosvapores do tabaco, os acessrios obrigatrios de uma estalagem alem: a estufa, o relgio, as mesas, os caneces de cerveja, os compridos cachimbos. Aqui e ali rostosirregulares de judeus, alemes, e as fisionomias rudes de alguns marinheiros. As dragonas de vrios oficiais franceses brilhavam no meio daquela fumaceira, e o tinidodas esporas e dos sabres reboava ininterruptamente sobre o piso. Alguns jogavam baralho, outros discutiam, calavam-se, comiam, bebiam, ou passeavam. Uma gorda mulherzinhacom uma touca de veludo preto, um peitilho azul e prateado, a bola e o molho de chaves, o colchete de prata, os cabelos em tranas, era bem o modelo de todas asdonas de estalagens alems, cujo vesturio assim colorido, vem reproduzido em tantas estampas que seria banal descrever. A mulher do estalajadeiro ento, com notvel habilidade, fez com que os dois amigos tivessem pacincia. Insensivelmente o barulho diminuiu, os viajantes se retirarame a nuvem de fumaa se dissipou. Quando puseram os talheres para os dois cirurgies-ajudantes62e a clssica carpa do Reno surgiu sobre a mesa, soavam onze horas e a sala j estava vazia. No silncio da noite ouviam-se vagamente o barulho dos cavaloscomendo sua rao, o murmrio das guas do Reno; enfim, todos esses rudos indefinidos que animam uma estalagem cheia quando todos esto se deitando. As portas ejanelas abriam-se e fechavam-se, vozes murmuravam vagas palavras, e mesmo algumas interpelaes repercutiam nos quartos.Nesse momento de silncio e tumulto, os dois franceses e o hospedeiro, ocupado em gabar-lhes Andernach, a refeio, seu vinho do Reno, a armada republicana e suamulher, ouviram com certo interesse os gritos roucos de alguns marinheiros e o rudo de um barco que atracava no porto.O estalajadeiro, certamente familiarizado com as interrogaes guturais dos barqueiros, saiu precipitadamente e voltou logo depois. E trouxe consigo um homenzinhogordo atrs do qual vinham dois marinheiros carregando uma pesada mala e alguns embrulhos. Depositados na sala os seus fardos, o homenzinho gordo pegou sua valise,guardou-a perto de si e sentou-se mesa, sem cerimnia, diante dos dois cirurgies-ajudantes.- Vocs vo dormir no barco - disse ele aos marinheiros - pois a estalagem est cheia. Pensando bem, o melhor a fazer.- Senhor, - disse o hospedeiro ao recm-chegado - eis tudo o que me resta de provises. E mostrou a ceia servida aos dois franceses. - No tenho nem uma fatia depo, nem um osso...- E chucrute?- No tenho nem um bocadinho que coubesse no dedal de minha mulher. Como tive a honra de lhe dizer, o senhor no pode ter outra cama seno a cadeira na qual est,e outro quarto alm desta sala.63 Diante dessas palavras, o homenzinho lanou sobre o hospedeiro, a sala e os dois franceses um olhar no qual a prudncia e o terror estavam igualmente pintados. - Aqui devo observar - disse o Sr. Hermann interrompendo-se - que nunca soubemos o verdadeiro nome nem a histria desse desconhecido. Seus papis indicavam apenasque ele tinha vindo de Aix-la-Chapelle, tomara o nome de Walhenfer e possua nos arredores de Neuwied uma importante manufatura de alfinetes. Como todos os fabricantesdo pas, ele usava uma sobrecasaca de pano comum, calas e colete de veludo verde-escuro, botas e um largo cinturo de couro. Seu rosto era redondo, suas maneirasfrancas e cordiais, mas naquela noite foi-lhe difcil disfarar inteiramente apreenses secretas e talvez cruis preocupaes. A opinio do estalajadeiro semprefora de que esse negociante alemo estava fugindo de sua terra. Mais tarde eu soube que sua fbrica tinha sido queimada por um desses acasos infelizmente to freqentesem tempos de guerra. Apesar de sua expresso geralmente preocupada, sua fisionomia revelava uma grande bondade. Ele tinha belos traos e sobretudo um longo pescoo,cuja brancura era bastante realada por uma gravata preta, que Wilhelm por caoada mostrou a Prosper.Nisso o Sr. Taillefer bebeu um copo de gua. Prosper, por cortesia, convidou o negociante a participar de sua ceia, o que Walhenfer aceitou sem cerimnia, como um homem que se sentia em condies de se mostrarreconhecido a tal gentileza. Deitou a maleta no cho, ps os ps em cima dela, tirou o chapu, sentou-se mesa, descalou as luvas, e livrou-se de duas pistolasque trazia cintura. Tendo o hospedeiro trazido logo os talheres, os trs convivas comearam a satisfazer silenciosamente64os seus apetites. A atmosfera da sala estava to quente e as moscas eram to numerosas que Prosper pediu ao hospedeiro que abrisse a janela, que dava para a porta,a fim de renovar o ar. Essa janela estava trancada por uma barra de ferro cujas extremidades entravam em buracos abertos nos dois cantos do vo. Para maior segurana,duas porcas presas em cada uma das portas, recebiam dois parafusos da janela. Por acaso, Prosper prestou ateno no modo pelo qual o hospedeiro abria a tal janela. - Mas visto que estou-lhes falando dos lugares, - disse-nos o Sr. Hermann - devo explicar-lhes as divises internas da estalagem, pois do conhecimento exato doslocais, depende o interesse dessa histria. A sala, onde se achavam os trs personagens de que lhes falo, tinha duas portas de sada. Uma dava para o caminho deAndernach que beira o Reno. L, em frente estalagem, havia logicamente um pequeno porto, onde o barco alugado pelo negociante para sua viagem, estava atracado.A outra porta dava sada para o ptio da estalagem. Esse ptio era rodeado de muros muito altos e, naquele momento, estava cheio de gado e de cavalos, uma vez queas estrebarias se achavam repletas de gente. A porta grande estava to cuidadosamente trancada que, para maior rapidez, o hospedeiro fizera o negociante e os marinheirosentrarem pela porta da sala que dava para a rua. Depois de ter aberto a janela, de acordo com o desejo de Prosper Magnan, ele fechou essa porta, fez as trancas entrarem nos buracos, e parafusou as porcas. Oquarto do hospedeiro, onde deviam dormir os dois cirurgies-ajudantes, era vizinho sala comum e se achava separado apenas por um tabique da cozinha, onde a estalajadeirae seu marido deveriam provavelmente passar a noite. A criada acabara de sair a fim de procurar um lugar65para dormir: em alguma manjedoura, no canto de um sto ou em outro lugar qualquer. Ser fcil compreender que a sala comum, o quarto do hospedeiro e a cozinha eram,de certa maneira, isolados do resto da estalagem. No ptio havia dois enormes ces, cujos latidos graves anunciavam serem eles guardas vigilantes e irritadios.- Que silncio e que linda noite! - disse Wilhelm olhando o cu depois que o estalajadeiro acabou de fechar a porta. O leve movimento das ondas era o nico rudo que se fazia ouvir.- Senhores, - disse o negociante aos dois franceses - permitam-me que lhes oferea algumas garrafas de vinho para regar sua carpa. Descansaremos da fadiga do diabebendo. Pelo seu aspecto e pelo estado de suas roupas, vejo que, como eu, vocs andaram muito hoje. Os dois amigos aceitaram e o estalajadeiro saiu pela porta da cozinha para ir sua adega, certamente situada nessa parte do edifcio. Quando cinco respeitveis garrafas trazidas pelo hospedeiro foram colocadas na mesa, sua mulher acabava de servir a refeio. Ela lanou sala e s comidasseu olhar de dona-de-casa e, depois, certa de ter satisfeito todas as exigncias dos visitantes, voltou cozinha. Os quatro convivas - pois o hospedeiro fora convidado a beber - no a ouviram se deitar. No entanto, mais tarde, durante os intervalos de silncio que separamas conversas dos bebedores, alguns roncos muito acentuados - ainda mais sonoros devido s tbuas ocas do sto onde ela se aninhara - fizeram sorrir os amigos esobretudo o hospedeiro. Cerca de meia-noite, quando na mesa nada mais havia a no ser biscoitos, queijo, frutas secas e bom vinho, os convivas, principalmente osdois jovens66franceses, se tornaram comunicativos. Eles falaram de seu pas, de seus estudos, da guerra. Enfim, a conversao animou-se. Prosper Magnan arrancou lgrimas dosolhos do negociante, quando, com a franqueza e candura de uma natureza boa e terna, imaginou o que estaria fazendo sua me enquanto ele se achava nas margens doReno.- Eu a vejo - dizia ele - rezando sua orao da noite antes de se deitar. Com certeza no se esquece de mim e deve se perguntar: "Onde andaria meu pobre Prosper?"- Mas se ela ganhou no jogo alguns soldos sua vizinha - a sua me talvez, acrescentou ele, dando uma cotovelada em Wilhelm - ela vai coloc-los no pote grandede barro vermelho onde ajunta a quantia necessria para a aquisio de cerca de cento e cinqenta mil metros de terra, encravados na sua pequena fazenda de Lescheville.Esses metros quadrados valem bem cerca de sessenta mil francos. Aquilo que terra boa! Ah! Se um dia eu os tivesse, viveria toda minha vida em Lescheville, semoutra ambio! Quantas vezes meu pai desejou esse pedao, e o bonito riacho que serpenteia naquele prado. Enfim, morreu sem o ter podido comprar. Brinquei nele tantasvezes!- Sr. Walhenfer, ser que o senhor tambm teve o seu "hoc erat in votis"?* - perguntou Wilhelm.- Sim, senhor, sim, j estava tudo realizado, mas agora... - o homem calou-se sem terminar a frase.- Eu - disse o hospedeiro, cujo rosto enrubescera levemente - comprei no ano passado uma chcara que desejei durante dez anos. Eles conversaram assim como gente cuja lngua fora solta pelo vinho e sentiram uns pelos outros essa cordialidade passageira, da qual somos pouco avaros em viagem.Quando foram se deitar, Wilhelm ofereceu sua cama ao negociante.* Isso estava nos meus desejos?67- Pode aceit-la sem cerimnia - disse ele. - Dormirei com Prosper, pois no ser essa a primeira nem a ltima vez. O Senhor o nosso decano, e devemos honrar avelhice.- Ora! - disse o estalajadeiro - a cama de minha mulher tem vrios colches; podem pr um no cho. Dito isso, ele foi fechar a janela, fazendo o rudo adequado quela sensata providncia.- Eu aceito, - disse o negociante. - Confesso - acrescentou ele baixando a voz e fitando os dois amigos - que eu desejava isso. Meus barqueiros me parecem suspeitos.Por esta noite, no me aborrece nada estar em companhia de dois bravos e bons jovens, de dois militares franceses! Tenho cem mil francos em ouro e diamantes em minhavalise! A afetuosa reserva com que essa imprudente confisso foi recebida pelos dois jovens, tranqilizou o bom alemo. O estalajadeiro ajudou os viajantes a desmancharuma das camas. Depois de tudo arranjado, ele lhes desejou uma boa noite e foi se deitar. O negociante e os dois rapazes gracejaram sobre a natureza de seus travesseiros. Prosper ps seu estojo de instrumentos e o de Wilhelm embaixo do colcho a fimde o levantar e substituir o travesseiro que no tinha, no momento em que, por um excesso de prudncia, Walhenfer colocava sua maleta na cabeceira da cama.- Dormiremos os dois em cima de nossa fortuna; o senhor sobre o seu ouro, eu sobre meu estojo! Resta saber se meus instrumentos me daro tanto ouro quanto o queo senhor adquiriu.- Pode esper-lo - disse o negociante. - O trabalho e a probidade vencem tudo, mas preciso ter pacincia. Logo Walhenfer e Wilhelm adormeceram. Fosse porque a cama era dura demais, ou porque o extremo68cansao causasse insnia, ou por uma fatal disposio de esprito, o fato foi que Prosper Magnan ficou acordado. Seus pensamentos tomaram insensivelmente um maucaminho. E ele pensou exclusivamente nos cem mil francos sobre os quais o negociante dormia. Para ele, cem mil francos era uma fortuna imensa ali, ao seu alcance. Comeoupor empreg-los de mil modos diferentes, fazendo castelos no ar, como todos ns fazemos com tanto gosto nos momentos que precedemo nosso sono, nessa hora em que as imagens nascem confusas em nosso entendimento, e na qual, pelo silncio da noite, o pensamento adquire um poder mgico. Ele realizavaos sonhos de sua me, comprava o pedao de terra, casava-se com certa senhorita de Beauvais, qual a desproporo de fortunas o impedia de pretender, naquelemomento.Com essa quantia ele arranjaria para si uma vida de delcias, e se via feliz, pai de famlia, rico e considerado em sua provncia e, talvez, at mesmo chegasse aser o prefeito de Beauvais. Sua cabea se inflamando, ele buscou meios de transformar suas fices em realidade. Ps um mpeto extraordinrio em arquitetar um crimeem teoria. Enquanto sonhava com a morte do negociante, ele via distintamente o ouro e os diamantes. Estava deslumbrado. O corao batia com fora. A deliberaoj era, sem dvida, um crime. Fascinado por aquele monte de ouro, embriagou-se moralmente com argumentos assassinos. Perguntou-se a si mesmo se aquele pobre alemotinha realmente necessidade de viver, e imaginou que ele nunca existira. Em resumo, ele concebeu o crime de modo a assegurar-se a impunidade. A outra margem do Reno estava ocupada pelos austracos. Por baixo das janelas havia uma barca e alguns barqueiros. Ele podia cortar o pescoo daquele homem, atir-loao Reno, fugir pela janela com69a valise, oferecer ouro aos marinheiros e passar para o lado da Austria. Chegou ao ponto de calcular o grau de habilidade que soubera adquirir usando seus instrumentosde cirurgia, a fim de cortar a cabea de sua vtima, sem que ela desse um s grito... Nesse instante o Sr. Taillefer enxugou sua testa e bebeu mais um copo de gua. Prosper levantou-se lentamente, sem fazer o menor rudo. Certo de no ter despertado ningum, ele se vestiu e foi para a sala comum. Depois, com essa fatal intelignciaque o homem subitamente descobre em si, com esse poder de tato e de vontade que nunca falta aos prisioneiros e aos criminosos na realizao de seus planos, ele desaparafusouas barras de ferro, tirou-as de seus buracos, sem fazer o menor rudo, colocou-as junto parede e abriu as janelas, fazendo fora nos gonzos a fim de lhes anularos rangidos. A lua, tendo projetado sua plida claridade sobre esta cena, permitiu-lhe ver, ainda que fracamente, os objetos no quarto onde dormiam Wilhelm e Walhenfer.Nesse instante, ele parou um momento. As palpitaes de seu corao eram to fortes, to profundas, to sonoras que ele ficou como que apavorado. Alm disso, temiano poder agir com sangue frio. Suas mos tremiam e a planta de seus ps parecia-lhe como que apoiada sobre carves ardentes. Mas a execuo de seu plano era acompanhadade tanta felicidade, que ele via uma espcie de predestinao nesse favor da sorte. Abriu a janela, voltou ao quarto, pegou seu estojo e procurou o instrumento maisconveniente para cometer seu crime.- Quando cheguei junto ao leito, - disse-meele - eu me encomendei maquinalmente a Deus.No momento em que erguia o brao reunindotodas as suas foras, ele ouviu dentro de si como queuma voz e julgou avistar uma luz. Atirou o instrumento70sobre o leito, escapuliu para a outra sala e foi postar-se janela. A, ento, concebeu o mais profundo horror a si mesmo. E sentindo, no obstante, a fraquezade sua virtude e receando sucumbir fascinao que o dominava, ele saltou rapidamente para a estrada e passeou ao longo do Reno, fazendo, por assim dizer, sentineladiante da estalagem. Freqentemente, chegava at Andernach em seu passeio precipitado. Muitas vezes tambm seus passos o conduziam encosta pela qual descera para chegar estalagem.Mas o silncio da noite era to profundo e ele se fiava tanto nos ces de guarda que, por vezes, perdia de vista a janela que tinha deixado aberta. Seu intuito eracansar-se e chamar o sono. No entanto, andando assim debaixo de um cu sem nuvens, admirando as belas estrelas, tocado talvez pelo ar puro da noite e pelo melanclicosussurro das vagas, Prosper caiu num devaneio que o fez gradativamente voltar a idias ss de moral. A razo acabou por dissipar completamente seu frenesi momentneo.Os ensinamentos de sua educao, os preceitos religiosos e, sobretudo - disse-me ele - as imagens da vida modesta que at ento levara sob o teto paterno, triunfaramsobre seus maus pensamentos. Quando voltou, aps uma longa meditao, ao encanto da qual se abandonara s margens do Reno, permanecendo debruado sobre uma grandepedra, teria podido - disse-me ele - no dormir, mas velar perto de um milho em ouro. No momento em que sua probidade se reergueu altiva e forte desse combate,ele se ps de joelhos, num sentimento de xtase e felicidade, agradeceu a Deus, sentiu-se feliz, leve, contente como quando fizera sua primeira comunho, digno dosanjos, porque passara o dia sem pecar nem por palavras, nem por obras, nem por pensamentos.Voltou estalagem, fechou a janela sem receio71de fazer rudo e deitou-se imediatamente. Seu cansao moral e fsico o entregou sem defesa ao sono. Pouco tempo depois de ter encostado a cabea no colcho, elecaiu naquela sonolncia inicial e fantstica que sempre precede o sono profundo. Ento os sentidos se entorpecem e a vida vai se abolindo gradualmente, os pensamentosso incompletos e os ltimos estremecimentos de nossos sentidos simulam uma espcie de sonho. - Como o ar est pesado - disse Prosper consigo. - Tenho a sensao de estar respirando um vapor mido... Ele explicou vagamente para si mesmo esse efeito da atmosfera pela diferena que devia existir entre a temperatura do quarto e o ar puro do campo. No tardouque ouvisse um rudo peridico muito parecido com o que fazem as gotas de gua caindo de uma bica. Obedecendo a um terror pnico, quis levantar-se, chamar o estalajadeiro,acordar o negociante ou Wilhelm. Mas, para sua infelicidade, ele lembrou-se do relgio de madeira, e acreditando reconhecer o movimento do pndulo, adormeceu nessaindistinta e confusa percepo.Segunda InterrupoQuer gua, senhor Taillefer? - disse o dono da casa, vendo o banqueiro pegar maquinalmente a garrafa.Estava vazia.72Os dois crimesO Sr. Hermann continuou sua narrativa, depois de breve pausa ocasionada pela observao do banqueiro.- No dia seguinte, cedo - disse ele - Prosper Magnan foi acordado por um forte rudo. Parecia-lhe ter ouvido gritos agudos, o que o fez sentir esse violentosobressalto nervoso que experimentamos quando, ao acordarmos, terminamos uma sensao penosa iniciada durante o sono. Acontece conosco um fato fisiolgico, umaemoo forte que ainda no foi suficientemente observada, embora contenha fenmenos curiosos para a cincia. Essa terrvel angstia, talvez provocada pela reuniosbita de nossas duas naturezas, quase sempre separadas durante o sono, geralmente rpida. Mas ela persistiu no pobre ajudante, aumentou de repente, causando-lheo mais terrvel horror, quando percebeu um mar de sangue entre seu colcho e a cama de Walhenfer. A cabea do pobre alemo jazia no cho, tendo o corpo ficado noleito. Todo o sangue jorrara pelo pescoo. E vendo os olhos ainda abertos e fixos, vendo o sangue que manchara os lenis de sua cama e mesmo suas mos, aoreconhecer seu instrumento de cirurgia sobre o leito, Prosper Magnan desmaiou e caiu no sangue de Walhenfer. - J era - disse-me ele - um castigo pelos meus pensamentos. Quando voltou a si, ele se viu na sala comum. Achava-se sentado numa cadeira, cercado de soldados franceses e diante de uma multido curiosa e atenta. Olhouestupidamente para um oficial republicano, ocupado em colher os depoimentos de algumas testemunhas e a redigir sem dvida um auto73de corpo-de-delito. Ele reconheceu o estalajadeiro e sua mulher, os dois marinheiros e a criada da estalagem. O instrumento de cirurgia que o assassino usara...Terceira InterrupoAqui o Sr. Taillefer tossiu, tirou seu leno do bolso para assoar-se e enxugou a testa. Esses movimentos, bastante naturais, s foram notados por mim. Todos osconvivas tinham os olhos postos no Sr. Hermann, e o escutavam com uma espcie de avidez. O fornecedor apoiou seu cotovelo na mesa, ps a cabea na mo direita eolhou fixamente para o Sr. Hermann. Desde ento, ele no deixou mais escapar nenhum sinal de emoo ou interesse, mas sua fisio