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HOMENS COM UMA MENSAGEM UMA INTRODUÇÃO AO NOVO TESTAMENTO E SEUS ESCRITORES JOHN STOTT Revisado por Stephen Motyer •ap»

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HOMENS COM UMA MENSAGEM

UMA INTRODUÇÃO AO NOVO TESTAMENTO E SEUS ESCRITORES

JOHN STOTT Revisado por Stephen Motyer

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HOMENS COM UMA MENSAGEM

Uma Introdução ao Novo Testamento e seus Escritores

JOHN STOTT Revisado por Stephen Motyer

"A particularidade de cada autor do Novo Testamento não è de modo algum restrita a um único processo de inspiração. Antes, pelo contrário, o Espírito Santo primeiro preparou, e em seguida usou sua individualidade de formação, experiência, temperamento e personalidade, a fim de transmitir por meio de cada um alguma verdade distinta e apropriada." John Stott

O objetivo desta edição completamente revisada da obra clássica do Dr. Stott fo a de torná-la acessível à nova geração, refundindo a linguagem, adaptando-a às versões bíblicas recentes, e acrescentando fotos a cores e mapas informativos.

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Homens com uma Mensagem

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Homens com uma Mensagem Uma Introdução ao Novo Testamento e Seus Escritores

por John Stott revisado por Stephen Motyer

Editora Cristã Unida Associação Evangélica Menonita

Rua Venezuela, 318 13.036-350 Campinas-SP

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Homens com uma Mensagem: Uma Introdução ao Novo Testamento

Traduzido do original em inglês: Men with a Message: An Introduction to the New Testament and Its Writers HarperSanFrancisco

Texto Copyright © 1951 John Stott 1994 Stephen Motyer e John Stott Esta edição Copyright © 1996 Associação Evangélica Menonita

Desenhado e criado por Three's Company 12 Flitcroft Street London WC2H 8DJ

Co-edição mundial organizada por Angus Hudson Ltd., Mill Hill London NW7 3SA

Publicado no Brasil com a devida autorização EDITORA CRISTÃ UNIDA Associação Evangélica Menonita Rua Venezuela, 318 Jardim Nova Europa 13.036-350, Campinas, São Paulo Fone (019) 231-1190 Fax (019) 231-7640

Impresso em Cingapura

Tradução: Rubens Castilho

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Conteúdo

Prefácio de John Stott

Prefácio de Stephen Motyer

Marcos e sua Mensagem

Mateus e sua Mensagem

Lucas e sua Mensagem

João e sua Mensagem

Paulo e sua Mensagem

A Carta aos Hebreus

Tiago e sua Mensagem

Pedro e sua Mensagem

A Mensagem de Apocalipse /

índice

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Prefácio de John Stott

Foi logo depois de minha posse como reitor de Ali Souls Langham Place, em 1950, que, para minha total surpresa, o bispo William Wand (que havia me ordenado e empossado) convidou-me a escrever para 1954 o que era conhecido como "Livro da Quaresma do Bispo de Londres". Como resultado surgiu Homens com uma Mensagem. Foi na verdade meu primeiro livro, dois anos antes de Fundamentalismo e Evangelismo, e quatro anos antes de Cristianismo Básico e O Que Cristo Pensa da Igreja. No início dos anos 50 eu estava lendo e refletindo bastante sobre a inspiração da Escritura e sobre as relações entre seus autores divino e humanos. Eu estava impressionado mormente pela necessidade de enfatizar que a particularidade de cada autor do Novo Testamento não é de modo algum restrita a um único processo de inspiração. Antes, pelo contrário, conforme escrevi na introdução do livro de 1954, "o Espírito Santo primeiro preparou, e em seguida usou sua individualidade de formação, experiência, temperamento e personalidade, a fim de transmitir por meio de cada um alguma verdade distintiva e apropriada". Desta forma, isto se tornou, e permanece, o tema essencial de Homens com uma Mensagem. Agora, passados quarenta anos, sinto-me gratificado pelo fato de o livro experimentar uma espécie de "ressurreição", através da contribuição de Steve Motyer, que aceitou nobremente meu convite para revisá-lo. Somos agora considerados co-autores, embora, na realidade, o livro seja mais dele do que meu. Sensibiliza-me sua disposição de preservar tanto o título do livro original como alguma de sua essência. Ao mesmo tempo, teve ele total liberdade de reescrever, amenizar, expandir e atualizar o texto. Ele executou sua tarefa com atenção conscienciosa e notável habilidade. Creio firmemente que o conteúdo e a nova apresentação do livro revisado o tornarão bem mais agradável de ser lido do que a pesada e condensada primeira edição!

Domingo de Páscoa, 1994

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Prefácio de Stephen Motyer

Foi um grande privilégio participar desta revisão do livro original de John Stott. Quando de sua publicação, ele era o reitor recentemente nomeado de Ali Souls Langham Place, no centro de Londres, e eu ainda não estava na escola. E um testemunho da qualidade da pregação usufruída pela congregação de Ali Souls naqueles dias que este livro tenha iniciado ali sua vida como uma série de sermões. Em sua primeira versão ele trazia o selo de qualidade do que minha geração mais nova chamava "safra de Stott": baseado num conhecimento abrangente do texto, marcado por um aguçado rigor intelectual e poder de análise, expresso em prosa exata e vigorosa. Ele teve uma longa permanência nas estantes, quer no Reino Unido quer nos Estados Unidos, passando por numerosas impressões durante vários anos e brindando os crentes evangélicos com uma introdução ao Novo Testamento de excelente nível, num tempo em que havia pouca literatura evangélica nas livrarias. Entendo por que um bispo (anônimo) da igreja da Inglaterra tenha alegado que foi aprovado em Novo Testamento em seu exame geral de ordenação apoiado na força de Homens com uma Mensagem!

Espero que tudo o que havia de melhor na primeira versão tenha sido mantido nesta segunda. O objetivo da revisão foi tornar seu conteúdo acessível às futuras gerações, utilizando uma linguagem mais leve, associando-a ao conhecimento bíblico recente, e incorporando o texto ao formato da publicação "user-friendly" associado aos produtos de Three's Company. John Stott permitiu-me uma grande liberdade na revisão, mas senti-me muito bem familiarizado com suas ênfases e análises. Mantive basicamente a estrutura dos capítulos originais, suplementando-os com material adicional e reescrevendo-os em estilo menos marcado pelas características formais da prosa dos anos 50.

Acrescentei os capítulos de Marcos e Mateus, que haviam sido excluídos da primeira versão e retirei o primeiro capítulo original sobre Jesus, que desde o início pareceu um tanto fora de lugar.

O título Homens com uma Mensagem poderia ser levemente desorientador. Isto não significa sugerir que não há diferenças entre os diversos autores do nosso Novo Testamento. Na verdade, um dos principais propósitos deste livro

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HOMENS COM UMA MENSAGEM

é investigar sua variedade. Eles foram indivíduos com diversas formações, personalidades e experiências, e seus escritos refletem tal diversidade.

No caso dos Evangelhos, por exemplo, parece que os evangelistas planejaram suplementar um ao outro à luz de seus propósitos e preocupações individuais. Assim, Mateus expandiu muito Marcos, Lucas incluiu novas ênfases no mate-rial extraído dos outros dois e acrescentou ainda mais, e João pintou um retrato de Jesus que foi além dos outros três, tanto em conteúdo quanto em profundidade espiritual. E assim por diante, para cada um de nossos "homens". Eles foram todos escolhidos por Deus, moldados pela experiência, e investidos de poder pelo Espírito Santo, primeiro para compreender a revolucionária Boa Nova de Jesus, e depois para comunicá-la e aplicá-la nas várias situações que enfrentaram.

Mas, ao mesmo tempo, eles foram Homens com uma Mensagem, e não homens com muitas mensagens. Por meio de sua variedade, eles comunicaram uma mensagem da graça salvífica de Deus em Cristo. O "evangelho" pode ser ex-presso em diferentes palavras e aplicado a diferentes necessidades, mas incorpora uma mensagem para todos os homens e mulheres em todos os tempos e lugares. Neste livro é a variedade que é principalmente realçada, porém, através dela, a unidade felizmente também emerge:

• a consciência unificada da necessidade do mundo, alienado de Deus e afligido pelo pecado

• a crença unificada na iniciativa de Deus, que tem agido para libertar o mundo do mal e reconciliá-lo consigo

• a focalização unificada desta iniciativa sobre Jesus Cristo, que foi ungido e designado por Deus para ser o Salvador do mundo

• a crença unificada no envolvimento de Deus, que não apenas age através de Jesus, mas age pessoalmente nele

• a crença unificada na exaltação de Jesus Cristo, que morreu e ressuscitou, de modo que podemos compartilhar a vida do próprio Deus.

Estes elementos estão todos lá, nos escritos de nossos "homens", expressos diferentemente, mas igualmente fundamentais. Somente num caso alguma coisa está faltando: a pequena epístola de Tiago não contém referência à morte de Cristo como o foco de sua identificação salvífica conosco. Porém esta crença não é incompatível com a "mensagem" de Tiago. Ele a rejeitou? Certamente não. Ele não poderia ter liderado a igreja em Jerusalém por tanto tempo se o tivesse feito. Sua carta tratou de suas preocupações imediatas, e estas foram transmitidas sem qualquer referência à cruz.

Na verdade, ele não está só. A epístola de Judas também não faz referência à morte de Cristo. Judas é o único "homem" deixado fora deste livro. Esperamos que ele nos perdoe! Sua epístola é poderosa, singular, desafiadora, tão fascinante como qualquer outra parte do Novo Testamento, mas também curta! Cremos que ele pode compreender por que não lhe estamos dando todo um capítulo num livro que tem somente um capítulo para Paulo e outro para Lucas. Afinal de contas, eles dois são responsáveis por metade do Novo Testamento!

John Stott e eu somos também unidos em nossa oração e desejo de que este livro continue a ser um meio de levar os cristãos a um conhecimento e amor mais profundos do Livro que tem significado tanto para nós dois—para ele, por quase toda uma existência de serviço e trabalhos escritos que o levaram muito além daqueles dias iniciais em Ali Souls; para mim, por mais de meia existência procurando explanar e ensinar o Novo Testamento com discernimento e entusiasmo.

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HOMENS COM UMA MENSAGEM 1 1

Permitamos que Judas tenha, ao menos, a última palavra neste prefácio. Dese jamos obedecer ao seu apelo de encora jamento para "batalhar diligentemente pela fé que uma vez por todas foi entregue aos santos" (3) e com ele cantar "ao único Deus, nosso Salvador, mediante Jesus Cristo, Senhor nosso, glória, majestade, império e soberania, antes de todas as eras, e agora, e por todos os séculos. Amém" (25).

Queremos expressar nossos agradecimentos em conjunto a Tim Dowley e Peter Wyart, de Three's Company, for sua iniciativa, conselho, habilidade e dedicação, sem o que este livro jamais teria tido uma existência renovada.

Dia da Conversão cle Paulo, janeiro de 1994

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Marcos e sua Mensagem Então, convocando a multidão e juntamente os seus discípulos, disse-lhes: "Se alguém quer vir após mim, a si mesmo se negue, tome a sua cruz e siga-me." (Marcos 8.34)

O Evangelho de Marcos é destinado aos discípulos. Ele compartilha com os outros evangelistas a preocupação de capacitar seus leitores a compreender a pessoa de "Jesus Cristo, o Filho de Deus" (1.1). Mas ele vai além do que simplesmente apresentar Jesus. Jesus é o personagem principal no drama de Marcos, mas os discípulos vêm logo a seguir.

Em toda a história, Marcos se preocupa com o discipulado—seus privilégios, obstáculos, perigos, desafios e perplexidades. Esta é a ênfase marcante do Evangelho de Marcos. De forma muito humana e animadora ele revela o quão difícil foi para os primeiros seguidores de Jesus dar os primeiros passos no discipulado, e quão pacientemente Jesus perseverou com eles, apesar de sua compreensão tão limitada e sua obediência tão frágil. Como veremos, esta ênfase provavelmente amadureceu a própria experiência de Marcos como cristão.

Uma produção pioneira O Evangelho de Marcos foi provavelmente o primeiro dos quatro a ser escrito, e, assim, tornou-se seu autor um desbravador que preparou o caminho para que os outros seguissem seu modelo. Sua contribuição foi considerável, uma vez que jamais qualquer coisa semelhante tinha sido escrita antes. Em vários aspectos surpreendentes o registro de Marcos a respeito de Jesus difere de outras antigas biografias dos notáveis: • Marcos anuncia no início que o personagem de seu relato não é nenhum simples homem, mas sim o "Filho de Deus". • Ele classifica seu trabalho sob um nome novo: é um "evangelho" (1.1). • Ele nada informa a respeito do nascimento ou infância de seu personagem. • Surpreendentemente, ele faz um pequeno registro do ensino de Cristo, embora mencione com freqüência que Ele ensinava (por exemplo, 1.38; 2.2). • Ele dedica cerca de um terço de seu livro para narrar a morte de seu personagem. • Seu trabalho é estranhamente curto! Não teria ele, na verdade, mais do que estes dezesseis pequenos capítulos para falar sobre esse "Filho de Deus"? • Por que ele reserva tanto de seu exíguo espaço concentrando sua atenção não

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MARCOS E SUA MENSAGEM 1 3

e m seu pr inc ipa l p e r s o n a g e m , m a s nos d i sc ípu los q u e se r e u n i a m à vo l ta de le? Todas es tas carac ter í s t icas f a z e m do reg i s t ro d e M a r c o s sob re Jesus u m a obra

s ingular entre as b iograf ias de seu t empo. O s outros evangel is tas suprem a lgumas destas omissões . Tan to M a t e u s c o m o L u c a s de f a to r e p r o d u z e m e m seus p rópr ios t r aba lhos a m a i o r pa r t e do c o n t e ú d o do E v a n g e l h o d e M a r c o s , c o m b i n a n d o - o c o m e lementos adicionais , p r inc ipa lmente histórias do nasc imen to e i n fo rmações m a i s e x t e n s a s s o b r e o e n s i n o d e J e s u s . P o r e s t a r a z ã o a m b o s s ã o c o n s i d e r a v e l m e n t e m a i s l o n g o s — n o c a s o d e L u c a s , quase d u a s vezes mais . C o n t u d o , e les não nos a j u d a m a e n t e n d e r p o r q u e M a r c o s abr iu c a m i n h o c o m tal ex t raord iná r io t raba lho .

A respos ta a a l g u m a s des tas p e r g u n t a s p o d e m es tar na expe r i ênc i a do p róp r io M a r c o s . Q u e m e ra e le?

0 rio Jordão junto ao sul do mar da Galiléia. 0 Evangelho de Marcos inicia com João Batista pregando no deserto e batizando no rio Jordão.

A pessoa de Marcos A s e m e l h a n ç a d o s ou t ro s e v a n g e l i s t a s , M a r c o s n ã o e s t a v a i n t e r e s s a d o e m d ivu lgar sua própr ia ident idade e m seu Evange lho . E le não m e n c i o n a a si m e s m o p e l o n o m e . P o r é m ou t ro s f o r a m ze lo sos ao inser i r o n o m e de seu autor , e " S e g u n d o M a r c o s " fo i a s soc iado a ele de sde os p r ime i ros anos . Se h o u v e d ú v i d a d i f u n d i d a sobre tal a t r ibuição , a t r ad ição e n c a r r e g o u - s e de d e s f a z ê - l a e se f i x o u n u m a f i g u r a da m a i o r p r o e m i n ê n c i a da i g r e j a apos tó l ica . A s s i m , pois , p o d e m o s es tar c o n f i a n t e s d e q u e es t e l iv ro f o i escr i to p o r u m " M a r c o s " . F e l i z m e n t e p o d e m o s iden t i f i cá - lo c o m fac i l idade , e o t e s t e m u n h o d o N o v o T e s t a m e n t o n o s poss ib i l i ta p in ta r u m f a sc inan t e re t ra to dele .

1. Marcos pertencia a uma família fundadora da igreja cristã.

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Palavras Latinas em Marcos

Uma das características peculiares do Evangelho de Marcos é o uso, sem explanação, de vários termos latinos:

• Legião (5.9)

• Centurião (15.39)

• Pretório (15.16)—aqui Marcos acrescenta a palavra latina para explicar a palavra grega "palácio".

• Executor (6.27)—a palavra usada por Marcos aqui é o termo técnico para policial militar.

• Quadrante (12.42)—a moeda que Marcos menciona aqui circulava somente na metade ocidental do Império Romano, área de língua latina.

Marcos escreveu em grego, porém trai seu conhecimento do latim. E, assim fazendo, denuncia uma clara evidência de que estava escrevendo para um público da região ocidental, talvez a própria Roma.

Indubitavelmente ele é o "João, apelidado Marcos", mencionado em Atos 12.12 e 25. Ele não é incomum pelo fato de ter dois nomes que refletem sua formação bilíngüe, e, em seu caso, o fato de um deles ser latino (Marcos) pode apontar para conexões da família com as forças romanas na Palestina. A formação latina de Marcos é indicada também pela presença de algumas palavras latinas em seu Evangelho (ver indicações no quadro acima).

Em Atos 12 encontramos a igreja reunida na casa de Maria, mãe de Marcos, para orar em favor de Pedro, que estava na prisão. Essa casa era certamente um centro importante na vida da igreja iniciante de Jerusalém, porque Pedro se dirigiu diretamente para lá quando foi miraculosamente libertado, admitindo claramente que a igreja estaria reunida lá. Deve ter sido uma casa espaçosa, e a família de Marcos era suficientemente abastada para permitir-se ter pelo menos uma criada em casa, a excitada Rode, que deixou Pedro do lado de fora da porta. Alguns estudiosos têm especulado se essa casa não conteria o famoso "cenáculo espaçoso", no qual foi servida a Ultima Ceia (Marcos 14.15), e na qual a igreja se reuniu após a ascensão de Jesus (Atos 1.13).

2. Marcos foi testemunha ocular da morte e ressurreição de Jesus. Marcos pode ter viajado para ver e ouvir Jesus em outro lugar, mas, se ele vivia em Jerusalém, deve ter testemunhado os derradeiros acontecimentos do ministério de Jesus. Podemos imaginar o impacto que eles tiveram sobre o jovem Marcos. Ele meditou sobre o significado da morte de Jesus. E quando decidiu escrever seu Evangelho, ela tornou-se o foco de toda a sua história, pressagiada tão cedo quanto Marcos 3.6, predita freqüentemente por Jesus, que viajava para Jerusalém com o fim deliberado de morrer, e interpretada como morte sacrificial, um "resgate por muitos" (10.45). Vamos examinar abaixo o aspecto central desta mensagem.

E provável que ele tenha passado por um doloroso desenvolvimento, semelhante ao que Pedro sofreu (ver capítulo 8): começou com a crença tradicional num Messias conquistador e vitorioso, que reestabeleceria os judeus como o povo soberano de Deus, e terminou vendo o Messias como uma figura sofredora que morreu por seu povo para salvá-lo de seus pecados. Este era o "Cristo, Filho de Deus", cuja história era a "boa nova" para todos os que a ouvissem (1.1).

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18 HOMENS COM UMA MENSAGEM

3. Marcos teve falhas em seu próprio discipulado. Isto é muito importante para a nossa compreensão da forma pela qual a experiência de Marcos o preparou para escrever seu Evangelho.

Paulo e Barnabé estavam presentes na casa de Marcos, participando da célebre reunião de oração, quando Pedro foi libertado da prisão. Barnabé era, na realidade, primo de Marcos (Colossenses 4.10); e quando retornaram a Antioquia, Barnabé e Paulo levaram Marcos com eles (Atos 12.25). Logo depois disso, o Espírito Santo induziu a igreja em Antioquia a enviar Paulo e Barnabé para uma viagem missionária (Atos 13.2). Eles levaram consigo Marcos para auxiliá-los (13.5), enquanto pregavam o evangelho em Chipre, e depois cruzaram o mar em direção a Panfília, na província romana da Galácia.

Neste ponto, entretanto, Marcos resolveu não continuar, deixando Paulo e Barnabé e retornando a Jerusalém (Atos 13.13). Isso deixou Paulo profundamente contrariado, pois mais tarde ele se recusou a levar Marcos com ele novamente, pois "não achava justo levarem aquele que se afastara desde a Panfília, não os acompanhando no trabalho" (Atos 15.38). A palavra "afastara" aqui lembra a que foi usada na parábola do semeador referindo-se à semente que caiu sobre a pedra: "A que caiu sobre a pedra são os que, ouvindo a palavra, a recebem com alegria; estes não têm raiz, crêem apenas por algum tempo, e na hora da provação se desviam" (Lucas 8.13). Era o que Paulo pensava a respeito de Marcos. Quando enfrentou o teste, ele se desviou e mostrou ser um discípulo sem raízes, relutante em obedecer ao chamado do Espírito.

Não sabemos por que Marcos os abandonou. A Panfília era uma área que ficava quase ao nível do mar e era infestada pela febre; além disso, eles estavam enfrentando uma viagem difícil até a Pisídia. Marcos tinha acabado de testemunhar um confronto emocionalmente extenuante com Elimas, o mágico, em Pafos (Atos 13.6-12). E talvez ele tivesse tido algum pressentimento do que iriam encontrar pela frente. Se tivesse continuado a viagem com Paulo e Barnabé, ele enfrentaria perseguição física em Listra, onde Paulo foi apedrejado ao ponto de quase morrer (Atos 14.19). Parece que o esgotamento e o perigo foram demais para que ele pudesse suportar, e então ele fugiu para sua casa em Jerusalém. Podemos supor que, além de jovem, ele era um tanto tímido ou estava saudoso do lar.

A história tem seu modo de repetir-se. Seria o próprio Marcos o jovem mencionado em Marcos 14.51,52? A tradição vem de longa data sustentando que era ele. Se assim for, não será difícil imaginar o senso de deficiência que Marcos deve ter experimentado em Panfília, quando se viu, pela segunda vez, incapaz de suportar o desafio do discipulado. Mas podemos ver também como, através desta experiência, ele se qualificou para dar ao seu Evangelho a mensagem inconfundível de ânimo a todos quantos consideram difícil o discipulado. Examinaremos abaixo o ensino de Marcos sobre o discipulado, mas convém antes assinalar duas de suas características, porque elas se ajustam muito claramente à própria experiência de Marcos:

a. Marcos destaca com exclusividade o medo sentido pelos discípulos ao seguirem Jesus. Mateus e Lucas amenizam sua linguagem, ou mesmo omitem-na completamente, em três episódios em que Marcos menciona esse medo. • Em Marcos 4.40,41ele nos diz que os discípulos estão "possuídos de grande temor" (uma expressão muito forte) quando vêem Jesus acalmar a tempestade—

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Era Marcos o discípulo desnudo? Tradicionalmente, Marcos tem sido identificado com o mesmo j o v e m que ele menciona em Marcos 14.51,52, o qual segue Jesus até o Getsêmani usando somente um lençol, e em seguida f o g e desnudo quando a guarda do Sinédrio tenta prendê-lo juntamente com Jesus. Três fatores depõem em favor desta identificação (embora nenhum deles seja conclusivo):

• Este foi um dos muito poucos incidentes que Mateus e Lucas preferiram não usar em seus Evangelhos, ainda que soubessem que Marcos tinha suas próprias razões para incluí-lo.

• Se a Ultima Ceia tinha sido realizada na casa de Marcos, podemos muito bem imaginar que Marcos quis sair com Jesus e seus discípulos.

Talvez ele es t ivesse j á dei tado quando ouviu a surpreendente notícia de que Jesus estava saindo, e não permanecido lá como se esperava, e por isso vestiu-se depressa.

• O jovem que seguiu Jesus era claramente rico, porque usava um lençol "de linho": geralmente, tais peças eram de algodão. O terror do jovem é realçado tanto por fug i r desnudo c o m o por sua d i spos ição de desfazer-se de uma vestimenta tão valiosa.

Não podemos saber com certeza. Mas, se esta tradição é correta, podemos ver ainda com maior clareza por que Marcos mostra tanta compaixão por discípulos fracos e indecisos.

e muito humanamente torna claro que não são somente as ondas que aterrorizam os discípulos: mais do que isto, é a demonstração da absoluta grandeza e poder de Jesus. • De modo similar, em 10.32 ele registra que os discípulos estão "admirados" e "apreensivos", quando acompanham Jesus até Jerusalém, mesmo antes de Je-sus ter-lhes enfatizado mais de uma vez seu próximo sofrimento e morte (10.33,34). • E, o mais extraordinário de tudo, ele termina seu Evangelho com uma nota de espanto e medo, quando conta a reação das mulheres diante do anúncio da ressurreição. Elas foram instruídas a transmitir a mensagem de que o Jesus ressurreto encontraria seus discípulos na Galiléia. Porém, em vez disto, "saindo elas, fugiram do sepulcro, porque estavam possuídas de temor e de assombro; e de medo nada disseram a ninguém" (16.8).

Desde os primeiros anos, os copistas acharam que este era um final bastante inadequado para o Evangelho e apresentaram alternativas. E certamente possível que o final original de Marcos tenha sido perdido na transmissão. Entretanto, fica claro pelos antigos manuscritos gregos de Marcos que nenhuma das alternativas apresentadas é original. E, na realidade, o final grego harmoniza com todo o retrato da fraqueza humana dos seguidores de Jesus, com a qual ele deveria terminar seu Evangelho de forma singular.

b. Marcos ressalta de forma singular a disposição de Jesus de confiar em discípulos que estão ainda muito inseguros em sua fé. Em Marcos 6.7-13 Jesus envia os Doze revestidos de autoridade para pregar e curar em seu nome. Lemos que "eles pregavam ao povo que se arrependesse; expeliam muitos demônios e curavam numerosos enfermos, ungindo-os com óleo" (6.12,13), e depois "voltaram os apóstolos à presença de Jesus e lhe relataram tudo quanto haviam feito e ensinado". (6.30). A primeira vista estes discípulos parecem gigantes espirituais, mas a história continua em seguida para pintar suas verdadeiras cores: seus corações estão endurecidos (6.52), seu entendimento está obtuso (7.18), e sua memória está obliterada (8.2-5; compare com 6.35-38), de sorte que Jesus tem de contender com eles: "Ainda não considerastes nem

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20 HOMENS COM UMA MENSAGEM

compreendestes? tendes o coração endurecido? tendo olhos, não vedes? e, tendo ouvidos, não ouvis? Não vos lembrais...?" (8.17,18).

E mesmo quando os discípulos finalmente reconhecem que Jesus é "o Cristo" (8.29), eles demonstram apenas um tímido começo. Eles precisam aprender árduas lições sobre oração (9.28,29; 11.21-25), sobre humildade (10.13-16), sobre sacrifício próprio (10.26-31), e sobre status (9.38,39; 10.35-45). E Marcos dá pouca indicação de progresso. Pedro, Tiago e João caem de sono em vez de orar no Getsêmani (14.37-42), e quando Jesus é preso todos o deixam e fogem (14.50). O único discípulo que volta atrás e segue Jesus, em seguida nega-o ostensivamente (14.71).

Por trás disto tudo podemos ver a experiência do próprio Marcos. Também ele tinha experimentado os impulsos conflitivos que retrata nos primeiros discípulos de Jesus. Por um lado eles se sentem fortemente atraídos a Jesus (1.16-20), testemunham diretamente seus extraordinários poderes (6.13), identificam-no como "o Cristo" (8.29), deixam tudo para segui-lo (10.28), e se sentem prontos a morrer por Ele (14.31). Mas, por outro lado, são constantemente confundidos e surpreendidos por Jesus, a tal ponto que Marcos faz pouca distinção entre eles e os fariseus no que respeita à compreensão das palavras do Mestre (8.11-21). Como vimos, eles são freqüentemente muito medrosos, e por fim fracassam completamente.

Assim, pois, Marcos fala compassivamente a todos quantos sentem extrema dificuldade de seguir este Cristo. Mas, está ele finalmente desesperançado quanto à possibilidade de verdadeiro e vitorioso discipulado? É vital que passemos à quarta característica da pessoa de Marcos, a qual lança mais luz sobre seu Evangelho:

4. Marcos torna-se companheiro tanto de Pedro como de Paulo. Fracasso não foi o fim da história de Marcos. Não sabemos quanto tempo ele ficou em Jerusalém depois de seu retorno. Mas, após o Concílio apostólico registrado em Atos 15, encontramo-lo de volta a Antioquia novamente com Barnabé e Paulo. Paulo recusou a companhia de Marcos em sua visita de re-torno às mesmas igrejas. Porém, à custa de sua parceria com Paulo, Barnabé afavelmente ajudou Marcos a retomar seu trabalho missionário, levando-o novamente a Chipre, a cena de seu fracasso (Atos 15.38,39).

Não tivemos mais novas notícias de Marcos até que o encontramos em quatro das últimas epístolas do Novo Testamento. Na época em que foram escritas as cartas aos Colossenses e a Filemom (cerca de dez ou doze anos mais tarde). Marcos está com Paulo, que o chama de "cooperador" (Filemon 24; compare com Colossenses 4.10). E então Marcos recebe uma calorosa recomendação na última carta de Paulo, escrita provavelmente pouco antes de sua morte. Paulo diz a Timóteo: "Toma contigo a Marcos e traze-o, pois me é útil para o ministério" (2 Timóteo 4.11). Evidentemente, a ruptura com Paulo tinha sido completamente curada!

Marcos aparece, finalmente, em 1 Pedro 5.13, quando Pedro o chama amorosamente de "meu filho", ao fazer suas saudações juntamente com Marcos, que está com ele, aos cristãos localizados "no Ponto, Galácia, Capadócia, Ásia e Bitínia", a quem a carta é dirigida (1 Pedro 1.1).

Todas estas cartas foram provavelmente escritas de Roma, onde claramente Marcos ministrava tanto para Pedro como para Paulo, tendo sido um companheiro confiável e muito amado de ambos. Claramente também ele era

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Parte do Fórum, Roma, com o Coliseu destacando-se no horizonte. Marcos devotou tempo ministrando em Roma, e seu Evangelho foi escrito para um público ocidental, possivelmente romano.

nesse tempo conhecido das igrejas na Galácia e na Ásia Menor, a mesma área da qual ele havia fugido quando sua fé arrefecera. Portanto, o cuidado de Barnabé para com seu primo tinha sido amplamente justificado. Marcos havia enfrentado e dominado seus medos, tornando-se totalmente "útil" no serviço cristão.

E não somente Marcos. Pedro também tinha saído do malogro para ser a "Rocha" sobre a qual a igreja estava sendo construída. Marcos destaca o fracasso de Pedro mais do que dos outros discípulos. "Ainda que todos se escandalizem, eu jamais!... Ainda que me seja necessário morrer contigo, de nenhum modo te negarei" (14.29,31). Então, com chocante compaixão e ironia, Marcos narra a história de cada uma das negações preditas por Jesus (14.66-72). As negações tornam-se mais enfáticas até que ele "começou a praguejar e a jurar: 'Não conheço esse homem de quem falais!' " (14.71).

Talvez a amizade entre Pedro e Marcos foi alicerçada em sua mútua experiência de queda e restauração. E bem possível que o próprio Evangelho de Marcos tenha nascido dessa experiência comum. Em data remota acreditou-se que Marcos baseou seu Evangelho na pregação de Pedro. A posição mais antiga desta versão veio de Papias, bispo de Hierápolis por volta de 130 d.C. Ele foi apoiado no fim do segundo século por Irineu (bispo de Lyon, c. 178-195 d.C.), que acrescentou a idéia de que Marcos teria registrado toda a pregação de Pedro em Roma, após a morte deste último. Depois, Clemente de Alexan-dria (c. 200 d.C.) contribuiu com a sugestão de que Marcos foi pressionado a fazer isso pelo povo que ouviu a pregação de Pedro.

Não sabemos a exata seqüência dos acontecimentos, porém podemos afirmar com certeza que: • Marcos dedicou tempo ministrando com Pedro em Roma; • Pedro é destacado mais do que qualquer outro discípulo no Evangelho de Marcos; • Seu Evangelho foi escrito para um público ocidental, talvez romano (ver o

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Pedro em Marcos Pedro é citado pelo nome não menos do que vinte e três vezes no Evangelho de Marcos. Os personagens mais próximos, por freqüência de menção, são Tiago e João (nove vezes); portanto, Pedro é de longe o mais p roeminen te dos disc ípulos em Marcos. Isto pode bem refletir a própria pregação de Pedro, que forneceu a base do Evangelho de Marcos . E esta hipótese é for ta lec ida quando e x a m i n a m o s essas v in te e t rês r e f e r ê n c i a s , porquanto não menos do que treze se relacionam com quatro incidentes que escassamente mostram Pedro sob um foco predominante! 1. Pedro procura repreender Jesus por predizer sua morte e recebe uma resposta cáustica: "Arreda! Satanás, porque não cogitas das coisas de Deus, e sim das dos homens" (8.33). 2. Pedro diz sem pensar um contra-senso a respeito de construir tendas, porque estava aterrorizado ante a v i s ã o de J e s u s c o m M o i s é s e E l i a s na transfiguração (9.5,6). 3. Pedro, com Tiago e João, dorme três vezes no jardim do Getsêmani, em vez de orar com Jesus. Somente Marcos regis t ra sua reação quando acordados pela segunda vez: "E não sabiam o que lhe responder" (14.40). No entanto, eles novamente se entregam ao sono! 4. E acima de tudo Pedro nega Jesus, a última vez com imprecações (14.71), muito embora tenha anteriormente, na mesma noite, protestado sua eterna lealdade a Ele.

Assim, de forma comovente, Marcos nos dá algum discernimento sobre o testemunho de Pedro a Jesus. Seu Evangelho mostra realmente um estreito paralelo com o resumo do ministério de Jesus que o próprio Pedro apresentou a Cornélio em seu sermão de Atos 10.34-43: * A história tem início na Galiléia "depois do batismo que João pregou", e em seguida afirma "como Deus ungiu a Jesus de Nazaré com o Espírito Santo e poder, o qual andou por toda parte, fazendo o bem e curando a todos os oprimidos do diabo, porque Deus era com ele" (Atos 10.37,38). * A história atinge seu clímax "na terra dos judeus e em Jerusalém" com a morte e ressurreição de Jesus (Atos 10.39,40). * P e d r o p õ e ê n f a s e sob re seu p a p e l c o m o "testemunha" (Atos 10.39,41), do mesmo modo como, no Evangelho de Marcos, o encontramos no centro de toda a ação. * Pedro também ressalta o cumprimento anunciado pelos profetas sobre Jesus (Atos 10.43), uma ênfase que encontramos também em Marcos (1.2,2; 1.11; 11.9,10; 12.10,11; 12.36; 14.27).

Mas no Evangelho há esta nota adicional, não ref let ida no breve sermão a Cornélio. Quando pregou, Pedro deve ter usado seu próprio exemplo para advertir seus ouvintes: Não façam o que eu fiz!

q u a d r o "Pa l av ra s La t inas e m M a r c o s " ) ; • Seu E v a n g e l h o ter ia s ido e s p e c i a l m e n t e a d e q u a d o e e n c o r a j a d o r pa ra os

c r i s tãos q u e e n f r e n t a v a m o d e s a f i o da pe r s egu i ção . E s t a s o b s e r v a ç õ e s l e v a r a m o e s t u d i o s o n o r t e - a m e r i c a n o W i l l i a m L a n e a

admi t i r s e r i amen te a t r ad ição d e q u e M a r c o s b a s e o u seu E v a n g e l h o sob re a e s sênc ia da p r e g a ç ã o de Pedro , e a suger i r q u e M a r c o s o e sc reveu e s p e c i a l m e n t e p a r a a ig re ja e m R o m a , q u a n d o e la f o i v i t i m a d a pe l a p e r s e g u i ç ã o sob N e r o e m 6 5 d .C. , du ran t e a qua l m u i t o p r o v a v e l m e n t e o p r ó p r i o P e d r o fo i mar t i r i zado .

Se M a r c o s b a s e o u seu E v a n g e l h o n a p r e g a ç ã o de Ped ro , en t ão a l g u m a s d e suas su rp r eenden t e s carac te r í s t icas são exp l i cadas . • Sua extensão: M a r c o s s i m p l e s m e n t e ut i l izou o mater ia l que t inha o u v i d o P e d r o emprega r . E l e n ã o p r o c u r o u f aze r u m a p e s q u i s a c o m p l e m e n t a r , c o m o f e z Lucas . • Seu começo: P e d r o n i t i d a m e n t e n ã o u s o u e m seu min i s t é r io h is tór ias sobre o n a s c i m e n t o de Jesus e sua in fânc i a . Q u a n d o ele r e s u m e o min i s t é r io de Jesus p a r a Corné l io , e le f a l a do seu c o m e ç o " d e s d e a Gal i lé ia , depo i s do b a t i s m o q u e J o ã o p r e g o u " (Atos 10.37). • Seu nome: o n o m e q u e M a r c o s e sco lheu pa ra seu l ivro, " e v a n g e l h o " , r e f l e t e sua o r i g e m na p r e g a ç ã o da " b o a n o v a de Je sus Cr i s to" , pe l a qua l P e d r o e os ou t ros após to los f o r a m conhec idos . • Seu enfoque: p o r t rás da ê n f a s e de M a r c o s sobre a m o r t e de Jesus , p o d e m o s o u v i r P e d r o t en tan to p e r s u a d i r os j u d e u s de q u e Je sus era r e a l m e n t e " o Cris to ,

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o Filho de Deus", muito embora tenha sofrido uma morte criminal. Sua morte cumpriu a Escritura!

Marcos, o escritor Podemos falar mais sobre Marcos simplesmente com base em seu trabalho escrito. Aqui também ele expõe as qualidades e dons pessoais que o qualificam para a tarefa de ser o primeiro escritor do evangelho. Três coisas em particular se sobressaem.

1. Marcos era um estilista bem dotado. Ele escreve num estilo vívido, direto e vigoroso. Apequena palavra grega euthus é uma de suas favoritas, usada quarenta e uma vezes. Traduzida para "imediatamente", "prontamente", "sem demora" e equivalentes, esta palavra acrescenta um sentido de compasso e movimento. Marcos sublinha isto utilizando sentenças curtas e vocabulário vívido e forte. A história segue um ritmo acelerado de incidente a incidente.

Marcos tem um dom especial para o detalhe visual que transmite vida à cena. Com freqüência ele introduz um detalhe que Mateus e Lucas omitem. Por exemplo, ele é o único a mencionar que Jesus tomou uma criança em seus braços e disse: "Qualquer que receber uma criança, tal como esta, em meu nome, a mim me recebe" (Marcos 9.36,37). Somente ele registra que o jovem homem rico "correu" até Jesus e ajoelhou-se diante dele antes de perguntar: "Que farei para herdar a vida eterna? (10.17). E unicamente ele conta como "Jesus, fitando-o, o amou" (10.21), e como o homem "retirou-se triste" (10.22).

Os exemplos podem multiplicar-se. Este amor com detalhe plástico geralmente significa que as histórias de Marcos são mais recheadas do que suas equivalentes em Mateus e Lucas. Como exemplo podemos comparar o inventário de palavras contidas nas duas histórias—da filha de Jairo e da mulher com hemorragia: • Marcos faz a narrativa com 416 palavras, 5.21-43. • Lucas utiliza 331 palavras, 8.40-56. • Mateus maneja ambas com somente 162 palavras, 9.18-26. Alguns dos pormenores que Marcos introduz emprestam um "toque humano" a estas histórias: • Jairo não apenas "suplica" a Jesus que vá, mas o faz "insistentemente" (literalmente, "dizendo-lhe muitas coisas").

• A mulher "muito padecera à mão de vários médicos", mas, em vez de ser curada, ficava cada vez "pior" (5.26).

• Quando ela tocou a veste de Jesus, Ele percebeu "imediatamente que dele saíra poder", e então virou-se "no meio da multidão", e "olhava ao redor para ver aquela que fizera isto" (5.30,32).

• Quando Jesus chegou à casa de Jairo, viu "os que choravam e os que pranteavam muito" (5.38).

• Jesus então "tomou o pai e a mãe da criança... [com Ele]", e "entrou onde ela estava" (5.40). • Em seguida, Marcos acrescenta um traço de rara sensibilidade, o que, aliás, ele faz também em três outras ocasiões: mantém a palavra original da voz de comando de Jesus em aramaico, Talitha koum!, "Menina, eu te mando, levanta-te!" (5.41).

Outra técnica empregada pelo estilista Marcos para fazer que sua narrativa se

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torne dinâmica é a chamada "presente histórico". Este consiste do uso repentino tempo presente do verbo numa história passada. Na história de Jairo e sua filha, isto ocorre quando Jairo aparece: ele "chega" e, vendo-o, "prostra-se a seus pés... e lhe suplica". De igual modo, Marcos usa o tempo presente no clímax da história. Quando Jesus chega à casa de Jairo, ele "vê o alvoroço", "fala" aos pranteadores, "entra" com pais, e "diz" à menina. ...

No seu conjunto, Marcos é um notável estilista.

2. Marcos foi um convincente contador de história. Esta é uma qualidade complementar numa escala mais ampla. Da mesma forma que Marcos conta suas histórias individuais com grande vivacidade e força, ele compõe todo o seu Evangelho com igual habilidade.

Papias, escritor cristão dos tempos primitivos, certamente entendeu isto erroneamente. Na passagem em que ele testifica que Marcos baseou seu Evangelho na pregação de Pedro, Papias também diz que Marcos "anotou cuidadosamente tudo quanto recordava das coisas ditas ou realizadas pelo Senhor, porém não em ordem cronológica". Esta falta de "ordem" ele atribui a Pedro, que "não articulou um relato criterioso das revelações do Senhor". Portanto, Marcos copiou Pedro simplesmente com o propósito de não deixar que faltasse alguma coisa.

O Evangelho de Marcos, entretanto, é qualquer coisa menos um amontoado de reminiscências desconexas. Em anos recentes os estudiosos têm apreciado a história de Marcos mais claramente do que nunca. Ela é graciosamente composta, e suas riquezas ainda estão sendo exploradas. Por meio dessa composição bem cuidada. Marcos confere energia à mensagem que procura comunicar. Apenas umas poucas características podem ser aqui mencionadas:

a. Estrutura global. Depois da introdução em 1.1 -15, o Evangelho fica dividido em duas partes, com 8.27-30 formando a "dobradiça" bem no meio. A confissão de Pedro de ser Jesus o "Cristo" é o clímax da narrativa até aqui. Mas ela introduz uma dramática mudança: "Então começou ele a ensinar-lhes que era necessário que o Filho do homem sofresse muitas coisas, fosse rejeitado... [e] fosse morto (8.31). Esta nota do sofrimento vindouro tinha sido antes parte da história, porém não predita por Jesus. Agora a cruz começa a avultar, como se verá abaixo.

Num ou noutro lado desta "dobradiça", cada metade se distribui em três seções. Na primeira metade, cada uma dessas seções começa com uma história sobre os discípulos (1.16-20, 3.13-19, 6.6-13), e termina com um pequeno resumo incidente que encapsula a mensagem daquela seção: • 3.7-12: grandes multidões são atraídas a Jesus, que realiza curas e as ensina. Os demônios sabem quem Ele é (compare com 1.1). • 6.1-6: contrastando com 3.7-12, a cidade do lar de Jesus o rejeita, e Ele não faz nenhuma cura ali. O tom de conflito e oposição atravessa toda esta seção. • 8.22-26: esta cura em dois estágios (somente em Marcos) ilustra o que deve acontecer aos discípulos. Em toda esta seção eles têm-se esforçado para entender Jesus. Eles vêem o que Ele faz, mas não compreendem, como o homem que vê as pessoas que parecem árvores que caminham (8.24). Jesus restaura sua compreensão, e imediatamente segue-se a confissão de Pedro: "Tu és o Cristo" (8.29).

A segunda metade do Evangelho distribui-se, de igual modo, em três seções: 8.31-10.52 (terminando com a cura de um homem cego, como na seção

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precedente da primeira metade); 11.1-13.37 (enfocando a oposição e o conflito, como na seção do meio da primeira metade); e 14.1-16.8 (que conta a história da morte de Jesus, atingindo o clímax com a confissão do centurião, que nos leva diretamente de volta ao começo, 1.1,11).

b. Repetição e reminiscência. Freqüentemente Marcos faz com que a narrativa se repita, e essas repetições são vitais à sua mensagem. • Numa escala ampla, observamos as três ocasiões vitais em que Jesus é identificado como "o Filho de Deus", em conexão com uma palavra vinda diretamente do próprio céu: em 1.10,11 no seu batismo, em 9.7 na transfiguração, e em 15.39 pelo centurião em seguida ao episódio do véu do santuário "rasgar-se em duas partes de alto a baixo" (aqui o véu é "rasgado" como os céus "rasgaram-se" em 1.10—Marcos usa a mesma palavra). O testemunho divino é seguido pelo testemunho humano: os leitores somarão suas vozes à do centurião? • Numa escala menor, há as repetidas e miraculosas multiplicações dos pães (6.30-44; 8.1-10), repetidas curas de cegueira (7.31-37; 8.22-26; 10.46-52), e repetidos exorcismos (todos muito diferentes: 1.21-28; 5.1-20; 7.24-30; 9.14-29). Em todos estes casos os exemplos posteriores nos lembram os primeiros, e as diferenças enfatizam as diversas facetas do ministério de Jesus, ou os diferentes desafios enfrentados pelos discípulos, ou pelos leitores de Marcos. • Numa escala menor ainda, Marcos cria conexões sutis entre histórias que realçam aspectos de sua mensagem. Ele cria, por exemplo, uma comparação surpreendente entre o pobre menino possuído do demônio, no capítulo 9, e o outro jovem (rico, religioso, bem educado) que Jesus encontra no capítulo 10. Ambos foram alguma coisa "desde a infância"—um foi possuído do demônio, o outro foi obediente aos mandamentos (9.21; 10.20). Ambos, porém, são igualmente escravizados, um pelo mau espírito, o outro por sua riqueza; ambos podem ser libertados somente pelo poder direto de Deus (9.29; 10.27); em am-bos os casos os discípulos reconheceram sua própria incapacidade de fazer alguma coisa (9.28; 10.26).

Mas um é libertado, o outro não. E o que faz a diferença entre eles é a fé e a oração do pai: "Eu creio, ajuda-me na minha falta de fé" (9.24).

c. Justaposições criativas. A conexão entre estes dois "meninos" em capítulos adjacentes é também uma ilustração da "justaposição criativa". Marcos combina histórias, ou as apresenta lado a lado, sem fazer qualquer comentário explícito, mas permitindo que sejam interpretadas conjuntamente.

Um exemplo é a combinação da purificação do templo e da maldição da figueira estéril em 11.11-25. Marcos faz a narrativa juntando as histórias e entrelaçando-as—uma técnica que ele emprega também em 5.21-43 e 6.7-31. Cada história completa a mensagem da outra. A "figueira" foi uma das várias árvores usadas com freqüência como imagem para Israel. A inspeção do templo em 11.11 é seguida pelo exame da figueira em 11.12-14—e por sua maldição como sendo estéril. Então, a maldição é seguida pelo que usualmente chamamos de "purificação" do templo, embora ela seja mais um ato de julgamento. Aquele a quem pertence a "casa" (11.17) examinou-a e a encontrou faltosa.

No dia seguinte os discípulos notam que a figueira está seca. Um sinal agourento! E então Jesus lhes oferece um novo e radical ensino sobre a oração, que deixa totalmente de lado o templo, a "casa de oração para todas as nações"

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(11.22-25). Não ficamos absolutamente surpresos quando, mais tarde naquele dia, Jesus prediz a total destruição do templo (13.2).

Nenhuma das partes desta narrativa combinada teria o mesmo significado, se uma das partes não estivesse ali inserida. Exemplos desta técnica podem ser multiplicadas em outras partes do Evangelho de Marcos.

3. Marcos era um porta-voz persuasivo. O propósito de todo este escrito meticuloso era persuadir. Quem Marcos teria em mente? Os estudiosos não são concordantes. E possível que Marcos tivesse vários propósitos, tanto evangelísticos como pastorais. Sua meta global não é difícil de definir: ele desejava persuadir seus leitores a crer no "evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus" (1.1), e segui-lo.

Ele, na verdade, deu a seu livro o título: "Princípio do evangelho de Jesus Cristo" (1.1). As opiniões diferem sobre o significado da palavra "princípio" aqui. Refere-se ela apenas à sua introdução (1.1-15), ou a todo o livro? Uma vez que esta é a frase de abertura, parece mais provável que Marcos esteja se referindo a todo o livro como "o princípio do evangelho". Portanto, ele considera que seus leitores já estão cientes da pregação do "evangelho" e da comunidade de crentes que já o aceitaram. Ele deseja dizer-lhes como tudo isto começou.

Há outras indicações de que ele sabe que não está contando toda a história do "evangelho", e admite o conhecimento da história posterior entre seus leitores: • A promessa de João Batista em 1.8 de que Jesus batizaria com o Espírito Santo não se cumpre dentro de seu Evangelho. • De modo semelhante, a promessa de Jesus de transformar seus discípulos em "pescadores de homens" (1.17) não é cumprida em seu Evangelho. • Tampouco o é sua promessa em 14.28 de encontrá-los na Galiléia após a ressurreição (a menos que isto indique que o original de Marcos tivesse incluído a ressurreição). • Ele enfatiza a centralidade vital da pregação e ensino no ministério de Jesus Cristo ("Para isso é que eu vim", 1.38), porém registra pouco mais do que resumos de seu conteúdo. Isto sugere que tanto ele como seus leitores sabiam que esses registros do ensino de Jesus estavam disponíveis em algum outro lugar. • A apresentação dos discípulos realça a fraqueza destes, sua falta de compreensão, medo e infidelidade em tal extensão que parte de sua mensagem parece ser: pense apenas no que Jesus seria capaz de fazer mais tarde com este material humano tão pouco promissor, depois que o Espírito foi derramado! Esses discípulos—particularmente Pedro—tornaram-se grandes líderes da igreja. O próprio Marcos ministrou ao lado deles, e sabia por sua própria experiência que "para Deus ttido é possível" (10.27). A falha não é a última palavra. • Este sentido de história contínua é claramente discernível bem no final, com o registro do medo e desobediência em 16.8. Poderia "a boa nova" terminar desta forma? Tanto Marcos como seus leitores sabem que não. Longe disso!

A estratégia de Marcos, pois, é mostrar "o princípio", as fundações, de sorte que os leitores possam compreender por que a mensagem de Jesus Cristo é a "boa nova", e que ela, em essência, significa segui-lo. Voltamos finalmente a um breve resumo de sua mensagem.

A mensagem de Marcos

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Costa do mar da Galiléia. Depois da prisão de João Batista, Jesus foi para a Galiléia, e boa parte de seu ministério concentrou-se no lago e na cidade de Cafarnaum.

Há muitos aspectos na mensagem de um livro tão brilhante. Contudo, podemos resumir seus principais elementos como segue:

1. O Reino de Deus Marcos resume a pregação de Deus como uma mensagem sobre o Reino de Deus: "Depois de João ter sido preso, foi Jesus para a Galiléia, pregando o evangelho de Deus, dizendo: 'O tempo está cumprido e o reino de Deus está próximo; arrependei-vos e crede no evangelho.'" (Marcos 1.14,15). Aqui "evangelho" corresponde a "boa nova". Assim, Marcos liga o "evangelho" com a mensagem sobre a proximidade do Reino de Deus, anunciado por Jesus.

Vamos considerar o significado de "Reino de Deus" no capítulo sobre Mateus, porque Mateus faz dele uma característica mais proeminente do ensino de Je-sus do que Marcos. Enquanto Mateus se refere ao "Reino do céu" cinqüenta vezes, Marcos o menciona somente quinze vezes.

"O Reino de Deus" projetava-se como um futuro brilhante para os judeus (compare com Marcos 15.43). Quando o Reino viesse, ele significaria o esmagamento dos inimigos de Deus e a confirmação de Israel como povo de Deus. Contra este pano de fundo, podemos resumir a mensagem de Marcos como segue: • O Reino está perto, prestes a chegar (1.15)! • Ele está perto porque Jesus veio (11.10; compare com 2.18-22). • O processo que ensejará seu pleno aparecimento já foi iniciado (4.26,30). • Contra toda a expectativa presente, é difícil entrar no Reino (10.24). Esta entrada não é certamente automática. Uma ação drástica pode ser necessária (9.47). Na realidade, a entrada está aberta somente àqueles que deixaram tudo e seguiram Jesus (10.15,21).

2. A morte de Jesus Como observamos acima, a ênfase de Marcos sobre a morte de Jesus é uma das

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mais admiráveis características de seu Evangelho pioneiro. O que ele ensina a respeito dela?

O Evangelho inicia com um conflito. O conflito entre Jesus e o sistema religioso vigente é apontado logo cedo, como em Marcos 1.22: "Maravilhavam-se da sua doutrina, porque os ensinava como quem tem autoridade, e não como os escribas." Torna-se imediatamente claro que este tom de autoridade será olhado como blasfemo pelos fariseus (2.6,7). E quando Jesus alega sua independência e autoridade de associar-se com os "pecadores" (2.15-17), e de reordenar as regras prescritas para o jejum (2.18-22), a observância do sábado (2.23-28), e a cura (3.1-5), o resultado é imediato e execrável: "Retirando-se os fariseus, conspiravam logo com os herodianos, contra ele, em como lhe tirariam a vida" (3.6). Ante a menção de colaboração entre fariseus e herodianos neste plano (os quais viviam geralmente brigando entre si), Marcos salienta a força da oposição a Jesus.

O conflito é mais adiante realçado pelo incidente em 3.20-30, onde os "professores da lei" acusam Jesus de estar possuído do demônio, e Ele, em contrapartida, acusa-os de blasfemar contra o Espírito Santo. Com efeito, eles o estavam acusando de ser um falso profeta, para quem a penalidade era a morte (Deuteronômio 13.1-5), ao passo que Ele os acusava de rebelião arrogante con-tra o Senhor, como aquela dos filhos de Eli, para a qual nenhuma expiação era possível (1 Samuel 2.25; 3.13,14). Indagamo-nos por quanto tempo uma resolução final pode ser retardada.

Não obstante, de fato nenhuma tentativa houve para matar Jesus, uma vez que Ele estava na Galiléia. Marcos faz-nos saber que a oposição a Jesus vem de Jerusalém (3.22), e nos relembra isto novamente no capítulo 7, quando "os fariseus e alguns escribas, vindos de Jerusalém" (7.1) acusam Jesus de ensinar a impureza, e Ele replica que eles ensinam a desobediência (7.5-9).

Com este conflito tramado nos bastidores, não nos surpreende a reação dos discípulos quando Jesus decide viajar a Jerusalém: eles "se admiravam e o seguiam tomados de apreensões" (10.32).

Por esse tempo, contudo, surgem dois desdobramentos adicionais. Primeiramente, a oposição a Jesus se estende. Sua família pensa que Ele está louco (3.21). Os gerasenos pedem que Jesus se afaste deles (5.17). Sua própria cidade ficou escandalizada com seus atos (6.3). Até os discípulos estavam arriscados a ser contaminados com o "fermento dos fariseus" (8.15), e Pedro tenta fazer o trabalho de Satanás contra Jesus (8.33). A desgraça é que esta é uma "geração adúltera e pecadora" (8.38), e todos os que a ela pertencem— inclusive os discípulos de Jesus—se oporão a Ele finalmente.

O segundo desdobramento ocorre repentina e inesperadamente quando Pedro, falando por todos os discípulos, declara que Jesus é "o Cristo" (8.29). Jesus imediatamente anuncia sua morte próxima: "Então começou ele a ensinar-lhes que era necessário que o Filho do homem sofresse muitas coisas, fosse rejeitado pelos anciãos, pelos principais sacerdotes e pelos escribas, fosse morto e que depois de três dias ressuscitasse" (8.31). Assim, o que os fariseus e herodianos estão tramando por suas próprias razões deve acontecer, porque "está escrito do Filho do homem que ele deva padecer muito e ser aviltado" (Almeida, ed. 1948).

A ação transfere-se assim para Jerusalém com um espantoso sentido de inevitabilidade. Por razões inteiramente humanas e políticas, as autoridades querem matar Jesus, enquanto Ele caminha determinado em direção à sua

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armadilha por razões inteiramente celestiais e escriturísticas. Ele reitera a predição de seu sofrimento, morte e ressurreição iminentes em três momentos seguidos antes de chegar finalmente a Jerusalém (9.31; 10.32-34; 10.45).

O último destes pronunciamentos é particularmente significativo: "Quem quiser tornar-se grande entre vós, será esse o que vos sirva; e quem quiser ser o primeiro entre vós, será servo de todos. Pois o próprio Filho do homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos" (10.43-45). Somente aqui Marcos nos oferece a compreensão das Escrituras, nas quais estava escrito que o Cristo devia morrer. Nesta afirmação Jesus recorre à expressão de Isaías 53, e claramente se identifica como o "servo do Senhor", que carrega os pecados do povo de Deus enquanto é "desprezado e rejeitado" e conduzido a uma morte violenta (53.3ss).

Definitivamente, o conflito com as autoridades alcança uma nova intensidade quando Jesus começa a ministrar em Jerusalém (capítulos l i e 12). Mas a história tem uma nova e dramática reviravolta quando Jesus repentinamente anuncia que sua morte não será causada apenas pela oposição das autoridades religiosas: um dos Doze vai traí-lo. A identidade do traidor não é revelada, e todos os discípulos professam total lealdade. Contudo, no final, não há muita diferença entre Judas, que o abandonou e aliou-se à oposição, e os demais, que o abandonaram e fugiram. E assim, no final das contas, não há muita diferença entre os discípulos que consentem em sua morte, e seus francos opositores que a engendram.

A questão é que todos, quer discípulos ou inimigos, estão igualmente necessitados de que alguém morra por eles, que dê "sua vida em resgate de muitos" para o perdão dos pecados. Para Marcos é primacialmente sua morte que valida a alegação de que Jesus é "o Cristo, o Filho de Deus" (1.1). Logo após sua morte, o centurião postado junto à cruz se convence da verdade: "Verdadeiramente este homem era Filho de Deus" (15.39).

3. O custo do discipulado Já tivemos a oportunidade de considerar o interesse de Marcos nas dificuldades e desafios do discipulado, bem como sua simpatia ante as fraquezas dos primeiros apóstolos. Esta simpatia, porém, não o leva a diminuir a exigência imposta aos discípulos de Jesus. Isto pode ter sido uma tentação para ele, naqueles dias iniciais quando ele fugiu da Panfília e voltou a Jerusalém. A fé cristã exige realmente tal sacrifício?

Mas, ao tempo em que escreveu seu Evangelho, Marcos teve de enfrentar e superar seu medo; e, talvez como resultado de sua batalha, ele apresenta mais agudamente do que outros evangelistas o alto custo requerido dos seguidores de Jesus:

"Então, convocando a multidão e juntamente os seus discípulos, disse-lhes: 'Se alguém quer vir após mim, a si mesmo se negue, tome a sua cruz e siga-me. Quem quiser, pois, salvar a sua vida, perdê-la-á; e quem perder a vida por causa de mim e do evangelho, salvá-la-á'" (8.34,35).

Jesus faz esta convocação logo depois de anunciar sua própria morte pela primeira vez. Seus discípulos devem seguir o mesmo caminho, levando sua cruz, prontos para perder suas vidas por Ele e pelo evangelho. O título da autobiografia de Frank Chikane, o Secretário Geral da Concílio Africano de Igrejas, será também o lema de suas vidas: Minha Vida Não Me Pertence!

O significado desta auto-renúncia é explanado mais claramente em Marcos

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10.17ss. O jovem rico é desafiado: "Vai, vende tudo o que tens, dá-o aos pobres, e terás um tesouro no céu; então vem, e segue-me" (10.21). Ele, porém, relutou. Pedro afirma: "Eis que nós tudo deixamos e te seguimos" (10.28), e então ouve a promessa de Jesus de que "ninguém há que tenha deixado casa, ou irmãos, ou irmãs, ou mãe, ou pai, ou filhos, ou campos, por amor de mim e por amor do evangelho, que não receba, já no presente, o cêntuplo de casas, irmãos, irmãs, mães, filhos e campos, [e] com [eles] perseguições; e no mundo por vir a vida eterna" (10.29,30).

Os discípulos viviam numa cultura em que as raízes do lar e da família eram muito importantes. Na verdade, os judeus acreditavam que a terra de sua família fora dada a eles por Deus, e assim, basicamente, não deveria ser doada ou vendida. Apesar disso, Jesus os convida a dar as costas a tudo por sua causa. É verdade que Ele promete que eles receberão outro tanto de volta. Porém o que eles receberão não é o mesmo que eles abandonam. Eles abandonam suas famílias humanas, e recebem a família de Deus (3.34,35). E também sofrerão "persegui-ções", porque estarão desafiando uma "geração adúltera e pecadora", e isto lhes acrescenta mais do que as coisas a que renunciam.

Nem todo cristão é instado a deixar lar e família por causa de Jesus. Porém Marcos foi. Ele teve de deixar a segurança e riqueza do lar de sua família em Jerusalém e viajar, primeiro com Barnabé a Chipre, e depois disso não sabemos aonde, exceto que incluía a Ásia Menor, e terminou em Roma com Pedro e Paulo. Ele se tornou um "pescador de homens" ao lado eles, estendendo as mãos, como seu Senhor, aos necessitados e perdidos, esquecido de si mesmo, renunciando a todas as coisas para que possa receber muito mais. E ele também atrai pessoas a Cristo, através de seu soberbo Evangelho, que fala tão vividamente hoje como falou a Mateus e Lucas quando eles estavam buscando inspiração para seu próprio trabalho.

Leitura adicional

Menos exigente: Donald English, The Message of Mark. The Mystery of Faith (série The Bible Speaks

Today) (Leicester: IVP, 1992) R. T. France, Divine Government. God's Kingship in the Gospel of Mark (Londres: SPCK,

1990)

Mais exigente, obras eruditas: Ernest Best, Mark. The Gospel as Story (Edimburgo: T. & T. Clark, 1983) Adela Yarbro Collins, The Beginning of the Gospel. Probings of Mark in Context

(Minneapolis: Fortress, 1992) Morna D. Hooker, The Message of Mark (Londres: Epworth Press, 1983) Jack D. Kingsbury, Conflict in Mark. Jesus, Authorities, Disciples (Minneapolis: For-

tress, 1989)

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Mateus e sua Mensagem Percorria Jesus toda a Galiléia, ensinando nas sinagogas, pregando o evangelho do reino e curando toda sorte de doenças e enfermidades entre o povo. (Mateus 4.23)

Se o de Marcos é o Evangelho de Cristo, o Servo Sofredor, e o de Lucas o Evangelho de Cristo, o Salvador universal, o de Mateus é o Evangelho de Cristo, o Rei que governa. O "Reino do céu" é o grande tema do Evangelho de Mateus, mas para Mateus sua importância repousa na identidade de Jesus. Jesus é o Rei, que, por seu nascimento, por seu batismo, pela escolha e ensino dos discípulos, por suas obras de poder e misericórdia, e supremamente por sua morte e ressurreição, fez do Reino do céu tanto uma experiência presente para ser desfrutada como uma esperança futura para ser esperada. (Mateus segue o cos-tume judaico de referir-se ao "Reino do céu" e não ao "Reino de Deus".)

Durante séculos os cristão acreditaram que o Evangelho de Mateus tinha sido o primeiro a ser escrito, e, por conseguinte, o mais importante dos quatro. Porém nos últimos 150 anos este ponto de vista tem sido amplamente abandonado, e muitos estudiosos—não todos—hoje consideram o de Marcos como o primeiro Evangelho escrito. O argumento que provocou esta mudança de perspectiva pode ser facilmente exposto. Dos 662 versículos de Marcos, cerca de 600 aparecem também em Mateus. Faz pouco sentido imaginar que Marcos copiou 600 versos de Mateus, acrescentando apenas alguns outros poucos, publicando-o como um Evangelho separado. E mais plausível admitir que Mateus usou Marcos como base de uma produção de maior vulto. Seguindo basicamente o modelo de Marcos, Mateus suplementa-o com material adicional que torna seu Evangelho quase duas vezes mais extenso que o de Marcos (1069 versículos no total).

Em virtude do seu íntimo relacionamento com Marcos, pode-se identificar alguns dos temas mais sensíveis ao coração de Mateus, que certamente dedicou especial atenção ao material escolhido, sobre o qual acrescenta seu relato.

Quem era Mateus? Como Marcos, ele mantém silêncio sobre sua própria identidade. Ele era claramente um professor talentoso, que almejou comunicar o ensino de Jesus e incentivar a obediência a ele. Isto, porém, significava concentrar sua atenção em Jesus e evitá-la para si mesmo. Sobre isto ele registra as próprias palavras

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de Jesus: "Nem vos chameis mestres, porque um só é o vosso Mestre, que é o Cristo. Porém o maior dentre vós será vosso servo. E o que a si mesmo se exaltar será humilhado; e o que a si mesmo se humilhar será exaltado" (23.10-12). Este foi o modelo adotado por Mateus, pois não há nenhuma indicação de autoria dentro do seu Evangelho.

Desde o início, contudo, o título "Segundo Mateus" foi vinculado ao seu Evangelho por outros. E precisamente porque Mateus é uma figura tão obscura entre os apóstolos, é difícil saber por que seu nome foi usado, a menos que houvesse alguma sólida razão para a tradição.

O primeiro testemunho escrito vem de Papias, bispo de Hierápolis, cuja "Explanação das Palavras do Senhor" foi publicada por volta de 130 d.C. Por muito tempo ele confundiu os estudiosos com seu comentário: "Mateus organizou [ou 'colecionou'] as palavras do Senhor em dialeto [ou 'estilo'] hebraico, e cada qual as interpretou da melhor maneira que pôde." De fato, parece improvável que o Evangelho de Mateus tenha sido originalmente escrito em hebraico; ele não contém nenhuma das marcas típicas que possam sugerir isto. Entretanto, apesar do testemunho confuso de Papias, ele firmemente considera Mateus o autor deste Evangelho.

Alguns estudiosos, contudo, rejeitaram este antigo testemunho, principalmente em razão de Mateus, que foi um dos apóstolos, dificilmente ter de depender tão amplamente do Evangelho de Marcos, que não era apóstolo. Esta objeção, porém, a. não leva em conta a extensa capacidade literária de Marcos ao criar a f o r m a do Evangelho, b. não admite a real possibilidade de que Mateus quis endossar o trabalho de Marcos, que foi baseado na pregação de Pedro, e c. subestimar em que extensão o Evangelho de Mateus é muito diferente do de Marcos. Ele não é de modo algum apenas uma expansão ou suplemento do Evangelho de Marcos, mas conta a história no feitio bem distinto de Mateus.

O que sabemos sobre Mateus? Podemos traçar quaisquer aspectos sob os quais ele foi preparado por Deus para ser o autor deste Evangelho? Dispomos de pouco conhecimento seguro a respeito dele, mas podemos reunir mais do que parece à primeira vista quando lemos seu Evangelho à luz do que sabemos.

1. Mateus era judeu. "Mateus" é um nome hebraico. Vários de seus companheiros apóstolos tinham tanto nome hebraico como grego, significando suas duplas raízes culturais. Porém o outro nome de Mateus também era hebraico. Ele é chamado "Levi" por Marcos e Lucas em suas narrativas da escolha dos apóstolos por Jesus (Marcos 2.14; Lucas 5.27-29). Seu profundo interesse pelo Velho Testamento é evidente em seu Evangelho, como podemos constatar. Um dos seus propósitos ao escrever foi indubitavelmente persuadir seus compatriotas judeus a crerem que Jesus é "o Cristo, o Filho do Deus vivo" (16.16).

Mas antes em sua vida Mateus foi um judeu incomum. Porque—

2. Mateus era um cobrador de impostos. Isto é revelado numa passagem em que ele figura em seu Evangelho. "Partindo Jesus dali, viu um homem, chamado Mateus, sentado na coletoria, e disse-lhe: 'Segue-me!' Ele se levantou e o seguiu" (Mateus 9.9). Por meio de Marcos e Lucas ficamos sabendo que foi Mateus quem ofereceu um banquete, no qual

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Acréscimos de Mateus ao Evangelho de Marcos M a t e u s p a r e c e ter s u p l e m e n t a d o M a r c o s d e l i b e r a d a m e n t e nos segu in te s p r inc ipa i s episódios: * Enquanto Marcos se refere de passagem ao ambiente da famíl ia de Jesus (6.3), Mateus começa a história com o nascimento de Jesus, dedicando dois capítulos inteiros ao evento. * Enquanto Marcos se refere muito brevemente e m i s t e r i o s a m e n t e às t e n t a ç õ e s de J e s u s (1.12,13), Mateus narra toda a história (4.1-11). * Marcos menciona freqüentemente que Jesus ensinava as multidões reunidas em torno dele (ex.: 1.21; 2.13; 4.1; 6.6; 6.34), porém registra surpreendentemente pouca coisa do conteúdo de seu ensino. Mateus supre esta falta incluindo cinco grandes sermões de Jesus, possivelmente coleções dos ditos de Jesus cuidadosamente compilados ou por Mateus ou numa data ante-rior: 1. 5.3-7.27, o "Sermão do Monte"

2. 10.5-42, instruções para a missão dos Doze 3. 13.3-52, parábolas do Reino 4. 18.2-35, instruções sobre a vida da igreja 5. 23.1-25.46, o julgamento futuro e a salvação * A narrativa de Marcos sobre a ressurreição é muito breve e não inclui n e n h u m a apar ição de Jesus ressurreto. Mateus continua a história até ao ponto em que os discípulos encontram Jesus na Galiléia (predito em Marcos 14.28, mas não registrado ali), e envia-os à sua futura missão (Mateus 28.1-20). Além disso, há numerosos pequenos acréscimos, alguns dos quais comenta remos no curso deste capítulo. Nem todos os e s tud iosos ace i t am que M a t e u s deliberadamente suplementou Marcos. Recentemente, um estudioso evangélico, John Wenham, publicou uma pesada defesa do ponto de vista de que Mateus escreveu antes de Marcos (veja "Leitura adicional" no final deste capítulo).

Jesus e seus discípulos encontraram "muitos publicanos e pecadores" (9.10)— antes companheiros de Mateus. Ele chama a si mesmo "Mateus, o publicano" na lista dos apóstolos, em Mateus 10.3.

O que significava ser um cobrador de impostos naquele tempo? O Império Romano tinha elaborado sistemas de cobrança de impostos, que variavam de um lugar para outro. Naqueles dias vários sistemas operavam na Palestina; a Judéia, ao sul, era diretamente governada por Roma, e isso significava que o governador romano e seus servidores civis eram responsáveis pela coleta de todos os impostos principais. Dois destes se destacavam, o imposto por cabeça arrecadado de todos os adultos e o imposto sobre a terra. Entretanto, os direitos para coletar alguns impostos menores—taxas aduaneiras devidas nos portos e nas principais estradas—eram arrematados pelos maiores licitantes.

Zaqueu havia adquirido o direito de coletar esses impostos em Jericó (Lucas 19.1-10). Ele era chamado "maioral dos publicanos" e "rico" (19.2). Podemos imaginar que ele comandava uma organização de bom porte para cobrir toda a área de Jericó, por onde passavam muitas mercadorias.

A Galiléia, ao norte, era governada por Herodes Antipas, sob a autoridade direta de Roma. Aqui, Herodes era responsável pela cobrança dos impostos e pela remessa anual a Roma de uma soma global fixa. Não sabemos se ele cobrava os mesmos tipos de impostos dos romanos da Judéia, mas é claro que usava uma grande força de trabalho para efetuar a coleta. "Muitos" publicanos se reuniram na casa de Mateus para encontrar-se com Jesus, e podemos imaginar que somente os da vizinhança imediata de Cafarnaum teriam comparecido.

Não sabemos se Herodes empregou todos os seus cobradores de impostos diretamente como servidores civis, ou se, como os romanos, leiloou os direitos para a cobrança. Uma rápida referência de Mateus "aos que serviam" Herodes, em 14.2 (somente em Mateus), pode sugerir que ele tenha sido diretamente empregado pelo rei: teria ele ouvido de um de seus antigos colegas o que Herodes estava dizendo a respeito de Jesus?

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Mas, quer como empregados ou como avulsos, os cobradores de impostos eram sumamente impopulares e vistos como traidores da causa judaica. Muitos deles usavam sua posição para levantar dinheiro extra para si mesmos (naturalmente, era este um dos principais motivos para comprar os direitos de cobrança). Porém, mesmo que não o fizessem, eram vistos como colaboradores dos romanos que ocupavam o poder, ou de Herodes, que somente governava com permissão de Roma e não era judeu.

Os judeus somente assumiriam tal emprego se amassem mais o dinheiro do que sua herança nacional como judeus. Os rabinos ensinavam que era perfeitamente admissível enganar um cobrador de impostos. Eles colocavam a "cobrança de impostos" ao lado da prostituição entre as ocupações que nenhum judeu cumpridor da lei podia aceitar—uma vez que isso significava o mesmo que tratar com gentios e trabalhar aos sábados—mantendo-se totalmente separado da ganância e da injustiça.

Assim, pois, os publicanos formavam uma classe à parte, banida, afastada da sociedade judaica. Sua presença nas sinagogas seria inaceitável. Assim, em sua maioria, os publicanos, por estas várias razões, tinham pouco interesse na Lei e na adoração do Deus de Israel. Eles punham seus corações nas riquezas terrenas, não nas espirituais.

De tudo isto podemos formar um quadro muito claro de Mateus antes de seu encontro com Jesus. Mas a habitual negligência dos cobradores de impostos de tradição judaica dificilmente se enquadra no Evangelho de Mateus, que é abundante em citações do Velho Testamento e repeito pela Lei. Como Mateus conseguiu desenvolver isto?

3. Mateus experimentou uma conversão revolucionária. O encontro de Mateus com Jesus transformou sua vida. Em alguns casos, seus companheiros de apostolado continuaram praticando suas profissões depois de se tornarem discípulos de Jesus. Pedro manteve sua casa em Cafarnaum, e provavelmente continuou em seu negócio de pescaria (compare com João 21.3). Porém Mateus deixou definitivamente seu emprego de cobrador de impostos.

Concluímos isto com base em dois pontos de evidência. Primeiro, com ele no grupo dos doze apóstolos estava "Simão o Zelote" (Mateus 10.4)—um ex-membro do movimento revolucionário que se opunha à submissão a Roma com violência. Antes de se encontrarem com Jesus, Simão teria visto Mateus com profundo ódio como um colaborador traiçoeiro. Mateus intencionalmente menciona tanto sua profissão como a de Simão em sua lista de apóstolos, em 10.2-4, com o propósito de sublinhar a reconciliação de ambos. Eles não poderiam estar juntos no apostolado, se os dois não tivessem abandonado suas vidas anteriores para seguir Jesus.

Segundo, unicamente Mateus se refere ao ensino direto de Jesus sobre o pagamento de imposto (17.24-27). Apenas ele registra este incidente, em que Jesus paga o imposto para o templo (um encargo de todos os judeus adultos para manter o templo e seus serviços), mandando Pedro procurar uma moeda na boca de um peixe. A interpretação desta passagem é controvertida, porém o mais provável é que Jesus está declarando a isenção fundamental, tanto dele próprio como de seus seguidores, em relação a quaisquer impostos obrigatórios. Eles são os filhos de Deus, que é o Rei de toda a terra. Por isso, eles estão "livres" de tal sujeição. Não obstante, Deus provê o meio para o pagamento de tais impostos, apenas para evitar um insulto desnecessário à sociedade.

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P o d e m o s suspe i ta r q u e M a t e u s inc lu iu es ta h is tór ia p o r q u e ela s ign i f i cava m u i t o p a r a ele. E l e f o i l ibe r tado da i m p o s i ç ã o de t o d o aque le s i s t e m a — n a rea l idade , l iber tado de servir a M a m o m , o d e u s do d inhe i ro (6 .24) .

V a m o s cons ide ra r a segui r c o m o a c o n v e r s ã o de M a t e u s p o d e tê - lo a f e t ado , b e m c o m o ao E v a n g e l h o q u e ele e sc reveu . M a s va l e a p e n a pe rgun t a r t a m b é m a respe i to des sa c o n v e r s ã o e m si: Por q u e ele e s t ava tão d i spos to a a b a n d o n a r seu n e g ó c i o n a q u e l e dia, q u a n d o ouv iu a p e n a s duas p a l a v r a s d e Jesus : " S e g u e -m e " ?

A respos ta p o d e estar e m outra f igura que d e s e m p e n h a u m pape l p reponderan te e m seu E v a n g e l h o :

4. E provável que Mateus tenha sido profundamente influenciado por João Batista. E s t a poss ib i l i dade é especu la t iva , m a s a e v i d ê n c i a a p o n t a n e s t a d i reção .

S o m e n t e M a t e u s inc lu i e m seu E v a n g e l h o a p a r á b o l a dos do i s f i lhos , e m 21 .28 -32 . Ne la , o p r i m e i r o f i lho , q u e se r e c u s a a t r aba lha r n a v i n h a de seu pai , m a s depo i s se a r r epende e vai , é i den t i f i cado c o m o " p u b l i c a n o s e mere t r i ze s " , q u e ace i t a r am a p r e g a ç ã o de J o ã o Bat i s ta . E l e s e s t ão ago ra " e n t r a n d o no r e i n o de D e u s à f r e n t e d o s " l íderes re l ig iosos , q u e " n ã o se a r r e p e n d e r a m n e m c r e r a m " e m J o ã o . " A v i n h a " n o Velho T e s t a m e n t o é u m a f i g u r a de Israel , o p o v o de D e u s (p.ex. : Isa ías 5 .1-7) .

R e f l e t e is to a p róp r i a expe r i ênc ia de M a t e u s ? E s t a v a e le en t re os c o b r a d o r e s de i m p o s t o s que, c o n f o r m e Lucas , se a p r e s e n t a r a m p a r a ser ba t i z ados p o r J o ã o ? Q u a n d o e les p e r g u n t a r a m a J o ã o c o m o d e v e r i a m m o s t r a r seu a r r e p e n d i m e n t o , e le lhes disse: " N ã o cobre i s m a i s do q u e o e s t i pu l ado" (Lucas 3 .13) .

O a r r e p e n d i m e n t o pa ra M a t e u s p o d i a ter s ido m a i s p r o f u n d o do q u e a p e n a s cor ta r o q u e c o b r a v a a mais . Es t a e ra t a lvez o p o n t o e m que ele se t o r n o u m a i s sé r io c o m respe i to à Lei , c o n v e n c i d o p o r J o ã o de sua d e s c o n s i d e r a ç ã o p o r ela, p ron to pa ra es tudá- la e obedece r a e la de u m a n o v a f o r m a — n a rea l idade , p r o n t o

Mateus, como Pedro, vivia em Cafarnaum. Excavações realizadas na cidade descobriram o lugar que foi conhecido nos tempos antigos como a casa de Pedro, onde Jesus deve ter estado (Mateus 8.14).

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para entrar na vinha, arrependido de sua desobediência. Ele teria ainda ouvido o testemunho de João sobre Jesus: "Aquele que vem depois de mim é mais poderoso do que eu, cujas sandálias não sou digno de levar" (Mateus 3.11), e teria sido encaminhado por ele. Mateus ouviu Jesus pregar quando Ele "percorria toda a Galiléia" (4.23) repetindo a mensagem de João: "Arrependei-vos, porque está próximo o reino dos céus" (4.17; compare com 3.2). Gradualmente ele foi sendo preparado para alcançar um degrau posterior, de João Batista a Jesus.

Assim, parece provável que a conversão de Mateus passou por dois estágios, primeiro o da Lei, induzido por João Batista, e depois o de Cristo, movido pela convocação de duas palavras. De repente Mateus se decidiu a abandonar tudo e seguir Jesus. Em poucas semanas ele se viu incluído numa missão com seus companheiros discípulos, avisado de que não fizesse nenhuma provisão para a viagem, nenhuma proteção contra o perigo, nem prévio arranjo para hospedagem (Mateus 10.9-11). Mateus enfatiza muito mais do que Marcos e Lucas o auto-sacrifício e desamparo que Jesus exigiu de seus discípulos naquela missão. Isto deve ter sido extremamente difícil para Mateus e deve ter evidenciado para ele a enorme mudança que teve lugar em sua vida. Da riqueza para a pobreza deliberada, da autodeterminação para o discipulado, da segurança para a vida perigosa da fé, e, acima de tudo, do eu para Cristo—esta foi a conversão de Mateus.

Podemos nós perceber outros aspectos sob os quais esta conversão influenciou tanto Mateus como seu Evangelho?

O novo Mateus Três características importantes do Evangelho de Mateus podem ser delineadas a partir da sua experiência de conversão.

1. Ele aprendeu o que é misericórdia e perdão. Estas duas virtudes são temas importantes de seu Evangelho. Mateus usa o

termo "dívidas", e não "pecados" na versão da Oração do Senhor que registra: "Perdoa-nos as nossas dívidas, assim como nós temos perdoado aos nossos devedores" (Mateus 6.12; compare com Lucas 11.4). Como cobrador de impostos, ele nunca perdoara dívidas—e como poderia? Mas chegou a reconhecer a enorme dívida não paga que tinha para com Deus, a dívida do amor e da obediência.

Apenas Mateus registra a parábola do credor incompassivo (Mateus 18.23-35). Em sua vida pregressa ele deve ter exercido com freqüência o papel do servo: "Agarrando-o, o sufocava, dizendo: 'Paga-me o que me deves'" (18.28). Mateus talvez nunca tenha agido tão violentamente, mas devia estar acostumado a pressionar as pessoas a pagarem, mesmo quando elas não tinham condições de fazê-lo. Agora, entretanto, ele aprendeu a lição dessa parábola. De muito maior importância é a dívida para com Deus, e nós devemos mais, muito além do que jamais poderíamos pagar. Se aceitamos o perdão que Ele nos oferece como dádiva, podemos recusar-nos a perdoar os outros?

De igual modo, somente Mateus registra a parábola dos trabalhadores na vinha (20.1-16). Indubitavelmente, ele deve ter ouvido muitas vezes tais queixas de parcialidade, e talvez ele próprio tenha tratado pessoas injustamente. Agora, porém, o paradoxo o impressiona profundamente: injustamente, com

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parcialidade, ele recebeu a benevolência de Deus, que não exige injustamente, mas injustamente concede muito mais do que merecemos (20.15).

Deve ter havido uma profusão de perdões dados e recebidos entre os apóstolos quando juntamente se instalaram em sua nova vida como discípulos de Jesus. Mateus veio de Cafarnaum, como Pedro e André, e Tiago e João. Ele era o "seu" cobrador de impostos—ou, de qualquer forma, conhecido deles como tal. Pode ter havido velhas discussões por acertar, pecados a confessar, injustiças a reparar. Certamente Mateus e Simão o Zelote tinham muito de que se arrepender mutuamente.

Um versículo parece ter significado muito para Mateus em conexão com tudo isto. Duas vezes ele registra a citação feita por Jesus de Oséias 6.6: "Misericórdia quero, e não sacrifício." Nenhum dos outros evangelistas menciona o uso que Jesus fez deste versículo. Na primeira ocasião, Mateus relata como Jesus citou este versículo em sua própria casa, durante o banquete que ofereceu aos seus antigos colegas cobradores, logo depois de ter-se tor-nado discípulo. Alguns fariseus locais expressaram claramente sua desaprovação ao evento perguntando a outros discípulos de Jesus: "Por que come o vosso Mestre com os publicanos e pecadores?" (9.11). Mateus descobriu que os fariseus não gostavam de Jesus tanto quanto não gostavam dele.

A réplica de Jesus penetrou claramente em sua memória: "Os sãos não precisam de médico, e sim os doentes. Ide, porém, e aprendei o que significa: 'Misericórdia quero, e não sacrifício'; pois não vim chamar justos, e sim pecadores [ao arrependimento]" (9.12,13). Ele tinha recebido esta misericórdia de Jesus—não apenas porque Jesus estava desejoso de associar-se com ele, mas muito mais porque, por meio de Jesus, ele ficou sabendo que sua enorme e inestimável dívida tinha sido paga. Os anos que ele viveu em desobediência e ganância tinham sido perdoados.

Mateus registra o uso posterior de Oséias 6.6 por Jesus, quando Ele estava sendo criticado pelos fariseus por permitir que seus discípulos colhessem espigas de milho no sábado (12.1,2). Após relacionar alguns exemplos similares de quebra do sábado (12.3-6), Jesus conclui: "Se vós soubésseis o que significa: 'Misericórdia quero, e não sacrifício', não teríeis condenado a inocentes. Porque o Filho do homem é senhor do sábado" (12.7,8). A misericórdia que Mateus tinha com freqüência negado como cobrador de impostos ocupa agora o centro do palco em sua vida. Mas posteriormente ele aprendeu que Jesus é aquele que decide o que é misericórdia e como ela será mostrada—na realidade, como textos como Oséias 6.6 devem ser interpretados. Jesus—o "Filho do homem"— é o Senhor que decide tais coisas. Jesus, como o intérprete da Escritura, é o tema central no Evangelho de Mateus, como veremos.

2. Ele desenvolveu uma nova visão do Rei. Não sabemos se Mateus , o cobrador de impostos, tinha sido alguma vez um "herodiano" entusiasta—"herodiano" era o nome dado ao partido monarquista que apoiava a dinastia de Herodes (compare com Mateus 22.16; Marcos 3.6). Mas, se ele chegou a ser, sua conversão assinalou uma dramática mudança também aqui. Mateus, o evangelista, não tinha a mínima confiança em autoridade política. Na verdade, era bem o contrário. Ele registra o dissabor de Jesus a respeito de Israel mais enfaticamente do que os outros evangelistas: "Vendo ele as multidões, compadeceu-se delas, porque estavam aflitas e exaustas como ovelhas que não têm pastor" (9.36). O governo de Herodes deixou o povo

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efetivamente desamparado, aflito e perdido. Mas Deus agiu para salvar seu povo. Mateus apresenta Jesus, em contraste

com Herodes, como o verdadeiro Rei de Israel. Logo no início, ele dá a Herodes seu título completo, "rei Herodes", quando ele introduz "o recém-nascido Rei dos judeus" (2.1,2). Herodes percebe a ameaça à sua posição e faz o máximo que pode para matar esse Rei rival (2.16-18). Mas fracassa—e fracassa também em adiar sua própria e próxima morte, que Mateus registra talvez com uma ponta de sarcasmo (2.19).

Os estudiosos têm comentado fartamente a proeminência do tema da realeza em Mateus. Sua importância é assinalada logo no primeiro versículo de Mateus, que dá seu próprio título ao Evangelho: "Livro da genealogia de Jesus Cristo, filho de Davi, filho de Abraão" (1.1).

Davi e Abraão são destacados como principais ancestrais de Jesus. A genealogia que se segue em Mateus 1.2-17 é então cuidadosamente construída para colocar ênfase sobre Jesus como o Rei prometido: "De sorte que todas as gerações, desde Abraão até Davi, são catorze; desde Davi até ao desterro para a Babilônia, catorze; e desde o desterro da Babilônia até Cristo, catorze" (1.17). Jesus é "o Filho de Davi" que revive a linha de reis quebrada 600 anos antes, quando os babilônios devastaram Jerusalém. Ele cumpre todas as promessas feitas por meio dos profetas de que um grande "Davi" viria para governar não apenas Israel, mas o mundo inteiro. Depois disto, "Filho de Davi" tornou-se o nome padrão usado pelos rabinos para referir-se ao Messias (compare com Mateus 22.42).

Este é também um dos títulos favoritos de Mateus para Jesus. Ele registra seu uso em dez ocasiões (ao passo que Marcos e Lucas apenas somam sete entre si). Ele tem uma ligação reiterada com atos de misericórdia para com os enfermos e pobres (veja os exemplos no quadro a seguir), pois este era um dos papéis principais do rei no Velho Testamento: cabia-lhe defender o fraco e o desamparado.

Portanto, o que o "rei" Herodes deixou de fazer, Jesus cumpre perfeitamente. Herodes, de fato, nunca reivindicou ser "filho de Davi". Ele não podia fazê-lo, porque era um idumeu, não um judeu, devendo seu trono inteiramente aos romanos, e por esta razão muitos judeus contestavam seu título e rejeitavam seu governo. Mateus deixou de prestar serviços a um embusteiro falso e inútil para servir ao verdadeiro Rei de Israel.

Este "verdadeiro Rei de Israel" governou muito além do minúsculo reino de Herodes. Era parte da expectativa do Velho Testamento que o "Davi" que viria seria um Rei universal. Aqui o cenário do cobrador de impostos pode até haver ajudado um pouco, pois ele teria roçado os ombros com muitos não-judeus, e pode, portanto, ter sido mais fácil para ele do que para os outros aceitar que os gentios seriam levados a desfrutar o governo deste Rei.

Repassaremos o tema da "Realeza" em Mateus com mais pormenores mais adiante, quando voltarmos às principais características de sua mensagem.

3. Ele descobriu um novo dom de ensinar. Como vimos acima, é altamente improvável que Mateus, o cobrador de

impostos, tivesse tido qualquer oportunidade de estudar a Lei em qualquer profundidade, quanto mais ensiná-la. E, no entanto, seu Evangelho é nitidamente o produto de alguém tanto afeiçoado à Lei como dotado para o ensino. Devemos concluir, pois, que Mateus descobriu um dom do qual não tinha estado consciente

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"Filho de Davi" Ent re os p ro fe t a s do Velho Tes t amen to a expectativa se desenvolveu gradualmente no sentido de que Deus traria um poderoso "Davi", cujo governo seria muito maior do que o de qualquer " f i lho de Davi" precedente . Es ta profecia é encontrada mesmo quando ainda havia de scenden t e s de Davi r e inando em Jerusalém (Isaías 11.1-5; 16.5; Oséias 3.5), porém desenvolvida naturalmente com mais vigor quando a linhagem davídica foi encerrada em 587 a.C. pelos babilônios: veja Jeremias 23 .5 ; 30 .9 ; 3 3 . 1 5 - 2 2 ; E z e q u i e l 34 .23 ,24 ; 37.24,25; Zacarias 12.7-13.1.

O Salmo 2 expressa a visão que sustenta estas profecias. Ali o Rei é chamado "o ungido" de D e u s — i s t o é, seu "Cr i s to" . E o Rei fa la : "Proclamarei o decreto do Senhor: Ele me disse: 'Tu és meu Filho, eu hoje te gerei. ' Pede-me, e eu te da re i as n a ç õ e s por h e r a n ç a , e as extremidades da terra por tua possessão. Com vara de ferro as regerás, e as despedaçarás como um vaso de oleiro" (Salmo 2.7-9). Este salmo é citado com freqüência para referir-se a Jesus no Novo T e s t a m e n t o , e M a t e u s o r e f l e t e na chamada Grande Comissão, com a qual seu Evangelho termina: "Jesus, aproximando-se, falou-lhes, dizendo: 'Toda a autoridade me foi dada no céu e na terra. Ide, portanto, fazei discípulos de todas as nações.. . '" (28.18,19).

Jesus é chamado "Filho de Davi" em dez ocasiões no Evangelho de Mateus (1.1,20; 9.27;

12.23; 15.22; 20.30,31; 21.9,15; 22.42). Em nove delas, o nome é associado ao ministério de Jesus na cura e na atenção aos rejeitados, geralmente usadas num apelo a Ele: * 9.27, os dois homens cegos: "Tem compaixão de nós, Filho de Davi!" * 15.22, a mulher cananéia: "Senhor, Filho de Davi, tem c o m p a i x ã o de m i m ! M i n h a f i l h a es tá horrivelmente endemoninhada." * 20.30, dois outros homens cegos: "Senhor, Filho de Davi, tem compaixão de nós!"—um apelo que repetiram quando "a multidão" tentava silenciá-los (20.31). O cenário disto é o entendimento que havia da realeza no Velho Testamento, a qual fez do socorro aos fracos um dos papéis principais do Rei. Por exemplo: * Concede ao Rei, ó Deus, os teus juízos, e a tua justiça ao Filho do Rei. Julgue ele com justiça o teu povo, e os teus aflitos com eqüidade... . Julgue ele os aflitos do povo, salve os fdhos dos necessitados, e esmague o opressor" (Salmo 72.1-4).

q u a n d o sua v ida e s t ava vo l t ada à b u s c a do d inhe i ro . Q u a l é a e v i d ê n c i a pa ra a c a p a c i d a d e d e ens ina r de M a t e u s ? P o d e m o s ind ica r

q u a t r o carac te r í s t icas d o seu E v a n g e l h o :

a. Sua narrativa estruturada. N o t a m o s j á a ê n f a s e d a d a p o r M a t e u s ao e n s i n o d e Jesus , q u e é ap re sen t ado e m c inco g r a n d e s s e rmões . Es t e s t e n d e m a t ra tar d e d i f e ren te s t e m a s (ve ja as carac ter í s t icas n o q u a d r o d a p á g i n a 31) . M a t e u s ou ou t ros p o d e m tê- los c o m p i l a d o c o l o c a n d o j u n t o s d i tos a r e s p e i t o d e t e m a s corre la tos , ou p o d e m e les ter-se b a s e a d o e m fa las ap re sen t adas r e a l m e n t e p o r Jesus . C o m o u m p u b l i c a n o a l t a m e n t e ins t ru ído , M a t e u s p o d i a ter t o m a d o no ta s à m e d i d a q u e e s c u t a v a Jesus . D e q u a l q u e r m o d o , p o d e m o s f a c i l m e n t e i m a g i n a r a u t i l idade d e tais c o m p i l a ç õ e s c o m o m e i o de ens ina r aos n e o c o n v e r s o s os f u n d a m e n t o s d a v ida e d a f é cr is tãs .

b. Seu uso do Velho Testamento. M a t e u s t ra i a i n c l i n a ç ã o d o p r o f e s s o r ao e v i d e n c i a r a c o n e x ã o en t re p ro fec i a s e seu c u m p r i m e n t o e m Jesus . E m n ã o m e n o s d o q u e o n z e ocas iões ele a s soc ia u m e v e n t o a u m a p r o f e c i a c o m u m a a f i r m a ç ã o c o m o : " I s to acon t eceu pa ra se c u m p r i r o q u e fo i d i to p o r i n t e r m é d io

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do profeta..." (21.4). Se a sugestão acima é correta—de que ele primeiro descobriu a Lei por meio de João Batista, e depois o Evangelho por meio de Jesus—então ela nos ajudaria a compreender sua nova e invulgar perspectiva a respeito da Lei. Ele a interpreta de uma forma ímpar, olhando-a através das lentes da fé e do discipulado cristãos.

Novamente, examinaremos isto com mais detalhes abaixo.

c. Sua preocupação acerca dos fariseus. Este é o correlativo do último ponto. Mais do que qualquer outro escritor do Evangelho, Mateus é crítico em relação aos fariseus e seu ensino. "Hostil" é a palavra usada por muitos estudiosos ao considerar passagens como Mateus 23.27,28: "Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas! porque sois semelhantes aos sepulcros caiados, que por fora se mostram belos, mas interiormente estão cheios de ossos de mortos, e de toda imundícia. Assim também vós exteriormente pareceis justos aos homens, mas por dentro estais cheios de hipocrisia e de iniqüidade."

Os outros escritores do Evangelho hesitaram em incluir a série de "Ais" dirigidos aos fariseus, como ocorre nesta passagem (23.1-36). Porém Mateus não hesita. Entretanto, ele não inclui tais expressões para hostilizá-los, e sim pela preocupação diante do efeito terrível do ensino farisaico. • "Na cadeira de Moisés se assentaram os escribas e os fariseus. Fazei e guardai, pois, tudo quanto eles vos disserem, porém não os imiteis nas suas obras; porque dizem e não fazem. Atam fardos pesados [e difíceis de carregar] e os põem sobre os ombros dos homens, entretanto eles mesmos nem com o dedo querem movê-los" (23.2-4). • "Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas! porque fechais o reino dos céus diante dos homens; pois, vós não entrais, nem deixais entrar os que estão entrando" (23.13).

Os fariseus eram os legítimos mestres, mas sua mensagem era inanimada e aborrecível a todos os que a seguiam. Mateus aspirava substituir o ensino deles pelo seu.

d. Seu estilo narrativo. Embora o Evangelho de Mateus seja muito mais longo que o de Marcos, ele geralmente conta as mesmas histórias com muito maior brevidade. Enquanto Marcos inclui muitos detalhes pessoais, Mateus limita a narrativa apenas aos pontos essenciais, porém em seguida freqüentemente expande o "ensino" extraído da história.

Por exemplo, Marcos conta a história do menino possuído do demônio em 286 palavras, até o ponto em que os discípulos perguntam a Jesus: "Por que não pudemos nós expulsá-lo?" (Marcos 9.14-28). Aresposta de Jesus a esta pergunta em Marcos é simplesmente: "Esta casta não pode sair senão por meio de oração" (9.29). Mateus, ao contrário, usa somente 117 palavras para contar a história até o mesmo ponto (17.14-20), porém então registra a resposta de Jesus com bem mais amplitude: "Por causa da pequenez da vossa fé. Pois em verdade vos digo que, se tiverdes fé como um grão de mostarda, direis a este monte: Passa daqui para acolá, e ele passará. Nada vos será impossível" (17.20).

Em todos estes aspectos Mateus expressa sua paixão pelo ensino e discipulado. Ele estava trabalhando para obedecer ao mandamento de Jesus, que ele mesmo registra, de "fazer discípulos de todas as nações" (28.19). Talvez ele pensasse de si mesmo como sendo o "escriba [professor da lei] versado no reino dos

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céus", em 13.52 (novamente, esta pequena parábola aparece somente em Mateus). Ele é "semelhante a um pai de família que tira do seu depósito coisas novas e coisas velhas". Mateus recorre aos tesouros do Velho Testamento para expor a fascinante riqueza de Jesus, que é a "pérola de grande valor" pela qual ele "vendeu tudo o que possuía" (13.45,46).

A mensagem de Mateus Qual era, pois, a mensagem que ardia no coração de Mateus quando ele escreveu seu Evangelho?—a mensagem que sua experiência com Jesus o havia preparado para proclamar? Podemos resumi-la em cinco tópicos:

1. Jesus é o cumprimento do Velho Testamento. Esta característica da apresentação de Jesus por Mateus está na base de todas as outras. Por todo o seu Evangelho, o que Deus está fazendo em e através de Jesus é explanado e interpretado com referência às Escrituras. Mateus pressupõe que seus leitores estão familiarizados com o Velho Testamento e capacitados a tirar conclusões das citações com as quais ele tempera a história. Por exemplo, Mateus segue Marcos ao relatar as curas realizadas por Jesus ao entardecer (Marcos 1.32-34), porém então introduz uma citação: • "Chegada a tarde, trouxeram-lhe muitos endemoninhados; e ele meramente com a palavra expeliu os espíritos, e curou todos os que estavam doentes; para que se cumprisse o que fora dito por intermédio do profeta Isaías: 'Ele mesmo tomou as nossas enfermidades e carregou com as nossas doenças" (Mateus 8.16,17).

Espera-se que os leitores de Mateus conheçam onde em Isaías está contida esta citação. E parte da descrição do "Servo do Senhor" em Isaías 53, o qual toma sobre si não somente as enfermidades do povo de Deus, mas também seus pecados, e que morre em favor dele. Por meio desta breve citação Mateus diz a seus leitores que Jesus é a figura predita por Isaías—uma importante e dramática proclamação. Em 12.15-21, Mateus cita extensamente parte de um dos "Cânticos do Servo", em Isaías (Isaías 42.1-4), aplicando-a novamente a Jesus.

Mateus 5.17-20 é a mais importante passagem nesta conexão. "Não penseis que vim revogar a lei ou os .profetas: não vim para revogar, vim para cumprir", diz Jesus (5.17). Por seu comportamento e ensino muitos pensavam que Jesus estava opondo sua autoridade à do Velho Testamento. Mateus deseja pôr as coisas no devido lugar. Jesus não queria remover da Lei sequer um jota ou um til "até que tudo se cumpra" (5.18).

Mas isto não quer dizer que as formas correntes de interpretação da Lei sejam aceitas. Longe disso. Já vimos a atitude altamente crítica de Mateus para com os fariseus, os guardiães contemporâneos da ortodoxia judaica. No restante do capítulo 5, Mateus registra a reinterpretação da Lei em seis áreas. Em alguns casos a reinterpretação é de uma abrangência tão ampla que é quase como se a própria Lei, e não apenas a aplicação dela pelos fariseus, está sendo posta de lado. Tal é o tom de autoridade com a qual Jesus ensina. A autoridade de Jesus equipara-se à da Lei, mas não a substitui. Contudo, por causa de sua autoridade como Rei e Filho de Deus, a Lei é reformada e redirecionada, de modo que, em lugar de enfatizar a diferença entre Israel e as nações gentílicas, ela é vista agora para incentivar o amor pelos inimigos (5.38-48) e como uma demolição da barreira entre judeus e gentios (veja aqui especialmente 15.1-28).

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A quem Mateus destina esta apresentação? Muitos estudiosos crêem que ele tinha em mente os cristãos, talvez especialmente os judeus-cristãos que precisavam ser convencidos de que sua fé cristã não estava em conflito com sua herança judaica. Porém parece provável que Mateus também queria convencer os judeus descrentes, e que isso era parte de sua estratégia para mostrar que Jesus cumpre perfeitamente as expectativas do Velho Testamento. Que Mateus tinha em mente os judeus é sugerido pelas passagens 27.62-66 e 28.11-15, nas quais Mateus se empenha em explicar a origem e falsidade da explanação judaica corrente sobre a ressurreição. Descobrimos do cristão apologista Justino Mártir, do segundo século, que escreveu por volta do ano 135 d.C., que os judeus ainda estavam dizendo que os discípulos tinham roubado o corpo de Jesus do túmulo. Se Mateus queria retrucar esta falsa acusação, então parece provável que outras características do seu Evangelho, e em particular seu tratamento do Velho Tes-tamento, teriam também o objetivo de convencer os judeus cépticos.

Descobriremos mais sobre o tratamento da Lei por Mateus à medida que delinearmos outros de seus temas centrais:

2. Jesus é o Rei! "Daí por diante passou Jesus a pregar e a dizer: ' Arrependei-vos, porque está

próximo o reino dos céus'" (4.17). De longa data se reconhece que "o reino dos céus" é um tema crucial em Mateus. Ele é importante para todos os evangelistas, mas acima de tudo para Mateus. Ele usa a expressão cinqüenta vezes, em comparação com quinze de Marcos e trinta e oito de Lucas.

Quando colocamos ao lado desta estatística a proeminência do título real "Filho de Davi" (veja acima), vemos claramente quão importante para Mateus é a apresentação de Jesus como Rei.

Uma breve consideração sobre o cenário do Velho Testamento é aqui necessária. Deus é freqüentemente retratado como "Rei" no Velho Testamento, e seu "Reino" é um tema poderoso na teologia do Velho Testamento. As palavras grega e hebraica geralmente traduzidas por "reino" têm ambas um interessante significado duplo, que é muito importante para a compreensão tanto do Velho Testamento como da proclamação de Jesus. Elas significam tanto "domínio" (região ou território dominado por um soberano) como "governo" (guia, controlador, legislador), senhorio e atividade própria do rei. No Velho Testa-mento isto significa que a. Deus é descrito reinando sobre o mundo inteiro (p.ex. Salmos 47; 98-4-6; 99.1); b. Israel é imaginado como o domínio especial de Deus, o lugar onde seu reinado se expressa mais claramente (p.ex. 1 Samuel 8.7; 12.12; Salmo 48.1,2); c. espera-se o dia em que todas as nações se submeterão ao governo de Deus, isto é, quando seu domínio se estenderá para cobrir toda a terra, do mesmo modo que agora Ele reina especialmente sobre Israel. Este Reino vindouro também marcará a libertação final do próprio Israel (p.ex. Salmo 47.7-9; Isaías 52.7-10; Zacarias 9.9-12).

Este Reino de Deus esperado é marcado por quatro características no Velho Testamento: justiça (p.ex. Jeremias 23.5,6), paz (p.ex. Ezequiel 34.23-31), estabilidade (p.ex. Isaías 9.7), e universalidade (p.ex. Zacarias 9.10).

No tempo de Jesus a expectativa desse futuro "Reino de Deus" era forte, mas as opiniões variavam a respeito de como ele viria. Alguns o entenderam politicamente, e visualizaram o dia em que Israel ficaria livre de todos os seus

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inimigos e seria vingado aos olhos do mundo. Alguns pensavam mesmo que poderiam apressar a vinda do Rei pegando em armas contra os romanos. Outros, porém, o entenderam espiritualmente, e anteviram um tempo em que Deus finalmente salvaria Israel do pecado e traria as nações gentias a conhecê-lo também.

Por isso, quando Jesus anunciou que "está próximo o reino dos céus" (4.17), as pessoas reagiram com ansiedade. Mas precisavam aprender o que Jesus entendia por Reino: político ou espiritual? Mateus, de igual modo, precisava revelar a natureza desse Reino claramente aos seus leitores. Ele diz quatro coisas sobre ele:

a. Ele focaliza a renovação espiritual de Israel. Mateus mostra Jesus ministrando quase exclusivamente para Israel. "Não fui enviado senão às ovelhas perdidas da casa de Israel", diz Ele (15.24; compare com 10.5,6). De modo semelhante, Jesus envia seus discípulos com as palavras: "Não tomeis rumo aos gentios, nem entreis em cidade de samaritanos; mas, de preferência, procurai as ovelhas perdidas da casa de Israel; e, à medida que seguirdes, pregai que está próximo o reino dos céus" (10.5-7).

Mas Ele depois reconhece que, na verdade, eles irão "à presença de governadores e de reis, para lhes servir de testemunho, a eles e aos gentios" (10.18). O evangelho que dá vida, endereçado justamente a Israel, vai propagar-se. Por isso Mateus dá relevo ao episódio do centurião, que tem fé maior do que qualquer outro em Israel (8.10), pressagiando os "muitos" que "virão do Oriente e do Ocidente e tomarão lugares à mesa com Abraão, Isaque e Jacó no reino dos céus. Ao passo que os filhos do reino serão lançados para fora..." (8.11,12). Israel deveria estar lá, porém não respondeu com a fé necessária. Por isso os gentios serão introduzidos nele para participarem com Abraão do banquete do Reino. Quando os convidados se recusam a vir, os criados são enviados para arrebanhar "todos os que encontraram, maus e bons; e a sala do banquete ficou repleta de convidados" (22.10). E isto exatamente o que Jesus faz depois, no final do Evangelho (28.18-20).

b. Ele focaliza o círculo do próprio Jesus. Porque Jesus é o Rei, o Reino—isto é, o governo que Ele exerce—chega com Ele. Mateus associa o Reino intimamente com o ministério de cura de Jesus: "E percorria Jesus todas as cidades e povoados, ensinando nas sinagogas, pregando o evangelho do reino e curando toda sorte de doenças e enfermidades" (9.35). Seus milagres apontam para o poder do Reino, presente nele: "Se, porém, eu expulso os demônios, pelo Espírito de Deus, certamente é chegado o reino de Deus sobre vós" (12.28). Cabe a João narrar os milagres de Jesus como "sinais", isto é, ações especiais que incorporam uma mensagem e são assim parte de sua pregação e ensino. Mas eles têm esta qualidade também em Mateus. Eles indicam especificamente Jesus como aquele que cumpre a profecia de Isaías: "Ele mesmo tomou as nossas enfermidades e carregou com as nossas doenças" (8.17). Isto, portanto, faz os milagres de Jesus peculiarmente seus, e não necessariamente algo a ser esperado onde quer que o Reino seja proclamado.

c. Os seguidores de Jesus entram já no Reino. Quando as pessoas andam sob o comando deste Rei, elas entram no Reino. João Batista inaugurou o processo:

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"Desde os dias de João Batista até agora o reino dos céus é tomado por esforço, e os que se esforçam se apoderam dele" (11.12). Por "esforço" aqui Jesus provavelmente expressa a entusiástica acolhida de muitos ao seu ministério. Seguindo-o, as pessoas estão "se agarrando" ao Reino dos céus—literalmente "tomando-o de assalto", como os fregueses que descobrem a maior liquidação do ano. Uma vez dentro, mesmo o menor do Reino dos céus é maior do que João Batista (11.11).

O jovem rico já não está tão certo. Ele deseja a "vida eterna" (esta é uma expressão equivalente a "Reino de Deus"), mas não pode satisfazer à condição: "Vai, vende os teus bens, dá aos pobres, e terás um tesouro no céu; depois vem, e segue-me" (19.21). Seguir a Jesus é conseguir o que ele perdeu: entrar "no reino dos céus" (19.23).

Um novo estilo de vida é exigido desses seguidores de Jesus—a saber, aquele que aponta para a realidade do Reino dentro deles. É por isso que os Doze, quando enviados a proclamar o Reino, ouvem: "De graça recebestes, de graça dai. Não vos provereis de ouro, nem de prata, nem de cobre nos vossos cintos; nem de alforje para o caminho, nem de duas túnicas, nem de sandálias, nem de bordão: porque digno é o trabalhador do seu alimento" (10.8-10). Deus supre tudo quanto eles necessitam para seu sustento e proteção, bem como tudo o que eles devem oferecer. Eles são em si mesmos sermões vivos, evidência da realidade do Reino que proclamam. Mateus esforça-se por esclarecer este novo estilo de vida para seus leitores, registrando extensamente o ensino de Jesus.

d. Ele ainda está por "vir". Lucas, na realidade, enfatiza mais do que Mateus a presença do Reino. A ênfase distintiva de Mateus incide sobre o Reino que ainda virá. Jesus, como "o Filho do homem", virá novamente com grande poder e em juízo, e isto acontecerá logo. "Em verdade vos digo que alguns aqui se encontram que de maneira nenhuma passarão pela morte até que vejam vir o Filho do homem no seu reino" (16.28).

Esta "vinda do Filho do homem" compõe o assunto dos capítulos 24 e 25. A interpretação destes capítulos é muito discutida, especialmente a do capítulo 24, mas quase todos concordam que dois tipos de "vinda" estão associados e tratados juntos nestes capítulos: • Por um lado, há uma vinda em juízo, que significará o cumprimento da predição de Jesus de que o templo será destruído: "Não ficará aqui pedra sobre pedra, que não seja derrubada" (24.2). Esta é provavelmente a "vinda do Filho do homem" que deve ter lugar dentro de uma geração (24.34). • Por outro lado, há posteriormente uma vinda em glória (25.31), que anunciará o juízo final do mundo e a salvação do povo de Deus. "O Rei" (25.34)—isto é, Jesus—julgará as nações reunidas diante dele, introduzindo "os justos" na vida eterna, e os "malditos" no castigo eterno (25.46).

3. Jesus é o Filho de Deus! Um dos principais escritores contemporâneos sobre Mateus, Professor Jack

Kingsbury, argumenta que "o Filho de Deus" é, na mente de Mateus, o título mais importante dado a Jesus. Se ele é mais importante do que outros títulos é uma questão aberta à discussão, mas seu valor não pode ser suspeitado. Ele é empregado efetivamente em catorze ocasiões em Mateus.

E é quase sempre usado por outros a respeito de Jesus: • Pelo Diabo ou demônios: 4.3,6; 8.29

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MATEUS E SUA MENSAGEM 4 3

• Pe los i n imigos de Jesus , e m a c u s a ç ã o ou zombar i a : 26 .63 ; 2 7 . 4 0 , 4 3 • P o r M a t e u s , os d i sc ípu los ou out ros e m c o n f i s s ã o de fé : 2 .15 ; 14.33; 16.16; 27 .54 • Pe lo p róp r io D e u s : 3 .17; 17.5; 21 .37

E m apenas duas ocas iões Jesus r e fe re - se a si m e s m o c o m o "F i lho" : 24 .36 ; 28 .19 .

C o m o t í tulo ele t e m três cor re lações :

Jesus ordenou aos Doze que não se provessem "de duas túnicas, nem de sandálias, nem de bordão", quando os enviou a pregar o Reino. Este par de sandálias de couro que data do primeiro século de nossa era foi encontrado durante excavações arqueológicas em Masada.

a. Ele se correlaciona com Israel. N o Velho. Tes tamen to , t o d o o pa í s é t ido c o m o " f i l ho de D e u s " (p.ex. Ê x o d o 4 .22) . M a t e u s cita tal p a s s a g e m ap l i cando-a a Jesus . Osé ias 11.1, c i t ado e m 2.15, r e fe r i a - se o r ig ina lmen te ao êxodo : " D o E g i t o c h a m e i o m e u f i l ho . " A l g u n s es tud iosos a c u s a m M a t e u s nes te caso de uso i n d e v i d o de texto , c o m o se o evange l i s t a t ivesse p o u c a p r e o c u p a ç ã o p e l o s ign i f i cado or ig inal . M a s n a d a p o d e es tar a c i m a da ve rdade . E m todos es tes cap í tu los de aber tu ra do E v a n g e l h o , M a t e u s tenta m o s t r a r c o m o Jesus c a m i n h a nos ca l çados de Is rae l e r epe t e as expe r i ênc ia s de Israel . E le de ixa o Egi to , é sa lvo das m ã o s de u m rei host i l que t en ta ex te rminá - lo , p a s s a pe l a água , é t e s t ado e t en tado n o deser to , e f i n a l m e n t e c h e g a à m o n t a n h a o n d e a pa lav ra de D e u s é o u v i d a (5.1).

H á d i f e r enças ce r t amen te . E n q u a n t o Is rae l f a l h o u no tes te do dese r to ( com-p a r e c o m D e u t e r o n ô m i o 8 . 5 ) , e s t e F i l h o d e D e u s p a s s a p e l a p r o v a v i to r io samen te . E e n q u a n t o Israel ouve a p a l a v r a de D e u s n o M o n t e Sinai , es te F i lho de D e u s f a l a a pa lavra . M a s os pa ra le los são c laros . Jesus a s s u m e o p a p e l de Israel c o m o p ropós i t o de r e - f o r m a r o p o v o de D e u s e m to rno dele . U m d ia seus após to los se a s sen ta rão sobre t ronos ao seu lado , j u l g a n d o as t r ibos de I s rae l (Ma teus 19.28).

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b. Ele se correlaciona com a realeza. O título "Filho de Deus" era também utilizado pelo rei no Velho Testamento (compare com 2 Samuel 7.14; Salmo 2.7). Sobre este pano de fundo da história, a aplicação deste título para Jesus deve associá-lo a outros temas "reais" em Mateus—especialmente "Reino" e "Filho de Davi".

c. Ele se correlaciona com a deidade. Como no Evangelho de João, o título "Filho de Deus" indica um relacionamento da mais profunda intimidade com Deus. Em nove ocasiões Jesus se refere a "meu Pai celestial" ou "meu Pai que está no céu", e numa famosa passagem (somente em Mateus) está especificado o que este relacionamento significa: • "Graças te dou, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque ocultaste estas coisas aos sábios e entendidos, e as revelaste aos pequeninos. Sim, ó Pai, porque assim foi do teu agrado. Tudo me foi entregue por meu Pai. Ninguém conhece o Filho senão o Pai; e ninguém conhece o Pai senão o Filho, e aquele a quem o Filho o quiser revelar" (11.25-27).

Jesus desfruta uma relação peculiar de conhecimento, devotamente e atividade mútua com Deus seu Pai. Mas, ao mesmo tempo que é peculiar, é também compartilhado. Em não menos do que onze ocasiões Jesus se refere a "vosso Pai celestial" ou "vosso Pai que está no céu", ao dirigir-se aos seus discípulos. Mateus exulta com a nova intimidade com Deus que, ao seguir Jesus, lhe foi concedida. Deus era não mais o juiz a ser temido, mas um Pai em quem se confiava.

4. Jesus é o mestre, o Cristo! Mateus associa estes dois títulos em 23.10. Jesus como um mestre é singularmente importante para ele, como já vimos. E, ajuntando os assuntos tratados nos cinco grandes sermões de Jesus, Mateus procurou claramente prover uma apresentação aprimorada da fé e do discipulado cristãos. Por exemplo, somente ele apresenta o ensino sobre o espinhoso tema da disciplina na igreja (18.15-35). Na verdade, somente Mateus registra o uso feito por Jesus do termo "igreja" (16.18; 18.17). Com base em Mateus e Marcos podemos ter a impressão de que Jesus jamais tencionou fundar a igreja, porém Mateus não permite isto. Indubitavelmente, ele tinha em mente a necessidade da igreja em seu próprio tempo ao selecionar e ordenar seu material.

5. Jesus é o Salvador, o Filho do Homem! Como os demais evangelistas, Mateus coloca grande ênfase no sofrimento e morte de Jesus. Ele não chega apenas a reinterpretar o Velho Testamento e apresentar um novo ensino de Deus—muito longe disto. Mateus inclui o dito tão importante para Marcos: "Quem quiser ser o primeiro entre vós será vosso servo; tal como o Filho do homem, que não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos" (20.27,28). Ele também interpreta a morte de Jesus antecipadamente ao registrar suas palavras na última ceia: "Isto é o meu sangue, o sangue da [nova] aliança, derramado em favor de muitos, para remissão de pecados" (26.28). Por meio de sua morte, Jesus forja toda uma nova aliança entre Deus e seu povo, tirando os pecados deste exatamente como o anjo prometera a José: "E lhe porás o nome de Jesus, porque ele salvará o seu povo dos pecados deles" (1.21).

Esta ênfase associa-se ao tema peculiar que mencionamos acima, o da

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misericórdia para com o fraco. O Evangelho de Mateus é muito terno: • Somente ele registra as grandes palavras de Jesus: "Vinde a mim todos os que estais cansados e sobrecarregados, e eu vos aliviarei. Tomai sobre vós o meu jugo, e aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração; e achareis descanso para as vossas almas. Porque o meu jugo é suave e o meu fardo é leve" (11.28-30). • Normalmente ele encurta as histórias extraídas de Marcos. Mas, no caso da história do homem com a mão ressequida, ele a expande com outro dito famoso: "Qual dentre vós será o homem que, tendo uma ovelha, e, num sábado esta cair numa cova, não fará todo o esforço, tirando-a dali? Ora, quanto mais vale um homem que uma ovelha?" (12.11,12).

• E como remate ele traz o último bloco de ensinos a um grande clímax com a parábola das ovelhas e dos bodes (de novo, somente registrado por Mateus). O Filho do homem, o Rei diante de quem as nações do mundo são divididas e por quem seu destino é decidido, tornou-se faminto e sedento, forasteiro e nu, enfermo e rejeitado, e divide todas estas experiências com seus "irmãos". Ele não desconhece o sofrimento de nenhum discípulo, porque Ele mesmo também o conhece e suporta.

O Evangelho de Mateus é certamente o do Rei que governa, como indicamos no início deste capítulo. Mas este Rei é diferente dos outros. Ele não governa com autoridade distante nem vive em esplendor pessoal. Ele se assenta num trono e julga as nações (25.3lss), mas somente porque "tomou as nossas enfermidades e carregou com as nossas doenças" (8.17, citando Isaías 53.4). Ele governa como um servo, não com poder mas com compaixão, não com autoproteção mas com total abnegação. Este é o coração pulsante da mensagem do Evangelho de Mateus—mensagem que o arrastou da vida de ganância e egoísmo para a vida e serviço deste Rei.

Leitura adicional

Menos exigente: Richard A. Edwards, Matthew's Story of Jesus (Filadélfia: Fortress Press, 1985) J. R. W. Stott, The Message of the Sermon on the Mount. Christian Counter-Culture

(Leicester: IVP, 1978)

Mais exigente, obras eruditas: R. T. France, Matthew, Evangelist and Teacher (Exeter: Paternoster, 1989) David E. Garland, Reading Matthew. A Literary and Theological Commentary on the

First Gospel (Londres: SPCK, 1993) Jack Dean Kingsbury, Matthew as Story (Filadélfia: Fortress Press. 1988) Paul S. Minear, Matthew. The Teacher's Gospel (Londres: Darton, Longman & Todd,

1984) John W. Wenham, Redating Matthew, Mark anel Luke. A Fresh Assault on the Synoptic

Problem (Londres: Hodder & Stoughton, 1991)

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Lucas e sua Mensagem E lhes disse: "Assim está escrito que o Cristo havia de padecer, e ressuscitar dentre os mortos no terceiro dia, e que em seu nome se pregasse arrependimento para remissão de pecados a todas as nações, começando de Jerusalém. Vós sois testemunhas destas coisas." (Lucas 24.46-48)

O Evangelho de Lucas é, em muitos aspectos, o mais diferenciado dos três Evangelhos sinópticos, e, considerando que Lucas é também o autor do livro de Atos dos Apóstolos, a contribuição literária dele ao Novo Testamento é maior do que a de qualquer outro escritor (mais de um quarto do todo). O Evangelho e Atos juntos constituem uma obra única em dois volumes, cujo tema dominante é a universalidade do Reino de Deus. Assim, Lucas esboça a história da vinda do Reino desde seu começo com João Batista até sua proclamação em Roma, o coração do império. Pondo os olhos no recém-nascido Jesus, Simeão louva a Deus: "Porque os meus olhos já viram a tua salvação, a qual preparaste diante de todos os povos: luz para revelação aos gentios..." (Lucas 2.30-32). Lucas conta a história da irradiação desta luz até, dois volumes depois, concluir sua obra com as palavras de Paulo: "Tomai, pois, conhecimento de que esta salvação de Deus foi enviada aos gentios. E eles a ouvirão" (Atos 28.28).

Lucas, o homem Lucas era pessoalmente bem equipado para contar esta história. Podemos resumir o que sabemos sobre ele como segue:

1. Lucas era um gentio. Na realidade, ele era o único gentio entre os escritores do Novo Testamento. "Lucas" é um nome latino (uma forma reduzida do nome "Lucius"). Diversos fatores que se seguiram indicam as origens gentílicas de Lucas:

a. Quando Paulo envia saudações aos cristãos de Colossos, ele menciona três dos seus companheiros pelo nome como "os únicos judeus [da circuncisão] entre meus companheiros para o reino de Deus". Depois ele envia saudações de três outros, que eram presumivelmente não-judeus. Entre eles, "saúda-vos Lucas, o médico amado" (Colossenses 4.10-14).

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b. Sempre que cita o Velho Testamento, Lucas usa a versão grega e não traduz diretamente do hebraico. Ele se refere quatro vezes à língua hebraica em passos que deixam a impressão de que ele não a falava (Atos 1.19; 21.40; 22.2; 26.14).

c. Há uma tradição da primeira igreja de que ele veio de Antioquia da Síria, uma das maiores cidades do Império Romano. Não podemos estar certos da verdade disto, mas ele certamente mostra interesse pelo nascimento e crescimento da igreja de Antioquia (Atos 11.19-30), e não nos deixa esquecer que ela era a igreja-lar do apóstolo Paulo (Atos 13.1-3; .14.26-28).

d. Sua obra em dois volumes é a única no Novo Testamento dedicada a um protetor, Teófilo (Lucas 1.3; Atos 1.1). Esta era uma prática comum no mundo greco-romano, e foi também adotada por alguns escritores judeus, como o historiador Josefo, que queria atrair o leitor gentílico para sua história do povo judeu. Mas a dedicação de Josefo de sua obra a seu benfeitor Epafrodito é densa e afetada em comparação com a simples e natural referência de Lucas a seu protetor.

Os estudiosos costumavam especular sobre a identidade de Teófilo. Se, como pensavam, ele era um rico aristocrata romano, então o próprio Lucas deve ter participado de tais círculos—talvez na comunidade romana exilada em Antioquia. Mas o nome "Teófilo" significa "o que ama Deus", sendo um provável pseudônimo, talvez dirigido a quaisquer pessoas que, como Cornélio (Atos 10.1,2), eram gentios devotos e tementes a Deus, que buscavam genuinamente a verdade. Lucas sabia como dirigir-se a essas pessoas, e como convencê-las da "certeza" da verdade sobre Jesus (Lucas 1.4).

2. Lucas tinha educação superior. Ele precisaria ter, como médico que era. Um dos mais antigos estudiosos supõe que Lucas recebeu seu treinamento médico em Tarso, a cidade natal de Paulo, que era um grande centro de ensino. Na época a medicina era um ramo especial da filosofia, sendo claras a cultura e a educação de Lucas em seus escritos.

Por exemplo, ele dispunha de um rico vocabulário. O Evangelho e Atos têm cerca de 800 palavras que não ocorrem em qualquer outra parte do Novo Testa-mento. Seu grego é bom: em estilo semelhante ao da carta aos Hebreus, o mais elegante do Novo Testamento. E é também flexível: Lucas demonstra considerável talento literário, por exemplo, pela forma como é capaz de escrever seu prefácio em esmerado grego clássico (Lucas 1.1-4), e logo a seguir mudar para um estilo diferente, moldado naquele do Velho Testamento grego, para as histórias do nascimento e infância de Jesus. Desta maneira, ele comunica um sentido de tempo e lugar aos seus leitores gentios, juntamente com os fatos e as verdades.

Avançando além do estilo do grego de Lucas, os estudiosos têm recentemente devotado muita atenção à habilidade literária com que ele compõe a história. Ele chama sua obra modestamente de "uma exposição em ordem" (Lucas 1.3), e a "ordem" está aparente na bela forma com que a história se desenrola. Por exemplo, a importância da morte e ressurreição de Jesus é sublinhada no Evangelho por repetidas referências à jornada de Jesus a Jerusalém, iniciando em 9.51: "Ao se completarem os dias em que devia ele ser assunto ao céu, manifestou no semblante a intrépida resolução de ir para Jerusalém..." Depois deste ponto, mesmo as inocentes referências à caminhada de Jesus pela estrada

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(p.ex. 9.57; 10.38; 11.53) assumem uma notável força dramática. Lucas era certamente um consumado artista literário.

3. Lucas era um historiador. De acordo com 1.3, sua "exposição em ordem" baseia-se numa pesquisa meticulosa: "...depois de acurada investigação de tudo desde sua origem..." Assim, seu talento literário caminhou de mãos dadas com uma preocupação pela exatidão e, portanto, confiabilidade.

Esta exatidão foi defendida fortemente nos anos iniciais deste século por meio de pesquisas de William Ramsay, que, quando estudante, adotou o ponto de vista, naquele tempo amplamente sustentado por estudiosos, de que o Evangelho de Lucas foi escrito no segundo século desta era por um autor que inventou francamente muito do seu material. Mas os estudos pioneiros de Ramsay das regiões e cidades cobertas por Paulo em sua primeira e segunda viagens missionárias (Atos 13-18) mudaram completamente seu modo de pensar. Lucas havia mostrado precisão meticulosa em questões de geografia e administração civil—na realidade, em cada detalhe em que ele podia ser avaliado. Em seu livro The Bearing ofRecent Discovery on the Trustworthiness ofthe New Tes-tament (O Significado da Recente Descoberta sobre a Fidelidade do Novo Tes-tamento), publicado em 1915, Ramsay concluiu: "Você pode espremer as palavras de Lucas a um grau acima de qualquer outro historiador, e elas resistem ao exame mais severo e ao tratamento mais rígido." Ele admite que essa precisão demonstrável influencia nossa atitude em relação a toda a obra de Lucas: "Há uma certa pressuposição de que um escritor que prova ser exato e correto num assunto mostra as mesmas qualidades em outros. Nenhum escritor é correto por mero acaso, ou preciso esporadicamente. Ele é exato em virtude de um certo hábito da mente."

Lucas claramente possuía este tipo de mente. Muitos outros estudiosos atuais estão aptos a aceitar este julgamento.

4. Lucas foi um viajante. A palavra que ele usa para definir sua "investigação" em Lucas 1.3 presume que ele viajou para poder executá-la. Os chamados "textos nós" (we-sections) em Atos indicam que ele viajou com o apóstolo Paulo em pelo menos três ocasiões. (Os "textos nós" são trechos da história em que o pronome "eles" é substituído por "nós", indicando a presença de Lucas. Veja o quadro com este título.)

A experiência de Lucas como viajante é seguramente confirmada por seu notável cuidado ao usar os termos técnicos da navegação em seu dramático relato do naufrágio em Atos 27. Sua precisão a este respeito foi notada em 1848 por James Smith, um escocês Membro da Real Sociedade. Em The Voyage and Shipwreck ofSt Paul (A Viagem e o Naufrágio de São Paulo), Smith, escrevendo como velejador e historiador, confirmou as referências detalhadas de Lucas quanto aos ventos, geografia e construção naval.

Este interesse por viagens reflete-se na própria história. Tanto o Evangelho como Atos baseiam-se em viagens: primeiro a de Jesus a Jerusalém, como vimos acima; em seguida a de Paulo (ou mais precisamente do Evangelho) até Roma. Em ambas o relato estende-se por vários capítulos e envolve muitas circunstâncias, incluindo mudanças de rumo. Mas, em ambos os casos, o objetivo é alcançado, porque é do plano de Deus que o seja.

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üs "textos nós" em Atos

Í .Atos 16.10-18 Lucas revela que estava com Paulo em sua famosa viagem à Europa, viajando com ele de Trôade a Filipos, onde testemunhou os eventos da prisão e dramática libertação de Paulo. No entanto, parece que ele f icou para trás em Filipos, quando Paulo foi embora.

2. Atos 20.5-21.18 Esta parte começa onde terminou a última, em F i l i pos , p o d e n d o - s e d e d u z i r q u e L u c a s acompanhou Paulo no último trajeto de sua terceira viagem missionária, encerrando com a detenção e prisão em Jerusalém.

3. Atos 27.1-28.16 Após dois anos de prisão em Cesaréia, Paulo fez u m a longa e a c i d e n t a d a v i a g e m a R o m a , acompanhado de Lucas, entre outros.

Em Roma Lucas permaneceu ao lado de Paulo, como este testifica em 2 Timóteo 4.1: "Somente Lucas está comigo." Isto sugere que Lucas pode também ter estado com Paulo durante sua prisão em Cesaréia,,e isto, por sua vez, induz à especulação de que durante esse período Lucas empreendeu a "investigação" que lhe propiciou o material para o seu Evangelho e os primeiros capítulos de Atos.

Tal é o homem que o Espírito Santo estava preparando para contribuir com mais da quarta parte de todo o Novo Testamento. Ele era um homem do mundo— do extenso mundo greco-romano de sua época. Sua formação gentílica, sua experiência profissional, seus dotes literários e historiográficos, suas viagens e sua ligação com Paulo, tudo cooperou para fazer dele o homem para a tarefa. Seu amor natural pelos aflitos levou-o a dedicar-se à medicina. Sua vasta experiência capacitou-o a ver o evangelho em seu ambiente secular. A influência de Paulo deve ter ocupado sua mente com a mensagem da gratuidade da salvação oferecida a todos, sem restrição de raça ou privilégio. Lucas foi o homem escolhido e preparado pelo Espírito Santo para salientar a universalidade do evangelho.

Vamos agora examinar alguns dos temas e interesses de Lucas, antes de tratarmos especificamente de seus dois volumes.

Os temas especiais de Lucas Ao inspecionar esses temas, notamos como o tema da relevância universal do evangelho permeia todos eles.

1. O Espírito Santo Em anos recentes os estudiosos têm sublinhado a importância deste tema para Lucas. Os outros Evangelhos não deixam de tratá-lo, mas desde o início Lucas assinala seu interesse especial em dar ênfase à ação do Espírito no evento da concepção de Jesus (1.35), e sua inspiração a Isabel (1.41), Zacarias (1.67), e Simeão (2.25-27) para proferirem palavras proféticas sobre o nascimento de Jesus. Todos os Evangelhos relatam a descida do Espírito sobre Jesus no seu batismo, mas Lucas acrescenta duas referências posteriores ao Espírito dando poder a Jesus no início de seu ministério (4.1,14), coroando a seguir estes fatos ao registrar a dramática alegação de Jesus de que Isaías 61.1 estava sendo cumprido nele: "O Espírito do Senhor está sobre mim, pelo que me ungiu..." (Lucas 4.18).

Um de seus destaques distintivos ao retratar nosso Senhor é, pois, que seu

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ministério é realizado sob o poder do Espírito Santo. E esta é também a mensagem de Lucas sobre a igreja. Assim como seu Evangelho inicia com a descida do Espírito sobre Jesus em seu batismo, também Atos inicia com um derramamento paralelo do Espírito sobre a igreja, no Pentecoste. Lucas conta então a história da difusão do evangelho com repetidas referências ao Espírito Santo (cinqüenta e nove ao todo), que inspira a pregação (Atos 4.8), infunde ousadia (4.31), dirige a iniciativa missionária (13.2-4), concede discernimento sobrenatural (13.9-11), orienta decisões (15.28; 16.6,7; 20.22), desvenda o fu-turo (20.23; 21.11), e dá ânimo (9.31) e alegria (13.52) àigreja. Vários estudiosos têm comentado que o livro Atos dos Apóstolos pode ser melhor denominado Atos do Espírito Santo.

Contudo, isto não seria estritamente exato. De modo digno de nota, Lucas considera o Espírito como o dom, não de Deus, mas de Cristo: em seu sermão do Pentecoste Pedro diz a respeito de Jesus: "Exaltado, pois, à destra de Deus, tendo recebido do Pai a promessa do Espírito Santo, derramou isto que vedes e ouvis" (2.33). Isto conforma-se ao relato de Lucas a Teófilo no começo de Atos: "Escrevi o primeiro livro, ó Teófilo, relatando todas as coisas que Jesus começou a fazer e a ensinar, até ao dia em que, depois de haver dado mandamentos por intermédio do Espírito Santo aos apóstolos que escolhera, foi elevado às alturas" (Atos 1.1). Isto implica que Atos continua a narrativa dos feitos e ensinos de Jesus. Portanto, quando Lucas fala do Espírito Santo orientando e concedendo poder à igreja, equivocamo-nos, a menos que associemos a atividade do Espírito à do Cristo ascenso ao céu. Ele é "o Espírito de Jesus" (Atos 16.7), atuando em favor do Senhor da igreja.

O Espírito Santo é concedido indiscriminadamente a todos os que crêem. A profecia cumprida no Pentecoste—"derramarei o meu Espírito sobre toda a carne" (Joel 2.28)—tinha sido renovada e repetida quando se iniciou o ministério de Jesus: "E toda a carne verá a salvação de Deus" (Lucas 3.6). Estas referências à inclusão de "toda a carne" [toda a humanidade] no oferecimento da salvação encontra-se como sinaleiros no início de cada um dos volumes de Lucas.

A crença do judeu contemporâneo era que o dom do Espírito Santo era raro e específico. Assim, tanto para os judeus como para os gentios, o derramamento universal do Espírito foi uma notícia dramática e maravilhosa—, com efeito, uma reviravolta na história, algo nunca visto desde o início do mundo. Lucas trata deste ponto inteligentemente pela longa genealogia no início de seu Evangelho (3.23-38): a ancestralidade de Jesus é traçada não apenas desde Abraão, o pai da família judaica (como no Evangelho de Mateus), mas desde Adão, o fundador da raça humana.

2. Preocupação com as pessoas marginalizadas Lucas gosta de mostrar o cuidado de Jesus para com vários grupos e tipos de pessoas que viviam à margem da sociedade, ou eram olhadas como sem importância ou mesmo impuras. O amor de Deus abrange tais pessoas através do evangelho. Podemos destacar quatro desses grupos:

a. Mulheres. As mulheres tinham um baixo status social no Império Romano, e no pensamento judaico daqueles tempos elas eram igualmente destituídas de dignidade. Uma das ações de graças rabínicas de cada dia era: "Bendito sejas, ó Senhor Deus, que não me fizeste um escravo, um gentio ou uma mulher." Os escribas e fariseus evitavam falar com uma mulher em público, e muitos deles

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LUCAS E SUA MEÍNSAGEM 5 1

O Espírito Santo em Atos 19.21

"Depois dessas coisas, Paulo resolveu passar pelas regiões da Macedónia e Acaia e ir até Jerusalém. Ele dizia: 'Depois de visitar Jerusalém, eu preciso ir a Roma. ' " (BLH) Este versículo aparentemente inócuo é importante para Lucas. Do mesmo modo que Lucas 9.51 marca o ponto em que se inicia a longa viagem de Jesus a Jerusalém, assim este versículo marca o início da longa jornada de Paulo, primeiro, como seu Senhor, a Jerusalém, e depois a Roma. "Resolveu" seria mais literalmente traduzido "determinado no

espírito", ou "determinado no Espírito", sendo esta última provavelmente a correta.

Num ponto decisivo crucial de seu ministério, quando Paulo realiza em Efeso um trabalho tão bem-sucedido, o Espírito o impele a fixar suas vistas num alvo ainda maior. Mas surge em seguida uma contrariedade, quando irrompe uma violenta oposição: parte da mensagem de Lucas mostra que, mesmo quando guiada pelo Espírito, a vida da igreja parece caótica, e surgem contratempos, porque "através de muitas tribulações, nos importa entrar no reino de Deus"(14.22).

sustentavam que as mulheres eram incapazes de estudar as Escrituras corretamente.

A atitude cristã era muito diferente. Em sua carta aos gálatas, Paulo já havia feito a notável afirmação: "Não pode haver... nem homem nem mulher, porque todos vós sois um em Cristo Jesus" (Gálatas 3.28). Lucas pode ter sido influenciado por Paulo, mas suas opiniões eram indubitavelmente formadas por seu conhecimento da atitude de Jesus. Lucas é o Evangelho das mulheres, e mais claramente do que os outros Evangelhos ele mostra a atitude aberta e cordial de Jesus para com as mulheres, e o lugar que Ele permitiu que elas ocupassem em seu ministério.

Lucas tem sua própria posição pelo destaque que dá às mulheres nas histórias do nascimento de Jesus. E ele que conta, com tão delicada reserva, a história miraculosa da concepção e nascimento de Jesus. Maria, mãe de Jesus, e Isabel, mãe de João Batista, eram parentas, e a história deve ter tido origem diretamente, ou indiretamente, da própria Maria. Intencionalmente, o Espírito Santo faz sua reaparição na cena humana inspirando uma mulher a profetizar (1.41,42).

b. Os doentes. A obra de cura de Jesus era uma característica de tal modo predominante em seu ministério que todos os evangelistas dão-lhe grande realce, porém Lucas mais do que os outros. Seus interesses profissionais como médico podem refletir-se aqui. E evidente que este homem benévolo sentiu a compaixão de Jesus para com a humanidade sofredora. Os milagres de cura registrados por Lucas incluem: • o filho da viúva de Naim (7.11-17) • A mulher encurvada curada na sinagoga no sábado (13.10-17) • o homem hidrópico (14.1-4) • os dez leprosos (17.11-19) • a restauração da orelha de Malco, cortada pela espada de Pedro (22.50,51). Em Atos o ministério de cura de Jesus continua, conduzido agora pelas mãos dos apóstolos: • Pedro e João curam o aleijado na porta Formosa do templo, "em nome de Jesus Cristo, o Nazareno" (3.1-4.22). • Filipe cura muitos sofredores em Samaria, levando grande alegria à cidade (8.4-8). • Pedro cura Enéias em Lida com as palavras de confiança: "Enéias, Jesus Cristo te cura! Levanta-te, e arruma o teu leito (9.32-35), e em seguida ressuscita

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5 2 HOMENS COM UMA MENSAGEM

As Mulheres em Lucas e Atos As mulheres desempenham um papel relevante na história, como indicam as referências abaixo. Os demais evangelistas contam as histórias da mulher com o fluxo de sangue, da filha de Jairo, da sogra doente de Pedro e da mulher de Betânia, que unge Jesus, mas somente Lucas fala das seguintes: • profetisa Ana (2.36-38) • viúva de Naim (7.11-17) • mulher pecadora (7.36-50) • mulheres que ministram (8.2,3)—um extraordinário testemunho de violação por Jesus das normas então vigentes • Marta e Maria (10.38-42) • mulher prisioneira de Satanás por dezoito anos (13.10-17) • filhas de Jerusalém que choraram (23.27-31). Encontramos em Atos uma ênfase semelhante: • Várias vezes Lucas sublinha a presença de

mulheres entre os novos crentes (1.14; 5.14; 8.3; 17.4,12,34). • Ele pinta um quadro afetuoso de Dorcas (Tabita), que Pedro devolveu à vida em Jope (9.36-43). • Ele inclui a terna referência a Rode, a criada, e sua grande excitação (12.13,14). • A primeira conversão em Filipos foi de Lídia, uma mulher do comércio: Lucas informa que Paulo e seus acompanhantes (todos judeus) realmente se hospedaram em sua casa (16.13-15). • Priscila é geralmente mencionada antes de seu marido, Áquila, e aparentemente exerceu um papel preponderante na expansão do conhecimento de Apolo do "caminho de Deus" (18.18,19,26). • Lucas menciona o detalhe casual de que Filipe tinha quatro fdhas que profetizavam (21.9).

Dorcas (Tabita) em Jope (9.36-42). Tão ativa era a cura pela graça do Senhor que se registrou que ela operava

através da sombra de Pedro em Jerusalém (5.15,16), e pela apresentação de lenços e aventais a Paulo em Efeso (19.11,12). Além disso, uma série de curas individuais são atribuídas a Paulo: • Em Listra ele cura um pobre aleijado de nascença (14.8-10). • Em Filipos ele liberta uma menina escrava da possessão do demônio (16.16-18). • Em Trôade ele restaura à vida Eutico, vítima de uma queda durante um dos sermões do próprio Paulo (20.7-12)! • Em Malta ele restaura a saúde do pai de Públio, e em seguida também de outras pessoas doentes.

Para Lucas tais curas são claramente parte da proclamação do evangelho. Mas é interessante notar o papel que elas desempenham na história. Elas muitas vezes servem simplesmente para reunir uma multidão, a qual em seguida ouve a pregação do evangelho. Isto reflete a citação-"manifesto" de Isaías 61.1,2, com a qual o ministério de Jesus inicia em Lucas, onde "evangelizar aos pobres" coloca-se ao lado de "proclamar... restauração da vista aos cegos" (Lucas 4.18). Os milagres de cura não são um fim em si mesmos, mas servem ao grande propósito de possibilitar que o evangelho seja ouvido e crido.

c. Os impuros. Lucas vê com grande prazer o ministério de Jesus ao romper a barreira que havia em relação àqueles considerados "pecadores" ou "impuros". De modo geral, os judeus mantinham essas pessoas a certa distância com receio de contrair sua "impureza" ritual. Mas Jesus aproximou-se deles com perdão e aceitação.

Os que sofriam de lepra eram um caso relevante. Lucas demonstra uma simpatia peculiar por eles. Até os rabinos costumavam afastá-los atirando-lhes pedras, mas Jesus estendeu sua mão tocou o leproso que veio a Ele (Lucas 5.13). Em vez de contrair dele a impureza, Jesus foi capaz de dizer-lhe com autoridade: "Fica limpo!"

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Somente Lucas menciona que esse homem estava "coberto de lepra" (5.12). Além disso, somente ele registra a cura dos dez homens com lepra (17.11-19), um dos quais é um samaritano e, portanto, duplamente impuro.

Na realidade, os samaritanos constituem outro caso de preocupação de Lucas nesta categoria. Ele registra com exclusividade a parábola do Bom Samaritano (10.25-37). O ponto central desta parábola não é tão-somente a lição funda-mental de que devemos socorrer os necessitados: muito mais que isto, ela ensina uma dramática lição sobre a pureza e a impureza. O sacerdote e o levita não tocam a vítima do assalto, por receio de contaminar-se com a impureza de um cadáver. Porque não se preocupa com tais questões rituais, somente o samaritano é capaz de cumprir a lei do amor que promete vida eterna.

Somente Lucas registra a reação benevolente do perdão de Jesus ante a ha-bitual hostilidade dos samaritanos (Lucas 9.52-56), e em Atos Lucas ressalta o avanço do evangelho em Samaria, onde os apóstolos impõem as mãos sobre os "impuros" porém crentes samaritanos, e o Espírito Santo é derramado sobre eles (Atos 8.14-17).

"Aproximavam-se de Jesus todos os publicanos e pecadores para o ouvir. E murmuravam os fariseus e os escribas, dizendo: 'Este recebe pecadores e come com eles'" (Lucas 15.1,2). Assim começa o famoso capítulo que inclui as três parábolas dos "perdidos", dois dos quais (a dracma [moeda] e o filho) são relatados unicamente por Lucas. Por meio destas três histórias Jesus declara que o próprio Deus busca o perdido, representado pela multidão de destituídos que o cercam.

A comparação que Lucas faz entre Deus e um pastor, na parábola da ovelha perdida, é sem dúvida dramática, pois os pastores eram vistos com muita desconfiança pelos severos fariseus e professores da lei, que murmuravam a respeito da atitude de Jesus aqui. Em razão de seu modo de vida nômade e pela inevitabilidade de trabalhar aos sábados para cuidar dos rebanhos, os pastores eram classificados como "pecadores" sem esperança. Lucas, porém, já fizera o coro celestial cantar a primeira notícia do nascimento do Salvador a um grupo de pastores rejeitados (Lucas 2.10-14): "Hoje vos nasceu na cidade de Davi o Salvador, que é Cristo, o Senhor..." Assim, Jesus agora revela que o ponto cen-tral de seu ministério é atrair tais pessoas de volta a Deus com arrependimento e fé.

Embora muitos de tais "pecadores" sejam pobres, estão ombro a ombra naquela multidão com os abastados "cobradores de impostos". Apesar de toda sua riqueza, tais pessoas são também rejeitadas. São funcionários da alfândega, direta ou indiretamente empregados pelos odiados romanos, vistos também por muitos como "impuros", por causa de seu contato com os gentios, e temidos por todos porque tiram proveito de qualquer dinheiro extra que possam extorquir de suas infelizes vítimas.

Porém Deus os ama—esta é a mensagem de Lucas. João Batista prega a eles (3.12,13). Jesus chama um deles para juntar-se a seus discípulos (5.27,28). E quando criticado por comer com esses novos discípulos, Levi e uma multidão de seus companheiros de profissão, Jesus responde com sua famosa sentença: "Os sãos não precisam de médico, e sim os doentes. Não vim chamar justos, e sim pecadores ao arrependimento" (5.31,32).

E Lucas escreve com exclusividade a história de outro cobrador de impostos, o pequeno Zaqueu, que recebe Jesus em seu lar e em seu coração, e dá ensejo à afirmação de Jesus: "Hoje houve salvação nesta casa, pois que também este é

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filho de Abraão. Porque o Filho do homem veio buscar e salvar o perdido" (19.9,10).

De igual modo Lucas é o único a registrar a parábola do fariseu e o cobrador de impostos que vão ao templo orar (18.9-14). A conclusão de que o cobrador de impostos e não o fariseu "desceu justificado para sua casa" deve ter chocado os ouvintes de Jesus no seu íntimo. São estes pecadores indesejáveis os convidados ao Reino, exatamente como o homem que oferece um grande banquete manda que seu servo traga "os pobres, os aleijados, os cegos e os coxos" para a festa da qual os convidados ingratos estão excluídos (14.15-24).

Duas outras histórias, ambas encontradas somente em Lucas, ilustram sua constante preocupação com a graça de Deus aos pecadores. A primeira é a história da prostituta que vem silenciosamente por trás de Jesus quando Ele se reclina sobre a mesa na casa de Simão, o fariseu. A lavagem dos pés que seu hóspede não lhe havia provido, ela lhe propicia—com suas lágrimas. Ela também unge os pés de Jesus com ungüento e os cobre com seus beijos. Ele não afasta seus pés. Ela foi perdoada. Por isso, em retribuição, ela o ama muito, ao contrário de Simão (7.36-50).

O outro incidente ocorre bem no fim. Mateus e Marcos dão-nos apenas a informação de que dois criminosos são crucificados com Jesus, um em cada lado de Jesus, e que ambos se juntam ao coro dos impropérios que os escribas e anciãos vociferam contra Ele. Mas Lucas acrescenta a conversação que então se estabelece entre um deles e o Salvador. Em meio aos insultos, o criminoso tem um vislumbre de fé no reinado de Jesus, e então recebe a promessa: "Hoje estarás comigo no paraíso" (23.39-43).

d. Os ricos e os pobres. Lucas mostra uma preocupação imparcial para com as pessoas em ambos os poios da escala econômica. De fato, a questão do dinheiro e os problemas que ele causa para o discipulado representam um interesse relevante em ambos os seus volumes.

Alguns dos discípulos de Jesus eram ricos (por exemplo, Zaqueu e José de Arimatéia), como foram alguns dos que corresponderam ao apelo missionário de Paulo (por exemplo, Lídia), mas eram em sua maioria pobres. Jesus cumpre a profecia que lê na sinagoga de Nazaré: Ele prega a boa nova aos pobres (Lucas 4.18; 7.22), e promete-lhes o Reino de Deus (6.20). Ele diz a seus discípulos que é preciso renunciar a tudo para ser seu discípulo (14.33). E em Atos vemos isto posto em prática, quando muitos dos primeiros crentes entregam seus recursos para a formação de um fundo que atenda às necessidades dos pobres entre eles (Atos 2.44,45; 4.34,35).

Do mesmo modo que Mateus e Marcos, Lucas acreditou que era muito difícil, se não impossível, que uma pessoa rica entrasse no Reino de Deus (Mateus 19.24; Marcos 10.25; Lucas 18.25). Mas ele desenvolve este tema do perigo das riquezas mais do que os outros evangelistas—veja os detalhes no quadro a seguir.

3. Oração O interesse incomum de Lucas pela oração é uma característica fascinante de

ambos os seus volumes. Indubitavelmente ele mesmo era um homem de pro-funda oração, e isto é refletido em suas repetidas referências a ela—ora como uma característica da vida de Jesus, ora como um fator vital para a missão e o crescimento da igreja nascente.

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Lucas—as riquezas e a pobreza O interesse de Lucas evidencia-se no início pelas palavras de Maria no cântico que somente ele registra: "[Ele] contemplou a humildade da sua serva... Encheu de bens os famintos e despediu vazios os ricos" (1.48,53). Maria é uma pessoa pobre: ela pode trazer somente "um par de rolas ou dois pombinhos" para sua purificação, porque suas posses não lhe p e r m i t e m ofe rece r u m cordeiro (2.22-24; Levítico 12.6-8). Em razão de sua pobreza, o próprio Salvador é então deitado numa manjedoura e visitado por pastores.

A medida que o evangelho continua, Lucas tem material em comum com os outros evangelistas sobre este assunto—por exemplo, o ensino de Je sus sob re a p r o v i s ã o p a t e r n a de n o s s a s necessidades diárias (Mateus 6.25-33; Lucas 12.22-34), e a adver tência de Jesus sobre a fatuidade das riquezas na parábola do semeador (Mateus 13.22; M a r c o s 4 .19 ; Lucas 8 .14) . Contudo, Lucas também inclui muito material que se encontra exclusivamente em seu Evangelho: • Ele inclui as instruções práticas de João Batista aos c o b r a d o r e s de i m p o s t o s e s o l d a d o s a r repend idos : " N ã o cobre is mais do que o estipulado.... não deis denúncia falsa, e contentai-vos com o vosso soldo" (3.13,14). • Enquanto em Mateus Jesus exclama: "Bem-aventurados os humildes de espírito" (Mateus 5.3), Lucas apresenta uma dimensão terrena desta declaração: "Bem-aventurados vós, os pobres, porque vosso é o reino de Deus" (6.20). Em seguida ele contrabalança esta promessa de bem-aventurança aos pobres com uma série de ais con-tra os ricos (6.24-26). • Ele registra a dependência de Jesus da assistência que recebe de certas mulheres ricas (8.2,3). • Lucas inclui as palavras de Jesus: "Vendei os v o s s o s b e n s e dai e s m o l a " ( 1 2 . 3 3 ) — u m a exortação central aos discípulos em Lucas (com-pare com 11.41; 19.8). • O homem rico que oferece um banquete deve convidar não seus amigos r icos , v iz inhos e parentes, mas "os pobres, os aleijados, os coxos e os cegos"—na realidade, todos aqueles que não têm condições de retribuir-lhe (14.12-14). • Somente Lucas inclui três parábolas dedicadas a este tema: O rico tolo (12.13-21), o administrador infiel (16.1-13), e o rico e Lázaro (16.19-31). • Apenas Lucas registra esta inflexível afirmação de Jesus: "Todo aquele que dent re vós não renuncia a tudo quanto tem não pode ser meu discípulo" (14.33). Passando para Atos, observamos como o inte-resse de Lucas por este assunto contínua:

• Os primeiros crentes estão dispostos a abrir mão de seu direito a suas propriedades particulares, e entregá-las para o bem comum. • Lucas realça dramaticamente a cilada da riqueza quando relata a triste história de Ananias e Safira (Atos 5.1 -11): eles falharam em não atender à austera advertência de Jesus: "Não podeis servir a Deus e às riquezas" (Lucas 16.13). • Lucas acentua o cuidado que a igreja nascente tem ao assegurar que a distribuição de alimentos aos pobres seja conduzida adequadamente (Atos 6.1-7). • São "as orações e esmolas" de Cornélio que fazem Deus "lembrar-se" dele e enviar Pedro para anunciar-lhe o evangelho (Atos 10.4). • Lucas evidencia a saúde espiritual da igreja em Antioquia em sua iniciativa de enviar socorro para aliviar a fome na Judéia (Atos 11.28-30). • Ele assinala a afirmação de Jesus: "Mais bem-aventurado é dar que receber" (Atos 20.35). Portanto, no seu conjunto isto tudo constitui um substancial interesse na obra de Lucas, à medida que ele nos adverte do poder do dinheiro para ludibriar, e nos incita a usar o que conseguimos com sacrifício para "ganhar amigos" para o Reino de Deus (Lucas 16.9).

Lucas adverte das ciladas das riquezas. Este conjunto de siclos de prata foi encontrado dentro do lampião de barro acima deles. Datam de 66-70 d.C.

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0 monte Hermom, no extremo norte de Israel, é um dos lugares sugeridos em que se deu a Transfiguração de Jesus.

No Evangelho há nada menos do que onze pontos aos quais Lucas acrescenta uma referência à oração nas histórias que ele apresenta em paralelo com Mateus e Marcos: • 3.21: Jesus está orando quando o Espírito desce sobre Ele em seu batismo. •5.16: Jesus retira-se ao deserto para orar. • 6.12: Jesus ora durante toda a noite antes de escolher os doze apóstolos. • 9.18: Jesus ora a sós antes de fazer a primeira predição de sua morte e ressurreição próximas. • 9.28,29: Jesus sobe ao monte da Transfiguração a fim de orar, e está realmente orando quando se transfigura. • 11.1: é a visão de Jesus orando que leva os discípulos a pedir-lhe: "Senhor, ensina-nos a orar", o que deu como resultado a Oração do Senhor. • 22.32: ao predizer que Pedro o trairia, Jesus, apesar disso, assegura a Pedro: "Eu, porém, roguei por ti, para que a tua fé não desfaleça." • 22.40: no jardim do Getsêmani Jesus insta com seus discípulos a orar "para que não entreis em tentação". • 22.44,45: Lucas acrescenta o detalhe de que Jesus, "estando em agonia, orava mais intensamente", e em seguida, "levantando-se da oração", foi ter com seus discípulos. • 23.34: Apenas Lucas faz constar a oração de Jesus na cruz: "Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem." • 23.46: "Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito" está somente em Lucas.

Somos capazes de perscrutar a mente de Lucas quando nos detemos a observar esta notável seqüência de referências. Ele apresenta Jesus como alguém

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s Exemplos de "E necessário..." em Lucas e Atos Lucas 4.43: Jesus disse: "É necessário que eu anuncie o evangelho do reino de Deus também às outras cidades, pois para isso é que fui enviado." Lucas 9.22: Jesus disse: "E necessário que o Filho do homem sofra muitas coisas, seja rejeitado pelos anciãos, pelos principais sacerdotes e pelos escribas; seja morto e no terceiro dia ressuscite." Compare com 17.25; 24.7; Atos 17.3V

Lucas 13.33: "E necessário [adaptado], contudo, caminhar hoje, amanhã e depois, porque não se espera que um profeta morra fora de Jerusalém." Lucas 22.37: Pois vos digo que é necessário [adaptado] que se cumpra em mim o que está escrito: 'Ele foi contado com os malfeitores.' Porque o que a mim se refere está sendo cumprido."

Atos 3.21: "Ao qual [Jesus] é necessário que o céu receba até aos tempos da restauração de todas as coisas, de que Deus falou por boca dos seus santos profetas desde a antiguidade." Atos 9.6,16: "Mas levanta-te, e entra na cidade, onde te dirão o que te é necessário [adaptado] fazer. ... pois eu lhe mostrarei quanto lhe é necessário [adaptado] sofrer pelo meu nome." Atos 14.22: "Mostrando que, através de muitas tribulações, nos é necessário [adaptado] entrar no reino de Deus." Atos 19.21: Paulo decidiu ir a Jerusalém, passando por Macedónia e Acaia. "Depois de haver estado ali", disse ele, "é necessário [adaptado] ver também Roma."

Nestes exemplos da versão Almeida (ERA), a tradução foi ligeiramente alterada para tornar a presença da expressão mais clara, (n.t.)

constantemente em oração, e cujo ministério foi todo moldado e orientado por uma profunda consciência da íntima comunhão com Deus, seu Pai.

Esta ênfase continua por todo o segundo volume de Lucas. A oração é um dos quatro pilares da vida da igreja (Atos 2.42), a fonte de poder e ousadia quando em face da oposição (4.23-31). Coisas maravilhosas acontecem no contexto da oração (não necessariamente na resposta a ela: 3.1; 10.30; 12.5; 16.25). Em vários momentos cruciais uma orientação específica é dada por meio da oração (9.11; 10.9-16; 13.2,3), e a oração marca eventos significativos na vida da igreja (14.23; 21.5), notadamente curas (9.40; 28.8). Para Lucas, uma igreja que não ora não é uma igreja verdadeira.

4. O plano e vontade de Deus Outra característica vital da mensagem de Lucas é sua profunda convicção de que a história que ele está contando não apenas "aconteceu". Ela é realmente a história de como o plano de Deus se desenvolveu na terra. Esse cumprimento do plano de Deus não exclui evidentemente a responsabilidade do homem. O próprio Jesus ora: "Não se faça a minha vontade, e sim a tua", e então recebe força adicional para fazer a vontade de Deus (22.42,43). De modo semelhante, Paulo tem de comprometer-se com determinação a fazer a vontade de Deus quando também ele está a ponto de morrer em Jerusalém, e outros tentam persuadi-lo a não ir até lá (Atos 21.12-14). O plano de Deus também é combatido por aqueles que resistem a Ele. Mas, apesar de toda a oposição e através de todas as complexidades da atitude humana, a vontade de Deus é feita.

Este tema em Lucas foi estudado recentemente por John Squires, em seu livro The Plan ofGod in Luke-Acts (O Plano de Deus em Lucas-Atos).. Squires observa cinco modos pelo quais Lucas sublinha este tema:

a. Deus está no comando da história. Desde a criação (Lucas 3.38) até ao juízo final (Atos 17.31), Ele está no comando. Esta constatação é feita sutilmente em Lucas 2.1, em que a mente do imperador romano é induzida a promulgar um

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0 Evangelho de Lucas inicia com o nascimento e a preparação, situando o nascimento de Jesus em Belém, a cidade de Davi. Nesta vista tomada da velha estrada para Belém que atravessa um pomar de oliveiras, pode-se ver ao fundo a fortaleza de Herodes o Grande, em Heródio.

decreto que traz uma jovem camponesa de Nazaré a Belém, de sorte que seu bebê, o filho de Davi, nasça na cidade de Davi.

b. Deus está no cornando da igreja. Ele dirige tanto o Senhor Jesus como a igreja, na direção que seu ministério deve tomar. Lucas de modo natural insinua isto por seu repetido uso de uma pequena palavra grega freqüentemente traduzida "é necessário..." Ele usa esta expressão em nada menos do que quarenta e duas ocasiões em seus dois volumes. Se perguntarmos: "Por que é "necessário"?, a resposta geralmente é: porque foi isto que Deus planejou.

c. Deus intervém diretamente para dirigir acontecimentos. Isto ocorre em várias ocasiões, especialmente em Atos: por exemplo, em três ocasiões um anjo aparece a Paulo, cada vez dando-lhe orientação a respeito do próximo estágio de sua missão (Atos 16.9,10; 23.11; 27.23,24). As curas são também a direta ação de Deus, possibilitando a difusão do evangelho.

d. A Escritura foi cumprida, supremamente em Jesus, mas também na vida da igreja. Lucas constantemente traz o cumprimento de profecias à nossa atenção, e isto salienta a realização do plano de Deus. Ele faz isto de modo convincente no episódio da manifestação de Jesus no caminho de Emaús (Lucas 24.13-35). Uma revelação pessoal de si mesmo teria eliminado a agonia dos dois discípulos, mas Jesus deliberadamente adia sua identificação até que tenha mostrado a ambos que tanto a morte como a ressurreição de Cristo foram preditas pela Escritura (24.25-27,46,47).

e. Deus predeterminou certos acontecimentos vitais. Estes se realizam, a despeito

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da opos ição . Pedro , em seu s e r m ã o do Pen lecos te , acusa seus ouv in tes de t e rem m a t a d o Jesus b ru t a lmen te , m a s ac rescen ta o comen tá r io : " . . . sendo este [Jesus] e n t r e g u e p e l o d e t e r m i n a d o d e s í g n i o e p r e s c i ê n c i a de D e u s " ( A t o s 2 . 2 3 ) . S e m e l h a n t e m e n t e , e m sua o ração q u a n d o e n f r e n t a v a m a p r ime i ra pe r segu ição , os c ren tes de J e rusa l ém vêem o p lano de D e u s por trás da c ruc i f i cação : " . . .para f a z e r e m tudo o que a tua m ã o e o teu p ropós i to p r e d e t e r m i n a r a m " (Atos 4 .28) .

E d i f í c i l d e f i n i r o r e l a c i o n a m e n t o e n t r e e s t a s o b e r a n i a d e D e u s e a r e sponsab i l i dade dos agen tes h u m a n o s e n v o l v i d o s — t a n t o os que se o p õ e m ao p lano c o m o os que o b e d e c e m a ele. T u d o o que p o d e m o s dizer é que Lucas não vê qua lque r conf l i to entre as duas idéias. O resu l tado é u m a pode rosa conf i ança : s e j am qua i s f o r e m os p r o b l e m a s que p o s s a m a to rmen ta r a igre ja , por ma i s t ra içoe i ros que os a c o n t e c i m e n t o s p o s s a m parecer , por mais pode rosos que os in imigos do e v a n g e l h o p o s s a m ser. D e u s levará ad ian te o c u m p r i m e n t o de seu plano. A s s i m , a t ravés de mu i to s perca lços , o e v a n g e l h o a lcança R o m a . o cen t ro do i m p é r i o , e a h i s tó r i a t e r m i n a ali c o m u m a p ú b l i c a p r o c l a m a ç ã o ( A t o s 28 .30 ,31) .

Os es tud iosos f i c a m desconce r t ados sobre o f inal de Atos . Pa rece que ele t e rmina a b r u p t a m e n t e , e nunca f i c a m o s s a b e n d o o resu l t ado da ape l ação ao imperador que levou Pau lo a R o m a . Pode ser que o j u l g a m e n t o a inda não t ivesse s ido rea l i zado q u a n d o Lucas acaba ra de escrever . Mas , de q u a l q u e r m o d o . o ab rup to f inal dá a impres são de u m a his tór ia a inda inacabada , o que nos pe rmi t e l igar nossa expe r i ênc ia àque la dos após to los , e ass im ter a m e s m a c o n f i a n ç a de que , se j am qua i s f o r e m os obs tácu los e con t r a r i edades que p o s s a m o s enf ren ta r , o e v a n g e l h o t r iunfa rá t a m b é m para nós.

Os dois volumes de Lucas V a m o s f i n a l m e n t e e x a m i n a r o E v a n g e l h o e Atos , e ext ra i r de les os me ios pe los qua i s L u c a s es t ru turou a his tór ia e t r ansmi te sua m e n s a g e m .

O Evangelho 1.1-4.13 Nascimento e preparação. A p ó s o p re fác io , o E v a n g e l h o de L u c a s c o m e ç a n u m a a t m o s f e r a to t a lmen te j u d a i c a . A cena é co locada no t e m p l o em Jerusa lém, e a pr imeira f igura a q u e m s o m o s apresentados é u m sacerdote ca sado c o m u m a das f i lhas de Arão . O f i lho p r o m e t i d o a este p i edoso casal deve man te r o an t igo voto de nazi reu desde seu n a s c i m e n t o (1 .15) . Ele será u m profe ta , f a l a n d o " n o espí r i to e p o d e r de E l i a s" (1 .17) .

A a t m o s f e r a j u d a i c a e do Velho T e s t a m e n t o con t inua a t ravés da p r o m e s s a do M e s s i a s a Mar ia , a his tór ia de seu nasc imen to , e os cân t icos que ela. Zaca r i a s e S i m e ã o e n t o a m (1 .46 -55 . 6 7 - 7 9 ; 2 .29 -32) . Es ta a t m o s f e r a não é ac iden ta l . E m b o r a e s c r e v e n d o aos le i tores gen t ios , L u c a s não p re t ende suger i r que o Cr i s t i an i smo é u m a re l ig ião nova , s em n e n h u m a raiz his tór ica no passado . O que acon teceu é u m c u m p r i m e n t o do a c o r d o de D e u s com A b r a ã o e de suas p r o m e s s a s p o r m e i o dos p ro fe t a s (1 .54 ,55 ,70 ,72 ,73) . M a s o c u m p r i m e n t o é ma i s r ico do que a expec ta t iva , e do t rono de Davi Ele deverá re inar sobre todo o m u n d o , não apenas sobre Israel.

Esta pe r spec t iva mais a m p l a surge em 2.1 com a r e fe rênc ia ao en tão o c u p a n t e do t rono mund ia l . Césa r A u g u s t o . Ele não t em n e n h u m a idéia do que D e u s es tá p l a n e j a n d o e r ea l i zando n u m l o n g í n q u o can to de seu i m p é r i o — p o r in t e rméd io de u m a f a m í l i a de c a m p o n e s e s pobres , apo iada por u m g r u p o de pas tores . Es te

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62 HOMENS COM UMA MENSAGEM

contexto terrestre é um pouco adiante enfatizado pelo cântico dos anjos (2.14) e pela forma como Lucas apresenta o ministério de João Batista (3.1,2). Estes capítulos se referem aos preparativos para o ministério do novo Rei: seu próprio crescimento (2.41-52); a pregação de João Batista (3.1-22); sua genealogia oculta, que fez dele um marco divisório na história universal (3.23-38); e sua vitória sobre o Diabo no poder do Espírito (4.1-13).

4.14-9.50 O Ministério na Galiléia. Esta primeira parte importante do Evangelho inicia com a notável narrativa da visita de Jesus a Nazaré (4.16-30). Mateus e Marcos relatam um incidente similar mais ao final do ministério na Galiléia (Mateus 13.53-58; Marcos 6.1-6), mas não fica claro se Lucas está se referindo a uma outra visita, ou se ele alterou deliberadamente a seqüência dos eventos para iniciar sua narrativa do ministério de Jesus com esta história expressiva.

De qualquer modo, o sentido do incidente é claro para Lucas. Ele apresenta o ministério de Jesus em três passos: primeiro, a citação de Isaías 61.1,2 afirma-se como um moto na fachada da história. Vemos Jesus fazendo todas estas coisas—pregar, curar e até proclamar liberdade, como no caso de Barrabás (23.25), que representa todos os que recebem a libertação imerecida através de Jesus.

Segundo, prenuncia a rejeição final de Jesus pelo povo judeu. É realmente uma história sombria: ungido pelo Espírito, Ele é desprezado por seu povo.

E terceiro, destaca a missão universal que Ele vai lançar. Seus ouvintes sentem-se ultrajados pela referência de Jesus a Naamã e à viúva de Sarepta, que foram estrangeiros abençoados por Deus, preferidos em lugar dos israelitas em idêntica necessidade (4.25-27). Na outra ponta da história, Paulo faz um idêntico desafio aos judeus de Roma, que de igual modo rejeitam o evangelho que ele prega: "Tomai, pois, conhecimento de que esta salvação de Deus foi enviada aos gentios. E eles a ouvirão" (Atos 28.28). Esta missão aos gentios foi legada desde o início por Jesus, muito embora Ele mesmo se dirigisse a Israel.

Portanto, durante o ministério na Galiléia Jesus particularmente revela seu amor pelo estrangeiro gentio. O servo do centurião romano é curado (7.1-10). Lucas oferece uma versão desta história mais longa que a de Mateus, registrando a humildade do centurião ("Eu mesmo não me julguei digno de ir ter contigo" [versículo 7]), e mostrando a preocupação dos anciãos judeus por este gentio.

9.51-19.40 Jesus viaja a Jerusalém. Muitos estudiosos vêem 9.51 como o ponto crítico do Evangelho. Agora Jesus deixa a Galiléia e inicia sua jornada em direção de Jerusalém. Um escritor moderno, David Gooding, considera 1.1 -9.50 como a "Vinda" de Jesus do céu para a terra, culminando na revelação da glória na transfiguração. A segunda metade do Evangelho, de 9.51 para frente, é correspon-dentemente a "Ida" de Jesus da terra para o céu, culminando igualmente em glória, a glória da ascensão.

Esta parte longa do Evangelho é composta quase exclusivamente de material não encontrado em Marcos, muito dele peculiar a Lucas, e tem sido chamado de "Narrativa de Viagem" de Lucas. Jesus movimenta-se gradativamente em direção à rejeição final em Jerusalém, em direção ao sofrimento que entendemos é o centro de sua missão, e, de incidente em incidente, descobrimos mais sobre o que significa segui-lo. O discipulado significa estarem movimento, com Ele, deixando para trás a segurança e o lar (9.57-62) em troca de uma vida de fé,

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MATEUS E SUA MENSAGEM 6 1

oração , obed i ênc i a e sacr i f íc io pa ra a l cançar os necess i t ados .

19.41-24.53 Jesus em Jerusalém. N o c o m e ç o des ta par te f inal J e sus ent ra e m Je rusa l ém c o m g rande t r is teza p o r q u e sabe q u e a c idade vai re je i tá- lo , e an t evê u m j u l g a m e n t o exec ráve l (19 .41-44) . Es ta par te t e rmina , em cont ras te , c o m os d i sc ípu los en t r ando e m Je ru sa l ém " t o m a d o s de g rande j ú b i l o " (24.52) , po rque es ta r e j e i ção de Je sus por Israel s ign i f ica que as Escr i tu ras f o r a m c u m p r i d a s , o Espí r i to San to foi p rome t ido , e t odas as n a ç õ e s o u v i r ã o agora a B o a N o v a de a r r e p e n d i m e n t o e p e r d ã o (24 .45-49) .

N o intervalo entre as duas "en t radas" de scob r imos c o m o um desses e v e n t o s — a c ruc i f i cação de J e s u s — p o d e ser duas co i sas mui to d i fe ren tes , de um lado a horr ível r e j e i ção e e x e c r a n d o c r ime , e de ou t ro lado u m c u m p r i m e n t o cio p l ano de D e u s para a sa lvação do m u n d o . É s i m p l e s m e n t e u m a ques t ão de o lha r o e v e n t o de duas pe r spec t ivas b e m d i fe ren tes . A s s i m L u c a s desa f i a seus lei tores gen t ios : c o m o eles v ê e m i sso? C o m o Pi la tos , c o n s i d e r a n d o - o u m a d i spu ta re l ig iosa i r re levante de pouca c o n s e q ü ê n c i a ? Ou c o m o os d i sc ípu los e o p rópr io Lucas , c o m o o c u m p r i m e n t o do p lano de D e u s para des t ru i r a mor te pa ra toda a h u m a n i d a d e ?

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64 HOMENS COM UMA MENSAGEM

O livro de Atos O s e g u n d o v o l u m e c o m e ç a e x a t a m e n t e onde t e rmina o p r imei ro . Os d i sc ípu los es tão em Je rusa l ém, e s p e r a n d o que o Espír i to San to lhes se ja d a d o (1.5). U m a breve in t rodução r e s u m e o pe r íodo antes da a scensão e f i xa a a g e n d a para o p r ó x i m o es tágio : " R e c e b e r e i s poder , ao de sce r sobre vós o Espí r i to Santo , e sereis minhas t e s temunhas tanto em Je rusa lém, c o m o em toda a Judéia e Samar ia , e até os c o n f i n s da t e r ra" (1.8).

Este q u a d r o de c í rcu los g e o g r á f i c o s concên t r i cos f o r m a a es t ru tura de Atos . Até o f inal do cap í tu lo 7. a a ç ã o se desenro la e m J e r u s a l é m . Mas , c o m a m o r t e de Es têvão , " . . . l evan tou-se g rande pe r segu i ção con t ra a ig re ja em Je ru sa l ém; e todos , exce to os após to los , f o r a m d i spe r sos pe las reg iões da Judé ia e S a m a r i a " (8.1). O c í rcu lo se ampl ia .

Judé ia e S a m a r i a p e r m a n e c e m c o m o cenár ios de o p e r a ç õ e s até 9 .31 . que é u m dos b reves r e s u m o s da "h is tór ia até aqui" : " A igreja , na verdade , t inha paz por toda a Judé ia . Gal i lé ia e Samar ia , e d i f i c a n d o - s e e c a m i n h a n d o no t e m o r do S e n h o r e, no c o n f o r t o do Espí r i to Santo , c resc ia em n ú m e r o . "

M a s as s emen te s do d e s e n v o l v i m e n t o pos te r ior j á es tão p lan tadas . V i a j a m o s à Síria para t e s t e m u n h a r a c o n v e r s ã o de Sau lo e m D a m a s c o (9.1 -19) . e o u v i m o s a pa lavra do Senhor a ele por meio de Ananias : "Es te é para m i m u m ins t rumento e sco lh ido pa ra levar o m e u n o m e peran te os gen t ios e reis, b e m c o m o peran te os f i lhos de I s rae l" (9.15).

A g o r a essas s e m e n t e s c o m e ç a m a germinar . M u i t o e m b o r a , g e o g r a f i c a m e n t e , a ação se c i r cunsc reva b a s i c a m e n t e à Judé ia e a S a m a r i a nos t rês cap í tu los seguin tes , a h is tór ia da conve r são de Corné l i o no cap í tu lo 10 p repa ra -nos pa ra a exp lo são que t em lugar no início do cap í tu lo 13. Aqu i Pau lo e B a r n a b é são env i ados pe lo Espír i to San to ao m u n d o gent í l ico, e e m três v iagens miss ionár ias c o n s e c u t i v a s v e m o s o e v a n g e l h o c r e s c e n d o g r a d u a l m e n t e m a i s l o n g e de J e ru sa l ém e ma i s per to dos " c o n f i n s da te r ra" (1.8).

1.9-7.60 As fundações de Jerusalém O dia do Pen tecos te p rovê u m c u m p r i m e n t o inicial da v isão de Atos 1 . 8 . 0 d o m de l ínguas capac i ta os d i sc ípu los a fa la r e m seu i d ioma na t ivo a todos os que v is i tam J e r u s a l é m . C o m o indica o P ro fe s so r H o w a r d Marsha l l , esse d o m não e ra neces sá r io pa ra r e a l m e n t e c o m u n i c a r - s e c o m os e s t r ange i ros p resen tes . I ndub i t ave lmen te , a g r ande maior ia era capaz de fa la r o g rego koine. A s s i m , a impor t ânc i a do a c o n t e c i m e n t o es tava em que eles o u v i a m "as g r andezas de D e u s " (2.11) nos d ia le tos de seus v iz inhos pagãos não - judeus . Eles e r am, pois , aque les para q u e m essa m e n s a g e m era des t inada .

P e d r o e s t e n d e a i m p o r t â n c i a d o a c o n t e c i m e n t o . E l e e x p l i c a q u e é u m c u m p r i m e n t o da p r o m e s s a de D e u s o d e r r a m a m e n t o de seu Espí r i to sobre toda ca rne (2 .17 ,18) , não somen te sobre todas as nações , m a s sobre a m b o s os sexos ( " f i l hos e f i lhas" ) , ve lhos e j o v e n s , e sobre pes soas de todas as c lasses da soc iedade ( m e s m o "servos , tanto h o m e n s c o m o mulhe res" ) . Na rea l idade , c o m o P e d r o con t inua a dizer , a inda c i t ando Joel , " acon tece rá q u e todo aquele que invoca r o n o m e do Senho r será s a l v o " (2.21). Nes te ape lo f inal ele torna c la ro q u e a p r o m e s s a não é s o m e n t e pa ra "vós e vos sos f i lhos" , m a s t a m b é m "pa ra t odos os que a inda es tão longe" , f r a se que se ap l ica aos gent ios . D e u s m a n t e v e seu aco rdo c o m A b r a ã o para abençoa r todas as f amí l i a s da terra a t ravés de sua d e s c e n d ê n c i a (3 .25; G ê n e s i s 12.3).

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LUCAS E SUA MEÍNSAGEM 6 3

N o s cap í tu los 3 -7 a igreja e m Je rusa l ém é cons t i tu ída . Nada pode in t e r romper a m e n s a g e m de Deus . Há p rob lemas : pe r segu i ção (4 .1-31; 5 .17-42 , h ipocr i s ia (5 .1-11) , e d e s u n i ã o (6 .1-7) . Mas . no me io de todas es tas coisas , "c resc ia a pa lavra de D e u s " (6.7). E m 2.41, há 3 .000 cren tes ; e m 4.4 . 5 .000 ; em 5 .14. há "ma i s e mais . . . c rentes , t an to h o m e n s c o m o mu lhe re s " , e em 6.7 " em Je rusa l ém se mul t ip l i cava o n ú m e r o dos d i sc ípu los" .

Esta par te a t inge seu c l ímax c o m a d e f e s a e mar t í r io de Es t êvão (6 .8-8.1) . Ele é acusado de fa lar contra Moi sés (6.11). d i zendo que Jesus destruirá o t emp lo e m u d a r á a lei (6 .13 ,14) . A a c u s a ç ã o é séria. A d e f e s a e loqüen te e hábil de Es t êvão torna c la ro o que Jesus es tava e f e t i v a m e n t e ens inando ; e L u c a s usa seu longo regis t ro do d i scurso de Es t êvão (7 .2-53) c o m o p repa ração de seus lei tores pa ra as p r ó x i m a s m u d a n ç a s que have rá na história .

N u m a pa lavra , E s t ê v ã o diz q u e o ve lho pa r t i cu la r i smo dá lugar a u m n o v o un ive r sa l i smo . Deus não está a t ado a u m ed i f í c io ou a u m país . Ele e s t ava c o m A b r a ã o na M e s o p o t â m i a , em Harã e na Pales t ina ; c o m José no Egi to; c o m M o i s é s na terra de Mid iã ; c o m os israel i tas no deser to ; c o m Josué q u a n d o ele es tabe leceu a n a ç ã o na terra p romet ida . E ve rdade que S a l o m ã o cons t ru iu o t emplo , m a s o p ro fe t a Isaías diz que o t rono de D e u s es tá no céu e que a terra é o e scabe lo de seus pés . A cons t a t ação do Velho Tes t amen to é c lara: " n ã o habi ta o A l t í s s imo e m casas fe i tas por m ã o s h u m a n a s " (7 .48) .

A impor t ânc i a do d i scurso e m o r t e de Es t êvão é tr ipla. Teo log i camen te , ela p a v i m e n t a o c a m i n h o para a p r ó x i m a mi s são aos gent ios . Pe s soa lmen te , esses even tos levam à conve r são de Saulo , que par t ic ipa do a p e d r e j a m e n t o de Es têvão e, sem dúv ida , ouve o seu d iscurso . Ele se to rna o ma io r e x p o e n t e do e v a n g e l h o de Es t êvão ! E g e o g r a f i c a m e n t e , c o m o v e m o s , a mor te de E s t ê v ã o ense j a a e x p a n s ã o do e v a n g e l h o de J e r u s a l é m até à Judé ia e S a m a r i a (8.1).

8.1-12.25 A pressão aumenta T o d a esta par te pode ser c o m p a r a d a a u m a água em fe rvura n u m a ca lde i ra sem vá lvu la de e scape ; a p re s são a u m e n t a g r a d a t i v a m e n t e até que os rebi tes não podem mais supor tar a fo rça e o inevitável a c o n t e c e — u m a explosão . A exp lo são ocor re no c o m e ç o do cap í tu lo 13, q u a n d o f i n a l m e n t e o e v a n g e l h o se p ro je ta em d i reção ao m u n d o gent í l ico , sob o i m p u l s o p o d e r o s o do Espír i to .

A pressão c o m e ç a a i r romper c o m a e x p a n s ã o e m Samar i a , no cap í tu lo 8, t a m b é m m a r c a d o por u m a a t iv idade expres s iva do Espí r i to Santo . A c o n v e r s ã o de Sau lo s o m a - s e a isto, e en tão o longo ep i sód io , e m que a v isão de Pedro e a e x p e r i ê n c i a c o m C o r n é l i o são r e l a t a d a s d u a s vezes , a c e l e r a o e x p r e s s i v o d e s e n v o l v i m e n t o da obra . C o m o p o d e a igre ja resist i r à a t iv idade do Espí r i to , que es tá e v i d e n t e m e n t e d e r r u b a n d o as ve lhas barre i ras ent re j u d e u s e gen t io s? A igreja mult i r racial de An t ioqu ia passa a existir , p o r é m não c o m o apo io f r a n c o da i g r e j a de J e r u s a l é m ( 1 1 . 2 0 , 2 1 ) . N o c a p í t u l o 12 p a r e c e q u e v o l t a m os obs tácu los . "En t re t an to a pa lav ra do Senho r c resc ia e se mu l t i p l i c ava" (12 .24) . Até q u a n d o pode a p ressão con t inua r antes q u e a f e rvu ra se e s p a r r a m e ?

13.1-15.35 Primeira viagem missionária de Paulo U m a vez ma i s o Esp í r i to dá um pas so e i m p u l s i o n a a igreja a segui r ad iante . Pode nos pa rece r natural que pes soas c h e g u e m a tornar-se cr is tãs sem t a m b é m ser j ud ia s , mas isto não é acei tável de m o d o abso lu to pa ra os p r ime i ros crentes . C o m o Pau lo e Ba rnabé e m sua p r ime i ra e m p r e s a miss ionár ia , e les d e s c o b r e m por expe r i ênc i a que , q u a n d o os j u d e u s re je i t am o e v a n g e l h o , " o s gent ios . . .

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6 4 HOMENS COM UMA MENSAGEM

lACEDONIA

Tessalônica Berél&C"C:

Antioquia da Pisídia\ . Icônio \

P I S I D ^ * * , , L i s t r a \ l//a %rgeVerbe CILÍ

Atenas

ACAIA

CHIPRE;, Pafos Mar

Mediterrâneo Salaminè

Jerusalém

Primeira Viagem

Âs três viagens missionárias de Paulo e a viagem a Roma.

Puzuòit

Siracusa

i almoriâ

CIRENAICA Mar Mediterrâneo

'Jerusalém

EGITO \ y —

A Viagem a Roma

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LUCAS E SUA MEÍNSAGEM 6 5

regozijavam-se e glorificavam a palavra do Senhor, e creram todos os que haviam sido destinados para a vida eterna" (13.48). O Espírito Santo parece requerer apenas que eles creiam no Senhor Jesus. Não se exige deles que também se tornem judeus. No final de seu roteiro missionário, Paulo e Barnabé alegremente concluem que Deus simplesmente "abrira aos gentios aporta da fé" (14.27).

Alguns, entretanto, admitem que a ação do Espírito Santo precisa de cuidadosa interpretação. Alguns deles chegam a Antioquia insistindo em que "se não vos circuncidardes segundo o costume de Moisés, não podeis ser salvos" (15.1). Assim, o episódio relatado por Lucas em Atos 15 é uma conseqüência vital da missão recém-completada. Paulo e Barnabé são nomeados, juntamente com outros, para subirem a Jerusalém a fim de resolverem a questão com "os apóstolos e os presbíteros" (Atos 15.4): devem os gentios também tomar-se judeus para que sejam salvos?

É provável que por esse tempo Paulo escreve sua carta aos gálatas como uma circular enviada às igrejas que ele havia fundado em sua viagem missionária. A carta é uma defesa apaixonada do ponto de vista que também prevaleceu em Jerusalém—que nossa "justificação", ou aceitação, diante de Deus não depende de nossa obediência à lei, mas somente a Cristo, a quem estamos unidos pela fé.

Com esta questão vital resolvida, a fundação é lançada para que o evangelho avance sem obstáculo "até aos confins da terra".

15.36-18.22 Segunda viagem missionária de Paulo Esta viagem começa como um projeto para revisitar as igrejas fundadas na primeira viagem (15.36), porém novamente o Espírito Santo se antecipa, e em seguida os orienta. Em pouco tempo Paulo e seus companheiros decidem que

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6 6 HOMENS COM UMA MENSAGEM

devem levar o evangelho até à Grécia (16.10), e acabam ministrando sucessivamente em Filipos, Tessalônica, Beréia, Atenas e Corinto. Paulo permanece mais de dezoito meses em Corinto antes de finalmente retornar ao seu "lar", a igreja em Antioquia.

18.23-21.16 Terceira viagem missionária de Paulo Inclinamo-nos a pensar que Paulo tinha concebido a idéia de fazer de Éfeso o centro do ministério, à semelhança de Corinto (18.21). Ele faz isto agora, despendendo ali mais de dois anos. Éfeso era, como Antioquia, uma das maiores cidades do império e o foco da vida de uma grande área adjacente. Mas de novo o Espírito se interpõe e muda a mente de Paulo sobre tal estratégia: Roma! O itinerário um tanto tortuoso pelo qual Paulo se decide (19.21) é provavelmente em conseqüência da coleta que ele levantou em favor da igreja em Jerusalém (por exemplo, Romanos 15.25-27): ele deseja levá-la pessoalmente até lá.

Paulo está visivelmente preocupado com a visita a Jerusalém. Ele pede aos romanos que orem "para que eu me veja livre dos rebeldes que vivem na Judéia, e que este meu serviço em Jerusalém seja bem aceito pelos santos" (Romanos 15.31). Lucas destaca este pressentimento ao relatar as mensagens proféticas que falam a respeito de sua prisão (20.22,23; 21.10-14). E por certo, logo ao chegar a Jerusalém, Paulo se vê em dificuldades com os judeus e cristãos-judeus que desaprovam profundamente seu evangelho desvinculado da lei mosaica.

21.17-28.31 A viagem a Roma Estes capítulos finais de Atos contêm alguns dos mais comoventes escritos de toda a Bíblia. O fato marcante é que, desde o momento em que Paulo é agarrado pela multidão revoltosa em Atos 21.30, ele nunca mais consegue viver em liberdade. Ele passa o restante do livro como um prisioneiro, aparentemente abandonado diante dos caprichos da justiça romana.

0 gigantesco teatro de Éfeso visto do alto do terceiro lance de degraus ou assentos. Pre-sume-se que foi neste teatro que houve o alvoroço provocado por aqueles cujo sustento dependia da fabricação de nichos da deusa Artêmis (a Diana dos efésios).

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LUCAS E SUA MEÍNSAGEM 6 7

Mas o modo como Lucas narra a história dá uma impressão totalmente distinta. Paulo não está subjugado e desamparado. O plano de Deus está se desenvolvendo. Paulo tem muitas oportunidades para testemunhar a uma enorme multidão em Jerusalém, ao sinédrio judaico, a dois governadores romanos, ao Rei Herodes e sua esposa, a uma tripulação e passageiros de aproximadamente trezentas pessoas num navio, ao governador de Malta e, através dele, a muitos outros habitantes da ilha, aos líderes de uma grande comunidade judaica em Roma, e, finalmente, a todos os que o procuram e ouvem na capital imperial. Paulo pode ter sido um prisioneiro, mas, como ele mais adiante expressa a Timóteo, "a palavra de Deus não está algemada" (2 Timóteo 2.9).

Portanto a mensagem de Lucas é, afinal de contas, um grande estímulo a uma igreja sofredora e fraca. Sob quaisquer dificuldades em que ela opere, e por mais impotente que ela possa parecer, a igreja é sempre conduzida "em triunfo" (2. Co 2.14), se tão-somente seguirmos o exemplo de Paulo: confiar no Senhor da igreja e agarrar-se às oportunidades que Ele nos depara.

Leitura adicional

Menos exigente: David Gooding, According to Luke. A new exposition of the Third Gospel ( Leicester:

IVP, 1987) David Gooding, True to the Faith. Afresh approach to the Acts of the Apostles (Londres:

Hodder & Stoughton, 1990) J. R. W. Stott, The Message of Acts: To the ends of the earth (Leicester: IVP, 1990) Michael Wilcock, The Message of Luke: The Saviour of the World (Leicester: IVP, 1979)

Mais exigente, obras eruditas: J. A. Fitzmyer, Luke the Theologian. Aspects of His Teaching (Londres: Geoffrey

Chapman, 1989) W. W. Gasque, A History of the Criticism of the Acts of the Apostles (Grand Rapids:

Eerdmans, 1975) I. H. Marshall, Luke: Historian and Theologian (Exeter: Paternoster, 1970) JohnT. Squires, The Plan of God in Luke-Acts (Cambridge: Cambridge University Press,

1993)

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João e sua Mensagem Na verdade, fez Jesus diante dos discípulos muitos outros sinais que não estão escritos neste livro. Estes,

porém, foram registrados para que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais vida em seu nome. (João 20.30,31)

Há cinco documentos separados em nosso Novo Testamento que se atribuem a João, a saber, o Evangelho que leva seu nome, as três cartas e o livro Apocalipse. Destes, Apocalipse é tão diferente quanto ao assunto que deve receber um tratamento separado, tenha sido ou não escrito pelo mesmo João.

Goza de ampla concordância, contudo, o fato de que o Evangelho e as três cartas provêem da pena do mesmo autor. Não somente o estilo grego é muito semelhante, mas há muitas expressões teológicas surpreendentes que predominam no Evangelho e nas cartas—expressões tais como "Espírito de verdade", "luz" e "trevas", "do mundo", "filhos de Deus", "nascido de Deus", "permanecer" em Cristo, "guardar seus mandamentos", "amor", "testemunha", "vida" e "morte".

João, o homem Mas, quem era o autor? Esta é uma pergunta complicada e controvertida. O ponto de vista tradicional é que o Evangelho e as cartas foram escritas já em sua idade avançada, em Éfeso, pelo apóstolo João, filho de Zebedeu. Esta interpretação remonta a Irineu, bispo de Lyons de 178 até sua morte em 195 d.C., aproximadamente. Irineu alegava ter uma ligação direta comJoão através de Policarpo, o bispo de Esmirna martirizado em 156 d.C. aos oitenta e seis anos de idade. Numa famosa carta conservada por Eusébio, o historiador da igreja, Irineu conta a um amigo como, quando jovem, sentava-se aos pés de Policarpo e o ouvia discorrer sobre suas conversações com João e o ensino que recebera diretamente do apóstolo. Podemos bem imaginar Policarpo, com seus vinte anos, ouvindo o apóstolo João, que, por sua vez, devia estar então nos seus oitenta anos, parecendo haver pouca razão para duvidar da alegação de Irineu.

Quando, portanto, Irineu afirma que João, o filho de Zebedeu, escreveu o quarto Evangelho, e que ele era o "discípulo a quem Jesus amava", o qual se reclinava perto de Jesus na última ceia (13.23), devemos considerar seriamente seu testemunho.

Deve ser dito, entretanto, que somente uns poucos dentre os principais

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PAULO E SUA MENSAGEM 6 9

estudiosos do século vinte aceitam esta evidência. Sua relutância deriva do ponto de vista, compartilhado pela maioria dos estudiosos, de que o Evangelho de João não é fundamentalmente uma obra histórica. Ele é, antes, o resultado de um longo processo de desenvolvimento teológico, refletindo, assim, o pensamento de um período tardio travestido na forma de Evangelho.

Uma intepretação recente introduz uma distorção singular nesta visão, argumentando que o Evangelho reflete a história e as experiências, não de Je-sus e seus discípulos, mas de uma igreja particular, à qual o evangelista (não João) pertencia. Para reanimar sua igreja esse evangelista escreveu a história de Jesus como se Ele tivesse passado pelas mesmas experiências de rejeição e perseguição que eles sofriam.

Esta falta de respeito pelo Evangelho de João como história resulta de três de suas características que certamente requerem uma explanação:

1. Em muitos aspectos João apresenta uma imagem diferente de Jesus comparado com aquele dos Evangelhos sinópticos. Por exemplo, no Evangelho de João Jesus de modo algum é reticente ao alegar publicamente ser o Filho de Deus (p.ex., 5.19-30).

2. Não há qualquer diferença de estilo entre o ensino de Jesus em João e as próprias palavras do evangelista. Isto indica que o evangelista é responsável pela linguagem dos discursos proferidos por Jesus.

3. O Evangelho é belamente construído. Os estudiosos concordam que ele é uma obra-prima literária. Muitos, porém, consideram que um autor que dedicou tanto cuidado à estrutura e composição de sua obra devia preocupar-se em narrar a história.

Tomados em conjunto, estes três pontos são sustentados por uma maioria de estudiosos, o que torna improvável que o Evangelho tenha sido escrito por uma testemunha ocular do ministério de Jesus. E, como conseqüência, a atribuição de sua feitura a João, filho de Zebedeu, pelos pais da igreja do primeiro século é rejeitada.

Entretanto, devemos questionar seriamente este consenso dos estudiosos.

1. João e os sinópticos As incontestáveis diferenças entre o Evangelho de João e os sinópticos não significam necessariamente que João é historicamente falível. Estas diferenças foram notadas na igreja dos primeiros séculos e constituem a razão do comentário de Clemente de Alexandria (200 d.C., aproximadamente) de que "por fim, sabendo que os fatos 'materiais' estavam esclarecidos nos outros Evangelhos, compôs um Evangelho 'espiritual', incentivado por outros discípulos e inspirado pelo Espírito".

A referência de Clemente sobre o Evangelho de João como sendo "espiritual" tem sido mencionada freqüentemente em apoio ao fato de que João não teve interesse na história. Nada, porém, está tão distante da verdade. De acordo com Clemente, João estava preocupado em transmitir a essência interior de Jesus, o "espírito" dentro do "corpo", e, desta forma, prover um relato que pudesse pretender ser tão historicamente confiável como os sinópticos.

Além disso, são dignos de observação os muitos pontos em que a narrativa de João suplementa a dos sinópticos. Estes pontos foram expostos e discutidos num famoso ensaio do Dr. Leon Morris (ver no fim deste capítulo Leitura Adicional). E bem possível que João estivesse deliberadamente utilizando tradições e lembranças que não tinham sido utilizadas na tradição dos sinópticos.

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E m vár ios aspec tos J o ã o e l abo ra o re t ra to q u e e les p i n t a m . P o r e x e m p l o , en fa t i zando a d iscr ição de Jesus e m proc lamar-se p u b l i c a m e n t e c o m o "o Cris to" , os s inópticos p o d i a m levantar a acusação de que as pessoas d i f ic i lmente pode r i am s e r c e n s u r a d a s p o r n ã o c r e r e m n e l e . P o r é m J o ã o t o r n a e v i d e n t e q u e o i m p e d i m e n t o pa ra a f é não es tava no lado de Jesus . Vis ta de u m ângu lo d i ferente , sua a u t o p r o c l a m a ç ã o era c lara c o m o cristal, e, por tan to , a r e sponsab i l idade c a b e t o t a lmen te a nós , se nos r e c u s a r m o s a crer.

2. A linguagem de João É no tó r io q u e n ã o h á d i f e r ença est i l ís t ica en t re os d i scursos q u e Jesus p r o f e r e e as p a r t e s n a r r a d a s do E v a n g e l h o , p e l a s qua i s o e v a n g e l i s t a é r e s p o n s á v e l . En t r e t an to , d e v e m o s l e m b r a r q u e Je sus n ã o e n s i n o u e m g rego . E l e u s o u o a ramaico , e por tan to todos os nossos regis t ros de seu ens ino resu l t am de t radução. E b e m c o n h e c i d o o f a t o de d u a s t r a d u ç õ e s do m e s m o o r i g i n a l d i f e r i r e m g r a n d e m e n t e u m a da ou t ra p o r q u e o es t i lo e o v o c a b u l á r i o da t r a d u ç ã o são da e sco lha do t radutor .

V e m d e l o n g a d a t a a c o n s t a t a ç ã o de q u e o g r e g o de J o ã o t e m m u i t a s caracter ís t icas hebra icas e a ramaicas , de m o d o que o autor é c la ramente bi l íngüe. A l é m disso, se é v e r d a d e que J o ã o quer ia t ransmi t i r a e s sênc ia interior do ens ino e da p e s s o a de Jesus , n ã o é de su rp reende r q u e a l i n g u a g e m dos d i scursos re f l i t a o p róp r io es t i lo de João .

3. A estrutura de João O própr io autor revela o cu idado c o m q u e c o m p ô s seu Evange lho . E le o desc reve e m t e rmos de se le t iv idade: " N a ve rdade , f e z Jesus d ian te dos d i sc ípu los m u i t o s ou t ros s inais que n ã o es tão escr i tos nes te l ivro. Es tes , p o r é m , f o r a m reg i s t rados p a r a q u e cre ia is que Jesus é o Cr is to , o F i lho de D e u s , e pa r a que , c r endo , t e n h a i s v i d a e m seu n o m e " ( 2 0 . 3 0 , 3 1 ) . C o m o p o d e m o s ver , a e s t r u t u r a e m e n s a g e m d o l ivro f o c a l i z a m os "s ina is" , os a tos m i r a c u l o s o s de Je sus q u e i n d i c a m a l é m deles as v e r d a d e s sobre sua pe s soa . Es tes " s ina i s " p a r t i c u l a r e s — todos e x c e t o u m exc lus ivos e m J o ã o — f o r a m esco lh idos c o m u m p ropós i t o pe -c u l i a r — o de c o n v e n c e r seus le i tores a c r e rem e m Jesus c o m o "o Cr i s to" .

Is to que r d izer q u e os s inais f o r a m esco lh idos pa ra inc lusão , t endo e m m e n t e as neces s idades dos le i tores . O evange l i s t a e s t ava in t e res sado e m m o s t r a r a r e l evânc ia do min i s té r io de Jesus pa ra suas necess idades . P o r é m , p o r ou t ro lado, is to n ã o s ign i f i ca q u e o evange l i s t a n ã o t e n h a n e n h u m a p r e o c u p a ç ã o his tór ica . P e l o cont rá r io , e le n ã o t inha n e n h u m e v a n g e l h o p o r m e i o do qua l c o n v e n c e r seus le i tores , se J e sus r e a l m e n t e n ã o rea l i zasse esses " s ina i s " q u e m o s t r a m seu m e s s i a d o .

São p o u c o subs tanc ia is , por tan to , as r azões f r e q ü e n t e m e n t e ap resen tadas pa ra re je i ta r o p o d e r o s o t e s t e m u n h o de I r ineu. M a s , se a d m i t i m o s q u e o au tor de a m b o s os textos , o E v a n g e l h o e as cartas , é o após to lo João , o q u e p o d e m o s d ize r a seu r e spe i to?

1. Ele foi testemunha ocular. A d e s p e i t o da a v e r s ã o ge ra l p e l a t r ad i c iona l a t r i b u i ç ã o da au to r i a a João , e s tud iosos a d m i t e m q u e o au tor ex ibe u m c o n h e c i m e n t o p r o f u n d o da g e o g r a f i a da Pa les t ina (p.ex. , 1.28: 4 ,5 ,6 ,20) , de J e r u s a l é m (p.ex. , 5.2; 19.13), do t e m p l o an tes de sua des t ru ição (p. ex. , 2 .20; 8 .20; 10.23), e do es tado geral dos assun tos de Is rae l n o t e m p o de Jesus . P o r e x e m p l o , J. L o u i s M a r t y n , u m es tud ioso que ma i s que qua lque r out ro m o l d o u o c o n t e m p o r â n e o consenso entre eles, confessa .

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PAULO E SUA MENSAGEM 7 1

no entan to , q u e as vár ias a f i r m a ç õ e s de J o ã o sob re a fé e v ida j u d a i c a s " f i g u r a m o r g u l h o s a m e n t e en t re as mais corre tas a f i r m a ç õ e s sob re o p e n s a m e n t o j u d a i c o e m todo o N o v o T e s t a m e n t o " .

A exa t idão de João nes tes aspec tos d e v e c e r t a m e n t e suger i r u m a p r e o c u p a ç ã o pe l a p rec i são em seu reg is t ro dos a c o n t e c i m e n t o s do min i s té r io de J e s u s — a m a i o r i a dos qua i s e le d e v e ter t e s t e m u n h a d o d i re t amente , c o m o u m dos D o z e . Suas nar ra t ivas são t e m p e r a d a s c o m a lusões ao t e m p o e lugar, b e m c o m o c o m out ros de ta lhes casuais , t odos os quais n a d a a c r e s c e n t a m à h is tór ia a n ã o ser pa r a sub l inhar a impl í c i t a r e iv ind i cação de que o au tor c o n h e c e i n t i m a m e n t e seu ma te r i a l (p.ex. , 1.39; 2 .1; 3 .23; 4 .6 ,40 ; 11.54; 18.10; 21 .11) .

2. Ele possuía um conhecimento íntimo de Jesus. E m 21 .24 o au tor é iden t i f i cado , n ã o pe lo n o m e , m a s c o m o "o d i sc ípu lo que Je sus a m a v a " ( c o m p a r e c o m 21.20) . E s t e "d i sc ípu lo a m a d o " é m e n c i o n a d o t a m b é m e m 13.23; 19.26; 20 .2 ; e 21.7 , e m u i t o s e s tud iosos ac red i t am que e le é t a m b é m o " o u t r o d i s c ípu lo" a n ô n i m o de 18.15,16. E m c a d a ocas i ão e m que e s t e d i s c í p u l o a p a r e c e , a i n t i m i d a d e d e seu r e l a c i o n a m e n t o c o m J e s u s é ressa l tada .

P r ime i ro ele aparece rec l inado à m e s a per to de Jesus no cenáculo , tão p r ó x i m o dele que p ô d e sussurrai - ao seu ouv ido s e m ser ouv ido pe los ou t ros (13 .21-25 ; c o m p a r e c o m 21 .20) . E m segu ida c o n s t a t a m o s que , m u i t o e m b o r a Jesus t e n h a predi to que todos os disc ípulos o abandona r i am (16.32), este espec í f ico d isc ípulo o a c o m p a n h a até o pá t io da casa do s u m o sace rdo te (18.15) . N a cruz Je sus c o n f i a a e le o c u i d a d o de sua m ã e (19 .25-27) , e é e le a p e s s o a ( n o v a m e n t e c o m Ped ro ) a q u e m M a r i a M a d a l e n a corre c o m a not íc ia do t ú m u l o vaz io (20 .1 ,2 ). F i n a l m e n t e , é o d i sc ípu lo a m a d o q u e m p r i m e i r o r e c o n h e c e o S e n h o r r e s su r re to na pra ia da Gal i lé ia e gr i ta pa r a Pedro : " E o S e n h o r ! " (21.7), e q u e m e m segu ida pa r t i c ipa de u m a c o n v e r s a p r i v a d a q u e o S e n h o r t e m c o m P e d r o após a r e f e i ç ã o da m a n h ã (21 .20-23) .

Se e s t e " d i s c í p u l o a m a d o " e r a João , p o d e m o s c o m p l e t a r e s t e r e t r a to de in t imidade c o m os E v a n g e l h o s s inópt icos . Pedro , T iago e J o ã o f o r m a v a m j u n t o s u m c í rcu lo ín t imo den t ro dos D o z e . pe rmi t ido p o r Jesus pa ra t e s t emunha r cer tos e v e n t o s c ruc ia i s . E l e s v ê e m a r e s s u r r e i ç ã o da f i l h a d e J a i ro ( L u c a s 8 .51) , t e s t e m u n h a m sua g lór ia n o m o n t e da T r a n s f i g u r a ç ã o ( M a r c o s 9.2) , o u v e m seu ens ino apoca l íp t i co ( M a r c o s 13.3), e f i c a m ao l ado de l e e m sua a m a r g a a g o n i a no j a r d i m ( M a r c o s 14.33).

D e m o d o geral , J o ã o de s f ru tou o m á x i m o r e l a c i o n a m e n t o ín t imo c o m Jesus , e p o r isso es tava m a i s qua l i f i c ado do q u e q u a l q u e r ou t ro dos D o z e a t ransmit i r -nos a m e n t e r ecônd i t a do Senhor . E l e o v iu c o m seus o lhos (1 J o ã o 1.1-3; c o m -pa re c o m 1 J o ã o 4 .14 e J o ã o 1.14); o u v i u - o c o m seus o u v i d o s e t ocou -o c o m suas m ã o s (1 J o ã o 1.1-3). E l e h a v i a a b s o r v i d o a p róp r i a m e n t e do Senhor , pene t rado no coração de sua auto-revelação, e ve rdade i ramente captado o espír i to de seu M e s t r e .

3. Ele fora profundamente mudado por Jesus. J o ã o e T iago , d e a c o r d o c o m M a r c o s , f o r a m ape l idados p o r Jesus " B o a n e r g e s " , que s igni f ica " f i lhos do t rovão" (Marcos 3.17) , e vár ios inc iden tes nas narra t ivas do E v a n g e l h o r e v e l a m seu t e m p e r a m e n t o t e m p e s t u o s o . E J o ã o q u e m se irr i ta e p ro íbe o min i s t é r io do exorc i s t a q u e n ã o e ra u m dos D o z e (Lucas 9 .49 ,50) . S ã o os dois f i lhos do t r o v ã o que j u n t o s f i c a m o f e n d i d o s c o m a r ecusa de u m a a lde ia s amar i t ana de r ecebe r Jesus , e, à s e m e l h a n ç a de El ias , q u e r e m invoca r f o g o do

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7 2 HOMENS COM UMA MENSAGEM

Um antigo poço numa aldeia da Judéia. Teria sido ao lado de um poço como este que Jesus se encontrou com a mulher samaritana. (João 4).

céu para consumi-la (Lucas 9.51-56). E são os mesmos irmãos que vêm com sua mãe pedir que os melhores assentos no Reino pudessem ser reservados para eles (Marcos 10.35-45; Mateus 20.20-28).

Quão pequenos pareciam eles então para compreender o espírito de Jesus! Ele tem de repreendê-los: "Vós não sabeis de que espírito sois" (Lucas 9.55), e novamente: "Não sabeis o que pedis" (Mateus 20.22; Marcos 10.38). Entretanto, este filho do trovão tornou-se conhecido por nós como "o apóstolo do amor". E claro que o calor do sol do amor de seu Mestre fez com que se evaporassem as nuvens do trovão.

Agora ele está mais do que aberto ao ministério de outros fora dos Doze: a mais eficiente evangelista em seu Evangelho é a mulher samaritana (4.39). E agora ele mostra os samaritanos sob a luz mais calorosa possível: eles excedem os judeus em sua resposta de crença em Jesus (4.42), e "instam" com Jesus para ficar com eles (4.40). E agora, longe de procurar reconhecimento e posição ao lado do Senhor, ele apaga completamente seu nome da história e dá a si mesmo um novo nome, o que registra o único epitáfio que ele deseja: esqueça todo o eu, fui amado por Jesus!

João foi assim eminentemente apropriado a comunicar o coração de seu Senhor. Ele desejou apresentar seus leitores à Pessoa que ele veio a conhecer e amar. Ele queria que também tivessem comunhão com Ele (1 João 1.3), e esperava que eles tivessem seu caráter transformado como ele teve.

Na realidade, ele explica claramente os propósitos para os quais escreveu. Ele escreveu seu Evangelho para que seus leitores cressem em Jesus e experimentassem a vida por meio da fé nele (20.31), e escreveu sua primeira carta àqueles que já acreditavam, para que pudessem saber que tinham vida (1 João 5.13). Sua teologia é profunda e desafiadora, mas seu propósito supremo é prático. Ele quis que seus leitores recebessem a vida eterna e ao mesmo tempo soubessem que já a receberam.

Para que seus leitores recebam a vida eterna devem pôr sua confiança em Jesus Cristo, uma vez que nele está a vida (1.4). Portanto, em seu Evangelho João anuncia Jesus Cristo em toda sua glória divino-humana, que podemos ver e em quem podemos crer. Em particular, ele parece ter dirigido sua obra aos judeus, por enfatizar o meio pelo qual Jesus cumpre e substitui todas as grandes instituições do Judaísmo—o templo, a lei, as festas anuais. O templo e sua adoração se perderam, destruídos pelos romanos no ano 70 d.C.: depois dessa data o Evangelho de João poderia ter tido um apelo signitivamente poderoso para os judeus, cuja tristeza se converteu em alegria pela descoberta de que Deus já havia reparado aquela perda através de Jesus.

Para seus leitores saberem que receberam a vida eterna, era necessário que compreendessem claramente as indispensáveis marcas do Cristianismo autêntico. Em suas cartas, especialmente em sua primeira, ele continua a anunciar estas coisas, como veremos.

A mensagem de João: 1. O Evangelho 1. Os fundamentos da fé O caminho para a vida é a fé (3.14-16,36; 6.47; 20.31). Mas sobre o que repousa a fé? João concordaria com a resposta dada por Paulo em Romanos 10.17: "A fé vem pela pregação e a pregação pela palavra de Cristo." A fé nunca está

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i so lada . E l a é s e m p r e u m a re spos t a a u m a in ic ia t iva de D e u s . E m par t icular , e la é despe r t ada p o r sua pa lavra , ou, c o m o J o ã o diria, por seu " t e s t e m u n h o " . Cre r no t e s t e m u n h o de D e u s , d a d o a t ravés de Cris to , é t o m a r os p r i m e i r o s p a s s o s vi ta is pa r a a f é q u e l eva à v ida e terna: a c i m a de tudo , es ta é a m e n s a g e m do E v a n g e l h o de João .

A t u a l m e n t e é t e n d ê n c i a dos e s tud iosos sus ten ta r q u e J o ã o n ã o a r g u m e n t a e m favor da fé , m a s assume-a . Mui tos es tud iosos p re t endem, ass im, que o Evange lho de J o ã o n ã o é evange l í s t i co , is to é, n ã o se des t ina a c o n v e n c e r os descren tes sobre a re t idão da f é e m Cris to . M a s este p o n t o de vis ta ma l se apl ica à ev idênc i a do p róp r io E v a n g e l h o . A dec l a r ação de J o ã o sobre seu p r o p ó s i t o e m 2 0 . 3 1 exp re s sa u m in ten to evange l í s t i co (ve ja o q u a d r o a seguir ) . E no E v a n g e l h o es t e t e m a d o t e s t e m u n h o p a r e c e ser d e s e n v o l v i d o p a r t i c u l a r m e n t e c o m os desc ren tes j u d e u s e m m e n t e . Q u e t e s t e m u n h o J o ã o ap re sen ta?

a. Testemunho humano. N a s pa l av ra s de aber tu ra do E v a n g e l h o , c o m o naque la s da p r i m e i r a car ta e d e A p o c a l i p s e , J o ã o t raz seu p róp r io t e s t e m u n h o sobre o Senhor Jesus Cristo: "Vimos a sua g lór ia" (1.14). Ass im , ele inicia seu Evange lho c o m u m a a f i rmação , n ã o c o m u m a p rova . D o m e s m o m o d o c o m o Gênes i s t raz c o m o in t rodução " N o pr inc íp io . . . D e u s " , a n u n c i a n d o a ex i s t ênc ia do Pai , a s s i m o E v a n g e l h o de João t e m c o m o in t rodução " N o pr incípio era o Verbo", a f i rmando a p reex i s t ênc i a do F i lho c o m D e u s .

Es t a s v e r d a d e s e te rnas são o p r o d u t o da r e v e l a ç ã o divina , não da e s p e c u l a ç ã o h u m a n a . A g o r a , p o r é m , são elas c o m u n i c a d a s pe lo a p a i x o n a d o t e s t e m u n h o de seres h u m a n o s , que se t o r n a r a m c o n v e n c i d o s delas . O E v a n g e l h o c o m e ç a e t e r m i n a c o m esta no t a de t e s t e m u n h o apos tó l i co ( c o m p a r e c o m 21.24) . N o s cap í tu los in te rpos tos t e m o s u m a sucessão de p e s s o a s q u e se e n c o n t r a m c o m Jesus e dão t e s t e m u n h o sobre Ele:

• O testemunho de J o ã o Ba t i s t a é i n t roduz ido j u n t a m e n t e c o m o de J o ã o no c o m e ç o (1 .6-8) , e é o m a i s e l abo rado (ve ja t a m b é m 1.19-36; 3 .25-30 ; 10.40-42) , t a lvez p o r q u e J o ã o Ba t i s t a e ra a m p l a m e n t e r e c o n h e c i d o c o m o u m p r o f e t a pe los j u d e u s nos d ias do após to lo João . • Uma sucessão de discípulos e n c o n t r a m Jesus e d ã o t e s t e m u n h o (1 .37-51) : A n d r é c o n v e n c e seu i r m ã o S i m ã o , e F i l ipe t raz Na tanae l , o qua l f a z en tão u m a exp re s s iva c o n f i s s ã o de f é (1.49). • Os samaritanos dão u m fo r t e t e s t e m u n h o no cap í tu lo 4: p r i m e i r o a m u l h e r torna-se convenc ida de que Jesus é "o M e s s i a s " (4.29), e depois seus compatr io tas a f i r m a m q u e Jesus é "o S a l v a d o r do m u n d o " (4 .42) . • Pedro (6 .68 .69) , a multidão em Jerusalém (7 .40 1 42) , o homem nascido cego (9 .17) , Marta (11.27) , e Tomé (20 .28) todos dão d i fe ren tes t e s t e m u n h o s de Je-sus, d e p e n d e n d o de suas d i fe ren tes expe r i ênc ia s c o m Ele . A c o n f i s s ã o de T o m é c o m p õ e u m v igo roso c l ímax de t oda a h is tór ia .

E m sua ap re sen t ação J o ã o n ã o hes i t a e m inc lu i r t e s t e m u n h o s con t ra J e sus (p.ex. , 7 .52; 8 .52 ,53; 9 .16; 10.20), e a s s i m seus le i tores são f o r ç a d o s a t o m a r par t ido : e m qua l t e s t e m u n h o eles c r ê e m ?

Para decidi r isto, é necessá r io apresen ta r ev idênc ia , e t e s t e m u n h o s pos te r io res são r equer idos . E m b o r a essas t e s t e m u n h a s h u m a n a s s e j am impor tan tes , Jesus n ã o d e p e n d e de seus t e s t e m u n h o s pa ra va l ida r suas r e iv ind icações (5.34). E l e até ace i ta o p r inc íp io legal: " S e eu tes t i f ico a respe i to de m i m m e s m o , o m e u t e s t e m u n h o não é ve rdade i ro" (5.31). N o s t r ibunais j uda i cos n e n h u m t e s t e m u n h o

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PAULO E SUA MENSAGEM 7 5

João 20.30,31 e o Propósito do "Na verdade, fez Jesus diante dos discípulos muitos outros sinais que não estão escritos neste livro. Estes, porém, foram registrados para que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais vida em seu nome."

Os manuscritos do texto grego de João variam levemente aqui, de um modo que tem permitido a alguns estudiosos argumentar que o propósito de João não era o de criar a fé, mas mantê-la. A variação afeta o tempo do verbo traduzido "para que creiais". Alguns manuscritos tem o tempo grego aoristo, que produziria a paráfrase "tenhais chegado à fé". Outros têm um tempo presente, que resultaria em "podeis vir a crer", e que pode portanto implicar que João escreveu com os cristãos em mente, tentando apoiá-los e fortalecer sua fé.

Entretanto, mesmo que o tempo presente seja correto, a paráfrase poderia igualmente

Evangelho ser "podeis vir a crer e a continuar na fé". O tempo presente é usado com este sentido em João 6.29, dirigindo-se aos não-crentes.

Indubitavelmente o Evangelho de João sustenta e fortalece a fé dos crentes, e tem sempre feito isto. Certamente, isto parece ser parte de seu propósito. Mas o plano de João é mais amplamente exteriorizado do que meramente isto. De 20.30,31 podemos inferir três aspectos a respeito de seu propósito:

1. Os "sinais " desempenham um papel vital em seu plano de persuadir seus leitores a crer.

2. Ele tem os judeus particularmente em sua mente, porque eles precisam aprender que Jesus é "o Cristo", isto é, o Messias.

3. Ele quer que a fé cresça, da fé intelectual que Jesus é o Cristo para a fé experencial que significa "vida em seu nome".

p o d i a ser ace i to a m e n o s que f o s s e co r robo rado . O s fa r i seus l a n ç a r a m is to a Jesus e m 8.13: "Tu dás t e s t e m u n h o de ti m e s m o , logo o teu t e s t e m u n h o n ã o é ve rdade i ro . " P o r é m Jesus acei ta es te r ep to e repl ica : " T a m b é m na vos sa lei es tá escr i to q u e o t e s t e m u n h o de duas p e s s o a s é ve rdade i ro . E u tes t i f ico de m i m m e s m o , e o Pai , que m e env iou , t a m b é m tes t i f i ca de m i m " (8 .17 ,18) . E a s s i m u m a s e g u n d a t e s t e m u n h a é c o n v o c a d a :

b. Testemunho divino. O Dr. A . E . H a r v e y e sc l a rece o s ign i f i cado de ter J e sus c h a m a d o a D e u s p a r a t e s t e m u n h a r e m 5 .3 7 e 8 .18 ( c o m p a r e t a m b é m c o m 8 .50 ; 10.32). N a s cor tes juda icas , o t e s t e m u n h o sol i tár io p o d i a ser ace i to se o a c u s a d o i n v o c a s s e s o l e n e m e n t e a D e u s p a r a t e s t e m u n h a r q u e s u a d e c l a r a ç ã o e r a ve rdade i ra . Es t e e ra u m p a s s o sér io a ser t o m a d o p o r q u e , se es t ivesse de f a t o m e n t i n d o , o a c u s a d o e x p u n h a - s e ao j u l g a m e n t o de D e u s . E , de m o d o opos to , seus acusadores t e r i am de pensa r duas a três vezes antes de repet i r sua acusação , p o r q u e eles t a m b é m p o d i a m opor - se a D e u s e a t ra i r o j u l g a m e n t o sob re si m e s m o s .

Es te é o espí r i to so lene pe lo qua l Jesus i n v o c a a D e u s p o r t e s t e m u n h a e m seu favor . E m qua lque r caso , a na tu reza da r e iv ind i cação de Jesus é tal q u e s o m e n t e D e u s pod ia autent icá-la e apoiá-la: Jesus a lega ser o Fi lho, un i camen te autor izado a dar v ida e exe rce r o j u l g a m e n t o , a m b a s p re r roga t ivas do p r ó p r i o D e u s (5 .19-23) . Ass im , é não s o m e n t e u m p a s s o c o r a j o s o , m a s essenc ia l e m seu caso , q u e Je sus d e v a citar a D e u s c o m o t e s t e m u n h a e m seu favor .

A . E . H a r v e y t e m m o s t r a d o p r o v e i t o s a m e n t e , e m seu l i v r o Jesus sob Julgamento, c o m o a f i gu ra do t r ibunal d e j u s t i ç a p e r m e i a t odo o E v a n g e l h o d e João . J o ã o ap re sen ta sua nar ra t iva d o min i s t é r io de Je sus c o m o se Ele es t ivesse e m j u l g a m e n t o d o c o m e ç o ao f i m , e n ã o a p e n a s n o f i n a l d i a n t e d o s u m o sacerdo te . N a rea l idade , nes t e E v a n g e l h o Je sus n u n c a é formalmente j u l g a d o . E l e é e x e c u t a d o s e m o d e v i d o p r o c e s s o d a lei , m u i t o e m b o r a E l e m e s m o

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78 HOMENS COM UMA MENSAGEM

ple i teasse q u e t e s t e m u n h a s f o s s e m c o n v o c a d a s q u a n d o c o m p a r e c e u d ian te do s u m o sace rdo te (18.21) . O j u l g a m e n t o ocor re nes t e sen t ido in fo rma l , a t ravés de t odo o l ivro, de m o d o q u e os le i tores de J o ã o são e les m e s m o s c o l o c a d o s e m c e n a e c o m p e l i d o s a vir p o r sua p róp r i a dec i são .

Eles pe rgun tam, c o m o os oposi tores de Jesus f azem, c o m o D e u s dá t e s t emunho de seu F i l h o (p.ex. , 8 .19) . Es t e t e s t e m u n h o d iv ino , r e s p o n d e João , é t r iplo:

i. O Pai profere seu testemunho por meio dos lábios de Jesus. Repe t ida s vezes Jesus nega q u e e x p o n h a suas pa lavras p o r sua própr ia autor idade . Sua au to r idade é de r ivada do Pa i q u e é seu autor. N ã o é E le p rópr io a Pa l av ra do D e u s e n c a r n a d o (1 .1 ,14)? E n t ã o suas p a l a v r a s são as pa l av ra s de D e u s (3 .34) : • " O m e u e n s i n o n ã o é m e u , e s im d a q u e l e q u e m e e n v i o u " (7.16). • " N a d a f a ç o p o r m i m m e s m o ; m a s f a l o c o m o o Pa i m e e n s i n o u " (8 .28) . • " E u não t e n h o f a l a d o por m i m m e s m o , m a s o Pa i q u e m e env iou , e s se m e t e m presc r i to o q u e d izer e o q u e anunciar . ... A s coisas , po i s , q u e eu fa lo , c o m o o Pa i m e t e m di to, a s s i m f a l o " (12 .49 ,50) . • " P o r q u e eu lhes t enho t ransmi t ido as pa lavras q u e m e des te e eles as r ecebe ram. ... E u lhes t e n h o d a d o a tua p a l a v r a " (17 .8 ,14) .

J e sus e spe ra q u e t odos os q u e o o u v e m c r e i a m e m suas pa lavras , p o r q u e e las são as pa lavras de Deus . A o fazer es ta solene a f i rmação , E le está de l ibe radamente a l u d i n d o à f a m o s a p r o m e s s a d a d a a M o i s é s e m D e u t e r o n ô m i o 18.18: "Susc i ta r -lhes-e i u m p r o f e t a do m e i o de seus i rmãos , s e m e l h a n t e a ti, e m c u j a b o c a pore i as m i n h a s pa lavras , e e le lhes f a l a rá t u d o o q u e eu lhe o rdenar . "

João , na tu ra lmen te , ac red i ta q u e Je sus f a l e as pa lav ras d e D e u s n ã o a p e n a s p o r q u e E l e é u m " p r o f e t a c o m o M o i s é s " , q u e as p e s s o a s e s t a v a m e s p e r a n d o ( c o m p a r e c o m 1.21), m a s p o r q u e E l e é m u i t o m a i s q u e u m p ro fe t a : Ele é a p r ó p r i a " P a l a v r a de D e u s " e m pessoa . M a s c o m o tal e le c u m p r e a p r o f e c i a de D e u t e r o n ô m i o 18, e seus le i tores p r e c i s a m ser pos tos e m seus lugares : e les o e scu t a r ão?

E m re l ação a i s to é d i g n a de ser c o n s i d e r a d a a a d m i r á v e l n o v a d e s i g n a ç ã o de D e u s n o E v a n g e l h o de J o ã o c o m o " a q u e l e q u e m e e n v i o u " . Es t a s p a r á f r a s e s d o s n o m e s " P a i " e " F i l h o " q u a s e s e m p r e o c o r r e m e m c o n t e x t o s e m q u e a au to r idade do F i l h o é d e s a f i a d a ou a do Pa i é r e iv ind icada . " A q u e l e q u e e n v i a " sus ten ta a au to r idade de " q u e m E l e e n v i o u " : • " O e n v i a d o d e D e u s f a l a as pa l av ra s d e l e " (3 .34) . • " A q u e l e q u e m e env iou é ve rdade i ro , de m o d o q u e as co i sas q u e de le t e n h o o u v i d o , essas d igo ao m u n d o " (8 .26) . • Jesus , pois , e n q u a n t o e n s i n a v a n o t e m p l o , c l a m o u : . . . "não v i m p o r q u e eu d e m i m m e s m o o qu isesse , m a s a q u e l e q u e m e e n v i o u é ve rdade i ro , a q u e l e a q u e m v ó s n ã o conhece i s . E u o c o n h e ç o , p o r q u e v e n h o da pa r t e de le e f u i p o r e l e e n v i a d o " (7 .28 ,29) .

A va l idade d o t e s t e m u n h o de Je sus é dev ido à sua v i n d a do céu (3 .11-13) .

ii. O Pai dramatiza seu testemunho nas obras de Jesus. A s " o b r a s " de Jesus , a s s i m c o m o suas " p a l a v r a s " , f o r a m - l h e d a d a s p o r D e u s , de m o d o q u e s ã o r e a l m e n t e ob ra s d e D e u s , u m d r a m á t i c o t e s t e m u n h o p a r a a c o n d i ç ã o ú n i c a d e Je sus c o m o f i lho . D o m e s m o m o d o q u e E l e p o d e dizer : " O m e u e n s i n o n ã o é m e u , e s im d a q u e l e q u e m e e n v i o u " (7 .16) , a s s i m p o d e E l e fa la r das " o b r a s q u e o Pa i m e c o n f i o u p a r a q u e as r ea l i za s se" (5 .36) ; c o m p a r e c o m 5 . 1 9 - 3 0 e 10.31-39) . A s s i m , o F i l h o age " d a par te do P a i " (10 .32) , e o Pa i a g e n o F i l h o (10 .38 ;

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PAULO E SUA MENSAGEM 7 7

Esta sala numa casa de um residente rico na Jerusalém do primeiro século d.C. foi reconstruída de acordo com a evidência revelada durante as investigações arqueológicas.

14.10) . A s obras são d o Pai , e m b o r a r ea l i zadas p o r m e i o do F i lho . Es t e d u p l o t e s t e m u n h o de pa l av ra s e obras deve r i a ter s ido a d e q u a d o pa ra suscitai- a f é (14.11) , e n a r ea l idade m u i t a s p e s s o a s s imp les v ê e m as obras (6 .14) , o u v e m as pa l av ra s (7 .40 ,41) e c r ê e m (11.45) .

M a s c o m o r e a l m e n t e suas obras t r a n s m i t e m u m a m e n s a g e m sobre E l e ? A p a l a v r a carac te r í s t ica de J o ã o p a r a os m i l a g r e s de Je sus é "s ina i s" , p o r q u e e les c o n t ê m a m e n s a g e m q u e a f é p o d e discernir .

N i c o d e m o s es tá m u i t o cer to ao dec la ra r que Je sus p o d e rea l izar ta is " s i na i s " s o m e n t e p o r q u e D e u s es tá c o m Ele : ". . .és M e s t r e v i n d o da pa r t e d e D e u s " (3.2). M a s , i n d i c a m eles a l g u m a co i sa m a i s sobre Jesus , a l é m des ta m e r a p e r c e p ç ã o ? N i c o d e m o s es tá c o n f u s o . A l g u n s da m u l t i d ã o e m J e r u s a l é m p e n s a m q u e os s inais p r o v a m q u e E l e é o Cr i s to (7 .31) . Out ros , p o r é m , d i s c o r d a m : os i r m ã o s de Jesus , p o r e x e m p l o , v ê e m os s inais e n ã o lhes a t r i b u e m va lor (7.3-5) . M e s m o q u a n d o as p e s s o a s c r ê e m p o r causa dos sinais , J e sus é, apesa r disso, m u i t o cau te loso a respe i to da q u a l i d a d e de sua f é (2 .23-25) .

O f a t o é q u e os s inais p o d e m s o m e n t e f a l a r se f o r e m in te rpre tados , e é o q u e J o ã o se p r o p õ e fazer . A s s i m , p o r e x e m p l o , a cu ra d e u m h o m e m a le i j ado e m 5 .1 -9 n ã o m o s t r a s o m e n t e o ex t r ao rd iná r io p o d e r ou mise r i có rd i a de Jesus : an tes m o s t r a sua au to r idade p a r a d izer ao p o v o de D e u s o q u e e le p o d e f a z e r n o sábado , e p o s t e r i o r m e n t e r eve l a seu r e l a c i o n a m e n t o pecu l i a r c o m o Pai , p o r q u e E l e ex ibe as " o b r a s " d o p róp r io D e u s p o r m e i o de sua ação (5 .9-20) . D e m o d o seme lhan te , a a l i m e n t a ç ã o de c inco mi l p e s s o a s (6 .1 -14) é d e p o i s i n t e rp re t ada p e l o d e m o r a d o d i á logo q u e se segue , no qua l J e sus se p r o c l a m a " o p ã o da v i d a " (6.25-59) . A esco lha de J o ã o dos sinais pa r a incluir e m seu E v a n g e l h o (20 .30 ,31) é f e i t a c l a r a m e n t e p o r c a u s a da c r e scen t e m e n s a g e m que ele que r t irar de c a d a u m . Vo l t a remos a f a l a r d is to m a i s adiante .

M a s , c o m o p o d e J o ã o c o n v e n c e r seus l e i to res d e q u e t inha i n t e r p r e t a d o

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80 HOMENS COM UMA MENSAGEM

c o r r e t a m e n t e os s ina i s de J e s u s ? C o m o p a s s a r d o t e m p o , c e r t a m e n t e , ta l c o n v i c ç ã o ser ia a obra do Esp í r i to San to (16 .8-11) . P o r é m , u m f a t o r i m p o r t a n t e aqui , e s p e c i a l m e n t e pa ra os le i tores j u d e u s , e ra o Velho Tes t amen to :

iii. O Pai escreve seu testemunho nas Escrituras do Velho Testamento. • " E x a m i n a i s as Escr i turas , p o r q u e j u l g a i s ter ne las a v ida e terna , e são e las m e s m a s q u e t e s t i f i cam de m i m . C o n t u d o n ã o quere i s vir a m i m pa ra te rdes v i d a " (5 .39 ,40) .

• " S e d e f a t o c rêsse i s e m M o i s é s , t a m b é m crer íe is e m m i m ; p o r q u a n t o e l e e sc r eveu a m e u respe i to . Se, p o r é m , não c redes nos seus escr i tos , c o m o crere is nas m i n h a s p a l a v r a s ? " (5 .46 ,47) .

S u p r e m a m e n t e e f i na lmen te , o t e s t e m u n h o do Pai sobre seu F i lho es tá escr i to nas Escr i tu ras , c o m o a s s e v e r a m es tes dois d r a m á t i c o s p r o n u n c i a m e n t o s . N o d e s e n v o l v i m e n t o des tas dec la rações , J o ã o r eco r re ao Ve lho T e s t a m e n t o a t r avés de seu E v a n g e l h o , tanto p o r c i t ação di re ta (p.ex. , 2 .17 ; 12 .37-41; 19.36,37) , e f r e q ü e n t e m e n t e p o r a l u s ã o aos t ex tos ou t e m a s d o Ve lho T e s t a m e n t o . Seu p ropós i t o ao usa r es te r ecu r so é m o s t r a r q u e s o m e n t e Jesus f a z sen t ido no Ve lho Tes t amen to .

Por e x e m p l o , a a f i r m a ç ã o e m 5 .46 de q u e M o i s é s e s c r e v e u a respe i to de Je -sus l eva -nos ao cap í tu lo 6, no qua l o p a p e l de M o i s é s c o m o o S a l v a d o r de Israel , aque le q u e o t i rou do Egi to , é c o m p a r a d o ao q u e Je sus ago ra o fe rece . U m a mu l t i dão es tá a c a m i n h o de J e r u s a l é m p a r a a P á s c o a (6.4) , a f e s t a e m q u e o ê x o d o do E g i t o é c o m e m o r a d o . J e sus os a l imen ta m i r a c u l o s a m e n t e , tal c o m o M o i s é s f e z n a q u e l a época . A l g u é m na m u l t i d ã o p e r c e b e a s e m e l h a n ç a e dec la ra q u e Jesus p o d e ser o " p r o f e t a c o m o M o i s é s " (6 .14) . E n t ã o Je sus d i r ige-se a e les (6 .25-59) , e lhes diz que :

• M o i s é s n ã o a l imen tou Israel ; f o i D e u s q u e m o f e z (6 .32) . • O m a n á e ra a l imen to p u r a m e n t e f í s ico , e e m n a d a con t r ibu iu pa ra sa lvar Is rae l do terr ível i n i m i g o — o p e c a d o e a m o r t e (6 .49) . M o i s é s , o s u p r e m o r ecep to r e c o m u n i c a d o r da lei n ã o p o d i a sa t i s faze r às neces s idades m a i s p r o f u n d a s do g ê n e r o h u m a n o .

• A g o r a D e u s p rovê o a l imento q u e dá "v ida e terna" , e f i na lmen te sa t is faz àquelas n e c e s s i d a d e s — o própr io Je sus (6 .35) . • O p rópr io Ve lho T e s t a m e n t o r e c o n h e c e a n e c e s s i d a d e de m a i s do q u e M o i s é s deu ; p o r q u e os p ro fe t a s o l h a m à f r e n t e pa ra u m t e m p o e m q u e " se rão t o d o s e n s i n a d o s p o r D e u s " (6 .45, c i t ando Isa ías 54 .13) . A q u e l e t e m p o c h e g o u agora !

O d e s a f i o de J o ã o aos seus le i tores é o m e s m o de Je sus aos f a r i s eus e m 7 .24 , e m q u e o s ign i f i cado da c i r cunc i são es tá e m d i scussão : " N ã o j u l g u e i s s e g u n d o a aparênc ia , e s im pe la re ta j u s t i ç a . " Se e les r e a v a l i a r e m sua c o m p r e e n s ã o das Escr i tu ras , v e r ã o c o m o J e s u s as c u m p r e .

2. Inspecionando o Evangelho A es t ru tu ra do E v a n g e l h o de J o ã o é c o m p l e x a ; p o r isso, q u a l q u e r aná l i se r áp ida es tá su je i ta a se to rnar superf ic ia l . En t re tan to , v a m o s segui r a d i reção do p róp r io J o ã o e foca l i za r nos so r e s u m o n o s "s ina i s" .

a. Agua em vinho—uma nova ordem. O p r i m e i r o cap í tu lo ap re sen ta Jesus c o m o a Pa l av ra de D e u s f a l ada de u m a f o r m a nova . An te r io rmen te , D e u s f a l o u a t ravés dos p rofe tas , c o m o J o ã o Bat i s ta . M a s a g o r a sua P a l a v r a " s e f e z c a r n e " (1 .14) . I s to s ign i f i ca t odo u m n o v o es tág io e m seu r e l a c i o n a m e n t o c o m o m u n d o : " A

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PAULO E SUA MENSAGEM 7 9

lei f o i d a d a p o r i n t e rméd io de M o i s é s ; a g r aça e a v e r d a d e v i e r a m p o r m e i o de Jesus C r i s t o " (1 .17) .

Es ta " n o v a o r d e m " é s i m b o l i z a d a pe lo p r i m e i r o sinal , a t r a n s f o r m a ç ã o da água e m v i n h o (2.1-11). Jesus t o m a o q u e o J u d a í s m o o f e r e c e c o m o u m m e i o de pur i f i cação (2.6) e o t r a n s f o r m a e m a lgo que r ea lmen te sa t is faz à necess idade . Es t a m e n s a g e m é en t ão t ranspor tada : p r i m e i r o Jesus pu r i f i c a o t emplo , o f o c o da re l ig ião da " v e l h a o r d e m " , e f a l a de u m n o v o t emplo , seu c o r p o (2 .21) . E m s e g u i d a E l e d i z a N i c o d e m o s , " m e s t r e e m I s r a e l " (3 .10 ) , r e p o s i t ó r i o d o a p r e n d i z a d o m a i s p r o f u n d o d i s p o n í v e l n o J u d a í s m o , q u e e l e p r e c i s a se r c o m p l e t a m e n t e r e fe i to pe lo Espí r i to . E l o g o a segui r a m e s m a m e n s a g e m é c o m u n i c a d a aos samar i t anos , q u a n d o Je sus lhes o fe rece , a t ravés da mulhe r , " u m a f o n t e a j o r r a r pa r a a v ida e t e r n a " (4.14) , água m a i s impor t an t e que a d o p o ç o de Jacó .

b. Duas curas—nova vida, novo julgamento. O s dois s inais e m 4 . 4 6 - 5 4 e 5.1 -9 f o r m a m u m p a r q u e é en t ão in te rp re tado a t ravés do g rande d i scurso e m 5 .19-47. Nes t e d i scur so Jesus f a z a ma i s o u s a d a r e iv ind i cação poss íve l : que , c o m o Fi lho , E l e e x e r c e os p r iv i lég ios do p róp r io Deus , pa r t i cu l a rmen te p a r a c o n -cede r v ida (5 .21) e p ro fe r i r j u l g a m e n t o (5.22). " J u l g a m e n t o " nes t e c o n t e x t o não quer dizer apenas condenação , m a s expressa a idéia de dec isão real e decre to . C o m o ju iz , Jesus , o F i lho , t e m a au to r idade de dec id i r sobre a v ida e a m o r t e pa ra t odos (5 .25-30) .

Es t e s do i s p r iv i l ég ios são " a n u n c i a d o s " n a s d u a s ações q u e p r e c e d e m a re iv ind icação . Jesus p r o f e r e u m a f r a s e que v iv i f ica : "Vai, d i s se - lhe Jesus ; teu f i l ho v i v e " ( 4 . 5 0 ) — e o f i lho v ive . E m segu ida E l e p r o n u n c i a o j u l g a m e n t o ao h o m e m a le i jado , n ã o s o m e n t e pa ra o rdenar - lhe que se levante , m a s t a m b é m pa ra dizer- lhe q u e ca r regue sua c a m a n o s á b a d o (5 .8-10) , e adver t i - lo : " N ã o p e q u e s mais , pa r a q u e n ã o te s u c e d a co i sa p i o r " (5 .14) .

c. Alimentando os 5.000—Jesus, o pão da vida. E x p l a n a n d o sua re i t e ração do êxodo , Jesus a lega t rês vezes ser "o p ã o d a v i d a " (6 .35 ,48 ,51) . Q u a n d o E l e pa r t e os p ã e s e a l i m e n t a os 5 .000 ( 6 . 1 - 1 5 — o ún ico m i l a g r e r eg i s t r ado p e l o s qua t ro evange l i s tas ) , E l e es tá s i m b o l i z a n d o a d á d i v a de sua p róp r i a ca rne " q u e dare i pe l a v ida do m u n d o " (6.51).

E l e es tá aqu i se r e f e r i n d o c l a r a m e n t e à sua cruz . E sua ca rne d i l ace rada q u e cons t i tu i o "o a l imen to rea l" , e é seu s a n g u e d e r r a m a d o a " b e b i d a r ea l " (6 .55) . S o m e n t e p o r m e i o de sua m o r t e é q u e a v ida se to rna d i spon íve l p a r a nós . C o m e r e b e b e r são a su rp reenden te i lus t ração da fé , i s to é, a ace i t ação p e s s o a l de Cris to, a absorção espir i tual de sua v ida p o r nós m e s m o s (6 .57) . C o m p a r a n d o 6 .47 c o m 6 .54 , v e m o s c l a r a m e n t e q u e " c r e r " é equ iva l en t e a " c o m e r e bebe r " .

Se es te d i scur so é h is tór ico , d i f i c i lmen te e le será u m a r e f e r ê n c i a d i re ta à C e i a do Senhor , q u e não t inha s ido a inda ins t i tu ída . En t re t an to , m u i t o s e s tud iosos ac red i t am que João escreveu seu E v a n g e l h o tendo c o m o p a n o de f u n d o o cenár io dos se rv iços de cu l to da igre ja , e q u e ele p r ó p r i o te r ia in t e rp re tado es te d i scu r so c o m o r e f e r i n d o - s e à San t a C o m u n h ã o . E c e r t a m e n t e a p r o p r i a d o sent i r que , q u a n d o r eun idos pa ra ce lebra r a C e i a do Senhor , e s t a m o s pa r t i cu l a rmen te ap tos a exe rce r a f é da qua l es ta p a s s a g e m fa la .

d. Curando um homem cego—Jesus, a luz do mundo. N o cap í tu lo 6 J e s u s ap resen ta - se c o m o subs t i tu to da f e s t a da Páscoa ; n o s cap í tu los 7 - 1 0 E l e f a z o m e s m o e m re lação à fes ta ma io r do ca lendár io j u d a i c o , a f e s t a dos t abe rnácu los . O cen t ro de a t enção des t a pa r t e é a cura de u m c e g o de n a s c e n ç a (capí tu lo 9) .

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82 HOMENS COM UMA MENSAGEM

A q u i n o v a m e n t e u m ato f í s i co s i m b o l i z a u m a v e r d a d e espir i tual . P o r d u a s vezes nes ta pa r t e J e sus p r o c l a m a : " E u sou a luz do m u n d o " (8 .12; 9 .5) . Es t a é u m a r e f e r ê n c i a à f a m o s a c e r i m ô n i a das luzes q u e t inha luga r du ran te a f e s t a dos t a b e r n á c u l o s , q u a n d o g r a n d e s l â m p a d a s e r a m c o l o c a d a s n o t e m p l o , r ep r e sen t ando a " c o l u n a de f o g o " q u e Is rae l t i nha pa ra seguir a t ravés do deser to . A g o r a , p o r é m , Jesus c l ama : " E u sou a luz do m u n d o ; q u e m m e segue não a n d a r á nas t revas , ao con t rá r io te rá a luz da v i d a " (8 .12) .

U m a vez que, depois de 7 0 d.C. , a fes ta dos tabernáculos n ã o ma i s era ce lebrada n o t e m p l o , a m a n i f e s t a ç ã o de Je sus d i r ige-se à n e c e s s i d a d e sen t ida p o r m u i t o s j u d e u s daque le s t e m p o s . T a m b é m eles , c o m o o c e g o dos t e m p o s an te r iores , o qua l f o r a e x p u l s o da s inagoga (9.34) , t i n h a m p e r d i d o seu luga r de ado ração . M a s Je sus encon t r a - se c o m o c e g o e res taura seu cul to , d a n d o - l h e u m a v i s ta e sp i r i tua l p a r a c o m b i n a r c o m sua v i s ta f í s i ca . E n t ã o , q u a n d o se c u r v a e m a d o r a ç ã o d ian te do F i l h o d o H o m e m (9 .35-38) , e le m a n t é m a e s p e r a n ç a e u m a m e n s a g e m a todos os q u e necess i t am de tal res tauração: adore o Fi lho do H o m e m , q u e é a luz do m u n d o , e v o c ê ce l eb ra rá r e a l m e n t e a f e s t a dos t abe rnácu los !

e. Ressuscitando Lázaro—Jesus, a ressurreição e a vida. A ressurre ição de Láza ro (cap í tu lo 11) é o ú l t i m o g rande a to p ú b l i c o de Je sus an tes de sua p r ó p r i a m o r t e . J o ã o p r e p a r a seus le i tores pa ra is to p o r m e i o do " D i s c u r s o do B o m P a s t o r " n o cap í tu lo 10. A q u i a p r e n d e m o s que , se J e sus d e v e ir e m b u s c a das " o v e l h a s " e min i s t r a r a elas , c o m o o h o m e m c e g o do cap í tu lo 9, en t ão is to se da rá ao cus to de s u a p r ó p r i a v i d a . C o m o o b o m p a s t o r , E l e d á s u a v i d a p e l a s o v e l h a s (10 .11 ,14 ,15) .

E s t a au to -en t r ega de Je sus é d r a m a t i c a m e n t e p r e f i g u r a d a no cap í tu lo 11. E l e e s c a p a de u m a v io len ta hos t i l idade e m J e r u s a l é m e c r u z a o r io J o r d ã o pa ra sua s e g u r a n ç a (10 .31 ,39 ,40) . T o m é sabe p e r f e i t a m e n t e b e m q u e será u m su ic íd io vo l ta r a J e r u s a l é m (11.16) . M a s Jesus , apesar d isso , r e t o r n a p o r q u e s o m e n t e ele p o d e s a l v a r L á z a r o . A r e s s u r r e i ç ã o de L á z a r o e s t á l i g a d a à r e t u m b a n t e r e iv ind icação : " E u sou a r e s su r r e i ção e a v i d a " (11.25) . M a s es tá c laro q u e Je sus s o m e n t e p o d e ser a " r e s su r re i ção e a v i d a " p a r a L á z a r o ao cus to de sua p róp r i a v ida . E a s s i m n ã o nos s u r p r e e n d e q u a n d o o s inédr io se r e ú n e e d e c i d e q u e a r e s su r r e i ção de L á z a r o é a ú l t ima go ta . Se Je sus con t inua r sua mi s são , as c o n s e q ü ê n c i a s se rão inca lcu láve i s . E l e d e v e m o r r e r (11 .47-53) .

A s s i m , tan to a m o r t e de Jesus c o m o s u a r e s su r re i ção são p r e n u n c i a d a s n o s cap í tu los 10 e 11. O cap í tu lo 10 ap re sen t a -o c o m o o b o m pas to r q u e m o r r e p e l a s ove lhas , e o cap í tu lo 11 c o m o a r e s su r re i ção q u e d á v ida aos mor tos . A part ir des te p o n t o a his tór ia t o m a seu r u m o inevi tável . A par t ida de Jesus despon ta n o h o r i z o n t e (13.1) . E l e se re t i ra a u m luga r p r i v a d o c o m seus d i sc ípu los e p repa ra -os p a r a u m a v ida e m q u e a a legr ia de sua p r e sença f í s ica será subs t i tu ída p o r u m a u n i ã o esp i r i tua l c o m E l e (cap í tu los 14-16). S e g u e m - s e os m o m e n t o s f ac tua i s de sua de tenção , m o r t e e r e s su r r e i ção (cap í tu los 18-21) .

A t r a v é s des ta exc i t an te a p r e s e n t a ç ã o J o ã o a l m e j a q u e seus le i tores v e n h a m compar t i l ha r a fé , e x p e r i m e n t a r a v i d a e associar -se à c o m p a n h i a dos segu idores de J e s u s Cr is to .

A mensagem de João: 2. As cartas A s car tas de J o ã o s u p l e m e n t a m seu E v a n g e l h o , e m b o r a n ã o es t e j a c laro se e las f o r a m escr i tas an tes ou depois . A s op in iões en t re os e s tud iosos va r i am, m a s o

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PAULO E SUA MENSAGEM 8 1

c o s t u m e de dir igir -se a seus lei tores c o m o " a m a d o s " e " f i l h inhos" , e o f a t o de c h a m a r a si m e s m o "p re sb í t e ro" (2 J o ã o 1; 3 J o ã o 1), sugere que e le p o d e es tar e s c r evendo e m sua idade avançada . Ent re tan to , se ja qua l fo r a data , a m e n s a g e m das car tas d e s e n v o l v e a q u e l a do E v a n g e l h o . E v i d e n t e m e n t e n ã o p o d e m o s des f ru t a r u m a dád iva a m e n o s q u e s a i b a m o s q u e a p o s s u í m o s . A f é p rec i sa de cer teza . Por tan to , se D e u s d e s e j a q u e r e c e b a m o s e d e s f r u t e m o s a v ida e t e rna ( João 6 .40) , o c o n h e c i m e n t o que de f a t o r e c e b e m o s é vital . J o ã o e sc r eveu sua p r ime i r a car ta , por tan to , " a f i m de sabe rdes que t e n d e s a v ida e terna , a vós ou t ros que c redes e m o n o m e do F i lho d e D e u s " (1 J o ã o 5.13) .

E l e fo i i m p e l i d o a f aze r is to pe la s c i r cuns tânc ias de sua p róp r i a igre ja . Se J o ã o e s t a v a e s c r e v e n d o e m sua ve lh i ce , p o d e m o s r a z o a v e l m e n t e s e g u i r a e v i d ê n c i a de I r ineu e imag iná - lo ag indo c o m o u m presb í t e ro l íder na ig re ja e m É f e s o . É f e s o era u m a g rande c idade , e o cen t ro cul tura l e e c o n ô m i c o de u m a g r a n d e r eg ião ad jacen te . P a r e c e q u e as t rês car tas de J o ã o f o r a m escr i tas a congregações locais na "área per i fér ica de É fe so" , sobre as quais o ve lho após to lo exe rc ia o r i en tação pas tora l e superv i são .

A igre ja e m É f e s o es tava e v i d e n t e m e n t e s e n d o p e r t u r b a d a p o r ens ino f a l so de u m a espéc ie pa r t i cu la rmen te per igosa . O s mes t res he reges e r a m "an t ic r i s tos" (1 J o ã o 2 .18) , " m e n t i r o s o s " (2.22) , " e n g a n a d o r e s " (2 .26; 2 J o ã o 7), e " f a l sos p r o f e t a s " (4.1). J o ã o quer ia t an to e x p o r sua h ipocr i s ia c o m o c o n f i r m a r a f é dos v e r d a d e i r o s c ren tes . A h e r e s i a p a r e c e ter s ido u m a e spéc i e de g n o s t i c i s m o p recoce , m u i t o seme lhan te , se n ã o idênt ica , àque la ens inada p o r u m tal Cer in to , que p o d e ter s ido u m adve r sá r io de J o ã o e m É f e s o .

H a v i a t rês e l e m e n t o s pa r t i cu la res nes te ens ino v e n e n o s o .

1. Erro cristológico J o ã o acusa os he reges de " te r o Pai , m a s n e g a r o F i l h o " (2 .22 ,23 ; c o m p a r e c o m 2 J o ã o 9). I r ineu a j u d a - n o s a c o m p r e e n d e r es ta acusação . E les p r o v a v e l m e n t e

João ficou intimamente ligado à igreja em Éfeso, e acredita-se que tenha morrido lá. Estas ruínas fazem parte da majestosa igreja dedicada a João, construída ali por Justiniano no sexto século.

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8 2 HOMENS COM UMA MENSAGEM

e n s i n a v a m q u e Je sus de N a z a r é e ra u m h o m e m c o m u m , f i lho na tura l de J o s é e M a r i a . Q u a l q u e r i d é i a d e e n c a r n a ç ã o e r a i m p o s s í v e l p a r a e l e s , p o r q u e c o n s i d e r a v a m o a s sun to e s s e n c i a l m e n t e noc ivo . S o b r e es te h o m e m , e m seu ba t i smo , " o Esp í r i t o " ou " o C r i s t o " desceu ; apenas pa ra de ixá - lo e r e to rna r ao céu antes da cruz . Por tan to , q u a n d o J o ã o d iz que e les n e g a m " q u e Jesus é o C r i s t o " (2 .22) , d e v e m o s n a t u r a l m e n t e e n t e n d e r q u e i s to s i g n i f i c a q u e e les n e g a v a m q u e Jesus e o Cr i s to são u m a e a m e s m a pes soa . M a i s ta rde J o ã o c o m e n t a e s t e p o n t o de v is ta c o m o u m a n e g a ç ã o de " Jesus Cr i s to v indo e m c a r n e " (2 J o ã o 7; c o m p a r e c o m 1 J o ã o 4.2) , e is to p a r e c e re f le t i r a m e s m a d i s t inção en t re " J e s u s " e " o Cr i s to" .

P a r a J o ã o tal d e s p r o p ó s i t o é u m a n e g a ç ã o t an to da e n c a r n a ç ã o c o m o da exp iação . E le d e s p o j a a p e s s o a de Cr i s to de sua d iv indade , do seu e n s i n o c o m au to r idade , e da e f i các i a de sua mor te . J o ã o a f i r m a n o s t e r m o s m a i s fo r t e s poss íve i s q u e n i n g u é m q u e re je i t a o F i lho p o d e ter o Pa i (2 .23,24) . Jesus , o Cr is to , o F i lho de D e u s , é " a q u e l e q u e ve io p o r m e i o de água e s a n g u e " (5.6). Es t a é u m a f r a s e obscura , m a s p o d e b e m refer i r - se ao seu b a t i s m o e à s u a c ruz , a m b o s os quais , João dec lara e m opos ição ao ens ino herét ico, f o r a m exper iênc ias a t ravés das qua i s p a s s o u o d i v i n o - h u m a n o Jesus de N a z a r é .

2. Auto-engano moral O s h e r e g e s e s t a v a m e q u i v o c a d o s t a n t o e m é t i c a c o m o e m d o u t r i n a , e p r o v a v e l m e n t e pe l a m e s m a r azão bás ica . Se o a s sun to é e s s e n c i a l m e n t e noc ivo , n ã o s o m e n t e a e n c a r n a ç ã o é imposs íve l , m a s o c o r p o h u m a n o é m e r a m e n t e u m invó luc ro p a r a o espír i to , e a m o r a l i d a d e to rna-se u m a ques t ão de i nd i f e r ença . N a d a do q u e o c o r p o f a z p o d e p r e j u d i c a r o espí r i to inter ior . É poss íve l , e les ta lvez a rgumen tavam, "ser j u s t o " s e m " faze r j u s t i ça"—es ta r n u m re l ac ionamento cor re to c o m D e u s s e m a c o r r e p o n d e n t e co r r eção n a v ida .

J o ã o c o m b a t e a r d o r o s a m e n t e es te s e g u n d o erro.

• " A q u e l e q u e diz: ' E u o c o n h e ç o ' , e n ã o g u a r d a os seus m a n d a m e n t o s , é m e n t i r o s o " (2.4). • "F i lh inhos , n ã o v o s de ixe is e n g a n a r p o r n i n g u é m ; a q u e l e q u e p ra t i ca a j u s t i ç a é j u s to , a s s i m c o m o e le é j u s t o " (3.7). • " N ã o imi tes o que é m a u , senão o que é b o m . A q u e l e que pra t ica o b e m p r o c e d e de Deus , aque le q u e p ra t i ca o m a l j a m a i s v iu a D e u s " (3 J o ã o 11). • " S e d i s s e r m o s que n ã o t e m o s p e c a d o n e n h u m , a nós m e s m o s nos e n g a n a m o s , e a v e r d a d e n ã o es tá e m n ó s " (1 J o ã o 1.8).

João e Cerinto Vimos acima o notável rasto de memória que liga João. por intermédio de Policarpo, a Irineu. Isto não pode ser infalível, naturalmente, mas um elemento nele é a tradição de que nos últimos anos de sua vida João se opôs a Cerinto em Éfeso.

Irineu refere-se a um incidente particular, que diz ter ouvido de Policarpo. João fugiu de um balneário público em Éfeso, exclamando: "Salvemo-nos! O balneário vai desabar, porque dentro está Cerinto,

o in imigo da verdade!" Os detalhes pa recem inverossímeis, mas este episódio ao menos atesta a ardente preocupação com a verdade que caracteriza as três cartas de João.

Irineu apresenta um resumo detalhado do ensino de Cerinto, que podemos relacionar à evidência das cartas de João para formar uma imagem da heresia a que o apóstolo se opunha.

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PAULO E SUA MENSAGEM 8 3

João preocupava-se de que os crentes tivessem vidas irrepreensíveis e puras; havia muitas tentações a evitar, Este sinal gravado numa pedra entre as ruínas da antiga Éfeso marcava o local de um bordel.

Por tan to , o f i l ho de D e u s d e v e "pur i f i ca r - se a si m e s m o , a s s i m c o m o ele é p u r o " (3.3). J o ã o é in f l ex íve l nes t e pon to : • " A q u e l e q u e p ra t i ca o p e c a d o p r o c e d e do d iabo , p o r q u e o d i a b o v ive p e c a n d o d e s d e o pr inc íp io . P a r a is to se m a n i f e s t o u o F i lho de D e u s , pa r a des t ru i r as ob ra s d o d iabo . T o d o a q u e l e q u e é na sc ido de D e u s não v i v e na p rá t i ca de p e c a d o ; po i s o q u e p e r m a n e c e ne l e é a d iv ina s emen te ; ora , e s se n ã o p o d e v ive r p e c a n d o , p o r q u e é n a s c i d o de D e u s " (3 .8 ,9) .

J o ã o não es tá e n s i n a n d o a to ta l i m p o s s i b i l i d a d e de pecar , p o r q u e ele dec la rou e m 2.1 que h á p e r d ã o gra tu i to " s e a l g u é m peca r " . E le es tá antes e n s i n a n d o a total i m p r o p r i e d a d e d o p e c a d o para a l g u é m q u e fo i t r az ido ao n o v o n a s c i m e n t o p o r D e u s . N e s t a ê n f a s e J o ã o se j u n t a a seu Mes t r e : o Jesus q u e e x p ô s a v ida imora l da m u l h e r s amar i t ana ( João 4 .16 -18 ) , d i sse ao j u s t o N i c o d e m o s que e le p r ec i s ava na sce r de n o v o (3 .1-15) , adver t iu o a l e i j ado q u e n ã o ma i s p e c a s s e (5 .14) , d i s se aos f a r i s e u s q u e e les e r a m m e r o s e s c r a v o s d o p e c a d o (8 .34) , i ncen t ivou seus d i sc ípu los a g u a r d a r e m seus m a n d a m e n t o s (14 .15 ,21-24) , e o r o u pa ra q u e o Pa i g u a r d a s s e e san t i f i casse os q u e e r a m seus (17 .17) ; es te Jesus era o Santo q u e exig ia a ve rdade nas coisas espir i tuais . "Fi lh inhos , guarda i -v o s dos í d o l o s " (1 J o ã o 5 .21) f o r a m as ú l t imas pa l av ra s de J o ã o a eles .

3. Auto-exaltação espiritual O tercei ro aspec to do s i s t ema dos he reges q u e m e r e c e a c o n d e n a ç ã o do após to lo e ra sua a t i tude de supe r io r idade e m re l ação a ou t r em. E r a m re l ig iosos e s n o b e s q u e a l e g a v a m ter u m a r eve l ação espec ia l p róp r i a (4 .1-3) . E r a m os "esp i r i tua is" ,

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8 4 HOMENS COM UMA MENSAGEM

a a r i s tocrac ia i lus t rada, a elite re l ig iosa . Eles m e n o s p r e z a v a m os dema i s . J o ã o con t rad iz c a t e g o r i c a m e n t e sua p re t ensão . E s c r e v e n d o a t oda a ig re ja

ele diz: " V ó s possu í s a u n ç ã o que v e m do Santo , e t odos t endes conhec imen to . . . a u n ç ã o q u e dele r ecebes t e s p e r m a n e c e e m vós , e não t endes n e c e s s i d a d e de q u e a l g u é m vos ens ine" (1 J o ã o 2 .20 ,27) . N ã o h á r eve l ação secreta . O ens ino apos tó l i co—e a convicção p r o f u n d a e ín t ima de sua ve rdade dada pe lo Esp í r i t o— é a p o s s e s s ã o de toda a igreja .

A l é m disso, os m e m b r o s da ig re ja d e v e m amar-se r ec ip rocamen te . São i rmãos e i rmãs . E m sua ú l t ima o ração o S e n h o r ped iu ao Pa i q u e seus d i sc ípu los f o s s e m u n i d o s ( João 17.20-23) . Por tan to , n i n g u é m p o d e es tar " n a l uz" se ode i a seu i r m ã o (1 J o ã o 2.9-11) . N a ve rdade , d e v e m o s es tar p ron to s a segui r o e x e m p l o de Jesus e "dar nossa v ida pelos i r m ã o s " (1 João 3.16). Es te amor é abso lu tamente f u n d a m e n t a l : " A q u e l e q u e não a m a n ã o c o n h e c e a D e u s , po i s D e u s é a m o r " (4.8).

M a s esse a m o r t e m s ido n e g a d o f u n d a m e n t a l m e n t e p e l o s h e r e g e s . P e l o r o m p i m e n t o d a c o m u n h ã o c o m o r e s t a n t e da i g r e j a , e l e s r e v e l a r a m suas ve rdade i r a s t endênc ias : "E les s a í r am de nos so m e i o , en t re tan to n ã o e r a m dos nos sos ; p o r q u e , se t i ve s sem s ido dos nossos , t e r i am p e r m a n e c i d o c o n o s c o ; todavia , eles se f o r a m para que f i casse man i f e s to que n e n h u m deles é dos n o s s o s " (2 .19) . E les não p o d e m dizer q u e a m a m a D e u s , po i s ao m e s m o t e m p o o d e i a m os f i lhos de D e u s (4 .20 ,21) .

J o ã o t r a n s f o r m a o t r ip lo e r ro dos h e r e g e s n u m t r ip lo tes te de C r i s t i a n i s m o au tên t ico . A o m e s m o t e m p o q u e debi l i ta a c o n f i a n ç a dos f a l sos cr is tãos , e le fo r t i f i ca a c o n v i c ç ã o dos reais cr is tãos . C o m o Tiago , ele d e s e n h a u m cont ras te en t re o que as p e s s o a s a l e g a m ser e o q u e elas r e a l m e n t e são. C o m f r e q ü ê n c i a e le u s a u m a exp re s são c o m o "n is to s a b e m o s [ou sabeis] ...", pa r a in t roduz i r os tes tes de con f i ança , e estes testes c o i n c i d e m c o m os er ros dos he reges :

• " N i s t o r econhece i s o Esp í r i to de D e u s : t odo espí r i to que c o n f e s s a que Jesus Cr i s to ve io e m carne é de D e u s " (4.2). Es t e é o teste cristológico. • "Ni s to são m a n i f e s t o s os f i lhos de D e u s e os f i lhos do d iabo: t o d o aque le q u e n ã o pra t ica j u s t i ça n ã o p r o c e d e de D e u s " (3.10). Es te é o tes te moral. • " N ó s s a b e m o s que j á p a s s a m o s da mor t r e pa ra a v ida , p o r q u e a m a m o s os i r m ã o s " (3 .14) ; " E nis to c o n h e c e m o s que ele p e r m a n e c e e m nós , pe lo Esp í r i to q u e nos d e u " (3.24). Es t e é o tes te espiritual. J o ã o f a z as m e s m a s a f i r m a ç õ e s n e g a t i v a m e n t e : • " Q u e m é o m e n t i r o s o senão aque le que n e g a q u e Jesus é C r i s t o ? " (2 .22) . • " S e d i s s e r m o s que m a n t e m o s c o m u n h ã o c o m ele, e a n d a r m o s nas t revas , m e n t i m o s " (1.6). • " S e a l g u é m disser : ' A m o a D e u s ' , e od ia r a seu i rmão , é m e n t i r o s o " (4 .20) . Es tas são as três p rovas de Cr is t ianismo genuíno. João reúne todas elas no c o m e ç o de seu cap í tu lo c inco: • " T o d o aque le que crê que Jesus é o Cr is to é na sc ido de D e u s ; e t odo aque le que a m a ao que o gerou , t a m b é m a m a ao que dele é nasc ido . N i s t o c o n h e c e m o s q u e a m a m o s os f i lhos de D e u s , q u a n d o a m a m o s a D e u s e p r a t i c a m o s os seus m a n d a m e n t o s " (5.1,2) . A m e n o s q u e os cr is tãos s e j a m iden t i f i cados pe la c r e n ç a genu ína , obed i ênc i a p i edosa e a m o r f ra te rna l , eles são fa l sos . E les n ã o p o d e m ter na sc ido de novo , p o r q u e aque les que são "nasc idos de D e u s " são os que c r ê e m (5.1) e o b e d e c e m (3.9) e a m a m (4.7) .

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PAULO E SUA MENSAGEM 8 5

A l i n g u a g e m das car tas de J o ã o é s imples , p o r é m sua m e n s a g e m é p r o f u n d a . M a r t i n h o L u t e r o escreveu sobre 1 João: " J ama i s li u m l ivro escr i to c o m pa lavras m a i s s imples do que estas , e no en tan to as pa lav ras são inexpr imíve i s . ' ' N e l a s J o ã o dest i la a e s sênc ia de u m a v ida de d i sc ipulado , q u a n d o f i n a l m e n t e de sc reve a verdade e a decisão, das quais depende toda a nossa existência: " E o t e s t e m u n h o é este , q u e D e u s nos deu a v ida e terna; e es ta v ida es tá no seu F i lho . A q u e l e q u e t e m o F i lho t e m a v ida ; aque le q u e não t e m o F i lho de D e u s n ã o t e m a v i d a " (5 .11,12) .

Leitura adicional

Menos exigente: A. E. Harvey, Jesus on Trial. A Study in the Fourth Gospel (Londres: SPCK, 1976 ) David Jackman, The Message of John's Letters: Living in the Love of God (Leicester:

IVP, 1988) Bruce Milne, The Message of John: Here is your King! (Leicester: IVP, 1993) Leon Morris, Jesus is the Christ. Studies in the Theology of John (Grand Rapids:

Eerdmans/Leicester: IVP, 1989)

Mais exigente, obras eruditas: Gary M. Burge, Interpreting the Gospel of John (Grand Rapids: Baker Book House,

1992) John W. Pryor, John: Evangelist of the Covenant People. The Narrative and Themes of

the Fourth Gospel (Londres: Darton, Longman & Todd, 1992) Judith M. Lieu, The Theology of the Johannine Epistles (Cambridge: CUP, 1991) Leon Morris, Studies in the Fourth Gospel (Exeter: Paternoster, 1969): este livro contém

o ensaio sobre a relação entre João e os sinópticos mencionados acima

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Paulo e sua Mensagem Estou crucificado com Cristo; logo, já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim; e esse viver que agora tenho na came, vivo pela fé no Filho de Deus, que me amou e a si mesmo se entregou por mim. (Gálatas 2.19,20)

As treze cartas atribuídas a Paulo em nosso N o v o Testamento fo rmam exatamente u m quar to de todo ele. A l é m disso, de todos os escri tores do N o v o Testamento, Paulo pode inques t ionavelmente reivindicar ter sido o mais inf luente e m toda a história da igreja. Por exemplo , é u m a redescober ta da teologia de Paulo que mot iva a R e f o r m a do século dezesseis , aquela revolução teológica que incita u m a sublevação dentro da igreja Catól ica R o m a n a e dá nasc imento a todas as igrejas Protestantes dos t empos atuais.

Paulo é t a m b é m singular pelo fa to de sabermos mais sobre ele do que sobre qualquer outro escritor do N o v o Testamento. Lucas dedica mais da metade do livro de Atos para narrar a história do ministério missionário de Paulo, e podemos obter mui ta coisa sobre Paulo através de suas cartas.

Paulo, o homem Paulo nasceu e m Tarso, a pr incipal c idade da Cilicia, na costa sul da Turquia mode rna (Atos 9.11; 21.39; 22.3). Ele própr io chama Tarso de "c idade não ins ignif icante" e m Atos 21.39. Tarso é u m a c idade de impor tância comercial considerável e possui u m a univers idade que rivaliza e m f a m a c o m as de Atenas e Alexandr ia . Pau lo p rovave lmen te n u n c a es tudou na un ive r s idade p o r q u e r ecebeu sua p r inc ipa l e d u c a ç ã o e m Je rusa l ém (Atos 22 .3) . En t re tan to ele n i t idamente absorveu a a tmosfera e cul tura gregas de Tarso e fa lou e escreveu e m grego c o m grande f luência. Ele faz citações de pelo menos três poetas gregos: Ara to (Atos 17.28), Menande r (1 Corínt ios 15.33) e Epimênides (Tito 1.12). A c u l t u r a g r e g a r e s e r v a p o u c a s s u r p r e s a s p a r a e le , e a s s i m sua f o r m a ç ã o proporc iona- lhe u m b o m preparo para a carreira missionária.

Paulo possuía a c idadania r o m a n a por nasc imento (Atos 22.28), o que era então u m a dist inção incomum. Isto sugere que sua famí l ia era importante e m Tarso, porque com toda probabil idade seu pai ou avô teria recebido esta cidadania

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PAULO E SUA MENSAGEM 8 7

of ic ia l c o m o r e c o m p e n s a por serv iços p res t ados à c idade . Is to j u s t i f i c a o f a t o de ele ter o n o m e r o m a n o " P a u l o " , ao l ado do h e b r a i c o " S a u l o " (Atos 13.9).

M a s " S a u l o " era o n o m e q u e ele u s a v a q u a n d o j o v e m . Sua f a m í l i a p o d e ter s ido t o t a lmen te en ra i zada n a cu l tu ra grega , p o r é m p a r a o j o v e m Sau lo f o i a re l ig ião de seus pais q u e o c u p o u todo o seu c o r a ç ã o e d e v o ç ã o . C o n t u d o , f o i u m a ve r são par t icu la r d a q u e l a re l ig ião q u e o ca t ivou: " E u sou f a r i seu" , fo i sua a p a i x o n a d a a l egação (Atos 23 .6 ; c o m p a r e c o m Fi l ipenses 3.5) .

O F a r i s a í s m o e r a e n t ã o u m m o v i m e n t o s e p a r a d o d e n t r o d o J u d a í s m o , m o v i m e n t o que e n f a t i z a v a a obed iênc i a es t r i ta da lei, i nc lu indo e s c r u p u l o s a o b s e r v â n c i a das fes tas e out ros r i tuais a s soc i ados ao t e m p l o e m Je rusa l ém. P o r es ta r azão o F a r i s a í s m o f l o r e sceu n a Judé ia , h a v e n d o p o u c o s f a r i seus e m ou t ros lugares . M a s de a l g u m a f o r m a P a u l o r e c e b e a i n f l uênc i a des se m o v i m e n t o e t r ans fe re - se pa ra J e r u s a l é m a inda j o v e m p a r a es tudar aos pés de u m dos mes t r e s do Fa r i s a í smo , G a m a l i e l o P r i m e i r o (Atos 22.3) , ne to do f a m o s o r ab ino Hil le l , a q u e m todo o m o v i m e n t o cons ide rava seu f u n d a d o r .

O j o v e m Sau lo de Tarso lança-se av idamen te à ta re fa de m e m o r i z a r e obse rva r os es ta tu tos e t r ad ições do Fa r i s a í smo . E l e fo ra , e m suas p róp r i a s pa lavras , ins t ru ído " s e g u n d o a exa t idão da lei d e nos sos a n t e p a s s a d o s " (Atos 22.3) . e " q u a n t o a o J u d a í s m o , a v a n t a j a v a - m e a m u i t o s d a m i n h a i d a d e , s e n d o e x t r e m a m e n t e ze loso das t rad ições de m e u s p a i s " (Gála tas 1.14). E l e c h e g a ao p o n t o de a f i r m a r que f o r a " i r r ep reens íve l " n a sua o b s e r v â n c i a da lei (F i l ipenses 3 .6) . A p r o v a f i n a l de sua p a i x ã o p a r a c o m a f é de seus p a i s é sua c rue l p e r s e g u i ç ã o à ig re ja cr is tã (Atos 9 .1 ,2; 22 .4 ,5 ; Gá la tas 1.13; F i l ipenses 3.6; 1 T i m ó t e o 1.13).

A conve r são de P a u l o no c a m i n h o pa ra D a m a s c o é r epen t ina e d ramát i ca .

Por que Paulo persegue a igreja?

Por que o evangelho cristão ofendeu tanto este jovem fariseu? O sermão de Pedro no dia do Pen tecos te a t inge o c l ímax com a grande declaração: "A este Jesus que vós crucificastes, Deus o fez Senhor e Cristo" (Atos 2.36). Foi provavelmente este elo entre a crucificação e o mess i ado que o f endeu Paulo . "O que for pendurado no madeiro é maldito de Deus" é o ensino de Deute ronômio 21.23. Portanto o próprio fato da crucif icação faz com que a pretensão cristã seja impossível. Entretanto, esses cristãos parecem ter orgulho da cruz!

Dois fatores sugerem que Deuteronômio 21.23 pode ter sido uma significativa motivação para o ódio de Paulo contra a igreja. 1. Cem anos mais tarde este mesmo argumento é usado contra a fé cristã por outro judeu, num famoso diálogo com o apologista cristão Justino. Trifo, o judeu, argumenta: "Nós duvidamos que o Messias pudesse ter sido crucificado de uma forma tão desonrosa. Pois na lei se diz que um homem crucificado é maldito. Neste ponto você não é capaz de persuadir-me." Mas Justino tenta:

"Esta afirmação na realidade fortalece nossa esperança no Messias crucificado. Ele não foi amaldiçoado por Deus, porém Deus anteviu a maldição que você e todos como você amontoariam sobre Ele!" (Justino, Diálogo com Trifo 89.2; 96.1). 2. O próprio Paulo usa o versículo em sua carta aos gálatas de um modo que sugere a revolução nas idéias que ele exper imentou: "Cris to nos resgatou da maldição da lei, fazendo-se ele próprio maldição em nosso lugar, porque está escrito: 'Maldito todo aquele que for pendurado em madeiro"' (Gálatas 3.13). Paulo teve a percepção de que Jesus não era pessoalmente maldito de Deus, mas sim vicariamente, tendo tomado a maldição que nos cabia, de modo que ficássemos l ivres dela . A c o m p r e e n s ã o de Pau lo sobre o significado de Deuteronômio 21.23 era mais profunda que a de Justino.

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90 HOMENS COM UMA MENSAGEM

Seu ze lo é d e m o n s t r a d o p o r sua d i spos i ção de rea l izar u m a longa v i a g e m pa ra d e s a r r a i g a r t o d o s os a d e p t o s d e s s e " C a m i n h o " n o c i v o ( A t o s 9 . 2 ) . M a s , r epen t inamente , u m a luz br i lhante v inda do céu o fusca - lhe a visão, e ele é a t i rado ao solo p o r m ã o invis ível que o sub juga , e n q u a n t o u m a v o z c h a m a seu n o m e , e en t ão ele vê Jesus . N ã o p o d e have r dúv ida de q u e se trata de u m a ve rdade i ra e ob je t iva "v i são ce les t ia l" (Atos 26 .19) do Cr i s to ressur re to . N ã o é n e n h u m a a luc inação . Pau lo é bas t an te c laro a es te respe i to . É a ú l t ima apa r i ção ta rd ia de Je sus ressur re to : " D e p o i s de todos , f o i v is to t a m b é m p o r m i m , c o m o p o r u m n a s c i d o f o r a do t e m p o " (1 Cor ín t ios 15.8). Três dias depois , e le es tá p r e g a n d o nas s inagogas de D a m a s c o " q u e este [Jesus] é o F i lho de D e u s " (Atos 9 .20) .

A l g u n s t ê m suge r ido q u e a v io lênc ia da opos i ção de P a u l o à f é cr is tã fo i u m a ten ta t iva de r ep r imi r dúv idas q u e j á o e s t a v a m p r e p a r a n d o pa ra essa m u d a n ç a de opin ião . Q u e i m p r e s s ã o de ixou e m Sau lo a v i são de E s t ê v ã o o r a n d o p o r seus a lgozes e n q u a n t o es tes o a p e d r e j a v a m até à mor t e , e n t r e g a n d o sua v ida nas m ã o s do " S e n h o r J e s u s " (7 .59 ,60)? Q u e e r a m os " a g u i l h õ e s " con t ra os qua i s P a u l o es tava r eca lc i t r ando? E r a m eles sua sensação inqu ie tan te de que esses c r i s tãos e s t a v a m cer tos , apesar de t u d o ?

D e m o d o seme lhan te , a lguns t ê m suge r ido q u e R o m a n o s 7 .7 -9 nos dá a l g u m indíc io de seu es tado de m e n t e nes sa ocas ião: " E u não teria c o n h e c i d o o pecado , s enão p o r i n t e rméd io da lei; pois n ã o teria eu c o n h e c i d o a cobiça , se a lei não dissera : ' N ã o cob iça rás . ' M a s o pecado , t o m a n d o ocas i ão pe lo m a n d a m e n t o , despe r tou e m m i m toda sorte de concup i scênc ia . . . Ou t ro ra , s e m a lei, eu vivia ; mas , sob rev indo o prece i to , r ev iveu o pecado , e eu m o r r i . " Es t á ele d e s c r e v e n d o u m pe r íodo de c o n v i c ç ã o antes de sua conve r são , q u a n d o p e r c e b e u que sua obed iênc i a à lei n ã o era tão " i r r ep reens íve l " c o m o ele t inha p e n s a d o ?

E possível q u e Pau lo es t ivesse angus t i ado c o m dúv idas e m tal s i tuação . M a s o r ac ioc ín io e m R o m a n o s 7 é c o m p l e x o , n ã o s e n d o ce r to q u e ele es te ja se r e f e r i n d o à sua expe r i ênc i a pessoa l . A l é m disso, seu p róp r io t e s t e m u n h o di re to n ã o o fe r ece indíc ios dessas dúv idas . E m duas ocas iões e m que Pau lo re la ta sua conversão e m Atos , ele se descreve c o m o resoluto e m sua convicção e implacáve l e m seu ze lo c o m o perseguidor . I g u a l m e n t e e m Gála tas 1 .13-16 e F i l ipenses 3.4-12, as duas ocasiões e m que ele escreve acerca de sua conversão , não expressa qua lque r d ú v i d a sobre sua lea ldade e o rgu lho c o m o fa r i seu " i r r ep reens íve l " . A expe r i ênc i a n o c a m i n h o de D a m a s c o p o d e ter s ido u m ra io do céu azul .

T e n h a ou n ã o s ido p r enunc i ada , a c o n v e r s ã o de P a u l o fo i o f a to dec i s ivo de sua v ida . U m es tud ioso , Dr. S e y o o n K i m , da Coré i a do Sul , r essa l tou a í n t ima c o n e x ã o entre a exper iênc ia da conve r são de P a u l o e o e v a n g e l h o ao qua l depois e le ded i cou sua v ida p r o c l a m a n d o . N a q u e l e m o m e n t o do encon t ro c o m o Cr i s to ressur re to , o Dr. K i m sugere q u e Pau lo n ã o s o m e n t e se t o rnou u m cr is tão, m a s t a m b é m r e c e b e u o q u e m a i s ta rde ele c h a m a " m e u e v a n g e l h o " (p.ex. . R o m a n o s 2 .16) , c o m o t a m b é m a o r d e m de p regá - lo un ive r sa lmen te . I s to c e r t a m e n t e es tá de aco rdo c o m seu p róp r io t e s t e m u n h o e m Gála tas 1.11,12: " F a ç o - v o s , p o r é m , saber, i rmãos , que o e v a n g e l h o p o r m i m a n u n c i a d o não é s e g u n d o o h o m e m ; p o r q u e eu não o recebi , n e m o aprendi de h o m e m a lgum, m a s med ian te reve lação de Je sus Cr i s to . " A q u i P a u l o esc reve l i t e ra lmente " m e d i a n t e r eve l ação de Jesus Cr i s t o " , e i n d u b i t a v e l m e n t e se r e f e r e à r e v e l a ç ã o de J e s u s n o c a m i n h o de D a m a s c o .

P o d e m o s e x a m i n a r a ve rdade dis to se p e r g u n t a r m o s : O q u e se p a s s a v a n a m e n t e de P a u l o q u a n d o ele re f le t ia e o rava n a e scu r idão naque l e s três d ias até

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PAULO E SUA MENSAGEM 8 9

"Recalcitrando contra os aguilhões"

Há três relatos da conversão de Paulo em Atos: O registro de Lucas sobre ela (9.1-19), e a seguir dois relatos do próprio Paulo (22.4-16; 26.12-18). Na terceira destas, as palavras de Jesus a Paulo são profer idas de fo rma comple ta : "Saulo, Saulo, por que me persegues? Dura coisa é recalcitrares contra os aguilhões" (Atos 26.14).

"Recalcitrar [escoicear] contra os aguilhões" é um provérbio, conhecido por nós tanto por meio dos escritos gregos como judaicos. Ele lembra um cavalo tentando em vão recusar-se a obedecer ao controle de seu cavaleiro, ou um boi no arado resistindo às cutucadas da vara do agricultor. O que ele significa quando aplicado a Paulo? Três interpretações são possíveis: 1. Pode referir-se ao "aguilhão" do próprio entendimento. Paulo não podia resistir ao poder

esmagador e à glória do Senhor que agora lhe aparece: ele deve obedecer! 2. Pode referir-se à sua perseguição à igreja. Por este procedimento, ele tinha sido como um boi tentando lutar contra seu verdadeiro Mestre, Jesus Cristo. 3. Ou pode referir-se a dúvidas e agulhadas da consciência que Paulo vem tentando suprimir ao continuar perseguindo a igreja, a despeito da sensação de que esses cristãos podem, afinal de contas, estar certos. Talvez essas dúvidas tenham sido instigadas pela visão da coragem e amor de Estêvão, quando orou por aqueles que o estavam apedrejando até à morte (Atos 7.60). Embora Paulo jamais tenha se referido a essas dúvidas, o Senhor pode ter posto seu dedo sobre alguma coisa que agia dentro de seu coração e consciência.

q u e A n a n i a s v iesse e lhe impuses se as m ã o s ? A s d i fe ren tes ên fases de suas car tas a j u d a m - n o s a imag ina r seu e s t ado men ta l : 1. Sua mente mudou a respeito de Jesus. A p e s a r de c ruc i f i cado , J e sus era a f ina l o Mess i a s . Os h o m e n s o p e n d u r a r a m n u m made i ro , m a s D e u s o ressusc i tou dent re os mor tos . Pau lo não t inha t ido n e n h u m a hes i t ação ao dir igir -se a E le c o m o " S e n h o r " . Pau lo sent ia que hav ia t ido u m a v i são celest ia l , e que Jesus es tava se d i r ig indo a ele r e s su rg ido e m glór ia .

2. Sua mente mudou a respeito da Lei. A Le i o l evou a pe r segu i r o M e s s i a s ! C o m o p o d i a ser i s to? E s p e c i a l m e n t e e m suas car tas aos gá la tas e aos r o m a n o s , t e m o s P a u l o r e s p o n d e n d o a pe rgun ta s c o m as qua i s ele deve ter de imed ia to c o m e ç a d o a lutar. E le ques t i onou t odo o seu m o d o de v ida c o m o fa r i seu , e para le lamente sua compreensão do Velho Tes t amen to—até ser capaz de constatar que as Escr i tu ras t e s t e m u n h a v a m e m f a v o r de Jesus , não con t ra E le .

3. Sua mente mudou a respeito da salvação. Es te p o n t o segue- se ao anterior . A n t e r i o r m e n t e Pau lo hav ia c r ido que a sa lvação d e p e n d i a de sua obed i ênc i a c o m o fa r i seu . E le p o d i a es tar s egu ro de u m lugar n o R e i n o de D e u s p o r c a u s a de seu ze lo p e l a " t r ad ição de m e u s an t epas sados" . En t re tan to , n ã o pode r i a ha -ver lugar no R e i n o p a r a a l g u é m q u e pe r segu iu o M e s s i a s ! Es te era o m a i o r p e c a d o imag ináve l .

P o r é m , e m vez de j u l g á - l o e re je i tá- lo , D e u s lhe h a v i a r e v e l a d o seu F i lho , e o h a v i a c h a m a d o pa ra u m impor t an t e min is té r io . C o m o is to fo i poss íve l? P a u l o t inha experimentado sua dout r ina de jus t i f i cação , a m e n s a g e m que ele a n u n c i o u co ra jo samen te através da Ás ia Menor , por toda a Grécia e, f ina lmente , e m R o m a : D e u s s i m p l e s m e n t e o t inha ace i t ado e p e r d o a d o seu pecado , não p o r q u e P a u l o t ivesse o fe rec ido me t i cu lo samen te os dev idos sacr i f íc ios no templo , m a s p o r q u e Jesus t inha s ido sac r i f i cado e m seu favor .

4 . Sua mente mudou a respeito da igreja. " P o r que me p e r s egues?" , p e r g u n t o u -lhe o Cr i s to r e s su r r e to . N ã o é c e r t a m e n t e f a n t a s i o s o ve r n e s t a p e r g u n t a o n a s c i m e n t o e m Pau lo da c o m p r e e n s ã o sob re a igre ja . H a v i a tão ín t ima u n i ã o en t r e o S e n h o r e s u a i g r e j a q u e a t a c á - l a e r a o m e s m o q u e a t a c á - l o . E m

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9 0 HOMENS COM UMA MENSAGEM

P a u l o p e d e a T i m ó t e o q u e t raga à p r isão s e u s l ivros [ rolos] e os p e r g a m i n h o s (2 T m 4 .13) . E le t a m b é m ter ia u s a d o u m t in te i ro c o m o este, q u e d a t a do p e r í o d o r o m a n o e foi d e s c o b e r t o e m Q u m r ã .

conseqüênc ia disto Paulo ve io depois a pensar na igreja c o m o "o co rpo de Cris to" , un ida a Cr i s to pe lo Esp í r i to San to q u e hab i ta ne l a e a v iv i f ica . N ã o s u r p r e e n d e q u e P a u l o t e n h a sen t ido v e r g o n h a p o r t oda s u a ex i s t ênc i a p e l o f a t o d e ter p e r s e g u i d o aque les cr is tãos: e le os od iou p o r q u e e s t a v a m che ios do Esp í r i to San to e insp i rados p o r E l e pa ra c o n f e s s a r Jesus c o m o Cr i s to e Senhor . 5. Sua mente mudou a respeito dos gentios. N ã o es tá e x a t a m e n t e c la ro q u a n d o Pau lo r ecebeu sua c o m i s s ã o pa ra ser após to lo j u n t o aos gent ios . N u m dos re la tos d a c o n v e r s ã o de Paulo , A n a n i a s d iz - lhe q u e D e u s o t inha e sco lh ido pa ra " se r sua t e s t e m u n h a d ian te de t odos os h o m e n s das coisas q u e tens vis to e o u v i d o " , e l ogo e m segu ida Pau lo t e m u m a v i são no t emplo , n a qua l D e u s o env ia aos gen t ios (Atos 22 .15 ,21) . E m out ros do i s re la tos , o p rópr io Jesus ressur re to , e m sua a p a r i ç ã o in ic ia l n o c a m i n h o de D a m a s c o , c o m i s s i o n a - o p a r a p r e g a r o e v a n g e l h o aos gen t ios (26 .16-18) .

N ã o há n e n h u m a con t r ad i ção en t re es tas ve r sões . E m Gá la t a s 1 .15,16 P a u l o

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PAULO E SUA MENSAGEM 9 1

esc reve sobre o m o m e n t o "quando . . . ao q u e m e sepa rou an tes de eu na sce r e m e c h a m o u pe l a sua graça , a p r o u v e r eve la r seu F i lho e m m i m , pa ra q u e eu o p r e g a s s e en t re os gen t ios" . O c h a m a d o e ra pa r t e da conve r são , p o r q u a n t o se D e u s ace i tou e " ju s t i f i cou" pes soas g ra tu i t amente , do m e s m o m o d o c o m o E l e t inha ace i t ado Pau lo , en t ão esse era u m e v a n g e l h o p a r a t o d a a r aça h u m a n a . Jesus e ra u m M e s s i a s p a r a o m u n d o , n ã o s o m e n t e pa ra os j u d e u s .

Ante r io rmente Saulo, o far iseu, t inha cons t ru ído sua v ida sobre a d i fe renc iação m a i s a c e n t u a d a p o s s í v e l en t re I s rae l e os gen t ios . E s t e s p o d i a m e n c o n t r a r salvação, p o r é m somen te c o m dif iculdade, e somen te se ace i tassem a c i rcuncisão e t o m a s s e m sobre si o " jugo da lei" . Es senc i a lmen te , e les d e v e r i a m tornar -se j u d e u s p a r a ser sa lvos . A g o r a , p o r é m , S a u l o t i n h a a p r e n d i d o d u a s co i sas . Hor ro r i zado , ap rendeu que a Le i ( c o m o ele a en tendia) t inha-o l evado a desviar-se do c a m i n h o . E c o m a s s o m b r o a p r e n d e u que D e u s t inha-o agora ace i tado l i v r emen te pe l a "g raça" , apesar de seu u s o e r r ado da Lei . C o l o c a r es tas duas coisas j u n t a s s ign i f i cava abol i r a d i f e r ença ent re Is rae l e os gent ios , p o r q u e " D e u s é u m só, o qua l j u s t i f i ca rá , p o r fé , o c i r cunc i so e, m e d i a n t e a f é , o i n c i r c u n c i s o " ( R o m a n o s 3.30) .

T u d o o q u e se necess i t ava e ra a f é q u e j o r r a v a e m seu p r ó p r i o c o r a ç ã o e m re spos t a à sua v i são de Jesus . C o m o p o d i a ele r ecusá - l a? N a ve rdade , e le n ã o que r i a reca lc i t rar con t ra o agu i lhão!

Paulo, escritor das cartas A n t e s d e p r o c u r a r r e sumi r a m e n s a g e m de Paulo , será úti l e x a m i n a r sua car re i ra c o m o escr i to r de car tas , b e m c o m o o c o n t e ú d o de suas car tas . A t a b e l a - r e s u m o adiante apresenta u m esboço a m p l a m e n t e acei to da v ida de Paulo , e m b o r a mui tas d a s d a t a s e a o r d e m das c a r t a s s e j a m a i n d a d i s c u t i d a s p e l o s e s t u d i o s o s . E s p e c i f i c a m e n t e m u i t o s c o n t e s t a m a au tor ia de P a u l o de 1 e 2 T i m ó t e o e Ti to , as c h a m a d a s "ep ís to las pas to ra i s" , b e m c o m o l a n ç a m d ú v i d a sobre o pe r í odo pos te r io r do min i s té r io q u e elas p a r e c e m reflet ir . C o n t u d o , n o r e s u m o aba ixo c o n s i d e r a m o s que P a u l o as e sc reveu .

M u i t o s e s tud iosos t ê m a inda t en tado de t e rmina r e v o l u ç õ e s no p e n s a m e n t o de P a u l o en t re as car tas . E c e r t a m e n t e poss íve l que tais evo luções oco r r e r am, m a s p r e c i s a m o s l embra r , p r ime i ro , q u e o p róp r io Pau lo ac red i t ava q u e t inha r e c e b i d o o e v a n g e l h o " p r o n t o p a r a u s o " n o c a m i n h o de D a m a s c o , c o m o j á v imos ; s egundo , q u e todas as car tas d a t a m da s egunda m e t a d e do seu minis tér io , e não do pe r í odo inicial e f o r m a t i v o ; e tercei ro , que suas car tas f o r a m todas m o t i v a d a s p o r p r o b l e m a s par t icu lares , de m o d o q u e suas ê n f a s e s e r a m d i tadas p r imar i amen te pelas necess idades de seus leitores. N ã o seria imprópr io , por tanto , reuni r u m r e s u m o do p e n s a m e n t o de P a u l o q u e a b r a n j a t odas as suas car tas ao m e s m o t e m p o .

A mensagem de Paulo N u m a pa lavra , a m e n s a g e m de Pau lo é a sa lvação pe l a g raça de D e u s e m Cris to . " G r a ç a " é u m a c h a v e e m seu p e n s a m e n t o . E l a ocor re o i tenta e seis vezes e m seus escr i tos . P a r a e le a " g r a ç a " t e m de ser con t r a s t ada c o m a " l e i " (veja , p .ex . , R o m a n o s 6 .15 e 5 .20; Gá la t a s 2 .21) . Is to e ra o q u e ele hav ia e x p e r i m e n t a d o ; e l e t i n h a s e g u i d o o m o d e l o d a " l e i " , c r e n d o q u e D e u s r e q u e r i a p e r f e i t a o b s e r v â n c i a das r eg ras que a b r a n g i a m c a d a de ta lhe da v ida . M a s e n t ã o ele

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94 HOMENS COM UMA MENSAGEM

descobr iu q u e isto o l evara a a fas ta r - se de Deus , e que D e u s c ruzou seu c a m i n h o e s i m p l e s m e n t e o ace i tou e m Jesus . Is to fo i p u r a "g raça" , a m o r i m e r e c i d o e p e r d ã o m o s t r a d o s a u m b l a s f e m o e p e r s e g u i d o r de Cris to .

P a r a Pau lo a g raça de D e u s n ã o é s i m p l e s m e n t e u m a a t i tude de D e u s (o lhar pa ra ele c o m amor ) , m a s t a m b é m u m a a ç ã o de D e u s (agar rá - lo e l ivrá- lo p o r m e i o de Cr is to) . Es t a ação é v is ta e m dois even tos : n a dád iva de Cris to , e m q u e m "a g raça de D e u s se m a n i f e s t o u sa lvadora a todos os h o m e n s " (Tito 2 .11) , e na d á d i v a do Esp í r i to Santo , p o r m e i o d e q u e m a g raça de D e u s é to rnada real e e f i c a z p a r a c a d a pessoa . C o m o P a u l o e sc r eve e m Ti to 3 .5-7, "e le nos sa lvou m e d i a n t e o lavar r egene rado r e r e n o v a d o r do Esp í r i to Santo , q u e ele d e r r a m o u sob re nós r i camen te , p o r m e i o de Jesus Cr i s to nos so Sa lvador , a f i m de que , j u s t i f i c a d o s p o r graça , nos t o r n e m o s seus herde i ros , s e g u n d o a e s p e r a n ç a da v ida e te rna" .

P o d e m o s recor re r a qua t ro g r a n d e s e x p r e s s õ e s teo lóg icas , u sadas p o r Paulo , pa r a r e s u m i r es ta m e n s a g e m da g raça de D e u s :

1. Justificação—Deus nos faz justos Es te é o t e m a b á s i c o das car tas aos gá la tas e aos r o m a n o s . Ser " j u s t i f i c a d o " s ign i f i ca ser i nocen tado , se ja p o r u m t r ibuna l h u m a n o , se ja p o r D e u s , o Ju iz de t odo a raça h u m a n a . É u m a e x p r e s s ã o u s a d a n o Velho Tes t amen to , o n d e aos ju í zes fo i o rdenado q u e j u l g u e m " jus t i f i cando ao j u s to e c o n d e n a n d o ao c u l p a d o " (Dt 25.1) . S e m e l h a n t e m e n t e D e u s d iz sobre si m e s m o : " N ã o jus t i f i ca re i o í m p i o [ cu lpado]" ( Ê x o d o 23.7) .

A n t e s de sua c o n v e r s ã o P a u l o n ã o teve n e n h u m p r o b l e m a acerca disto. C o m o fa r i seu e le ac red i t ava q u e j a m a i s e ra necessá r io mos t r a r - se c u l p a d o diante de Deus , p o r q u e D e u s hav ia p r o v i d e n c i a d o de ta lhadas ins t ruções na Lei pa ra l ivrar a raça h u m a n a do p e c a d o — i n c l u i n d o ins t ruções sobre c o m o f aze r a exp i ação p o r p e c a d o s ocas iona i s q u e v i e s s e m a ocorrer . P o r é m agora , c o m o cr is tão, e le surpreende seus lei tores ap resen tando D e u s c o m o aquele que " jus t i f ica ao í m p i o " ( R o m a n o s 4 .5) . A q u e l a t inha s ido sua e x p e r i ê n c i a — m a s e la p a r e c e con t rad ize r o Velho Tes t amen to . C o m o é is to pos s íve l ?

A luz i r rad ia sobre R o m a n o s e Gála tas . Pau lo r e fe re - se a u m vers ícu lo dos S a l m o s , pa r a o qual e le n ã o hav ia t a lvez a t en t ado c o m o fa r i seu : " N ã o ent res e m j u í z o c o m o teu s e r v o , p o r q u e à t u a v i s t a n ã o h á j u s t o n e n h u m [ n e n h u m j u s t i f i c a d o ] v i v e n t e " ( S a l m o 143.2) , c i t ado e m R o m a n o s 3 .20 e Gála tas 2 .16) . E m R o m a n o s es ta c i t ação f o r m a o c l í m a x de u m a l o n g a e x p l a n a ç ã o ( R o m a n o s 1 .18-3.20) , na qual P a u l o m o s t r a q u e toda a r aça h u m a n a , j u d e u s e gen t ios i gua lmen te , e s t ão " d e b a i x o do p e c a d o " ( R o m a n o s 3.9) . S u a ava l i ação do p o d e r da Le i ca iu ao n íve l m a i s ba ixo ! T u d o o q u e a lei c o n s e g u e é f aze r o h o m e m "cu lpáve l pe ran t e D e u s " e ter " o p l eno c o n h e c i m e n t o do p e c a d o " ( R o m a n o s 3 . 1 9 , 2 0 ) — n a ve rdade , " d e b a i x o da m a l d i ç ã o " (Gála tas 3 .10) . Por tan to , se D e u s vai jus t i f i ca r -nos , E le d e v e " jus t i f i ca r o í m p i o " : n ã o h á n e n h u m a al ternat iva .

E i s t o é p o s s í v e l p o r c a u s a d e J e s u s . E m G á l a t a s 2 . 1 7 P a u l o e s c r e v e : " . . . p rocu rando ser j u s t i f i c a d o e m Cr is to" . A e x p r e s s ã o " e m C r i s t o " é m u i t o c o m u m nas car tas de Pau lo e s ign i f i ca es tar u n i d o a Cris to , a s soc i ado c o m E l e insepa rave lmen te . V a m o s cons ide ra r aba ixo e x a t a m e n t e o que é es ta união . " E m Cr i s to" os í m p i o s p o d e m ser j u s t i f i c a d o s — m a s não e x a t a m e n t e p o r q u e es tão " a s s o c i a d o s i n s e p a r a v e l m e n t e " ao F i l h o d e D e u s s e m p e c a d o , e a s s i m r e s g u a r d a d o s p o r sua impecab i l i dade . A idé ia de P a u l o é m a i s p r o f u n d a . E l e p e n s a n u m a e spéc i e d e p e r m u t a en t re nós e Jesus : " A q u e l e que não c o n h e c e u

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PAULO E SUA MENSAGEM 9 3

D a t a s E v e n t o s na V i d a d e P a u l o a p r o x .

C a r t a s M e n s a g e m p r i n c i p a l

5 Nascido em Tarso

35 Convert ido no caminho de Damasco

35-38 Ministério na Arábia e em Damasco (Gálatas 1.17)

38 Visita a Jerusalém após a conversão (Atos 9.26; Gálatas 1.18)

38-43 Ministério na Síria; e em sua cidade Tarso (Atos 11.25; Gálatas 1.21)

43-46 Ministério em Ant ioquia com Barnabé V iagem a Jerusalém (Atos 11.26; 12)

47-49 Primeira v iagem missionária, em seguida Concíl io em Jerusalém (Atos 13-15)

50 Após a primeira v iagem missionária (Atos 13-15)

Gálatas Cristo, o l ibertador: l ibertação da Lei

50-52 Durante a segunda v iagem missionária provavelmente de Corinto (Atos 18.11)

1 & 2 Cristo, a vinda do Juiz Tessalonicenses e Salvador

52-55 Durante a terceira v iagem missionária provavelmente de Éfeso (Atos 19.8-10)

1 & 2 Coríntios

Cristo, o doador da lei para a igreja, seu corpo

55-56 De Corinto (Atos 20.3) Romanos Cr is to—caminho de Deus para a salvação do judeu e também do qentio

56 V iagem a Jerusalém: preso (Atos 21.27ss.)

56-59 Preso em Cesaréia, v iagem a Roma (Atos 24-28)

59-61 Ministério e prisão em Roma (Atos 28.30,31)

Efésios, Fil ipenses, Colossenses, Fi lemom

Cristo, o Senhor do universo e da igreja (Ef, Cl); Cristo, a fonte de alegria no sofr imento (Fp)

61 Livramento do cativeiro (Fi l ipenses 1.25; Fi lemom 22)

61-65 Ministério na Ásia Menor e na Grécia

1 Timóteo, Tito

Vida e ministério dentro da igreja de Cristo

65 Novamente preso, ju lgado e mart ir izado em Roma

2 Timóteo Guardando a fé pela palavra e pelo exemplo

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96 HOMENS COM UMA MENSAGEM

p e c a d o , e le o f e z p e c a d o p o r nós ; pa r a q u e ne le f ô s s e m o s fe i tos j u s t i ça de D e u s " (2 Cor ín t ios 5 .21) .

E a í q u e en t ra a c ruz . Fo i sob re a c ruz q u e Jesus " t o r n o u - s e p e c a d o " p o r nós . Es ta e x p r e s s ã o pode r i a ser t r aduz ida " f e i to p a r a ser u m a o f e r e n d a pe lo p e c a d o " , e t a lvez i s to es te ja n a m e n t e de Pau lo . E le t a m b é m o e x p r e s s a e m Gá la t a s 3 .13: "Cr i s to n o s r e sga tou da m a l d i ç ã o e m nos so lugar , p o r q u e es tá escr i to : ' M a l d i t o todo aque le q u e f o r p e n d u r a d o e m m a d e i r o ' . " E le se f e z p e c a d o p o r nós , e t o rnou- se m a l d i ç ã o p o r nós , pa r a q u e p u d é s s e m o s f i ca r l ivres de a m b o s .

P e r g u n t a m o s a Paulo: C o m o a m o r t e de Cr is to o capac i ta a supor tar a m a l d i ç ã o por n ó s e f aze r - se p e c a d o p o r nós p o r es te m e i o ? E le r e sponde : P o r q u e a m o r t e é a " m a l d i ç ã o da le i" e " o sa lár io do p e c a d o " ( R o m a n o s 6.23) . B a s i c a m e n t e , a m o r t e é a s epa ração de D e u s c a u s a d a pe lo p e c a d o . E s t a m o r t e Cr i s to a m o r r e u p o r nós . E l e m o r r e u n o s s a mor te . Se, pois , e s t a m o s un idos a Cr is to , is to é tão ve rdade i ro c o m o dizer : " E u morr i e m Cr is to" , que é o m e s m o q u e dizer : " E l e m o r r e u p o r m i m . " S e Cr i s to m o r r e u a m i n h a m o r t e e eu es tou nele , D e u s m e vê c o m o se eu m e s m o t ivesse mor r ido . T e n d o m o r r i d o e r e s susc i t ado c o m Cris to , as ex igênc ias da Le i são sat isfe i tas , e eu es tou l iber tado. O s vers ícu los seguin tes d i z e m is to c o m as p róp r i a s pa lav ras de Paulo : • "Es tou c r u c i f i c a d o c o m Cr is to ; logo , j á n ã o sou eu q u e m vive , m a s Cr i s to v i v e e m m i m ; e esse v iver q u e agora t enho na carne , v ivo pe l a f é n o F i lho de D e u s , que m e a m o u e a si m e s m o se en t r egou p o r m i m " (Gála tas 2 .19 ,20) . • " [ Jesus ] f o i en t r egue p o r causa das nossas t r ansgressões , e r e s susc i tou p o r c a u s a da n o s s a j u s t i f i c a ç ã o " ( R o m a n o s 4 .25) . • " O a m o r de Cr i s to n o s cons t range , j u l g a n d o nós isto: u m m o r r e u p o r todos , logo todos m o r r e r a m . E ele m o r r e u p o r todos , pa r a q u e os q u e v i v e m n ã o v i v a m ma i s pa ra si m e s m o s , m a s pa ra aque le q u e p o r e les m o r r e u e r e s s u s c i t o u " (2 Cor ín t ios 5 .14 ,15) . • " Q u a n t o a ter mor r ido , de u m a v e z pa ra s e m p r e m o r r e u pa ra o p e c a d o ; mas , q u a n t o a viver , v ive pa ra Deus . A s s i m t a m b é m vós cons ide ra i -vos mor to s pa ra o p e c a d o , m a s v ivos pa ra D e u s e m Cr i s to J e s u s " ( R o m a n o s 6 .10 ,11) .

A dout r ina da j u s t i f i c ação apresen tada p o r Pau lo fo i a tacada p o r a lguns out ros j u d e u s c r i s t i an izados . N a ve rdade , e le t eve de r e s p o n d e r a três cr í t icas , t odas e las b a s e a d a s no a r g u m e n t o de R o m a n o s : a. Se a salvação é simplesmente pela graça por meio da fé em Cristo, então qual é o propósito da Lei? M u i t o s dos c o m p a t r i o t a s j u d e u s r e a g i r a m con t ra P a u l o , c o m o e l e t e r ia f e i t o an te s d e sua c o n v e r s ã o . Q u a n d o e le c h e g o u a J e rusa l ém, vo l t ando de sua te rce i ra v i a g e m miss ioná r i a , e n f r e n t o u " m i l h a r e s " de j u d e u s c r i s t i an izados q u e e s t a v a m p r o f u n d a m e n t e d e s c o n f i a d o s dele . C o m o T i a g o c o m e n t o u , " [E les ] f o r a m i n f o r m a d o s a teu respe i to q u e ens inas todos os j u d e u s en t re os gen t ios a a p o s t a t a r e m de M o i s é s , d i zendo- lhes q u e n ã o d e v e m c i rcunc idar os f i lhos n e m andar s e g u n d o os cos tumes da le i" (Atos 21.21) . H a v i a m a i s e x a g e r o do q u e v e r d a d e n e s t a not íc ia . P a u l o e s t ava con ten t e de q u e os j u d e u s c o n t i n u a s s e m a obse rva r a Le i ( R o m a n o s 14.3,4). M a s e le c e r t a m e n t e ac red i t ava q u e gua rda r a Lei não era necessá r io pa ra a s a l v a ç ã o — o q u e e ra bas t an te rad ica l !

Pau lo t ra ta e s p e c i f i c a m e n t e des ta ques t ão e m R o m a n o s 7 . 7 - 1 4 e Gála tas 3 .19-29. E l e j á h a v i a p e r g u n t a d o c o r a j o s a m e n t e : " A n u l a m o s , po is , a lei pe l a f é ? " , e f i r m e m e n t e r e s p o n d e u : " N ã o , de m a n e i r a n e n h u m a , antes c o n f i r m a m o s a l e i " ( R o m a n o s 3 .31) . E l e t inha d i fe ren tes m e i o s de j u s t i f i ca r es ta asse rção , m a s e m Gá la t a s e le u s a duas i m a g e n s q u e r e s u m e m todos eles: " A n t e s q u e v iesse a fé ,

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PAULO E SUA MENSAGEM 9 5

O papel do batismo na união com Cristo "Porventura ignorais que todos os que fomos batizados em Cristo Jesus, fomos batizados na sua morte? Fomos, pois, sepultados com ele na morte pelo batismo; para que, como Cristo foi ressuscitado dentre os mortos pela glória do Pai, assim também andemos nós em novidade de vida" (Romanos 6.3,4; compare com Gálatas 3.26,27 e Colossenses 2.12).

Em que sentido Paulo usa aqui a palavra "pelo", na expressão "pelo batismo"? Alguns concluíram que Paulo atribui um papel muito significativo ao batismo como meio de união com Cristo em sua morte e ressurreição.

Entretanto, pareceria mais exato representá-lo como o sinal, e talvez também como a ocasião desta união salvífica com Cristo, e não como seu meio. Isto se torna claro pela comparação que Paulo faz entre o batismo e a circuncisão em Colossenses 2.11,12. Ele pensa

claramente neles como operando do mesmo modo. No texto que se segue ele define a circuncisão como um "sinal... como selo da justiça da fé que teve [Abraão] quando ainda incircunciso" (Romanos 4.11). Primeiro Abraão recebeu a justificação pela fé, depois recebeu a circuncisão como um sinal e selo da justificação. Da mesma forma estamos unidos a Cristo pela fé, e assim somos justificados, e em seguida recebemos o batismo como um sinal de Deus da nossa justificação, e um selo dela, assegurando-nos que ela é realmente nossa.

Martinho Lutero estava certo da compreensão de Paulo sobre o batismo no famoso incidente do tinteiro. Um dia, trabalhando em sua mesa, sentiu-se fortemente tentado a duvidar de sua justificação. Reconhecendo a fonte da tentação,. pegou o tinteiro e arremessou-o violentamente contra o Diabo, gritando: "Baptizatus sum!"—"Fui batizado!"

e s t á v a m o s sob a tu te la da lei, e ne la ence r r ados , pa r a essa f é que de f u t u r o have r i a de reve lar -se . D e m a n e i r a q u e a lei nos serv iu de aio pa ra n o s c o n d u z i r a Cris to , a f i m de q u e f ô s s e m o s j u s t i f i c a d o s p o r f é " (Gála tas 3 .23 ,24) .

A q u i ele re t ra ta a Le i p r i m e i r o c o m o u m a sent inela , e depo i s c o m o u m guia . A Le i não p o d i a p r o v e r a sa lvação , m a s p o d i a m a n t e r as p e s s o a s sob cus tód ia p ro te to ra até q u e e las p u d e s s e m ouvi r e acei tar o evange lho . E ela pod ia or ientar as pessoas , conduz indo-a s a Cr is to p o r mos t r a r c o m o Ele c u m p r e as expec ta t ivas do Velho T e s t a m e n t o e p r o v ê e x a t a m e n t e o q u e a p róp r i a Le i n ã o pod ia prover . C o m o Pau lo d iz n u m de seus s e r m õ e s e m Atos , "po r m e i o de le todo o q u e c rê é j u s t i f i c a d o de todas as co i sas das qua i s vós n ã o p u d e s t e s ser j u s t i f i c a d o s pe l a lei d e M o i s é s " (Atos 13.39).

b. Se a salvação é simplesmente pela graça por meio da fé, "qual é, pois, a vantagem do judeu?" ( R o m a n o s 3.1). P a u l o pa rec i a so lapar o s ta tus espec ia l de Israel c o m o p o v o e sco lh ido de D e u s , q u e ce l eb rou c o m eles a a l iança , o c o m p r o m i s s o de ser seu D e u s pa ra s e m p r e (p.ex. , G ê n e s i s 17.7).

P a u l o c e r t a m e n t e ac red i t ava q u e h a v i a agora u m m e i o de sa lvação , t an to pa ra os j u d e u s c o m o p a r a os gen t ios , aque le da f é e m Cris to . C o m o ele a f i r m a e m Efés ios , Jesus " t e n d o d e r r u b a d o a p a r e d e da s epa ração que e s t ava n o m e i o , a in imizade , abol iu na sua ca rne a lei dos m a n d a m e n t o s na f o r m a de o r d e n a n ç a s " (E fés ios 2 .14 ,15) . M a s , que r is to d izer q u e D e u s r e v o g o u as p r o m e s s a s q u e f e z a Israel , seu p o v o e sco lh ido? R e s p o n d e r a es ta pe rgun t a é u m a das p r inc ipa i s p r e o c u p a ç õ e s de P a u l o e m sua car ta aos R o m a n o s , p o r q u e e le t a m b é m sen te c l a r a m e n t e q u e se t ra ta de u m p r o b l e m a .

E m R o m a n o s 3 .2 ,3 P a u l o ins is te que h á g rande v a n t a g e m e m ser j u d e u , e q u e a d e s c r e n ç a de Is rae l n ã o va i f a z e r q u e D e u s a b a n d o n e seu c o m p r o m i s s o c o m ele . D e p o i s e le vo l ta ao a s sun to e m R o m a n o s 9 -11 e ded ica t rês cap í tu los b e m f u n d a m e n t a d o s sob re o assun to . Sua p o d e r o s a a r g u m e n t a ç ã o es tá r e s u m i d a n o p r ó x i m o quadro .

c. Se a salvação é simplesmente pela graça por meio da fé, então podemos pecar como nos apraz? Pau lo ci ta es ta o b j e ç ã o e m R o m a n o s 6.1. A p a r e n t e m e n t e

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9 6 HOMENS COM UMA MENSAGEM

Romanos 9-11: O plano de Deus para Israel É em virtude da essência da doutrina de Paulo sobre a justificação pela fé que há hoje apenas um meio de salvação para todos—fé em Jesus Cristo. Por isso, os gentios não precisam tornar-se judeus para ser salvos. Antes, ambos, judeu e gentio, devem abandonar sua religião anterior e tornar-se cristãos.

Isto horrorizou muitos judeus cristianizados. Eles pensavam que, por causa da posição privilegiada de Israel pela aliança, os gentios deviam tornar-se judeus para ser discípulos do Messias de Israel. Sua acusação era: Paulo, você nega a aliança de Deus com Israel dizendo que "não há distinção entre judeu e grego [gentio], uma vez que o mesmo é o Senhor de todos, rico para com todos os que o invocam" (Romanos 10.12). Romanos 9-11 é a resposta de Paulo a esta acusação. Estes fascinantes capítulos tornaram-se um grande centro de interesse dos estudiosos recentes.

Paulo começa afirmando o que seus opositores pensaram que ele havia negado. Sim, Israel ainda é o legítimo depositário dos privilégios que Deus lhe deu (9.3-5), e a palavra de Deus para Israel não pode falhar (9.6). Porém Paulo tem algumas coisas importantes a dizer sobre o meio pelo qual Deus vai manter suas promessas a Israel: a. Manter sua palavra para com Israel inclui proferir sua sentença sobre ele em virtude de seu pecado e rebelião. Ela nunca significou uma promessa de salvação generalizada (9.27-29; 11.8-10). b. Manter sua palavra para com Israel não significa um compromisso de salvar cada judeu individualmente. Ser simplesmente descendente de Abraão não qualifica automaticamente os judeus para o céu. Deus realiza uma escolha posterior (9.6-13). Sim, "todo o Israel será salvo" (11.26), porém se cada judeu vai ser incluído depende dele ou dela aceitar ou não o evangelho. c. Manter sua palavra para com Israel pode

envolver o interesse de salvar os gentios. Na realidade, as duas coisas caminham juntas, primeiramente porque Deus promete nas Escrituras de Israel abençoar os gentios (9.25; 10.13,20); e, em segundo lugar, porque um dos documentos pioneiros de Israel, o famoso Cântico de Moisés em Deuteronômio 32, adverte especificamente Israel de que, se ele cair em pecado, Deus lhe responderá derramando suas bênçãos sobre outras nações (10.19; 11.11-14). Foi isto que aconteceu através do ministério de Paulo. d. Manter sua palavra para com Israel não significa afirmar que Israel compreende a Lei. Ele tem grande zelo pela Lei, mas, na realidade, falha por não entendê-la. De modo específico, ele falha em não compreender que a fé cristã é o cumprimento da Lei. Isto porque os que se tornaram cristãos, tanto judeus como gentios, demonstram uma transformação de coração pela qual a Lei sempre ansiou, geralmente em vão (10.1-13). e. E, finalmente, manter sua palavra para com Israel é algo que Deus tem feito durante toda a história humana. As vezes pode parecer que Ele o abandona. E isto parecia acontecer naquele momento, diz Paulo, porque houve "um endurecimento em parte a Israel" (11.25). Mas este "endurecimento", no esquema de Deus, permite que o evangelho chegue até ao mundo gentio—de modo que, finalmente, Israel será trazido de volta ao maravilhoso clímax em que "todos os homens" se regozijarão na misericórdia de Deus para com eles em Cristo (11.25-32). Este breve resumo não pode fazer justiça à complexidade e poder da dissertação de Paulo, que é uma das supremas glórias do Novo Testamento.

e le es tava s e n d o a c u s a d o de ens inar : " P r a t i q u e m o s m a l e s p a r a que v e n h a m b e n s " ( R o m a n o s 3.8). O s j u d e u s c r i s t i an izados p e n s a v a m que es ta r e j e i ção da Le i s ign i f i cava i nev i t ave lmen te a ru ína de t oda a mora l i dade . E, c o m efe i to , a lguns dos gen t ios conve r t i dos de P a u l o f o r a m n o t o r i a m e n t e neg l igen tes e m seus c o s t u m e s (p.ex. , 1 Cor ín t ios 5 .1; 6 .15) . Q u a l fo i a r e spos t a de P a u l o ? Es t a terceira ob j eção à sua doutr ina da jus t i f i cação pe la fé leva-nos ao p r ó x i m o g rande t e m a e m sua teologia :

2. Santificação—Deus nos faz santos A san t i f i cação é ins tan tânea . T ã o l ogo qua lque r p e s s o a p e c a d o r a a b a n d o n a sua v ida de p e c a d o s e en t rega-se a J e sus Cris to , q u e m o r r e u p o r e la e ressusc i tou , D e u s a dec la ra " jus ta" . E la fo i " ju s t i f i cada m e d i a n t e a f é " e t e m " p a z c o m D e u s por m e i o de Jesus Cr i s to" ( R o m a n o s 5.1).

A san t i f i cação , p o r é m , é o p r o c e s s o q u e en t ão se i n i c i a — p e l a qua l o p e c a d o r

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PAULO E SUA MENSAGEM 9 7

é g r a d u a l m e n t e t r a n s f o r m a d o na i m a g e m de Cr i s to (2 Cor ín t io s 3 .18) . U m a é imposs íve l s e m a out ra , pois , c o m o Pau lo dec la ra aos f i l ipenses , " a q u e l e q u e c o m e ç o u b o a o b r a e m v ó s h á de c o m p l e t á - l a a t é ao d i a d e C r i s t o J e s u s " (Fi l ipenses 1.6). Se D e u s ve rdade i r amen te j u s t i f i cou a lguém, en tão E l e t a m b é m o san t i f ica rá .

Por isso, n e n h u m cren te p o d e p ropor : " H a v e m o s de p e c a r p o r q u e n ã o e s t a m o s d e b a i x o da lei, e s im d a g r a ç a ? " ( R o m a n o s 6 .15) . A j u s t i f i c a ç ã o n ã o s ign i f i ca a re je ição d a Lei , m a s sua i n j e ç ã o — n o s corações de todos os que c r ê e m e m Cris to, e m c u m p r i m e n t o da expec ta t iva do Velho T e s t a m e n t o (ve ja E z e q u i e l 36 .26 ,27) . Se s o m o s ju s t i f i cados , en t ão "o a m o r de D e u s é d e r r a m a d o e m n o s s o s c o r a ç õ e s p e l o Esp í r i to San to , q u e nos f o i o u t o r g a d o " ( R o m a n o s 5.5) . T o d a a q u e s t ã o ace rca de m o r r e r c o m Cr i s to é que d e v e m o s t a m b é m ressurg i r c o m Cr i s to pa ra u m a q u a l i d a d e de v ida toda nova , j a m a i s poss íve l àque le s q u e s i m p l e s m e n t e c o n f i a r a m n a Le i ( R o m a n o s 6 .4-7) .

En t r e t an to is to n ã o acon t ece a u t o m a t i c a m e n t e , s e m a t iv idade de n o s s a par te ; t e m o s de t raba lhar p a r a isso. C o m o P a u l o a f i r m a b r i l h a n t e m e n t e aos f i l ipenses : " A s s i m , pois , a m a d o s meus . . . desenvolve i a vos sa sa lvação c o m t e m o r e t r emor ; p o r q u e D e u s é q u e m e f e t u a e m vós t an to o que re r c o m o o real izar , s e g u n d o a sua b o a v o n t a d e " (F i l ipenses 2 .12 ,13) . D e u s es tá t r a b a l h a n d o e m n ó s — m a s i s to n ã o s i g n i f i c a a c o m o d a r - n o s e d e i x a r q u e E l e f a ç a t u d o . P r e c i s a m o s d e s e n v o l v e r n o s s a " s a l v a ç ã o c o m t e m o r e t r emor" , c o m o se e la d e p e n d e s s e d e nós .

P o r i s so as car tas de Pau lo f e r v i l h a m de ins t ruções prá t icas p a r a a v i d a e a t i tude cr is tãs . Vá r i a s das car tas p o d e m ser n i t i damen te d iv id idas e m duas , a p r i m e i r a m e t a d e r e f e r i ndo - se à f é cristã, e a s e g u n d a à v ida cristã: p o r e x e m p l o , R o m a n o s 1 -11 e 12-16; Gá la t a s 1 - 4 e 5 -6 ; E f é s i o s 1 - 3 e 4 -6 ; C o l o s s e n s e s 1 - 2 e 3 -4 . A s o r a ç õ e s de P a u l o são pa r t i cu l a rmen te r eve ladoras . E le a l m e j a que seus conve r t i dos se e n c h a m d e v e r d a d e e amor , c o m re t idão e pac iênc ia , c o m a legr ia e ações de g raças (ve j a e s p e c i a l m e n t e E f é s i o s 1 .15-23; 3 .14-19 ; F i l i penses 1.3-11; C o l o s s e n s e s 1 .9-14) . O q u a d r o segu in te dá u m a v is ta gera l de seu e n s i n o prá t ico .

D u a s ou t ras f ace t a s d o ens ino de P a u l o sobre a s an t i f i cação p r e c i s a m ser m e n c i o n a d a s : m e i o s e incen t ivos .

а. Os meios de santificação. O q u e a i m p e d e ? P a r a Pau lo , os m e i o s c o m p e t e m c o m os i m p e d i m e n t o s : i. O Diabo—por i sso p r e c i s a m o s reves t i r -nos " d e toda a a r m a d u r a de D e u s " (Efés ios 6.11). Pau lo ac red i t ava q u e " n o s s a luta n ã o é con t ra o s a n g u e e a ca rne , e s im con t ra p r i n c i p a d o s e po tes t ades , con t ra os d o m i n a d o r e s des te m u n d o t eneb roso , con t r a as f o r ç a s espi r i tua is d o mal , nas r eg iões c e l e s t e s " (E fés ios б.12) . E l e n ã o es tá c e r t a m e n t e d e s c r e v e n d o ( c o m o a lguns s u g e r e m ) t oda u m a h ie ra rqu ia dos p o d e r e s do ma l , de m o d o q u e c a d a s i tuação t e n h a seu p r ó p r i o d e m ô n i o , con t r a o qua l d e v e m o s lutar. M a s e le está , e f e t i v a m e n t e , s u b l i n h a n d o o p o d e r e a m a l d a d e d e s s a s f o r ç a s e sp i r i tua i s e m g u e r r a c o n o s c o . N ó s as d e s c o n h e c e m o s e m n o s s o per igo .

A s s i m , pois , necess i t amos d a a r m a d u r a de seis peças q u e D e u s nos dá (Efés ios 6 .14-17) , e s a b e m o s q u e a e s t a m o s u s a n d o e f i c a z m e n t e q u a n d o o r a m o s " e m todo o t e m p o n o Espí r i to , e pa r a i s to v ig i ando c o m toda p e r s e v e r a n ç a e súp l i ca" (Efés ios 6 .18) . O cr is tão e fe t ivo e v i tor ioso é m a r c a d o p o r u m a v ida de cons tan te o ração .

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100 HOMENS COM UMA MENSAGEM

ii. A carne—e t a m b é m p r e c i s a m o s " a n d a r n o Esp í r i t o " (Gála tas 5 .16) . " A ca rne" é u m a expressão impor tan te pa ra Paulo. A N o v a Versão Internacional

g e r a l m e n t e a t r aduz p o r " n a t u r e z a p e c a m i n o s a " , por e x e m p l o e m Gála tas 5 .17: " A na tu reza p e c a m i n o s a d e s e j a o q u e é con t rá r io ao Espí r i to , e o Espí r i to o q u e é con t rá r io à na tu reza p e c a m i n o s a . E les es tão e m conf l i to u m c o m outro , de m o d o que n ã o faça i s o que dese ja r í e i s . " " A c a r n e " é a con t ínua p r e s e n ç a do p e c a d o e d a m o r t e m e s m o nos cr is tãos . O p e c a d o e a m o r t e n ã o ma i s r e i n a m sobre nós , m a s a inda es tão p resen tes e m nós .

I s to s ign i f i ca u m a b a t a l h a interior. " A c a r n e " d e v e ser comba t ida , no p o d e r do Espír i to . E u m a ques tão de v ida ou mor te : " S e viveis de acordo c o m a na tureza p e c a m i n o s a , mor re re i s ; m a s se pe lo Esp í r i to mor t i f i ca rdes os fe i tos do corpo , v ivere is , po i s todos os que são gu iados p e l o Esp í r i to de D e u s são f i lhos de D e u s " ( R o m a n o s 8 .13 ,14) . D e v e m o s p roduz i r " o f r u t o do Espí r i to" , e n ã o "as obras da ca rne" , pa ra que p o s s a m o s "c ruc i f i ca r a na tu reza p e c a m i n o s a c o m suas pa ixões e de se jo s " , e " a n d e m o s no E s p í r i t o " (Gála tas 5 .24 ,25) .

Is to é vi tal . A p r o f u n d a p r e o c u p a ç ã o de P a u l o a r e spe i to dos cor ín t ios e ra o f a to de eles s e r e m " c a r n a i s " ( " m u n d a n o s " ou " p r o f a n o s " ) , e não "esp i r i tua i s" (1 Cor ín t ios 3.1) . Es t a ser ia sua u rgen t e m e n s a g e m t a m b é m à ig re ja do sécu lo vinte . M a i s impor t an t e do q u e todas as es t ra tég ias mi s s ioná r i a s e p r o g r a m a s de educação , ma i s ex tensa do que toda nova iniciat iva, ma i s urgente do que qua lquer ou t ra neces s idade , é o c h a m a m e n t o à san t idade : " a n d a r no Esp í r i to" , de f o r m a a n ã o n ã o sa t i s fazer "à c o n c u p i s c ê n c i a da c a r n e " (Gála tas 5 .16) .

b. Os incentivos à santificação. P a u l o r a r a m e n t e f a z u m a exo r t ação à san t idade s e m acrescen ta r u m m o t i v o . Q u a i s são esses incen t ivos? i. A l g u m a s vezes é o exemplo de Cristo. P o r e x e m p l o , P a u l o conc i t a -nos • a h u m i l h a r - n o s tal c o m o Cris to , q u e "a si m e s m o se e s v a z i o u " (Fi l ipenses 2.5-7) . • a anda r " e m amor , c o m o t a m b é m Cris to vos a m o u , e se en t r egou a si m e s m o p o r nós , c o m o ofe r t a e sacr i f íc io a D e u s e m a r o m a s u a v e " (Efés ios 5.2). • a aco lhe r " u n s aos outros , c o m o t a m b é m Cr is to nos a c o l h e u " ( R o m a n o s 15.7). ii. A l g u m a s vezes é a p r e s e n ç a de Cr is to : • " S u j e i t a n d o - v o s uns aos ou t ros n o t e m o r de C r i s t o " (Efés ios 5 .21) . • " P u r i f i q u e m o - n o s de t o d a i m p u r e z a , t a n t o d a c a r n e c o m o do e s p í r i t o , a p e r f e i ç o a n d o a n o s s a san t idade no t e m o r de D e u s " (2 Cor ín t ios 7 .1) .

E m a m b o s os ve rs ícu los "no t e m o r d e " é, l i t e ra lmente , " e m r eve rênc i a a" . E m a m b o s os casos a m o t i v a ç ã o é a m a r c o m rece io de o f e n d e r aque le e m c u j a p r e s e n ç a v i v e m o s . E n c o n t r a m o s a m e s m a m o t i v a ç ã o e m 1 Cor ín t io s 11.29 (par t ic ipação reveren te na Ce ia do Senhor) , e e m Efés ios 4 .29-31 (não entr is tecer o Esp í r i to in su l t ando aque les e m q u e m E l e habi ta) .

iii. M a i s f r e q ü e n t e m e n t e , é a obra de Cristo, p o r nós e e m nós , que m o t i v a a san t idade . A q u i es tão três e x e m p l o s : • M o r r e m o s e r e s susc i t amos c o m Cris to ; po r t an to "cons ide ra i -vos mor to s p a r a o pecado , m a s v ivos pa ra D e u s e m Cr i s to J e s u s " ( R o m a n o s 6.11) , e "busca i as co i sas lá do alto, o n d e Cr is to v ive , a s sen t ado à di re i ta de D e u s " (Co los senses 3.1) .

• N ó s nos d e s p i m o s do " v e l h o h o m e m " e n o s r e v e s t i m o s do " n o v o h o m e m , q u e se r e f a z p a r a o p l e n o c o n h e c i m e n t o , s e g u n d o a i m a g e m daque le que o c r i o u " (Co los senses 3 .9 ,10) . Por tan to , d e v e m o s nos d e s p o j a r da i ra e da ment i ra , e nos

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PAULO E SUA MENSAGEM 9 9

Paulo, acerca de viver a vida cristã As cartas de Paulo estão de tal forma carregadas de instruções práticas que esta visão geral não pretende cobrir todas. Entretanto, ela pode mostrar alguma coisa da ampla gama de tópicos que ele abrange: • Vida familiar: relacionamento entre maridos e esposas (1 Coríntios 7.1-5; Efésios 5.22-33), entre pais e filhos (Efésios 6.1-4), entre senhores e escravos (Efésios 6.5-9; 1 Timóteo 6.1,2) . • Ética sexual, tanto dentro como fora do casamento: Paulo tem algumas coisas particularmente incisivas a dizer sobre as práticas homossexuais, que eram muito difundidas em seu tempo (Romanos 1.24-27; 1 Coríntios 6.9-20; 7.25-40; 1 Tessalonicenses 4.3-8; 1 Timóteo 5.11-15). • Cidadania: a atitude cristã perante a autoridade secular e sobre o pagamento de impostos (Romanos 13.1-7; 1 Coríntios 6.1-8). • Conversação: ele tem muito a dizer sobre a conversação para os cristãos (por exemplo, Romanos 12.14; Efésios 4.25-5.4). • A mente: Paulo dá um destaque especial ao

modo como e o que pensar, porque isto molda todo o nosso ser (Romanos 8.5-8; 12.1-3; Filipenses 4.8; Efésios 4.17-24). • Trabalho: é um dever cristão, diz ele aos tessalonicenses, trabalhar para o nosso sustento e não ser preguiçosos (1 Tessalonicenses 4.9-12; 2 Tessalonicenses 3.6-13). • Vingança: num mundo em que se admitia a vingança, Paulo advertia que o cristão deve deixar a vingança para Deus e amar os seus inimigos (Romanos 12.17-21). • Formação do caráter: é nisto que Paulo insiste com mais ênfase, porque ele sabe que a santificação é primeiramente uma questão de caráter, e, em segundo lugar, de comportamento. Por isso ele admoesta para a prática das virtudes da humildade e do desprendimento (Filipenses 2.1-11); da alegria, oração, paz e contentamento (Filipenses 4.4-13); o "fruto do Espírito" para desarraigar "as obras da carne" (Gálatas 5.19-26); e, acima de tudo, as três qualidades cruciais: a fé, a esperança e o amor (1 Tessalonicenses 1.3; Efésios 4.1-6; 1 Coríntios 13.1-13), tendo o amor como objetivo supremo (Romanos 13.8-10; Gálatas 5.6,13-15).

Paulo escreveu com alguma extensão à igreja de Corinto sobre viver a vida cristã. Estas impres-sionantes colunas dóricas fazem parte do antigo templo de Apolo, ao lado da Ágora, em Corinto.

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1 0 0 HOMENS COM UMA MENSAGEM

v e s t i r d e " m i s e r i c ó r d i a , d e b o n d a d e , d e h u m i l d a d e , d e m a n s i d ã o , d e l o n g a n i m i d a d e " (Co los senses 3 .12) . • P o r q u e seu Esp í r i to es tá e m nós , n o s s o s c o r p o s são " m e m b r o s d e Cr i s to" (1 C o r í n t i o s 6 . 1 5 ) — i s t o é, s o m o s m e m b r o s d e Cr i s to , s eus b r a ç o s e p e r n a s . Por t an to , d e v e m o s g lo r i f i ca r a D e u s c o m n o s s o s co rpos , p o r q u e " n ã o sois de vós m e s m o s " (1 Cor ín t ios 6 .19) . iv. F r e q ü e n t e m e n t e , é a vinda de Cristo q u e m o t i v a a san t idade . P a u l o e s t ava s e m p r e t r a b a l h a n d o e o r a n d o e m f u n ç ã o " d a q u e l e d ia" , q u a n d o o S e n h o r viria, e a l m e j a v a q u e seus conve r t idos e s t i ve s sem pron tos : • " O q u a l [ J e sus C r i s t o ] t a m b é m v o s c o n f i r m a r á a t é ao f i m , p a r a s e r d e s i r r ep reens íve i s n o dia de n o s s o S e n h o r Jesus Cr i s to" (1 Cor ín t ios 1.8). • "Vai a l ta a no i t e e v e m c h e g a n d o o dia. D e i x e m o s , po is , as obras das t revas , e r e v i s t a m o - n o s das a r m a s da l u z " ( R o m a n o s 3 .12) . • " E t a m b é m f a ç o es ta o ração : q u e o v o s s o a m o r a u m e n t e ma i s e m a i s e m p l e n o c o n h e c i m e n t o e t oda a p e r c e p ç ã o , p a r a ap rova rdes as co i sas exce len te s e se rdes s ince ros e i ncu lpáve i s p a r a o dia de Cr is to , che ios do f r u t o d e jus t i ça , o qua l é m e d i a n t e J e sus Cris to , p a r a a g lór ia e l ouvo r d e D e u s " (F i l ipenses 1.9-11).

3. Edificação—Deus edifica sua igreja Jus t i f i cação e san t i f i cação p a r e c e m , à p r i m e i r a vis ta , d izer r e spe i to s o m e n t e ao t r aba lho de D e u s no c ren te ind iv idua l . M a s e las t a m b é m t ê m u m a d i m e n s ã o c o m u n i t á r i a vi ta l . P o r e x e m p l o , o " f r u t o do E s p í r i t o " é c o m p o s t o de n o v e q u a l i d a d e s , n e n h u m a das q u a i s p o d e se r p r a t i c a d a ou e x p r e s s a d a p o r u m i n d i v í d u o i s o l a d o d e o u t r a s p e s s o a s : " a m o r , a l eg r i a , p a z , l o n g a n i m i d a d e , b e n i g n i d a d e , b o n d a d e , f i d e l i d a d e , m a n s i d ã o , e d o m í n i o p r ó p r i o " ( G á l a t a s 5 .22 ,23) . Todas elas p r e s s u p õ e m r e l ac ionamen tos . A p r o p r i a " a l eg r i a " n ã o p o d e ser e x p r e s s a d a i so l adamen te , " p a z " inc lu i a idé ia de v ive r e m p a z c o m out ros , e "domín io p róp r io" p re s supõe as tentações e desaf ios , os quais tão f r e q ü e n t e m e n t e se m a n i f e s t a m na soc i edade h u m a n a .

A j u s t i f i c a ç ã o c e r t a m e n t e t e m u m ape lo ind iv idua l v i ta l p a r a Pau lo . A f i n a l de con tas , e le a t inha e x p e r i m e n t a d o e m si m e s m o , f a c e a f a c e c o m o Senhor , a sós n o c a m i n h o de D a m a s c o . M a s ela t eve imed ia t a s i m p l i c a ç õ e s comun i t á r i a s . O S e n h o r q u e lhe a p a r e c e u iden t i f i cou- se c o m as v í t imas d e Pau lo . E ass im, t ão l ogo e le f o i b a t i z a d o e t o m o u u m a re fe i ção , Pau lo " p e r m a n e c e u e m D a m a s c o a lguns dias c o m os d i sc ípu los" (Atos 9 .19) . E l e f o r a conve r t i do p a r a v ive r u m a n o v a c o m u n i d a d e .

E e le r a p i d a m e n t e se c o n v e n c e u de q u e a " jus t i f i cação p e l a f é " r e su l tou n a c r i ação de u m n o v o co rpo , c o m p o s t o de t u d o o q u e pe r t enc ia a Cris to , n ã o i m p o r t a n d o suas d i f e r enças de f o r m a ç ã o ou p o s i ç ã o socia l : • " N ã o p o d e h a v e r j u d e u n e m g rego ; n e m esc ravo n e m l iber to; n e m h o m e m n e m m u l h e r ; p o r q u e todos vós sois u m e m Cr i s to J e s u s " (Gála tas 3 .28) . • " O n d e n ã o p o d e h a v e r g r e g o n e m j u d e u , c i r c u n c i s ã o n e m i n c i r c u n c i s ã o , b á r b a r o , ci ta , e sc ravo , l ivre; p o r é m Cr i s to é t u d o e m t o d o s " (3.11).

Es t e s dois ve r s ícu los i lus t r am a c o n c e p ç ã o f u n d a m e n t a l de P a u l o . A s ve lhas bar re i ras re l ig iosas , rac ia is , socia is , a té m e s m o sexuais , f o r a m d e m o l i d a s , p o r c a u s a d a u n i ã o d a ig re ja c o m Cris to . E les são " u m " e m Cr is to , o q u a l es tá " e m " todos e les . O q u e cr ia es ta un i ão c o m Cr i s to? A re spos t a de P a u l o é s imples : o Esp í r i to San to . E s t a m o s a c o s t u m a d o s a p e n s a r no Esp í r i to c o m o h a b i t a n d o e m c a d a c ren te ind iv idua l , e is to é u m e l e m e n t o i m p o r t a n t e no e n s i n o de P a u l o . M a s e le t a m b é m p e n s a no Espí r i to h a b i t a n d o n a i g r e j a c o m o u m todo . " N ã o

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PAULO E SUA MENSAGEM 1 0 1

sabeis q u e sois san tuá r io de D e u s , e q u e o Esp í r i to de D e u s hab i t a e m v ó s ? " (1 Cor ín t ios 3.16). Os corínt ios não são apenas u m a assoc iação voluntár ia de crentes ind iv idua is , m a s j u n t o s são u m t e m p l o h a b i t a d o pe lo Esp í r i to d o p róp r io D e u s .

P o d e m o s e x a m i n a r is to u m p o u c o ma i s . P a u l o d e n o m i n a a i g r e j a " o c o r p o de C r i s t o " (1 Cor ín t io s 12.27; E f é s i o s 4 .12) ou " u m c o r p o " e m Cr i s to ( R o m a n o s 12.5). A en t rada nes te c o r p o é p o r m e i o d o Espí r i to : "Po i s , e m u m só Espí r i to , todos nós f o m o s ba t izados e m u m corpo, quer judeus , quer gregos , quer escravos , que r l ivres . E a t odos nós fo i d a d o b e b e r d e u m só E s p í r i t o " (1 Cor ín t ios 12.13) . Q u a n d o P a u l o c h a m a ao Esp í r i to "Esp í r i to de C r i s t o " ( R o m a n o s 8.9), o c í rcu lo lóg ico se comple t a . O Esp í r i to San to é o Espírito de Cris to , hab i t ando no Corpo de Cr is to , e t r a z e n d o todos n a q u e l e q u e m o r a e m u n i ã o espir i tual c o m c a d a u m , e c o m o S e n h o r Jesus ressur re to e a s c e n s o ao céu .

P a r a P a u l o esse c o r p o não é es tá t ico: c o m o o c o r p o h u m a n o , e le c resce . Q u a n d o ele e s c r e v e s o b r e o c r e s c i m e n t o da igre ja , e le g e r a l m e n t e n ã o t e m e m m e n t e a u m e n t a r n ú m e r o s , m a s d e s e n v o l v e r a c o m u n h ã o : " M a s , s e g u i n d o a v e r d a d e e m amor , c r e s ç a m o s e m t u d o n a q u e l e q u e é o cabeça , Cr is to , de q u e m todo o co rpo , b e m a j u s t a d o e conso l idado , pe lo aux í l io de t oda jun t a , s e g u n d o a j u s t a c o o p e r a ç ã o de c a d a par te , e f e tua o seu p rópr io a u m e n t o pa ra a e d i f i c a ç ã o de si m e s m o e m a m o r " (Efés ios 4 .15 ,16) . Es t e c r e sc imen to é o q u e Pau lo c h a m a " e d i f i c a ç ã o " e m 1 Cor ín t ios 14, o n d e e le d i scu te a ques t ão d e f a l a r l ínguas na ig re ja d e Cor in to . C o m o dever i a es ta p rá t i ca ser d i sc ip l inada? O pr inc íp io sob re o qua l P a u l o ba se i a s u a r e spos t a é o da ed i f i cação : q u a l q u e r co i sa q u e e d i f i q u e a i g r e j a — a u m e n t e sua c o m p r e e n s ã o , a p r o f u n d e sua adoração , fo r t a l eça seu a m o r — d e v e ser e n c o r a j a d o . Q u a l q u e r c o i s a q u e n ã o o f a ç a d e v e ser a fa s t ada .

Q u a i s são os m e i o s p rá t i cos d e e d i f i c a ç ã o ? P a r a P a u l o h á dois :

a. Comunhão. A u n i d a d e da i g r e j a n ã o d e v e ser cr iada . E la d e v e ser p r e se rvada , p o r q u e j á exis te . P a u l o i ncen t iva os e fé s ios , " e s f o r ç a n d o - v o s d i l i g e n t e m e n t e p o r p r e s e r v a r a u n i d a d e do Esp í r i to n o v íncu lo d a p a z " (E fé s io s 4 .3) . Es t a " u n i d a d e d o Esp í r i t o " é t a m b é m c h a m a d a " c o m u n h ã o do E s p í r i t o " (F i l ipenses 2 .1) ou " c o m u n h ã o do Esp í r i to S a n t o " (2 Cor ín t ios 13.13), u s a n d o a p a l a v r a g rega koinonia. Es ta pa lavra apon ta pa ra o f a to de que todos nós nos pe r t encemos m u t u a m e n t e , d e q u e p e r t e n c e m o s ao m e s m o S a l v a d o r , e d e q u e t e m o s a responsabi l idade d e cu idar uns dos outros e sa t isfazer às necess idades dos outros:

• " É j u s t o q u e eu a s s i m p e n s e de todos vós , p o r q u e vos t r ago n o co ração , se ja nas m i n h a s a lgemas , se ja na d e f e s a e c o n f i r m a ç ã o d o e v a n g e l h o , po i s t odos sois pa r t i c ipan tes da g raça c o m i g o " (F i l ipenses 1.7). • " P o r v e n t u r a o cá l ice de b ê n ç ã o q u e a b e n ç o a m o s n ã o é a comunhão do s a n g u e de Cr i s to? O p ã o q u e p a r t i m o s n ã o é a comunhão do c o r p o de Cr i s to? P o r q u e nós , e m b o r a mui tos , s o m o s u n i c a m e n t e u m pão , u m só c o r p o ; p o r q u e todos p a r t i c i p a m o s do ú n i c o p ã o " (1 Cor ín t ios 10.16,17) . A Ce ia d o S e n h o r e x p r e s s a v i v i d a m e n t e n o s s a koinonia c o n j u n t a m e n t e e c o m Cris to .

• Pau lo e s c r e v e sobre a âns i a das ig re jas d a M a c e d ó n i a e m con t r ibu i r pa r a a co l e t a q u e e s t a v a s e n d o l e v a n t a d a e m f a v o r d a s i g r e j a s p o b r e s da J u d é i a : " P e d i n d o - n o s , c o m m u i t o s rogos , a g r a ç a de pa r t i c ipa rem da ass i s tênc ia aos s an to s " (2 Cor ín t io s 8.4) .

• " [Oro] pa ra que a comunhão da tua f é se to rne ef ic iente , no p l eno conhec imen to d e t odo b e m q u e h á e m nós , pa r a c o m Cr i s to" , d i z P a u l o a F i l e m o m ( F i l e m o m 6), p o u c o an tes de ped i r - lhe q u e r e c e b a de vo l ta seu e s c r a v o dese r to r O n é s i m o

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1 0 2 HOMENS COM UMA MENSAGEM

" c o m o i r m ã o c a r í s s i m o " (16) . Sua koinonia e m Cr i s to so lapa a v e l h a r e l ação s enho r - e sc r avo e to rna essenc ia l o pe rdão .

b. Ministério. Pau lo d e s c r e v e o p r o c e s s o de " e d i f i c a ç ã o " e m E f é s i o s 4 .1 -16 . Seu p o n t o cent ra l são os d o n s pa ra min i s té r ios de Cr i s to p a r a a igre ja : " E e le m e s m o c o n c e d e u u n s p a r a a p ó s t o l o s , o u t r o s p a r a p r o f e t a s , o u t r o s p a r a evange l i s t as , e ou t ros p a r a pas to res e mes t r e s , c o m vis tas ao a p e r f e i ç o a m e n t o dos san tos pa ra o d e s e m p e n h o d o seu serv iço , pa ra a e d i f i c a ç ã o d o c o r p o de Cr is to , a té q u e todos c h e g u e m o s à u n i d a d e da f é e do p l e n o c o n h e c i m e n t o do F i lho de Deus , à pe r fe i t a va ron i l idade , à m e d i d a da es ta tu ra da p l en i tude de Cr i s to" (E fés ios 4 .11-13) . É f u n d a m e n t a l o b s e r v a r aqu i q u e os "o f i c i a i s " d a i g r e j a não se o c u p a m do " d e s e m p e n h o do seu se rv iço" . An te s , é seu pape l preparar os m e m b r o s restantes da igre ja a ocupar -se do " d e s e m p e n h o do serviço" . Q u a n d o a ig re ja t r aba lha un ida des t a f o r m a , e la é ed i f i cada , is to é, to rna-se m a i s s e m e l h a n t e a Cris to .

E m 1 Cor ín t ios 12 P a u l o de sc reve o m e s m o p r o c e s s o de u m a f o r m a d i fe ren te . E le ap rove i t a a i m a g e m da ig re ja c o m o u m " c o r p o " . C a d a pa r t e pertence a todas as ou t ras par tes , e con t r ibu i c o m a l g u m a co isa s ingu la r e m re lação ao t o d o . C a d a p a r t e necessita d e t o d a s as o u t r a s p a r t e s , e d e p e n d e de s u a s con t r ibu ições espec í f icas . E c a d a pa r t e sofre c o m todas as out ras par tes , sen t indo a sua dor (ou alegria) , c o m o se f o s s e sua p rópr ia . P a u l o ap l ica todas es tas idé ias à igre ja . C a d a c ren te t e m u m min i s t é r io s ingular , c o n c e d i d o pe lo Esp í r i to San to (1 Cor ín t ios 12.7), do qua l d e p e n d e m a v ida e a in te i reza da igre ja .

Es t a ê n f a s e não es tá e m conf l i to c o m a c r e n ç a e m u m " m i n i s t é r i o " o r d e n a d o ou n o m e a d o . O p rópr io P a u l o " e s c o l h e u " p resb í t e ros e deu m u i t o s c o n s e l h o s a T i m ó t e o e a Ti to sobre as qua l i f i c ações p a r a o min i s t é r io dos p resb í t e ros e d iáconos , b e m c o m o a respe i to d e sua condu ta . M a s e la es tá c e r t a m e n t e e m conf l i to c o m u m a n í t ida d i s t inção en t re " c l e r o " e " l a i c idade" . A l é m disso, P a u l o c e r t a m e n t e nos e n c o r a j a a ver q u e a l i de rança na ig re ja n ã o é sol i tár ia , m a s plura l . S o b a supe r in t endênc i a do Esp í r i to San to , a l g u m a s par tes c o n t r i b u e m m a i s do q u e out ras p a r a a o r i en tação e ob j e t i vo do co rpo , p o r é m c a d a pa r t e con t r ibu i c o m a l g u m a coisa .

O fa to r f ina l e m a i s impor t an t e é o amor : " u m c a m i n h o s o b r e m o d o exce l en t e " (1 Cor ín t ios 12.31), a a r g a m a s s a en t re os t i jo los , a se iva da árvore , o lubr i f i can te das j un t a s , o s angue q u e m a n t é m a v i d a d e Je sus f l u i n d o a t ravés dos m e m b r o s de sua ig re ja !

4. Glorificação—Deus nos leva para o lar O e n s i n o de P a u l o sobre o c r e s c i m e n t o da i g r e j a suge re u m a lvo e m d i reção ao qua l o c r e s c i m e n t o é d i r ig ido . E l e dá a e s p e r a n ç a de t o rna r - s e " a p e r f e i t a va ron i l idade , à m e d i d a da es ta tura de p l en i tude de C r i s t o " (E fés ios 4 .13) . A q u i e n c o n t r a m o s u m e l e m e n t o f u n d a m e n t a l e m s u a t eo log ia , o q u e c o l o c a seu e v a n g e l h o e m n í t ido con t ras t e t an to c o m as vá r i a s f i l o so f i a s p a g ã s q u e e le conheceu e m sua j uven tude e m Tarso, c o m o c o m o mate r ia l i smo que rap idamente se to rna a cu l tu ra do m u n d o no f ina l do sécu lo vinte . O p re sen te é m o l d a d o pe lo fu tu ro , o m u n d o t e m u m des t ino de f in ido , o t e m p o e a h is tór ia p a s s a m , e u m d ia D e u s será " t u d o e m t o d o s " (1 Cor ín t ios 15.28).

P a r a os cr is tãos is to s ign i f i ca q u e " g l o r i a m o - n o s na e s p e r a n ç a da g lór ia de D e u s " ( R o m a n o s 5 . 2 ) — i s t o é, a n t e g o z a m o s nos sa en t r ada d i r e t amen te até à p r e sença do p rópr io D e u s , f i n a l m e n t e e p l e n a m e n t e l ivres do p e c a d o e da mor t e ,

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Na Ágora, ou grande praça do mercado da antiga Atenas, Paulo debateu diariamente com os filósofos epicuristas e estóicos, provavelmente numa colunata, tal como a de Stoa de Attalus (no detalhe). A corte do areópago, onde Paulo defendeu sua posição a respeito de Jesus e a ressurreição, provavelmente reuniu-se na colunata real.

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1 0 4 HOMENS COM UMA MENSAGEM

pron tos pa ra u s u f r u i r a pe r f e i t a i n t im idade d o a m o r f ami l i a r dos f i lhos un idos p o r f i m c o m seu Pai .

O Esp í r i to San to é t a m b é m d e c i s i v o nes t e pon to . E l e n ã o apenas p r o d u z seu f r u t o e m nós ( san t i f i cação) , e n ã o a p e n a s cr ia a c o m u n h ã o q u e c r e sce e se for ta lece (edif icação) , m a s t a m b é m assegura-nos este es tágio f ina l no p r o c e s s o — n o s s a g lo r i f i cação : • " T a m b é m nós q u e t e m o s as p r imíc i a s do Espí r i to , i g u a l m e n t e g e m e m o s e m n o s s o ín t imo , a g u a r d a n d o a a d o ç ã o de f i l hos , a r e d e n ç ã o d e n o s s o c o r p o " ( R o m a n o s 8 .23) : aqui o Espí r i to é "as p r i m í c i a s " d a colhei ta , a pa r t e que n o s p e r m i t e ver o q u e é e s sa co lhe i t a e a s segu ra -nos q u e o d e s c a n s o es tá c h e g a n d o . • " N ã o por q u e r e r m o s ser desp idos , m a s reves t idos , pa r a q u e o mor ta l se ja a b s o r v i d o p e l a v ida . Ora , f o i o p r ó p r i o D e u s q u e m n o s p r e p a r o u pa ra is to, o u t o r g a n d o - n o s o p e n h o r d o E s p í r i t o " (2 Cor ín t ios 5 .4 ,5) : aqu i o Esp í r i to é u m " d e p ó s i t o " ou p r i m e i r a pa rce la de p a g a m e n t o da v ida celes t ia l q u e nos agua rda . • " T e n d o ne le t a m b é m cr ido, f o s t e s se lados c o m o San to Esp í r i to da p r o m e s s a ; o qua l é o p e n h o r d a nos sa h e r a n ç a a té ao r e sga te da sua p r o p r i e d a d e " (Efés ios 1.13,14): aqui o Espír i to é u m "se lo" , a m a r c a de propr iedade de Deus , separando-nos p a r a o m o m e n t o da " r e d e n ç ã o " .

H á t rês a spec tos do e n s i n o d e P a u l o a r e spe i to des se fu tu ro :

a. A volta de Cristo • " A i n d a vos dec l a r amos , p o r pa l av ra do Senhor . . . P o r q u a n t o o S e n h o r m e s m o , d a d a a sua p a l a v r a de o r d e m , o u v i d a a v o z do a r can jo , e r e s s o a d a a t r o m b e t a de D e u s " (1 Tessa lon icenses 4 .15 ,16) . Nes t a f a s e de sua v ida P a u l o e s p e r a v a q u e p u d e s s e a inda es tar v i v o q u a n d o o S e n h o r re to rnasse : " N ó s , os v ivos , os q u e f i c a r m o s , s e r e m o s ar reba tados . . . pa r a o e n c o n t r o d o S e n h o r nos a re s" (1 Tessa lon icenses 4 .17) . E ce rca d e dez anos m a i s ta rde es ta a inda pa rec i a ter s ido sua e spe rança :

• " A nos sa pá t r i a es tá nos céus , d e o n d e t a m b é m a g u a r d a m o s o Sa lvador , o S e n h o r Jesus Cr is to , o qua l t r a n s f o r m a r á o n o s s o c o r p o de h u m i l h a ç ã o pa ra ser igua l ao c o r p o da sua g l ó r i a " (F i l ipenses 3 .20 ,21) . P o r é m , m e s m o ao t e m p o das car tas aos t e s sa lon icenses , e le e spe rava cer tos e v e n t o s q u e p r e c e d e r i a m a v inda d o Senho r : • " I s to n ã o acon tece rá s e m q u e p r ime i ro v e n h a a apos tas ia , e se ja r eve l ado o h o m e m da in iqü idade , o f i l ho da p e r d i ç ã o " (2 Tessa lon icenses 2.3) .

E q u a n d o e sc r eveu 2 T imó teo , u m p o u c o an tes do f ina l de sua vida, P a u l o to rnou- se c o n v e n c i d o de que m o r r e r i a antes d o re to rno d o Senhor :

" O t e m p o de m i n h a pa r t ida é c h e g a d o . C o m b a t i o b o m c o m b a t e , c o m p l e t e i a carre i ra , gua rde i a fé . J á ago ra a c o r o a da j u s t i ç a m e es tá gua rdada , a q u a l o Senhor , re to ju iz , m e da rá n a q u e l e d ia ; e n ã o s o m e n t e a m i m , m a s t a m b é m a todos q u a n t o s a m a m a sua v i n d a " (2 T i m ó t e o 4 .6-8) .

A l g u n s s u g e r e m que , c o m o pas sa r do t e m p o , Pau lo m u d o u suas idé ias a respei to da data d a segunda v inda de Cris to . M a s isto é improváve l . N a real idade, e le p rovave lmen te mos t ra -nos c o m o os cr is tãos de todas as épocas d e v e m esperar o r e to rno de Cr is to . D e v e m o s "ane la r p o r sua apar ição" . D e v e m o s v iver solíci tos e a ler tas à luz des t e even to . E f i c a r e m o s s a b e n d o e m n o s s o lei to de m o r t e que ele n ã o vai oco r re r e m n o s s a p r e sen t e v ida !

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PAULO E SUA MENSAGEM 1 0 5

b. A ressurreição dos mortos. Paulo esperava que a ressurreição ocorresse na volta de Cristo: "Porquanto o Senhor mesmo, dada a sua palavra de ordem, ouvida a voz do arcanjo, e ressoada a t rombeta de Deus, descerá dos céus, e os mortos em Cristo ressuscitarão pr imeiro" (1 Tessalonicenses 4.16). Este será o momento do juízo, quando "todos nós [compareceremos] perante o tribunal de Cristo para que cada um receba segundo o bem ou o mal que tiver fei to por meio do corpo" (2 Coríntios 5.10).

Será também a ocasião em que seremos t ransformados e tornados aptos para a vida no céu. "A trombeta soará, os mortos ressuscitarão incorruptíveis, e nós seremos transformados. Porque é necessário que este corpo corruptível se revista da incorruptibil idade, e que o corpo mortal se revista da imorta l idade" (1 Coríntios 15.52,53). Paulo é muito cauteloso ao afirmar estas palavras—"se revista da imortalidade". Aressurreição dos mortos não quer dizer a ressurreição de cadáveres. Ele faz uma comparação com o processo de germinação. Ass im como as sementes perdem sua existência quando produzem uma planta, assim nossos corpos físicos se dissolverão—mas Deus os tratará como sementes para produzirem todo u m novo "corpo espiritual" que é imperecível, glorioso e poderoso (1 Coríntios 15.35-44).

N ã o há nada de au tomát ico acerca des te p rocesso . E a g raça de Deus ressuscitando-nos da morte, que é o nosso destino físico, para a vida, que é a s u a d á d i v a e s p i r i t u a l . E n t ã o " e s t a r e m o s s e m p r e c o m o S e n h o r " (1 Tessalonicenses 4.17), vendo-o "face a face" (1 Coríntios 13.12).

E m que es tado os " m o r t o s e m Cr i s t o " e x i s t e m antes que acon teça a ressurreição? Paulo pouco ensina sobre isto, porém sua resposta está contida na pergunta. Eles estão "em Cris to"—ou "com Cristo", como ele af i rma em Filipenses 1.23 ante a possibilidade de sua própria morte. Não precisamos saber mais do que isto. "[Cristo] morreu por nós para que, quer vigiemos, quer durmamos, vivamos em união com ele" (1 Tessalonicenses 5.10).

c. Julgamento e restauração. Paulo esperava que o ju lgamento de Deus caísse sobre o mundo no retorno de Cristo. Até o momento , Deus está retendo seu ju lgamento para permitir que ha ja tempo e oportunidade para arrependimento (Romanos 2.4,5). Mas virá "o dia da ira e da revelação do jus to juízo de Deus, que retribuirá a cada um segundo o seu procedimento" (Romanos 2.5,6). As palavras de Paulo são sombrias: • Quando Cristo vier, Ele tomará vingança contra os "que não conhecem a Deus e contra os que não obedecem ao evangelho de nosso Senhor Jesus. Estes sofrerão penalidade de eterna destruição, banidos da face do Senhor e da glória do seu poder, quando vier para ser glorificado nos seus santos" (2 Tessalonicenses 1.8-10).

A igreja de hoje precisa retomar este ensino de fo rma ampla, como t ambém sentido de urgência que ele teve no ministério de Paulo.

Porém o outro lado desta moeda é a restauração de todas as coisas. Paulo tinha uma visão cósmica do plano de Deus. Ele criou "todas as coisas" por meio de Cristo e para Cristo (Colossenses 1.17). Finalmente Ele planeja "fazer convergir nele [Cristo], na dispensação da plenitude dos tempos, todas as coisas, tanto as do céu como as da terra" (Efésios 1.10). Portanto, a vinda de Cristo não significará apenas a salvação para todos aqueles que lhe per tencem, mas a libertação para todo o universo:

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1 0 6 HOMENS COM UMA MENSAGEM

• " A a rden te expec t a t i va da c r i ação a g u a r d a a r e v e l a ç ã o dos f i l hos de Deus . Po i s a cr iação. . . será r e d i m i d a do ca t ive i ro e da co r rupção , pa r a a l ibe rdade da g lór ia dos f i lhos de D e u s " ( R o m a n o s 8 .19-21) .

Es t e é o e v a n g e l h o p a r a o qua l D e u s a r reba tou Pau lo n a q u e l e dia a c a m i n h o de D a m a s c o . T e n d o ele t ido u m a expe r i ênc ia da graça , r ecebeu t a m b é m u m a t eo log ia da graça . "Pe l a g raça de D e u s sou o que s o u " (1 Cor ín t io s 15.10). E n f r e n t a n d o m u i t o s s o f r i m e n t o s , pe r igos e ince r tezas e m seu min is té r io , e le sabia que D e u s e m Cr i s to " s e m p r e nos c o n d u z e m t r i u n f o " (2 Cor ín t ios 2 .14) . P o r q u e o m e s m o g r a n d e p ropós i t o da g raça , q u e o co locou e m Cr i s to pa ra ace i t ação e o e s t ava l ibe r t ando do p o d e r do p e c a d o na c o m u n h ã o do c o r p o de Cris to , ir ia p re se rvá - lo até ao f i m — e t a m b é m nos p rese rva rá .

Leitura adicional

Menos exigente: Steve Motyer. Israel in the Plan of God. Light on today's debate (Leicester: IVP, 1989) Robert Stein, Difficult Passages in the Epistles (Grand Rapids: Baker, 1988; Leicester:

IVP, 1989)

Mais exigente, obras eruditas: F. F. Bruce, Paul: Apostle of the Free Spirit (Exeter: Paternoster, 1977) Martin Hengel, The Pre-Christian Paul (Londres: SCM, 1991) Morna Hooker, From Adam to Christ: Essays on Paul (Cambridge: CUP, 1990) Seyoon Kim, The Origin of Paul's Gospel (Tubingen: J. C. B. Mohr, 1981)

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A Carta aos Hebreus Jesus, porém, tendo oferecido, parei sempre, um único sacrifício pelos pecados, assentou-se à destra de Deus, aguardando, daí em diante, até que os seus inimigos sejam postos por estrado dos seus pés. Porque com uma única oferta aperfeiçoou para sempre quantos estão sendo santificados. ( H e b r e u s 1 0 . 1 2 - 1 4 )

O grande tema da carta aos Hebreus é a f inal idade de Jesus Cristo. Ele é a últ ima palavra de Deus para o mundo , e cumpriu todas as expectat ivas do Velho Testamento, de modo que nada mais será acrescentado. O autor utiliza muitas idéias e passagens do Velho Tes tamento para expor este tema, de fo rma que seu raciocínio pode exigir mui to dos leitores atuais. Porém sua mensagem básica é clara: Jesus, através de seu sacerdócio eterno e sacrif ício único, t rouxe-nos uma "salvação eterna" (5.9). "Tendes chegado. . . a Jesus, o Mediador de Nova Al iança" (12.22 e 24). que nunca cessará. Cristo se apresenta nos "úl t imos dias" (1.2) e "quando os tempos estão chegando ao f i m " (9.26, BLH), devendo nós, portanto, somente esperar a consumação , quando ele aparecerá novamente para a salvação e o ju lgamen to (9.28).

C o m o sempre, a compreensão da mensagem depende de entender a si tuação histórica à qual a carta se dirige. A c a r t a é escrita "aos Hebreus" . Este título não é original, porém seu alvo é seguramente correto, pois o uso predominante do Velho Testamento indica a posição judaica tanto do autor como de seus leitores. Mui to embora não c o m e c e c o m o uma carta. Hebreus termina c o m o carta, d i r ig indo-se a um g rupo par t icu lar conhec ido do autor (13 .19 .23) . mu i to provavelmente em Roma.

Sabemos que eles tinham sido perseguidos quando se tornaram cristãos (10.32-34), e que foram bem reputados por servirem aos i rmãos (6.10) Mas agora o au tor está p r o f u n d a m e n t e p r e o c u p a d o c o m eles . Eles os acusa de se rem "desatentos à palavra" e " indolentes" (5.11: 6.12), e repetidas vezes os incentiva a não se afastarem do "Deus vivo" (3.12), mas cont inuarem no "ens inamento de adul tos" (6.1. BLH).

Alguns estudiosos expl icam esta exortação usando a teoria de que este g rupo de judeus crist ianizados estava sendo tentado a abandonar a fé e retornar ao Judaísmo. Outros ponderam que o autor está preocupado s implesmente pelo que vê c o m o falta de crescimento, ou f rouxidão, em seu discipulado. Seja qual

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fo r o caso . o r e m é d i o é s imples : se p u d e r e m ter u m a v i são c lara de Jesus e da s u p r e m a c i a de seu sacerdóc io , sacr i f í c io e a l iança, en tão sua fé e seu ze lo de n o v o se i n f l amarão .

Q u e m e r a o a u t o r ? O r í g e n e s , u m d o s pa i s da i g r e j a in ic ia l , c o m e n t o u e v a s i v a m e n t e : " S o m e n t e D e u s sabe . " Mui tos , tanto na igreja inicial c o m o mais tarde, a t r ibu í ram a car ta a Paulo . O t eó logo Pur i t ano inglês John O w e n , que esc reveu u m c o m e n t á r i o em sete v o l u m e s sobre Hebreus , ded icou u m v o l u m e inteiro pa ra p rova r a autor ia de Paulo , acerca da qual e le " n ã o t inha n e n h u m a dúv ida , c o m o se ela t ivesse s ido escr i ta c o m a própr ia letra do após to lo" . Seu e n t u s i a s m o e m prová- lo foi s em dúv ida a l i m e n t a d o pe lo f a to de o R e f o r m a d o r J o ã o Ca lv ino ter pensado de m o d o di ferente ("Eu rea lmente não posso apresentar n e n h u m a razão pa ra mos t ra r que Pau lo foi seu autor") , e chegou a p r o p o r o n o m e de Lucas ou C l e m e n t e (b i spo de R o m a no f inal do p r ime i ro século) . C e r t a m e n t e Hebreus 2 .3 ,4 parece exc lu i r Paulo , po rque o au tor ali se ident i f ica c o m o um cr i s tãos da s e g u n d a ge ração .

Lu te ro ta lvez t enha fe i to a m e l h o r supos i ção ao suger i r Apo lo . O re t ra to de Apo lo em Atos 18.24 c o m o " h o m e m e loqüente e poderoso nas Escr i turas" a tende à qua l i f i c ação requer ida ; e sua o r i g e m a l exandr ina p o d e expl icar as c o n e x õ e s que os e s tud iosos encon t r a r am ent re H e b r e u s e a l g u m a s das idéias do J u d a í s m o g rego e s p e c i a l m e n t e a s soc i ado c o m Alexandr i a .

T u d o o q u e s a b e m o s c o m o cer to sobre o au tor é o que p o d e m o s infer i r de sua car ta . M e s m o u m a lei tura casual to rna c la ro que ele possu ía u m a c o m p r e e n s ã o c o m p l e t a t an to do Ve lho T e s t a m e n t o c o m o de J e s u s C r i s t o , e q u e e s t a v a p r o f u n d a m e n t e p r e o c u p a d o em assoc ia r u m ao outro , m o s t r a n d o que u m não pod ia ser c o m p r e e n d i d o sem o out ro . O q u a d r o logo adiante mos t r a a notável ex t ensão de seu uso do Velho T e s t a m e n t o nes ta "b reve ca r t a" (13 .22) . M a s seu t r a t amen to do Velho T e s t a m e n t o não tem parale lo , po rque ele o lha para ele através de Jesus, pe rmi t i ndo sua c o m p r e e n s ã o da pessoa e min i s té r io de Cr i s to pa ra r e v o l u c i o n a r a i n t e rp re t ação d a s Esc r i tu ras q u e o J u d a í s m o lhe hav ia ens inado .

D e igua l m o d o , e l e m o s t r a u m a p r o f u n d a c o n s c i ê n c i a de J e s u s : u m a consc iênc ia espir i tual , que ele vê e m sua enca rnação (2.14) , na obed iênc ia (10.5-7) . s o f r i m e n t o (5 .7 ,8 ) , m o r t e (2 .9 ) . r e s s u r r e i ç ã o ( 1 3 . 2 0 ) , a s c e n s ã o (4 .14 ) , g lo r i f i cação (1.3) , e na s e g u n d a v inda (9 .28) os me ios pe los qua i s D e u s trata o p e c a d o e a mor te que a t o r m e n t a m a h u m a n i d a d e . M a s ele não apenas i m p õ e sua c o m p r e e n s ã o de Jesus c o m base no Velho Tes t amen to . Ele pe rmi t e que o Velho T e s t a m e n t o lhe ens ine c o m o c o m p r e e n d e r a sa lvação que D e u s p rovê por m e i o de seu Fi lho.

O autor, portanto, está a l tamente bem preparado para a judar -nos a c o m p r e e n d e r o Velho Tes tamen to : pa ra mos t ra r -nos , r ea lmen te , o q u e o v inho n o v o tem fe i to nas ga r r a fa s ve lhas .

P o d e m o s r e sumi r a m e n s a g e m de H e b r e u s sob qua t ro t í tulos:

1. A supremacia de Jesus A grande p r e o c u p a ç ã o do autor é mos t r a r que Jesus é ma io r do que todos os

ou t ros aos o lhos de Deus . Ele des t aca es te fa to no suges t ivo p r e f á c i o ao inic iar sua car ta (1 .1-4) , no qual e le p r o c l a m a Je sus c o m o u m reve lador m u i t o a c i m a de t odos os ou t ros . A p e s a r de t odo o seu a m o r pe lo Velho Tes t amen to , e le

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A CARTA AOS HEBREUS 1 0 9

0 Velho Testamento em Hebreus

Estas r e fe rênc ia s não es tão comple t a s . Elas s i m p l e s m e n t e i lus t ram a notável ab r angênc i a de seu uso n u m p e q u e n o livro.

1. Citações de 2. Personagens 3. Eventos 4. Instituições e 1. Citações de cerimônias

Gênesis (4.4) Caim e Abel Criação (11.3: 4.4) O Tabernáculo Êxodo (8.5) (11.4; 12.24) A queda (6.8) (9.1-5) Levítico (9.7) Enoque, que andou com Moisés no Egito O Dia da Expiação Números (3.5) Deus (11.5,6) (11.24-27 f (9.7) Deuteronômio (10.3) Noé (11.7) A Páscoa (11.18) O sacerdócio 2 Samuel (1.5) Os três patriarcas O êxodo (3.16: 11.29) (5.1-3: 10.11) Salmos (citações de 11) Abraão (7.1-10: Eventos no Monte Sinai Sacrifícios Provérbios (12.5,6) 11.8-19) (9.18-21: 12.18.21) (7.27: 8.3) Isaías (2.13) Isaque (11.21) Entrada na terra Rituais de Jeremias (8.8-12) Jacó (11.21) prometida purificação (9.13) Ezequiel (13.20) Esaú (12.6) (3.18.19: 11.30) A Lei (7.28: 8.4) Oséias (13.15) José (11.22) A aliança (9,15-20) Habacuque (10.37.38) Moisés (3.1-6; 11.23ss.) Ageu (12.26) Arão (5.4: 9.4) Zacarias (13.20) Raabe (11.31)

Muitos juízes e profetas (11.32-38)

c o r a j o s a m e n t e o c lass i f ica c o m o " f r a g m e n t á r i o e d i v e r s i f i c a d o " ( N e w Engl i sh Bible) e m c o m p a r a ç ã o c o m a r eve lação d a d a por D e u s por m e i o de seu F i lho (1.1 ,2) . Seu F i lho não é apenas u m por t a -voz de Deus , c o m o f o r a m os p rofe tas . Ele é "o resp lendor da g lór ia" de Deus (assegurando a c o m u n h ã o de sua na tureza c o m o Pai ) e "a exp re s são exata do seu S e r " ( a s s e g u r a n d o a d i s t inção ent re sua p e s s o a e o Pai) . Herde i ro de todas as co isas , agen te da c r iação , sus t en tador d o un ive r so , p u r i f i c a d o r d o s p e c a d o s . Ele a g o r a a s sen t a - s e "à m ã o di re i ta da M a j e s t a d e nas a l t u r a s " (1 .2 ,3) . Es t e é o F i l h o e x a l t a d o , i n c o m p a r á v e l na d ign idade de sua pes soa e obra , por m e i o de q u e m se m a n i f e s t a a r eve lação f ina l .

E m segu ida a esta v ibran te in t rodução , o au tor passa a expo r a s u p r e m a c i a de Je sus em re lação a ou t ras g randes f i g u r a s do Velho Tes t amen to . A l é m d isso , ele o p r o c l a m a super ior aos a n j o s (1 .4-2 .18) . a M o i s é s (3 .1-4 .13) , e a A r ã o (4 .14-10.39). C a d a um deles é e sco lh ido pe lo que r ep re sen t am no p l a n o de Deus : os a n j o s po rque e r a m c o m u m e n t e c o n h e c i d o s c o m o " f i l h o s de D e u s " , s e n d o a Lei ou to rgada por in t e rméd io de les (2.2); M o i s é s po rque era o g rande " s e r v o " (3.5) , por c u j a s m ã o s D e u s conduz iu Israel à ex i s tênc ia e p roveu- lhe a Lei ; e A r ã o p o r q u e era o s u m o sacerdote , c u j o min i s té r io med iou o pe rdão dos pecados .

Jesus é maior do que os anjos, 1.4-2.18 C o m o p ropós i to de p rova r que Jesus o c u p a u m a pos i ção ma i s alta d o q u e qua i sque r ou t ros seres n o céu e na terra, o au tor e m p r e g a u m a série de c i tações do Velho Tes t amen to , p r inc ipa lmen te de S a l m o s (1 .5-14) . A f o r m a c o m o ele usa es tes s a l m o s é b e m i lus t rada pe la c i t ação do S a l m o 8 em 2.5-9. Es te s a l m o dec la ra q u e D e u s f e z o h o m e m " u m p o u c o m e n o r do q u e os an jos" , a f im de co roá - lo de g lór ia e de honra , e " todas as co i sas suje i tas te d e b a i x o dos seus

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pés" . Isto não p o d e refer i r -se ao h o m e m agora , a r g u m e n t a o escri tor, po rque todas as coisas não lhe es tão suje i tas . Por tan to , isto deve refer i r -se ao H o m e m Cr is to Jesus , po rque nós e f e t i v a m e n t e o v e m o s " c o r o a d o de g lór ia e de h o n r a " (2.9).

T o m a n d o esta l inha de in te rpre tação ma i s adiante , na exp re s são " m e n o r do que os an jos" , no S a l m o 8. o autor encon t ra u m a re fe rênc ia à enca rnação . D e u s p l ane ja t razer t a m b é m mui tos out ros " f i l h o s " à g lór ia (2 .10) . e isto Ele real izou f a z e n d o Jesus nosso I rmão ma i s ve lho (2.11). que par t ic ipa de nossa ca rne e sangue , e e f e t i v a m e n t e de nossa mor te , pa ra que possa des t ru i r o D iabo , que nos m a n t é m esc rav i zados à mor te (2.14). Por tan to , t o rnando- se m e n o r do que os anjos , Jesus t omou- se "o Autor da sa lvação deles" para todos os outros naquela pos ição (2.10). Ele foi honrado não apesar de. mas por causa de seus so f r imentos !

Jesus é maior do que Moisés, 3.1-4.13 E m 3.1 o au tor nos conv ida a cons ide ra r " a t e n t a m e n t e o A p ó s t o l o e S u m o Sace rdo te da nossa conf i s são . Je sus" . O t e m a de Jesus c o m o " s u m o sace rdo te" surge pela p r ime i ra vez em 2 .17. onde Ele é re fe r ido c o m o u m "mise r i co rd io so e fiel s u m o sace rdo te nas co i sas per t inen tes a D e u s " . É in te ressante no ta r que o t e m a da f ide l idade de Jesus é agora t o m a d o c o m p a r a t i v a m e n t e com Moi sé s , e n q u a n t o o da mise r i có rd ia de Jesus é a p o n t a d o e d e s e n v o l v i d o no p r ó x i m o t recho, que está vo l tado à c o m p a r a ç ã o dele c o m Arão (ve ja 4 .14-16) .

Moi sé s era fiel " em toda a casa de Deus" , c o m o Jesus t a m b é m foi. P o r é m M o i s é s era apenas u m a par te da casa . a inda que u m a parte v i t a l — e n q u a n t o Je sus represen ta o cons t ru to r (3.3.4). Aqui n o v a m e n t e a f ide l idade de M o i s é s era a de u m servo; a f ide l idade de Je sus é a de u m Fi lho. E mais , o min i s té r io de M o i s é s p r o j e t a v a o f u t u r o , as " c o i s a s q u e h a v i a m de ser a n u n c i a d a s " ; os bene f í c io s do min i s té r io de Jesus p o d e m ser d e s f r u t a d o s agora (3.5.6).

Es te cont ras te leva o au tor a u m longo e f e r v o r o s o apelo . C o n s i d e r a n d o que terr íveis cas t igos ca í r am sobre aque les que se r ebe l a ram nos dias de Moi sé s , não d e v e m o s endurece r nossos co rações d iante de Jesus , que é ma io r do que Moi sé s . " T a m b é m a nós f o r a m a n u n c i a d a s as boas -novas , c o m o se deu c o m e l e s " (4 .2) . Se e les não e n t r a r a m no d e s c a n s o de D e u s por c a u s a de sua incredu l idade , d e v e m o s fazer todo o e s fo rço "por en t rar naque le descanso , a f im de que n i n g u é m caia . s e g u n d o o m e s m o e x e m p l o de d e s o b e d i ê n c i a " (4.11). O autor sente p r o f u n d a m e n t e a adver tênc ia dada pe lo e x e m p l o da ge ração do êxodo , que recebeu tan to de D e u s e tudo pe rdeu , e não se e squ iva de d izer a seus lei tores que eles c o r r e m o m e s m o per igo .

Jesus é maior do que Arão, 4.14-10.39 A g o r a c h e g a m o s ao cen t ro da d i scussão . A p ó s u m p a r á g r a f o in t rodutór io , es ta ex tensa par te centra l c o m e ç a e t e rmina com for tes exor tações , nas quais o autor acen tua suas adver tênc ias (5 .11-6 .12; 10.19-39) . N o meio o c o r r e m duas longas p a s s a g e n s , nas qua i s ele c o n s i d e r a p r i m e i r o a p e s s o a de Je sus c o m o s u m o sacerdo te (6 .13-7 .28) , e depo i s seu min is té r io (8 .1-10 .18) .

O p a r á g r a f o i n t r o d u t ó r i o ( 4 . 1 4 - 5 . 1 0 ) c o n t é m a p r i m e i r a m e n ç ã o de u m i m p o r t a n t e p e r s o n a g e m q u e f i g u r a a m p l a m e n t e n e s t a p a r t e da c a r t a . M e l q u i s e d e q u e d i f i c i lmen te aparece no Velho T e s t a m e n t o — s o m e n t e no S a l m o 110.4, c i t ado e m H e b r e u s 5 .6 . e na nar ra t iva de G ê n e s i s 14 .17-24, ao qual H e b r e u s 7 . 1 - 1 0 se re fe re . P o r é m n o s s o au tor o c o n s i d e r a u m a f i gu ra ma i s s igni f ica t iva , por duas razões . P r ime i ro po rque somen te a sua p re sença no Velho

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A CARTA AOS HEBREUS 1 1 1

• Í f ' - , ; . . -MIM:

Tes tamen to , e x e r c e n d o u m sacerdóc io tão d i fe ren te do de Arão , mos t ra que o própr io Velho Tes t amen to es tava consc ien te da incomple t i tude e i m p e r f e i ç ã o do sace rdóc io de A r ã o e seus f i lhos : "Se , por tan to , a pe r f e i ção houve ra s ido m e d i a n t e o s ace rdóc io leví t ico. . . que n e c e s s i d a d e h a v e r i a a inda de que se levantasse out ro sacerdote , s e g u n d o a o r d e m de Me lqu i sedeque , e que não fosse con tado s e g u n d o a o r d e m de A r ã o ? " (7.11).

E m s e g u n d o lugar, a ve rdade i r a pessoa de M e l q u i s e d e q u e . c o m o reve lada nas duas pa s sagens que o m e n c i o n a m , p re f igu ra a pessoa de Jesus de vár ias f o r m a s : 1. M e l q u i s e d e q u e era u m sacerdo te real , u m "rei de S a l é m " (isto é. J e rusa l ém) , que era t a m b é m "sace rdo te do D e u s A l t í s s i m o " (7.1). Pe la ap l i cação de vár ios s a l m o s reais a J e sus em seu p r i m e i r o cap í tu lo , o au to r p r e p a r o u - n o s pa ra i m a g i n a r m o s Jesus sen tado no t rono de Davi , c u m p r i n d o a expec ta t iva do Velho T e s t a m e n t o de um rei que p o d e t a m b é m ser c h a m a d o D e u s (p.ex. , H e b r e u s 1.8). A g o r a o au tor de senvo lve o aspec to sacerdota l do min is té r io do rei de J e r u s a l é m — s e n d o f a sc inan te obse rva r que Davi e seus sucessores p a r e c e m ter exe rc ido e f e t i v a m e n t e u m sace rdóc io c o m o parte de seu o f í c io (p.ex. , 2 S a m u e l 24 .25 ; 1 Reis 9 .25) . 2 . M e l q u i s e d e q u e s u r g e e m c e n a na h i s t ó r i a d o G ê n e s i s s e m q u a l q u e r ap re sen t ação . N a d a l e m o s sobre seu n a s c i m e n t o ou mor te ou pa ren te l a ou genea log ia , e nisto, conclui nos so autor, ele s imbo l i za a "v ida ind i s so lúve l " do F i lho de D e u s (7.3,16) . 3. A r ã o e r a d e s c e n d e n t e de L e v i , e L e v i de A b r a ã o . P o r t a n t o , q u a n d o M e l q u i s e d e q u e a b e n ç o o u A b r a ã o , e A b r a ã o en t r egou a M e l q u i s e d e q u e u m d íz imo , o " s ace rdóc io lev í t ico" es tava s e n d o s u b m e t i d o a M e l q u i s e d e q u e na pes soa de seu ancest ra l . A o s levi tas c u m p r i a receber os d í z imos do res tan te de Israel, e en tão f o r a m ins t ru ídos a dar a Deus , t a m b é m eles, o d í z imo dos d í z imos reco lh idos ( N ú m e r o s 18.26). O autor de H e b r e u s a rgumen ta que es ta dád iva es tava p re f igu rada em Gênes i s 14, sub l inhando o status de Me lqu i s edeque c o m o

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aque le a q u e m as hon ra s d iv inas são dev idas (7 .4-10) . 4. M e l q u i s e d e q u e não per tencia , pois , à casa sacerdota l de Levi . e por isso p re f igurou Jesus , que era u m sacerdo te ( c o m o Davi ) d e s c e n d e n t e da t r ibo de J u d á (7 .13-14) . 5. D i f e r e n t e m e n t e dos sacerdo tes leví t icos. M e l q u i s e d e q u e foi d e s i g n a d o sob j u r a m e n t o d iv ino , d e a c o r d o c o m o S a l m o 110: " O S e n h o r jurou e não se a r rependerá : "tu és sacerdo te para s e m p r e ' " (7.21). Este j u r a m e n t o não se apl ica ao s a c e r d ó c i o l ev í t i co . p o r q u e e l e s não c o n t i n u a r a m " p a r a s e m p r e " : " s ã o i m p e d i d o s pela mor te de c o n t i n u a r " (7.23). P o r é m , c o m o M e l q u i s e d e q u e . Je-sus m a n t é m seu sace rdóc io p e r m a n e n t e m e n t e po rque Ele vive para s empre . C o n s e q ü e n t e m e n t e , Ele " p o d e sa lvar t o t a lmen te os que por ele se c h e g a m a Deus . v i v e n d o s e m p r e para in te rceder por e l e s" (7.25).

O autor a r g u m e n t a e n c o n t r a n d o a l g u m a coisa no Velho T e s t a m e n t o que não pode ser e x p l a n a d a em t e r m o s de Velho T e s t a m e n t o — e m essênc ia , a p rópr ia ex is tênc ia de M e l q u i s e d e q u e e seu sace rdóc io : ele exp lana en tão em t e rmos do N o v o Tes t amen to q u a n d o apon ta à f ren te pa ra Jesus .

E m 8.1 nos so autor passa a u m a nova fase de seu a rgumen to : "Todo s u m o sacerdo te é cons t i tu ído pa ra o f e r e c e r ass im dons c o m o sacr i f íc ios ; por isso era necessá r io que t a m b é m esse s u m o sacerdo te t ivesse o que o f e r e c e r " (8.3). Ele passa da pes soa do sacerdo te para a na tu reza de seu s a c r i f í c i o — o qual veio a tornar-se l eg i t imamen te sem igual .

2. O sacrifício de Jesus Este novo trecho da carta tem u m a estrutura ' concênt r ica ' , c o m o se acha esboçada no q u a d r o que se segue .

Es ta es t rutura revela o cu idado do autor na c o m p o s i ç ã o — e t a m b é m nas l inhas p r i n c i p a i s de seu p e n s a m e n t o . E le a p r e s e n t a aqui t rês c o n t r a s t e s : en t r e o " t a b e r n á c u l o " ou " san tuá r io" terrestre e celest ial (o lugar do minis té r io) , ent re a ve lha e a nova a l iança (a base do minis tér io) , e entre o ve lho e o n o v o sacr i f íc io (a função do m i n i s t é r i o ) . E n q u a n t o o a n t i g o s u m o s a c e r d o t e e n t r a v a no San t í s s imo L u g a r do Tabe rnácu lo u m a vez por ano, no Dia do Perdão , l evando o s angue do sacr i f íc io , Jesus agora ent ra no san tuár io celest ia l , o n d e D e u s está. l evando seu p rópr io sangue , a ev idênc i a de u m sacr i f íc io que não prec i sa ser repe t ido , e o qual an iqu i la o p e c a d o u m a vez por todas (9.26). O resu l t ado é toda u m a " n o v a a l iança" : isto é, o r e l a c i o n a m e n t o entre D e u s e seu p o v o foi

8.1-6 [A] O lugar do ministério de Jesus

8.7-13 [B] A nova aliança prometida

9.1 -10 [C] O antigo Dia da Expiação

9.11-14 [C] O novo Dia da Expiação

9.15-22 [B] A nova aliança no sangue de Cristo

9.23-28 [A] O lugar do ministério de Cristo

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A CARTA AOS HEBREUS 1 1 3

c o l o c a d o sobre u m f u n d a m e n t o to ta lmen te d i fe ren te . E m todo o curso des ta p a s s a g e m o autor recorre ao ri tual do Dia da E x p i a ç ã o (descr i to em Lev í t i co 16). e p rocu ra most rar , pon to a ponto , c o m o o per fe i to sacr i f íc io de Cr i s to c u m p r i u a imper fe i t a p r e f i g u r a ç ã o do Dia da Exp iação . C o n c e n t r a n d o - n o s na c o m p r e e n s ã o da mor te de Jesus , p o d e m o s apon ta r pa ra qua t ro aspec tos nos qua i s Jesus supera as l imi tações da "p r ime i ra a l iança" :

1. A esfera do sacrifício N ã o é ce r imonia l , mas mora l . O au tor põe nisto u m a certa ên fase . Os an t igos sacr i f íc ios rea l izados pa ra a san t i f i cação dos que e s t avam " c e r i m o n i a l m e n t e i m p u r o s " — l i t e r a l m e n t e , e les se s a n t i f i c a v a m para a " p u r i f i c a ç ã o da c a r n e " (9 .13) . s i m p l e s m e n t e " impos t a s até ao t e m p o opor tuno de r e f o r m a " (9.10). M a s o que se necess i ta é de um sacr i f íc io capaz de " a p e r f e i ç o a r aquele que pres ta cu l to" (9 .9 )—is to é. pa ra a lcançar a t r a n s f o r m a ç ã o real. pessoal e interior. O s an t igos s ac r i f í c io s t i n h a m de ser r e p e t i d o s c o n s t a n t e m e n t e , p o r q u e n u n c a a s s e g u r a v a m aos ado rado re s a l iber tação do sen t imen to dc que e ram cu lpados por seus p e c a d o s (10.2) .

Agora , entretanto, o " sangue de Cr i s to" fo rma um sacr i f íc io que pode pur i f icar "a nossa consc iênc ia de obras mor ta s para se rv i rmos ao D e u s v ivo!" (9 .14) . E por isso que o autor es tá tão p r e o c u p a d o c o m a incapac idade de os le i tores c r e sce rem c o m o cr is tãos: eles p a r e c e m não ter en t r ado c o m o d e v i a m na p lena expe r i ênc ia do pe rdão da nova a l iança.

2. A natureza do sacrifício Ela não é ter rena, m a s celest ia l . Jesus mor reu na terra, po rém na rea l idade Ele "pe lo Espí r i to e terno, a si m e s m o se o fe receu sem m á c u l a a D e u s " (9.14). Sobre este sacr i f íc io H e b r e u s a f i r m a vár ias coisas f u n d a m e n t a i s :

Ele foi perfeito. E n q u a n t o "é imposs íve l que sangue de touros e bodes r e m o v a p e c a d o s " (10.4), Jesus era ve rdade i ramen te " s e m mácu la " , e capaz de "aniqui la r pe lo sacr i f íc io de si m e s m o o p e c a d o " (9 .26) .

Ele foi espiritual. "Pe lo Espí r i to e t e rno" (9 .14) s ign i f i ca p r o v a v e l m e n t e que Jesus ofereceu-se em perfei ta ha rmonia espiritual c o m Deus . ung ido pelo Espír i to pa ra seu p e n o s o t r aba lho cont ra o p e c a d o e a mor te . Isto quer d izer que . por seu sacr i f íc io . Ele se capac i tou a "pu r i f i c a r " o san tuár io celestial (9 .23) . ou se ja . Ele to rnou poss íve l que nós. pecadores , nos a p r o x i m á s s e m o s de Deus sem macu la r o santuár io e m que Ele habi ta .

Ele foi vicário. Es te é de todos o pon to ma i s re levante . Cr i s to m a n t e v e esta imacu lada ha rmon ia espiri tual com Deus . enquan to passava por u m a exper iência c o m p l e t a de t en tação e so f r imen to , p e c a d o e mor te , que foi capaz de " t i rar os p e c a d o s de m u i t o s " (9.28). H e b r e u s não revela c o m o p rec i s amen te a mor te de Cr is to é e f i caz ao tornar-se Ele u m a fon te de " sa lvação e t e rna" (5.9) em f a v o r de ou t rem. P o r é m 9 .28 de f ine c l a ramen te sua mor te c o m o u m sacr i f íc io vicário, c a r r e g a n d o os pecados dos outros , c u m p r i n d o a p ro fec i a do S e r v o do S e n h o r e m Isaías 53 (ve ja e s p e c i a l m e n t e o vers ícu lo 11), e p o s s i v e l m e n t e t a m b é m o ritual do " b o d e exp ia tó r io" no Dia da E x p i a ç ã o . Nes te ú l t imo, o sacerdo te t inha de con fe s sa r os p e c a d o s dc Israel , p o u s a n d o suas m ã o s sobre a cabeça do bode . e e m segu ida o an imal era ban ido para o deser to , a f im de levar " sobre si todas

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as in iqu idades de le s" (Leví t ico 16.22).

3. A singularidade do sacrifício Ele é s ingular , não repet ido . A e x p r e s s ã o " u m a vez" ou " u m a vez por t odas" é u m a das f avor i t a s do autor , o c o r r e n d o não m e n o s de qua t ro vezes ent re 9.11 e 10.14, c o m re fe rênc ia à mor te de Cr i s to e suas c o n s e q ü ê n c i a s (ve ja o p r ó x i m o quadro ) . O cont ras te , na tu ra lmen te , é ent re o ún ico e não repe t ido sacr i f íc io de Cr i s to e os repe t idos sacr i f íc ios tan to da c e r i m ô n i a anual do Dia da E x p i a ç ã o c o m o dos r i tuais diár ios no templo . Por sua mera repet ição, sus tenta nosso autor, e les p r o c l a m a m sua p rópr ia inef icác ia .

4. O cumprimento do sacrifício Ele é pe rmanen t e , não t ransi tór io . A o pas so que os an t igos sacr i f íc ios p rov iam u m ritual de pu r i f i c ação pas sage i ro e ex te rno , o sacr i f íc io de Je sus p r epa ra -nos para segui - lo até ao p róp r io santuár io . Ele não é apenas nosso represen tan te , m a s t a m b é m nosso p recu r so r (6.20). Agora , t a m b é m nós p o d e m o s ap rox imar -nos de Deus , " t endo os co rações pu r i f i cados de m á consc iênc ia , e l avado o c o r p o com água pu ra " (10 .22) : aqui , d r a m a t i c a m e n t e , o au tor usa para " n ó s " a l i nguaguem que é r e se rvada pa ra a o r d e n a ç ã o do s u m o sacerdo te em Ê x o d o 29.21 e Lev í t i co 16.4. E x a t a m e n t e c o m o Arão foi p r epa rado para sua en t rada anual no San t í s s imo Lugar , ass im t a m b é m nós s o m o s p repa rados para a en t rada , e . de pé na so l e i r a da por t a , e s p e r a n d o p e l o a l v o r e c e r do " D i a " , q u a n d o p o d e r e m o s seguir " n o s s o g rande S u m o S a c e r d o t e " a t ravés do véu (10 .19-25) .

A idéia do c u m p r i m e n t o de Cr i s to por m e i o de seu sacr i f íc io abre -nos a por ta ao terceiro tóp ico que d e s e m p e n h a u m papel crucial no p e n s a m e n t o de Hebreus :

3. A nova aliança em Jesus A c i tação de J e r e m i a s 31.31 -34 em H e b r e u s 8 .8-12 é a mais longa de u m a única c i t ação do Velho Tes t amen to e n c o n t r a d a no Novo . E a f a m o s a p a s s a g e m sobre a " n o v a a l i ança" , na qual J e r emias l amen ta a co r rupção do co ração que a r ru inou Israel e p r o c l a m a u m a tr ípl ice p r o m e s s a de g raça de que D e u s e sc reve rá suas l e i s n o s c o r a ç õ e s e m e n t e s de s e u p o v o , r e v e l a r - s e - á a c a d a u m d e l e s ind iv idua lmen te , e pe rdoa rá seus pecados . Es ta p r o m e s s a de san t idade interior, c o n h e c i m e n t o pessoal e p leno pe rdão foi cumpr ida , s e g u n d o nosso autor, a t ravés do sacr i f íc io de Jesus .

Por tan to , J e sus é "o M e d i a d o r da nova a l i ança" (9 .15) ; e es ta nova a l iança é " s u p e r i o r " à ant iga , po rque foi " ins t i tu ída c o m base e m super io res p r o m e s s a s "

"Uma vez por todas"—o sacrifício único e suficiente de Jesus "Não por meio de sangue de bodes e de bezerros, mas pelo seu próprio sangue, entrou no Santo dos Santos, uma vez por todas, tendo obtido eterna redenção" (9.12).

"[Cristo] se manifestou uma vez por todas, para aniquilar pelo sacrifício de si mesmo o pecado" (9.26).

"Cristo, tendo-se oferecido uma vez para

sempre para tirar os pecados de muitos, aparecerá segunda vez, sem pecado, aos que o aguardam para a salvação" (9.28).

"Nessa vontade é que temos sido santificados, mediante a oferta do corpo de Jesus Cristo, uma vez por todas" (10.10).

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A CARTA AOS HEBREUS 1 1 5

O Tabernáculo O autor considera que seus leitores estão bem familiarizados com a imagem do Tabernáculo. Ele era dividido em dois compartimentos. O primeiro e maior era o "Lugar Santo". O outro, menor, era o "Lugar Santíssimo", o santuário interior. Aqui ficava a arca, encimada por sua tampa de ouro, ou propiciatório, onde a glória do Shekinah, o símbolo visível da presença de Deus, aparecia.

Os dois "Lugares" eram separados por uma espessa cortina chamada "véu". Por

meio desta instituição o Santo de Israel estava ensinando seu povo, tanto a respeito de sua presença no meio dele. como a respeito da inacessibilidade deles perante Ele. Ele estava perto. e. entretanto, longe: os pecadores poderiam aproximar-se, porém não lhes era permitido entrar em sua santa presença além do véu. O acesso a Deus era limitado por quatro condições, mencionadas em Hebreus 9.7: somente o sumo sacerdote podia entrar 110 santuário interior: porém somente uma vez. por ano (no Dia da Expiação), e somente trazendo o sangue do sacrifício com ele, para espargir sobre o

propiciatório; e com isso ele garantia a remissão somente para certos pecados (os pecados "cometidos em ignorância").

Para nosso autor, estas limitações mostravam "que ainda o caminho do Santo Lugar não se manifestou" (9.8); uma vez mais, o Velho Testamento revela sua própria inadequabilidade e sua necessidade de Jesus. Em contraste com o antigo sumo sacerdote, Jesus "entrou no Santo dos Santos [Santíssimo Lugar], uma vez por todas, tendo obtido eterna redenção" (9.12).

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1 1 6 HOMENS COM UMA MENSAGEM

(8 .6 ) . E l a p r o m e t e rea l t r a n s f o r m a ç ã o d o c o r a ç ã o . A a n t i g a a l i a n ç a e r a s i m p l e s m e n t e inef icaz : " S e aque la p r imei ra a l iança t ivesse s ido sem defe i to , de mane i r a a l g u m a es tar ia s e n d o b u s c a d o lugar para a segunda . ... Q u a n d o ele diz N o v a , t o r n a a n t i q u a d a a p r i m e i r a . O r a , a q u i l o q u e se t o r n a a n t i q u a d o e e n v e l h e c i d o es tá pres tes a d e s a p a r e c e r " (8 .7 .13) .

O au tor d e f e n d e sua pos i ção c o m três a rgumen tos : p r i m e i r a m e n t e com u m a ilustração humana. A palavra que cor responde a "a l i ança" no grego e no hebra ico p o d e t a m b é m s ign i f ica r " t e s t a m e n t o " . A s s i m , c o m o u m t e s t amen to t em e fe i to s o m e n t e q u a n d o o tes tador morre , ass im t a m b é m o N o v o T e s t a m e n t o en t rou e m v igor s o m e n t e q u a n d o Je sus mor reu (9 .15-17) .

E m s e g u n d o lugar, ele uti l iza u m a analogia bíblica. Ele dec la ra que , c o m o a p r imei ra a l iança é ra t i f icada pe lo d e r r a m a m e n t o de sangue , ass im a nova a l iança é i naugurada pe lo s angue de Jesus , que é "o s angue da a l i ança" (9 .18-21; 10.29; 13.20; c o m p a r e c o m M a t e u s 26 .28) .

E, em terceiro lugar, e le e m p r e g a u m argumento cla experiência. " C o m u m a única ofer ta ape r fe i çoou para s e m p r e quan tos es tão sendo san t i f i cados" (10.14) . U m a vez que o p e r d ã o t em s ido r ea lmen te c o n c e d i d o e e x p e r i m e n t a d o , não há neces s idade de q u a l q u e r ou t ro sacr i f íc io (10 .17 .18) : a nova a l iança es tá e m vigor.

Es te t e m a da f i na l idade da nova a l iança é pon to crucial para o escr i tor de Hebreus . Ele c o m e ç o u sua car ta c o m o c l amor : " C o r n o e s c a p a r e m o s nós, se n e g l i g e n c i a r m o s tão g r a n d e s a l v a ç ã o ? " (2 .3 ) . E l e t e m i a q u e s eus l e i to res es t ivessem f a z e n d o i s t o — i g n o r a n d o ou (ma i s l i te ra lmente) não se i m p o r t a n d o c o m o que D e u s t inha fe i to pe lo m u n d o a t ravés de Je sus Cr is to . C o m o j u d e u s c r i s t i an izados eles p o d i a m ter s ido ten tados a p e n s a r que , af inal de contas , Je-sus n ã o t inha a c r e s c e n t a d o m u i t o ao seu J u d a í s m o . A is to o au to r res i s te a p a i x o n a d a m e n t e . Jesus é único . D e u s t em f a l a d o e ag ido f i n a l m e n t e por me io da pessoa , o b r a e a l iança de Jesus Cr is to .

P o d e não have r qua lque r in teresse em ou t ros " s a c e r d o t e s " n u m sent ido sacr i-f ic ia l , u m a vez que, a t ravés de nosso g rande S u m o Sacerdo te , t e m o s acesso di re to a D e u s e não neces s i t amos de n e n h u m ou t ro med iador . N o s s o sacr i f íc io é u m "sac r i f í c io de l o u v o r " (13.15) , não u m "sac r i f í c io pe lo p e c a d o " (10.18) . A n o v a a l iança é a ú l t ima a l iança , e j a m a i s será subs t i tu ída: é u m a "a l i ança e t e rna" (13 .20) , que traz pa ra o p o v o de D e u s u m a " s a l v a ç ã o e te rna" , u m a "e te rna r e d e n ç ã o " (9 .12) , e u m a " h e r a n ç a e t e rna" (9 .15) .

A m e n s a g e m de H e b r e u s é inf lex íve l . A u m m u n d o e igreja t en tados a d izer que mu i to s c a m i n h o s l evam a D e u s . e que o Cr i s t i an i smo é s i m p l e s m e n t e u m a re l ig ião ent re mui tas , o au tor des ta car ta lança u m a v e e m e n t e r e fu tação . T o m a r tal pos i ção é nega r o q u e D e u s tem fe i to pe lo m u n d o em Cris to . A q u a l q u e r c u s t o — a i n d a que pe lo d e r r a m a m e n t o de seu p rópr io s angue ( 1 2 . 4 ) — o autor es t imula seus lei tores a agarrar-se à unic idade e f ina l idade de Cristo, que chegou , a t ravés da ve rgonha e da mor te , à m ã o dire i ta de D e u s . P r e c i s a m o s ouv i - lo hoje .

4. A disciplina de Jesus E m 1 0 . 1 9 o au to r c o m e ç a a de l inear as c o n c l u s õ e s prá t icas de sua ap re sen t ação de Cr is to . O t r echo 10.19-39 re t rocede e a m e n i z a a e x o r t a ç ã o de 5 .11-6 .12 . E s t a m o s agora d iante de u m for te e n c o r a j a m e n t o e sóbr ia a d m o e s t a ç ã o : u m e n c o r a j a m e n t o pa ra agarrar -se à fé (10.22) , e spe rança (10 .23) e a m o r (10.24) ,

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A CARTA AOS HEBREUS 1 1 7

que d e v e r i a m ser as marcas dos segu idores de Jesus , o "g rande sace rdo te sobre a casa de D e u s " (10.21) , e u m a adve r t ênc ia sobre as terr íveis c o n s e q ü ê n c i a s para nós se t r a t a rmos Jesus l ev i anamen te e " v i v e r m o s d e l i b e r a d a m e n t e e m pecado , depo i s de t e rmos r eceb ido o p l eno c o n h e c i m e n t o da v e r d a d e " (10 .26) . Há s o m e n t e u m sac r i f í c i o pe lo p e c a d o : p o r i sso , se d e s p r e z a r m o s a q u e l e sac r i f í c io , " j á não res ta sac r i f í c io pe los p e c a d o s ; pe lo con t rá r io , [há] cer ta e x p e c t a ç ã o horr ível de j u í z o " (10 .26 ,27) . C e r t a m e n e o au tor s u p u n h a q u e seus lei tores p u d e s s e m pe rde r sua sa lvação e cair sob o j u í z o de D e u s .

Sua e x o r t a ç ã o con t inua nos três s o b e r b o s cap í tu los conc lu s ivos de sua car ta . Es tes cap í tu los p a r e c e m desenvo lve r o t e m a tr ípl ice ap re sen t ado e m 10.22-24, u m a vez que o cap í tu lo 11 en fa t i za a fé; o cap í tu lo 12, a e spe rança ; e o cap í tu lo 13, o amor .

A fé " é a ce r t eza de coisas q u e se e s p e r a m , a c o n v i c ç ã o de f a to s que se não v ê e m " (11.1): viver pe lo que não se vê é inevitável para aqueles que p e r m a n e c e m na soleira da porta do santuár io e spe rando que o S u m o Sacerdo te apareça (9.28). Por tan to , não d e v e m o s " r e t rocede r " , m a s s im "c re r e ser s a lvos" (10 .39) , c o m o os heróis do Velho Tes t amen to , que t a m b é m t ive ram de v iver pe la fé po rque p e r m a n e c e r a m f i r m e s " c o m o q u e m vê aque le que é inv is íve l" (11.27). A q u e l e s heróis dos ve lhos t e m p o s f o r a m h o m e n s de e s p e r a n ç a e t a m b é m de fé . Pe la f é e les h e r d a r a m a l g u m a s p r o m e s s a s de D e u s e m sua exis tênc ia , mas , n u m ou t ro sent ido , " n ã o ob t iveram. . . a conc re t i z ação da p r o m e s s a " (11.39) . As b ê n ç ã o s te r renas que r ecebe ram s i m p l e s m e n t e s i m b o l i z a v a m as b ê n ç ã o s espi r i tua is que não r e c e b e r a m . Eles a g u a r d a r a m essas bênçãos c o m espe rança , isto é, c o m a legre e con f i an t e expec ta t iva . Pela fé , por tanto , e les se f i r m a r a m e m D e u s d ian te do p r o f u n d o s o f r i m e n t o .

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D e v e m o s f aze r o m e s m o . " T a m b é m nós, vis to que t e m o s a rodear -nos tão g rande n u v e m de t e s t emunhas , d e s e m b a r a ç a n d o - n o s de todo peso . e do p e c a d o que t e n a z m e n t e nos assed ia , c o r r a m o s c o m p e r s e v e r a n ç a a car re i ra que nos es tá p r o p o s t a . " D e v e m o s o lha r pa ra " o A u t o r e C o n s u m a d o r da f é . J e s u s " . Ele t a m b é m , c o m o os heróis da f é do Velho Tes t amen to , " supor tou a c ruz" , por causa da "a legr ia que lhe es tava p ropos ta" , e ass im d e v e m o s cons ide ra r " a q u e l e que supor tou t a m a n h a opos i ção" , pa ra que nós m e s m o s não f i q u e m o s f a t igados e d e s m a i e m o s em nossas a lmas (12.1 -3) .

D e p o i s des ta exc i tan te exor t ação , o cap í tu lo 12 d e s e n v o l v e p o d e r o s a m e n t e os t e m a s da d isc ip l ina e da pe r seve rança , à luz da e spe rança que nos inspira: a e spe rança de en t rar na " J e ru sa l ém celes t ia l" , e f i n a l m e n t e c h e g a r a "Jesus , o M e d i a d o r da N o v a A l i a n ç a " (12 .22-24) .

O ú l t imo cap í tu lo trata l ige i ramente de vár ios a spec tos do " a m o r f r a t e rna l " (13.1) , p o r m e i o do qua l d e v e m o s v iver e n q u a n t o e s p e r a m o s por aque le Dia. N ã o d e v e m o s neg l igenc ia r a hosp i t a l idade aos e s t r ange i ros (13.2) , d e v e m o s l e m b r a r - n o s d o s p r i s i one i ro s (13 .3) , h o n r a r o c a s a m e n t o (13 .4) . p r e f e r i r o c o n t e n t a m e n t o c o m aqui lo que t emos à cob iça (13.5), e a respei tar nossos l íderes c r i s tãos (13 .7-9 ,17 ,24) . J u n t a m e n t e c o m o res tante dos ado rado re s de D e u s , e s t a m o s l evando a in júr ia que E le supor tou , e n c o n t r a n d o - o " fo ra do ar ra ia l" , o n d e s o f r e u — i s t o é, f o r a das n o r m a s e va lores do m u n d o , o qual p rocu ra a s egu rança te r rena . Pois , "na ve rdade , não t e m o s aqui c idade p e r m a n e n t e , m a s b u s c a m o s a que há de vi r" (13 .13 ,14) .

Nes te e n t r e t e m p o t e m o s de enche r nossas v idas c o m louvores a D e u s (13.15) , f a ze r o b e m d iv id indo nossas posses c o m os necess i t ados (13 .16) , o r ando uns p e l o s o u t r o s ( 1 3 . 1 8 , 1 9 ) , e v o l t a n d o - n o s pa ra D e u s , a f i m de q u e E le nos ape r fe i çoe pa ra que f a ç a m o s a sua von tade e lhe a g r a d e m o s (13 .20 ,21) .

H e b r e u s desa f i a o " i n d o l e n t e " (5.11; 6 .12) , tanto o indolente menta l c o m o o indolen te da disc ipl ina . Ele desa f i a a men te por sua a m p l a v isão de Cr is to , o F i lho de Deus , o hede i ro de todas as coisas , e que , no en tan to , ap rendeu a obed iênc i a por me io do s o f r i m e n t o , o b t e n d o para nós o pe rdão c o m o o g rande S u m o Sacerdo te ; e ele de sa f i a a d i sc ip l ina p o r sua pode rosa exo r t ação para que a n d e m o s j u n t o s em suas p e g a d a s a t ravés do s o f r i m e n t o e da mor te , para a g lór ia de Deus .

Leitura adicional

Menos exigente: Raymond Brown, The Message of Hebreus. Christ Aboré Ali (Leicester: IVP. 1982) David Gooding. An Unshakeable Kingdom. The Leiter lo lhe Hebreu sfor Today (Leices-

ter: IVP, 1989) Wil l iam L. Lane, Hebreus. A Cali to Commitmenl (Peabody. Massachuse t t s :

(Hendricksen, 1985)

Mais exigente, obras eruditas: L. D. Hurst, The Epistle to the Hebreus. Its Background ofThought (Cambridge: CUP.

1990) Barnabas Lindars, The Theology of the Letter to lhe Hebreus (Cambridge: CUP. 1991)

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Tiago e sua Mensagem Assim como o corpo sem espírito é morto, assim também a fé sem obras é morta. (Tiago 2.26)

A carta de Tiago é a pr imeira das "epístolas gerais", assim c h a m a d a por não ter sido escrita para u m a específ ica igre ja ou pessoa, mas de f o r m a geral, c o m o u m a circular dirigida "às doze tribos que se encont ram na Dispersão" (1.1). Isto parece significar que ela fo i escrita para todos os judeus crist ianizados de todas as partes. É a única no N o v o Testamento escrita n u m estilo grego luminoso e re f inado e ut i l izando abundantes imagens . Os cristãos sempre aprec iaram sua ênfase sobre a obediência, embora Lutero a tenha denominado " u m a epístola de pa lha" pelo fa to de 2 .14-26 parecer contestar o ensino de Paulo sobre a jus t i f icação pela fé. Vamos considerar este p rob lema abaixo.

Tiago, o homem Pelo menos três homens c o m o n o m e "Tiago" apa recem nas páginas do N o v o Testamento. Pr imeiramente , há Tiago, o f i lho de Zebedeu e i rmão de João, u m dos Doze. Ele foi decapi tado por o rdem de Herodes Agr ipa I (Atos 12.1,2), e, por isso, não p o d e ter sido o autor desta carta. E m segundo lugar, havia outro m e m b r o dos D o z e chamado Tiago. Ele era o f i lho de Al feu (p.ex., Marcos 3 .18) , e é p r o v a v e l m e n t e T iago , " o M e n o r " ou " o M a i s J o v e m " , q u e é menc ionado , por exemplo , e m Marcos 15.40. Nosso conhec imento sobre ele é mui to escasso, sendo improvável que u m a pessoa tão obscura t ivesse escri to u m a carta para circulação geral e se apresentado s implesmente c o m o "Tiago, servo de Deus e do Senhor Jesus Cris to" (1.1), sem ulterior qual i f icação ou descrição.

Por f im, e m terceiro lugar, somos de ixados c o m Tiago, u m dos i rmãos do Senhor Jesus (Mateus 13.55,56; Marcos 6.3). É possível que ele fosse o i rmão mais velho, u m a vez que encabeça a l i s ta—"Tiago, José, S imão e Judas" . Ele se tornou cer tamente o membros mais eminente da famíl ia , depois do própr io Senhor. Pe lo menos desde o f i m do segundo século para f rente , esta carta foi atr ibuída a ele e ci tada c o m o Escri tura, sendo ele, pois , de longe o melhor candidato c o m o autor. Quan to sabemos a seu respei to?

Quando se iniciou o minis tér io públ ico de Jesus, Tiago e seus outros i rmãos

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1 2 0 HOMENS COM UMA MENSAGEM

n ã o a c r e d i t a v a m n e l e ( J o ã o 7 . 5 ; c o m p a r e c o m M a r c o s 3 . 2 1 ) , m u i t o p r o v a v e l m e n t e p o r q u e E le lhes pa rec i a neg l igenc ia r a lguns dos m a n d a m e n t o s d a L e i s a g r a d a q u e e l e s t i n h a m a p r e n d i d o a g u a r d a r e a m a r . E l e s o a c o m p a n h a v a m e v i d e n t e m e n t e e m d iversas ocas iões du ran t e seu min is té r io , t an to na Gal i lé ia ( João 2 .12) c o m o e m J e r u s a l é m ( João 7 .1-10) , m a s n ã o t i n h a m até en t ão dec id ido seguí - lo .

E s ign i f ica t ivo , por tan to , q u e du ran t e os dez d ias q u e s e p a r a m a a s c e n s ã o do Pen tecos t e , os i rmãos do S e n h o r são e s p e c i f i c a m e n t e m e n c i o n a d o s p o r L u c a s p r o c u r a n d o seu lugar e m c o m p a n h i a dos c r i s tãos f ié is e s p e r a n ç o s o s r eun idos e m o ração (Atos 1.14). A o m e n o s no caso de Tiago , P a u l o (que sabia q u e m t inha vis to o Senho r ressurreto) i n f o r m o u que "[Jesus] depois fo i vis to p o r T i a g o " (1 Cor ín t ios 15.7). N e n h u m re la to des se e n c o n t r o sobrev iveu , m a s a i n d i c a ç ã o se rve p a r a exp l i ca r c o m o T i a g o se conve r t eu .

T i a g o pa rece ter conqu i s t ado r a p i d a m e n t e a c o n f i a n ç a dos d e m a i s , po i s e m cur to e s p a ç o de t e m p o é v is to c o m o l íder da ig re ja de J e ru sa l ém (Atos 12.17). P a u l o o c h a m a de " a p ó s t o l o " e dec la ra q u e o v iu e m s u a p r i m e i r a v is i ta a J e r u s a l é m depo i s de t rês anos de s u a c o n v e r s ã o a c a m i n h o de D a m a s c o , oca s i ão e m q u e e s t eve q u i n z e dias c o m P e d r o (Gála tas 1.18,19) .

E m Gá la t a s 2 . 1 - 1 0 P a u l o r e l a t a u m a s e g u n d a v is i ta a J e r u s a l é m , q u a n d o n o v a m e n t e se e n c o n t r o u c o m Tiago . N ã o e s t a m o s cer tos se es ta v is i ta é a q u e es tá r eg i s t r ada e m Atos 11.30 ou e m Atos 15.2, p o r q u e e m a m b a s as ocas iões P a u l o v i a j o u c o m Barnabé , c o m o e m Gála tas 2.1. P o r é m a vis i ta de A t o s 15 e n v o l v e u u m encon t ro i m p o r t a n t e en t re P a u l o e T iago , s e m e l h a n t e ao q u e é m e n c i o n a d o e m Gá la t a s 2. Al i P a u l o exp l i ca q u e ele e B a r n a b é f o r a m consu l t a r os após to los sob re o a s sun to da c i r cunc i são dos gen t ios conver t idos . P a u l o n ã o i m p u n h a a c i r cunc i são aos seus conver t idos , p o r é m h a v i a u m a fo r t e co r ren te de j u d e u s c r i s t i an izados q u e a f i r m a v a m : " S e não vos c i r cunc ida rdes s e g u n d o o c o s t u m e de M o i s é s , não pode i s ser s a lvos" (Atos 15.1). N o f ina l des se encon t ro , "Tiago , Pedro e João. . . m e es tenderam, a m i m e a Barnabé , a destra de c o m u n h ã o , a f i m d e que nós f ô s s e m o s pa ra os gen t ios e e les pa ra a c i r cunc i são [ j udeus ] " (Gá la ta s 2 .9) .

Es t e m e s m o as sun to fo i d i scu t ido n o encon t ro m e n c i o n a d o e m A t o s 15. T i a g o a s s u m i u a d i reção , e p o r m e i o de sábias d e d u ç õ e s da Esc r i tu ra e exper iênc ia , c o n d u z i u a d i scus são c o n c l u i n d o q u e a c i r cunc i são n ã o era necessá r i a pa ra os gent ios conver t idos (Atos 15.19). A c a r t a depois env iada pela igre ja de An t ioqu i a requer ia , pois , c o n f o r m e o r i en tação de J e rusa l ém, q u e os gen t ios conve r t i dos d e v e r i a m f i r m e m e n t e " abs t e r - s e " das coisas sac r i f i cadas a ídolos , b e m c o m o d o sangue , da c a r n e de an ima i s s u f o c a d o s e das r e l ações sexua i s i l íc i tas" (Atos 15 .29) . A s s i m , e n q u a n t o a c i r c u n c i s ã o d e a c o r d o c o m a Le i n ã o m a i s e ra r equer ida , a s u b m i s s ã o a a l g u m a s regras da Le i fo i man t ida .

A n t e s de a c u s a r m o s T i a g o de incons i s t ênc ia , f a r í a m o s b e m e m pe rgun t a r p o r q u e e s sas r eg ras par t i cu la res f o r a m esco lh idas . I ndub i t ave lmen te , o p ropós i t o d e s s a i m p o s i ç ã o era poss ib i l i ta r q u e h o u v e s s e c o n f r a t e r n i z a ç ã o à m e s a en t re gen t io s c o n v e r t i d o s e j u d e u s c r i s t ian izados , l e v a n d o e m c o n t a q u e es tes e r a m e s c r u p u l o s o s ace rca das leis do Velho T e s t a m e n t o sobre c o m i d a . E s s a m e s a de c o n f r a t e r n i z a ç ã o — q u e incluiria, na tura lmente , ce lebrações da Ce ia do S e n h o r — s o m e n t e era poss íve l se os pa r t i c ipan tes gen t ios c o n c o r d a s s e m e m c o m e r o a l i m e n t o " k o s h e r " [p reparado de a c o r d o c o m os p rece i tos j u d a i c o s ] . Is to es tá in t e i r amen te de aco rdo c o m o p r inc íp io de P a u l o de l imi tar a l i be rdade de uns

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TIAGO E SUA MENSAGEM 1 2 1

e m b e n e f í c i o das consc i ênc i a s " m a i s f r a c a s " (ve ja 1 Cor ín t ios 8 .4-13) , e a s s i m n ã o se p o d e a t r ibuir i ncons i s t ênc ia da pa r t e de T iago . A o cont rár io , e le e s t ava ans ioso pa ra q u e seus c o n c i d a d ã o s j u d e u s c r i t i an izados ace i t a s sem os gen t ios conve r t i dos e m sua c o m u n i d a d e .

C o n t u d o , é fác i l ve r c o m o T i a g o p o d e ter s ido m a l in te rpre tado . E m Gá la t a s 2 .11-21 P a u l o re la ta u m inc iden te na ig re ja de A n t i o q u i a an tes do s e g u n d o e n c o n t r o e m Je rusa l ém. Q u a n d o " a l g u n s h o m e n s c h e g a r a m d a pa r t e de T i ago" , l eva ram o própr io Pedro a ret i rar-se da m e s a de conf ra t e rn ização c o m os gent ios , " t e m e n d o os da c i r cunc i s ão" (2 .12) . Fo i c o m o se a p e q u e n a c o n c e s s ã o da Le i f e i t a por T i a g o e P e d r o ao p r inc íp io b á s i c o sobre o qual Pau lo i n s i s t i a — o de admi t i r os gen t ios à p l e n a c o m u n h ã o s e m q u e se t o r n a s s e m j u d e u s — t i v e s s e s o f r i d o o p o s i ç ã o de a lguns .

E s t e m e s m o zelo pe l a lei de M o i s é s é v i s to na ú n i c a p a s s a g e m no l ivro de A t o s q u e f a l a de T i a g o — A t o s 21 .17-26 . A n o s t i n h a m se p a s s a d o e P a u l o t inha c o m p l e t a d o d u a s v i a g e n s m i s s i o n á r i a s p o s t e r i o r e s à p r ime i r a . C e n t e n a s de gen t ios t i n h a m se conve r t i do e s ido r e c e b i d o s na igre ja ; t i n h a m s ido ba t izados , m a s n ã o c i r cunc idados . P a u l o a g o r a vo l ta a J e r u s a l é m . N o d ia segu in te ao d e sua chegada , e le e seus c o m p a n h e i r o s mis s ioná r ios v ã o a T i a g o e lhe f a l a m da obra de D e u s ent re os gent ios . T i a g o se a legra e g lor i f ica a D e u s . M a s ac rescen ta u m aler ta ; e le l e m b r a a P a u l o que h á t a m b é m mi lha re s de c ren tes j u d e u s q u e " s ã o ze losos da le i" (ve rs ícu lo 20) . E l e s es tão c o n v e n c i d o s d e que P a u l o ens ina seus j u d e u s conver t idos a a b a n d o n a r e m Moisés . Por isso T iago sugere que Pau lo v á ao t e m p l o e c u m p r a p u b l i c a m e n t e os r i tos de p u r i f i c a ç ã o r eque r idos pe la lei de M o i s é s p a r a p r o v a r sua l ea ldade à s a g r a d a lei d e D e u s .

Pau lo p r o n t a m e n t e consen te , p o r é m u m a d i f e r ença n a ê n f a s e en t re ele e T i a g o es tá clara . T i a g o é a p r e s e n t a d o e m A t o s c o m o u m cren t re j u d e u c r i s t i an izado , p e o c u p a d o c o m que a ace i t ação da n o v a f é n ã o s ign i f ique o c o m p l e t o a b a n d o n o da ant iga . O e v a n g e l h o de Jesus t inha c u m p r i d o , e n ã o abo l ido , a lei de M o i s é s .

N ã o su rp reende , por tan to , q u e T i a g o r ecebes se o ape l ido de " o Jus to" . O h i s t o r i ado r E u s é b i o , d a i g r e j a d o q u a r t o sécu lo , e s c r e v e u : " A f i l o s o f i a e a re l ig ios idade , q u e sua v ida m o s t r o u a u m grau tão e l evado , deu ocas i ão a u m a c rença un ive r sa l ne l e c o m o o m a i s j u s t o dos h o m e n s . " E con t inua , c i t ando H e g e s i p o , q u e v iveu p e r t o do f i m do s e g u n d o sécu lo e q u e a f i r m o u ser T i a g o u m nazireu. "E le t inha o hábi to de entrar soz inho no templo , e era f r e q ü e n t e m e n t e encon t rado de joe lhos , p e d i n d o pe rdão pa ra o povo , de tal f o r m a que seus j o e l h o s se e n d u r e c e r a m c o m o os d e u m c a m e l o , e m c o n s e q ü ê n c i a d e d o b r á - l o s c o n s t a n t e m e n t e e m sua a d o r a ç ã o a D e u s e ped i r p e r d ã o pa ra o p o v o . P o r c a u s a de sua n o t o r i a m e n t e g r a n d e ju s t i ça , e ra c h a m a d o " o Jus to . . . "

D e acordo c o m o his tor iador j u d e u Jose fo , T iago foi mar t i r izado e m Je rusa lém, n o ano 62 d .C . A s c i r cuns tânc ias de seu mar t í r io são exc i t an tes e l a n ç a m luz t a n t o s o b r e s e u c a r á t e r c o m o s o b r e s u a c a r t a . E m b o r a s e n d o a l t a m e n t e c o n s i d e r a d o pe lo p o v o de J e r u s a l é m , T i a g o e r a n o t o r i a m e n t e t e m i d o e o d i a d o pe l a a r i s tocrac ia sacerdo ta l q u e g o v e r n a v a a c idade . O s u m o sace rdo te A n a n o s ap rove i tou u m a o p o r t u n i d a d e p a r a co loca r T i a g o d ian te do s inédr io , s e n d o e le c o n d e n a d o e a p e d r e j a d o (ve j a o q u a d r o ad ian te) . J o s e f o t a m b é m nos d iz q u e nesse pe r íodo hav ia mui t a luta social entre a ar is tocracia abas tada , à qual A n a n o s pe r tenc ia , e as c a m a d a s m a i s p o b r e s da p o p u l a ç ã o . Q u a n d o l e m o s as pa lav ras cáus t icas c o m as qua i s T i a g o d e n u n c i a v a a e x p l o r a ç ã o do p o b r e pe lo r ico (p.ex. , 5 .1-6) , é fác i l e n t e n d e r c o m o ele d e v e ter p r o v o c a d o a i ra de h o m e n s c o m o

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1 2 2 HOMENS COM UMA MENSAGEM

A n a n o s . A " jus t i ça" q u e as p e s s o a s v i r a m e x e m p l i f i c a d a s e m T i a g o d e v e ter s ido c o m o a de A m ó s , q u e t a m b é m c l a m o u f o r t e m e n t e e m n o m e de D e u s con t ra a e x p l o r a ç ã o e c o n ô m i c a .

A carta de Tiago A s s i m era o ca rá te r do h o m e m q u e con t r ibu iu c o m o q u e é p r o v a v e l m e n t e o m a i s an t igo dos d o c u m e n t o s do N o v o Tes t amen to . M u i t o s c o m e n t a d o r e s dão à ep í s to la u m a da ta não pos te r io r a 5 0 d.C. , e a lguns c r ê e m q u e ela f o i escr i ta p o r vo l t a d e 4 5 d .C. N a dec i são q u a n t o à da ta da car ta a e v i d ê n c i a de 2 . 1 4 - 2 6 d e s e m p e n h a u m papel impor tante . Se T iago fo i ou não intencional , es ta p a s s a g e m p o d e f a c i l m e n t e ser e n t e n d i d a c o m o u m a t aque à dou t r ina de P a u l o sobre a j u s t i f i c a ç ã o pe l a fé . I s to f o i c e r t a m e n t e c o m o L u t e r o a en t endeu . En t re tan to , v i m o s a c i m a q u e T iago f i c o u fe l i z e m dar a P a u l o "a des t ra de c o m u n h ã o " (Gála tas 2.9) , m e s m o t e n d o seu p r ó p r i o min i s té r io u m a ê n f a s e d i fe ren te . A s s i m sendo , é m a i s fác i l supor q u e T i a g o e sc r eveu 2 . 1 4 - 2 6 anos m a i s cedo , antes q u e o min i s t é r io de P a u l o en t re os gen t ios t ivesse r e a l m e n t e in ic iado, e n ã o n u m a da ta pos ter ior , q u a n d o suas pa l av ra s p u d e s s e m c e r t a m e n t e ser t o m a d a s c o m o cr í t ica a Pau lo .

N e s t a f a s e an te r io r , m u i t o s j u d e u s c r i s t i a n i z a d o s e r a m a i n d a m e m b r o s adoradores das s inagogas l o c a i s — c o m o na tu ra lmen te T i a g o o era e m Je rusa lém. E b e m poss íve l , por tan to , q u e a " s i n a g o g a " ( " r eun ião" , NIV, B L H ) à qua l T i a g o se r e f e r e e m 2 .2 era, l i t e ra lmente , a s i nagoga e m que os j u d e u s c r i s t i an izados a inda a d o r a v a m ao l ado dos j u d e u s até en t ão n ã o c o n v e n c i d o s do m e s s i a d o de Jesus . E ass im, m u i t o e m b o r a T i a g o se d i r ig isse aos cr is tãos , é t a m b é m poss íve l q u e ele e spe ras se que sua car ta f o s s e l ida p o r out ros j u d e u s , e q u e ele a t ivesse c o m p o s t o c o m eles e m m e n t e . E s t a poss ib i l i dade é a p o i a d a p e l o c o n t e ú d o da car ta , q u e é p r o f u n d a m e n t e j u d a i c a c o m o t a m b é m c o m p l e t a m e n t e cristã.

Características da carta de Tiago 1. Sua ênfase sobre a obediência prática A pr inc ipa l carac ter í s t ica da carta, c o m o seria de espera r de u m h o m e m c o m o T iago , é sua ê n f a s e sobre a n e c e s s i d a d e de j u s t i ça p rá t i ca na v ida cristã. O espír i to da car ta é u m a remin iscênc ia dos profe tas do Velho Tes tamento . E i so lado e n t r e os a u t o r e s do N o v o T e s t a m e n t o , T i a g o f a z u s o d e s t a c a d o do t e m a " s a b e d o r i a " (3 .13-18) , a p r o x i m a n d o - s e de a lguns dos p r inc ipa i s t e m a s dos escr i tos sobre sabedor i a do Velho T e s t a m e n t o ( e spec i a lmen te P r o v é r b i o s e Jó) .

T i a g o u s a m a i s de c inqüen ta impe ra t i vos e m seus cur tos c inco capí tu los , e ap rec i a m u i t o di tos inc is ivos , tais c o m o " A ira do h o m e m não p r o d u z a j u s t i ça de D e u s " (1 .20) e " A a m i z a d e do m u n d o é i n i m i g a de D e u s " (4.4). D o c o m e ç o ao f i m e le e m p r e g a m e t á f o r a s v ív idas e l i n g u a g e m i lus t ra t iva , q u e t o r n a m seu e n s i n o a l t amen te express ivo , l e m b r a n d o o u s o de p a r á b o l a s p o r Jesus .

É a ê n f a s e p rá t i ca de T i a g o que pene t r a no cen t ro da d i f i cu ldade ap re sen t ada p o r 2 . 1 4 - 2 6 . A l g u n s e s t u d i o s o s a i n d a e n d o s s a m a p o s i ç ã o d e L u t e r o ao su s t en t a r em q u e es ta p a s s a g e m con t rad iz c a t e g o r i c a m e n t e Pau lo : Paulo: "Conc lu ímos , pois , que o h o m e m é jus t i f i cado pe la fé, i ndependen temen te das ob ra s da l e i " ( R o m a n o s 3 .28) .

Tiago: "Ver i f ica i s que u m a p e s s o a é j u s t i f i c a d a p o r obras , e n ã o p o r f é s o m e n t e "

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TIAGO E SUA MENSAGEM 1 2 3

A morte de Tiago, de acordo com Ananos, que... tinha sido designado para o sumo sacerdócio, era impetuoso em seu temperamento e extremamente presunçoso. Ele seguiu a escola dos saduceus, que eram, sem dúvida, mais insensíveis do que qualquer outro judeu... quando se sentavam para julgar. Possuidor de tal caráter, Ananos pensou que tinha uma oportunidade favorável, porque Festo estava morto e Albino ainda estava a caminho [isto é, havia um vácuo de poder entre dois governadores romanos]. E assim ele convocou os

Josefo juízes do sinédrio e trouxe perante eles um homem chamado Tiago, o irmão de Jesus que era chamado o Cristo, e alguns outros. Ele os acusou de terem transgredido a lei e os entregou para serem apedrejados. Aqueles entre os habitantes da cidade que eram considerados os mais honestos e que estavam em estrita observância da lei sentiram-se injuriados diante disso.. .

Josefo, Antiguidades 20:199-201

(Tiago 2 .24) . E tan to P a u l o c o m o T i a g o u s a r a m o e x e m p l o de A b r a ã o p a r a i lus t rar es tes

p o n t o s a p a r e n t e m e n t e opos tos ( R o m a n o s 4 .1 -5 ; T i a g o 2 .21-23) . P o r é m es ta é u m a d i f e r e n ç a e m ên fa se , n ã o e m m e n s a g e m . E a r a z ã o n ã o es tá

l onge de ser encon t r ada . C a d a u m deles t inha e m m e n t e u m c o n j u n t o d i f e r en t e de f a l sos mes t re s . O s opos i to res d e P a u l o e r a m os legal is tas j u d e u s , e n q u a n t o os de T iago e r a m os ar i s tocra tas j u d e u s ( c o m o A n a n o s ) . O m e i o de s a lvação d o s l ega l i s t a s e r a m as " o b r a s " — a t o s m o r a i s e c e r e m o n i a i s r e a l i z a d o s e m obed i ênc i a à lei . O m e i o de sa lvação dos a r i s tocra tas e ra a " f é " , is to é, m e r a o r t o d o x i a d e c r e n ç a , a d e s ã o s u p e r f i c i a l a o J u d a í s m o , s e m q u a l q u e r c l a r a obed i ênc i a prá t ica .

A o s legal is tas Pau lo a rgumen ta que s o m o s jus t i f i cados não p o r nossas p rópr ias b o a s obras , m a s p o r m e i o da fé e m Cris to . A o s ar is tocra tas T i a g o a r g u m e n t a q u e s o m o s j u s t i f i c ados não p o r u m a o r todox ia estéri l (que os p róp r io s d e m ô n i o s p o s s u e m — " e e s t r e m e c e m " , 2 .19) , m a s p o r obras, e s p e c i a l m e n t e ass i s tênc ia aos necess i tados . Pau lo , ent re tanto , apressa-se e m acrescen ta r que a f é q u e sa lva ge ra i n e v i t a v e l m e n t e b o a s obras (Efés ios 2 .8-10) ; Gá la t a s 5.6) , e n q u a n t o T i a g o a f i r m a q u e as obras que s a l v a m b r o t a m n a t u r a l m e n t e de u m a f é ve rdade i r a (2 .14) , e a ausênc i a de b o a s obras r eve la a ausênc i a da ve rdade i r a fé (2 .17) .

N a rea l idade , n ã o s o m o s sa lvos n e m pe l a f é m o r t a (Tiago 2 .17) , n e m pe las obras mor t a s ( H e b r e u s 6 .1; 9 .14) , m a s p o r u m a f é v iva que resu l ta e m " a m o r e b o a s o b r a s " ( H e b r e u s 10.24) . N ã o p o d e m o s ser sa lvos pe las obras , e t a m p o u c o p o d e m o s sa lvar -nos s e m elas. O p a p e l das obras n ã o é g a n h a r a sa lvação , m a s ev idenc iá - la , n ã o é consegu i r a sa lvação , m a s p rová- la . A rea l idade de n o s s a f é é r e v e l a d a n a q u a l i d a d e d e n o s s a v ida : e n i s t o P a u l o e T i a g o c o n c o r d a m a rden t emen te , a p o n t a n d o d i r e t a m e n t e pa ra A b r a ã o , q u e c o n f i o u nas p r o m e s s a s de D e u s , e c o n s e q ü e n t e m e n t e o b e d e c e u à o r d e m d e D e u s .

2. Sua confiança no ensino de Jesus H á u m a fo r t e e v i d ê n c i a t ex tua l de q u e T i a g o t inha f a m i l i a r i d a d e t an to c o m o S e r m ã o do M o n t e c o m o c o m out ros d i scursos de Jesus , e m r a z ã o dos m u i t o s p o n t o s e m q u e as p a l a v r a s e c o a m as de J e sus . C o m o o b s e r v o u u m v e l h o c o m e n t a d o r , " S e J o ã o r ec l inou- se no co lo d o Sa lvador , T i a g o sen tou - se aos seus p é s . " Es t e a s sun to é tão in teressante e impor t an t e que será úti l pa r a e labora r a c o m p a r a ç ã o en t re o ens ino de T i a g o e o ens ino de Jesus : v e j a o p r ó x i m o quadro .

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T i a g o baseou-se , a c i m a de tudo , n o ens ino é t ico de Jesus . Por es tar e s c r evendo an tes que q u a l q u e r dos n o s s o s E v a n g e l h o s t ivesse s ido pub l i cado , sua car ta dá a m p l o t e s t e m u n h o do m o d o pe lo qua l o e n s i n o de Je sus t inha se t o rnado par te da m e d u l a d a ig re ja inicial . E m n e n h u m m o m e n t o T i a g o c i tou f o r m a l m e n t e Jesus : e le f i cou tão i m p r e g n a d o d o e n s i n o do S e n h o r q u e p a s s o u a ref le t i - lo a u t o m a t i c a m e n t e e m suas e x p r e s s õ e s e e m sua v ida .

3. Seu senso de harmonia entre a Lei e o evangelho Es te a spec to s egue - se ao ú l t imo . A o lado des t a impl í c i t a d e p e n d ê n c i a do e n s i n o de Je sus há u m a expl íc i ta d e p e n d ê n c i a d a " lei rég ia s e g u n d o a E s c r i t u r a " (2.8) . T i a g o p a r e c e p e n s a r e s p e c i a l m e n t e na lei mora l , e não n a lei ce r imonia l . P o r é m essa lei m o r a l d e v e ser o b s e r v a d a e m todos os pon tos : e la é a lei " q u e nos dá a l ibe rdade" , e p o r e la s e r e m o s j u l g a d o s (2 .12, B L H ) .

P a r a T i a g o o e v a n g e l h o e a lei f u n d e m - s e . C o m o cr i s tãos f o m o s t raz idos ao n o v o n a s c i m e n t o p e l a " p a l a v r a da v e r d a d e " (1 .18) , e e s t a " p a l a v r a " d e v e in ic iar u m n o v o p r inc íp io de v ida e m n o s s o interior , i m p l a n t a d a e m n o s s o s co rações (1 .21) . S o m e n t e a s s i m e s t a r e m o s ap tos a e scapa r do e r ro de ouv i r a pa l av ra e n ã o pra t icá- la . Se a p a l a v r a es tá i m p l a n t a d a e m nós , s e r e m o s c o m o " a q u e l e q u e c o n s i d e r a a t e n t a m e n t e na lei pe r fe i t a , lei d a l iberdade , e ne l a pe r seve ra , n ã o s e n d o o u v i n t e n e g l i g e n t e , m a s o p e r o s o p r a t i c a n t e . . . " (1 .25) . A s s o c i a d a ao e v a n g e l h o , a lei de M o i s é s to rna - se r e a l m e n t e a " le i pe r fe i t a , lei da l i be rdade" .

A c i m a de tudo , os cr is tãos d e v e m c u m p r i r " a lei r ég i a " (2.8), a lei q u e g o v e r n a os c idadãos do R e i n o de D e u s (2.5): " A m a r á s o teu p r ó x i m o c o m o a ti m e s m o " (2.8). P r o m u l g a d a p r i m e i r a m e n t e p o r m e i o de M o i s é s (Lev í t i co 19.18) , depo i s s a n c i o n a d a p o r J e sus ( M a r c o s 12.31), es ta lei a inda v igora . Se m o s t r a r m o s f a v o r i t i s m o e x p l o r a n d o o pob re (2.9) , m o s t r a m o s q u e s o m o s c o m o a p e s s o a d ian te do e spe lho : v e m o s q u e p r e c i s a m o s lavar -nos , m a s a f a s t a m o - n o s dal i e n a d a f a z e m o s . S a b e r o q u e é d i re i to e n ã o pra t icá - lo é p e c a d o (4 .17) !

4. Seu senso do perigo da riqueza I s to é t a m b é m a lgo q u e T iago c o m p a r t i l h o u c o m seu Senhor , c o m o p o d e ser c o n s t a t a d o e m q u a t r o v i g o r o s a s p a s s a g e n s . T i a g o e n s i n a a i n s t ab i l i dade da r i queza (1 .9-11) e a a v e r s ã o de D e u s pe l a d i s c r im inação con t ra o p o b r e (2.1-11). E le e m segu ida a taca os h o m e n s de negóc io s q u e c o l o c a m a v o n t a d e de D e u s f o r a de seus p l a n o s (4 .13-17) , b e m c o m o os p ropr i e t á r ios de terras q u e e x p l o r a m i m p i e d o s a m e n t e s eus t r a b a l h a d o r e s (5 .1 -6 ) . T ã o c o r t a n t e é s u a l i n g u a g e m q u e u m recen te escr i tor , Pedr i to M a y n a r d - R e i d , c h e g a ao e x t r e m o de sus ten ta r q u e p a r a T i a g o e ra i m p o s s í v e l q u e os r icos se s a lvas sem.

Is to é s e g u r a m e n t e ir d e m a s i a d o longe , en t re tan to , p o r q u e e m 1.10 T iago se r e fe re ao " i r m ã o q u e é r i co" . S u a m e n s a g e m a esse i r m ã o é q u e e le não d e v e gloriar-se e m razão de sua alta pos ição , e s im de seu status ins igni f icante! Porque , c o m o Jó, e l e " p a s s a r á c o m o a f lo r da e r v a " d ian te d o sol . E n q u a n t o isto, e le t e m a r e s p o n s a b i l i d a d e de u t i l izar s u a r i q u e z a e m f a v o r do p o b r e (2 .14-16) .

G e r a l m e n t e , p o r é m , T i a g o p a r e c e ter e m m e n t e p e s s o a s tais c o m o o s u m o sacerdo te A n a n o s , que , por f im , m a q u i n o u sua mor te : s aduceus ar is tocra tas r icos q u e p o s s u í a m vas tas p r o p r i e d a d e s e p o u c a a t enção d i s p e n s a v a m ao b e m - e s t a r dos q u e n ã o t i n h a m terra e t r a b a l h a v a m pa ra eles . C o m o Z a q u e u , tais h o m e n s p r e c i s a m a b a n d o n a r sua r iqueza , se q u i s e r e m ser sa lvos .

5. Os três pilares da vida cristã

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Jesus e Tiago: sobre a vida cristã

Podemos relacionar pelo menos os seguintes vinte pontos em que o ensino de Tiago reflete o de Jesus: 1. O cristão que é levado a sofrer provações é "abençoado": Tiago 1.2; Mateus 5.10-12. 2. O propósito de Deus é que possamos nos tornar perfeitos: Tiago 1.4; Mateus 5.48. 3. Ele dá generosamente a todos os que lhe pedem: Tiago 1.5 e 4.2; Mateus 7.7,8, mas... 4. somente o Pai dá boas dádivas: Tiago 1.17; Mateus 7.9-11, e neste caso... 5. somente àqueles que têm fé: Tiago 1.6; Marcos 11.22-24. 6. Os discípulos de Jesus devem não somente ouvir a palavra, mas praticá-la: Tiago 1.22-25; Mateus 7.21-27. 7. Eles devem tomar cuidado com as riquezas, porque são os pobres os herdeiros do Reino: Tiago 2.5; Mateus 5.3 e Lucas 6.20. 8. Eles devem amar seu próximo como a si mesmos: Tiago 2.8; Marcos 12.31. 9. Eles devem guardar até mesmo os menores mandamentos, cuidando de não violá-los no mínimo ponto: Tiago 2.10; Mateus 5.19; e... 10. mostrar misericórdia para receberem misericórdia: Tiago 2.13; Mateus 5.7 e 18.33-35. 11. Eles devem lembrar-se de que é a árvore que determina o fruto: Tiago 3.12; Mateus 7.15-20, 12. e os pacificadores que são abençoados: Tiago

3.18; Mateus 5.9. 13. Ninguém pode servir a dois senhores. Cada um deve escolher entre Deus e o dinheiro: Tiago 4.4 e 4.13-15; Mateus 6.24. 14. Aquele que se humilha será exaltado: Tiago 4.6,10; Lucas 18.14; compare com Tiago 1.9,10 e Lucas 1.52. 15. Os cristãos não devem falar mal uns dos outros ou julgar uns aos outros: Tiago 4.12; Mateus 7.1. 16. Eles não devem ceder aos planos ambiciosos e mundanos para obter ganho: Tiago 4.13-17; Lucas 12.16-21, porque... 17. a riqueza não dura. As riquezas se corroem, as vestimentas são consumidas pela traça, e o ouro fica embaçado com a ferrugem: Tiago 5.1-3; Mateus 6.19-21. 18. Por tudo isso, ai dos ricos! Tiago 5.1; Lucas 6.24 e 16.19-31. 19. Que aquele que crê espere pacientemente e esteja pronto para a vinda do Senhor, pois Ele está perto, às portas: Tiago 5.7-9; Lucas 12.35-40 e Marcos 13.29. 20. Finalmente, os cristãos não devem absolutamente jurar, pelo céu ou pela terra, ou por meio de qualquer outro juramento. Sua palavra deve ser confiável. Seu sim deve ser sim, e seu não, não: Tiago 5.12; Mateus 5.33-37.

O s e s tud iosos a d m i t e m q u e os dois ú l t imos ve r s í cu los do p r i m e i r o capí tu lo , 1 .26,27, c o n t ê m u m r e s u m o da m e n s a g e m de T iago . N e s s e s ve r s í cu los e le es tabelece u m cont ras te entre a re l igião ve rdade i ra e a fa lsa , e ind ica u m a m e d i d a pe l a qua l a m b a s são ava l iadas . P o d e m o s i m a g i n a r que s o m o s re l ig iosos , p o r é m , a m e n o s q u e n o s s a r e l ig ião se ja m a r c a d a p o r ce r t as ca rac te r í s t i cas n í t idas , e s t a m o s e n g a n a n d o a nós m e s m o s e nos sa re l ig ião é "vã" .

T i a g o del ineia , en tão , as três carac te r í s t icas da ve rdade i r a re l ig ião , q u e e le c h a m a de " p u r a e s e m m á c u l a " . S ã o elas: " r e f r e a r a sua l íngua" , "v is i ta r os ó r f ã o s e as v i ú v a s n a s suas t r i b u l a ç õ e s " , e " g u a r d a r - s e i n c o n t a m i n a d o do m u n d o " . E s t a é u m a aná l i se p e n e t r a n t e d o deve r m o r a l da r aça h u m a n a . E l a a b r a n g e n o s s o deve r t r í p l i c e — p a r a c o n o s c o , p a r a c o m o n o s s o p r ó x i m o e p a r a c o m D e u s . O con t ro le d a l íngua é u m índ i ce do d o m í n i o p rópr io . A v i s i t ação aos ó r fãos e às v iúvas é u m e x e m p l o de a m o r f ra ternal . Man te r - se i n c o n t a m i n a d o das coisas do m u n d o é o equ iva len te nega t ivo de t r ibutar a D e u s o louvor d e v i d o ao seu n o m e .

N o r e s t a n t e d e s u a c a r t a T i a g o r e t o m a e d e s e n v o l v e e s t e s t r ê s t e m a s a l t e rna t i vamen te e r e l ac iona-os en t re si: a l í ngua n o cap í tu lo 3, a ass i s tênc ia aos neces s i t ados no cap í tu lo 2, e a r es i s t ênc ia ao m u n d o nos cap í tu los 4 e 5. V a m o s e x a m i n a r b r e v e m e n t e seu e n s i n o s o b r e e s s e s t e m a s à m e d i d a q u e p r o c u r a m o s r e s u m i r sua m e n s a g e m .

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A mensagem de Tiago 1. Domínio próprio T e n d o e s t i m u l a d o seu le i tor e m seu p r i m e i r o cap í tu lo a ser " p r o n t o p a r a ouv i r " , m a s " t a rd io p a r a f a l a r " (1 .19) , T i a g o a m p l i a a pe r igosa i n f l uênc i a d a l íngua na ce l eb rada p a s s a g e m d o cap í tu lo 3 (1-12) . E l e ac re scen ta i m a g e m sobre i m a g e m e m v ív idos t raços descr i t ivos , s u b l i n h a n d o a pe rn i c io sa i n f l uênc i a da l íngua , a c i m a de t oda e q u a l q u e r p r o p o r ç ã o ao seu t a m a n h o .

A s s i m , T i a g o c o n s i d e r a a expressão verbal tão v i t a lmen te i m p o r t a n t e q u a n t o a v ida c r i s t ã — u m gabar i to pa ra m e d i r a r ea l idade do n o s s o d i sc ipu lado . P o r é m , e m si, a l í ngua n ã o é a f o n t e de t en tação . A t en t ação e m a n a de n o s s o s d e s e j o s ín t imos , q u e p o d e m dar n a s c i m e n t o ao p e c a d o e, depois , gera r a m o r t e (1 .15) . T i a g o nos d iz q u e qua lque r d e s e j o q u e n ã o t e n h a ra iz n o a m o r de D e u s p o d e p o t e n c i a l m e n t e l evar -nos a u m desv io , d e v e n d o nós res is t i r a ele.

T iago está p r imord ia lmen te p r eocupado acerca do controle da ira (veja 1.19,20; 3.9; 3 .14; 4 .1-3) , e ace rca de seu oposto , a saber, a expressão verba l que p r o m o v e a p a z (3 .17 ,18) . Tal e x p r e s s ã o resu l ta da sabedoria d i v i n a m e n t e ou to rgada .

2. A verdadeira lei O s e g u n d o e l e m e n t o na re l ig ião " p u r a e s e m m á c u l a " é o amor . A e x p o s i ç ã o des te t e m a p o r T i a g o t e m duas carac ter í s t icas :

P r i m e i r a m e n t e , o amor leva à ação. A b e n e v o l ê n c i a p i e d o s a n ã o subs t i tu i a b e n i g n i d a d e prá t ica . N ã o h á n e n h u m b e n e f í c i o e m s impa t i za r c o m ó r f ã o s e v iúvas ; d e v e m o s cu ida r de les (1 .27) . É inút i l d izer a u m ped in te : "Tra te de se aquece r e se a l imen ta r " : d e v e m o s dar - lhe a l imen to e r o u p a (2 .15 ,16) . O a m o r c r i s tão n ã o é sen t imen to , m a s se rv iço ; n ã o é a fe ição , m a s ação .

E m s e g u n d o lugar , o amor é imparcial. O a m o r n ã o a d m i t e d i s t i nções e a b o m i n a o " favor i t i smo" . T iago retrata pa ra seus leitores u m a cena que se pas sava e m sua é p o c a nas s i nagogas de t odos os lugares : o h o m e m r ico c h e g a e o c u p a

Domando a Língua: Tiago 3.1-12

Meus irmãos, não vos tomeis, muitos de vós, mestres, sabendo que havemos de receber maior juízo. Porque todos tropeçamos em muitas coisas. Se alguém não tropeça no falar é perfeito varão, capaz de refrear também todo o seu corpo.

Ora, se pomos freios na boca dos cavalos, para nos obedecerem, também lhes dirigimos o corpo inteiro. Observai, igualmente, os navios que, sendo tão grandes e batidos de rijos ventos, por um pequeníssimo leme são dirigidos para onde queira o impulso do timoneiro. Assim também a língua, pequeno órgão, se gaba de grandes coisas. Vede como uma fagulha põe em brasas tão grande selva! Ora, a língua é fogo; é mundo de iniqüidade; a língua está situada entre os membros de nosso corpo, e contamina o corpo

inteiro e não só põe em chamas toda a carreira da existência humana, como é posta ela mesma em chamas pelo inferno.

Pois toda espécie de feras, de aves, de répteis e de seres marinhos se doma e tem sido domada pelo gênero humano; a língua, porém, nenhum dos homens é capaz de domar; é mal incontido, carregado de veneno mortífero.

Com ela bendizemos ao Senhor e Pai; também com ela amaldiçoamos os homens, feitos à semelhança de Deus: de uma só boca procede bênção e maldição. Meus irmãos, não é conveniente que estas coisas sejam assim. Acaso, meus irmãos, pode a figueira produzir azeitonas, ou a videira, figos? Tampouco fonte de água salgada pode dar água doce.

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u m assen to p r iv i l eg iado , c o m o se t ivesse di re i to a ele, e n q u a n t o os ado rado re s p o b r e m e n t e ves t idos d e v e m sentar -se no chão . Tais d i s t inções de c lasse são to t a lmen te incons i s t en tes c o m a ve rdade i r a lei. J. B . Phi l l ips p a r a f r a s e i a 2 .1 nes ta s pa lavras : " M e u s i rmãos , j a m a i s t e n t e m c o m b i n a r o e s n o b i s m o c o m a f é e m nos so S e n h o r J e sus Cr i s t o ! "

3. Fidelidade para com Deus O t e r c e i r o e l e m e n t o n a r e l i g i ã o " p u r a e s e m m á c u l a " é " g u a r d a r - s e i n c o n t a m i n a d o do m u n d o " (1 .27) . U s a n d o a e x p r e s s ã o p o s i t i v a m e n t e , i s to s ign i f i ca ser f ie l a D e u s no m e i o de todas as t en t ações e p r e s sões do m u n d o . Por " m u n d o " ele quer s igni f icar a soc iedade mater ia l is ta e pagã c o m u m a s imples m e n s a g e m : se v o c ê n ã o t em, cons iga !

M a s es te n ã o é o c a m i n h o cr is tão , adver t e T iago . O c a m i n h o cr i s tão é o de Jó, que fo i pac i en t e no s o f r i m e n t o (5 .10,11) , e o c a m i n h o d e El ias , q u e c o l o c o u toda a sua ene rg ia na o ração (5 .16-18) . D e u s é " c i u m e n t o " e m re lação a nós , ane lando por u m amor não dividido (4.5), susp i rando por afas tar-nos do adul tér io esp i r i tua l que os p ro fe t a s e n c o n t r a r a m e c o m b a t e r a m n o an t igo Is rae l (4.4) . E é n i s to que o d inhe i ro p o d e ser u m a c i l ada p a r a todos nós . S e n d o pob re s ou r icos , p o d e m o s c o n c e n t r a r n o s s o s d e s e j o s e m co i sas mate r ia i s , de m o d o q u e n o s t o r n a m o s de " â n i m o d o b r e " [ incons tan tes ] (1 .8; 4 .8) , inf ié is ao Senhor .

Q u e os cr is tãos s e j a m " r icos e m f é " e se a l e g r e m p o r s e r e m "he rde i ros do r e ino" (2.5). Q u e e les e n c o n t r e m e m D e u s sua r iqueza . Q u e se h u m i l h e m " n a p r e sença do S e n h o r " (4.10), s e j a m suje i tos a D e u s (4.7), s e j am cheios de o rações e l ouvo re s (5 .13-18) , e s e j a m "pac ien te s até à v i n d a d o S e n h o r " (5.7).

A v ida cristã, de a c o r d o c o m Tiago , " o Jus to" , é, pois , e s s e n c i a l m e n t e u m a v ida de san t idade prá t ica . E l a in ic ia de f a t o c o m a f é e m n o s s o S e n h o r J e sus Cr i s to (2.1) , m a s o c r i s tão ac rescen ta : " . . .e eu , c o m as obras , te mos t r a r e i a m i n h a f é " 2 .18) .

Leitura adicional

Menos exigente: James T. Draper, Faith That Works: Studies in James (Wheaton: Tyndale House, 1988) J. A. Motyer, The Message of James: The tests offaith (Leicester: IVP, 1985)

Mais exigente, obras eruditas: James B. Adamson, James. The Man and His Message (Grand Rapids: Eerdmans, 1989) P. J. Hartin, James and que Q Sayings of Jesus (Sheffield: JSOT Press, 1991) Pedrito U. Maynard-Reid, Poverty and Wealth in James (Maryknoll: Orbis, 1987)

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Pedro e sua Mensagem Alegrai-vos na medida em que sois co-participantes dos sofrimentos de Cristo, para que também na revelação de sua glória vos alegreis exultando. Se, pelo nome de Cristo, sois injuriados, bem-aventurados sois, porque sobre vós repousa o Espírito da glória e de Deus. (1 Pedro 4.13,14)

Paulo a f i rma que as três graças cristãs superiores são a fé , a esperança e o amor (1 Corínt ios 13.13). Se ele própr io é o apóstolo da fé , e João é o apóstolo do amor, então Pedro é o apóstolo da esperança. N ã o há dúvida de que esta é u m a s impl i f icação forçada.

A pr imeira carta de Pedro t em u m a m e n s a g e m mais ampla do que esta. C o m o a f i r m a E . G . S e l w y n , u m f a m o s o c o m e n t a d o r b r i t ân ico , 1 P e d r o é " u m microcosmo da fé e do dever cristãos, o mode lo de u m ofício pastoral, compos to de diversos materiais e numerosos temas" . Todavia , a pr incipal ênfase da carta incide sobre nossa esperança cristã, u m a esperança gloriosa e certa que nos habil i ta a suportar o sof r imento c o m paciência, e m e s m o c o m alegria. C o m o nosso Mes t re antes de nós, devemos sofrer antes de entrar na glória.

Pedro, o autor A primeira carta de Pedro tem sido aceita c o m o autêntica desde os pr imeiros d ias . E l a é c i t a d a p o r C l e m e n t e de R o m a e m s u a ca r t a aos C o r í n t i o s , c o s t u m e i r a m e n t e d a t a d a de 9 6 d .C . , e m b o r a C l e m e n t e n ã o m e n c i o n e espec i f icamente Pedro c o m o o autor. Entretanto, desde os t empos de Irineu para f rente a carta t em sido regularmente ci tada c o m o sendo de Pedro, e, a lém disso, ela f igura na lista compi lada por Eusébio ao lado das obras do N o v o Tes tamento que estão ac ima de discussão.

A autoria da carta tem, contudo, sido discut ida em anos recentes, e m grande parte devido ao seu excelente esti lo grego, que, objeta-se, d i f ic i lmente poder ia supor-se ter v indo de u m inculto pescador galileu. Entretanto, as re f inadas qual idades literárias da carta p o d e m ser melhor explanadas supondo-se que Silas, que é menc ionado e m 5.12, era para ele mais do que u m mero secretário. Ali Pedro a f i rma que escreveu "por meio de Silas [Silvano]", ou através dele, e pode mui to bem ser que Silas tivesse uma participação na compos ição da car ta— talvez dando- lhe f o r m a a partir de notas ditadas.

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Silas

Silas (ou Silvano) era evidentemente uma figura proeminente nos anos iniciais da igreja. Ele acompanhou Paulo numa parte de sua segunda viagem missionária (Atos 15.40; 16.19,25; 17.4,10,14; 18.5), e era um profeta (Atos 15.32). Ele estava também associado a Paulo e Timóteo na redação das cartas aos Tessalonicenses (1 Tessalonicenses 1.1; 2 Tessalonicenses 1.1). Pedro tinha por ele, nitidamente, uma elevada consideração, chamando-o "fiel irmão" (1 Pedro 5.12).

É improvável que Pedro tivesse usado uma pessoa tão proeminente e dotada simplesmente como um secretário ou copista. Contudo, Pedro não inclui o nome de Silas em sua saudação (1 Pedro 1.1). Portanto, mesmo que Silas tivesse participado da composição da carta, Pedro a considerou como sua, assumindo sua própria autoridade (veja, p.ex., 5.1).

A au tor ia de P e d r o é m a i s ad ian te su s t en t ada p o r u m a série d e carac ter í s t icas na car ta que suge rem suas reminiscênc ias pessoais . E l e havia t ido u m a express iva e x p e r i ê n c i a d a " v i v a e s p e r a n ç a " , q u e v e i o g l o r i o s a m e n t e " m e d i a n t e a r e s su r re i ção de Je sus Cr i s to den t re os m o r t o s " (1 P e d r o 1.3); e le hav ia s ido t a m b é m " t e s t e m u n h a d o s s o f r i m e n t o s d e C r i s t o " (5 .1) , l e m b r a n d o - s e d a s b o f e t a d a s r eceb ida s p o r E l e (2 .20 ,21) e seu s i lênc io d ian te de seus ag res so res (2 .22 ,23) ; e e le não p o d i a j a m a i s e squece r - se da t r íp l ice o r d e m do B o m Pas to r p a r a q u e apascen ta s se as suas o v e l h a s ( João 2 1 . 1 5 - 1 7 ; c o m p a r e c o m 1 P e d r o 5 .2) .

D e s d e os p r ime i ros t e m p o s dúv idas ma i s sérias c e r c a r a m a au tor ia da s e g u n d a car ta . E l a e v i d e n t e m e n t e i nd i ca ter p r o v i n d o das m ã o s de P e d r o (1.1), e p a r e c e re fe r i r - se à p r i m e i r a ca r t a (3.1) , m a s o es t i lo é c o n f u s o e c o m p l i c a d o , e os e s tud iosos se i n t e r r o g a m se du ran t e a v ida de P e d r o as car tas d e P a u l o p o d i a m ter s ido c o n s i d e r a d a s c o m o "Esc r i tu ra s" , l ado a l ado c o m o Ve lho T e s t a m e n t o (3 .16) .

E s t e s e ou t ro s a r g u m e n t o s são sér ios , m a s n ã o c o n c l u s i v o s . Se S i las f o i r e s p o n s á v e l pe lo es t i lo po l i do da p r ime i r a car ta , s e g u e - s e q u e o g r e g o r u d e d a s e g u n d a p o d e r i a ser d o p róp r io Pedro . A l é m disso, p l e n a r e l e v â n c i a d e v e ser a t r ibu ída à a f i r m a ç ã o do au tor de ter e s t ado p re sen te na t r a n s f i g u r a ç ã o (1 .16-18), de ter r e c e b i d o dos láb ios de Je sus u m a p r o f e c i a a r e spe i to de sua p r ó p r i a m o r t e (1 .13 ,14 ; c o m p a r e c o m J o ã o 21 .18 ,19) , e de ter c o n h e c i d o " n o s s o a m a d o i r m ã o P a u l o " (3 .15) .

S e a c a r t a n ã o f o i e s c r i t a p o r P e d r o , e n t ã o e s s a s r e f e r ê n c i a s f o r a m d e l i b e r a d a m e n t e f ic t íc ias , inser idas pe lo au tor a f i m de cr iar u m a a p a r ê n c i a de au ten t ic idade .

E m b o r a o m u n d o an t igo es t ivesse abe r to a tais " p s e u d o - e p i g r a f i a s " , c o m o é chamada , há ev idênc ia de que a prá t ica não era acei tável na igreja inicial. M i c h a e l G r e e n r e f e r e - s e à h is tór ia , r eg i s t r ada por Ter tu l iano , do q u e a c o n t e c e u ao au to r da o b r a d o s e g u n d o século , Os Atos de Paulo e Tecla. N ã o se t ra ta de u m a o b r a heré t ica , m a s o au tor f o i d e p o s t o d o o f í c io c o m o p resb í t e ro p o r ter c o l o c a d o seu escr i to sob o n o m e de Pau lo . D e q u a l q u e r f o r m a , a " p s e u d o - e p i g r a f i a " pa rece r i a i n c o m p a t í v e l c o m a ê n f a s e na ca r t a sob re p i e d a d e e v e r d a d e (p.ex. , 1.5-7; 2 .2 ,3) . U m a ex t ensa r ev i são d a ev idênc i a l eva M i c h a e l G r e e n à c o n c l u s ã o de que " a c o n j e t u r a con t r a a Ep í s to l a de f a to n ã o pa rece , d e q u a l q u e r m o d o , cons t rangedora . N ã o se p o d e demons t r a r conc lus ivamen te que P e d r o fo i o autor ;

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1 3 0 HOMENS COM UMA MENSAGEM

m a s d e v e ser d e m o n s t r a d o c o n v i n c e n t e m e n t e q u e e le n ã o fo i " .

Pedro, a pessoa S i m ã o P e d r o é, ta lvez , o ma i s ca t ivan te de t odos os esc r i to res do N o v o Testa-m e n t o . E le f i g u r a d e s t a c a d a m e n t e nas nar ra t ivas do E v a n g e l h o e na par te inicial de Atos , e suas notór ias f r aquezas , b e m c o m o sua p rod ig iosa energia , va lo r i zam-no d ian te do le i tor cr is tão.

C o m o seu i r m ã o A n d r é , S i m ã o e ra pescador . E les e r a m sócios , j u n t a m e n t e c o m outra d u p l a de i rmãos , J o ã o e T iago , os f i lhos de Z e b e d e u (Lucas 5 .10) . E les v i e r a m de Betsa ida , na m a r g e m nor te do m a r da Gal i lé ia (João 1.44), p o r é m m a i s t a rde S i m ã o e s t a b e l e c e u seu lar e m C a f a r n a u m ( M a r c o s 1 .21,29) , na m a r g e m noroes te do lago, onde v iv ia c o m sua esposa , sua sogra e A n d r é ( M a r c o s 1 .29,30; c o m p a r e c o m 1 Cor ín t ios 9 .5) .

N ã o é d i f íc i l i m a g i n a r o t e m p e r a m e n t o de S i m ã o n a q u e l e s p r ime i ros dias . C o m o d i s c í p u l o , e l e e r a o u s a d o e m e x t e r i o r i z a r c o m f r a n q u e z a e a l g u m es ta rda lhaço seus sen t imentos (p.ex., João 13.6-9; M a t e u s 26.33) , e na tu ra lmen te to rnou- se o l íder de t odo o g rupo . E l e é c i t ado e m p r i m e i r o luga r e m todas as l is tas dos após to los , t e n d o ag ido c o m o seu po r t a -voz (p.ex. , M a t e u s 16.15,16) . P o d e m o s i m a g i n á - l o u m j o v e m n o r t i s t a i n t r é p i d o c o m u m a d i s p o s i ç ã o d e s o r d e n a d a . E bas t an te s ign i f i ca t ivo , po is , q u e Je sus o t e n h a a p e l i d a d o de " a R o c h a " (ou Pedra ) . E s t e j o v e m i m p u l s i v o se to rnar ia a só l ida e es tável f u n d a ç ã o sob re a qua l a ig re ja ser ia cons t ru ída ( M a t e u s 16.18).

P o r é m h á m a i s a ser di to. S i m ã o e ra u m gal i leu, e a Gal i lé ia e ra u m no tó r io c a m p o fér t i l d e e spe ranças m e s s i â n i c a s r evo luc ioná r i a s . N a Gal i lé ia , ma i s do que e m Je rusa l ém, as p e s s o a s a g a r r a m - s e às p ro fec i a s q u e p r o m e t i a m a r eve r são dos des t inos de Is rae l e o e s t a b e l e c i m e n t o do R e i n o de D e u s . E l e s a n s i a v a m pe lo dia e m q u e o Mess i a s acabasse c o m a o c u p a ç ã o r o m a n a do país . O in t rép ido S i m ã o p r o v a v e l m e n t e p a r t i c i p a v a d e s s e s a n s e i o s r e v o l u c i o n á r i o s . O t e m p e r a m e n t o e o a m b i e n t e c o m b i n a v a m p a r a f aze r de le u m daque le s j u d e u s q u e e s p e r a v a m a r d e n t e m e n t e " a r e d e n ç ã o de J e r u s a l é m " ( L u c a s 2 .38) , " a c o n s o l a ç ã o de I s rae l " (Lucas 2 .25) , e o " r e ino de D e u s " ( M a r c o s 15.43).

N ã o é surpresa, por tan to , que q u a n d o a not íc ia c h e g o u a e les d e q u e u m p ro fe t a t inha aparec ido n o deser to da Judéia , S i m ã o e seus amigos d e i x a r a m sua pescar ia e v i a j a r a m ao sul pa r a ouvi - lo . S e m dúv ida , J o ã o Ba t i s t a a t ra iu mu i to s q u e e s p e r a v a m q u e e le f o s s e u m l iber tador p ro fé t i co , l i de r ando u m levan te con t ra R o m a . I n f l a m a d o de ze lo r evo luc ionár io , S i m ã o fo i b a t i z a d o p o r J o ã o e to rnou-se seu d isc ípu lo . En t re tan to , J o ã o a p o n t a v a pa ra out ro , a q u e m S i m ã o descobr iu ao ser p r o c u r a d o p o r seu i r m ã o A n d r é e o u v i r d e l e as v i b r a n t e s p a l a v r a s : " A c h a m o s o M e s s i a s ! " ( João 1 . 4 1 ) — q u e r e n d o d izer n ã o João , m a s Jesus .

Es t a fo i a p r i m e i r a a p r e s e n t a ç ã o de S i m ã o àque le q u e deve r i a to rnar -se o o b j e t o de todas as suas e spe ranças . E l e o a c o m p a n h o u , ouv iu -o , o l h o u - o e admi rou -o . G r a d u a l m e n t e , a cen te lha da c o n v i c ç ã o c r e sceu den t ro dele , a té que , e m Cesa ré i a de Fi l ipe , en t re as co l inas e ao p é d o m o n t e H e r m o m , ela exp lod iu e m c h a m a s c o m sua g r a n d e c o n f i s s ã o de fé : "Tu és o Cr is to , o F i l h o do D e u s v i v o ! " (Ma teus 16.16). Sua e s p e r a n ç a e s t ava rea l izada . Es te é o m o m e n t o su-p r e m o de sua ex is tênc ia . O M e s s i a s t inha c h e g a d o . J e sus ace i tou o t í tulo, d i sse a S i m ã o que f o r a o Pai que lhe hav ia r eve l ado es ta ve rdade , p ro ib iu os d isc ípulos de contar a out ros que Ele era o Cris to (Mateus 16.20), e c o m e ç o u imed ia t amen te a mos t ra r - lhes " q u e lhe era necessá r io segu i r p a r a J e r u s a l é m e so f r e r mu i t a s

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PEDRO E SUA MENSAGEM 1 3 1

O nome Pedro O nome original de Pedro era o grego Simão. Não era incomum aos judeus o uso de nomes gregos, especialmente na Galiléia, e o irmão de Simão, André, também tinha nome grego. De acordo com João 1.42, Jesus deu a Simão o apelido "Pedro", quando o encontrou pela primeira vez. Este nome tinha as versões tanto grega ("Pedro") como aramaica ("Cefas"): em ambas as línguas ele significava "a Rocha" (ou Pedra).

Foi, porém, somente mais tarde em seu ministério que Jesus revestiu este apelido de significação mais profunda, apontando para o

papel fundamental de Pedro na igreja. Nos primeiros capítulos de Atos, Pedro foi efetivamente o líder da igreja de Jerusalém (Atos 1.15; 2.14; 5.3; compare com Gálatas 1.18; 2.9).

Paulo habituou-se a usar a forma aramaica do nome de Pedro (p.ex., 1 Coríntios 1.12; 3.22; 9.5), expressando assim talvez sua apreciação pelo íntimo relacionamento de Pedro com Jesus, o que os fazia voltar ao tempo em que o aramaico, não o grego, era a língua falada por Jesus e seus discípulos.

coisas. . . e ser m o r t o " (Ma teus 16.21). Is to e n s e j o u u m a l ição e x t r a o r d i n a r i a m e n t e d i f íc i l de S i m ã o ass imilar . Sua

p r i m e i r a r e a ç ã o à p r e d i ç ã o de Je sus de s o f r i m e n t o e m o r t e f o i de h o r r o r e n e g a ç ã o . O M e s s i a s n ã o p o d i a ser mor to . E le s e g u r a m e n t e ve io p a r a reinar , n ã o pa ra morrer . P o r i s so e le m a n i f e s t o u sua su rp resa e d e c e p ç ã o : " T e m c o m p a i x ã o de ti, Senhor ; isso de m o d o a l g u m te acontecerá!" (Mateus 16.22). M a s a respos ta de Jesus fo i a inda m a i s abrup ta , na v e r d a d e q u a s e v io len ta : " A r r e d a ! Sa t anás ; tu és pa ra m i m p e d r a de t ropeço , p o r q u e n ã o cogi tas das co i sas de Deus , e s im das dos h o m e n s " ( M a t e u s 16.23).

Foi , p a r a Jesus , u m a tentação p e n s a r q u e p o d e r i a ser u m M e s s i a s do t ipo d e s e j a d o p o r P e d r o — v i t o r i o s o , r e inando , exa l tado . O d isc ípulo , que t inha s ido p o u c o antes rec ipiente da r eve lação do Pai, fo i e m segu ida ob je to da m a q u i n a ç ã o do D iabo . Po i s J e sus n ã o t inha v i n d o p a r a expu l sa r as l eg iões r o m a n a s da Terra P r o m e t i d a ; E l e t inha v i n d o p a r a m o r r e r pe los p e c a d o s do m u n d o . O c a m i n h o p a r a seu t rono es tava no t opo da co l ina do Ca lvá r io . E l e dev ia so f r e r an tes q u e p u d e s s e en t rar e m sua glór ia ; o p r e ç o de sua c o r o a era u m a cruz .

M a s P e d r o não pod ia c o m p r e e n d e r e não mod i f i ca r i a suas p revenções . A p e n a s u m a s e m a n a depo i s e le v iu Je sus t r ans f igura r - se , ve s t i do e m sua g lór ia real , e suas p r e v e n ç õ e s a c a b a m s e n d o c o n f i r m a d a s — m u i t o e m b o r a e le ouv i s se J e sus f a l a n d o c o m M o i s é s e E l ias sobre " s u a par t ida , q u e ele e s t ava pa ra c u m p r i r e m J e r u s a l é m " (Lucas 9 .31) , e m u i t o e m b o r a Jesus t ivesse f a l a d o r e p e t i d a m e n t e de seu p r ó x i m o s o f r i m e n t o e m o r t e ( M a r c o s 8.31; 9 .31 ; 10 .33 ,34 ,45) .

A s s i m , q u a n d o c h e g a o m o m e n t o , P e d r o ten ta resist ir . N o cenácu lo , e le no p r inc íp io n ã o pe rmi t e q u e seu S e n h o r f a ç a o t r aba lho de u m e s c r a v o e lave seus p é s ( l o ã o 13.6-8) . N o j a r d i m d o G e t s ê m a n i r e s i s t e à p r i s ã o de Je sus p e l o d e s t a c a m e n t o : saca sua espada , d á u m a e s t o c a d a n o escuro , co r t a a o r e lha de M a l c o , o se rvo d o s u m o sace rdo te ( João 18.10). E l e n ã o p o d e pe rmi t i r q u e o R e i se ja ap r i s ionado s e m luta! M a s ele d e v e sent i r -se f r u s t r a d o e c o n f u s o c o m a r e spos t a de Jesus ao seu h e r o í s m o : " M e t e a e s p a d a n a ba inha ; n ã o bebe re i eu, po rven tu ra , o cá l ice q u e o Pa i m e d e u ? " ( João 18.11).

D ú v i d a s t a lvez a p e r t a v a m seu c o r a ç ã o q u a n d o e le s egu ia J e sus "à d i s t ânc i a " ( M a r c o s 14.54) e m d i reção ao j u l g a m e n t o e m o r t e q u a s e cer ta . Ter ia e le se e n g a n a d o ? N ã o ser ia es te o M e s s i a s , a f ina l de con ta s? E le t inha a l a r d e a d o q u e es tava p r e p a r a d o até m e s m o p a r a m o r r e r c o m E l e ( M a r c o s 14.31), mas , c o m o pod ia ele pres tar l ea ldade a u m R e i venc ido , r e je i t ado até p o r sua p rópr ia n a ç ã o ? E ve io o tes te f inal , e e le n e g o u Jesus , n ã o u m a , m a s três vezes . E e le en t rou

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1 3 2 HOMENS COM UMA MENSAGEM

A Igreja do Santo Sepulcro, Jerusalém, fica no provável local onde Jesus morreu e foi sepultado.

pe la no i te c h o r a n d o a m a r g a m e n t e , l ág r imas n ã o apenas de r e m o r s o m a s de c rue l des i lusão . N ã o h á d ú v i d a de q u e ele segu iu a m u l t i d ã o até ao Gó lgo t a . E l e v iu o f im . A espe rança q u e ele t inha a l imen tado se ext inguira . O M e s s i a s es tava mor to .

É di f íc i l i m a g i n a r os do i s d ias de a g o n i a pe los qua i s S i m ã o P e d r o p a s s o u en tão . M a s n ã o é d i f íc i l sent i r c o m e le a f o r m i d á v e l exc i t ação do D i a da P á s c o a . E l e co r reu ao t ú m u l o j u n t a m e n t e c o m J o ã o ( João 20 .1 -10) . O t ú m u l o e s t ava vaz io . O c o r p o t i nha - se ido. E m s e g u i d a e le se e n c o n t r a c o m o S e n h o r (1 Cor ín t ios 15.5). N ã o s a b e m o s o q u e fo i d i to nes t a en t rev i s t a p r ivada . P o r é m s a b e m o s q u e S i m ã o P e d r o r e c e b e u a r e g e n e r a ç ã o " p a r a u m a v iva e s p e r a n ç a m e d i a n t e a r e s su r re i ção de Je sus Cr i s to den t re os m o r t o s " (1 P e d r o 1.3). E l e se sent iu l i t e ra lmente u m h o m e m renasc ido .

S a b e m o s t a m b é m q u e n a no i t e d a q u e l e p r i m e i r o D i a da P á s c o a o S e n h o r apa receu aos após to los e m J e r u s a l é m e r epe t iu o q u e t i nha d i to a n t e r i o r m e n t e n o c a m i n h o pa ra E m a ú s . " Ó nésc ios" , d i ssera E l e aos dois d i sc ípu los , "e t a rdos de c o r a ç ã o p a r a crer t u d o o q u e os p r o f e t a s d i s s e r am! P o r v e n t u r a n ã o c o n v i n h a q u e o Cris to padecesse e ent rasse n a sua g lór ia?" A seguir l e m o s que " c o m e ç a n d o p o r Moi sé s , d i sco r rendo p o r todos os p ro fe tas , expunha - lhe s o q u e a seu respe i to cons t ava e m todas as Esc r i t u r a s " (Lucas 24 .25 -27) . P o r isso, ago ra n o c e n á c u l o E l e do m e s m o m o d o en fa t i za o cumprimento da Esc r i t u r a a r e spe i to de sua m o r t e e ressur re ição .

Q u e P e d r o t e n h a a p r e n d i d o es ta l i ção deduz - se c l a r a m e n t e de seus s e r m õ e s nos pr imei ros capí tulos de Atos . " V ó s o matastes . . . p o r é m D e u s o ressusci tou. . .do q u e todos nós s o m o s t e s t e m u n h a s " : is to r e s u m e sua m e n s a g e m . E l e n ã o m a i s se e n v e r g o n h a v a dos s o f r i m e n t o s do Cr is to , p o r q u e , e m b o r a e les t i v e s s e m s ido c a u s a d o s " p o r m ã o s de in íquos" , f o r a m t a m b é m par t e do " d e t e r m i n a d o des ígn io e p r e sc i ênc i a de D e u s " (Atos 2 .23) . D i s s e ele no t emp lo : " D e u s a s s i m c u m p r i u o q u e dan tes a n u n c i a r a p o r b o c a de todos os p r o f e t a s q u e o seu Cr i s to h a v i a de p a d e c e r " (3 .18) . M a s ago ra E l e f o i l e v a n t a d o e exa l t ado p a r a ser "P r ínc ipe e Sa lvado r " , a f o n t e d e p e r d ã o p a r a t odos os q u e se a r r e p e n d e m e c r ê e m (Atos

A Escritura cumprida A tristeza dos dois discípulos no caminho de Emaús teria sido imediatamente eliminada se Jesus tivesse revelado sua identidade a eles. Porém Lucas registra a surpreendente discrição de Jesus. "Os seus olhos... estavam como que impedidos de o reconhecer" (Lucas 24.16), até que lhes tivesse ministrado um estudo bíblico mostrando a necessidade escriturística de sua morte e ressurreição. Estas foram suas palavras a todo o grupo reunido em Jerusalém:

'"São estas as palavras que eu vos falei, estando ainda convosco, que importava se cumprisse tudo o que de mim está escrito na Lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos.' Então lhes abriu o entendimento para compreenderem as Escrituras; e lhes disse: 'Assim está escrito que o Cristo havia de padecer, e ressuscitar dentre os mortos no terceiro dia, e que em seu nome se pregasse arrependimento para remissão de pecados, a todas

as nações, começando de Jerusalém'" (Lucas 24.44-47).

Podemos concluir pela leitura da primeira carta de Pedro como ele aprendeu esta lição: em seus curtos cinco capítulos há não menos de catorze citações do Velho Testamento, além de muitas alusões adicionais a ele. Toda a sua compreensão do Velho Testamento foi transformada, à medida que ele pôde verificar que ele não predizia um Messias guerreiro e vitorioso, mas um Messias que morreria e ressuscitaria. Ele escreve:

"Foi a respeito desta salvação que os profetas indagaram e inquiriram, os quais profetizaram acerca da graça a vós outros destinada, investigando atentamente qual a ocasião ou quais as circunstâncias oportunas, indicadas pelo Espírito de Cristo, que neles estava, ao dar de antemão testemunho sobre os sofrimentos referentes a Cristo, e sobre as glórias que os seguiriam" (1 Pedro 1.10,11).

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5.31; c o m p a r e c o m 2 .38 ; 3 .19 ; 4 . 12 ; 10.43) . S im , u m d ia es te P r ínc ipe ag i rá pa ra sa lvar seu p o v o e j u l g a r o m u n d o (Atos 3 .19-21 ; 10.42), m a s n ã o será neces sá r io que seus segu idores p u x e m as e spadas . T u d o o q u e e les p r e c i s a m f a z e r é e s p e r a r — e dar t e s t e m u n h o .

Ass im, o após to lo impuls ivo que pr imei ro de fendeu e depois n e g o u seu Senhor , p e r m a n e c e u i m p á v i d o p e r a n t e o s inédr io , t e n d o s ido s u b m e t i d o h u m i l d e m e n t e a u m in t e r roga tó r io . F o i a ç o i t a d o e a p r i s i o n a d o . D o r m i u u m a no i t e c o m a pe r spec t iva d e u m a e x e c u ç ã o (Atos 12.6). E , se a t r ad ição p o d e ser acei ta , e le f i n a l m e n t e m o r r e u a m o r t e de seu M e s t r e , s e n d o c r u c i f i c a d o e m R o m a du ran t e a pe r segu ição d e s e n c a d e a d a pe lo impe rado r N e r o ( compare c o m J o ã o 21 .18 ,19) . O an t igo espí r i to i n f l a m a d o e be l i coso de S i m ã o f o i subs t i tu ído pe la n o v a e v iva e s p e r a n ç a de Ped ro . C o m o seu M e s t r e , e l e c h e g a r i a à g lór ia p o r m e i o da cruz .

F o i — e a inda é — u m a dura l ição a aprender . A ten tação de nega r a neces s idade de s o f r i m e n t o é sedu to ra pa ra a ig re ja . É m u i t o m a i s a t raen te c re r n u m Cr i s to q u e n o s l i v ra do s o f r i m e n t o d o q u e através de le . M a s P e d r o n o s a p o n t a f i r m e m e n t e es te s e g u n d o Cr is to . O p r i m e i r o e ra seu s o n h o inic ia l , a b a l a d o n a q u e l a m a n h ã da ressur re ição , q u a n d o a m o r t e fo i des t ru ída p o r a l g u é m q u e a so f r eu , e n ã o a p e n a s v e n c i d a à d is tânc ia .

O s p r i m e i r o s le i tores de P e d r o p r e c i s a r a m ouv i r es ta m e n s a g e m tan to q u a n t o n ó s p r e c i s a m o s .

A mensagem de Pedro Os cr is tãos aos quais Pedro esc reveu , " e spa lhados por t o d a s " as c inco p rov ínc ias da Ás ia M e n o r (1 P e d r o 1.1), f o r a m e v i d e n t e m e n t e a m e a ç a d o s pe la pe r segu ição . Es t a n ã o e ra p r o v a v e l m e n t e u m a p e r s e g u i ç ã o of ic ia l , m a s b a s t a n t e seve ra p a r a ser c h a m a d a " p r o v a de a f l i ç ã o " (4 .12, l i t e ra lmen te " p r o v a pe lo f o g o " ) , q u e se d i s s eminou pe lo m u n d o (5.9). P e d r o lhes e sc r eveu de " B a b i l ô n i a " (5 .13) , q u e é p r o v a v e l m e n t e u m c o d i n o m e p a r a R o m a : c o m o a an t iga Bab i lôn ia , R o m a e seu i m p é r i o são ago ra o cen t ro d a o p o s i ç ã o m u n d i a l a D e u s .

O s le i tores de P e d r o t e r i am sab ido o q u e e le que r i a dizer. V i v e n d o n a Á s i a M e n o r , m u i t o s de les t i n h a m e x p e r i m e n t a d o as p r e s sões d o cu l to imper ia l , q u e e ra pa r t i cu l a rmen te fo r t e n a q u e l a área . O s e s tud iosos c o s t u m a v a m crer q u e o cu l to imper ia l e ra a lgo i m p o s t o p o r R o m a : is to é, pa r a r e f o r ç a r a l ea ldade , as au to r idades r o m a n a s e s t a b e l e c e r a m t e m p l o s à deusa " R o m a " e e x i g i r a m q u e as p e s s o a s de t o d o o i m p é r i o o f e r e c e s s e m i n c e n s o ao imperador .

M a s r e c e n t e m e n t e t o r n o u - s e c l a r o q u e se t r a t a v a , n a r e a l i d a d e , d e u m m o v i m e n t o popular , e m b o r a t a m b é m incen t ivado pelas autor idades . E m gra t idão pe los benef í c ios receb idos do gove rno r o m a n o , as popu lações locais f i n a n c i a r a m a c o n s t r u ç ã o desses t emp los , e ins t i tu í ram fe s t a s nas qua i s o i m p e r a d o r e ra a d o r a d o c o m o u m deus . N a t u r a l m e n t e e les o l h a v a m c o m m u i t a d e s c o n f i a n ç a as p e s s o a s q u e se r e c u s a v a m a aderir. M a s os c r i s tãos n ã o p o d i a m fazê - lo . A n t e o r i sco de p a r e c e r e m subver s ivos , e les se re t ra íam. P e d r o os a n i m a : " P o r q u e bas t a o t e m p o deco r r ido p a r a te rdes e x e c u t a d o a v o n t a d e dos gen t ios , t e n d o a n d a d o e m d i s s o l u ç õ e s , c u n c u p i s c ê n c i a s , b o r r a c h e i r a s , o r g i a s , b e b e d i c e s , e e m de tes táve i s idolat r ias . P o r isso, d i f a m a n d o - v o s , e s t r a n h a m q u e n ã o concor ra i s c o m eles ao m e s m o e x c e s s o de devass idão , os qua i s h ã o de p res ta r con tas àque le q u e é c o m p e t e n t e p a r a j u l g a r v ivos e m o r t o s " (1 P e d r o 4 .3-5) .

C o m o d e v e r i a m os c r i s tãos c o m p o r t a r - s e e m tais c i r cuns t ânc i a s? Q u a l é a

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PEDRO E SUA MENSAGEM 1 3 5

a t i tude do cr i s tão an te o s o f r i m e n t o n ã o m e r e c i d o ? C o m o p o d e m os c r i s tãos compe t i r c o m a a l i enação da soc iedade q u e os ce rca? Es tas são ques tões prát icas q u e P e d r o t en ta resolver , e s p e c i a l m e n t e e m sua p r i m e i r a car ta . Q u a i s são suas r e spos t a s?

1. O exemplo de Jesus P e d r o d e s v i a a a t e n ç ã o de seus le i tores de si m e s m o s p a r a Cr i s to . Se te vezes e m sua p r ime i ra car ta e le u s a as pa l av ra s " s o f r e r " e " s o f r i m e n t o " c o m re fe rênc i a a Cr i s to (1.11; 2 .21 ,23 ; 3 .18 ; 4 .1 ,13 ; 5.1) . E l e p a r e c e g lor iar -se naqu i lo q u e u m a vez re je i tou . S e g u i n d o o e x e m p l o de Jesus , os c r i s tãos d e v e m sofrer . E le u s a as m e s m a s pa lav ras " s o f r e r " e " s o f r i m e n t o " n o v e vezes e m r e f e r ênc i a aos c r i s t ãos ( 2 . 1 9 , 2 0 ; 3 . 1 4 , 1 7 ; 4 . 1 , 1 5 , 1 6 , 1 9 ; 5 .9 ,10 ) . " P a r a i s to m e s m o f o s t e s chamados , pois que t a m b é m Cris to sof reu e m vosso lugar, de ixando-vos e x e m p l o p a r a segu i rdes os seus pa s sos" , e s c r eve e le (1 P e d r o 2 .21) .

A p a l a v r a t r a d u z i d a " e x e m p l o " é ú n i c a n o N o v o T e s t a m e n t o g r e g o . E l a s ignif ica o caderno de a l fabeto do professor , que con t inha as letras que as cr ianças t i n h a m de deca lca r p a r a a p r e n d e r e m suas f o r m a s . D e igual m o d o , d e v e m o s ap rende r o a -b-c do d i sc ipu l ado cr i s tão s e g u i n d o o m o d e l o da v i d a de Jesus . Es t a s pa l av ra s são e loqüen t e s v indas da p e n a de Ped ro , q u e t inha di to: "Senhor , es tou p r o n t o a ir cont igo , t an to pa ra a pr i são , c o m o pa ra a m o r t e " (Lucas 22 .33) , e que n o e v e n t o t inha-o s e g u i d o " d e l o n g e " (Lucas 22 .54) . M a i s ta rde , na pra ia da Gal i lé ia , e le t inha o u v i d o de n o v o o c h a m a d o do Mes t r e , " s e g u e - m e " ( João 21 .19) , e es te c h a m a d o e le r e p a s s a aos seus le i tores . "E le , q u a n d o u l t r a j ado , n ã o r ev idava c o m ul t ra je , q u a n d o ma l t r a t ado não f az i a ameaças , m a s en t regava-se àque le q u e j u l g a r e t a m e n t e " (1 P e d r o 2 .23) . E les d e v e m f a z e r o m e s m o .

2. A razão para o sofrimento de Jesus P o r é m a pe rgun t a ressurge : Por que J e sus e s t abe le l ceu es te e x e m p l o ? Se os cr is tãos d e v e m sof rer s i m p l e s m e n t e p o r q u e são segu idores de Jesus , e E le so f reu s i m p l e s m e n t e p o r q u e o m u n d o o o d i a v a , s e g u e - s e q u e se r c r i s t ã o é u m a pe r spec t i va p o b r e e s e m atra t ivo. P e d r o m o s t r a a seus le i tores a g lo r iosa r a z ã o dos so f r imen tos de Jesus , u m a razão que torna d ignos de acei tação os so f r imentos dos crentes .

A m o r t e de Je sus n ã o foi u m hor r íve l ac iden te . E l e " m o r r e u [ou so f reu ] , u m a ú n i c a vez , pe los p e c a d o s , o j u s t o pe los in jus tos , p a r a conduz i r -vos a D e u s " (3 .18) . O g r a n d e o b j e t o de seus s o f r i m e n t o s era a r econc i l i ação , a p o n t e sob re o a b i s m o en t re os p e c a d o r e s e D e u s . ".. . c a r r e g a n d o e le m e s m o e m seu co rpo , sobre o made i ro , os nos sos p e c a d o s , pa ra q u e nós , m o r t o s aos p e c a d o s , v i v a m o s p a r a a j u s t i ç a " (2 .24) .

A q u i o c o n h e c i m e n t o de P e d r o d a s E s c r i t u r a s p a g a d i v i d e n d o s . A f r a s e "ca r regando . . . os nos sos p e c a d o s " r e l e m b r a a o fe r t a pe los p e c a d o s e o r i tual do b o d e exp ia tó r io no Dia da E x p i a ç ã o , n o Velho Tes t amen to . E l a t a m b é m re-corda Isaías capí tu lo 53, a p ro fec ia do " S e r v o S o f r e d o r " que m o r r e pe los pecados de out ros . P e d r o d e v e ter s ab ido q u e Je sus t inha ap l i cado es ta p r o f e c i a a si m e s m o e in t e rp re tado sua m o r t e à luz de seu ens ino (ve ja p .ex . L u c a s 22 .37) . E m 2 .22-25 P e d r o u s a c inco f r a s e s ex t r a ídas d e Isa ías 53, c o m o o q u a d r o a segui r i lustra .

A l é m do D i a da E x p i a ç ã o e d e Isa ías 53, P e d r o u s a t a m b é m os r i tua is da P á s c o a pa ra c o m p r e e n d e r e exp l ica r a m o r t e de Jesus . ".. . s a b e n d o q u e n ã o fo i m e d i a n t e co i sas cor rup t íve i s , c o m o pra ta ou ouro , q u e fo s t e s r e s g a t a d o s do

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Citações de Isaías 53 usadas por Pedro

1 Pedro 2 Isaías 53

22 dolo algum se achou em sua boca 9 dolo algum se achou em sua boca

23 quando ultrajado não revidava 3 desprezado e o mais rejeitado entre os homens

24 carregando ele mesmo... os nossos pecados 12 levou sobre si o pecado nossos pecados de muitos

24 por suas chagas fostes sarados 5 pelas suas pisaduras fomos sarados

25 estáveis desgarrados como ovelhas 6 a n d á v a m o s d e s g a r r a d o s c o m o ovelhas

Pedro tece estas citações num formoso parágrafo que alguns estudiosos acreditam pretendia ser um hino.

vos so fút i l p roced imen to q u e vossos pais vos l egaram, m a s pe lo p rec ioso sangue , c o m o d e cordeiro sem defeito e sem mácula, o s a n g u e d e C r i s t o " (1 .18 ,19) . P o r m e i o d o s a n g u e de u m co rde i ro da P á s c o a f i s i c a m e n t e pe r fe i to , os israel i tas f o r a m re sga tados da e sc r av idão n o Egi to . A g o r a , p o r m e i o do p r e c i o s o s a n g u e d o C r i s t o s e m p e c a d o a s p e r g i d o s o b r e n ó s (1 .2) , f o m o s r e d i m i d o d a p i o r e sc rav idão : n o s s o " fú t i l p r o c e d i m e n t o " .

O p ropós i t o dos s o f r i m e n t o s de Cr i s to é, po i s , e sc la rec ido . S o m e n t e p o r m e i o d a q u e l e s s o f r i m e n t o s p o d e r i a E l e e n t r a r e m s u a g l ó r i a , q u a n d o D e u s " o r e s susc i t ou den t re os m o r t o s e l he deu g l ó r i a " (1 .21) . J e s u s e s t a b e l e c e u m pr inc íp io " d a m o r t e à v ida" q u e Pedro encont ra s imbol izado na história do di lúvio (3 .20 ,21) . A á g u a q u e des t ru iu o r e s t an te do m u n d o f o i o m e i o de sa lvação pa ra N o é e sua f amí l i a , f l u t u a n d o na arca . A s s i m t a m b é m o b a t i s m o s i m b o l i z a ago ra a m o r t e c o m Cris to , a ún i ca m o r t e q u e c o n d u z à v ida . L i g a d o s a Cr is to , p o d e m o s p e n s a r e m nossos s o f r i m e n t o s c o m o s e n d o t a m b é m dele ; e p o r isso P e d r o nos diz pa ra n ã o nos s u r p r e e n d e r m o s se D e u s nos c h a m a r p a r a q u e s u p o r t e m o s a " p r o v a de a f l i ç ã o " (4 .12) . " A l e g r a i - v o s na m e d i d a e m q u e sois co -pa r t i c ipan tes dos s o f r i m e n t o s d e Cr is to , pa r a q u e t a m b é m na r e v e l a ç ã o de sua g lór ia vos a legre is e x u l t a n d o " (4 .13) . A m o r t e s i m b o l i z a d a e m n o s s o b a t i s m o to rna - se u m p r i n c í p i o d i á r i o d e v i d a , à m e d i d a q u e t r a n s f e r i m o s p a r a C r i s t o n o s s o s so f r imen tos e nos a legramos de q u e "aque le que sof reu na ca rne de ixou o p e c a d o " (4.1). A sa lvação es tá a c a m i n h o .

Es t a é u m a m e n s a g e m de g r a n d e c o n f o r t o e g r a n d e desa f io : c o n f o r t o pa ra aque le s q u e j á s o f r e m , d e s a f i o p a r a aque le s q u e e v i t a m ou n e g a m o s o f r i m e n t o .

3. Sendo povo de Deus L o g o na abe r tu ra de sua car ta P e d r o d i r ige-se aos le i tores c o m o "es t r ange i ros n o m u n d o , e spa lhados . . . " (1.1) , e r epe t e d u a s vezes ta l c o n d i ç ã o (1 .17; 2 .11) . A q u e l e era o seu p r o b l e m a . E les e r a m a l i enados do m u n d o , a n a d a p e r t e n c i a m e s o f r i a m a r e j e i ção ap l i cada a t odos os "e s t r ange i ros" . M a s e s sa a l i enação p o d e ser v is ta de ou t ro ângu lo e a p r e s e n t a d a sob ou t ro n o m e : e le ição . O q u e r e a l m e n t e os f a z d i fe ren tes é q u e D e u s os e sco lheu p a r a s e r e m seus , e d e s t a pe r spec t iva e les n ã o são e spa lhados , i so lados e re je i t ados , e s im " r a ç a elei ta , sace rdóc io real , n a ç ã o santa, p o v o de p r o p r i e d a d e exc lus iva de Deus . . . q u e antes n ã o é r e i s p o v o , m a s a g o r a sois p o v o de D e u s ; q u e n ã o t í nhe i s a l c a n ç a d o

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PEDRO E SUA MENSAGEM 1 3 7

miser icórd ia , m a s a g o r a a l canças te s m i s e r i c ó r d i a " (2 .9 ,10) . P e d r o t o m a a lguns dos g r a n d e s n o m e s u s a d o s pa ra Is rae l n o Ve lho T e s t a m e n t o (veja , p .ex . , Ê x o d o 19.5,6), e os apl ica aos seus le i tores e spa lhados . D i f i c i l m e n t e p o d e r i a h a v e r u m a desc r i ção m a i s v igo rosa da igre ja .

Pe r t encendo - se m u t u a m e n t e , eles p o d e m supor ta r - se m u t u a m e n t e a t ravés das p r o v a ç õ e s q u e e n f r e n t a m : • "Tendo p u r i f i c a d o as vossas a lmas , pe l a v o s s a o b e d i ê n c i a à ve rdade , t endo e m vis ta o a m o r f r a t e rna l n ã o f ing ido , a m a i - v o s d e c o r a ç ã o uns aos ou t ros a r d e n t e m e n t e " (1 .22) . • " S e d e t o d o s d e i g u a l â n i m o , c o m p a d e c i d o s , f r a t e r n a l m e n t e a m i g o s , mi se r i co rd iosos , h u m i l d e s " (3.8). • " A c i m a de tudo , p o r é m , t e n d e a m o r i n t enso uns p a r a c o m os out ros , p o r q u e o a m o r c o b r e m u l t i d ã o d e p e c a d o s . S e d e m u t u a m e n t e h o s p i t a l e i r o s s e m m u r m u r a ç ã o . Servi u n s aos outros , cada u m c o n f o r m e o d o m q u e recebeu , c o m o b o n s despense i ro s da m u l t i f o r m e g raça de D e u s " (4 .8-10) .

Por tanto , os cr is tãos n ã o p r e c i s a m ter rece io . D e u s es tá cons t ru indo u m a casa , f u n d a d a sob re Jesus , a ped ra angular , e t odos aque le s que p e r t e n c e m a E l e são c o m o " p e d r a s q u e v ivem. . . e d i f i c a d o s casa esp i r i tua l p a r a se rdes s ace rdóc io san to , a f i m de o f e r e c e r d e s s a c r i f í c i o s e sp i r i t ua i s , a g r a d á v e i s a D e u s p o r i n t e rméd io d e Jesus C r i s t o " (2.5). E m b o r a e s p a l h a d o s pe lo m u n d o , e les são o t e m p l o de Deus , o l uga r o n d e E l e habi ta . Por tan to , se s o f r e m , n ã o p r e c i s a m desespera r - se . E les p o d e m c o n f i a n t e s e n c o m e n d a r " s u a s a l m a s ao f ie l C r i a d o r " (4 .19) .

4. Vivendo em esperança A quar t a r e spos t a de P e d r o p a r a c o m p e t i r c o m o s o f r i m e n t o é a e s p e r a n ç a — a real qua l idade que pa rece ser a mais dif íci l de man te r q u a n d o c h e g a o sof r imento . M a s a e s p e r a n ç a d e P e d r o n ã o é u m s e n t i m e n t o v a g o e i r r a c i o n a l , o u a d e t e r m i n a ç ã o de u m obs t inado s i m p l e s m e n t e pa ra " m a n t e r a c a b e ç a l evan tada" . E s t a e s p e r a n ç a é cen t r a l i zada e m Cr i s to e a n c o r a d a na h is tór ia . E " u m a v iva e spe rança" , c r i ada pe l a r e s su r re i ção de Cr i s to (1.3) , e q u e será r ea l i zada n a sua vo l t a (1.7) . Q u a n d o E l e se r eve la r (1 .7) , n o s s a s a l v a ç ã o f ina l t a m b é m será r e v e l a d a (1.5) . E n q u a n t o isso, s o m o s " g u a r d a d o s p e l o p o d e r de Deus , m e d i a n t e a f é " (1.5) , e a té q u e Cr i s to se ja r e v e l a d o à nos sa vis ta , p o d e m o s crer e a m a r aque le que é invis ível , p o d e n d o exu l ta r " c o m alegr ia indiz ível e che ia de g ló r i a" (1.8). " P o r i sso" , e s c r e v e Ped ro , " c i n g i n d o o v o s s o e n t e n d i m e n t o , sede sóbr ios e espera i i n t e i r amen te n a g raça q u e v o s es tá s e n d o t raz ida n a r e v e l a ç ã o de Je-sus Cr i s to" (1 .13) .

Po r t an to es ta e s p e r a n ç a é f i r m e . Se p a r t i c i p a m o s dos s o f r i m e n t o s d e Cr i s to (4 .13) , c e r t a m e n t e pa r t i c ipa remos de sua g lór ia (5 .1) ; e p o d e m o s es tar s eguros de q u e os s o f r i m e n t o s q u e p a d e c e m o s e s t ã o p u r i f i c a n d o nos sa f é c o m o o f o g o pu r i f i c a o ou ro (1.7) . E s p e r a n ç a , r e a l m e n t e ! A f r a q u e z a a tual s i m p l e s m e n t e aponta pa ra a fu tu ra f i rmeza : " O D e u s d e toda a graça, q u e e m Cris to vos c h a m o u à sua e t e rna glór ia , depo i s de te rdes s o f r i d o p o r u m p o u c o , e le m e s m o vos h á de aper fe içoar , f i rmar , fo r t i f i ca r e f u n d a m e n t a r " (5 .10) .

Es ta ins i s tênc ia no f u t u r o de D e u s é u m a das ê n f a s e s vi ta is da s e g u n d a car ta d e P e d r o , e s p e c i a l m e n t e d e 2 P e d r o 3 . A q u i e l e s e i n s u r g e c o n t r a o s " e s c a r n e c e d o r e s " (2 P e d r o 3.3), q u e p õ e m e m d ú v i d a a r ea l i dade d o j u í z o f ina l . E l e p r i m e i r a m e n t e ins is te q u e v i r á r e a l m e n t e u m F i m (3.3-7) , e e m segu ida expl ica sua aparente d e m o r a (3.8-10): is to se d e v e à "pac i ênc i a " de Deus , po rque

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1 3 8 HOMENS COM UMA MENSAGEM

Ele dese j a pe rmi t i r p l e n a o p o r t u n i d a d e de a r r e p e n d i m e n t o até q u e o c o r r a o j u l g a m e n t o . F i n a l m e n t e P e d r o f o r m u l a as imp l i cações p rá t i cas pa ra os cr i s tãos : "Vis to q u e todas essas co i sas h ã o de ser a s s im desfe i tas , deve i s ser ta is c o m o os q u e v i v e m e m santo p r o c e d i m e n t o e p i edade , e s p e r a n d o e a p r e s s a n d o a v i n d a do dia de D e u s " (3.11,12). A cer teza do fu tu ro j u l g a m e n t o de D e u s é a m o t i v a ç ã o p a r a a n o s s a p re sen te san t idade .

Es t a o b s e r v a ç ã o sobre o j u l g a m e n t o n ã o es tá ausen te n a p r i m e i r a car ta : " A ocas i ão de c o m e ç a r o j u í z o pe l a ca sa de D e u s é c h e g a d a " , e x c l a m a Pedro (4.17). E l e n ã o t e m e o j u l g a m e n t o de D e u s p o r q u e sabe q u e e s sa " s a l v a ç ã o " es tá e s p e r a n d o p o r e le a t ravés de Cr i s to (1.5). En t re tan to , p r e c i s a m o s es tar p ron tos , e is to nos l eva à qu in ta r e spos t a de P e d r o s o b r e o s o f r i m e n t o :

5. Ser santos, fazer o bem A exor t ação e m 1 P e d r o 1 .13-16 é p a r t i c u l a r m e n t e impor t an te , cons t i t u indo - se n a p r i m e i r a a d m o e s t a ç ã o m o r a l aos seus le i tores . Tendo -os i n c e n t i v a d o a v ive r e m e s p e r a n ç a (13) , P e d r o c o n t i n u a : " C o m o f i l h o s d a o b e d i ê n c i a , n ã o v o s a m o l d e i s às p a i x õ e s q u e t í n h e i s a n t e r i o r m e n t e n a v o s s a i g n o r â n c i a ; p e l o cont rá r io , s e g u n d o é santo aque le q u e vos c h a m o u , to rna i -vos san tos t a m b é m vós m e s m o s e m todo vos so p r o c e d i m e n t o , p o r q u e escr i to está: ' S e d e santos , p o r q u e eu sou s a n t o ' " (14-16) . S u a s epa ração do m u n d o d e v e ser m a r c a d a p o r u m a n í t ida d i f e r e n ç a e m re lação ao m u n d o , a saber , aque la q u e m o s t r a o cará te r do p róp r io D e u s .

A exo r t ação pa ra " f a z e r o b e m " apa rece r e p e t i d a m e n t e n a pa r t e cent ra l da car ta : • " M a n t e n d o e x e m p l a r o vos so p r o c e d i m e n t o no m e i o dos gent ios , p a r a que , naqu i lo que f a l a m con t ra vós out ros c o m o de ma l f e i t o r e s , o b s e r v a n d o - v o s e m vossas b o a s obras , g l o r i f i q u e m a D e u s no d ia da v i s i t ação" (2 .12) . • " P o r q u e a s s i m é a v o n t a d e de Deus , que , pe l a p rá t i ca do b e m , f aça i s e m u d e c e r a i gnorânc ia dos i n sensa to s " (2 .15) . • Se.. . q u a n d o pra t ica is o b e m , sois i g u a l m e n t e a f l ig idos e o supor ta i s c o m pac iênc ia , i s to é gra to a D e u s " (2 .20) . • " C o m o f a z i a Sara . . . d a qua l vós [ m u l h e r e s c r i s tãs ] v o s t o r n a s t e s f i l ha s , p r a t i c ando o b e m e n ã o t e m e n d o p e r t u r b a ç ã o a l g u m a " (3.6). • "Ora , q u e m é q u e vos há de mal t ra ta r , se f o r d e s ze losos do que é b o m ? " (3 .13) . C o m es ta p e r g u n t a P e d r o conc lu i u m a l o n g a c i t ação do S a l m o 34, q u e inc lu i a exo r t ação p a r a apar ta r - se " d o mal , p ra t ique o q u e é b o m , b u s q u e a p a z e e m p e n h e - s e p o r a l cançá - l a" (3.11).

Por t an to , e m b o r a eles p u d e s s e m ser a c u s a d o s de subve r s ivos p e r a n t e R o m a , os c ren tes d e v i a m suje i ta r -se "a t oda ins t i tu ição h u m a n a p o r causa do Senhor ; quer se ja ao rei , c o m o soberano ; que r às au to r idades c o m o env i adas p o r ele, tanto pa ra cas t igo dos mal fe i to res , c o m o pa ra louvor dos q u e p r a t i c a m o b e m " (2 .13 ,14) . E l e s p o d e m a inda ser pe r segu idos , p o r é m te rão pe lo m e n o s f e i to " toda. . . d i l igênc ia" , a s s o c i a n d o "a f é à v i r t u d e " (2 P e d r o 1.5). Tal e s f o r ç o in ic ia u m a corrente de ouro e m que a vi r tude se l iga ao conhec imen to , d o m í n i o própr io , perseverança , p iedade , f ra te rn idade e amor. O resul tado é evidente : " . . .porquanto, p r o c e d e n d o ass im, n ã o t ropeçare i s e m t e m p o a lgum. Pois , des ta m a n e i r a é q u e vos será a m p l a m e n t e supr ida a en t r ada n o r e ino e t e rno de n o s s o S e n h o r e Sal-vado r Jesus Cr i s to" (2 P e d r o 1.10,11) .

A s s i m , a p r e sc r i ção f ina l de P e d r o p a r a os s o f r i m e n t o s dos cr is tãos c o n v o c a -os a n ã o permi t i r u m d e c r é s c i m o da a t iva e o b e d i e n t e e x p r e s s ã o de sua fé . S e j a m

Esta escultura do Bom Pastor, um antigo símbolo cristão, data do período bizantino e foi encontrada em Al-Minah, perto de Gaza.

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qua i s f o r e m os seus pe rca lços , d i z Pedro , n ã o d e i x e m d e f a z e r o b e m !

R e s t a - n o s a p e n a s c o m e n t a r u m t e m a carac te r í s t i co da s e g u n d a car ta d e Ped ro . E l e d e d i c a a m a i o r par te de sua car ta adve r t i ndo seus le i tores con t r a os " f a l s o s mes t r e s " que in t roduz i ram "heres ias des t ru idoras" (2.1). E s s e f a l so ens ino pa rece ter s ido u m a mi s tu r a de c e p t i c i s m o e f r o u x i d ã o mora l : u m a n e g a ç ã o da s e g u n d a v i n d a de Cr i s to e do f u t u r o j u l g a m e n t o (3 .3-13) , a c o m p a n h a d o da en t rega de suas v idas aos p raze re s sensua i s (2 .13-22) . O a rden te ze lo dos p r i m e i r o s a n o s de P e d r o f a í s c a de s u a p e n a e n q u a n t o e l e e x p õ e , e m p a l a v r a s d e e x t r e m a indignação , a in iqü idade i m p u d e n t e desses f a l sos mes t res e seu t eneb roso des t ino (2.1-10).

E l e m o s t r a t a m b é m c o m o seus le i tores p o d e m c o n t i n u a r n a v e r d a d e s e m vaci lar , depo i s de sua m o r t e (1 .13-21) . E les t e rão a inda d u a s f o n t e s d e e n s i n o idôneo : a pa lav ra apostólica escr i ta (15), b a s e a d a não e m mi tos q u e os após to los t e n h a m inven tado , m a s n a h is tór ia q u e e les h a v i a m t e s t e m u n h a d o (16-18) , e a p a l a v r a profética escr i ta (19-21) . O s após to los do N o v o T e s t a m e n t o apenas c o n f i r m a r a m os p ro fe t a s do Velho Tes t amen to . E e s ses p r o f e t a s " f a l a r a m da pa r t e de D e u s " (isto é, c o m sua au to r idade) , n ã o p o r seu p róp r io impu l so , m a s q u a n d o e r a m i r res i s t ive lmente m o v i d o s p e l a i n sp i r ação do Esp í r i to S a n t o (21) .

P e d r o dese j a p o u p a r seus le i tores d a c a l a m i d a d e f ina l , q u e é a de se d e s v i a r e m do evange lho , o ú n i c o m e i o q u e lhes p o d e a s segura r a e s p e r a n ç a n u m m u n d o de s o f r i m e n t o . " V ó s , pois , a m a d o s , p r e v e n i d o s c o m o es ta is d e a n t e m ã o , acaute la i -vos ; n ã o suceda que , a r ras tados pe lo e r ro des ses i n subo rd inados , desca ia i s da vossa própr ia f i rmeza ; antes , crescei na graça e no conhec imen to de nosso Senho r e Sa lvado r J e s u s Cris to . A e le s e j a a glór ia , t an to ago ra c o m o n o d ia e t e r n o " (2 P e d r o 17 ,18) . O p r o f u n d o a m o r d e P e d r o p o r seu S e n h o r , e s u a a r d e n t e d e t e r m i n a ç ã o de v iver e x c l u s i v a m e n t e pa ra Ele , b r i l h a m a t ravés des tas pa lav ras de e n c e r r a m e n t o d e sua s e g u n d a carta .

Leitura adicional

Menos exigente: Carsten P. Thiede, Simon Peter: From Galilee to Rome (Exeter: Paternoster, 1986) Edmund P. Clowney, The Message of 1 Peter: The Way of the Cross (Leicester: IVP,

1988)

I. Howard Marshall, 7 Peter (Downers Grove: InterVarsity Press, 1991)

Mais exigente, obras eruditas: John H. Elliott, A Home for the Homeless. A Sociological Exegesis of 1 Peter, Its Situa-

tion and Strategy (Londres: SCM, 1982) Michael Green, 2 Peter Reconsidered (Leicester: IVP, primeira publicação 1961)

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A Mensagem de Apocalipse O reino do mundo se tornou de nosso Senhor e do seu Cristo, e ele reinará pelos séculos dos séculos. (Apocalipse 11.15)

Apocal ipse está b e m si tuado c o m o o ú l t imo livro do N o v o Testamento. Ele foi p rovave lmente u m dos úl t imos a serem escritos. Mais do que qualquer outro livro, ele encaminha seus leitores ao fu tu ro que D eu s p lanejou para o m u n d o e para a igreja. Seu retrato de Jesus é u m resumo convincente de todas as coisas que os restantes livros do N o v o Testamento esc revem sobre Ele. E, enquanto a maior parte dos l ivros do N o v o Tes tamento foi escrita para grupos específ icos de cristãos, Apocal ipse parece ter sido escrito conscientemente para toda a igreja, e m todos os tempos e lugares. Ass im, por todas estas razões, ele traz o N o v o Tes tamento a u m a conclusão apropr iada e a l tamente inspirada.

Apocal ipse teve u m a história marcada por vicissi tudes. Ele começou bem, porque desde meados do segundo século os cris tãos acredi tavam que o " João" que o escreveu (1.4,9) era o apóstolo João. Porém, n o terceiro século surgiram dúvidas. E le é tão diferente do Evange lho de João, tanto pela l inguagem c o m o pelo con teúdo!—poder ia ele rea lmente ser do m e s m o autor? Por outro lado, naquela época vários grupos " facc iosos" passa ram a usar Apoca l ipse e m apoio de suas teorias excêntr icas a respei to de D e u s e do mundo , u m processo que desde então se man tém incontestado. Por isso, os cristãos or todoxos começaram a sentir que Apoca l ipse era u m l ivro inseguro. Foi o único l ivro do N o v o Testa-men to sobre o qual João Calv ino , o R e f o r m a d o r do século dezesseis , não escreveu u m comentár io (a lém das epístolas 2 e 3 de João). Mar t inho Lutero fo i aberto e m sua crítica: ele o re legou a u m segundo plano, a f i rmando que "Cris to não é ens inado n e m reconhecido nele" .

Entretanto, o século vinte assistiu a u m reav ivamento pelo interesse a respeito deste l ivro assombroso , tanto entre es tudiosos c o m o na igreja e m geral. E m anos recentes, a corrente de publ icações t em aumen tado aos borbotões , e mui ta luz foi lançada sobre seu contexto, propós i to e interpretação. Inevi tavelmente , e m nossa aval iação sobre a m e n s a g e m deste livro, devemos dedicar a tenção

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espec ia l aos p r inc íp ios de in t e rp re t ação a e le ap ropr i ados .

"João", o autor A iden t idade do " J o ã o " q u e e sc r eveu A p o c a l i p s e é tão indis t in ta , c o m o f o i h á mil e o i tocen tos anos . R e u n i m o s a l g u m a s co i sas sobre ele do p róp r io l ivro: 1. E l e reg is t ra a r e f e rênc i a do a n j o sob re " t eus i rmãos , os p r o f e t a s " , a qua l suge re que e le é t a m b é m u m p r o f e t a (22 .9) e seu l ivro é u m a " p r o f e c i a " (1.3; 22 .10) . Is to s ign i f i ca q u e e le e s t ava p r o f u n d a m e n t e cônsc io de seu c h a m a d o so lene pa ra t ransmi t i r a pa l av ra de D e u s aos seus le i tores (22.18) . 2. A o m e s m o t e m p o ele d e s e j a ser c o n h e c i d o apenas c o m o o " i r m ã o " de seus le i tores , e c o m o seu " c o m p a n h e i r o n a t r ibu lação , no r e ino e na pe r seve rança , e m J e s u s " (1.9). 3. N a é p o c a e m q u e e sc r eve ele se e n c o n t r a na i lha de P a t m o s , n o m a r E g e u , pa r a o n d e f o i e n v i a d o por c a u s a d a pa l av ra de D e u s e do t e s t e m u n h o de Jesus (1.9). 4. S u a p r o f e c i a é e n d e r e ç a d a às sete p r inc ipa i s ig re jas da p rov ínc i a r o m a n a da Á s i a (1.11), n o con t inen t e não m u i t o d is tan te de P a t m o s (1.9). E s t á c laro q u e e le c o n h e c e as c o n d i ç õ e s locais ( tan to g e o g r á f i c a s c o m o espir i tuais) , e sabe que p o d e esc rever - lhes c o m u m a au to r idade q u e e les r e c o n h e c e m . 5. E le usa u m es t i lo g r ego ex t raord iná r io , q u e t e m c o n f u n d i d o os le i tores d e s d e en tão . A l g u n s c o n c l u í r a m que o g r e g o n ã o e ra sua p r i m e i r a l íngua , e n q u a n t o ou t ro s u g e r e m q u e e le d e l i b e r a d a m e n t e q u e b r a as regras da g r amá t i ca g r ega p o r q u e es tá d e s c r e v e n d o coisas q u e u l t r a p a s s a m a c a p a c i d a d e da l i n g u a g e m h u m a n a . 6. E l e e ra p r o f u n d a m e n t e v e r s a d o nas Esc r i tu ras do Velho Tes tamen to , o q u e sugere que ele era j udeu . A l é m disso, e le t a m b é m es tava c la ramente fami l ia r izado na t r ad ição "apoca l íp t i ca" . Isto é i lus t rado n o Velho T e s t a m e n t o por D a n i e l e Zaca r i a s , e vá r ios ou t ros j u d e u s " a p o c a l í p t i c o s " s o b r e v i v e r a m nos pe r íodos in t e r t e s t amen tá r io e neo t e s t amen tá r io . A p o c a l i p s e t e m m u i t o e m c o m u m c o m eles , m a s t a m b é m d i f e re n o t a v e l m e n t e deles .

N ã o p o d e m o s co lhe r m a i s do q u e is to do p rópr io l ivro. A p r i m e i r a vis ta , t odos es tes p o n t o s p o d e r i a m a jus ta r - se à t rad ic iona l a t r ibu ição do l ivro a João , o após to lo d e Je sus e f i l ho de Z e b e d e u . C o n t u d o , o qu in to pon to ap resen ta u m a d i f i cu ldade . Fo i Dion í s io , b i s p o de A l e x a n d r i a (247-65 d.C.) , q u e m p r ime i ro d i sco rdou des sa a t r ibuição, p o r c a u s a das d i f e r enças tan to na l i n g u a g e m c o m o n o c o n t e ú d o en t re A p o c a l i p s e e os ou t ros escr i tos a t r ibu ídos a João : " E l e ma l t e m u m a s í laba e m c o m u m c o m e l e s ! " E e n t ã o conc lu i : " N ã o p o s s o de b o a v o n t a d e c o n c o r d a r q u e o autor f o i o após to lo , o f i lho de Z e b e d e u , o i r m ã o de T i a g o . "

Is to levou Euséb io , an t igo h i s to r i ador da igre ja , q u e re la tou o p o n t o de v is ta de D i o n í s i o pa ra re fe r i r - se à v i são de Pap ias , b i s p o de E s m i r n a p o r vo l t a de 125 d .C. , q u e h a v i a duas f i gu ra s p r o e m i n e n t e s c h a m a d a s " J o ã o " n a v e l h a ig re ja : João , o após to lo , e ou t ro a q u e m Pap ia s c h a m a de " João , o p resb í t e ro" . E u s é b i o suger iu q u e es te s e g u n d o J o ã o f o s s e o au tor de Apoca l ip se , e m u i t o s e s tud iosos m o d e r n o s t ê m a d o t a d o sua suges tão .

H á m a i s a ser d i to , e n t r e t a n t o . D i f e r e n ç a s p o d e h a v e r , m a s h á t a m b é m s e m e l h a n ç a s m a r c a n t e s en t re o E v a n g e l h o de J o ã o e Apoca l i p se . P o r e x e m p l o : • Exc lu s ivamen te estes l ivros c h a m a m Jesus de "o Verbo" (João 1.14; Apoca l ip se

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A MENSAGEM DE APOCALIPSE 1 4 3

19.13), e dão r e l evo ao t í tulo " o C o r d e i r o " ( João 1.29,36; A p o c a l i p s e 5 .6 e t c . — vin te e oi to vezes ao todo) . • O t ema do " t e s t e m u n h o " é impor tan te e m a m b o s (p.ex., J o ã o 15.27; Apoca l ipse 12.17). • E m a m b o s os l ivros Jesus é o d o a d o r da " á g u a v i v a " [ou " á g u a da v ida"] e a r e spos ta f ina l à " f o m e " e à " s e d e " ( João 4 .10 ; 6 .35 ; A p o c a l i p s e 7 .16 ,17) . • A m b o s os l ivros p r e d i z e m a p e r s e g u i ç ã o con t ra a ig re ja ( João 15 .18-16.4 ; A p o c a l i p s e 3 .10; 13.7), p o r é m a u n i ã o f ina l c o m Cr i s to e m p r e s e n ç a de Deus , o s t en t ando seu " n o m e " (João 17 .11 ,20-26; A p o c a l i p e 22 .3-5) . • " O t e m p l o " é u m t e m a f u n d a m e n t a l nos dois l i v r o s — t a n t o o t e m p l o te r reno, e m Je rusa l ém, c o m o sua con t rapar te celest ia l .

O que d e v e m o s conc lu i r d i s to? R e v i s a n d o a ev idênc ia , o P ro f . G e o r g e Ca i rd escreveu: " E possível levantar u m a hipótese de autoria c o m u m , e m b o r a o ba lanço da p robab i l i dade a inda se ja con t ra e la . " Nós , d e cer ta f o r m a , t e m o s de f i ca r con ten te s c o m a i gno rânc i a sob re es te pon to . P a r e c e p r o v á v e l q u e o " J o ã o " de Apoca l ipse não era o João do quar to Evange lho , m a s t a m b é m h á a l g u m a c o n e x ã o en t re e les que p r o v o c o u es tas co inc idênc ia s de p e n s a m e n t o e l i n g u a g e m .

N o f ina l das contas , con tudo , sua iden t i f i cação p rec i sa não é impor tan te . M a i s c ruc ia i s são as qua l i dades de m e n t e e e x p e r i ê n c i a q u e f o r a m e m p r e g a d a s na r e d a ç ã o do l ivro. E três dessas qua l i dades r e c l a m a m c o m e n t á r i o par t icu lar :

1. João estava profundamente familiarizado com as Escrituras do Velho Testamento. Ele n u n c a c i tou f o r m a l m e n t e os tex tos do Velho Tes t amen to , p o r é m h á m a i s de qua t rocen ta s a lusões iden t i f i cáve i s a ele, e m b o r a o au to r f a ç a m a i s r e fe rênc ia s aos S a l m o s e aos p ro fe t a s , e en t re es tes e s p e c i a l m e n t e a Isa ías , Ezequ ie l , D a -nie l e Zaca r i a s .

E m mui tos casos ele r epe te a l i n g u a g e m do Velho Tes tamen to , ta lvez a l g u m a s vezes i nconsc i en t emen te , p o r é m , m a i s impor t an t e a inda , e le r eco r re às g randes idé ias e aos even tos do Velho Tes t amen to . O ê x o d o de Is rae l d o E g i t o es tá f r e q ü e n t e m e n t e e m sua m e n t e ; e a s s i m t a m b é m o ex í l io de Is rae l na B a b i l ô n i a e o seu l i v r a m e n t o o p e r a d o p o r D e u s . T o d o o t e m a da a l iança de D e u s c o m Israel é dec i s ivo pa ra ele. A t r a v é s de t odo o l ivro e n c o n t r a m o s r e f e r ênc i a s ao t emplo , seu mob i l i á r i o e acessór ios , b e m c o m o seu cul to . E p r o f u n d a m e n t e escr i ta e m sua m e n t e e c o r a ç ã o é a f é do sa lmis ta , q u e o lhava pa ra u m m u n d o gen t io que não c o n h e c i a D e u s , dec l a r ando : " R e i n a o S e n h o r " (p.ex. , S a l m o 99.1) .

João , en t re tanto , n ã o r e p r o d u z s i m p l e s m e n t e os textos ou idéias d o Velho Tes t amen to . E le os desenvo lve , e, na ve rdade , c r ia a l g u m a co i sa n o v a suge r ida p o r seus l ivros . Is to p o r q u e :

2. João era o recipiente da revelação profética. I s to c o m e ç o u q u a n d o o Esp í r i to i n sp i r ador o t o m o u no Dia do S e n h o r (1.10). U m a g r a n d e voz d i sse - lhe q u e e sc r eves se o q u e v ia e e n v i a s s e às sete ig re jas da Á s i a (1 .11) . E l e v o l t o u - s e e v iu no m e i o de se te c a n d e e i r o s d e o u r o " u m seme lhan t e a f i lho de h o m e m " (1.13). U s a n d o es ta expres são " f i lho de h o m e m " , J o ã o to rna c laras d u a s coisas : e le sabia q u e e ra J e sus a q u e m via , e sabia q u e o e s t ava v e n d o c o m o D a n i e l o t inha vis to u m a v e z — n a v i são desc r i t a e m D a n i e l 7 .9 -14 .

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1 4 4 HOMENS COM UMA MENSAGEM

E m seguida , à m e d i d a q u e desc reve o q u e v ia (1 .12-16) , J o ã o usa a l i n g u a g e m ex t r a ída de vá r ios luga res do Velho Tes t amen to : • Seu c a b e l o era c o m o o do p róp r io D e u s (Danie l 7.9) . • Seus o lhos e seu c in to e r a m c o m o aque les do p o d e r o s o a n j o q u e a p a r e c e u a D a n i e l j u n t o ao rio Tigre (Danie l 10.5,6). • Sua v o z e ra c o m o a v o z de D e u s q u e E z e q u i e l ouv iu (Ezequ ie l 1.24). • S u a b o c a e ra c o m o a do g r a n d e " se rvo do S e n h o r " , c u j a v i n d a f o i r e v e l a d a a I sa ías (49.2) . • Suas ves tes e r a m c o m o aque la s do s u m o sace rdo te (Leví t i co 8.7), e e le e s t ava de p é ao l ado de u m c a n d e e i r o c o m o o q u e hav ia no T a b e r n á c u l o o n d e o s u m o sace rdo te min i s t r ava ( Ê x o d o 25 .37) .

Insp i rado pe lo Espír i to , J o ã o tece todos esses t e m a s jun tos , e n q u a n t o desc reve sua v i s ã o sob re o Cr i s to r e s su rg ido e m sua glór ia . A s s i m f a z e n d o , J o ã o r eco r re a ve lhos t e m a s pa ra d izer a l g u m a co isa nova : es tes d i f e ren te s tex tos e t e m a s v i e r a m j u n t o s , c o n v e r g i n d o sobre Je sus Cris to . À m e d i d a q u e es te p r o c e s s o é r epe t i do segu idas v e z e s a t ravés de Apoca l ip se , Jesus to rna - se a c h a v e p a r a a c o m p r e e n s ã o de t odo o Velho Tes t amen to .

P o d e m o s i m a g i n a r o Velho T e s t a m e n t o c o m o u m f i l m e e m b r a n c o e pre to . A p o c a l i p s e é " u m f i l m e sob re a p r o d u ç ã o do f i l m e " , e m co res g lor iosas . S o m o s l evados p a r a trás das cenas e v e m o s a ação real , s o m o s ap re sen t ados ao Di re to r e t e m o s p e r m i s s ã o pa ra ouv i r por q u e o Di re to r r o d o u o f i l m e e p o r q u e ago ra r e so lveu con t inua r a h i s tó r ia n u m s e g u n d o f i lme , t endo c o m o es t re la seu P r in -cipal E x e c u t i v o .

M a s A p o c a l i p s e n ã o apenas n o s l eva atrás das cenas do Velho Tes t amen to . M a i s d o q u e isto, e le nos l eva atrás das cenas do p róp r io m u n d o . E s t e " f i l m e sob re a p r o d u ç ã o d o f i l m e " l eva -nos d i r e t amen te ao escr i tó r io do D i r e t o r — i s t o é, ao t rono do p róp r io D e u s — e o o b s e r v a m o s p r o d u z i n d o a h i s tó r ia do m u n d o , e m pa rce r i a c o m seu Pr inc ipa l Execu t ivo . I s to é " apoca l íp t i co" , u m a p a l a v r a q u e s ign i f i ca l i t e ra lmente "t irar o v é u " , p a r a q u e p o s s a m o s ve r o q u e g e r a l m e n t e f i c a e scond ido .

I s to nos l eva à t e rce i ra q u a l i d a d e q u e J o ã o n i t i d a m e n t e possu ía :

3. João tinha experimentado o ódio do mundo pela igreja. E l e t i nha s ido ap r i s ionado e m P a t m o s p o r c a u s a de seu t e s t e m u n h o . E le sab ia q u e a l g u m a s das sete ig re jas às quais e le r e c e b e u o r d e m pa ra e sc reve r j á t i n h a m s ido p e r s e g u i d a s (2 .3 ,13) , e q u e out ras o s e r i am b r e v e m e n t e (2 .10; 3 .10) .

E s t a p e r s e g u i ç ã o p a r e c e ter s ido d e v i d a g r a n d e m e n t e p e l a r e c u s a dos c r i s tãos de se a s s o c i a r e m ao cu l to do i m p e r a d o r r o m a n o . O "cu l to imper i a l " , c o m o era c o n h e c i d o , e s t ava c r e s c e n d o cons t an t emen te . Jú l io C é s a r t inha s ido dec l a r ado d iv ino p o s t u m a m e n t e e m 29 a.C., e h a v i a u m t e m p l o e m sua h o n r a e m É f e s o . T e m p l o s f o r a m er ig idos pa ra o i m p e r a d o r seguin te , Augus to , e n q u a n t o ele a inda e s t ava v ivo , e t a m b é m ao seu sucessor , Tibér io . D u r a n t e o p r i m e i r o século , o cu l to imper i a l g a n h o u i m p u l s o e m todo o impé r io . I m a g i n a - s e que A p o c a l i p s e foi escr i to duran te o re inado de D o m i c i a n o (81 -96 d.C.), que pa rece ter r ea lmen te i n c e n t i v a d o as p e s s o a s a dir igir -se d i r e t amen te a ele c o m o " n o s s o S e n h o r e D e u s " . I s to p o d e es tar r e f l e t i do e m A p o c a l i p s e 11.17; 15.3; 16.7; 19.6: h á s o m e n t e u m " S e n h o r D e u s " , e não é o i m p e r a d o r de R o m a .

N a Á s i a o cu l to era m u i t o popular . C a d a u m a das sete c idades , e x c e t o Tiat i ra , t i nha u m ou m a i s t e m p l o s ded i cados ao i m p e r a d o r q u e e s t ava n o p o d e r ou à

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A MENSAGEM DE APOCALIPSE 1 4 5

As cartas às Sete Igrejas As sete cartas em Apocalipse 2.1 -3.22 são as primeiras das várias séries de "setes" que aparecem no livro. Estas cartas são todas ditadas a João pelo Cristo ressurreto. Cada uma delas inicia com a mesma ordem: "Ao anjo da igreja em... escreve", e cada uma delas termina com a mesma mensagem: "Quem tem ouvidos, ouça o que o Espírito diz às igrejas." Em cada caso também esta mensagem é acompanhada de uma promessa: "Ao vencedor..."

Várias das cartas contêm alusões detalhadas a aspectos da história, religião ou geografia das respectivas cidades. Elas foram estudadas pelo Dr. Colin Hemer em seu livro The Letters to the Seven Churches ofAsia (As Cartas às Sete Igrejas da Asid). Ele observa, por exemplo: • Pé rgamo, "onde está o trono de Satanás" (2.13), era o centro do culto imperial para toda a região. • A cidade de Sardes orgulhava-se havia muito de ser inexpugnável por estar construída no topo de uma colina escarpada: no entanto ela caiu duas vezes à noite em mãos de inimigos, que escalaram os declives sem serem notados. Por

isso Cristo adverte a igreja ali instalada: "Se não vigiares, virei como ladrão, e não conhecerás de modo algum em que hora virei contra ti" (3.3). • Laodicéia era famosa pelo suprimento de sua água tépida e insípida, que era canalizada a partir das fontes termais até certa distância. Cristo acusa a igreja: "Conheço as tuas obras, que nem és frio nem quente. Quem dera fosses frio, ou quente! Assim, porque és morno, e nem és quente nem frio, estou a ponto de vomitar-te de minha boca" (3.15,16). • Em duas das igrejas um grupo chamado "nicolaí tas" era muito ativo (Éfeso, 2.6; Pérgamo 2.15). Isto parece ser uma referência bem local, porque não temos notícia desse grupo em qualquer outra fonte. Parece que esse grupo de cristãos não sentia qualquer dificuldade quanto à participação no culto imperial e na adoração pagã.

Todas essas e outras referências locais assinalam a informação de 1.12,13,20:

Cristo está entre os candeeiros "que são as sete igrejas". Ele conhece suas condições, bem como suas necessidades espirituais, já está bem perto delas, e pode proferir palavras de advertência e ânimo diretamente a elas.

Cada carta termina com uma referência ao "que o Espírito diz às igrejas", como se a mensagem a cada igreja fosse também dirigida às outras seis. Na realidade, podemos provavelmente ampliar o alvo e admitir que todas as outras igrejas estão incluídas aqui, não apenas outros membros das "sete". Sete é o número da completitude. Com toda probabilidade estas sete igrejas representam toda a igreja universal. Assim, todos nós podemos res-ponder às admoestações e perguntar o que o Espírito tem a dizer a cada uma das igrejas hoje, com base nessas mensagens dirigidas tão pessoalmente pelo Cristo ressurreto às igrejas do primeiro século na Ásia.

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deusa " R o m a " . O g o v e r n o loca l e ra e n v o l v i d o n o cul to . Fes tas anua i s e r a m p r o m o v i d a s , m a r c a d a s não s o m e n t e pe l a idolatr ia , m a s às vezes p o r g r a n d e i m o r a l i d a d e — e todos t i n h a m de contr ibuir pa ra o cus to delas , a l ém de part icipar. Q u a n d o a p roc i s s ão pa s sava , as p e s s o a s a p r e s e n t a v a m sacr i f íc ios e m p e q u e n o s a l tares do l ado de f o r a de suas casas . N a q u e l e t e m p o a Á s i a e ra pac í f i c a e p róspe ra , e as p e s s o a s ag radec idas a t r i bu í am is to ao g o v e r n o r o m a n o .

Q u a n d o os c r i s tão se a f a s t a v a m de t u d o isso, e r a m t idos c o m o ingra tos e des lea is . O s n ico la í tas p a r e c e m ter c e d i d o a essas p res sões e a c o n s e l h a d o os cr is tãos a c o n c o r d a r c o m a p rá t i ca p a g ã (ve ja o q u a d r o a c i m a sobre As cartas às Sete Igrejas). M a s p a r a mu i to s a c o n f i s s ã o " Je sus é S e n h o r " (1 Cor ín t ios 12.3) s ign i f i cava q u e e les n ã o p o d i a m asperg i r i ncenso sobre o f o g o q u e a rd ia d ian te da es tá tua do i m p e r a d o r e d izer " C é s a r é S e n h o r " . Ter ia s ido p o r i s so q u e J o ã o f o i ex i l ado e m P a t m o s ?

A l é m desse c o n h e c i m e n t o das c o n d i ç õ e s imed ia t a s das igre jas , J o ã o t a m b é m sab ia c o m o r e a l m e n t e era a v ida nes te g lobo . P o r t rás da p r ó s p e r a f a c h a d a da Á s i a u m a i m a g e m m u i t o ma i s f e i a se ocu l t ava . O p o d e r de R o m a b a s e a v a - s e n o p o d e r mili tar, na guer ra , na e x p l o r a ç ã o e c o n ô m i c a , no t r á f i co de e sc ravos , n o cu l to idóla t ra do d inhe i ro e d o poder , e — J o ã o o cons t a tou p o r si m e s m o — n a t emíve l au to r idade do d ragão , o p róp r io Sa tanás , e nas m e d o n h a s " b e s t a s " a q u e m ele d e l e g a v a poder . A d o r a r R o m a e ra adora r o p rópr io d ragão , r ecebe r na f r o n t e sua m a r c a (13 .16 ,17) . O i m p é r i o r o m a n o p o d e ter pa rec ido p r ó s p e r o e pac í f i co , m a s era, n a rea l idade , u m a pros t i tu ta , m o n t a d a nas cos ta s da b e s t a do d ragão (17.3), " e m b r i a g a d a c o m o sangue dos san tos" (17.6), v ivendo e m luxúr ia às e x p e n s a s do m u n d o e p ron ta p a r a a des t ru i ção (cap í tu lo 18).

O s " s e l o s " n o cap í tu lo 6 r e t r a t am a r ea l i dade do g o v e r n o r o m a n o : e x e r c e n d o o p o d e r imper ia l (6 .1 ,2) , a p o i a n d o - s e n a g u e r r a (6.3,4) , p r o v o c a n d o a mi sé r i a e c o n ô m i c a (6.5,6) , e s p a l h a n d o a m o r t e (6.7,8) , e i m p o n d o o mar t í r io aos se rvos de D e u s (6.9-11). J o ã o ret i ra o v é u de c i m a de todo esse horror , j á e x p e r i m e n t a d o p o r mu i to s cr is tãos , de m o d o q u e p o d e t a m b é m reve la r a m a r a v i l h o s a v i tór ia c o n q u i s t a d a p o r D e u s p o r m e i o de seu Cr is to , e p r o m e t i d o p o r Cr i s to a seus s e r v o s . E l e t i n h a v i s t o J e s u s , r e s s u r g i d o , t r i u n f a n t e , g l o r i o s o , i n v e n c í v e l , su s t en t ando as ig re jas e m s e g u r a n ç a c o m sua fo r t e des t ra . Es t a fo i a v i são q u e a ig re ja pe r s egu ida necess i t ava .

Interpretando Apocalipse C o m o d e v e m o s c o m p r e e n d e r es te l ivro? E le fo i o pát io de recreio dos excênt r icos d e s d e q u e fo i e s c r i t o — e a inda é. Ex i s t e a l g u m m e i o de nos c e r t i f i c a r m o s de q u e e s t a m o s l e n d o es te l ivro do m o d o q u e J o ã o p r e t e n d e u ?

H á e s s e n c i a l m e n t e q u a t r o a l te rna t ivas p a r a a in t e rp re t ação des t e l ivro. T o d o s os e s f o r ç o s pa ra d e s v e n d a r seu sen t ido u t i l i zam u m a dessas a l te rna t ivas , ou t e n t a m c o m b i n a r d u a s o u m a i s . V a m o s e x p ô - l a s e a v a l i á - l a s u m a a u m a , e spec i a lmen te à luz da f o r m a c o m o J o ã o in t roduz seu texto no p r ime i ro capí tu lo .

J o ã o exp l i ca seu t r aba lho l ogo n o p r i m e i r o vers ícu lo : " R e v e l a ç ã o de Je sus Cr i s to , q u e D e u s lhe deu pa ra m o s t r a r aos seus se rvos as co i sas q u e e m b r e v e d e v e m acon t ece r " (1.1) . M a s d e v e m o s pe rgun ta r : " Q u a i s s e r v o s ? " e " Q u e f u -tu ro es tá s e n d o r e v e l a d o ? "

• A a l te rna t iva preterista en f a t i z a o sen t ido de A p o c a l i p s e pa ra seus p r ime i ros leitores, e ques t iona qua lque r in te rpre tação q u e n ã o os t e m f i r m e m e n t e na men te .

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A MENSAGEM DE APOCALIPSE 1 4 7

Os "setes" de Apocalipse e a estrutura do livro Muitas propostas têm sido feitas sobre a estrutura de Apocalipse, e é evidente que João teve sua visão como uma sucessão de "setes". Há basicamente seis séries de "setes" no livro: • As sete igrejas, 2.1-3.22 • Os sete selos, 4.1-8.1 • As sete trombetas, 8.2-11.19 • Os sete sinais no céu, 12.1-15.8 • As sete taças da ira, 16.1-21 • As sete visões finais, 17.1-22.21 Além disso, uma sétima série de sete é mencionada: os sete "trovões" que João teve de "selar" e não escrever (10.4), como para nos lembrar que mesmo este livro não é a revelação de todas as coisas.

Cada série resulta da série precedente, de modo que todas elas formam um todo unido. Por exemplo, o sétimo "selo" é seguido da série das sete trombetas (8.1,2), e o sétimo "sinal no céu" é seguido da série das sete "taças" (15.1).

A série dos sete "sinais no céu" está no meio do livro. Cada "sinal" inicia pela palavra "Vi" ou "Olhei", ou algo equivalente, sendo o primeiro e o sétimo efetivamente chamado de "sinal" (12.1; 13.1,11; 14.1,6,14; 15.1). Este trecho apresenta-nos a realidade do mal em todo o seu horror cru, e a realidade da vitória conquistada por Cristo e compartilhada com seu povo.

A última série relacionada acima, as sete visões finais, não é absolutamente uma série óbvia, e nem todos os estudiosos concordam que esses capítulos devam ser considerados assim. Seria melhor considerar essas visões finais simplesmente como uma seqüência e

complemento da série das sete taças— equilibrando assim com a forma correspondente à que os sete selos são introduzidos pelas maravilhosas visões do céu nos capítulos 4 e 5.

Contudo, é possível analisar os capítulos 17-22 como uma grande série de seis visões, cada qual marcada pelo aparecimento de uma poderosa figura celestial: 1. Um anjo revela a mulher sobre a besta, 17.1-18. 2. Outro anjo anuncia a queda de Babilônia, 18.1-19.10. 3. O cavaleiro sobre o cavalo branco aparece para destruir a besta, 19.11-21. 4. O anjo com a chave aparece para prender e fechar o dragão, 20.1-10. 5. O próprio Deus aparece, sentado em seu trono do juízo final, 20.11-15. 6. Outro anjo aparece (21.9) para revelar uma mulher muito diferente, a noiva do Cordeiro, a Jerusalém celestial, 21.1 -22.17.

Se esta análise é correta, somos induzidos a perguntar por que não há um sétimo aparecimento e visão nesta parte final. E bem possível que a resposta seja que há, porém ainda não aconteceu. O livro termina com a promessa: "Aquele que dá testemunho destas coisas diz: 'Certamente venho sem demora'" , com a oração em resposta: "Amém. Vem, Senhor Jesus" (22.20).

Analisado desta forma, o livro Apocalipse é estruturado em torno das sete séries de "setes", mas o sete final ainda não está completo, porque Jesus tem ainda de voltar.

E l e s s ã o os " s e r v o s " q u e e x p e r i m e n t a m "as c o i s a s q u e e m b r e v e d e v e m acon tece r " . • A a l te rna t iva historicista, p o r ou t ro lado , v i sua l iza A p o c a l i p s e c o m o u m a e spéc i e de a l m a n a q u e da h i s tó r ia universa l , escr i ta a n t e c i p a d a m e n t e . Es t a é a a l te rna t iva s e g u n d o a qua l a lguns , p o r e x e m p l o , t ê m iden t i f i cado o p a p a c o m o "a bes t a" , ou t ê m c o n s i d e r a d o q u e a C o m u n i d a d e E u r o p é i a r ep re sen t a os dez ch i f r e s da bes t a (13.1) . • A a l t e rna t iva /Mí i i rá to in te rpre ta " q u e e m b r e v e d e v e m a c o n t e c e r " a i n d a m a i s r ad i ca lmen te . E la sus ten ta q u e A p o c a l i p s e se o c u p a s o m e n t e c o m os e v e n t o s do F i m , os rea is ú l t imos e v e n t o s da his tór ia un iversa l , i nc lu indo a v inda de Cr i s to e o j u l g a m e n t o f ina l . • D i f e r e n t e m e n t e , a a l t e rna t iva infinito-simbólica t ra ta o l ivro c o m o u m a sér ie de pa rábo las . O q u e é impor t an te , sus ten ta es ta a l ternat iva , é a v e r d a d e in f in i t a t r ansmi t ida pe las p o d e r o s a s i m a g e n s d o l i v ro—ta i s c o m o " o C o r d e i r o " e " a J e r u s a l é m ce les t ia l" .

C o m o d e v e m o s n ó s a v a l i a r e s t a s a l t e r n a t i v a s a n t a g ô n i c a s ? C o m t o d a a

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1 4 8 HOMENS COM UMA MENSAGEM

Ruínas do templo de Artêmis em Sardes. A igreja de Sardes estava entre as sete igrejas, sobre as quais João exerceu supervisão.

p r o b a b i l i d a d e e las n ã o são m u t u a m e n t e t ão exc luden t e s c o m o p a r e c e m . P o r é m é f u n d a m e n t a l o u v i r o p r ó p r i o João , po i s sua i n t r o d u ç ã o n o s dá u m a c l a r a o r i en tação p r e c i s a m e n t e sob re es te pon to .

1. João define os recipientes da revelação. D e u s , p o r i n t e r m é d i o de J o ã o e d o a n j o q u e lhe e n v i o u (1.1) , deu e s sa r e v e l a ç ã o a o s " s e u s s e r v o s " . N a s a u d a ç ã o q u e se s e g u e , e s s e s " s e r v o s " s ã o e n t ã o m e n c i o n a d o s : • " João , às se te ig re jas q u e se e n c o n t r a m n a Ás ia : G r a ç a e p a z a vós out ros , da pa r t e d a q u e l e q u e é, q u e e ra e q u e h á de vir, da pa r t e dos sete esp í r i tos q u e se a c h a m d ian te do seu t rono , e da pa r t e de Je sus Cr i s to . . . " (1.4,5) .

O l ivro abre c o m o u m a m e n s a g e m espec í f i ca , das t rês p e s s o a s da T r i n d a d e p a r a as se te igre jas . Por t an to , A p o c a l i p s e t inha u m g e n u í n o con tex to h is tór ico . J o ã o e v i d e n t e m e n t e e x e r c e u a l g u m t ipo de supe rv i s ão sob re as ig re jas e m E f e s o e E s m i r n a , P é r g a m o e Tiat i ra , Sa rdes , F i l adé l f i a e L a o d i c é i a (1.11). E l e até m e s m o as r e l ac iona n a o r d e m e m q u e s e r i am a l c a n ç a d a s p o r u m m e n s a g e i r o v i a j a n d o ao l o n g o da es t rada c i rcu la r q u e as unia . E c o m o v i m o s a c i m a (no q u a d r o sobre as car tas às se te ig re jas , pág . 145), as n e c e s s i d a d e s pa r t i cu la res de c a d a ig re ja são t ra tadas .

E s t e c o n t e x t o h i s t ó r i c o d e f i n i d o a j u d a - n o s e m n o s s a a v a l i a ç ã o d e s s a s a l te rnat ivas an tagôn icas . A a l te rna t iva preterista d e v e con te r u m i m p o r t a n t e e l emen to de verdade , ao passo q u e a escola es t r i tamente /wíMráfa de in terpre tação n ã o p o d e ser corre ta . Se a m e n s a g e m do l ivro se r e f e r e i n t e i r amen te ao p e r í o d o i m e d i a t a m e n t e a n t e r i o r à v o l t a d o S e n h o r , e n t ã o e l a n ã o t i n h a n e n h u m a m e n s a g e m par t icu la r pa r a as ig re jas às qua i s J o ã o d iz q u e esc reveu .

En t re t an to , c o m o t a m b é m v i m o s ac ima , h á e v i d ê n c i a de q u e u m a aud iênc i a m a i s a m p l a es tá t a m b é m e m vista . I s to ind icar ia q u e a e sco la preterista n ã o t e m m o n o p ó l i o sobre a p rec i são . A m e n s a g e m p o d e ter s ido d i r ig ida p r i m a r i a m e n t e aos m e m b r o s das sete igre jas , m a s e la t e m re l evânc i a pa ra todos os c r i s tãos e m t o d o s os lugares . P a r a i lus t rar is to, c o n s i d e r e m o s u m a das m a i s impor t an t e s v i sões de João , a do d r a g ã o e as bes tas .

U m das m a i s hor r ip i lan tes i m a g e n s e m A p o c a l i p s e é a da m u l h e r m o n t a d a n u m a bes ta de sete cabeças (17.1 -6) . E n q u a n t o a v i são se desenro la , e ssa m u l h e r é n i t i d a m e n t e i d e n t i f i c a d a c o m o R o m a . A s sete c a b e ç a s da b e s t a " s ã o se te m o n t e s , nos qua i s a m u l h e r es tá s e n t a d a " (17.9) . R o m a e ra f a m o s a c o m o a c i d a d e cons t ru ída sobre sete col inas . A m u l h e r é r ea lmen te c h a m a d a "Babi lôn ia , a g r a n d e " (17.5) , m a s os p r i m e i r o s le i tores n ã o t e r i am n e n h u m a dúv ida sob re sua ve rdade i r a iden t idade . A s s i m , toda a v i são e ra p l ena de sen t ido pa ra e les . A m e d i d a q u e l i a m as pa l av ra s de João , v i a m a luxúr ia de R o m a , o c o m é r c i o do qua l e la se nut r ia , sua idolatr ia , a e x p l o r a ç ã o essenc ia l do s i s t ema e c o n ô m i c o q u e ela c o n t r o l a v a — e sua q u e d a v indoura .

M a s , se a m u l h e r é R o m a , q u e m ou o q u e é a bes t a sobre a qua l R o m a se a s sen t a? Es ta m e s m a bes t a de sete c a b e ç a s j á hav ia apa rec ido , e m 13.1-10. J o ã o vê a b e s t a e r g u e n d o - s e do mar , o lugar de caos e lar de todas as f o r ç a s hos t i s a D e u s (13.1) . D a n i e l t ivera u m a v i são de qua t ro bes tas e r g u e n d o - s e do m a r (Dan ie l 7 .1-7) , q u e se t o r n a r a m rep re sen tan t e s d e q u a t r o i m p é r i o s f u t u r o s (Danie l 17.17). A b e s t a ú n i c a q u e J o ã o vê c o m b i n a n u m a só f i g u r a as qua t ro ca rac te r í s t i cas d i s t in t ivas de c a d a u m a d a s be s t a s de Dan ie l . E s s a s bes tas -i m p é r i o s p a r e c i a m - s e r e s p e c t i v a m e n t e c o m u m leão, u m urso , u m l eopa rdo e

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1 5 0 HOMENS COM UMA MENSAGEM

u m e n o r m e d i n o s s a u r o c o m dez ch i f r e s (Dan ie l 7 .4-7) . A b e s t a de J o ã o r epe t e tais carac te r í s t icas na o r d e m inversa : e la t e m dez ch i f r e s , e "e ra s e m e l h a n t e a u m leopa rdo , c o m p é s c o m o d e urso , e b o c a c o m o b o c a de l e ã o " ( A p o c a l i p s e 13.2).

O q u e d e v e m o s f a z e r d i s so? Iden t i f i ca r a b e s t a s i m p l e s m e n t e c o m o o i m p é r i o r o m a n o , sobre o qua l a c i d a d e de R o m a se assenta , n ã o f a z j u s t i ç a à i m a g e m de J o ã o e a e s se cená r io e m Danie l . U m a in te rp re tação m e l h o r es tá à m ã o , a q u e l a q u e dá a A p o c a l i p s e u m a m e n s a g e m para t odos os c ren tes e m todos os t e m p o s e lugares . A bes t a encon t r a sua e x p r e s s ã o n ã o e m q u a l q u e r i m p é r i o i so lado , m a s e m todas as m a n i f e s t a ç õ e s de p o d e r imper i a l q u e se c o l o c a m con t r a D e u s e seu p o v o . N a t u r a l m e n t e , n e m todos os p o d e r e s do m u n d o p e r s e g u e m a igre ja . M a s m u i t o s de les o f a z e m — t a l v e z a ma io r i a deles , n o cu r so da his tór ia . P o r q u e é a s s im? A re spos t a es tá à m ã o : " E deu - lhe o d r a g ã o o seu poder , o seu t rono e g r a n d e a u t o r i d a d e " (13.2) . N o f ina l das con tas , o p o d e r imper ia l de r iva de Sa tanás , p o r q u e e le g o v e r n a o m u n d o s e m re l ação c o m seu C r i a d o r e r e q u e r l ea ldade p a r a si.

J o ã o r ecebe u m a visão seme lhan te de u m a segunda bes ta , des ta vez e m e r g i n d o da te r ra (13 .11-18) . A m a r c a dis t in t iva da p r i m e i r a b e s t a e ra f a z e r gue r ra (13.4) , e exe rce r " a u t o r i d a d e sobre c a d a tr ibo, p o v o , l í ngua e n a ç ã o " (13.7) . A m a r c a d is t in t iva des ta s e g u n d a bes t a é ex ig i r l ea ldade à p r ime i r a b e s t a — n a rea l idade , " f a z c o m q u e a terra e os seus hab i t an tes a d o r e m a p r i m e i r a b e s t a " (13 .12) . A bes t a f a z i sso r e a l i z a n d o s inais q u e " s e d u z e m os q u e h a b i t a m sobre a t e r r a " (13 .14) , d e m o d o q u e e les lhe p r e s t a m cu l to a l eg remen te .

O s le i tores or ig ina is de J o ã o e s t a v a m c e r c a d o s d e p e s s o a s q u e a l e g r e m e n t e p a r t i c i p a v a m d o cu l t o i m p e r i a l . E l e s o f a z i a m p o r q u e t i n h a m a b s o r v i d o a ideo log ia r o m a n a ace rca da pax romana, e s en t i am-se gra tos a R o m a p o r sua p ro spe r idade , i gnoran te s das r ea l idades do g o v e r n o r o m a n o tão c l a r a m e n t e vis-tas p o r João . Se a p r i m e i r a bes t a r ep re sen t a o p o d e r imper ia l opress ivo , ex -presso e m todas as suas mani fes tações , en tão esta s egunda bes ta pod ia representar as mu i t a s ideo log ias pe las qua i s os impé r io s se s u s t e n t a m e i m p õ e m lea ldade . O cu l to imper ia l era su s t en t ado por u m p o d e r o s o s ace rdóc io q u e o p r o m o v i a e e x e r c i a g r a n d e i n f l u ê n c i a , p r i n c i p a l m e n t e n a Á s i a M e n o r . A p r o p a g a n d a p r o d u z i d a p o r e le e ra in tensa . É es te a s e g u n d a b e s t a ?

Q u a n d o as bes ta s são f i n a l m e n t e des t ru ídas p o r Cr i s to e m A p o c a l i p s e 19, a s e g u n d a b e s t a é s i gn i f i ca t i vamen te d e n o m i n a d a "o f a l so p r o f e t a " (19 .20) . E l e i n d u z as p e s s o a s a c r e r e m n a s a lvação a t ravés do p o d e r secular .

João , por tan to , e s c r eve de u m a f o r m a g lobal , e x p r e s s a n d o sua m e n s a g e m e m t e rmos tais q u e ela p o d e ser apl icada pe los cr is tãos à sua própr ia s i tuação, m e s m o q u e e s t a se ja m u i t o d i f e r en te daque la de seus p r i m e i r o s le i tores . " S e u s s e r v o s " (1 .1) i n c l u e m t o d o s n ó s q u e " o u v i m o s " (1 .3) as p a l a v r a s d e s t a p r o f e c i a e p r o c u r a m o s apl icá- las ao m u n d o q u e h a b i t a m o s .

Por tan to , e n q u a n t o h á v e r d a d e na v i são preterista, a v i s ã o infinito-simbólica n ã o d e v e ser d iminu ída . J o ã o p r o v ê a " r e v e l a ç ã o " q u e capac i t a os c r i s tãos d e todas as é p o c a s a v e r e m seu m u n d o c o m n o v o s o lhos .

2. João explica o caráter da revelação. J o ã o c h a m a seu l ivro d e " r eve l ação de Jesus C r i s t o " (1.1) . E i m p o r t a n t e no ta r q u e i s to se r e f e r e ao con teúdo , b e m c o m o à fon te , d a m e n s a g e m d o l ivro. A a l te rnat iva historicista, q u e descobre n o l ivro u m a his tór ia do m u n d o e m cód igo ,

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A MENSAGEM DE APOCALIPSE 1 5 1

O dragão, as bestas, e sua marca

Muitos estudiosos têm observado como o dragão e as duas bestas formam uma imagem terrivelmente distorcida da Trindade do Pai, Filho e Espírito Santo: • Enquanto Deus é o Criador, sendo servido por hostes angelicais, Satanás é o Destruidor (9.11), e tem exércitos de demônios sob suas ordens. • Jesus Cristo congrega um povo para Deus de todas as nações por meio de seu sangue (5.9), mas a primeira besta promove guerra ao povo de Deus (13.7). • Jesus Cristo é o Cordeiro "como se tivesse sido morto" (5.6), aquele que "estive morto, mas eis que estou vivo pelos séculos dos séculos" (1.18). A primeira besta parodia a morte e ressurreição de Jesus recebendo uma "ferida mortal", que foi curada (13.3,12). • E ofício característico do Espírito Santo conceder "sinais e maravilhas" para confirmar o evangelho (p.ex., Romanos 15.18,19), e para testificar Jesus (p.ex., Atos 5.32). A segunda besta parodia esses dois papéis, realizando sinais para enganar as nações e induzi-las a adorar a primeira besta (19.20), e agir como um "falso profeta" em seu favor (19.20: 20.10).

O mal sempre se veste como se fora o bem, e o pior se parece com o melhor.

Deveríamos provavelmente interpretar "a marca da besta" (13.16,17; 19.20; 20.4) à luz dessa paródia. Os crentes recebem uma "marca", um "selo" de Deus, que significa que pertencem a Ele e são protegidos de danos (7.3). Por isso lemos em 14.1: "Olhei, e eis o Cordeiro em pé sobre o monte

Sião, e com ele cento e quarenta e quatro mil tendo nas frontes escrito o seu nome e o nome de seu Pai." Este quadro expressa o compromisso de dois lados presente em todo o discipulado cristão: Deus em Cristo entrega-se a si mesmo por nós, e nós aceitamos seu domínio sobre nós com alegria. Alguns dos leitores de João podem com isto estar-se lembrando do batismo de Jesus.

Mas a besta também coloca uma marca sobre o povo: "A todos, os pequenos e os grandes, os ricos e os pobres, os livres e os escravos, faz que lhe seja dada certa marca sobre a mão direita, ou sobre a fronte, para que ninguém possa comprar ou vender, senão aquele que tem a marca, o nome da besta, ou o número do seu nome (Apocalipse 13.16.17).

Comércio—comprar e vender—é fator funda-mental à vida nesta terra. Não podemos sobreviver sem ele. Todo regime político é construído sobre ele. Muitos cristãos do primeiro século sentiram diretamente a conexão entre o comércio e os poderes do mal por meio de grupos associados voltados à adoração de um deus "defensor" ou de uma deusa "defensora". Se eles se recusassem a participar de tal idolatria, arriscariam sua subsistência.

1.900 anos mais tarde vivemos numa economia global que alimenta as nações ricas em detrimento das pobres. Os "deuses" são menos ostensivos, mas não menos reais: tecnologia, velocidade, sexo, moda, autodeterminação. Em nosso tempo também precisamos considerar como podemos "comprar e vender" sem por esse meio tomar a marca da besta sobre nós, mantendo nosso verdadeiro testemunho ao Senhor, cujo nome usamos.

tenta e s q u e c e r seu p r inc íp io essenc ia l . D e i x a n d o to t a lmen te de l ado a va r i edade de in terpretações que os historicistas suger i ram, a ob j eção pr incipal a este m é t o d o de in te rp re tação é q u e e le p e r d e d e v is ta t an to a n e c e s s i d a d e d a ig re ja c o m o o S e n h o r da igre ja . O q u e u m a ig re ja p e r s e g u i d a neces s i t a n ã o é u m a p rev i são d e t a l h a d a dos even tos fu tu ro s , a qua l t e m de ser l a b o r i o s a m e n t e dec i f r ada , m a s u m a v i s ã o de Jesus Cr i s to pa ra c o n f o r t a r o aba t ido e a n i m a r o cansado .

O p ropós i to de J o ã o é prá t ico, n ã o acadêmico . E l e n ã o é apenas u m vis ionár io; e le é t a m b é m u m pastor . Seu d e s e j o n ã o é o de sa t i s fazer n o s s a cu r ios idade sobre o fu turo , m a s es t imular nossa f ide l idade no presente . E l e repetiu, é verdade , " q u e e m b r e v e d e v e m a c o n t e c e r " (1 .1) , m a s o f u t u r o q u e e l e a n t e v ê e s t á t o t a lmen te e m est re i ta l igação c o m Jesus Cr is to , q u e es tá r e i n a n d o agora c o m o " s o b e r a n o dos reis da t e r ra" (1.5) , e q u e b r e v e m e n t e v i rá (1.7). É pa ra E l e que J o ã o d i r ige nos sa a tenção , n ã o a p e n a s pa ra o f u t u r o . E l e é r e p r e s e n t a d o p o r u m a v a r i e d a d e d e f o r m a s :

• P r i m e i r o v e m o - l o e n t r e os c a n d e e i r o s , s u p e r v i s i o n a n d o , i n v e s t i g a n d o , e s t i m u l a n d o as ig re jas (1 .12-2 .1) .

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1 5 2 HOMENS COM UMA MENSAGEM

• E m s e g u i d a E l e é v i s t o c o m o u m C o r d e i r o , j u n t o a o t r o n o d o P a i , e x c l u s i v a m e n t e qua l i f i cado pa ra r o m p e r os se los do l ivro do des t i no (cap í tu los 5 -7) . • D e p o i s E le é r eve l ado c o m o o Cr i s to de D e u s , q u e i m p õ e a v i tór ia e o g o v e r n o de D e u s sob re todas as f o r ç a s o p o n e n t e s (11 .15; 12.10). • A c e n a m u d a n o v a m e n t e , e a g o r a E l e é o h o m e m - c r i a n ç a ao qua l a m u l h e r ves t ida de sol dá à luz e o qua l o d r agão ten ta devo ra r (12 .1-6) . • U m a vez ma i s E le é "o Corde i ro" , p o r é m des ta vez à f r e n t e de u m exérc i to de can to res r e d i m i d o s (14 .1-5) . • D e p o i s E le é o " f i l ho de h o m e m " , o a g e n t e d a ira f ina l e o j u í z o de D e u s (14 .14-16) .

• A s s e m e l h a n d o - s e a isto, E l e é ap re sen t ado c o m o o gue r re i ro q u e c a v a l g a u m c a v a l o b r a n c o à f r e n t e dos exérc i tos ce les t ia is pa r a j u l g a r e f a z e r g u e r r a con t ra seus i n imigos (19 .11-16) . • F ina lmente , E l e é o e sposo pa ra q u e m a igreja , sua noiva, desce do céu adornada e pe r f e i t a (21 .1-9) .

J o ã o teve essas v isões u m a após outra , m a s isto não s ign i f ica q u e elas r e t r a t am a c o n t e c i m e n t o s n a terra q u e se r e a l i z a m na m e s a o r d e m . C a d a v i são t r ansmi t e u m a v e r d a d e e spec í f i ca sob re Cr i s to q u e os c r i s tãos d e todas as é p o c a s p o d e m ass imi la r e ap l icar a si m e s m o s . Cr i s to não ded icou p r i m e i r a m e n t e u m t e m p o e m c o m u n h ã o c o m as ig re jas na terra , supe rv i s ionando , n o m e i o dos candee i ros (2.1) , e e m segu ida par t iu pa ra o c é u pa ra to rnar - se o C o r d e i r o sob re o t r o n o (5.6) . A s duas v i sões são ve rdade i r a s pa ra todos os t e m p o s , e i ncen t ivadoras p a r a t odos os cr is tãos .

A seqüênc i a h is tór ica , p o r é m , e x e r c e u m p a p e l e m cer tos aspec tos . V á r i o s dos " s e t e s " t e r m i n a m c o m u m a v i s ã o d o j u í z o f ina l ou da sa lvação . I s to é v e r d a d e i r o pa ra o sex to se lo (6 .12-17) , a s é t ima t r o m b e t a (11 .15-18) , o sex to s inal do céu (14 .14-20) , a s é t ima t aça (16 .17-21) , e, na tu ra lmen te , a v i são f ina l d a n o v a J e r u s a l é m (21 .1-22 .6) . M a s e m todos esses ca sos os i tens p r e c e d e n t e s das sér ies n ã o s e g u e m c r o n o l o g i c a m e n t e a s e q ü ê n c i a q u e l eva ao F i m . C a d a " s e t e " é c o m o u m a e q u i p e de f o t ó g r a f o s f o c a l i z a n d o o m e s m o cená r io de u m â n g u l o d i f e r en t e , c a d a qua l p r o p o r c i o n a n d o u m a p e r c e p ç ã o de c a d a f a c e t a d i f e r e n t e do m u n d o , d e seu S e n h o r e d e seu f u t u r o . E s t a c o m p r e e n s ã o de A p o c a l i p s e f o i p r o p o s t a h á m a i s d e c i n q ü e n t a a n o s p e l o e s t u d i o s o n o r t e -a m e r i c a n o W i l l i a m H e n d r i k s e n , q u e l h e d e u o n o m e d e " p a r a l e l i s m o p rog re s s ivo" . S u a teor ia ba se i a - se e m q u e c a d a u m a das par tes do l ivro c o b r e u m t o d o da his tór ia , c o m u m a ê n f a s e g rada t iva sobre o F i m , c o n d u z i n d o ao g r a n d e c l í m a x nas v i sões f ina i s do j u í z o e da s a lvação n o s cap í tu los 2 0 a 22 .

3. João indica o método da revelação. A p o c a l i p s e e m p r e g a m u i t o s s ina is ou s í m b o l o s q u e a p o n t a m — a l é m d e l e s p r ó p r i o s — p a r a u m sen t ido m a i s p r o f u n d o q u e nós , le i tores , t e m o s de discernir . R e c e n t e m e n t e os e s tud iosos t ê m e n f a t i z a d o q u e a l g u m a s v e r d a d e s s o m e n t e p o d e m ser exp re s sa s pe lo uso d e s í m b o l o e me tá fo ra , p o r q u e es tes p o d e m dar v o z às i d é i a s e p e n s a m e n t o s d e n t r o d o s l i m i t e s d e n o s s a c a p a c i d a d e d e c o m p r e e n s ã o . A s i m a g e n s p r o d u z i d a s pe la s v i sões são m u i t o r icas . E l a s d e r i v a m da n a t u r e z a (p.ex. , cava lo , corde i ro , leão, locus ta , e sco rp ião , águia , á rvore , co lhe i ta , mar , r ios, terra, céu) , da v ida h u m a n a (p.ex. , c o m é r c i o , guer ra , idolat r ia , n a s c i m e n t o ,

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Par te d o a q u e d u t o c o n s t r u í d o para s u p r i r a an t iga Laod icé ia . A á g u a nes ta á r e a é r ica e m minera is ; d e p ó s i t o s d e ca lcár io p o d e m ser v is tos nas p a r e d e s in te rnas do a q u e d u t o .

A MENSAGEM DE APOCALIPSE 1 5 3

pros t i tu ição , agr icul tura , med ic ina , gove rno , ed i f íc io) , e do Velho T e s t a m e n t o (p.ex., Babi lônia , Jerusa lém, Jezabel , Egi to , S o d o m a , o Templo e seus acessórios , m a n á , a á rvore e o l ivro, a á g u a da v ida , Jesus c o m o Corde i ro , L e ã o e Ra iz , etc.) T rês p r inc íp ios d e v e m or ien tar n o s s a in t e rp re t ação dessas i m a g e n s :

a. Muito dela é usado simplesmente para dar um efeito dramático intensificado e não possui um sentido independente em cada detalhe. P o r e x e m p l o , as p e d r a s p rec iosas q u e d e c o r a m as p a r e d e s da J e r u s a l é m celes t ia l (21 .19) p o d e m n ã o s ign i f ica r e m si a l g u m a co i sa d i fe ren te . O m e s m o se ap l ica às ped ras p rec iosas q u e a d o r n a m a g r a n d e pros t i tu ta (17.4; 18.16)!

b. A imagem é simbólica e não pictórica, e entende-se que deve ser interpretada e não visualizada. N ã o d e v e m o s ser l e v a d o s a i m a g i n a r c r ia turas che ias " d e olhos p o r diante e p o r de t rás" (4.6), m a s lembrar -nos de sua incessante vigi lância. N e m d e v e m o s tentar v i sua l iza r u m a b e s t a c o m dez ch i f r e s , se te cabeças , e u m a b o c a (13.1 ,2) , p o r é m d e v e m o s impres s iona r -nos c o m o terr ível p o d e r da bes t a e sua a s sus t ado ra b l a s f ê m i a (13.5) . A l g u m a s vezes é a imposs ib i l i dade l i teral da i m a g e m q u e f a z c o m q u e ela se ja poderosa , c o m o no caso da g rande mu l t i dão d iante do t rono de Deus , que " l a v a r a m suas ves t iduras , e as a l v e j a r a m no sangue do C o r d e i r o " (7 .14) .

c. Muito embora alguns dos detalhes não sejam "significativos " por si mesmos, basicamente todas as coisas no livro devem ser olhadas como simbólicas, e não literais. A l g u m a s co isas são o b v i a m e n t e l i terais , tais c o m o as r e f e r ênc i a s aos n ico la í tas (2 .6 ,15) e a p r ó x i m a p r i s ão d e a lguns dos cr is tãos de E s m i r n a (2.10). M a s , se n e n h u m a re fe rênc ia literal fo r óbvia , en tão u m sent ido s imból ico d e v e ser b u s c a d o — m e s m o q u a n d o es te j a c la ro q u e u m a carac te r í s t ica " l i t e ra l" da v ida n a Á s i a M e n o r e s t e j a e m m e n t e . P o r e x e m p l o , h a v i a u m a indús t r i a f a rmacêu t i ca e m Laod icé i a q u e p roduz i a u m f a m o s o colír io. M a s , q u a n d o Cris to

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1 5 4 HOMENS COM UMA MENSAGEM

diz aos l aod ice i anos q u e c o m p r e m de le "co l í r io pa ra ung i r e s os t eus o lhos , a f i m de q u e v e j a s " (3.18) , o col í r io s imbo l i za a l g u m a ou t ra coisa . D e igual m o d o , as p róp r i a s ig re jas são t an to l i terais c o m o s imból icas : e las são ig re jas reais , p o r é m r e p r e s e n t a m a ig re ja un iversa l d e Cr is to .

E o n ú m e r o " s e t e " q u e suge re o q u e as ig re jas s i m b o l i z a m . O s i m b o l i s m o dos n ú m e r o s é u m a das caracter ís t icas ma i s p roeminen te s das imagens de Apoca l ip se (ve j a o q u a d r o a seguir) .

H á , p o r t a n t o , v e r d a d e e m t o d a s as q u a t r o e s c o l a s d e i n t e r p r e t a ç ã o . O s simbolistas e s t ã o cer tos e m insis t i r q u e as i m a g e n s de A p o c a l i p s e e n s i n a m g randes v e r d a d e s sobre D e u s , Cr is to , a igre ja , o m u n d o e os p o d e r e s do ma l , f u n d a m e n t a i s p a r a q u e a ig re ja as c o n h e ç a e m todos os t e m p o s e lugares . O s preteristas e s t ão cor re tos ao en fa t i za r a r e l evânc i a dessas v e r d a d e s pa ra os seus cená r ios e le i tores e spec í f i cos do p r ime i ro sécu lo . O s historicistas e s t ão cer tos e m procura r a r e l evânc ia pa ra toda a h is tór ia universa l , não apenas a do p r ime i ro século . E os futuristas c o r r e t a m e n t e d e s t a c a m sua p r e o c u p a ç ã o c o m o des t ino f ina l d o m u n d o e d a igre ja .

Uma análise pastoral R e s u m i n d o : o q u e o l ivro ens ina à ig re ja d e Cr i s to? P o d e m o s ana l i sar m u i t o

b r e v e m e n t e sua m e n s a g e m , c o m o segue :

• Capítulos 1-3: A vida da igreja em Cristo. Esta parte é dominada pela visão do Cr i s to l e v a n t a d o e g o v e r n a n d o n o cap í tu lo 1. Sua ig re ja p o d e ser f r aca , so f r edo ra , a té c o m p l a c e n t e , m a s ela d e s c a n s a e m suas m ã o s e E l e min i s t r a pa ra as n e c e s s i d a d e s dela .

• Capítulos 4-7: A segurança da igreja por meio de Cristo. As visões nos cap í tu los 4 e 5 a p r e s e n t a m D e u s de u m a p e r s p e c t i v a do Velho T e s t a m e n t o (capí tu lo 4), e depo i s de u m a pe r spec t i va do N o v o Tes t amen to . A p e s a r de t odos os s o f r i m e n t o s q u e f a z e m par te da v ida ne s t e m u n d o (capí tu lo 6), a ig re ja é sa lva, " s e l a d a " c o m u m a m a r c a d o d o m í n i o d o senhor io de Deus , q u e g o v e r n a c o m incon tes táve l p o d e r do t rono do un ive r so .

• Capítulos 8-11:0 testemunho da igreja sobre Cristo. As trombetas anunciam as adve r t ênc ia s de D e u s a u m m u n d o p e c a m i n o s o e idó la t ra (9 .20,21) , e n q u a n t o a ig re ja dá t e s t e m u n h o — s i m b o l i z a d o p r i m e i r o pe lo p róp r io João , a q u e m é d a d a u m a p r o f e c i a p a r a o m u n d o (10.9-11) , e e m segu ida p o r duas t e s t e m u n h a s , que dão u m f ie l t e s t e m u n h o , a despe i to de ter r ível opos i ção (cap í tu lo 11).

• Capítulos 12-14: O conflito da igreja por Cristo. O que se esconde atrás da opos ição do m u n d o à ig re ja? A q u i o véu é r e m o v i d o , e v e m o s os t rês ve rdade i ros in imigos , q u e t e n t a r a m des t ru i r o p r ó p r i o Cr i s to e ago ra t e n t a m des t ru i r o seu p o v o (12 .17) . M u i t o e m b o r a lhe f o s s e " d a d o [à bes ta ] t a m b é m q u e p e l e j a s s e con t ra os santos e os v e n c e s s e " (13.7) , en t re tan to , de ou t ra pe r spec t iva , a ig re ja es tá sa lva , a l i m e n t a d a c o m o El ias n o dese r to (12 .14) , e c o n g r e g a d a c o m o C o r d e i r o no m o n t e S ião (14 .1-5) .

• Capítulos 15-20: A vingança da igreja por intermédio de Cristo. A visão

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A MENSAGEM DE APOCALIPSE 1 5 5

Números em Apocalipse

Os números são usados simbolicamente em todo Apocalipse, principalmente quatro, sete, dez, doze e múltiplos destes. • Uma vez que há quatro pontos na bússola e quatro ventos na terra (7.1), o número quatro parece representar o universo criado. Os quatro "seres viventes" que adoram em volta do trono (4.6-9) parecem simbolizar toda a criação animada em sua dependência do Criador. • O número sete denota completitude e perfeição, provavelmente porque a história da criação cobre sete dias no livro de Gênesis. As sete igrejas da Ásia, portanto, embora históricas, também representam a igreja universal. Este simbolismo sustenta o ponto de vista de que cada um dos "setes" de Apocalipse apresentam um retrato completo do mundo visto de um "ângulo" particular. Ele também sugere a interpretação do "número da besta", em 13.18: 666 indica a total imperfeição, alguma coisa que se esforça para parecer perfeita, mas é notoriamente deficiente. • Doze é o número do povo de Deus, porque houve doze tribos no Velho Testamento e doze apóstolos no Novo Testamento. Os vinte e quatro anciãos assentados em volta do trono devem portanto simbolizar a igreja adoradora de ambos os Testamentos. Este simbolismo figura na descrição da nova Jerusalém, em 21.12-14. • O número dez parece indicar o soberano conhecimento e propósito de Deus. Os cristãos de Esmirna terão uma "tribulação de dez dias",

sugerindo que a extensão da perseguição é predeterminada por Deus (2.10). De modo semelhante, os dez chifres e coroas da besta (13.1; compare com 17.12) sublinham a soberania final de Deus sobre os poderes do mal. A mesma idéia é transmitida quando outro número é multiplicado por dez. Exemplo: 144.000 (7.4; 14.1) é 12 x 12 x 1.000, e claramente representa todo o povo de Deus redimido de ambos os Testamentos, cuja extensão é exatamente conhecida por Ele. Do mesmo modo, os "mil dias" de 20.2-4,7 devem quase certamente ser entendidos para simbolizar um longo e não especificado período, cuja exata extensão é determinada por Deus. • Outro número importante é três e meio, um período simbólico que João extraiu de Daniel (Daniel 7.25; 9.27; 12.7). Este período pode ser considerado como "três dias e meio" (11.9). "um tempo, tempos, e metade de um tempo" (12.14), quarenta e dois meses (11.2; 13.5) e 1.260 dias (11.3; 12.6). Se o mês é contado como trinta dias, este período é o mesmo em cada caso. Ele parece ser a idade da nova aliança, todo o tempo decorrido entre a primeira e a segunda vindas de Cristo, quando a igreja dá testemunho e é perseguida, sendo confortada e alimentada por Deus em face da grande oposição.

dos in imigos da ig re ja é segu ida pe la v i são de sua des t ru ição . O s selos (capí tu los 6 e 7) m e n c i o n a m o q u e D e u s permite nes t e m u n d o . A s t r o m b e t a s (capí tu los 8 -11) m o s t r a m c o m o D e u s adverte seu m u n d o . A g o r a as t aças ( cap í tu lo 16) i n d i c a m c o m o D e u s julga seu m u n d o . D e p o i s a de s t ru i ção d e R o m a é re t ra tada (cap í tu lo 18), s egu ida pe la des t ru i ção dos t rês in imigos , n a o r d e m con t rá r i a à o r d e m em q u e f o r a m ap re sen t ados n o s cap í tu los 12 e 13.

• Capítulos 21 e 22: A união da igreja com Cristo. Tendo testemunhado o j u í z o f ina l d o m u n d o (capí tu los 15-20) , J o ã o a g o r a v ê o des t ino f ina l d a igre ja . E l a é u n i d a c o m Cr i s to n u m a " n o v a c r i ação" , da qua l a m o r t e e o s o f r i m e n t o são ban idos , e a qua l t raz a u m pe r f e i t o c u m p r i m e n t o todo o p l a n o de D e u s p a r a o m u n d o .

A m e n s a g e m de A p o c a l i p s e é, s e m dúv ida , p o d e r o s a . E l a es tá cen t r a l i zada na v i são d o Cr i s to q u e pa r t i c ipa do s o f r i m e n t o e m o r t e d e seu p o v o e d e p o i s se a s sen ta n o t rono de D e u s . E la nos l eva a l é m do c a o s e d o t r a u m a da h is tór ia do m u n d o , e de nossas p róp r i a s v idas , à nos sa s e g u r a n ç a n o p l a n o de D e u s , t an to p a r a n ó s c o m o pa ra o m u n d o . E l a nos ho r ro r i za c o m seu r íg ido re t ra to d a m o r t e e do mal , e depo i s l evan ta n o s s o s esp í r i tos ao céu p o n d o e m nossos láb ios pa l av ra s do m a i s s u b l i m e louvor . E n q u a n t o c a n t a m o s c o m as hos te s celes t ia is ,

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1 5 6 HOMENS COM UMA MENSAGEM

s a b e m o s q u e os p o d e r e s do m a l f o r a m der ro tados , e nós e s t a m o s r e d i m i d o s : " A o n o s s o D e u s q u e se a s sen ta no t rono, e ao Corde i ro , p e r t e n c e a s a l v a ç ã o ! " (7 .10) .

Leitura adicional

Menos exigente: John Stott, What Christ Thinks of the Church (Milton Keynes, UK: Word, 1990)—uma

exposição de Apocalipse 2 e 3 Michael Wilcock, The Message of Revelation. I Saw Heaven Opened (Série "The Bible

Speaks Today") (Leicester: IVP, 1975) Michael Williams, The Power and the Kingdom. Power, Politics and the Book of Rev-

elation (Eastbourne: Monarch, 1989)

Mais exigente, obras eruditas: Donald Guthrie, The Relevance of John's Apocalypse (Exeter: Paternoster / Grand Rap-

ids: Eerdmans, 1987) C. J. Hemer, The Letters to the Seven Churches of Asia in the Local Setting (Sheffield:

JSOT Press, 1986) J. M. Court, Myth and History in the Book of Revelation (Londres, SPCK, 1979)

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índice Apocal ipse 141-156

autoria 142-143 estrutura 154-155 interpretação 146-154

Apóstolos , ver Discípulos e nomes individuais Atos 59, 61-67

estrutura 61-67 Bat i smo 95 Cobradores de impostos 3 1 - 3 2 , 5 3 - 5 4 Cura 51-52 Disc ipulado 1 2 , 2 7 - 2 8 Discípulos

medo 16-17 ver também nomes individuais

Edif icação 100-102 Esperança 137-138 Evange lhos

relação entre 13, 29-31, 69-70 ver também nomes individuais

Fariseus 35, 38 Fé 73-77, 117 Filho de Davi 37 Fi lho de Deus 42-44 Fi lho do H o m e m 44-45 Glor i f icação 102-105 Gnos t ic i smo 81 Hebreus , Carta aos 107-118

autoria 108 temas 108-118

Isaías

nas epístolas de Pedro 136 Jesus

autor idade 26, 39 c o m o Fi lho de Davi 37 c o m o Fi lho de Deus 42-44 c o m o Fi lho do H o m e m 44-45 c o m o Mess ias p romet ido 26-27, 36-37, 39 c o m o rei de Israel 35-36, 45 mor te 14, 25-27, 44, 112-116, 135-136 segunda v inda 104-105

João (autor de Apocal ipse) 142-143 João (autor do Evange lho e das epístolas) 68-72

João, Epístolas 68, 80-85 João, Evange lho 68-80

e os Evange lhos sinópticos 69-70 estilo 70 estrutura 70, 78-80

João Batis ta 33 Ju lgamento 105 Jus t i f icação 92-96 Lat im, l íngua

no Evange lho de Marcos 14 Lucas 46-48 Lucas , Evange lho 46-67

estilo 47-48 estrutura 59-61 temas 49-67

Marcos 12-24

abandona Paulo 16 casa materna 14

Marcos , Evange lho 12-28 baseado e m Pedro 19-20 estilo 21 estrutura 22 propósi to 23-24 temas 12-13

Mateus 29-38 conversão 32-34 e João Batis ta 33

Mateus , Evange lho 29-45 estilo 38 estrutura 37 temas 39-45

uso do Velho Tes tamento 36, 37 Melqu i sedeque 110-112 Mess ias 26-27, 36-37, 39 Miser icórdia , ver Perdão Mulheres 50-52 Numero log ia 147, 154 Oração 56-67 Paulo 86-106

conversão 87-91 e Lucas 48-49 viagens miss ionár ias 63-67

Paulo, Epístolas 91-106 Pedro 128, 130-134

e Marcos 19-20 seu n o m e 131

Pedro, Epístolas 128-140 autoria 128-129 temas 134-140

Perdão 34-35 Pobreza 55

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1 5 8 HOMENS COM UMA MENSAGEM

R e s s u r r e i ç ã o dos m o r t o s 105 S a n t i f i c a ç ã o 9 6 - 1 0 0 S e g u n d a v inda de Cr i s to 104-105 Sete , o n ú m e r o , e m A p o c a l i p s e 147, 154 Se t e Igre jas , Ca r t a s às 145-146 Si las 129 T a b e r n á c u l o 115 T i a g o 119-123 T iago , Ep í s to l a 119-127 Ve lho T e s t a m e n t o

c u m p r i d o e m Jesus 39-40 , 132 e x e m p l i f i c a d o c o m o ev idênc ia p o r J o ã o in f luênc i a sobre A p o c a l i p s e 143-144 n a Ca r t a aos H e b r e u s 109 nas ep ís to las d e P e d r o 135-136

Page 161: Homens com uma mensagem   john r. w. stott

Fotos e Ilustrações

Todas as fo tograf ias são originárias de Tiger Colour Library, Three ' s Company , exceto as das páginas seguintes, que f o r a m reproduzidas c o m permissão de Zev Radovan: pp. 1, 43, 55, 56, 61, 73, 77, 90, 139.

I lustrações de James Macdona ld nas pp. 115 e 117.

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HOMENS COM UMA MENSAGEM

Uma Introdução ao Novo Testamento e seus Escritores

J O H N STOTT Revisado por Stephen Motyer

"A particularidade de cada autor do Novo Testamento não è de modo algum restrita a um único processo de inspiração. Antes, pelo contrário, o Espírito Santo primeiro preparou, e em seguida usou sua individualidade de formação, experiência, temperamento e personalidade, a fim de transmitir por meio de cada um alguma verdade distinta e apropriada." John Stott

O objetivo desta edição completamente revisada da obra clássica do Dr. Stott foi a de torná-la acessível à nova geração, refundindo a linguagem, adaptando-a às versões bíblicas recentes, e acrescentando fotos a cores e mapas informativos.

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