homens, cavalos & centauros: virilidade, sociabilidade e ... · ... do dinheiro no jogo aparece...

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1 Homens, Cavalos & Centauros: virilidade, sociabilidade e “ciência” nas apostas em corridas de cavalos 1 Rafael Velasquez UFF Resumo “Homens, Cavalos & Centauro” é o primeiro esboço sobre as relações de sociabilidade e conhecimento que se desenham e desdobram na e para as corridas de cavalo, isto é, o turfe. A pretensão é apresentar uma etnografia exaustiva sobre os processos envolvidos sobre o conhecimento naturalístico, que será apresentando com uma “ciência inexata, que se desenvolve para avaliar a conformação física e o animo do cavalo e também a hermenêutica na leitura sobre de pedigrees de linhas de Puro-Sangue Inglês, programas dos páreos, estatísticas etc. E também sobre os processos de sociabilidade e socialidade que são igualmente ponderados a tais estudos hípicos pelos aficionados. As trocas de barbadas e palpites. E tudo isso, permeado pela honra e pelo status, um valor masculino de virilidade que o dinheiro confere as apostas. Prefiro cheiro de cavalo, do que cheiro de povo”. João Baptista de Oliveira Figueiredo A equitação em alta velocidade o turfe pode ser compreendida enquanto uma atividade híbrida, pois é uma combinação entre esporte com o jogo de aposta. E um não pode ser dissociado do outro, eles são mutuamente dependes. Por um lado econômico institucional, o Movimento Geral das Apostas (MGA) é responsável por reverter uma percentagem das apostas para pagamento das bolsas de premiações dos páreos e outras despesas do hipódromo. Em outras palavras, é o MGA quem financia a existência do esporte. Por outro lado, também econômico porém mais emotivo, é a participação financeira do turfista e do jogador que torna esta atividade mais agônica ou triunfante, pois é o dinheiro que faz presentificar diretamente na vida dos turfistas a derrota ou a vitória. 1 Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto de 2014, Natal/RN.

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Homens, Cavalos & Centauros: virilidade, sociabilidade e “ciência”

nas apostas em corridas de cavalos1

Rafael Velasquez – UFF

Resumo

“Homens, Cavalos & Centauro” é o primeiro esboço sobre as relações de sociabilidade

e conhecimento que se desenham e desdobram na e para as corridas de cavalo, isto é, o

turfe. A pretensão é apresentar uma etnografia exaustiva sobre os processos envolvidos

sobre o conhecimento naturalístico, que será apresentando com uma “ciência inexata”,

que se desenvolve para avaliar a conformação física e o animo do cavalo e também a

hermenêutica na leitura sobre de pedigrees de linhas de Puro-Sangue Inglês, programas

dos páreos, estatísticas etc. E também sobre os processos de sociabilidade e socialidade

que são igualmente ponderados a tais estudos hípicos pelos aficionados. As trocas de

barbadas e palpites. E tudo isso, permeado pela honra e pelo status, um valor masculino

de virilidade que o dinheiro confere as apostas.

“Prefiro cheiro de cavalo, do que

cheiro de povo”.

João Baptista de Oliveira Figueiredo

A equitação em alta velocidade – o turfe – pode ser compreendida enquanto uma

atividade híbrida, pois é uma combinação entre esporte com o jogo de aposta. E um não

pode ser dissociado do outro, eles são mutuamente dependes. Por um lado econômico

institucional, o Movimento Geral das Apostas (MGA) é responsável por reverter uma

percentagem das apostas para pagamento das bolsas de premiações dos páreos e outras

despesas do hipódromo. Em outras palavras, é o MGA quem financia a existência do

esporte. Por outro lado, também econômico porém mais emotivo, é a participação

financeira do turfista e do jogador que torna esta atividade mais agônica ou triunfante,

pois é o dinheiro que faz presentificar diretamente na vida dos turfistas a derrota ou a

vitória.

1 Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de

agosto de 2014, Natal/RN.

2

O dinheiro, apesar de não ser o foco central de analise neste momento, é quem

confere a devida seriedade ao jogo e também dá prestígio e honra para quem o aposta.

Essa importância da presença do dinheiro no jogo aparece de forma notável no trabalho

de Willian Foote Whyte:

Ele [o jogo] tem um papel importante na vida das pessoas de Cornerville.

Seja o que for que joguem, os rapazes da esquina quase sempre apostam no

resultado. Quando não há nada em disputa, o jogo não é considerado uma

rivalidade real. Isso não significa que o elemento financeiro seja mais

importante que tudo. Frequentemente ouvi as pessoas dizerem que a honra de

vencer era muito mais importante que o dinheiro em questão. Os rapazes da

esquina consideram jogar por dinheiro o verdadeiro teste de habilidade, e, a

menos que um homem se saia bem quando há dinheiro na disputa, não será

considerado um bom competidor. Isso ajuda a determinar a posição de

indivíduos e grupos uns em relação aos outros(WHYTE, 2005, p. 156).

Tal como nas brigas de galo em Bali, “está em jogo muito mais do que o simples

lucro material: o saber, a estima, a honra, a dignidade, o respeito – em suma, o

status”(GEERTZ, 1989, p. 199). Trata-se de colocar o dinheiro onde existe o status.

Portanto, ao falar do turfe estamos falando também de honra e moral.

E tal como havia sugerido Mauss, em uma nota de rodapé no Ensaio sobre a

dádiva, que “seria oportuno (...) estudar o jogo que (...) não é considerado como um

contrato, mas como uma situação na qual se compromete a honra e se entregam bens

que poderiam não ser entregues. O jogo é uma forma de potlatch e do sistema de

dádivas”. (2003, p. 238). E nessa direção, o turfe é compreendido com uma disputa

lúdica entre os homens por meio dos cavalos – sejam tanto entre proprietários de

cavalos, quanto entre apostadores. Assim sendo, a honra está muito acima do dinheiro, o

que não exclui de forma alguma as trocas entre os apostadores rivais para a formação de

pequenos grupos para discutirem e debaterem sobre cavalos. E a escolha de um ou de

alguns animais para se apostar requer muito mais do que propriamente sorte. Ela exige

uma elaboração de uma espécie de aritmética, na verdade uma exegese hipológica.

E um dia de corrida no hipódromo2 reúne aficionados assíduos, isto é turfista e

jogadores, mas também curiosos e aventureiros de ocasião. A paisagem humana dos

2 A referência empírica é o Hipódromo Brasileiro – também conhecido como Hipódromo da Gávea – de

propriedade do Jockey Club Brasileiro, localizando no bairro nobre da capital do Rio de Janeiro, a Gávea.

3

dias normais3, em sua grande maioria, é composta por homens. Muitos deles em idade

avançada, o que é visível pelo número de “cabeças brancas” que encontramos ali. Eles

se juntam em pequenos grupos para debatem e comentam as corridas. O que torna este

espaço de socialidade e sociabilidade predominantemente masculino ou viril.

Por sociabilidade aqui se compreende o que são dos domínios e as regras tanto

da boa convivência quanto da afabilidade, isto é, as relações no sentido mais superficial

do cotidiano e da trivialidade, um comprimento, uma saudação etc. E por socialidade

aqueles os processos de criação e manutenção de relações tal como coloca Strathern

(2006), que serão longamente descritos aqui. Uma característica fundamental destas

relações é que elas giram em torno da virilidade, por ser tratar de um espaço

predominado por homens onde a honra e sua convicção são apreciados.

Pesquisas históricas como de Blay (1994) e Melo(2011) apontam que a presença

feminina era mais frequente nos hipódromos do que nos dias atuais, onde elas iam

desfilar seus vestidos de moda e também flertar com os rapazes. Algumas das mulheres

que vemos circulando hoje pelas tribunas do prado, vêm em grupos de curiosos que

tentam se aventurar nas sortes das corridas e fotografar – sejam as corridas, os cavalos

ou mesmo fazer selfie. Outras, poucas, vêm acompanhar seus maridos, seus pais ou

mesmo seus avôs. Há que diga, talvez por maldade, que algumas sejam acompanhantes

profissionais. E há também as funcionárias: as caixas da pule, gerentes, veterinárias e as

serventes que varem os bilhetes das apostas jogadas raivosamente no chão. E são, se

agradáveis ao gosto, alvos de comentários entre os homens. “Hoje isso aqui está

florido!”, comentou um dos senhores ao passar ao nosso lado um grupo de jovens

mulheres.

A este respeito, vale dizer que os atributos femininos estão em analogia com os

cavalos e assim como também os atributos dos cavalos são em analogia com as

mulheres. Uma jovem muito formosa e agradável aos olhos que circulava na tribuna foi

metaforizado numa potranca para os “rapazes”. Quando ela passou um deles comentou

para o grupo: “Que potranca!”. Em seguida outro observou: “tem um canter bonito”.

“Isto é favorita de pule de 1 Real!”, disse um terceiro entrando na brincadeira. “Só a

inscrição no páreo é de mil reais”, completou outro.

Ocupa uma área de aproximadamente 640m², tamanho igual e até maior que alguns bairros da cidade,

como por exemplo o Leblon. 3 Por “dias normais” quero referir aos dias em que não há Grandes Prêmios, pois a paisagem é outra. E

aqui, tenho por objetivos tratar das festividades.

4

Outra circunstância, o contrário, um cavalo que no discurso foi transformando

em mulher. Santos, um velho treinador de cavalos, sentado na mesa do salão de apostas

me contava que deveria observar três importantes aspectos físicos nos potros, que

segundo ele, eram fundamentais para ter uma excelente aquisição. Primeiramente, ver se

o potro possui “cabeça de princesa” – isto é, uma cabeça pequena e alinhada com o

restante do corpo –, depois olhar a “peitaria” – um peitoral largo e bonito – e, last but

not least, “bunda de cozinheira”.

– Espera aí, “bunda de cozinheira”? – não me contive – Ora, mas por que “bunda

de cozinheira”?

– Porque é um bundão!

E há, além dessas, muitas outras situações de metonímia em que não dizem

respeito exclusivamente às mulheres, mas aos próprios homens perante o cavalo, seja

para valoriza-los ou rebaixa-los: “garanhão”, “se cai de quatro não levanta”. O mundo

social, como um todo, é passível de adjetivação com expressões turfísticas e de

cavalaria. Nas relações sexuais também se conjugam verbos como “montar”,

“cavalgar”... Mas isso é outro assunto para outra discussão.

Essas analogias mulher-cavalo-homem são frutos da observação comparativa

humana. Provavelmente pelas semelhanças das formas e das posturas. “Era fácil nascer

a analogia com os animais”, vai dizer o historiador,

na mente de homens que conviviam com maior número de bichos, selvagens

ou domésticos, do que os nossos contemporâneos. A criação bruta

proporcionava o ponto de referência mais acessível para o contínuo processo

de autodefinição humana. Sem serem iguais ao homem, nem completamente

diferentes, os animais ofereciam um reserva quase inesgotável de

significados simbólicos(THOMAS, 2010, p. 54).

E assim, fala-se no fim de sinais. E aqui começa tudo: na observação.

Mas antes, fundamental explicitar um pouco sobre as distinções que os turfistas

fazem entre o jogo de apostas hípicas e os demais jogos de apostas, os jogos de azar. A

denominação turfista é apregoada a todo aquele que é aficionado por corrida de cavalos,

o que abrange aqueles que dela participam e os que apostam nelas. E por jogador aquele

que visa muito mais o prêmio do jogo do que a atividade em si. Evidente que ambas as

categorias se tornam difusas e difíceis de distinguir.

Na loteria federal, no jogo de roleta ou no jogo do bicho, o jogador escolhe um

ou uma combinação de números. A banca tem contra ele todas as outras combinações.

Por exemplo, o jogo da Quina da loteria federal. Nele o jogador escolhe 5 números entre

5

80 da cartela. A probabilidade de acertar é uma contra 24.040.016 combinações que a

banca, isto é a loteria, tem contra ele. O mesmo acontece com o jogo do bicho. Na

modalidade mais simples do jogo, o apostador escolhe um número, que corresponde a

um animal, entre 25. Assim, joga com 3% contra os 97% que o banqueiro tem de

vantagem. Portanto, acertar é (ou parece ser?) muito mais uma questão de sorte/azar4.

Já nas corridas de cavalo é diferente. Primeiro porque não existe nenhuma

banca. E, portanto, ninguém “quebra a banca”5, isto é o Jockey Club. A aposta hípica é

uma aposta onde o prêmio é o próprio dinheiro dos apostadores, subtraído de uma

porcentagem na qual o Jockey retira para custear suas despesas, além de reverter este

dinheiro também para o pagamento os prêmios dos páreos. Se em um páreo correm 10

cavalos e, digamos, tem 10 apostadores que estão apostando R$ 10 em cada cavalo são

R$ 100 apostados. Desses R$ 100, o Jockey subtrai a sua porcentagem, digamos 30%, e

o resto é dado ao vencedor: R$ 70. Este é um exemplo bem simples de como funciona a

aposta e como ela me foi explicada por alguns turfistas. Existem outras modalidades de

apostas em que a complexidade do cálculo da divisão é maior, mas o princípio é

basicamente o mesmo6.

O que é importante destacar é que há sempre um vencedor, dentro e fora das

pistas. Em toda corrida é de se esperar que um dos cavalos ganhe e que provavelmente

alguém, ou várias pessoas, tenha(m) apostado nele. A melhor ilustração que tenho sobre

isso foi uma ocasião de tensão entre o etnógrafo e os “nativos”. Estava irritado porque

ninguém me dizia nada do que estava acontecendo, sentia que estavam escondendo algo

de mim. Então, ao perder a paciência, soquei a mesa acusando a prática da aposta de

jogo de azar. Pita fitou-me sério com as sobrancelhas arcadas e com voz severa me

respondeu: “Como pode ser um jogo de azar se sempre alguém ganha? Isso aqui é um

4 Acredito que seria necessária uma distinção, em níveis, de categorias jogos. Pois as definições parecem,

por vezes, inexistir. O jogo de azar no Brasil é proibido – o decreto-lei nᵒ 9.215de 1946. E não me parece

bem definido o que seja jogo de azar, se levar em consideração que a loteria é administrada pelo próprio

Governo! 5 Expressão usada pelos jogadores de cassino e do bicho.

6 Cada modalidade aposta tem seus percentuais de quanto é revertido ao apostador e quanto fica para o

Jockey. Segue abaixo a tabela dos percentuais das apostas Jockey Club Brasileiro, sem as acumuladas

especiais:

Tipo de aposta % Apostador % Retirada

Vencedor 72,5 27,5

Placê 82 18

Dupla 67,5 32,5

Exata 64,5 35,5

Trifeta 68,87 31,13

Quadrifeta 65,87 34,13

6

quebra-cabeça ‘fodido’!”. Com isso me informava aquilo que Marcel Mauss havia posto

em seu Manual de Etnografia: “A existência de uma categoria ‘jogo de azar’ só é válida

para as nossas civilizações: inventamos nova categoria do espírito, no resto do mundo o

jogo de sorte é um jogo de sorte e de destreza”(1972, p. 99).

Em segundo lugar, para os aficionados, o fator animal é o que difere de todos os

jogos. O cavalo, diferente do homem, é incorruptível. É absurdo pensar na possibilidade

de subornar um animal. Talvez se possa dopá-lo, mas para isso existe o exame

antidoping7. Além disso, os cavalos não correm sozinhos, em cima deles vão os jóqueis,

que podem ser, estes sim, “comprados”, mas os jogadores e turfistas sabem que jóquei

algum “dá perna” para o cavalo correr. Ele apenas o conduz na pista. É verdade que

jóquei pode “puxar” o cavalo na pista para correr menos, mas existe uma comissão de

corrida para julgar tais casos – ao menos é o que se espera dela. Quero dizer com isso

que os cavalos podem surpreender, e sempre. Quero dizer também que eles são uma

fonte de certeza incerta. O uso deste oximoro será mais explicitado adiante.

Outra questão importante implícita nas corridas é a sua justificativa eugênica, de

que o objetivo das corridas hípicas é o aprimoramento da raça, no caso, dos cavalos da

raça Puro-Sangue Inglês (PSI). E isso é importante para os turfistas, sejam eles

apostadores, criadores e/ou proprietários. E são três aspectos que são levados em

consideração na avaliação de um PSI.

1. Pedigree – isto é sua genealogia. Todos os cavalos são registrados no studbook8

com seus mapas genealógicos dos seus ascendentes, a consulta pode ser feita no

sítio do studbook. Também são registradas as campanhas de performance (3º

aspecto) dos cavalos.

2. Conformação física – trata-se das estruturas visíveis que o cavalo apresenta, se

possui um corpo harmonioso, seus cascos são bem formados, se tem alguma

deficiência física, a distancia do galope, se está mancando, etc. Em suma, são as

informações obtidas com o simples olhar.

3. Performance – trata-se da atuação do cavalo. Só depois que ele compete com

outros cavalos que se torna possível mensurar o seu desempenho em diferentes

7 Salvo em páreos normais os cavalos podem correr medicados com Lasix (furosemida) – um diurético e

anti-hipertensivo. 8 O studbook é um organismo existente em paises criadores de cavalos de corrida. No Brasil ele está

subordinado ao Ministério da Agricultura, porém gerido pela Associação Brasileira de Criadores de

Proprietário do Cavalo de Corrida (ABCPCC).

7

pistas e distâncias. O número de vitórias. E descobrir, assim, se é um cavalo de

velocidade curtas ou longas distancias – sprinter ou stayer. Etc.

O aspecto da performance é, ao que me parece, aquele que possui inúmeras

nuances e detalhes, inclusive somadas às anteriores, a que serve de base para os

turfistas-apostadores apostarem, para turfistas-proprietários comprarem seus

“produtos”9 e para turfistas-reprodutores fazerem as coberturas

10 de determinado(s)

cavalo(s) com determinada(s) égua(s). Há, em todos estes três aspectos, um processo

“científico” para a escolha de determinados cavalos. E este lado cientifico, quero situar

entre a zootecnia/genética com a hermenêutica.

Por parte dos criadores, se pode dizer com certa segurança, que seu lado

cientifico está mais para a zootecnia. Tenho escutado de alguns deles que a genética não

é tão precisa como se imagina, há inúmeras nuances que fazem que o resultado seja incerto.

Entretanto, parece existir uma única regra: que se cruzar ruim com ruim não vai dar

coisa boa, mas se cruzar bom com bom pode ser que dê coisa boa, o que também não é

certo. A regra é ela mesma incógnita e incerta, mas é uma regra. E cito um trecho do

livro de Samir Abujamra que elucida bem este aspecto, num diálogo dele com um dos

seus amigos criadores de PSI:

– Então a coisa funciona como uma loteria?

– De forma alguma. Um garanhão de pedigree clássico que tenha bons nomes

em qualquer ponto do pedigree terá mais chance. Há também outros fatores

que é preciso considerar: as afinidades e as incompatibilidades. O criador

precisa estudar bem as coberturas. Precisa acompanhar os resultados das

melhores corridas e estudar os pedigrees dos ganhadores (ABUJAMRA,

2011, p. 151).

No mesmo sentido, Sergio Barcellos ao discorrer acerca da importância da

ascendência do cavalo Spinning World, ganhador do Jacques Le Marois e do Moulin de

Longchampa vai dizer que “Spinning World é produto do cruzamento de Nureyev em

mãe Riverman [nome do seu pai da mãe, seu avó], ademais de ‘linebred’ 2 x 4 sobre

Northern Dancer e 3 x 5 sobre Nasrullah. Talvez para demonstrar que nesta atividade

nada ocorre por acaso”.(BARCELLOS, 2002, p. 117). Ou seja, não há acaso, o existe

são intenções que podem ou não se concretizar. E “por não se tratar de uma ciência

exata, criar bons cavalos de corrida sempre dependeu muito mais da capacidade de

9 A expressão “produto” consta sobre tudo nos leilões de cavalos desmamados, referindo tanto aos potros

como potrancas. 10

“Cobrir” e “cobertura” são expressões que se referem ao cruzamento de garanhões e éguas.

8

observação e mesmo da intuição das pessoas, do que de regras padronizadas de

conduta” (BARCELLOS, 2002, p. 16).

Do lado do público expectador que aposta também há essas mesmas

preocupações. Sempre se referiam a uma aparente lógica das corridas. Essa lógica

orienta a leitura do programa e a leitura do canter. Isto é a interpretação dos sinais

emitidos por estes dois momentos.

O programa é uma folha elaborada e distribuída pelo próprio Jockey Club

Brasileiro onde aparecerem informações a respeito da reunião dos páreos do dia. Nele

consta a hora e as distâncias de cada páreo. Qual a enturmação do páreo, por exemplo,

potrancas de 3 anos sem vitória no Rio e em São Paulo. No mais aparece assim:

3º Páreo Às 15h20m

Prêmio Mangangá – 1995

1100m Pista de Areia, curva variante.

Recorde: 1m03s10 Dollar Figheter (09.04.96)

Bolsa: R$ 17.278,80, sendo R$7.700,00 ao primeiro colocado;

R$ 2.310,00 ao 2º (...).

Potrancas de 3 anos sem vitória no Rio e em SP.

Número e Produto Peso

ant. Jóquei ou aprendiz Peso Baliza

Treinador

1 Super Angel 457 A Mota 57 1 V Paim (CT)

2 Pérola Nobre Est A Macial 2 57/5 2 AR Silva

3 Fancy Maker 410 Raphael Freire 57 3 LA Fernandes F°

4 Independence Est R Salgado 57 4 A Castillo

5 Mary Corleone Est B Pinheiro 3 57/4 5 O Loezer

... ... ... ... ... ...

“Peso ant.” abreviação para peso anterior. E quando o cavalo não apresenta peso

registrado da sua corrida anterior no Hipódromo da Gávea aparece “Est”, abreviação

para estreante no hipódromo. O número ao lado do nome do jóquei significa que ele é

aprendiz de nível 1 à 5, sua graduação na Escola de Aprendiz do Jockey Club

Brasileiro. O peso ao lado, é o peso que o jóquei levará em cima do cavalo, no caso,

57kg. Os aprendizes levaram, pelo fato de serem aprendizes, descarga por tanto ao invés

de 57kg levaram, o aprendi nível 2 55kg e o nível 3 54kg. O “CT” ao lado no nome do

treinador é a sigla para Centro de Treinamento.

Continuando, em linha, o páreo do programa:

Campanha Total

3 colocações, data e última apresentação Dist./

Pista Tempo Rateio

Areia e Grama Só Grama

S V C S V C

1 06 00 02 03 00 01 2,x,4 10.03 6.(07) Morena Marina 22 ¼ 1.1np 70s5 5,3

2 01 01 00 00 00 00 0,0,0 09.02 1.(04) Troppo Porte cs 0.8am 50s5 0,0

3 07 00 03 04 00 01 5,5,3 15.03 6.(08) Bubblegum 4 ½ 1.0gm 55s7 28,1

4 02 00 01 02 00 01 0,0,8 20.01 5.(07) Nip 3 ¼ cj 1.4gm 84s8 6,2

9

5 05 01 03 06 00 01 u,5,u 05.08 5.(06) Princess of Speed 31 ¼ 1.5nm 14nm 35,7

... ... ... ... ... ... ... ... ... ...

Campanha total é o número de vezes que o animal correu em todos os

hipódromos, “S” é o número de saídas, “V” vitórias e “C” colocações. Na coluna

seguinte, apresenta as 3 últimas colocações, lê-se da esquerda para a direita. A letra “x”

representa colocações acima do 9º lugar, “u” é último. Depois vem a data da última

apresentação, sua colocação, em parentes quantos cavalos inscritos no páreo, o nome do

vencedor, se primeiro lugar, o nome do segundo colocado e a distancia que deve do

vencedor. A distância é medida em corpos e fracionamento do corpo11

. “CJ” é

hipódromo de Cidade Jardim (SP). Não identifiquei a sigla “CS”, provavelmente seja

um hipódromo do interior, de penca, por causa da distancia de 800 metros. Em distância

sem os zeros. A pista está abreviada: “g” é pista de grama, “a” areia e “n” para corrida a

noite. Em seguida é a sigla da condição de umidade da pista: “l” se leve, “m” macia, “p”

pesada. O rateio é a divisão proporcional da cotação do premio do cavalo no páreo.

E para final a linha de informações, tem as cores das fartas dos proprietários, o

sexo e a pelagem dos animais, a idade, a filiação com os nomes do pai e da mãe do

cavalo, depois o nome do criador e do proprietário12

.

Há além do programa oficial programas “alternativos” que dão palpites e

apresentam um detalhamento melhor da campanha dos cavalos. E há a revista semanal,

Turfe Brasil, que dá os históricos das provas passada muito mais detalhada e com

muitas outras informações de cada campanha que seria exaustivo até mesmo enumerá-

las. E de fato, como Eduardo, economista aposentado, fez questão de observar: a revista

é a Bíblia do turfista.

Os turfistas colidem essas informações do programa, com ou sem a revista, e

estudam o(s) páreo(s). Dependendo da natureza do páreo pode inclinar a um ou outro

aspecto. Outros desenvolvem técnicas de leituras idiossincráticas que focando

sequencialmente outros aspectos. Também chamada de manias. De qualquer forma

constroem informações hipotéticas com os dados do que está no papel. Há, ainda,

informações que são divulgadas no dia da corrida, tais como as condições das pistas, se

11

A medida corpo se refere ao corpo do cavalo que é de aproximadamente 2 metros. O fracionamentos do

corpo são: 1/3, meio corpo, palheta (antes do pescoço), pescoço, ½ pescoço, cabeça, ½ cabeça, focinho e

milímetro. 12

Neste instante a comissão de corrida está elaborando outra formatação programa, a ordem será

diferente. Porém o único acréscimo que me adiantaram é colocar o nome do avô materno do cavalo, e

nada seria suprimido.

10

algum jóquei foi trocado, se algum cavalo foi retirado e se correrá desferrado – isto é

sem o uso das ferraduras.

A segunda etapa é a parte visual, isto é a “leitura” dos cavalos, dos sinais. E aí

há dois momentos fundamentais, o primeiro, menos importante que o segundo, é o

estado dos cavalos no paddock. Paddock é um local onde os cavalos andam guiados

pelos seus respectivos cavalariços aguardando os jóqueis. Nesse momento alguns

observam os estado do animal: seu caminhar, sua pelagem, a musculatura, seu animo e

seu estado de espírito.

E o segundo momento é o canter. O canter é o galope de apresentação que os

cavalos fazem montados com os jóqueis uns dez minutos, mais ou menos, antes do

páreo. E aí se observa além também dos itens anteriores, o seu galope, a posição das

orelhas, o rabo, se o cavalo está concentrado, a competência do jóquei na montaria etc.

E, além disso, há critérios que entram nessa analise que são os emotivos, onde se pode

dizer que “tais decisões [(...) dependem] de um elemento quase místico, descrito com a

faculdade de ‘ouvir estrelas’ e ‘falar com os cavalos’”(BARCELLOS, 2002, p. 19).

Minha hipótese é que todo turfista é um hermeneuta. Desejo estar dizendo com

isto que os turfistas fazem um conjunto de interpretações das informações hípicas: uma

interpretação sobre os páreos, outros sobre o histórico dos cavalos e outra sobre os

sinais físicos que os cavalos apresentam no paddock e no canter. Essa hermenêutica faz

parte da sua socialização neste mundo, além de ser um ingrediente fundamental de suas

formas de socialidade e sociabilidade. Pois quem sabe (e/ou aparenta saber) discorrer

sobre os conhecimentos hipológicos é bem quisto. E por que não “cientistas”? Se

considerarmos que eles fazem uma interpretação profunda de todas as variáveis que

participam da corrida, como natureza, números e todos os outros sinais que se

apresentam. Lembro que, no mesmo sentido da fala citada acima de Pita, Milton Lodi

uma vez me explicando o que eram as corridas de cavalo, da criação à corridas, que

“isto aqui é uma ciência, só que uma ciência inexata”. Ou ainda, como observou Sergio

Barcellos, numa entrevista, que as que as corridas de cavalo eram como “jogar xadrez

com a natureza”. Com isso, fica evidente que o processo de seleção dos cavalos não

abre tanto espaço para adivinhações, superstições astrais, sonhos místicos, numerologia

ou outras crendices, a não se para a sensibilidade de “ouvir os cavalos”. Não que elas

não existam, mas nos momentos que as vi sendo verbalmente expressas surgiam olhares

de suspeita, ou ainda, comentários do tipo: “o que uma coisa tem a ver com a outra?”.

11

Um exemplo, Donato mostrando sua pule vencedora para os caras na tribuna, havia

jogado na dupla exata:

– Olha aqui. Joguei no 2 porque tinha o melhor retrospecto. Não podia perder! E

joguei esse 4 aqui porque eu nasci no dia 4 de agosto...

Eduardo, sentando ao meu lado, me perguntou:

– O que uma coisa tem a ver com a outra? Tudo bem ele examinar o retrospecto,

mas o que tem a ver o dia que ele nasceu com corrida de cavalo?

– Vai ver é simpatia – sugeri.

– Você vai me desculpar, mas não tem cabimento uma coisa dessas!

Portanto, muito mais do que sorte ou simpatia, a prática demanda estudo,

dedicação, conhecimento e exegese, isto é, técnicas, que no limite são também

sensibilidades. Ao menos é assim que tenho interpretado esses interpretadores hípicos.

Os elementos sobrenaturais explicativos como falei não estão excluídos, mas quando

mais racionais ou mais alinhado com a racionalidade melhor.

Gilson, médico de 72 anos, é um dos “rapazes” do grupo de apostadores no qual

fui aceito, disse que eu estava com “a vista limpa” quando o informei que acabará de

acertar na dupla. Estava se referindo com essa expressão à falta de dificuldade de

enxergar os sinais tanto dos programas (programa oficial + revista) e dos cavalos e

interpretá-los de modo correto. Provavelmente, ao dizer isso, estava comparando com a

semiologia médica. Aliás, parece ser sempre um elogio dizer ao camarada que ele está

com a “vista limpa” ou com “bom olhos”, isto é enxergando os sinais que estão a sua

frente.

Alguns dias antes escrever estas linhas, estava sentado com os rapazes e como se

fez sentir o tempo esfriado, um senhor disse que a meteorologia previa chuva para o dia

seguinte. E após correr o páreo. Observou-se um número de urubus que estavam abaixo

do firmamento. E eram inúmeros. Boneca ficou olhando para cima e disse:

– Se aquele grupo continuar voando por ali [a su-sudoeste] não vai chover.

Agora, se passarem a voar para lá [a su-sudoeste] vai chover.

Com isto ele estava, evidentemente, mostrando seu conhecimento naturalístico

que é ver e interpretar os sinais que a natureza está informando. Ninguém pareceu dar

grandes bolas para sua previsão por meio dos urubus, ainda mais que com o passar das

horas o bando não foi para su-sudoeste, o que ia, portanto, contra a previsão do tempo.

12

Logo depois, quando os cavalos entraram para fazer o canter do 9º páreo. Todos

pararam para prestarem atenção e examinar os cavalos. Terminado o canter dos 10

cavalos inscritos Boneca comentou aos demais:

– Há muito tempo que não vejo um canter bonito como desse número seis. Que

categoria de galope! Bonito, na medida, como tinha que ser. Há muito tempo que não

vejo um assim.

Ninguém demonstrou dar bola para o que ele disse. Tenho duas hipóteses para

esse desdém. A) Talvez pelo descrédito da previsão de chuva pelo voo dos urubus. B)

Era um páreo para produtos de 3 anos sem vitória. E o cavalo 6 – Artouche – tinha uma

campanha de 3 - 2º lugares, 1 - 3º lugar, e 2 - 5º lugares. O que, olhando a campanha de

outros cavalos era relativamente similar de alguns. Mas por se tratar de um produto de

criação e de propriedade do Haras Santa Maria de Araras – líder na estatística da

temporada 2013/2014 de criadores e 2º na estatística de proprietário – o “peso da

farda”13

era um provável fator. Tanto é que o totalizador sinalava que para este cavalo

um favoritismo de 2 para 114

. Sendo assim ele estava falando o que muita gente também

acreditava mesmo independente do canter.

Artouche venceu atropelando os adversários nos 100 metros finais. Ninguém ali

para quem o Boneca comentou sobre o canter aprecia ter apostado ou acertado, ou

fizeram outras modalidades de aposta como dupla ou trifeta. Tinha apostado também no

mesmo cavalo e comentei: “Você tinha razão, no canter parecia...”. Antes que pudesse

dizer mais alguma coisa, começou:

– Aqui – se referindo aos demais – ninguém sabe nada. Ninguém sabe nada! É

tudo neném! Tudo neném! Ninguém sabe é nada! Na próxima vez que ver isso não vou

apostar só 10 reais, vou apostar 1 milhão! 1 trilhão!

No dia seguinte, teve pancadas de chuva.

Assim, há o lado do estudo do “papel” – programas, pedigree, etc – e a leitura

dos sinais naturais. Ainda falta o terceiro que é o lado humano. E há eles várias

variáveis. O primeiro é a existência de um canal exclusivo do Jockey Club na tevê por

assinatura. É através dele que os aficionados, uma hora antes das corridas, acompanham

os comentários dos páreos pelos “especializados”, cronistas e comentadores do turfe.

Alguns os chamam de “a cátedra”. E eles fazem suas indicações com base no que

13

Todo proprietário tem uma farda com cores e desenhos próprios que os jóqueis usam. 14

O totalizador indica quando é a pule (o valor do bilhete) de cada cavalo para cada 1 Real apostado. E

quando mais gente e maiores forem as apostas em um cavalo menor é sua pule.

13

acreditam serem os melhores cavalos de cada páreo. Alguns tomam nota desses palpites,

para apostar. E outros, não para necessariamente apostar por causa deles, mas para

servir como um norte aos seus estudos. E com base nestas informações seguem para os

hipódromos15

.

O segundo está no movimento do rateio. Quando o rateio de um cavalo está

baixo ou alto significa que estão apostando muito ou pouco em um ou noutro cavalo. A

atenção e a leitura do totalizador são importantes. Ela pode fazer com que se deixe de se

apostar. Por exemplo, se ao estudar o páreo e observar o cavalo se estar convicto que o

cavalo vai ganhar, porém seu favoritismo é tanto que está pagando R$ 1 para cada R$ 1

apostando, em outras palavras, está devolvendo dinheiro. Há alguns que ficam de olho

no totalizador até os últimos minutos restantes para o fechamento das apostas. E quando

acontece de um cavalo que, por exemplo, começou pagando uma pule de 15 para 1 e, de

repente, tem a sua pule apresentando queda para 5 para 1, alguns acreditam que existem

“coisas”, isto é, suspeitam que alguém estava escondendo informação a respeito do

cavalo. E apostam nesse que caiu.

E o fato que parece ser complexo dentro deste universo são as relações em si,

pessoa a pessoa. As teias que são estabelecidas dentro do prado, para muitos parecem

ser vitais, seja agregar valor ou para receber “barbadas”, ao menos aquelas que incluem

profissionais do turfe. Ser amigo, conhecido ou chegado de treinador(es) ou jóquei(s)16

faz com que o turfista tenha uma imagem de “descolado”, de alguém que tem acesso a

informações de dentro e privilegiadas. Isto é, conseguir palpites e barbadas de pessoas

que lidam no dia-a-dia com os cavalos. E se torna alguém que “sabe das coisas” que não

escrevem nos programas turfísticos.

Há também a busca pela associação, quase do mesmo tipo da anterior, com os

“catedráticos”. Essa categoria de atribuição de “catedrático” é ambígua, ao mesmo

tempo em que serve para elogiar é também usada de forma irônica. No entanto,

ninguém se diz “catedrático”, sempre é o outro. Ser catedrático significa dizer que

alguém é um profundo entendedor de corridas e de cavalos e/ou ironizar esse

conhecimento. O memorialista Luís Edmundo ofereceu uma boa definição do termo,

incluindo a abrangência de sua ambiguidade:

15

Como a minha pesquisa se circunscreve no âmbito do hipódromo ficam alijados os frequentadores das

agências, das apostas online e do teleturfe. 16

Ao listar esses dois profissionais não quero afirmar que sejam só e somente só que se buscam se

associar e pedir palpite. Também se pede ao segundo-gerente, o auxiliar do treinador, e ao cavalariços, a

pessoa que cuida do cavalo, o escova, limpa sua cocheira. Mas o status de um jóquei ou treinador é

diferenciado.

14

[...] o catedrático, tipo curioso do hipismo nacional, geralmente empregado

público. [...] Esse homem, que se tem por um técnico formidável em assuntos

de corridas, quando repousa na repartição (como um ótimo empregado

público, deixando crescer a barba), se não está pensando, está lendo tudo o

que existe sobre a próxima corrida e o que divulgam as gazetas da cidade.

Conhece, por isso, todos os comentários e potins urdidos sobre a próxima

corrida. O homem sabe coisas extraordinárias: a saúde do animal que vai

correr, a resistência física do seu jóquei, a capacidade moral do seu

proprietário, o que é muito importante, estado em que se encontra a raia, a

verdade sobre cotejos que fazem ao lusco-fusco da madrugada e que morrem

no segredo das sombras, sombras que não escrevem secção esportivas nos

jornais... Além disso está apto a informar a filiação, o peso ou a coudelaria de

qualquer cavalo com matrícula nos prados da cidade, como diz, igualmente, o

número de vitórias que ele já obteve, citando o nome dos jóqueis que o

montavam e o tempo que levou nas carreiras, o que deram as poules... Um

assombro! O catedrático, porém, espécie de oráculo de Delfos, conhecendo

tudo, até o nome do cavalo que vai ganhar, quando joga, é aquela fatalidade:

– perde sempre! Mas vai ficando cada vez mais catedrático... (EDMUNDO,

2003, pp. 530-1).

Para quem não entende muito de corrida ou não se sente na capacidade – por

preguiça talvez – de estudar o páreo pode recorrer e solicitar palpites aos “catedráticos”.

E há gente que percorre todo o hipódromo atrás das pessoas para pedir ou descobrir um

palpite ou uma barbada. E pedir uma barbada a um “catedrático” é um modo também de

enaltecer e envaidecer a pessoa, se colocando abaixo dela. Porque “dar é manifestar

superioridade, é ser mais, mais elevado, magister; aceitar sem retribuir, ou sem retribuir

mais, é subordinar-se, torna-se cliente e servidor, ser pequeno, ficar mais abaixo

(minister)” (MAUSS, 2003, p. 305). E em caso de acerto se retribui, de alguma forma,

com generosidade pelo palpite recebido, ou poderá ter essa “porta” fechada. Se paga

uma cerveja, um lanche ou em dinheiro.

Se o turfe e as apostas em torno dele podem ser compreendidos com um

potlatch, as barbadas sugerem algo um pouco menos agonista, do tipo kula. Elas

circulam dentro do prado. Barbada é uma categoria nativa par excellence que quer dizer

que um cavalo, frente seus oponentes é tido como superior e que sua vitória é inevitável.

Entretanto, esta é uma categoria enigmática. Pois ao mesmo tempo em existe não existe.

Ao menos, quando pedia uma barbada, raras foram às vezes que me deram. No mais,

15

ouvia que “essa coisa de barbada não existe”. Mas como não? “Só é barbada quando

termina o páreo”.

Portanto, a troca de barbada, que é esse palpite revestido por uma áurea

semicelestial, quando vem de-quem-vem, é fundamental para a criação e manutenção

das relações. Porque quem dá acredita poder estar ajudando alguém e aquele que recebe

também pode ser sentir ajudado, no sentido de se dar bem. O que não quero dizer que

em certos casos não possa ser também interesseira. Às vezes ela é a causa também do

rompimento de relações. Pois isto um complicador na realização da aposta. Um quadro

que mostra isso perfeitamente é a história que Boneca contou, num tom de misto

desabafo e ironia, para os rapazes no intervalo entre os páreos. A história, resumida, era

mais ou menos assim:

Em casa com a revista em mãos, Boneca, passou a noite estudando os

páreos do dia seguinte. Analisou cuidadosamente as campanhas dos cavalos.

Observava cuidadosamente quais foram as categorias que os cavalos

correram, de quem perderam e de quem ganharam e por quantos corpos. E

assim ia madrugada adentro anotando seus palpites para o dia seguinte.

Porém do caminho até onde deixava o carro no estacionamento até se

acomodar na tribuna, apareceram treinadores, cavalariços e outros tantos

conhecidos dele vindo que lhe dar “barbadas”. “Essa é imperdível!”. “Tira

isso, coloca esse. Não perde nunca!”. E assim, até chegar, no caminho, vai

modificando todo o seu estudo de uma noite inteira e, o que é pior, vai

perdendo com esses palpites.

Havia dias em que via um ou outro irritado por ter apostado numa barbada que

alguém lhe contou. Quando Eduardo perdia por causa desse tipo de barbadas reclamava

consigo mesmo: “É isso que dá ir pela cabeça dos outros!”. Abria seu programa e

voltava a estudar o páreo seguinte silenciosamente e, depois de um tempo, qualificava

para mim quem eram esses que lhe tinham falado sobre a tal barbada: “São os

emissários do Diabo! Como o Diabo não pode vir manda os seus emissários”.

Por fim, há a formação dos grupos. São pequenos grupos que se formam dentro

do hipódromo, sentados nos bancos do salão de aposta, das lanchonetes, do restaurante

e nas arquibancadas. Esses grupos não parecem ter o caráter fechado como uma

panelinha, mas antes abertos para dialogar com os de fora e com todos os casos acima.

Falando do grupo no qual fui aceito durante o processo da pesquisa, posso dizer, que a

16

este grupo é constituído pela proximidade e semelhança socioeconômica. Para se ter

uma ideia, alguns dos membros do grupo que faço parte – um dos maiores, justamente

por não estabelecer fronteira claras entre “nós e eles” – são de uma mesma classe social

e partilham de ideologias não tão divergentes e/ou possuem outras afinidades além do

prazer pelas corridas hípicas. Fazem parte – os mais frequentes –: um economista

aposentado, um bancário aposentado, um ex-comandante da Polícia Militar, um médico,

dois advogados, três empresários e outros de profissão oculta. A grande maioria partilha

de uma visão liberal. Sentamos sempre numa mesma região da tribuna para assistir,

debater sobre os prováveis vencedores, consultar o parceiro para ter dele uma opinião

ou uma sugestão e apostar nas corridas. E é nesses momentos também são debatidas

ideias e opiniões sobre os acontecimentos recentes noticiados pelos jornais e telejornais,

sejam recordações e histórias do passado, falar de futebol e sobre mulheres ou apenas

apreciá-las, trocar sugestões de hotéis, viagens, restaurantes, motéis, rendezvous etc.

Agora, após essa exaustiva descrição dos processos pelo quais um jogador faz e

se submete para eleger um cavalo, vale dizer que todos, ou a grande maioria, tem

consciência dos imponderáveis da corrida. Cada páreo é um páreo, ou nas palavras de

Eduardo: “Cada páreo é um filme diferente”. Um cavalo em perfeito estado pode ficar

“preso” atrás dos seus oponentes. Ou até mesmo quebrar a perna. O jóquei pode cair. A

ferradura pode soltar, o cavalo pode quebrar a perna... Enfim, inúmeras coisas podem

acontecer.

Então ao que se pode perceber que o turfe não é um jogo que se conta

inteiramente só com a sorte, ele exige habilidades. E estas habilidades, recapitulando de

forma condensada, são: descobrir a condição física do cavalo, tanto o seu histórico

quando no momento antes da corrida; conhecer as competências de treino do treinador,

as condições físicas e morais dos jóqueis e sua competência; se a condição da raia se

adéqua as características do animal e, por fim, a moral do proprietário. Isso constitui

aproximadamente 90% da habilidade individual para acertar um páreo.

Os outros 10% são a crenças nas histórias dos outros, os palpites e as barbadas.

E também os imponderáveis das corridas. E por mais paradoxal e insólito que possa

parecer esses 10% tem um peso superior aos 80% do estudo.

De qualquer forma, a disputa e o prazer de estar na disputa são muito mais

apreciados do que o dinheiro apostado. A vitória é sim importante porque alimenta o

ego, e dá o prazer de ser mais esperto e malandro que o outro. Não por acaso numa das

primeiras vezes que entrava no Hipódromo da Gávea J. Santos me sugeriu para não

17

retornar. Dizia ele que eu devia aproveitar a juventude que me resta para levar as

meninas ao motel, ficar longe do Jockey, não arrumar problemas, porque aquilo não

passava de um “cemitério de malandro”.

– Por que um “cemitério de malandro”?

– Por que, não está vendo, só tem velho. Eles acham que são mais malandros

que outros, mas estão por aí... tudo morrendo.

Apesar dessa negatividade são as corridas que os unem, é o pretexto para

socializar e disputar, de saber mais. É o momento de lazer e entretenimento longe dos

problemas cotidianos onde tudo que importa é descobrir quem será o vencedor no

próximo páreo e se sairá dali com mais dinheiro de que quando entrou. Por inferno os

problemas!

Homens e cavalos. A certeza de um pela incerteza do outro. A beleza estética e o

fascínio pela besta. O conhecimento e a ignorância. Caminhos por uma ciência inexata,

por onde guiam a um único destino: centauro. Há muito ainda o que ser trabalhado, e

este é o primeiro esforço em interpretar aqueles que interpretam, meio homens meio

cavalos. É como olhar por cima de muitos e muitos ombros que olham por cima de

outros ombros. E, como canta o baiano de Santo Amaro: “E aquilo que nesse momento

se revelará aos povos, surpreenderá a todos, não por ser exótico, mas pelo fato de poder

ter sempre estado oculto, quando terá sido o óbvio”.

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