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Hoje tem mundo cão? Tem sim, senhor!1
O sensacionalismo como estratégia comercial no telejornal SBT Rio
Aline GRUPILLO2
Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, RJ
Resumo
O objetivo deste artigo é analisar em que medida o telejornalismo contemporâneo busca o
vínculo com as camadas econômicas mais baixas pelo resgate de formatos populares
alinhados com o sensacionalismo e com a linguagem do espetáculo. Para isso, tomamos
como objeto de estudo o telejornal SBT Rio, do Sistema Brasileiro de Televisão que, ao
adotar o jornalismo mundo cão, consolidou a vice-liderança de audiência em todo o estado.
A análise do conteúdo audiovisual do telejornal durante uma semana do mês de maio
permitiu classificar as reportagens exibidas, bem como observar o encaminhamento
auferido às narrativas. A partir da coleta de dados, o artigo propõe pensar os usos e
apropriações mercantilistas do popular pelas organizações de mídia ainda que esse
movimento represente a volta de uma TV considerada arcaica, sem qualidade.
Palavras-chave: telejornalismo; jornalismo de televisão; telejornal popular; cultura popular
Introdução
O objetivo deste artigo é discutir como a escolha estratégica da linguagem popular
ofereceu ao telejornal SBT Rio as condições propícias para o posicionamento como produto
informativo alternativo às classes econômicas mais baixas, bem como o levou à vice-
liderança de audiência no estado do Rio de Janeiro. A partir de 2009, o telejornal investiu
no jornalismo sensacionalista e na reportagem policial levando para a tela da TV crimes
escabrosos, operações policiais, escândalos envolvendo agentes políticos e temas inusitados
naquilo que se convencionou chamar mundo cão (ROXO & SACRAMENTO, 2015).
Através do resgate do grotesco, do deboche e do espetáculo, o noticiário convoca as
matrizes mais remotas do popular na cultura para se consolidar como produto midiático que
pretende dar ao povo “o que o povo gosta” (MIRA, 1995).
A proposta também lançou mão da linguagem da criatividade e do improviso,
herança das transmissões radiofônicas e do início do broadcasting, traçando, assim, uma
trajetória de volta ao modelo de televisão considerado arcaico – aspecto informal e
1 Trabalho apresentado no GP Telejornalismo do XVI Encontro dos Grupos de Pesquisa em Comunicação, evento
componente do XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. 2 Jornalista e mestranda do Programa de Pós-graduação em Comunicação Social da UFF, email: [email protected]
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improvisado – da década de 1960. E nesse movimento, o SBT Rio se reaproxima da própria
história do SBT.
Na década de 1960, a televisão brasileira viveu seu período de ascensão. O sucesso
de público estava ligado fundamentalmente à aproximação da programação televisiva da
linguagem do ao vivo fortemente empregada nos programas de auditório e nos programas
policiais de apelo popular. O Povo na TV e O Homem do Sapato Branco são exemplos dos
chamados programas mundo cão, acusados de explorar a miséria humana na televisão.
Mira (1995) destaca que esse tipo de programação era sinônimo de apelação e por
isso mesmo se tornou alvo de uma classe média emergente que pretendia tirar do ar, por
meio do projeto de modernização da TV brasileira, o que era considerado arcaico, de baixo
nível e de mau gosto. O ministro da Comunicação, Hygino Corsseti, chegou a cogitar a
cassação da concessão das emissoras que persistissem com essa prática (ROXO, 2010,
p.179). Mas, antes mesmo que a caça à televisão-espetáculo fosse formalizada, a Rede
Globo e a Tupi assinaram um “protocolo de autocensura” que tinha por objetivo declarar
guerra aos programas populares e “limitar os abusos ou excessos cometidos na luta pela
audiência” (MIRA, 1995, p.37).
É notório, no entanto, que o SBT não desistiu do projeto voltado para o consumo
das classes populares. Na década de 1980, já como Rede Nacional, a emissora levou de
volta à TV os programas de auditório e empreendeu uma reformulação do departamento
jornalístico com o intuito de auferir credibilidade às suas produções televisivas.3 A criação
de um telejornal popular, no entanto, seria materializada anos depois com Aqui Agora. As
duas versões do programa (1991 e 2008) representam o modelo comercial estratégico que
mantém o telejornalismo da emissora de Silvio Santos na concorrência pela audiência.
Aquilo que outrora havia sido perseguido volta, então, com força total à
programação nacional, em um claro movimento que pretendia preencher a lacuna deixada
desde os anos 70 pelo desaparecimento dos programas populares na TV. É, sobretudo, no
formato de Aqui Agora que será espelhado o SBT Rio, telejornal regional, objeto desse
estudo.4
Assim, o jornalismo da emissora carioca encaixa-se dentro de um plano mais
abrangente de descolamento do que é considerado moderno, padrão e civilizado, o que
3 Cf. Roxo, 2010.
4 A reformulação provocou inicialmente a mudança do perfil do apresentador. Saiu Marcelo Castilho, entrou Luiz Bacci,
quadro da segunda versão do Aqui Agora. A vinda do jornalista de São Paulo para o SBT Rio tinha como principal objetivo imprimir um estilo policialesco ao noticiário que, entre outras modificações, aboliu a bancada e adotou o
comentário do âncora como marca do telejornal.
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coloca o telejornal como concorrente direto do noticiário produzido pela Rede Globo. A
reportagem de crimes, de conflitos sociais, das misérias humanas e dos temas pitorescos,
embora esteticamente grosseira, cumpre a função de oferecer ao espectador o impacto de
imagens ao vivo, e ao telejornal, a possibilidade de ser o elo constitutivo do gosto popular
na programação local.
Para entender como se dá essa dinâmica, analisamos o SBT Rio durante uma
semana, dos dias 16 a 20/05/16, classificando as reportagens exibidas, bem como
observando os encaminhamentos e vieses auferidos às narrativas. Entre os resultados
obtidos, nota-se a constante negociação com as classes populares, não apenas pela
linguagem e pelos temas abordados, em consonância com as necessidades das classes mais
pobres, mas também pela postura do telejornal como uma espécie de representante do povo,
típico do populismo televisual. A performance dos repórteres e da apresentadora tem
importância fundamental nesse processo.
Tiro, porrada e bomba como espetáculo popular
A primeira exibição do SBT Rio ocorreu em 01 de dezembro de 1999. O telejornal
entrou no ar com formato padrão e permaneceu assim por, pelo menos, 11 anos sem
incomodar seus principais concorrentes no mercado regional da comunicação: a Rede
Record e a Rede Globo.5 Alguns fatores influenciaram diretamente para a ocupação de um
tímido terceiro lugar na disputa pela audiência.
A produção de um telejornal era incompatível com a estrutura da emissora carioca.6
A TVS Rio de Janeiro começou a operar com equipamentos já defasados tecnologicamente,
arrendados junto com a concessão da antiga TV Tupi. O quadro funcional, em número
insuficiente para dar conta da demanda produtiva noticiosa de uma cidade complexa como
o Rio de Janeiro, também contribuiu negativamente para que o SBT Rio fosse "um
telejornal piloto" se comparado com os demais produzidos à época.7
5 Naquele momento, o principal desafio do SBT Rio era conquistar a confiança do telespectador já que a emissora carioca
estava há anos sem produzir conteúdo jornalístico local. Cf. Casé, 2010. 6 Historicamente, a emissora do Rio de Janeiro foi projetada para ser apenas uma estação exibidora, exigindo baixo
investimento do Grupo Silvio Santos que disponibilizou para a montagem, à época, um milhão de dólares. Valor irrisório
se comparado ao investimento no Centro de Produções da TVS São Paulo, que custou ao empresário 6 milhões de dólares
(Mira, 1995). Em 1999, quando entrou no ar, o telejornal tinha oito jornalistas na equipe. 7 De acordo com o editor de VT, José Augusto Nascimento, em atividade no SBT desde 1999, a falta de qualidade técnica
era o principal complicador para a produção do telejornal. O termo piloto, utilizado para programas ainda em teste,
demonstra o caráter incipiente do telejornal exibido na base do erro e do acerto, sem qualquer organização ou treinamento prévio da equipe. Entrevista informal à autora em 25 jun. 2016
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A ata da reunião8 realizada em 20 de outubro daquele ano, entre a direção,
administradores, técnicos e jornalistas, mostra que a proposta inicial da emissora era estrear
o telejornal um mês depois, no dia 23 de novembro. O lançamento, porém, deveria ser feito
com “baixo custo” ou por meio de permutas, mesmo assim, a pretensão era fazer do
telejornal “um ponto de encontro para os cariocas”.
Se por um lado o SBT Rio não conseguia concorrer com a Rede Globo, dadas as
más condições técnicas, por outro também não ameaçava o telejornalismo da Rede Record,
cuja expertise na programação local estava exatamente na produção de notícias em
linguagem popular.
O reposicionamento estratégico do SBT Rio ocorreu a partir de 2009 quando a
direção regional do noticiário adotou o chamado jornalismo mundo cão (ROXO &
SACRAMENTO; 2015) como forma de se reaproximar de seu público preferencial. O
telejornal assumiu uma linha editorial pautada na violência urbana cotidiana, nos crimes
bárbaros, nos conflitos sociais e na miséria humana.
Paulatinamente, a retórica discursiva populista do noticiário (FREIRE FILHO,
2007) apareceu na performance dos repórteres e, principalmente, na dos apresentadores que
passaram a fazer comentários acalorados em defesa dos interesses das camadas mais baixas
da população condenando os responsáveis pelo sofrimento alheio.
Atualmente, o estilo do jornalismo como representante do povo é simbolizado no
bordão utilizado pela apresentadora carismática Isabele Benito: “É dedo na cara”. A frase,
quase sempre usada para demonstrar indignação com descasos variados do poder público,
sucede reportagens carregadas de dramaticidade, suspense e tensão, no melhor estilo tiro,
porrada e bomba, como esse tipo de reportagem costuma ser chamada pelos próprios
produtores do jornalístico.
Análise do conteúdo audiovisual do SBT Rio
O SBT Rio alimenta o discurso do jornalismo prestador de serviço público. Apesar
disso, a análise das reportagens exibidas durante os dias 16 a 20/05/16 apontam para um
processo de negociação que atrai as audiências populares mais pela espetacularização da
barbárie e da violência através da produção de imagens impactantes e sensacionalistas do
que propriamente pela discussão de uma problemática social local. Observa-se um
8 Documento do acervo da autora.
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desequilíbrio na proporção entre os assuntos tratados pelo telejornal (Figura 1), além da
ênfase nos dramas pessoais como recorte preferencial das reportagens.
Os assuntos com temática policial (operações e incursões em áreas conflagradas,
prisões, vítimas de mortes violentas e protesto envolvendo a ação da polícia) somaram 20
reportagens no período. O telejornal utilizou ainda nove entradas ao vivo (links) como
complemento aos assuntos tratados. Entre as matérias de maior relevância durante a
pesquisa estão o assassinato de um adolescente no complexo de favelas do Alemão, na zona
norte do Rio de Janeiro; a morte da uma criança recém-nascida atingida por uma bala
perdida dentro do carro da mãe; e assaltos em sequência – popularmente conhecidos como
arrastões – na região de Jacarepaguá, zona oeste da cidade.
Em média, os assuntos estiveram no ar durante 10 minutos, sendo simultaneamente
exibidos e comentados pela apresentadora. O recurso de repetição de imagens foi
largamente utilizado para ilustrar não apenas nas intervenções da jornalista, mas também
nas entradas ao vivo dos repórteres.
Figura 1: tipos de reportagens exibidas no SBT Rio
43%
24%
11%
2%7%
13%
Tipo de Reportagem
Polícia
Política
Educação
Saúde
Serviço
Geral
Fonte: Aline Grupillo
Os temas políticos aparecem em segundo lugar na produção das notícias. A
cobertura, no entanto, foi direcionada para os escândalos de corrupção envolvendo agentes
públicos e a abertura de processos de investigação contra políticos, além da corrida eleitoral
ao pleito municipal, somando 11 matérias. O encaminhamento textual dos repórteres foi
direcionado no sentido de produzir críticas contundentes à administração pública, sem a
apresentação de soluções ou análises mais aprofundadas dos temas em questão.
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No mês de março/16, ao comemorar os altos índices de audiência do telejornal na
página pessoal no facebook, o editor-chefe demonstra que a postura opinativa e crítica seria
intensificada nos meses seguintes como forma de atrair a audiência (Figura 2).
Figura 2: recorte da página do editor-chefe do telejornal no facebook
Fonte: Aline Grupillo, acesso em 21 mar. 2016
No período de observação, os assuntos relacionados à educação pública estadual
enfatizaram as ocupações das escolas e os dramas vivido pelos estudantes, num total de
cinco inserções entre entrevistas pré-gravadas e reportagens, além de uma entrada ao vivo.
A cobertura priorizou a polêmica entorno do movimento de ocupação e as confusões
envolvendo estudantes e agentes públicos.
Dentro do tema Geral foram condensadas questões variadas como a morte do cantor
Cauby Peixoto, um caso de racismo envolvendo um ator negro, o quadro de entretenimento
intitulado Cariocando, exibido todas as sextas-feiras, e matérias de cunho esportivo. Ao
todo, a editoria comportou seis reportagens. A crise administrativa nos hospitais estaduais
redeu apenas uma matéria e outras três foram efetivamente dedicadas à prestação de
serviço: a divulgação de vagas de emprego, dicas para as provas do Enem e o anúncio de
desaparecidos.
Outro dado que chama a atenção é a quantidade de imagens amadoras e de câmeras
de vigilância utilizadas na construção das principais reportagens (Figura 3). Metade das 20
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matérias policiais exibidas contou com imagens oriundas da participação da audiência ou
gravadas por circuitos internos de segurança. A dinâmica se repetiu nas coberturas de
outros setores como Educação, Saúde e Geral.
O estímulo à coprodução da audiência por meio de uma espécie de “denuncismo”
imagético contribui para a produção de um efeito de credibilidade e de um efeito de
presença (FECHINE, 2008) que chancela o telejornal a falar em nome do povo. Portanto,
embora constitua o gênero televisivo pertencente à categoria informação, o SBT Rio
convida também ao lazer e ao entretenimento, constituindo ainda um importante canal “de
acesso ao mundo por meio de seus sons, textos e imagens exibidos na tela”, ainda que de
forma dramatizada (COUTINHO, 2012).
Figura 3: reportagens elaboradas com imagens amadoras ou de vigilância
72%
14%
7%7%
Imagens amadoras e de vigilância
Polícia
Educação
Saúde
Geral
Fonte: Aline Grupillo
Desta forma, o telejornal se (re)aproxima dos modelos constitutivos dos programas
televisivos do próprio SBT, entre eles os programas de auditório, agora, porém, construindo
uma espécie de plateia fora do ar, que se mantém fiel pela identificação com o noticiário.
Atualmente, o SBT Rio ocupa a vice-liderança de audiência no horário de 11h50 às 13h,
sendo acompanhado diariamente em 245 mil residências por quase 675 mil espectadores
preferencialmente entres as classes C, D e E.9
Como explicar a intermitência dos formatos populares na TV? O que garante que a
forma per se será sinônimo de sucesso de público? No Brasil, vários estudos sobre a cultura
de massa procuraram compreender as transformações da cultura popular a partir da
9 Pesquisa encomendada pelo setor comercial da emissora ao IBOPE, realizada no Grande Rio de Janeiro entre fev/14 e
fev/15 demonstrou a preferência do telejornal entre as classes C, D e E.
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emergência dos grandes veículos de comunicação, especialmente a televisão. Esse processo
pressupõe trocas e negociações, tornando, portanto, necessária a problematização do
popular na cultura com o intuito de tentar entender as disputas de poder implícitas no
processo produtivos das mídias massivas.
É disso que o povo gosta (?)
Um dos empreendedores dos Estudos Culturais, Hall (2003) alerta que é preciso
enxergar o popular como um terreno sobre o qual as transformações são operadas, um lugar
de disputas e negociações que continuamente produzem significados e ressignificam
elementos culturais. Nessa perspectiva, não existe um estrato autêntico e autônomo na
cultura popular, ela não deve, portanto, ser entendida num sentido “puro” e ingênuo, mas ao
contrário, revela-se como um campo de forças das relações de domínio e poder.
Desta forma, Hall esclarece que popular não é aquilo que pertence ao povo ou o que
o povo faz, mas antes o que convive junto, em negociação constante, dentro dos mais
variados contextos sociais, econômicos e culturais. Nesse sentido, a expansão do sistema
capitalista potencializou o movimento de apropriação e reapropriação das práticas culturais,
especialmente pela indústria da mídia:
Pensemos, em relação ao imperialismo popular, sobre a história e as relações entre o povo e um dos principais meios de expressão cultural: a imprensa. Voltando ao
deslocamento e à superposição – podemos perceber como a imprensa liberal da classe média da metade do século dezenove foi construída às custas da efetiva destruição e marginalização da imprensa local radical da classe trabalhadora (HALL, 2003, p.251)
O argumento permite pensar que engrenagem é movimentada pelos meios massivos
para compor nesse campo de disputas um circuito (produção, circulação,
distribuição/consumo) que antes de transformar um “evento comunicativo” em notícia, o
torna “narrativa” capaz de dotar de certo sentido uma mensagem por meio de um código em
negociação (HALL, 2003, p. 388-398).
Não por acaso, Martín-Barbero (1997) critica a concepção romântica do conceito de
povo e ressalta que os efeitos da industrialização capitalista incidiram sobre a vida dessas
classes. Para sufocar a conceito desordeiro de povo cria-se, então, o conceito de massa. No
entanto, o povo, seus modos de pensar, consumir e produzir, convivem antes dentro da
sociedade de massas e, por isso, “a de ser pensar o popular na cultura não como algo
limitado ao que se relaciona com seu passado – em um passado rural – mas também e
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principalmente o popular ligado à modernidade, à mestiçagem e à complexidade do urbano”
(MARTÍN-BARBERO, 1997, p.62).
Ao deslocar a análise dos meios de comunicação para o processo de mediações
culturais, Martín-Barbero nos convida a refletir sobre as múltiplas maneiras de convocação
das matrizes culturais populares pelos formatos industriais para atrair as audiências no
consumo midiático. Nesse sentido, o audiovisual uniu com maestria os interesses do capital
às culturas populares, seus desejos, sonhos e anseios.
No que se refere à proximidade dos meios de comunicação de massa do universo
tradicional, a “televisão, mais do que qualquer outro veículo, tem sido a grande
aproveitadora da cultura popular oral brasileira” (SODRÉ, 1972 apud MIRA, 1995, p.131).
De modo geral, para Muniz Sodré, os meios se valem das tradições populares para “fazer
calar as massas” e a incorporação do popular pelo massivo acontece como forma de
controle e mistificação não podendo, portanto, ser reconhecido como “matriz cultural”
(SODRÉ, 1972 apud MIRA, 1995, p.132)
No que diz respeito à TV brasileira e, sobretudo, ao projeto de modernização nos
anos 70, a cooptação da ideia de povo e o escamoteamento do popular serviram à proposta
de criação de uma identidade nacional, o que resultou, de acordo com Ortiz (1947), no veto
aos programas popularescos ou de baixo nível em nome de um padrão para a programação
televisiva.
Se pensadas a partir do contexto histórico da modernidade, essas tentativas de
apagamento das culturas populares ganham contornos mais evidentes. Burke (1989)
esclarece que a ideia de nação tendia à unificação imposta ao povo. Portanto, era preciso
não apenas resgatar, mas preservar a diversidade das culturas populares, seus modos de
falar, crenças, valores, rituais, festas e tradições. A própria dificuldade de definição do
termo “povo” sugere que a “cultura popular não é monolítica, nem homogênea” (BURKE,
1989, p.49), tampouco limitada às demarcações geográficas ou à simples separação daquilo
que é considerado erudito, a cultura com C maiúsculo.
Nos termos de Bakhtin (1987), se cultura popular representa um mundo infinito de
formas e manifestações que se opunham à cultura oficial e aos cânones, o chamado
popularesco parece ocupar um lugar obscuro, aquilo que não encontrou espaço no erudito,
mas que também não pertence ao domínio romântico do povo. Suas características, no
entanto, podem ser remetidas ao realismo grotesco. Através do riso, degrada-se,
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materializa-se e amortalha-se o corpo que poderá então ressurgir com mais vida, num
movimento cíclico de alta potência.
Ao trazer essas questões para a televisão contemporânea, precisamente para o
telejornalismo enquanto núcleo eletrônico para onde convergem as manifestações do
popular, percebemos o atrelamento da lógica circense à lógica mercantil que, em última
análise, regem os modos de produção. A linguagem do fantástico, do espetáculo e da festa,
convoca o riso e o escarnio a partir da exibição do grotesco. Mas escancara-se na tela o
sensacional e o bizarro não apenas para chocar, mas para que se multiplique a matéria-
prima do lucro, o alicerce de sustentação da audiência.
O incômodo popular e o problema da “qualidade” na TV
Desde o final da década de 1960 procura-se pela qualidade na TV. Passados 50
anos, o tema parece ecoar na contemporaneidade dando a impressão de que ou voltamos no
tempo ou sequer conseguimos nos distanciar dele. Ao tratar do nível da televisão brasileira
com base nas crônicas de Nelson Rodrigues, entre 60 e 70, Freire Filho (2001) discute os
equívocos que rodeiam o conceito de qualidade na TV.
Segundo o autor, o escritor brasileiro andava aborrecido pelos idos de setembro de
1971 e o motivo era a chegada ao auge, naquele mês, da campanha nacional por uma
televisão mais civilizada, mais culta. Explicava o cronista:
Todo mundo está discutindo o nível da nossa televisão. ‘Baixíssimo’, dizem uns; ‘Baixíssimo’, afirmam outros; ‘Baixíssimo’, juram terceiros. Não dou um passo sem
esbarrar, sem tropeçar num sujeito indignado (RODRIGUES, 1996 apud FREIRE FILHO, 2001).
Para Nelson, a unanimidade contra a televisão era hipócrita. A reclamação
generalizada sobre a má qualidade na TV, no final dos anos 60, justificava-se pelos
interesses comerciais de certos setores excitados pelo crescimento do número de aparelhos
domésticos e pelo desenvolvimento de uma sociedade de consumo.10 Possuir um aparelho
de televisão “passou imediatamente a constituir um indicador de boa condição financeira,
de ‘progresso na vida’” (TINHORÃO, 1981, p. 168).
Quando a TV Globo compreendeu que o fenômeno da concentração do capital na
comunicação poderia transformá-la num conglomerado de mídias, com domínio sobre a
10 O número de aparelhos saltou de 760 mil, em 1960, para 4 milhões e 931 mil, em 1970. Ver Mira (1995, p. 30)
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programação nacional, não tardou em ligar a sua produção às expectativas das classes de
maior poder aquisitivo. Fundamentalmente, a filosofia da família Marinho era tornar a TV
um meio formador de mercado capaz de atender os padrões dos grupos sociais mais
abastados pelo convencimento através das imagens. Nesse sentido, era preciso higienizar a
televisão.
Entre outros programas, a pretensão era tirar do ar a maldição das reportagens
policiais especialistas em promover um desfile de pessoas classificadas como “mendigos,
indigentes, loucos, viciados, casais desajustados, ladrões”, em nome da qualidade.11 Na TV
Globo, o moderno foi representado pelo Jornal Nacional (1969) e pelo Fantástico (1973),
este último um híbrido de informação e entretenimento.
Caminho contrário ao traçado por Silvio Santos quando deixou o quadro funcional
da emissora do Jardim Botânico (1976) para construir seu próprio canal. No que se refere
ao telejornalismo, driblar a hegemonia da TV Globo significava produzir um noticiário
dinâmico, com a câmera em movimento, sem cortes. Não poderia haver melhor solução que
um telejornal policial. A sucursal carioca tardou, mas acabou se rendendo à proposta. Ainda
que intuitivamente, percebeu que qualidade, em televisão, é um conceito em construção.12
Com a mudança, o telejornalismo mundo cão do SBT Rio passou a concorrer
diretamente com o vespertino Balanço Geral, da Rede Record, de mesma linha editorial.
Para vencer a briga pela audiência, a equipe de produção promoveu ajustes fundamentais no
roteiro do noticiário. A escalada13 passou a ser feita ao vivo e a matéria principal começou a
ser exibida ao meio dia em ponto, quando o concorrente entra no ar. Quase sempre, as
reportagens abrem com sons de tiros, gritarias e choros. O estilo câmera aberta convida o
espectador a participar da cobertura dos fatos no momento mesmo em que acontecem. O
objetivo é colocar no ar o “ao vivo do ao vivo, no Rio de Janeiro que é uma cidade ao vivo o
tempo todo”.14
O telejornal consolidou o segundo lugar no ibope frente ao jornalismo “civilizado” e
“inovador” da TV Globo que exibe no horário o RJTV 1ª edição. Mesmo permanecendo
dentro de uma estratégia que preza pelo decoro como forma de atenuar os vínculos do
11 Reportagem de Veja, em 25 de setembro de 1968. Através do título "Mundo cão, não", a revista oficializava seu apoio à campanha contra o "grotesco na TV". Ver Folha de São Paulo (22/06/1991).
12 Cf. Becker, 2005.
13 Termo técnico que designa as principais manchetes do telejornal.
14 Depoimento dado pela apresentadora Isabele Benito, durante o 10º Encontro de Jornalismo do SBT, em 18 jun. 2016.
Acervo da autora.
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telejornal com os aspectos exacerbados na cultura popular, o RJTV implementou quadros
para estreitar a relação com as camadas social e economicamente mais baixas, a exemplo do
Parceiros do RJ (2011) e do RJ Móvel (BECKER, 2012).
Não é possível dizer que essas articulações são reflexo da concorrência do SBT Rio,
de qualquer forma, as pessoas de menor poder aquisitivo são representadas de forma
“estereotipada, pitoresca, trágica ou sensacionalista” (BECKER, 2012, p.86), o que sugere
contradições e adaptações na “qualidade” símbolo maior do telejornalismo global.
Considerações finais
Há de se pensar que o popular na TV pode ser incômodo, mas também necessário e,
nesse sentido, qualidade é um atributo flexível e escorregadio. Os ritos, os valores, as
tradições e os comportamentos populares constituem um recurso do qual se valem os meios
de comunicação de massa para manter próximas as audiências das camadas mais pobres.
Ele está nos programas de entretenimento, nas telenovelas e também no telejornal.
No intuito de atender à lógica mercantil, o povo mostrado na televisão constitui um
produto de uso contínuo e atemporal. De maneira geral, ele formulou a base do
desenvolvimento dos veículos de comunicação no Brasil desde 1930, quando os shows de
calouros atuavam como imãs, fazendo colar aos aparelhos receptores milhares de ouvidos
curiosos e atentos. Mesmo expostos ao ridículo e à humilhação, os calouros furavam o
esquema do “bom gosto” com que as elites emergentes defendiam as suas posições. O povo
forçou o rádio e, mais tarde a televisão, a reconhecer a sua existência.
Seria ingênuo imaginar que no contexto contemporâneo a exibição do povo na
televisão tenha um sentido revolucionário ou subversivo. Mas é curioso pensar sobre os
motivos que ainda provocam o fascínio das audiências pela TV e pelo telejornalismo
popular, em particular. Uma explicação para esse fenômeno já foi apontada em estudos que
tratam da manipulação e da exploração populista da miséria pelos meios de comunicação de
massa, especialmente a televisão.15 Esse jornalismo da soberania popular representa no
imaginário do povo um espaço onde ele não só aparece – e pouco importa se é sem dente ou
descabelado – mas fala e falar tem todo um significado para quem raramente tem vez ou
voz.
A análise do SBT Rio mostrou que é nesse terreno de negociação que são
constituídas as regras do jogo midiático. É no circuito de retroalimentação entre a TV e os
15 Ver Roxo & Sacramento, 2015; Bentes, 1994.
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costumes do povo que se produz a notícia. E por mais que falemos em qualidade, o
telejornal nos oferece uma mostra de que o discurso nem sempre concorda com a prática e
que se for preciso, a TV irá buscar no passado as bases de sustentação do presente. A TV é
do povo e o povo é da TV.
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