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Histórica – Revista Eletrônica do Arquivo Público d o Estado de São Paulo, n.31, 2008.

DIRETRIZES: A PRIMEIRA AVENTURA DE SAMUEL WAINER 1

Danilo Wenseslau Ferrari2

Resumo: O artigo consiste na reconstituição da trajetória da revista Diretrizes (1938-1944) composta, em certa medida, de acordo com as audaciosas experiências de seu principal responsável, Samuel Wainer, importante figura da imprensa brasileira. Esta atuação foi balão de ensaio para a sua futura carreira, o que certamente fez de Diretrizes uma revista de múltiplas faces. Para tanto, analisou-se não só o grupo responsável, mas também a materialidade, estrutura e demais colaboradores. Palavras-chave: imprensa, intelectuais, revistas. Abstract: The paper consists in re-establish the trajectory of Diretrizes magazine (1938-1944) composed, partly, according to the audacious experiences of its primary sponsor, Samuel Wainer, an important figure of Brazilian press. This participation was a test balloon for his future career, which gave Diretrizes multiple facets. So, not only the responsible group was analyzed, but also the materiality, structure and the rest of the collaborators. Keywords: press, intelectuals, magazines.

Nos últimos anos, a imprensa recebeu renovado interesse por parte dos historiadores.

Utilizadas de maneira variável, as fontes impressas constam em uma série de trabalhos

acadêmicos.3 Alguns estudiosos debruçaram-se sobre periódicos que consistiram em porta-

vozes de importantes movimentos artísticos e de grupos intelectuais e políticos de relevância

igualmente destacada. Entre os inúmeros trabalhos existentes nessa direção, houve o caso dos

estudos sobre publicações como Festa, Lanterna verde e Revista do Brasil.4 Destinados a um

público mais restrito, estes periódicos apresentavam os textos de acordo com a proposta dos

editores e possuíam espaço reservado para criação literária.5

A revista Diretrizes inseriu-se no bojo destas publicações. No entanto, o periódico

transitou entre revista de cultura e publicação voltada a um público mais amplo. Além de 1 Este texto é resultado de bolsa PIBIC/CNPq, obtida no âmbito do projeto que vem estudando sistematicamente a revista Diretrizes, coordenado pela professora Tania Regina de Luca (UNESP / Assis) e que conta com financiamento de Edital do CNPq. 2 Possui graduação em História pela UNESP / Assis e realiza pesquisa sobre intelectuais da imprensa brasileira durante a Era Vargas. 3 LUCA, T. R. História dos, nos e por meio dos periódicos. IN: PINSKY, C. (org) Fontes históricas. SP: Contexto, 2005, p. 111-153. 4 Sobre Lanterna verde e Festa ver GOMES, A. C. Essa gente do Rio... RJ: FGV, 1999. Sobre Revista do Brasil, ver LUCA, T. R. A Revista do Brasil: um diagnóstico para a (N)ação. SP: UNESP, 1999. 5 LUCA, T. R. Periodismo cultural: a trajetória da Revista do Brasil. IN: ABREU, M.; SCHAPOCHNIK, N. (org) Cultura letrada no Brasil. Campinas, SP: Mercado de Letras : Associação de Leitura do Brasil; SP: Fapesp, 2005, p. 293-312.

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Histórica – Revista Eletrônica do Arquivo Público d o Estado de São Paulo, n.31, 2008.

Samuel Wainer, conhecido pela posse do jornal Última Hora, o surgimento de Diretrizes esteve

ligado à figura de Azevedo Amaral, intelectual de renome e alinhado ao pensamento de direita.

Produzida no Rio de Janeiro, a revista foi distribuída em diversas localidades do país e

apresentada como a escolha mais acertada para os leitores:

Um homem informado (...) encara com coragem e bom humor o futuro.

Está em suas mãos, leitor, o melhor instrumento para a solução de suas dúvidas!

Nas páginas de Diretrizes você encontrará o mais fiel e mais claro registro do que

se passa presentemente no Brasil e no mundo. Transforme estas páginas num

roteiro seguro. Todas as quintas-feiras Diretrizes vai construir para você, leitor,

uma opinião própria! Porque Diretrizes é a revista que melhor informa.6

As referências sobre Diretrizes encontram-se nas memórias de Wainer. No entanto, ao

centrar-se nas lembranças que remetiam à Última Hora, o jornalista relegou Diretrizes a um

papel quase secundário7. A exemplo da imprensa na época, a revista foi controlada pelo

Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), órgão responsável pela censura. Entretanto, o

periódico destacou-se ao perfazer 207 edições nas quais esteve à margem do mercado de

comunicações liderado pelos Diários Associados, poderoso conglomerado jornalístico de Assis

Chateaubriand. Apesar das adversidades, a trajetória da publicação foi, como se procurará

demonstrar, das mais relevantes.

Azevedo Amaral e a política de seu tempo

A criação de Diretrizes esteve ligada à figura de Azevedo Amaral, deficiente visual que

contava com o auxílio de seu secretário, o jornalista iniciante Samuel Wainer. Amaral viveu

cerca de dez anos na Inglaterra como correspondente do Correio da Manhã, A Notícia e Jornal

do Comércio.8 O escritor foi um dos ideólogos do Estado Novo e do pensamento autoritário

brasileiro. Meses antes do surgimento de Diretrizes, publicou Estado Autoritário e A Realidade

Nacional, obra em que procurou justificar a ditadura instaurada por Getúlio Vargas.9 Wainer e

Amaral se conheceram quando o primeiro trabalhava no Almanaque Israelita. Samuel Wainer

era judeu da Bessarábia e chegou ao Brasil ainda criança onde cresceu no Bom Retiro, bairro

6 DIR. RJ, nº 37, p. 1, 06 jan. 1941. 7 WAINER, S. Minha razão de viver. SP: Planeta, 2005. 8 ABREU, A. A. (org) Dicionário histórico biográfico brasileiro. RJ: FGV-CPDOC, 2001, p. 194-195. 9 OLIVEIRA, L. L. O pensamento de Azevedo Amaral. IN: OLIVEIRA, L. L.; GOMES, A. C.; VELLOSO, M. P. Estado Novo. Ideologia e Poder. RJ: Zahar, 1982, p. 48-70.

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da capital paulista. Em suas memórias, Wainer afirmou que a experiência em Diretrizes o teria

amadurecido como jornalista.10

Amaral conseguiu verba de dois contos de réis junto à estrangeira Light and Power para

o lançamento da nova revista. O primeiro número veio ao público em abril de 1938. A média de

sessenta e quatro páginas era impressa em papel jornal e o couché reservava-se às capas em

formato 18,5x27cm que exibiam fotografias na maioria das vezes.11 O subtítulo de Diretrizes era

Política, Economia, Cultura e a escritura do editorial esteve a cargo de Amaral durante os sete

meses em que ele foi responsável pela revista. A partir da primeira edição, Amaral indicou que

privilegiaria o comentário político por conta da nova ordem estabelecida no país: “Justifica-se,

portanto, que Diretrizes, escrita e publicada para ser lida por homens que sabem ler, coloque no

primeiro plano das suas finalidades o comentário crítico da política brasileira”.12

No plano nacional, a intenção de Azevedo Amaral em Diretrizes era a mesma de suas

obras: justificar a existência do Estado Novo e criticar o sistema liberal. O título Diretrizes -

Política, Economia, Cultura simbolizou a tentativa de estabelecer “diretrizes” para a política,

economia e cultura do governo então em vigência, ou seja, o surgimento da publicação esteve

ligado à situação que havia se instalado no país.13 Amaral assinou também a seção Comentário

Internacional, na qual explanou sobre uma série de situações que culminariam com o conflito

mundial. O autor teceu críticas à atitude expansionista do governo de países como Alemanha,

Itália e Japão. No entanto, em sua última colaboração para a revista, o escritor defendeu a

invasão alemã em algumas regiões européias.14

Nesta fase, os textos sob responsabilidade de outros autores apresentaram

contrariedade mais intensa aos regimes expansionistas, sobretudo a partir de junho, quando a

revista passou a receber material da agência Associated Press. Além disso, o tom austero dos

textos de Amaral não se verificou nas outras seções.15 Ademais, o grupo que colaborou em

Diretrizes nesta fase contou com alguns simpatizantes da esquerda como Álvaro Moreyra,

Carlos Lacerda, Nelson Werneck Sodré e Graciliano Ramos. Escritores estrangeiros como

Ernest Hemingway e Aldous Huxley também figuraram entre os colaboradores de Diretrizes em

seus primeiros tempos.

10 WAINER, S. Op. cit., p. 60. 11 DUQUE Filho, A. X. Política internacional na revista Diretrizes (1938-1942). Mestrado em História. Assis, SP: FCL, 2007, p. 73 e 99. 12 AMARAL, A. A política do mês. DIR. RJ, nº 1, p. 3, abr. 1938. 13 DUQUE Filho, A. X. Op. cit., p. 82. 14 Sobre a atuação de Azevedo Amaral em Diretrizes ver DUQUE Filho, A. X. Op. cit., p. 72-90. 15 DUQUE Filho, A. X. Op. cit., p. 90-98.

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Histórica – Revista Eletrônica do Arquivo Público d o Estado de São Paulo, n.31, 2008.

A incompatibilidade de visão política entre os colaboradores de Diretrizes e Azevedo

Amaral foi um dos motivos para que este deixasse a liderança do periódico. No entanto, o fator

determinante na querela seria o desentendimento com Samuel Wainer que teria se aproveitado

da cegueira do patrão e registrado a revista apenas em seu nome. Amaral retirou a subvenção

da Light e fundou Nova Diretrizes.16 O clima de discordância entre os dirigentes da publicação

registrou-se com a nota: “Deixou o cargo de diretor desta revista o sr. Azevedo Amaral que, a

partir deste número, nada mais tem a ver com Diretrizes”.17

A consolidação de Diretrizes

Com a saída de Amaral, a direção da revista ficou à exclusividade de Wainer. A

mudança provocou reestruturação na linha editorial do periódico que não apresentou mais

defesas ao modelo de Estado autoritário. Em várias ocasiões, os editores inseriram material de

propaganda que o DIP impunha à imprensa na intenção de forjar uma imagem positiva do

governo e do presidente. A contrariedade ao nazifascismo foi a principal marca da revista sob a

égide de Samuel Wainer.

As páginas de Diretrizes apresentaram uma série de matérias sobre o contexto

internacional da época. Com o advento da guerra, os editores posicionaram-se a favor dos

aliados e, posteriormente, dos Estados Unidos. No entanto, alguns autores também

apresentaram simpatia em relação à União Soviética. Esta aproximação tornou-se evidente

durante a vigência do pacto germano-soviético. Semanas antes da eclosão da guerra, os

dirigentes da Alemanha e da União Soviética assinaram um tratado de não agressão entre

estes dois países. O acordo teve impacto sobre a intelectualidade de esquerda, pois o regime

alemão, alvo de críticas dos comunistas, deveria ser poupado.18

Esta situação evidenciou-se nas páginas de Diretrizes. De fato, Wainer indicou em suas

memórias a presença de autores comunistas no grupo de cúpula da revista. Um dos diretores

do periódico, Octávio Malta, teria chegado de Pernambuco, com a intenção de assegurar o

controle de Diretrizes para o Partido Comunista Brasileiro (PCB). Malta teria revelado a situação

a Wainer somente vinte anos depois.19 O fato de agrupar autores comunistas fez com que as

pressões da censura recaíssem crescentemente sobre a revista. Além disso, a situação da

publicação complicou-se com o pertencimento de Wainer ao judaísmo. Os judeus sofreram

16 SODRÉ, N. W. Memórias de um escritor. Vol. 1. RJ: Civilização Brasileira, 1970, p. 114-115. 17 DIR. RJ, nº 8, p. 1, nov. 1938. 18 MORAES Neto, G.; SILVEIRA, J. Hitler / Stálin. O pacto maldito. RJ: Record, 1990. 19 WAINER, S. Op. cit., p. 64.

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Histórica – Revista Eletrônica do Arquivo Público d o Estado de São Paulo, n.31, 2008.

conhecidas perseguições na Europa durante este período e muitos deles migraram para o

Brasil onde também não tiveram trégua.20

Funcionários dos mais altos escalões do governo federal brasileiro eram admiradores

declarados dos fascismos. Imbuídos do ideal de manutenção da “ordem”, os responsáveis

pelas instituições de colonização e imigração restringiram a entrada de judeus no país. Milhares

deles morreram na Europa por conta da documentação secreta do governo brasileiro sob a

chancela de Getúlio Vargas.21 Além disso, a nacionalidade estrangeira de Wainer fez com que a

situação de Diretrizes se tornasse ainda mais adversa, pois a constituição de 1937 determinou

que apenas brasileiros poderiam ser proprietários ou diretores de empresas jornalísticas.22 No

entanto, Wainer ocultou sua nacionalidade por anos a fio, o que provavelmente o poupou de

sérias represálias e ainda lhe possibilitou, anos mais tarde, a posse de Última Hora.

Algumas análises demonstraram que a dificuldade de inserção do imigrante no universo

social brasileiro fez com que Wainer abraçasse a causa nacionalista como afirmação de sua

identidade.23 Esta característica ficou evidente em Diretrizes na qual os “interesses nacionais”

chocaram-se com os das “potências imperialistas”. Se no plano político os responsáveis pela

revista defenderam a atuação dos Estados Unidos, o mesmo não aconteceu no tocante à

economia. Os editores veicularam a idéia de que o governo brasileiro deveria aproveitar a

situação de guerra e investir na industrialização de base para que o país abandonasse o papel

de mero exportador de matérias-primas e concorresse no mercado internacional de produtos

manufaturados.

Além disso, o governo deveria investir na mecanização e modernização do trabalho no

campo, assertiva que contribuiria para o crescimento do país e que esteve presente nas

páginas de Diretrizes desde os tempos de Amaral. Em seu turno, a temática cultural teve

importância na revista, visto que não esteve presente apenas em seções específicas. A partir

de 1940, a revista trouxe ao leitor um Suplemento Literário que abrigou os nomes de José Lins

do Rego, Manuel Bandeira, Oswald de Andrade, Cecília Meireles, Murilo Miranda e Guilherme

Figueiredo. Neste mesmo ano, as páginas da publicação também apresentaram em capítulos o

ABC de Castro Alves escrito por Jorge Amado. Para a manutenção desta privilegiada estrutura,

os anúncios provavelmente desempenharam papel importante.

20 WIAZOVSKI, T. Inventário Deops – Bolchevismo e Judaísmo. SP: Arquivo do Estado : Imprensa Oficial, 2001. 21

CARNEIRO, M. L. T. O anti-semitismo na Era Vargas (1930-1945). SP: Brasiliense, 1995. 22 LUCA, T. R.; MARTINS, A. L.. Imprensa e cidade. SP: UNESP: 2006, p. 65. 23 ROUCHOU, J. Samuel Wainer: memórias entre jornalismo e política. IN: NEVES, L. M. B. P.; MOREL, M.; FERREIRA, T. M. B. da C. História e imprensa. RJ: DP&A : Faperj, 2006, p. 346-362.

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Histórica – Revista Eletrônica do Arquivo Público d o Estado de São Paulo, n.31, 2008.

Pequenas empresas paulistas e cariocas anunciaram em Diretrizes, mas as publicidades

de maior destaque eram de cassinos diversos, da Companhia Nacional de Seguros de Vida Sul

América e das norte-americanas Gillette, Westinghouse, Standart Oil e Ford. A publicidade de

Gillette apareceu com maior freqüência e era das mais elaboradas, visto que apresentava

desenhos ou “histórias em quadrinhos” acompanhados de pequenos textos. “Siga o progresso!

Barbeie-se em casa diariamente com Gillette”. Estes anúncios demonstraram um certo

dinamismo publicitário presente nas páginas de Diretrizes.

Entre os anos 1930 e 1940, o interesse das indústrias pelas propagandas redobrou. No

Brasil, surgiram as primeiras agências e revistas especializadas como Exitus (1932) e

Propaganda (1937). A época foi também de transição entre os anúncios tradicionais com textos

densos e os novos, mais dinâmicos, dotados de rimas e pequenos escritos.24 “Não sofra calor à

toa, beba Chope da Coroa” era uma das frases que deram tom moderno à publicidade da

revista. As propagandas de cervejarias consistiram num bom exemplo de transitoriedade dos

meios publicitários, pois na medida em que algumas destacavam o consumo do produto como

momento de lazer, outras, como a da cervejaria Maltina, ressaltavam sua utilidade, muito

diversa dos tempos atuais: “Esta cerveja é útil às mães no período da amamentação, por ser

rica em malte e substâncias nutritivas”.

Após a saída de Amaral, Diretrizes consolidou-se na vida cultural da época e recebeu

colaboração de figuras importantes como Franklin Delano Roosevelt, Winston Churchill e

Charles de Gaulle, líderes dos países inimigos do Eixo, o que corrobora a tendência anti-

nazifascista na revista de Wainer. Segundo as memórias do autor, apesar da importância de

alguns colaboradores, ainda faltavam investimentos e o dinheiro da publicidade já não

bastava.25 Seria preciso buscar novos caminhos para que o projeto de Diretrizes continuasse e

atingisse público mais amplo.

A fase semanal

Não seria surpreendente se Diretrizes durasse poucos anos. No entanto, o periódico

tornou-se mais freqüente quando veio ao público como revista semanal. Esta grande alteração

só foi possível com a entrada de Maurício Goulart na sociedade da publicação. De acordo com

as memórias de Samuel Wainer, Goulart teria aceitado investir cem contos de réis, “uma

24 RAMOS, R. Do reclame à propaganda. SP: Atual, 1985, p. 41-52. 25 WAINER, S. Op. cit., p. 71

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fortuna”, em Diretrizes.26 O intelectual nasceu em Petrópolis, formou-se em 1930 pela

Faculdade de Direito de São Paulo e auxiliou na articulação para a queda de Washington Luís.

Em 1935, ligou-se à Aliança Nacional Libertadora (ANL) e foi preso em São Paulo por participar

de comício da organização.27

Além de entrar para a sociedade da revista, Goulart teria aliciado empresários

paulistas e mineiros para anunciar no semanário.28 Em dezembro de 1940, Diretrizes apareceu

pela primeira vez como revista semanal e a partir do mês seguinte, Maurício Goulart figurou

como diretor ao lado de Samuel Wainer até dezembro de 1942. A mudança de periodicidade

provocou uma série de alterações em Diretrizes. A revista foi totalmente modificada e a nova

feição demonstrou a intenção dos editores em buscar dinamismo para publicação destinada

agora a um publico que possuiria o material em um espaço de tempo mais curto.

Na capa, as chamadas de conteúdo cederam espaço às curtas manchetes e a

imagem passou a ocupar toda a folha. O subtítulo Política, Economia, Cultura suprimiu-se. O

formato aumentou para 48x28cm, semelhante a um tablóide.29 Além das folhas impressas em

papel jornal, a revista apresentava-se ao público com primeira página. Após adquiri-la, o leitor

poderia desdobrá-la e vislumbrar a capa. As alterações visavam um público mais amplo e

diversificado que o anterior. Esta intenção ficou clara na ocasião das mudanças:

Ao completar o seu terceiro aniversário, Diretrizes aparece num formato

inédito no Brasil. Aparece firmando-se como semanário moderno, maior, mais

variado, mais atual, mais artisticamente cuidado, mais popular. E aparece assim

porque o povo a favoreceu com sua grande e generosa simpatia e o seu apoio

material.30

O novo formato fez com que Diretrizes fosse tomada como jornal em algumas

ocasiões.31 No entanto, durante todo o período em que a publicação circulou semanalmente, as

capas apresentaram a informação: “Revista Semanal”. A veiculação de reportagens,

entrevistas, fotografias e noticiários sobre assuntos variados diferiram a revista daquelas que

publicavam apenas ensaios, artigos, resenhas e outros estudos como Cultura política,

publicação editada pelo DIP. Apesar da iconografia constante, a revista também divergiu de

26 WAINER, S. Op. cit., p.71. 27 HIPÓLITO, R. Maurício Goulart. IN: ABREU, A. A. Op. cit., p. 2629-2630. 28 SILVEIRA, J. Memórias de alegria. RJ: Mauad, 2001, p. 80. 29 DUQUE Filho, A. X. Op. cit., p. 99. 30 DIR. RJ, nº 37, p. 2, 06 mar. 1941. 31 Ver MORAIS, F. Chatô, o rei do Brasil. SP: Cia. das Letras, 2004, p. 423; LEAL, C. E. Diretrizes. IN: ABREU, A. A. (org) Op. cit., p. 1882 e LEMOS, R. Samuel Wainer. IN: ABREU, A. A. de (org.). Op. cit., p. 6107.

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publicações que privilegiavam o espaço reservado às imagens como O Cruzeiro e Careta, visto

que em Diretrizes, os textos apareciam em maior escala. Estas características conferiram ao

periódico um caráter informativo comum aos jornais. Vale assinalar que a publicação comportou

elementos posteriormente abandonados pelo jornalismo como o “nariz de cera”, mas Diretrizes

teve toques de inovação que a aproximaram de um gênero existente no Brasil apenas nos anos

1960 com Veja.32 Samuel Wainer, que segundo suas memórias foi leitor voraz de publicações

de outros países, provavelmente inspirou-se em modelos de revistas estrangeiras.33 Este

gênero já existia nos Estados Unidos com a revista Time.

A aura de seriedade que o título da revista impunha: Diretrizes - Política,

Economia, Cultura, não prosseguiu. O formato de jornal, a publicidade dinâmica, a paginação

inovadora, além dos anúncios de cassinos que Samuel Wainer freqüentava e a presença de

seções sobre esportes indicaram que Diretrizes teve mesmo caráter mais popular. A intenção

de Wainer em destinar seus empreendimentos jornalísticos a públicos mais amplos confirmou-

se anos mais tarde com a popularidade do jornal Última Hora. No entanto, os bons ventos que

acompanhavam Diretrizes cessaram em dezembro de 1942 com a saída de Goulart por

imposição do DIP. Em Minha razão de viver, Wainer afirmou que o intelectual deixou a revista

devido à matéria de sua autoria sobre um grupo de conspiradores mineiros que todo ano

prestavam homenagem a Pedro Aleixo, constituinte em 1934 e que perdera o mandato com o

advento do Estado Novo.34

A saída de Goulart provavelmente ocasionou uma crise financeira em Diretrizes

constatada com a diminuição de cargos de direção e do número de artigos e seções. Em 1944,

a revista parecia dar sinais de recuperação quando o DIP desferiu-lhe seu golpe final. Em julho,

Diretrizes saiu de circulação por imposição do órgão repressor devido a uma matéria sobre

Miguel Costa, um dos líderes do movimento conhecido como Coluna Prestes. O fato consta nas

memórias de Wainer, mas é provável que a edição não tenha chegado ao público.35 Samuel

Wainer seguiu para o exílio. Nos Estados Unidos, foi correspondente de O Globo. De volta ao

Brasil em 1945, o intelectual reabriu Diretrizes como jornal diário. Em suas memórias, Wainer

afirmou que este era o seu grande sonho.36 Certamente, por este motivo, o jornalista deu o

formato de jornal a Diretrizes durante a fase revista, cujas tendências prosseguiram no diário

32 MIRA, M. C. O leitor e a banca de revistas. SP: Olho d’água : Fapesp, 2001, p. 75-96. 33 WAINER, S. Op. cit., p. 64. 34 WAINER, S. Op. cit., p. 78 e 79. 35 WAINER, S. Op. cit., p. 82. 36 WAINER, S. Op. cit,, p. 98 e 99.

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Histórica – Revista Eletrônica do Arquivo Público d o Estado de São Paulo, n.31, 2008.

que publicava matéria “do sofisticado ao popular”.37 Após a experiência, Wainer trabalhou nos

Diários Associados e aproximou-se de Getúlio Vargas, então afastado da cena política

brasileira. O contato possibilitou o surgimento de Última Hora, sua grande “aventura”.

A análise demonstrou que Diretrizes teve múltiplos pertencimentos: revista

mensal, semanário, revista que parecia jornal, periódico cultural, de caráter popular, cuja

posição oscilou ao longo do tempo. Somente a investigação sistemática sobre a revista, que

está em curso, permitirá estabelecer com segurança a tendência assumida pelo periódico

durante o período que circulou. Resultados preliminares indicam a complexidade do tema e a

inexistência de posições estanques, suposição que orienta metodologicamente o projeto como

um todo e que informou a presente análise. Os depoimentos que deram origem a Minha razão

de viver certamente consistiram em provocações a Carlos Lacerda, de quem Samuel Wainer

tornou-se ferrenho inimigo. Lacerda chamava Wainer de aventureiro. Por este motivo, o futuro

dono de Última Hora designou todos os seus empreendimentos como “aventuras”. Diretrizes

seria apenas a primeira delas.

37 LEAL, C. E. Op. cit., p. 1883.

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Histórica – Revista Eletrônica do Arquivo Público d o Estado de São Paulo, n.31, 2008

VER PARA CRER: NA ÚLTIMA HORA *

Alexandre Pianelli Godoy**

Resumo: O artigo em questão trata de documentar o estilo escrito-visual que foi a marca editorial do jornal Última Hora do Rio de Janeiro nos anos 1950. Procura interpretar o significado histórico desse estilo editorial a partir de suas notícias policiais, de sua coluna de reclamações do “leitor” e de suas colunas sociais, bem como confrontá-los com as memórias do seu proprietário, de modo que se possa lançar outro olhar sobre a importância do periódico que não aderido às explicações da política institucional que tanto marcam a época, mas do cotidiano das camadas médias que se constituíam como seu principal público-leitor e a “razão de viver” de sua escrita que expunha mais do que ocultava à precariedade daquela sociedade que começava a se massificar. Palavras-chave: visualidade – notícia – camadas médias

Os leitores dos anos 1950 que comprassem o jornal Última Hora 1 consumiriam

notícias policiais redigidas de forma teatralizada como se pretendessem ilustrar o

crime no momento em que ocorrera, tornando-se verdadeiros folhetins. Em 5 de

setembro de 1956, lia-se no periódico que dois assassinatos haviam sido cometidos

na calada da noite, crimes que a coluna Na ronda das ruas fazia questão de noticiar

em tom misterioso:

Seriam mais ou menos meia-noite quando o Sr. Luis Alves,

proprietário de um bar localizado na Rua São Carlos, 67, preparava-se

para fechar o seu estabelecimento. Nisso, um rapaz, ainda jovem,

banhado em sangue, ingressou no bar e exclamou:

- Covardes. Me mataram!

Dizendo esta frase, caiu em decúbito ventral, para expirar

momentos depois. Comunicado o fato ao Comissário Joel, do 44º D. P.

êste solicitou o comparecimento da Polícia sendo essa representado

pelo Perito (...), o qual procedendo aos exames preliminares no cadáver,

constatou dois [tiros] à bala, sendo um no braço esquerdo e outro na

região carotidiana.

Apuraram posteriormente, as autoridades, que o morto era

Adilson de Sousa (solteiro, de 17anos, Rua Laurindo Rabelo, 457,

** É bacharel, licenciado, mestre e doutor em história social pela PUC-SP. Professor de Prática e Metodologia do Ensino de História da UNICASTELO/SP, professor auxiliar na disciplina de Prática de Ensino de História da PUC/SP e professor colaborador nas disciplinas de Didática e Prática do Ensino Superior para o curso de extensão e especialização lato sensu da COGEAE/PUC/SP. É também membro do GT de Ensino de História da ANPUH-SP. 1 O jornal Última Hora nos anos 1950 era publicado diariamente numa edição vespertina composta por dois cadernos. No entanto, em alguns dos exemplares pesquisados entre 1953-1957 foram encontrados duas edições do jornal num mesmo dia.

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Histórica – Revista Eletrônica do Arquivo Público d o Estado de São Paulo, n.31, 2008

fundos), e que há cerca de um ano fugira do SAM [Serviço de

Atendimento ao Menor]. Talvez que de uma desinteligência surgida,

entre êle e possivelmente elementos traficantes de maconha, que

pululam pelo (...) morro [de São Carlos], é que tenha se originado o

crime. 2

Quase à mesma hora,

(...) a Polícia da 23ª D. P. era notificada que na Rua Eulina

Ribeiro, em frente ao número 415, uma mulher em adiantado estado de

gestação era abatida a tiros, por motivos ainda ignorados.

Trata-se de uma jovem de cor parda, com 20 anos presumíveis,

trajando-se modestamente que, após ligeira altercação com

desconhecidos fôra assassinada com um tiro no coração.

Moradores da rua acima citada, quando ouvidos pelas

autoridades, declararam que sômente ouviram gritos de mulher e logo

após os estampidos. O caso foi entregue à Polícia Técnica. 3

O grande atrativo da coluna policial Na ronda das ruas, do jornal Última Hora,

era a maneira nova como os crimes passaram a ser apresentados ao público.

Fornecia ao leitor a ilusão de que o jornal estava presente no momento dos

acontecimentos, aparentando uma ubiqüidade visual da imprensa por meio da escrita.

Este foi um dos aspectos inovadores trazidos pelo jornal, fundado em 12 de junho de

1951, pelo jornalista Samuel Wainer, com uma tiragem de 80.000 exemplares que

foram distribuídos na saída de um jogo noturno no estádio do Maracanã, numa época

em que a tiragem dos grandes jornais oscilava entre 60.000 e 70.000 exemplares.4 No

entanto, se os grandes jornais já haviam conquistado um público leitor isto certamente

não se devia às suas páginas policiais. No jornal Última Hora os crimes e delitos de

toda a sorte ganharam tal destaque que passaram a se constituir num dos aspectos

fundamentais do seu estilo editorial.

É interessante notar que os dois crimes foram apresentados simultaneamente

não apenas para informar que estavam ocorrendo na mesma hora – o que reforça a

idéia de movimento e visibilidade da notícia –, mas para impressionar o leitor de um

jornal que parecia estar ao mesmo tempo em vários lugares, registrando os fatos sem

perder nenhum instante, quase que na “última hora”.

2 Na ronda das ruas. In: Jornal Última Hora – 05/09/1956, caderno 1, p. 06. Mantive a grafia e acentuação originais dos textos em todas as fontes citadas. 3 Idem. Ibidem. 4 Cf. WAINER, Samuel. Minha razão de viver. 15ª edição. Rio de Janeiro: Record, 1993, p. 142. [original de 1980]. O dono do jornal ainda conta que esta tiragem foi apenas inaugural, pois na edição do dia seguinte “tiramos 40.000 exemplares e vendemos pouco mais de 8.000.”

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Histórica – Revista Eletrônica do Arquivo Público d o Estado de São Paulo, n.31, 2008

De forma inovadora, o jornal se apropriava dos valores das camadas médias

da sociedade de culto da aparência e valorização da imagem como verdades

incontestáveis para apresentar um relato considerado “real” dos crimes, com o cuidado

de não afrontar os ideais sociais de estabilidade desses setores sociais. Os crimes

deveriam ser apresentados não como tragédias cotidianas, mas como acontecimentos

espetaculares, portanto, “dignos” de visibilidade pública por não se encaixarem dentro

das expectativas sociais desse público-alvo. Por isso, os crimes ao mesmo tempo em

que mostravam o avesso das aparências, não permitiam que seus leitores rompessem

com as normas, aliás, as reforçava pela maneira estereotipada como os criminosos e

suas vítimas eram expostas.

Em 1962, Roland Barthes escreveu um texto sobre este tipo de

linguagem jornalística denominada de fait divers que, segundo ele, ganhava uma

“extraordinária promoção (...) na imprensa”5 dos dias de hoje. Mas bem antes de 1962,

os faits divers já estavam circulando entre os principais jornais europeus e norte-

americanos. No Brasil, a consolidação definitiva dos faits divers viria pelas páginas do

jornal Última Hora, durante os anos 1950.

Se antes a notícia policial expressava mais indignação, espanto ou horror

talvez fosse porque tais crimes não servissem estritamente como atrativos para venda

de um jornal. A notícia policial ainda não era uma mercadoria a ser consumida, e nem

a imprensa uma empresa no alvorecer do século XX. O aparecimento do fait divers

como “uma arte de massa” indica não só que a notícia policial era um produto a ser

consumido, como indica o momento histórico em que se encontrava a imprensa

brasileira, já devidamente constituída como empresa jornalística nos anos 1950. Deve-

se entender a expressão “arte de massa” em todo o seu significado, pois expressa

uma fabricação, um investimento de trabalho ou ainda de mão de obra destinada ao

consumo de todos, e também “arte” no sentido de criar ficção: inventar uma história

que atinja a todos.

A pretensa ubiqüidade escrito-visual do jornal atendia ao padrão de

estabilidade das camadas médias que valorizavam a moralidade pública calcada no

“ver para crer”. O jornal era o próprio olho social da aparência que preferia perceber

tudo de relance, na “última hora”, do que encarar as mudanças que a vida burguesa

impunha para aquela sociedade. Roland Barthes afirma que o nome do jornal

5 BARTHES, Roland. A estrutura da notícia. In: Crítica e verdade. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. 3ª edição. São Paulo: Perspectiva, 2003, pp. 57-58 [original de 1962], onde completa o autor: “a notícia geral (...) procederia de uma classificação do inclassificável, seria o refugo desorganizado das notícias informes; sua essência seria privativa, só começaria a existir onde o mundo deixa de ser nomeado, submetido a um catálogo desconhecido (...); numa só palavra, seria uma informação monstruosa, análoga a todos os fatos excepcionais ou insignificantes, em suma inomináveis (...).”

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“constitui um saber que pode fazer infletir fortemente a leitura da mensagem

propriamente dita” 6. Portanto, se os crimes não podiam deixar de ser noticiados por

ser uma mercadoria lucrativa, tampouco poderiam afrontar os valores sociais de

estabilidade familiar, conjugal e emocional. Era preciso criar a ficção de que o jornal

estava na hora em que os fatos ocorriam para garantir que as tragédias fossem

expostas como atitudes de indivíduos que não se encaixavam nas regras da

aparência, do bem comportar-se socialmente. Assim, o leitor “mediano” poderia

consumir a notícia policial com um espanto provisório, como se aquilo tudo não fizesse

parte do seu mundo.

O dono do jornal, Samuel Wainer, reservou em suas memórias uma explicação

mais “nobre” para o formato que os crimes policiais adquiriram no jornal Última Hora:

Em agosto de 1951, o senador Epitácio Pessoa Cavalcanti de

Albuquerque, filho de João Pessoa – o ex-governador da Paraíba cujo

assassinato precipitara a Revolução de 1930 –, apareceu morto em sua

casa no Rio de Janeiro. Epitacinho era bastante amigo de Getúlio

Vargas, e o hospedara por alguns dias antes de assumir a Presidência.

Começaram a circular pela cidade rumores de que Epitacinho fora

envenenado por sua mulher, por questões de herança. Eu tinha

repugnância por fatos policiais e, até então, negava-me a dar-lhes

destaque na Última Hora. Mas aquela história caíra na boca do povo e

começava a tomar proporções incontroláveis. O velho Malta procurou-

me:

- Precisamos dar alguma coisa sobre isso.

Achei a idéia maluca.

- Epitacinho era meu amigo, amigo de Getúlio – ponderei.

- A cidade inteira só fala nesse caso, isso venderia muito –

retrucou Malta.

(...) No dia seguinte, publiquei a primeira manchete policial da

história da Última Hora: ‘Epitacinho teria morrido envenenado’. Foi uma

bomba. Aumentamos a tiragem para 25.000 exemplares, que se

esgotaram em poucas horas. Seguimos explorando o caso por alguns

dias e incorporamos outros milhares de leitores. 7

6 BARTHES, Roland. A mensagem fotográfica. In: LIMA, Luiz Costa (org.). Teoria da cultura de massa. Tradução de César Bloom. 3ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990, p. 303. [original de 1969] 7 WAINER, Samuel. Minha razão de viver 15ª edição. Rio de Janeiro: Record, 1993, pp. 149-150. [original de 1980].

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Histórica – Revista Eletrônica do Arquivo Público d o Estado de São Paulo, n.31, 2008

É importante notar que durante todo o relato do jornalista a vinculação entre o

jornal Última Hora e a política institucional adquirem um peso muito maior do que a

relação entre o diário e a sociedade carioca dos anos 1950. Isso se deve

principalmente porque o relato de Wainer foi concedido no ano de 1980, época onde o

olhar sobre os “anos dourados” já tinha se consolidado na memória histórica, tanto

entre os cientistas sociais como na imprensa, a partir dos temas ligados ao “nacional-

desenvolvimentismo” e ao “populismo”. Isto é, de visões ideológicas que contribuíram

para encobrir o fosso que separava a sociedade carioca das próprias instituições

governamentais, numa reatualização do mito do Estado Nacional na década de 1950.

Assim, ao tentar explicar o novo tratamento dado aos crimes policiais, o “crime

inaugural” não poderia ser outro senão o de um personagem da política institucional.

Wainer salientou que divulgara a notícia porque “caíra na boca do povo”. Sem

nada esclarecer, o jornalista afirmou ter aumentado a tiragem de seu jornal

provavelmente por causa deste “povo” ansioso por notícias policiais. Ou teria sido

também porque tais crimes começavam a se constituir em mercadoria bastante

lucrativa? É significativo que o jornalista não mencionasse em nenhuma parte do seu

relato a coluna Na ronda das ruas, que por fazer parte do editorial do jornal revelava

ainda mais o contorno mercantil que os crimes policiais anônimos – que pululavam

pela cidade e eram matéria-prima de fácil acesso – ganhavam nas páginas do diário.

Afirmar que o jornal se movimentava segundo interesses comerciais para conquistar

mais leitores era destruir toda uma imagem de engajamento político que Wainer fazia

questão de referendar, como se pudesse desta forma colocar o jornal mais próximo da

“História” com “H” maiúsculo, a história dos grandes acontecimentos e personagens

ligados às elites e ao poder. Afinal, o que o dono do jornal teria a dizer sobre crimes

deste tipo:

ABANDONADA PELO NAMORADO MATOU-SE A JOVEM

IRACEMA

Há cerca de um ano que a jovem Iracema dos Santos, solteira,

de 23 anos, rua Maratuba, 151, em Ricardo de Albuquerque namorava o

3º sargento da Marinha Pedro Caldas da Silva, residente na Praça Onze,

352, sobrado, em companhia de seu colega, o cabo Wilson Monteiro.

Acontece que de uns tempos para cá, o romance entre o casal esfriou e

o militar não mais procurava a joveta. (sic) Ontem a noite, Iracema não

resistindo a saudades que sentia do namorado, veio procurá-lo em sua

casa. Êste não se achava presente. Quem a atendeu foi o cabo Wilson,

que lhe disse que não sabia a que horas o sargento voltaria. Iracema

então pediu a Wilson para ali ficar, até que Pedro regressasse. O cabo

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Histórica – Revista Eletrônica do Arquivo Público d o Estado de São Paulo, n.31, 2008

disse que não lhe ficaria bem, pois ela sendo namorada de Pedro, êste

não gostaria de encontrá-la em um quarto com um homem. Dizendo isto

Wilson foi até o banheiro ocasião em que Iracema tirando da bôlsa um

vidro contendo veneno, ingeriu o seu conteúdo, para momentos após

morrer. O fato foi comunicado as autoridades do 13º Distrito Policial, as

quais as formalidades de praxe fizeram remover o corpo para o Instituto

Médico Legal. 8

No meio da reportagem ainda existia uma pequena foto de Iracema para

satisfazer a curiosidade dos leitores, acompanhada dos seguintes dizeres: “Iracema

dos Santos – Não resistindo ao desprêzo dado pelo namorado pôs têrmo à vida.” 9

Exposta ao público, o caso de Iracema interessava aos leitores que buscavam na

coluna as imagens do que era considerado discrepante, anormal ou esquisito. Era

uma forma de comercializar o que não era considerado “moderno” naquela sociedade

e que, no entanto, deveria ganhar uma visibilidade pública. O comportamento de

Iracema em nada combinava com a aparência elegante e equilibrada que se exigia

para uma jovem de classe média. Tornar visível o crime era mais importante do que a

própria tragédia, criando a ilusão de que o jornal estaria apenas descrevendo pelo

olhar do repórter “imparcial” o crime no “exato” momento de seu acontecimento.

Reforçava a crença social de que o olhar público era aquele que dizia a verdade moral

da vida, mesmo que este olhar fosse mera aparência. A tragédia ficava em segundo

plano. O grande impacto era poder registrá-la em seu “aqui e agora”.

Agressões, raptos, acidentes, assassinatos, suicídios, roubos e atropelamentos

eram registrados diariamente na coluna em um estilo forjado para lhes dar uma

visibilidade espetacular. Era desta forma que habilmente o jornal Última Hora

conquistava mais leitores e vendia com sucesso a notícia metamorfoseada em

mercadoria. Investindo muito mais no conteúdo e na forma da escrita para igualmente

criar movimento e engendrar convencimento, o texto explorava a exigência de

visualidade e de aparência daquela sociedade.

Entretanto, não foi só por meio das notícias policiais que o jornal deu forma ao

seu estilo escrito-visual, que tanto agradava as camadas médias, mas também de uma

hábil recriação das reclamações ditas “populares”. Era a coluna Fala o povo na Última

Hora que criou uma língua venenosa e que não perdoava ninguém:

E DEL CASTILHO?

8 Na ronda das ruas. In: Jornal Última Hora – 03/09/1956, 2º edição, p. 06. 9 Idem. Ibidem.

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Histórica – Revista Eletrônica do Arquivo Público d o Estado de São Paulo, n.31, 2008

Minha gente, a PDF capenga continua não indo com a cara do

bairro de Del Castilho! Conseqüência dessa sassaricagem: a boa turma

de lá vive nas sofreduras! Olha que a gente, nesta seção, durante mais

de ano batalhou por uma linha de ônibus que servisse àquele bairro. Foi

um custo! Mas veio ela. Eta! Viva! Todo mundo contente e gritando: ‘Até

que enfim! Êsse prefeito é mesmo bãozinho!...’ pois querem saber de

uma coizinha muito bestinha? Os galinheiros da êmpresa ki explora

aquela linha começaram a relaxar! E pronto! Olha os delcastilhenses nas

sofreduras! E olhas os pobres sem condução! Trem? Kiesperança! Cadê

lugar? Os que passam pelo bairro já é com gente pindurada até nas

rodas! Pra completar esta história ramelosa a emprêsa acaba de pedir

licença pra retirar seus latas de lixo da linha e o marmeladico

departamento de Concessões concordou (Pudera! Entra Vasco, que meu

marido é sócio!...) [...] Senhor Prefeito: Cume? Pra Del Castilho nada? A

turma quer ônibus e lotações! Tisconjuro!” 10

O estilo dava impressão de que todas as reclamações vinham do próprio

“povo”. O leitor deveria ser convencido de que ali estavam contidas todas as suas

queixas, não apenas pelo conteúdo das reclamações, mas pela forma como eram

escritas. Mais do que tentar imitar a fala coloquial, ela era recriada. A coluna usava e

abusava de interjeições, onomatopéias e da letra “K” para dar um apelo sonoro e

visual, como se o leitor estivesse ali presentificado, dando um depoimento indignado

das condições de vida na cidade. Além disso, a narrativa curta e simples e o uso de

algumas gírias ajudavam a convencer o leitor que o jornal, de fato, o representava.

Para o olhar do historiador, a coluna apenas se servia dos inúmeros problemas da

cidade para conquistar os leitores pelo entretenimento. Tanto assim que o humor era a

marca desta coluna produzida com grande habilidade jornalística, como se o riso

atenuasse os problemas sociais, pois dificilmente alguém conseguiria traduzir a sua

própria indignação desta maneira:

Fum!...

Minha gente, apanha uma barata bem cascuda, um rato morrido

de cinco dias, um gambá ki nunca tomou banho na vida dele e um bode

bem suadinho! Joga tudo dentro de uma panela. Deixa cozinhar em

banho de dona Maria. Depois, cheira bem mesmo! Fum!... Tá danada,

né? Pois olha: na rua Camerino, há mais de dez dias tem um caminho de

esgôto berrentado! O cheiro tá tal e qual: Raios!11

10 Fala o povo na Última Hora. In: Jornal Última Hora – 05/07/1954, caderno 2, p. 04. 11 Fala o povo na Última Hora. In: Jornal Última Hora – 31/03/1955, caderno 1, p. 11.

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Histórica – Revista Eletrônica do Arquivo Público d o Estado de São Paulo, n.31, 2008

É importante sublinhar o investimento feito na forma de escrever. Afinal, o

conteúdo não era novo, expunha problemas que grande parte da população carioca já

conhecia. Abordar os problemas sociais como uma “piada” era a maneira que o jornal

encontrara para não frustrar as expectativas sociais de estabilidade. O que instigava o

leitor eram a rapidez e movimento que a coluna imprimia através da manipulação do

vocabulário comum, criando uma situação humorística. O principal não era dar voz ao

“povo”, mas conquistar leitores de diversas camadas sociais e, sobretudo, dos setores

médios.

É inegável que estes problemas existiam, mas não eram escritos para atender

as queixas do “povo” e sim para entreter o leitor, que por sua vez não deveria entender

estas reclamações como uma ameaça às expectativas de estabilidade. A própria

coluna desconstruía esta noção de jornal “populista”, escancarando a distância entre a

realidade concreta e as resoluções institucionais do governo. O jornal não estava

preocupado em aproximar estas esferas tão separadas, mas em conquistar leitores.

Portanto, o jornal não era desprovido de interesses políticos, mas movido por

interesses comerciais. De fato, quem financiou a montagem do jornal Última Hora foi

Getúlio Vargas, isto é, o governo facilitou créditos. Além disso, havia setores da

burguesia nacional que o apoiavam como uma das frentes de resistência ao avanço

do capital estrangeiro. Entretanto, não havia uma ideologia possível que pudesse deter

a vontade do dono do jornal de conquistar um amplo e diversificado leque de leitores.

Eram as camadas médias que se tornavam sinônimo da “massa” que se tentava

atingir, muito embora isto não fosse claro para aquela especificidade social.

A proposta editorial escrito-visual do jornal Última Hora se apropriava dos

valores prezados pelas camadas médias vendendo-os como valores gerais. Eram elas

que se tornavam o parâmetro de “opinião pública” do jornal. Não por acaso, o diário

inaugurou também uma coluna social para as camadas médias, Luzes da cidade, que

fornecia pequenos flashes dos concursos de beleza que invariavelmente ocorriam nos

clubes da cidade12, informações sobre bailes13 e aniversários14. Os valores,

estabilidade social por meio da aparência estética e moral, ganhavam destaque na

coluna. Eram valores disseminados nas colunas sociais das camadas mais altas da

sociedade que foram reapropriados para as camadas médias. A moça mais bonita se

12 RENATO, Carlos e RAU, Leda. Luzes da cidade. In: Jornal Última Hora – 03/09/1956, caderno 2, p. 05. 13 RENATO, Carlos e RAU, Leda. Luzes da cidade. In: Jornal Última Hora – 04/09/1956, caderno 2, p. 05. 14 RENATO, Carlos e RAU, Leda. Luzes da cidade. In: Jornal Última Hora – 06/09/1956, caderno 2, p. 05.

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Histórica – Revista Eletrônica do Arquivo Público d o Estado de São Paulo, n.31, 2008

transformava em “rainha” de “última hora”, os bailes de clubes de futebol ou das

associações recreativas eram tratados como acontecimentos glamurosos e uma festa

de aniversário era alçada à categoria de um “coquetel”.

O estilo ágil, movimentado e urgente destas colunas revelam a proposta

editorial do jornal Última Hora que, ao subordinar a escrita aos padrões de visualidade

vigente, transformava o texto em visor, isto é, a verdade do texto como a verdade

visual daquela sociedade que se apresentava como “mediana”. Moral média que

encontrava respaldo e reforço nesta pretensa ubiqüidade visual do diário que com seu

olhar de relance garantia que toda a essência da vida estaria calcada na aparência da

notícia. Esta sociedade passava a valorizar os códigos visuais tanto pela sua

capacidade de impor as imagens de uma estabilidade social – “moderna” –, como de

expor as imagens do que não deveria ser considerado moderno: a morte, o trágico, a

“feiúra”, enfim, os desequilíbrios e desatinos de toda ordem.

Referências bibliográficas:

BARTHES, Roland. A mensagem fotográfica. In: LIMA, Luiz Costa (org.). Teoria da

cultura de massa. Tradução de César Bloom. 3ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra,

1990, pp. 303-316.

_____________. BARTHES, Roland. A estrutura da notícia. In: Crítica e verdade.

Tradução de Leyla Perrone-Moisés. 3ª edição. São Paulo: Perspectiva, 2003, pp. 57-

67.

WAINER, Samuel. Minha razão de viver. 15ª edição. Rio de Janeiro: Record, 1993.

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ADALGISA NERY E A ÚLTIMA HORA : DO JORNALISMO AO PARLAMENTO DA GUANABARA

Isabela Candeloro Campoi1

Resumo: O trabalho da escritora Adalgisa Nery no jornal Última Hora elegeu-a deputada constituinte da Guanabara, em 1960. Aspectos de sua trajetória fizeram de Adalgisa Nery uma defensora do nacionalismo getulista, assim como foi o jornal de Samuel Wainer. Procuramos mostrar seus posicionamentos políticos no colunismo diário, pontuando as inimizades e as alianças que a jornalista cultivou, tanto no jornalismo como no parlamento estadual. Palavras-chave: Adalgisa Nery; jornalismo político; Jornal Última Hora. Abstract: The activity of Adalgisa Nery at the newspaper Última Hora, provided her election for the Guanabara State in 1960. Some aspects of her trajectory show her position as a defender of the Brazilian nacionalism liked with Getúlio Vargas such as the newspaper of Samuel Wainer. This article intents to focus the political positions of the journalist Adalgisa Nery and points some enemies and alies which she cultivated during her carreer. Keywords: Adalgisa Nery; political journalism; Última Hora Newspaper.

O percurso profissional da escritora Adalgisa Nery mudou consideravelmente após iniciar

sua carreira na Última Hora, em novembro de 1954. Ela conhecia Samuel Wainer, fundador do

jornal, desde os tempos do Estado Novo (1937-1945) e publicava textos literários na Revista

Diretrizes, idealizada e dirigida por Wainer. Num período bastante delicado da política nacional,

Wainer mantinha como colaboradores figuras como Astrogildo Pereira – um dos fundadores do

Partido Comunista Brasileiro (PCB) –, Graciliano Ramos – opositor histórico do Estado Novo, além

de Jorge Amado e Raquel de Queirós. Valendo-se da influência de Adalgisa Nery Fontes, o nome

da escritora no conselho editorial “oferecia à revista algum tipo de segurança“, conforme afirma

Wainer em suas memórias.2 Afinal, Adalgisa era casada com Lourival Fontes, chefe do

Departamento de Imprensa e Propaganda-DIP, órgão da ditadura Vargas responsável pela

censura e pela propaganda governamental.

Já entre 1949 e 1950, como repórter do O jornal de propriedade de Assis Chateaubriand,

Wainer publicou uma série de reportagens prevendo a candidatura de Getúlio Vargas à

presidência da República. Por conta da repercussão positiva da notícia, Wainer iniciou estreita

relação com o ex-ditador, que passou a chamá-lo sob a alcunha de “Profeta“. O jornal Última Hora

surgia em junho de 1951, revelando seu caráter nitidamente getulista.

Durante o governo democrático de Vargas (1951-1954), o casal Fontes ressurgiu no centro

1 Doutora em História pela Universidade Federal Fluminense. 2 WAINER, Samuel. Minha razão de viver: memórias de um repórter. Rio de Janeiro: Record, 1988, p 51.

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das articulações políticas e dos eventos sociais. Lourival foi nomeado chefe do gabinete civil da

presidência e Adalgisa Nery atuou no assistencialismo social, também como presidente do Serviço

de Assistência ao Menor.

Nessas circunstâncias de envolvimento com a Era Vargas, a admiradora da personalidade

– do homem público e do estadista Getúlio Vargas – desabrochava. O nacionalismo, tão forte e

característico nos textos da jornalista Adalgisa Nery, tinha suas bases fincadas nessa sua

experiência.

Os anos que antecederam à morte de Vargas foram marcados por acusações acirradas

nas páginas dos jornais. Na tentativa de atingir o presidente, tanto a Última Hora quanto Samuel

Wainer, um “outsider“ entre os donos de jornal, foram alvo de intensas críticas. O jornal era

constantemente identificado pela imprensa oposicionista como um órgão a serviço do comunismo.

Da mesma forma, a Última Hora foi acusada de favoritismo nos empréstimos concedidos pelo

Banco do Brasil, incitando um caso atípico na imprensa brasileira: a instalação de uma Comissão

Parlamentar de Inquérito – CPI.3 Já Wainer foi acusado de não ter nascido no Brasil – o que o

impediria de ser proprietário de um veículo de imprensa. O atentado contra o então jornalista

Carlos Lacerda foi ponto crucial na intriga política. A imprensa comportou-se como personagem

decisiva na crise que culminou no suicídio do presidente Vargas.

Os reflexos dessa situação podem ser identificados na violenta reação popular

manifestada contra as sedes de periódicos e estações de rádio que se opunham a Vargas no Rio

de Janeiro. Com a bombástica manchete publicada à pedido de Getúlio: “Só morto sairei do

Catete”, o único jornal que circulou no dia 24 de agosto foi a Última Hora.

Em meados de 1954, já com o casamento desfeito, Adalgisa enfrentava dificuldades e

encontrou no velho conhecido, Samuel Wainer, a possibilidade de iniciar nova empreitada

profissional. A coluna Retrato sem retoque estreou no dia 5 de novembro de 1954 e logo ganhou o

caderno principal do jornal.

Tratando de questões ligadas à política e à economia, já nos primeiros artigos, Adalgisa

Nery explicitou sua principal linha jornalística: denunciar personalidades públicas e atitudes

políticas que considerava “entreguistas“. O discurso nacionalista foi a principal marca da coluna

Retrato sem retoque e Adalgisa Nery encontrou no jornal de Samuel Wainer espaço propício para

defender suas idéias. Jornal e jornalista identificavam-se como herdeiros políticos de Vargas.

Nas datas de nascimento e morte de Getúlio Vargas, 19 de abril e 24 de agosto,

respectivamente, Adalgisa rememorava a figura do presidente valendo-se de linguagem poética.

Não raro ela citava trechos dos discursos de Vargas em seus artigos, e a carta-testamento

deixada por ele, genuíno manifesto nacionalista, foi muitas vezes referenciada e citada.

Uma evidência da importância que a coluna adquiriu foi a reunião política organizada por

3 Sobre esse aspecto ver: SARAIVA, Camila Lacreta e SWENSSON Jr., Walter Cruz. “O Caso Wainer” In: Revista Histórica, Publicação do Arquivo do Estado de São Paulo, n. 09 dez./jan./ fev – 2002-2003.

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Histórica – Revista Eletrônica do Arquivo Público d o Estado de São Paulo, n.31, 2008.

Adalgisa Nery em seu apartamento, ainda em 1954. Noticiado na capa de Última Hora em 23 de

dezembro, o jantar reuniu convidados ilustres, como deputados, senadores, ministros, militares e

jornalistas que discutiram a situação política brasileira e a sucessão presidencial. Políticos de

diversidade partidária foram focados pelas lentes do fotógrafo num ambiente de descontração e

debate. Sobre a anfitriã, o jornal afirmou que “Adalgisa Nery presidia com seu encanto pessoal,

participando das conversas e não escondendo jamais sua opinião. A única dama era a ‘hostess’; e

em meio a tantas personalidades de destaque, víamos a nossa prezada poetisa, ora transformada

em vibrante jornalista.”

Se o encontro revelou a notoriedade da estreante jornalista, as críticas diretas que

Adalgisa Nery fazia nominalmente em sua coluna causou-lhe inúmeras inimizades. Valendo-se de

metáforas, expressões irônicas e linguagem figurativa, tecendo tanto elogios como críticas aos

setores políticos, tais como deputados, ministros de Estado, diretores de empresas estatais e

militares, a coluna de Adalgisa Nery adquiriu popularidade.

Conforme afirma Samuel Wainer em suas memórias, “a seção transformou-se rapidamente

numa das coqueluches da Última Hora. Adalgisa era uma mulher dura, quase perversa, e tinha um

estilo extremamente forte (...) Adalgisa agredia meio mundo com uma violência incrível, tratava

militares a pontapés, demolia políticos, sempre se valendo do jargão nacionalista e getulista (...)

Muitos a adoravam, outros tantos a odiavam.“ 4

Um de seus principais desafetos foi o poderoso dono dos Diários Associados. No artigo

Arranjos políticos, de 11 de janeiro de 1955, Adalgisa afirmou que o cargo de Assis Chateaubriand

no Senado havia sido conquistado através de uma intrincada transação com senadores do

Maranhão. Como não havia conseguido eleger-se pela Paraíba, a jornalista sugeriu com seu tom

característico de indignação e sarcasmo, que o novo senador havia “comprado” o cargo em troca

“de um ótimo apartamento com ar refrigerado e um ou dois cadillacs”. Adalgisa Nery e

Chateaubriand mantinham laços de amizade até então. Mas ele não ignorou a acusação, como

costumava agir frente às críticas que recebia nas páginas dos jornais.

Depois de publicar algumas notas anônimas, a rede de jornais de Chateaubriand divulgou

o texto intitulado Uma matrona tarada, assinado por ele próprio. No artigo, o “imortal“ recém eleito

para a Academia Brasileira de Letras defendeu-se da insinuação ao mesmo tempo em que acusou

grosseiramente, não apenas a profissional do jornalismo, mas a mulher Adalgisa Nery: “quem

calunia sem ter provas deve ser um tarado. E é o que miseravelmente fez a vulgar sexagenária

(...) em sua malvadez de virago” e ressalta a filiação política da acusada: “É a imundice

comunista, é a torpeza dos brasileiros assalariados de Moscou”.5

A intriga provocou a reação de militares maranhenses, que ofereceram um almoço no

clube da Aeronáutica em apoio à Adalgisa Nery. Muitos jornalistas lhe prestaram solidariedade e o

4 WAINER: Op. Cit. p. 247. 5 “O Jornal”. Rio de Janeiro,19 de janeiro de 1955.

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Histórica – Revista Eletrônica do Arquivo Público d o Estado de São Paulo, n.31, 2008.

episódio foi parar nas páginas da revista norte-americana Time Magazine.6

Num contexto marcado pela Guerra Fria, Adalgisa Nery foi muitas vezes identificada como

comunista. E não raro ela defendia-se contra essa acusação em sua coluna, como no artigo O

estudo dos problemas atuais não deve ser tolhido pelo macarthismo, de 13 de maio de 1958:

“Vamos extinguir esse vício melancólico de classificar de comunista todo aquele que vê e sente as

verdades do mundo presente, todo aquele que deseja cooperar honestamente para a formação de

uma mentalidade mais esclarecida e menos submissa.“

Após cerca de seis anos trabalhando na Última Hora, uma foto da colunista foi publicada

na capa do jornal junto da notícia: “Adalgisa Nery candidata socialista à constituinte”. Com a

mudança da capital do país para Brasília, ocorrida durante o governo do presidente Juscelino

Kubitschek, a cidade do Rio de Janeiro foi levada à categoria de Estado, como as demais

unidades da federação. Assim, o Estado da Guanabara (1960-1975) abrigou parte dos órgãos de

governo da capital transferida e, quando Brasília dava seus primeiros suspiros de vida política, a

Guanabara preservava um viés de conluio político ainda nacional.7

Convidada por João Mangabeira, líder do Partido Socialista Brasileiro, a candidatar-se à

constituinte do estado recém criado, a colunista de Última Hora protelou a aceitação e, após

consultar Samuel Wainer, aceitou a contenda filiando-se ao partido e candidatando-se à legislatura

da Guanabara.

O principal palanque eleitoral de Adalgisa Nery foi a coluna Retrato sem Retoque e, por

explicitar cotidianamente seu nacionalismo, na condição de formadora de opinião e de

personalidade pública vinculada a um órgão da grande imprensa, a jornalista foi escolhida para

presidir o Movimento Nacionalista da Guanabara.

Em 1960 o Brasil vivia um contexto de efervescência política. Por via democrática, o país

elegeria novo presidente da República, governadores estaduais e os deputados constituintes da

Guanabara.

Os nacionalistas promoveram entre os dias 20 e 22 de agosto a I Convenção Nacionalista

da Guanabara e a Última Hora deu especial atenção ao encontro. Apesar de posicionar-se

apartidária, a Convenção, presidida por Adalgisa Nery, “declarou à imprensa que o conclave

marcará o início da etapa final da campanha de Lott [General Henrique Teixeira Lott], Jango [João

Goulart] e Sérgio [Magalhães] na Guanabara, e que de suas decisões resultará um passo a frente

na eleição dos candidatos nacionalistas.”8

No plano internacional os movimentos de libertação nacional e anticolonialistas se

fortaleciam em diversas partes do mundo. O exemplo cubano e a luta dos congoleses recebeu

apoio dos nacionalistas reunidos na Convenção.

6 O “Diário de notícias”, o “Correio da manhã” e “O Globo” publicaram notas em apoio à jornalista. “Time Magazine” de 07 de fevereiro de 1955. 7 Sobre esse aspecto ver: MOTTA, Marly Silva da. Saudades da Guanabara: o campo político da cidade do Rio de Janeiro (1960-1975). Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 2000. 8 Jornal Última Hora de 20/08/1960.

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Já como candidata ao cargo de deputada constituinte, sem perder de vista e em

consonância com o panorama internacional, Adalgisa Nery discursou no encerramento da

convenção tratando da situação dos povos coloniais subordinados aos trustes e monopólios

internacionais. Da mesma forma, denunciou o controle estrangeiro na exportação do café

brasileiro, bem como os empréstimos a prazo curto e juros altos dos bancos estrangeiros ao

Brasil. Ponto considerável do seu discurso foi a retomada da luta de Getúlio Vargas, quando

finalizou com a leitura da carta-testamento deixada por ele, “seguindo-se um minuto de silêncio

em homenagem ao grande presidente”9

Nesse contexto, estimulando a efervescência do nacionalismo vinculado à figura de Getúlio

Vargas, foi publicado o livro Getúlio Vargas, meu pai, escrito por Alzira Vargas do Amaral Peixoto.

O lançamento ocorreu durante o festival do escritor, em meados de julho de 1960 e a Última Hora

apresentou cifras e números sobre as vendas, mostrando que o livro escrito pela filha de Getúlio

Vargas, juntamente com Gabriela, de Jorge Amado, foram os best-sellers do festival. E ainda

informou que “a poetisa Adalgisa Nery esgotou seu estoque de livros de poesia e contos.

Autografou muito e foi muito aclamada como futura deputada constituinte”. O festival contou

também com a visita do então presidente Juscelino Kubitschek. Foi um evento de forte tonalidade

política.10

Nas eleições de 03 de outubro, a popular e bem-sucedida colunista converteu seus leitores

em eleitores. A nota de gratidão aos cerca de 7.500 votos recebidos foi publicada em 18 de

outubro. Sob o título Agradecimento, Adalgisa refere-se à liberdade de opinião que a direção da

Última Hora a proporcionava. “Este jornal soube aproveitar as minhas pequenas aptidões e soube

aproveitar a favor dos seus leitores, o meu forte e inabalável sentimento nacionalista.”

A candidatura e a eleição de Adalgisa à Constituinte da Guanabara reforçou sua identidade

com o nacionalismo e com a figura de Getúlio Vargas. E sua postura seria inevitavelmente de

oposição, já que o primeiro governador da Guanabara foi Carlos Lacerda, inimigo declarado da

jornalista, que por diversas vezes o identificou como assassino de Getúlio Vargas e golpista

inveterado. Graças ao seu trabalho na Última Hora, Adalgisa Nery encontrou um novo terreno de

atuação: primeiro como constituinte da Guanabara, depois como deputada efetiva por dois

mandatos.

Um exemplo de sua identificação com o jornal foi o expediente do dia 13 de junho de 1962,

quando o plenário da Assembléia Legislativa do Estado da Guanabara comportou um debate

acirrado. O que era para ser uma rápida votação às congratulações dos jornais Diário de Notícias

e Última Hora pela passagem dos seus aniversários, transformou-se numa discussão repleta de

acusações. Eram as posturas de dois órgãos importantes da imprensa nacional refletindo nos

debates da política institucional.

O deputado e também radialista Raul Brunini, da União Democrática Nacional, discordava 9 Jornal Última Hora de 23/08/1960. 10 Coluna de José Mauro na “Última Hora” de 27/07/1960.

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da homenagem à Última Hora, afirmando que o jornal “fez uma campanha sistemática de

destruição do regime democrático em nosso país. É um jornal dirigido por comunista.”11

Diante disso, os deputados do Partido Trabalhista Brasileiro – Saldanha Coelho, Roland

Corbisier e Paulo Alberto Monteiro de Barros – manifestam-se em defesa da Última Hora.

Saldanha Coelho, inclusive, fez referências negativas ao Tribuna da Imprensa, jornal de

propriedade do então governador do estado, Carlos Lacerda.

Nessa ocasião, a deputada Adalgisa Nery, líder do PSB e colunista do jornal candidato à

congratulação, declarou: “(...) muito me honra pertencer aos quadros desse jornal. Devo a minha

eleição de deputado e grandes momentos de alegria a Última Hora. Lá tenho amigos eleitores,

tenho amigos leitores. Quando aqui se fala nesse jornal, penso que se deve usar de mais critérios

(...) Muito me honra em pertencer a Última Hora e, se algum dia sair desse jornal, não trabalharei

em jornal algum.”

A princípio, as congratulações eram mera formalidade. No entanto, ao referenciarem tais

jornais, os deputados incorporaram a identidade desses órgãos da imprensa no espaço político

institucional. Além disso, o debate parlamentar figurou sob certa revanche, inferindo vínculos para

além da política partidária, mas também reconhecendo os posicionamentos divergentes desses

periódicos.

A jornalista costumava escrever sobre a atividade parlamentar. Muitas vezes a deputada

discutia seus artigos no parlamento da Guanabara, ou então seus textos eram motivos de debate.

O deputado Danilo Nunes, por exemplo, levou ao plenário sua indignação diante dos insultos que

estava recebendo da deputada Adalgisa Nery no jornal Última Hora. Da mesma forma, seu artigo

censurado pelo governo Lacerda durante a crise de agosto de 1961, foi lido em plenário por um

aliado político.12

Aliás, nessa ocasião, certamente seus leitores estranharam o texto de 30 de agosto,

intitulado Sopa e ajantarado. Em tal artigo, Adalgisa Nery fala da “arte de bem comer” e faz

comentários quase absurdos, como, por exemplo, referindo-se à “carne de baleia, alimento farto

em calorias e de fácil aquisição” e a receita de uma sopa, no mínimo esquisita, indicada de

“acordo com o nosso clima tropical”. Tanto o artigo censurado quanto o que foi publicado foram

lidos na íntegra no plenário da Assembléia pelo deputado Hércules Correia, comunista eleito pelo

PTB.

O episódio da renúncia de Jânio Quadros exemplifica o amálgama do jornalismo político

com o trabalho legislativo de Adalgisa Nery. Naquele contexto o vice-presidente João Goulart

estava em missão oficial na China comunista e os ministros militares manifestaram-se contrários a

sua posse. Goulart era acusado de apresentar posições “claramente subversivas e

esquerdistas”.13

11 Anais da ALEG, XIII: junho de 1962, “Sobre votos de congratulações a ‘Última Hora’”, p. 1057. 12 Anais da ALEG, VI: setembro de 1961, p.1705-1706. 13 Manifesto dos ministros militares. In: LABAKI, Amir. A crise da renúncia e a solução parlamentarista.

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Histórica – Revista Eletrônica do Arquivo Público d o Estado de São Paulo, n.31, 2008.

Como governador da Guanabara, Carlos Lacerda tratou de calar as vozes que se voltavam

contrárias à intervenção das Forças Armadas em agosto de 1961, mobilizando o aparato policial

do Estado para reprimir os movimentos pela legalidade manifestados em vários pontos da cidade.

Como dono de jornal, Lacerda procurou divulgar a falsa informação de calmaria, tranqüilidade e

paz social. Assim, a censura sofrida pela jornalista foi estopim para o debate travado no

parlamento da Guanabara.14

Tais debates evidenciam a tensão, refletida também na imprensa, entre as forças políticas

esboçadas na conjuntura que antecedeu ao golpe de 1964. Num contexto marcado pela

bipolarização dos ânimos, a defesa ou a acusação de determinado jornal significava estabelecer

posição política para além dos trâmites partidários.

Nos dias que antecederam à chamada solução parlamentarista, Adalgisa Nery não poupou

esforços para denunciar as arbitrariedades cometidas por Carlos Lacerda. Como no artigo de

primeiro de setembro de 1961, em que comentou a atitude de enfrentamento de muitos deputados

da Guanabara diante das mais “vulgares e violentas ameaças do ‘Rei sem leis’(...) mesmo assim a

posição dos vermes de esterco não alterou em essência o valor e o significado democrático da

Assembléia Legislativa da GB” e denunciou a censura aos meios de comunicação.

Sobre a posição dos militares favoráveis ao que chamaram de “saída honrosa“ para a

situação, a jornalista afirmou: “seguramente esses bravíssimos soldados estão com os olhos

cobertos de catarata. Ora, a única saída honrosa para um militar, seja de que patente for, e é será

sempre o largo e suntuoso portão da legalidade”. Tratou os chefes militares envolvidos com

extrema agressividade e, entre os adjetivos, chamou-os de “indisciplinados”, “deflagradores de

badernas comandados pelo anarquista Carlos Lacerda”, “vermes fardados”, “traidores do povo

que merecem o repúdio e a repugnância do povo.” Assim, Adalgisa Nery consolidava uma frente

importante de inimigos políticos entre os militares.

Nos anos que antecederam ao golpe definitivo de abril de 1964, Adalgisa paulatinamente

se aliava às forças consideradas de esquerda. No início de 1963, ela deixou o PSB e filiou-se ao

PTB, que abrigava políticos mais radicais. A mudança de partido significou, além da aproximação,

também a possibilidade da deputada contribuir com o governo Goulart, afinal, seu nome foi cotado

para assumir a pasta do Ministério da Educação e Cultura semanas antes do golpe.

Boato, arma do pânico foi o último artigo assinado por Adalgisa Nery. Quando a Última

Hora chegou às bancas de jornal, em primeiro de abril de 1964, os fatos mostravam que a

agitação não era mero rumor. O boato transformara-se em realidade e o país sucumbia ao

golpismo. Naquela noite, a sede de Última Hora foi depredada e incendiada. Samuel Wainer

exilou-se na embaixada do Chile no dia primeiro de abril e deixou o país no início de maio.

São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 149. 14 Sobre esse aspecto: CAMPOS, Fátima Cristina Gonçalves. Visões e Vozes: o governo Goulart nas páginas da Tribuna da Imprensa e Última Hora (1961-1964) Dissertação de Mestrado em História Social das Idéias. UFF: PPGH 1996. FERREIRA, Jorge. “ A legalidade traída: os dias sombrios de agosto e setembro de 1961”. Tempo. Rio de Janeiro, vol.2, n. 3, 1997.

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Histórica – Revista Eletrônica do Arquivo Público d o Estado de São Paulo, n.31, 2008.

Uma semana após o golpe, Adalgisa figurava em uma lista de cassações e, investigada

pela polícia política, saiu em defesa própria escrevendo cartas ao presidente da ALEG e ao

general Artur da Costa e Silva, ministro da Guerra do regime então recentemente instalado.

Subversão e corrupção foram categorias criadas pelo primeiro Ato Institucional (11/04/1964) para

cassar mandatos eletivos, suspendendo os direitos políticos dos adversários do regime. Sua

postura política era incompatível com tais argumentos. Adalgisa preservou o cargo e foi reeleita

em 1966 pelo Movimento Democrático Brasileiro – MDB, partido considerado de oposição.

Mesmo afastada do jornalismo, a carreira política de Adalgisa Nery seria ainda marcada

por sua atuação na Última Hora. Quando o estado de saúde do presidente Costa e Silva agravou-

se, em agosto de 1969, uma junta militar passou a governar o Brasil e o representante da Marinha

era o almirante Augusto Rademaker, antigo desafeto da jornalista. Anos antes, Adalgisa

denunciara a negociata tramada na compra de tinta para pintar os navios da Marinha. Rademaker

ameaçou processar Adalgisa Nery e o jornal.Assim, no topo do poder e sob o regime de exceção,

o almirante encontrou ocasião propícia para vingar-se. Adalgisa Nery teve os direitos políticos

cassados pura e simplesmente em 17 de outubro de 1969. Anos depois, em 1971, a Última Hora

deixou de pertencer a Samuel Wainer.

Suas trajetórias fizeram da Última Hora e de Adalgisa Nery importantes vozes do

nacionalismo getulista, e a força da coluna Retrato sem retoque levou a jornalista ao parlamento

da Guanabara. O período que antecedeu ao golpe de 1964 foi marcado por uma experiência

democrática inédita no Brasil, com intensa participação e mobilização da sociedade civil. Ao

mesmo tempo, com a polarização política, os posicionamentos do jornal e da jornalista

vinculavam-nos às forças consideradas de esquerda. O golpe civil-militar de abril de 1964 eclipsou

as forças progressistas que pretendiam um país socialmente mais justo, mergulhando o Brasil em

longos anos de ditadura.

Bibliografia:

CAMPOS, Fátima Cristina Gonçalves. Visões e Vozes: o governo Goulart nas páginas da Tribuna

da Imprensa e Última Hora (1961-1964) Dissertação de Mestrado em História Social das Idéias.

UFF: PPGH 1996.

FERREIRA, Jorge. “ A legalidade traída: os dias sombrios de agosto e setembro de 1961”. Tempo.

Rio de Janeiro, vol.2, n. 3, 1997.

LABAKI, Amir. A crise da renúncia e a solução parlamentarista. São Paulo: Brasiliense, 1986.

MOTTA, Marly Silva da. Saudades da Guanabara: o campo político da cidade do Rio de Janeiro

(1960-1975). Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 2000

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Histórica – Revista Eletrônica do Arquivo Público d o Estado de São Paulo, n.31, 2008.

SARAIVA, Camila Lacreta e SWENSSON Jr., Walter Cruz. “O Caso Wainer” In: Revista Histórica,

Publicação do Arquivo do Estado de São Paulo, n. 09 dez./jan./ fev – 2002-2003.

WAINER, Samuel. Minha razão de viver: memórias de um repórter. Rio de Janeiro: Record, 1988.

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IMPRENSA E POLÍTICA NO BRASIL: CARLOS LACERDA E A T ENTATIVA DE DESTRUIÇÃO DA ÚLTIMA HORA

Marina Gusmão de Mendonça1 Resumo: Desde o início da campanha eleitoral de 1950, que culminaria com a eleição de Getúlio Vargas para o segundo mandato (1951/1954), o sistema político brasileiro viveu uma de suas mais intensas crises, marcada por tentativas de golpe, intrigas palacianas, denúncias de corrupção, oposição sem tréguas no Congresso, campanhas de difamação na imprensa e, até mesmo, uma tentativa de impeachment do Presidente da República. Nesse clima de profunda instabilidade, uma figura se sobressaiu: trata-se do jornalista Carlos Lacerda, proprietário do periódico Tribuna da Imprensa e um dos líderes da União Democrática Nacional (UDN) que, por meio de seu jornal – e com apoio de toda a grande imprensa – moveu uma das mais violentas campanhas contra o governo, tendo como um de seus principais alvos o vespertino Última Hora, dirigido por Samuel Wainer.Os motivos pessoais e políticos que levaram Lacerda a escolher Wainer como adversário e a tentativa de destruição da Última Hora, ambos como instrumentos para atingir o inimigo maior – Getúlio Vargas –, são o objeto deste artigo.

As origens da inimizade entre Carlos Lacerda e Samu el Wainer

Carlos Lacerda iniciou sua carreira jornalística pouco antes da Revolução de 1930,

quando passou a trabalhar no Diário de Notícias, exercendo a função de articulista de

uma seção dirigida por Cecília Meireles, e na qual publicaria, em 1931, seu primeiro artigo

assinado. Logo depois, no princípio de 1932, juntamente com Fernando Correia Dias,

Lacerda divulgaria um artigo no semanário Para Todos, iniciando suas ligações com a

intelectualidade e o meio artístico do Rio de Janeiro da época. Foi também nessa ocasião

que começaria sua carreira política, ao entrar na Faculdade de Direito do Rio de Janeiro,

onde teve a oportunidade de vincular-se a um grupo liderado por professores marxistas.

Desde o princípio, tanto nas atividades jornalísticas como nas políticas, Carlos

Lacerda se distinguiu não só pelo radicalismo como, também, pelo estilo virulento e

1 Bacharel em História e em Direito pela Universidade de São Paulo; Mestre e Doutora em História Econômica pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo; Professora Titular de Formação Econômica do Brasil e Formação Econômica da América Latina da Faculdade de Economia e Relações Internacionais da Fundação Armando Álvares Penteado; autora de Progresso e autoritarismo no Brasil (Editora Pensieri), O demolidor de presidentes (Editora Códex), e Formação econômica do Brasil (Editora Thomsom), este último em colaboração com Marcos Cordeiro Pires.

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ofensivo, os quais acabariam por constituir a marca de sua carreira, levando-o a angariar

diversos adversários. Por outro lado, suas vinculações com a esquerda e suas ações

temerárias diante da repressão o conduziriam, em várias ocasiões, à prisão. No entanto,

o casamento, em 1938, acabaria por provocar a busca de maior estabilidade.

Dessa forma, e aproveitando-se do grande talento jornalístico de que já dera

mostras anteriormente, começou a colaborar em várias publicações, além de assumir o

cargo de secretário de redação de O Jornal, editado pelos Diários Associados, o império

de comunicação construído por Francisco de Assis Chateaubriand Bandeira de Mello, no

qual permaneceria até 1944. Ao mesmo tempo, valia-se de suas ligações com a

esquerda, escrevendo para Diretrizes, a famosa revista lançada por Samuel Wainer, que

se transformaria, na década de 1950, num de seus maiores adversários políticos.

Apesar de suas vinculações com a esquerda, na mesma época Lacerda iniciaria

uma aproximação com grupos de direita, associando-se ao Observador Econômico e

Financeiro, revista criada nos moldes da publicação norte-americana Fortune por

Valentim Fernandes Bouças2, secretário do Conselho Técnico de Economia e Finanças

do Ministério da Fazenda, e dirigida pelo economista Olímpio Guilherme, presidente do

Conselho Nacional de Imprensa e um dos diretores do Departamento de Imprensa e

Propaganda (DIP).

No final de 1938, em comemoração ao primeiro aniversário da implantação do

Estado Novo, o governo organizou uma exposição das diversas realizações de seus

ministérios, entre as quais havia um setor inteiramente dedicado à vitória na luta contra o

comunismo. Com o objetivo de dar maior publicidade ao evento, Olímpio Guilherme

decidiu divulgar algumas matérias sobre a exposição no Observador Econômico e

Financeiro, contando, para isso, com recursos do DIP. Assim, incumbiu Lacerda de

redigir uma reportagem sobre a história do Partido Comunista Brasileiro (PCB), a ser

impressa num dos números posteriores da revista.

Para obter os dados necessários, Lacerda se valeria de sua intimidade com

diversos militantes, que lhe devotavam grande consideração, especialmente

2 Valentim Bouças, com quem Lacerda manteria, daí em diante, relações cada vez mais estreitas, também era, na época, diretor da IBM do Brasil. Americanófilo, já em 1935 defendia a realização de um acordo comercial com os Estados Unidos, o qual favoreceria as exportações de bens duráveis daquele país. Aliava-se ao grupo que preconizava a vocação agrária da economia brasileira, insurgindo-se contra medidas protecionistas para a indústria, que considerava artificial e parasitária. Sobre Valentim Bouças e suas vinculações com Carlos Lacerda, veja-se: MENDONÇA, Marina Gusmão de. A criação da Tribuna da Imprensa e a defesa dos interesses conservadores no Brasil. Revista de Economia Política e História Econômica. ano 1, nº 1, setembro/2004.

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considerando seus laços familiares com Mauricio, Fernando e Paulo de Lacerda3. Dessa

maneira, conseguiu de Eugênia Moreyra, mulher do escritor gaúcho Álvaro Moreyra, e de

Astrojildo Pereira, dirigente do PCB, informações preciosas sobre a organização interna

do partido. O resultado foi uma grande matéria intitulada A exposição anticomunista, na

qual seu autor, pela primeira vez, assumia uma postura ferrenhamente contrária ao

Partido e ao Movimento Comunista Internacional4. A conseqüência seria sua expulsão

imediata do PCB, dando origem a um ódio visceral aos comunistas que, ao lado do

combate implacável a Getúlio Vargas, se transformaria, com o tempo, na tônica de sua

atividade política.

Conforme versão que se tornou corrente na historiografia, Lacerda foi expulso do

Partido porque, no artigo, revelara nomes e segredos do PCB, o que teria permitido a

prisão e a tortura de diversos militantes. Isso, todavia, não corresponde à verdade, pois

do texto não constam quaisquer referências a pessoas que fossem ainda desconhecidas

da polícia do Estado Novo. Ao mesmo tempo, é difícil crer que o governo, depois de

desencadear uma feroz perseguição aos envolvidos no levante de 1935, ignorasse

qualquer dado sobre a estrutura e o funcionamento interno do Partido. De qualquer

modo, e embora o artigo não contivesse nenhuma informação surpreendente, era, aos

olhos do Partido, extremamente desrespeitoso em relação à doutrina e aos ideólogos

marxistas, além de demolir os princípios em que sempre baseara a sua ação política.

Ademais procurava desmoralizar suas mais destacadas lideranças, exatamente num

momento em que estas vinham sofrendo com a ferocidade da repressão governamental.

A expulsão de Lacerda do PCB deu-se da forma mais humilhante, pois o Comitê

Central mandou distribuir panfletos pelo centro do Rio de Janeiro, nos quais o acusava de

ser um trotskista traidor, responsável pelo martírio de vários companheiros. Condenava-o

ainda ao ostracismo, em virtude do que muitos de seus amigos passaram a evitá-lo e a

repeli-lo, marginalizando-o por completo. Dias depois, ele seria preso como trotskista.

Esse episódio teria graves conseqüências para Carlos Lacerda: de um lado, seus

adversários futuros iriam se valer da publicação desse artigo para impor-lhe a pecha de

traidor, chegando mesmo a acusá-lo de ter recebido dinheiro para delatar os membros do

3 Carlos Lacerda era filho do deputado socialista Mauricio Paiva de Lacerda e sobrinho de Fernando e Paulo de Lacerda, dirigentes do PCB. 4 Veja-se: LACERDA, Carlos. A exposição anti-comunista. Observador Econômico e Financeiro. v. 3, nº 36, janeiro/1939.

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Histórica – Revista Eletrônica do Arquivo Público d o Estado de São Paulo, n.31, 2008.

PCB5; de outro seria rechaçado por companheiros e colegas de trabalho, o que o levaria

a uma vida de percalços financeiros, de isolamento e de falta de solidariedade.

Acrescente-se o fato de que os tempos eram árduos, pois a censura imposta pelo

DIP reduzira consideravelmente o mercado de trabalho para jornalistas. Ao mesmo

tempo, os encargos familiares de Lacerda haviam aumentado, especialmente depois do

nascimento de seu filho Sérgio, em dezembro de 1938. Assim, os rendimentos que

obtinha no Observador Econômico e Financeiro eram insuficientes para sustentar dois

adultos e um bebê, tornando premente a necessidade de conseguir outros trabalhos.

Apesar do ostracismo a que havia sido condenado pelo Partido, Lacerda

receberia, naquele momento difícil a valiosa ajuda do amigo Samuel Wainer, que o

convidou para dirigir a seção literária de Diretrizes, então um periódico de grande

prestígio6. Entretanto, ao que tudo indica, Lacerda não se dava conta de que a expulsão

do PCB mudara definitivamente sua vida: o fascínio que a capacidade oratória e o estilo

arrogante e virulento outrora provocavam nos setores de esquerda havia se transformado

em desconfiança, e seus colegas não pareciam mais dispostos a ter com ele a mesma

condescendência demonstrada por Wainer. Dessa forma, conquanto necessitasse –

financeira e, em certo sentido, emocionalmente – reintegrar-se ao meio jornalístico do Rio

de Janeiro, não conseguia conter a agressividade, retomando, logo nos primeiros artigos

escritos para a revista, o mesmo tom áspero que o caracterizara.

Assim, logo de início, investiu numa resenha contra o poeta Jorge de Lima. Nos

números subseqüentes, em artigos extremamente desrespeitosos, atacou o pintor

Cândido Portinari e o escritor Mário de Andrade. A reação de seus companheiros de

redação, porém, não se faria esperar e, diante do desagrado demonstrado por todos –

inclusive por seu primo, Moacir Werneck de Castro –, não restou a Wainer outra

alternativa senão dispensá-lo.

5 Veja-se: Herr Lacerda, aprendiz de ditador, é uma nova cópia do sinistro Hitler. O Semanário. v. 8, nº 369, 23 a 29/1/1964. 6 Samuel Wainer já era, naquele momento, um jornalista conceituado. Ainda estudante, começara a trabalhar como repórter no Diário de Notícias, integrando-se, a seguir, à equipe da Revista Brasileira, editada por Antonio Batista Pereira, onde, em 1934, assumiu o cargo de secretário de redação. No ano seguinte, com o apoio de Caio Prado Jr., lançou a Revista Contemporânea, de curta duração. Em 1938, juntamente com Antonio de Azevedo Amaral e Mauricio Goulart, criou a revista mensal Diretrizes. Apesar das dificuldades financeiras e da censura da época, a publicação tornou-se um grande sucesso, transformando-se, em 1941, num jornal semanal de oposição ao Estado Novo (vejam-se: WAINER, Samuel. Minha razão de viver: memórias de um repórter. Rio de Janeiro: Record, 1988; BELOCH, Israel, ABREU, Alzira Alves de, org. Dicionário histórico-biográfico brasileiro. Rio de Janeiro: FGV/CPDOC, 2001, v. 5).

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Histórica – Revista Eletrônica do Arquivo Público d o Estado de São Paulo, n.31, 2008.

Este, em suas memórias, admite que convidar Lacerda a colaborar em Diretrizes

não fora uma boa idéia. Conforme recordou:

Jorge de Lima, além de grande poeta, era um homem

extremamente bondoso. Médico, costumava tratar gratuitamente dos

comunistas. As reações foram imediatas: “veja no que deu você trazer esse

crápula para dentro”, disse-me Jorge Amado. Moacir Werneck de Castro

ameaçou abandonar a revista. Resisti. O segundo artigo, tão violento e

ressentido quanto o primeiro, teve como alvo (...) Portinari. Moacir pediu

demissão. Com o terceiro artigo, chegou a vez de Mário de Andrade.

Constatei, então, que Carlos Lacerda não se emendara. Eu havia imaginado

que, com o episódio da expulsão do PCB, ele se tornaria mais tolerante,

humilde, compreensivo. Nada disso acontecera, e tive de ceder às

evidências: comuniquei-lhe que não havia mais clima para que ele

continuasse a escrever em Diretrizes7.

Segundo Wainer, iniciava-se, nesse momento, uma inimizade que Lacerda

cultivaria por toda a vida: “esse incidente com certeza contribuiu para antecipar a ruptura

que ocorreria mais tarde – era mais uma semente do ódio que ele depois manifestaria em

relação a mim8”.

Com seu desligamento de Diretrizes, complicou-se a situação financeira de

Lacerda, que não teve alternativa senão voltar-se para os amigos conservadores. O início

da Segunda Guerra Mundial, entretanto, traria novas oportunidades de emprego, pois o

governo norte-americano, empenhado numa campanha anti-nazista, passou a fornecer

material para a Agência Interamericana. Lacerda foi, então, contratado como tradutor da

empresa, em meados de 1940.

A atividade na Agência, contudo, não o livrava do ostracismo a que fora lançado

pelos setores de esquerda do Rio de Janeiro. Assim, e com o objetivo de superar o

isolamento, procurou construir um novo círculo de amigos em São Paulo, para onde

passou a viajar com freqüência. Em 1941, enfim, Lacerda parecia adaptado ao ambiente

paulista, conseguindo, inclusive, um trabalho razoavelmente bem remunerado como

supervisor do Digesto Econômico, boletim publicado semanalmente pela Associação

Comercial de São Paulo. A nova atividade levou-o a se mudar para a cidade em meados

7 WAINER, Samuel, op. cit., 1988, p. 72-73. 8 Idem, p. 73.

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de 1942, logo após o nascimento de Sebastião, seu segundo filho. Todavia um

desentendimento com a direção da entidade o faria abandonar o emprego pouco depois,

retornando ao Rio de Janeiro naquele mesmo ano, onde aceitou a oferta de trabalho feita

por Olímpio Guilherme, na época diretor da agência de publicidade ADA.

O emprego na agência, contudo, não duraria muito, pois logo recebeu convite de

Assis Chateaubriand para dirigir a Agência Meridional, empresa telegráfica dos Diários

Associados. Nesse período, conseguiu resolver sua situação perante o Exército – do qual

havia desertado em 1935 –, aproveitando a anistia prometida pelo governo a todos

aqueles que se alistassem.

Enquanto esperava a convocação, encontrou-se com Fernando de Lacerda, então

membro do Comitê Central do PCB, e que acabara de retornar de uma longa estada na

União Soviética. Ainda inconformado com seu desligamento do Partido, pediu ao tio que o

ajudasse a ser readmitido. Este, então, incentivou-o a escrever uma matéria favorável à

linha preconizada pelo Comintern, segundo a qual os comunistas brasileiros deveriam

esquecer as desavenças com Getúlio Vargas e unir-se a ele em benefício do esforço de

guerra. O resultado foi um artigo intitulado Os intelectuais e a união nacional, levado a

Samuel Wainer para ser publicado em Diretrizes, uma vez que, embora não estivesse

mais na revista, ainda não rompera com seu diretor.

Mas Wainer apoiava a linha defendida por Agildo Barata, que propunha a

formação de uma frente política – a União Democrática Brasileira (UDB) –, de caráter

menos abrangente. Por isso, consultou os comunistas da redação, e todos se opuseram

à publicação. A matéria, que acabou editada pela Revista Acadêmica, de pequena

circulação, não foi suficiente para apaziguar os ânimos em relação a Lacerda que, assim,

não pôde retornar ao PCB, carregando ao longo da vida a pecha de traidor e delator.

De todo modo, a negativa de Samuel Wainer9 reacendeu o ressentimento

provocado pela saída de Diretrizes, e Lacerda esperaria a hora certa para se vingar, que

viria com o chamado “Caso Última Hora”, durante o segundo governo Vargas. E, assim

como fez em relação à sua expulsão do Partido – divulgando a versão de que decidira

romper com os comunistas por não poder admitir suas práticas –, Lacerda passaria a

9 Samuel Wainer afirma categoricamente que esses dois fatos foram determinantes para a ruptura com Lacerda (veja-se: WAINER, Samuel, op. cit., 1988, p. 73).

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dizer que deixara Diretrizes “por discordar da linha de pactuação com os nazistas,

seguida (...) por ocasião do pacto germano-soviético”10.

A criação da Tribuna da Imprensa

Impossibilitado de retornar ao PCB, em 1943, só restava a Lacerda se limitar às

suas atividades na Agência Meridional. Contudo, em breve teria uma desilusão no

trabalho, pois esperava ser designado correspondente de guerra na Europa. Mas

Chateaubriand preferiu enviar o renomado jornalista Joel Magno Ribeiro Silveira. Lacerda,

então, teve de se contentar em cobrir as atividades militares no Nordeste, nessa época

transformado em base norte-americana.

Em 1944, de retorno ao Rio de Janeiro, Lacerda se engajaria na luta contra o

Estado Novo, ao mesmo tempo em que, profissionalmente, passou a acumular,

juntamente com o cargo de diretor da Agência Meridional, as funções de secretário de O

Jornal, principal publicação dos Diários Associados. Entretanto, essa atividade não

duraria muito, pois além da dificuldade em se adaptar ao exercício de tarefas

burocráticas, não conseguia se sujeitar ao comando de Chateaubriand. Assim, após

alguns incidentes, pediu demissão, ficando novamente desempregado. Começaria, então,

no final de 1944, a trabalhar como jornalista free lancer no Correio da Manhã, onde

passou a escrever uma coluna intitulada Na Tribuna da Imprensa, e no Diário Carioca.

Contudo, nessa luta contra o Estado Novo, Lacerda parecia não conseguir se

desligar das esquerdas. Tanto que tentou uma aproximação com outros setores

socialistas não vinculados ao PCB, defendendo as posições preconizadas pela Esquerda

Democrática (ED), que apoiava a candidatura do Brigadeiro Eduardo Gomes para as

eleições presidenciais de 1945. Todavia, os membros da ED acabariam por rejeitá-lo,

tendo João Mangabeira chegado a declarar que ele não era bem vindo à agremiação11.

Rejeitado por todos os setores de esquerda, Lacerda se filiaria à UDN – nesse

momento ainda uma frente de oposição organizada com o objetivo de combater Getúlio

Vargas e o Estado Novo –, juntando-se, com todas as forças, à campanha de Eduardo

Gomes, que acabaria derrotado pelo Marechal Eurico Gaspar Dutra, Ministro da Guerra e

candidato apoiado por Getúlio Vargas.

10 Veja-se: O homem que perdeu o amigo. Maquis. v. 2, nº 7, 1ª quinzena de agosto/1956, p. 11.

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A partir desse fato, Lacerda voltaria todas as suas baterias contra Getúlio e as

pessoas e forças que, de uma forma ou de outra, tivessem qualquer vinculação com o ex-

presidente. Com esse objetivo, e após se engajar em várias frentes, iniciou, em 1948, por

ocasião dos primeiros debates em torno da exploração dos recursos naturais brasileiros,

uma campanha contra a concessão de refino de petróleo a dois grupos privados

nacionais: Soares Sampaio-Corrêa e Castro, titular da Refinaria e Exploração de Petróleo

União S/A, de São Paulo, e Drault Ernany-Eliezer Magalhães, proprietário da Refinaria de

Petróleo do Distrito Federal S/A.

Ao mesmo tempo, defendia, ardorosamente, a participação do capital estrangeiro

na exploração de petróleo. Tanto que passaria a usar sua coluna no Correio da Manhã

para ataques à família Soares Sampaio12. Os artigos, contudo, provocariam grande

constrangimento a Paulo Bittencourt, proprietário do jornal e amigo íntimo dos Soares

Sampaio, e Lacerda acabaria demitido, embora conseguisse manter os direitos sobre o

título de sua coluna, Na Tribuna da Imprensa.

A perda do emprego, no entanto, seria imediatamente compensada pelo

surgimento da maior oportunidade de sua carreira profissional, pois os amigos Aluísio

Alves, deputado pela UDN do Rio Grande do Norte, e Luís Camilo de Oliveira Neto logo o

convenceram da viabilidade de fundar seu próprio jornal, o que foi conseguido por meio

da mobilização de grupos empresariais vinculados ao capital externo, que forneceram os

recursos necessários.

Desse modo, o vespertino Tribuna da Imprensa, editado pela primeira vez em 27

de dezembro de 1949, caracterizar-se-ia, desde o início, como um veículo de divulgação

de teses anti-nacionalistas e anti-populares, e que teria como principal objetivo, a partir de

1950, a liquidação de adversários, investindo sobretudo contra o getulismo e a política

populista. Com isso, Carlos Lacerda, que iniciara sua carreira política como uma

promissora liderança de esquerda, obtinha a maior vitória contra os antigos companheiros

do PCB, pois ao transformar o jornal num instrumento para violentas campanhas de

eliminação de opositores, alicerçava em sólidas bases a carreira política, deixando a nu, a

partir desse momento, sua face de grande tribuno dos interesses burgueses ligados ao

capital internacional13.

11 Conforme: DULLES, John W. Foster. Carlos Lacerda: a vida de um lutador (1914/1960). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992, v. 1, p. 85. 12 Veja-se: Correio da Manhã, 16/2/1949, 26/4/1949. 13 Sobre a criação da Tribuna da Imprensa, veja-se: MENDONÇA, Marina Gusmão de, setembro/2004, op. cit.

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O segundo governo Vargas e o fantasma da Última Hor a

Os debates sobre a sucessão do Marechal Dutra começariam ainda em meados

de seu mandato e, para quase todos, a grande incógnita era a posição a ser assumida

por Getúlio Vargas que, embora deposto, mantinha enorme prestígio, não só perante os

trabalhadores urbanos, como, também, nos setores agrários articulados em torno do

Partido Social Democrático (PSD). Dessa forma, as pretensões de Vargas eram

fundamentais para qualquer definição do jogo político com vistas ao pleito de 1950, em

que PSD e UDN, à semelhança do que ocorrera em 1945, provavelmente voltariam a se

defrontar nas urnas.

Na verdade, Vargas estimulava as especulações em torno de seu retorno e, no

início de 1949, concedeu a Samuel Wainer – então repórter de O Jornal – uma entrevista

em que dizia:

Eu não sou propriamente um líder político. Sou, isto sim, um líder de

massas. Minha posição atual é a de um simples observador. (...)

Pessoalmente estou pronto a conversar com quem quer que venha me

procurar. Mas, uma condição preliminar torna-se necessária para isso: que o

seu programa dirija-se antes de mais nada à defesa dos trabalhadores

brasileiros dentro dos princípios de uma socialização progressiva das fontes

nacionais de riqueza (...). O meu pensamento (...) está todo voltado para os

trabalhadores do Brasil14.

As declarações vinham corroborar as suspeitas de que o ex-ditador efetivamente

considerava a possibilidade de se candidatar. Contudo, para além disso, indicavam que

Vargas estava disposto a mobilizar as massas populares com o objetivo de angariar apoio

para o desenvolvimento de uma política voltada para os interesses dos trabalhadores, o

que acendia os temores das camadas dominantes.

A entrevista foi interpretada como uma declaração de que Getúlio pretendia, de

fato, concorrer à Presidência da República em 1950, e que o lançamento oficial de sua

14 WAINER, Samuel. O debate da sucessão presidencial não poderá ser mais contido In: LACERDA, Carlos et al. Reportagens que abalaram o Brasil. Rio de Janeiro: Bloch, 1973, p. 133-140.

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candidatura era apenas uma questão de tempo. Este fato imediatamente mobilizou todas

as forças anti-getulistas que, a partir de então, tentariam, de todas as formas, impedir seu

retorno ao poder. De todo modo, Samuel Wainer se tornaria, ao longo da campanha, o

jornalista mais próximo do ex-ditador, transformando-se, depois da posse, no virtual

porta-voz do novo governo.

Essa proximidade com o poder acabaria por propiciar-lhe os recursos necessários

à criação de seu próprio jornal15, um vespertino que, desde o lançamento, em junho de

1951, obteve imediato sucesso de público, ultrapassando, em apenas seis meses, as

vendagens de todos os concorrentes. Tamanho êxito logo atrairia contra Wainer a ira da

grande imprensa, prejudicada pelo volume de recursos publicitários que passaram a ser

destinados ao novo periódico.

De fato, o lançamento da Última Hora fora um golpe no mercado jornalístico,

então dominado por algumas poucas empresas que controlavam não só o noticiário,

como também quase todos os investimentos publicitários, indispensáveis à sobrevivência

financeira dos órgãos de imprensa16. Afinal, não se pode esquecer que a leitura de jornais

era um hábito restrito ao pequeno contingente letrado da população, e os periódicos não

poderiam sobreviver apenas com os recursos advindos da venda em bancas e de as-

sinaturas. Por outro lado, a televisão, implantada no País no ano anterior, constituía-se

ainda num luxo inacessível à maioria dos brasileiros, motivo por que as agências de

publicidade dedicavam grande parte dos investimentos à imprensa escrita.

Samuel Wainer não hesitaria em se valer da proximidade com os membros do

novo governo para realizar o sonho de todo repórter, que é conseguir editar o próprio

jornal. Por seu turno, Vargas, cuja base de sustentação política era frágil, precisava

15 Segundo Samuel Wainer, pouco depois da posse, Getúlio sugeriu-lhe a fundação de um periódico. Simultaneamente, o jornalista ficou sabendo que o Diário Carioca se encontrava em situação pré-falimentar. Decidiu, então, adquirir o jornal, recorrendo a empresários e autoridades, como o banqueiro Walter Moreira Salles, Euvaldo Lodi, dirigente da Federação das Indústrias do Rio de Janeiro (FIRJ), Ricardo Jafet, Presidente do Banco do Brasil (BB), e Juscelino Kubitschek de Oliveira, recém-eleito Governador de Minas Gerais. Os empréstimos obtidos, somados a dois contratos de publicidade, permitiram que Wainer fizesse um desconto antecipado no BB, completando a quantia inicial prevista para levar adiante a criação da Última Hora (veja-se: WAINER, Samuel, 1988, op. cit., p. 127-132). 16 Segundo Nelson Werneck Sodré, as agências de publicidade (na maioria estrangeiras) destinavam, naquela época, um grande volume de recursos aos meios de comunicação, o que, na prática, garantia o financiamento de jornais, revistas e emissoras de rádio e televisão, tornando-se, portanto, absolutamente dependentes da orientação política ditada por aquelas empresas (veja-se: SODRÉ, Nelson Werneck. A história da imprensa no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966, p. 465-466).

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contar com o apoio popular, o que seria mais fácil se pudesse obter uma divulgação favo-

rável à sua administração, neutralizando, assim, a oposição da grande imprensa ao seu

retorno à Presidência. A Última Hora nascia, portanto, da confluência dos interesses pes-

soais de Samuel Wainer com as necessidades de ampliação das bases de apoio do novo

governo.

Contudo, o jornal se transformaria num dos principais alvos da campanha de

desestabilização política de Getúlio, pois, embora não haja "nenhuma prova de que o

Presidente eleito houvesse determinado a fundação de Última Hora ou sequer

providenciado os recursos necessários ao seu lançamento"17, a proximidade de Wainer

com o centro do poder lhe abriu portas que, de outra maneira, estariam fechadas.

Esse fato seria amplamente utilizado pela oposição, notadamente por Lacerda

que, sem qualquer hesitação, passou a acusar Getúlio de manipular recursos públicos em

benefício de Wainer. Para tanto, contaria não só com a Tribuna da Imprensa, mas

também com ampla cobertura dos principais órgãos de imprensa, que aderiram integral-

mente à campanha. Na verdade,

ao incentivar e favorecer a criação do inovador jornal de Samuel

Wainer, Vargas interviera diretamente no mercado, (...) não apenas privi-

legiando a ação de um jornalista particularmente bem-dotado, como

subvertendo as regras de acesso ao fechado clube dos proprietários de

jornal, dos fazedores de notícia.

Conseqüentemente, "ao dar a Wainer as condições para desequilibrar

inteiramente o jogo de forças do mercado jornalístico, o presidente forneceria também

aos seus adversários um alvo através do qual poderiam (e tentariam) atingi-lo"18.

Para Lacerda, ambicioso e vaidoso, o sucesso da Última Hora seria de difícil

aceitação, tanto mais que, sendo este um vespertino, concorria diretamente com a

Tribuna da Imprensa, muito pobre em vendagem. Por outro lado, há tempos ele nutria

ressentimentos contra Samuel Wainer que, como já se viu, além de não oferecer a ajuda

17 SILVA, Hélio.1954: um tiro no coração. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975, p. 184. 18 ABREU, Alzira Alves de, LATTMAN-WELTMAN, Fernando. Fechando o cerco: a imprensa e a crise de agosto de 1954 In: GOMES, Ângela Maria de Castro, org. Vargas e a crise dos anos 50. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994, p. 29.

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esperada quando de sua expulsão do PCB, também não se dispusera, em 1942, a

publicar o artigo Os intelectuais e a união nacional, que escrevera por recomendação de

seu tio Fernando, com o intuito de conseguir voltar ao Partido.

Além disso, naquela ocasião Lacerda já mantinha estreitas ligações com os

grupos empresariais vinculados ao capital internacional, haja vista as circunstâncias que

levaram à criação da Tribuna da Imprensa. Dessa forma, veria ele, no lançamento da

Última Hora, a grande oportunidade para apontar todas as baterias contra os dois

grandes inimigos: Getúlio Vargas e Samuel Wainer.

A campanha contra a Última Hora teve início logo após o seu lançamento. Assim,

já em 27 de julho de 1951, Lacerda publicou um editorial intitulado Golpe contra a im-

prensa independente, em que, a pretexto de comentar o empastelamento dos periódicos

La Prensa e Vanguardia, e a prisão dos jornalistas de El Intransigente, determinada pelo

governo argentino, lançava suspeitas de que a violência constituía parte de uma estraté-

gia articulada por Perón com o objetivo de acabar com a liberdade de imprensa. De

acordo com a matéria, tratava-se de um verdadeiro "complô", com ramificações na

imprensa brasileira19.

Lacerda procurou dar impulso à campanha durante a VII Conferência da

Associação Interamericana de Imprensa, realizada em Montevidéu, em outubro de 1951.

Denunciando o envolvimento do governo na obtenção dos recursos para o lançamento da

Última Hora, fez um apelo para a criação de mecanismos que impusessem um severo

controle sobre os subsídios governamentais a órgãos de imprensa, de modo a impedir a

concorrência desleal. Porém, é preciso assinalar que, ao condenar essa prática, ignorou

o fato de que quase todos os periódicos brasileiros costumavam recorrer aos cofres

públicos para conseguir empréstimos privilegiados, como eram os casos de O Globo, de

propriedade da família Marinho, e dos Diários Associados, de Assis Chateaubriand,

grandes devedores do Banco do Brasil e da Caixa Econômica Federal20. Ademais, o

19 Veja-se: Tribuna da Imprensa, 27/7/1951. 20 Veja-se a respeito: SODRÉ, Nelson Werneck, 1966, op. cit., p. 460-467. Para se ter idéia do grau de dependência dos órgãos de imprensa em relação a agências financiadoras estatais, basta verificar o caso específico de O Globo, que em outubro de 1950 obteve um grande empréstimo no BB a pretexto de importar uma rotativa. Em garantia, oferecia a própria máquina a ser adquirida. Até agosto de 1952 a operação foi repetida mais quatro vezes (veja-se: SILVA, Hélio, 1978, op. cit., p. 202).

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próprio fornecimento de papel para a imprensa era sistematicamente subsidiado pelo

governo, o que beneficiava inclusive a Tribuna da Imprensa21.

Mas as vendas da Última Hora cresciam rapidamente: a tiragem chegava a

150.000 exemplares nas segundas-feiras, e 100.000 nos demais dias da semana. Diante

disso, Lacerda passou a acusar Samuel Wainer da prática de "dumping", uma vez que

este conseguira reunir um grupo de renomados profissionais oferecendo-lhes

remuneração superior aos salários pagos pelos demais jornais. Porém, não se tratava de

prática deliberada de “dumping”. O sucesso da Última Hora atraía verbas publicitárias

cada vez mais vultosas, o que proporcionava à empresa rendimentos suficientes para

cobrir uma grande folha de pagamentos.

Assim, o objetivo da campanha de Lacerda era, de fato, eliminar um concorrente a

cada dia mais incômodo, cujo sucesso expunha o fato de seu jornal constituir um retum-

bante fracasso editorial. Aliás, deve-se ressaltar que, dentre os principais periódicos do

Rio de Janeiro, a Tribuna da Imprensa ocupava o último lugar em vendagem. O problema

se agravaria com o naufrágio da revista Bamba, lançada em junho de 1951, por sugestão

de D. Hélder Câmara, e que vinha substituir o suplemento infantil da Tribuna da

Imprensa. Os prejuízos foram de tal ordem que a publicação foi suspensa cerca de um

ano e meio depois.

Os repetidos fracassos transformaram a Tribuna da Imprensa no alvo preferido

dos adversários de Lacerda, que a ridicularizavam como o "lanterninha" da imprensa. Isso

espantava os anunciantes, perpetuando-se, portanto, a situação deficitária da empresa. O

jornalista rebateu o apelido jocoso, utilizando a lanterna de Diógenes — símbolo da

eterna procura por um homem honesto — como marca do vespertino. Assim, em 29 de

junho de 1953, a lanterna apareceu, pela primeira vez, nas páginas da Tribuna da

Imprensa. Mas Samuel Wainer e seu vitorioso jornal — bem como a defesa que fazia de

Getúlio Vargas — permaneciam como espectros a rondar as ambições de Carlos

Lacerda, estimulando-o a atacá-los com toda a fúria de sua pena.

O ressentimento e a inveja seriam exasperados quando o proprietário da Última

Hora lançou a revista Flan, em abril de 1953. A publicação também atingia diretamente o

monopólio do mercado de revistas, controlado inteiramente pelos Diários Associados,

21 Como apontou Hélio Silva, a maneira com que foram obtidos os recursos para o lançamento da Última Hora constituía uma prática extremamente comum na imprensa brasileira da época (veja-se: SILVA, Hélio, 1978, op. cit., p. 200-201).

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responsáveis pela edição do semanário O Cruzeiro. Por outro lado, deve-se considerar

que as grandes empresas jornalísticas, sempre deficitárias e dependentes de subsídios,

tinham que se conformar, agora, em dividir créditos e verbas publicitárias com um con-

corrente cada vez mais poderoso22. A Tribuna da Imprensa passou então a se dedicar à

publicação de manchetes sensacionalistas contra Samuel Wainer e todos aqueles que,

de alguma maneira, haviam contribuído para o erguimento da Última Hora.

No artigo de 21 de maio de 1953, intitulado O que é a Érica, Lacerda denunciava o

favorecimento do Banco do Brasil na concessão de empréstimos a pessoas próximas ao

governo:

A 'Érica', empresa que edita a 'Última Hora' e 'Flan', é (...) presidida

pelo ex-embaixador nos Estados Unidos, Carlos Martins Pereira de Souza,

parente do sr. Getúlio Vargas. Seus sócios são os srs. Luís Fernando

('Baby') Bocaiúva Cunha, genro do ministro da Educação; Dinarte Dorneles,

parente do sr. Getúlio Dorneles Vargas; Adolfo Alencastro Guimarães; Raul

Amaral Peixoto, irmão do governador Amaral Peixoto; Carlos de Souza

Gomes (...). Assim, o Banco do Brasil emprestou a pessoas ligadas por

parentesco ao presidente da República Cr$ 64 milhões sobre uma

propriedade. Além dessa hipoteca, há letras e títulos vencidos, que perfazem

um total de cerca de Cr$ 150 milhões.23

Nesse mesmo dia, em editorial intitulado Estourou a felipeta da imprensa,

novamente acusava Wainer de ter se aproveitado de dinheiro público para montar a

empresa"24. Por fim, a Tribuna da Imprensa publicou reportagens em que afirmava ter o

Banco do Brasil nomeado o advogado Herófilo Azambuja para o cargo de interventor na

Érica, editora da Última Hora. O objetivo seria investigar os empréstimos concedidos à

empresa, durante a gestão de Ricardo Jafet naquela instituição25. Uma das matérias, de

22 Lacerda já sofrera um duro golpe em março de 1952, por ocasião do lançamento da edição paulista da Última Hora. O empreendimento se tornara possível por meio de recursos fornecidos pelo Conde Francisco Matarazzo que, inimigo figadal de Assis Chateaubriand, decidira atingir seu adversário exatamente na cidade em que estava sediado o coração dos Diários Associados, ou seja, a capital de São Paulo. 23 Tribuna da Imprensa, 21/5/1953. 24 Idem, ibidem. 25 Vejam-se: Esbanjavam o dinheiro do Banco do Brasil, e A intervenção na Última Hora. Tribuna da Imprensa, 20, 21/5/1953, respectivamente.

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Histórica – Revista Eletrônica do Arquivo Público d o Estado de São Paulo, n.31, 2008.

autoria do jornalista Natalício Norberto, baseava-se em supostas declarações de

Azambuja, feitas numa entrevista. Diante disso, a direção da Última Hora, além de mover

uma ação contra a Tribuna da Imprensa, exigindo vultosa indenização, decidiu contratar

Norberto que, de imediato, declarou ter sofrido pressões de seu antigo empregador para

forjar a entrevista.

Vendo-se acuado por Samuel Wainer, Lacerda redobrou os esforços na tentativa

de destruir seu desafeto. Para isso, passou a publicar acusações cada vez mais graves

contra o proprietário da Última Hora26, chegando a proclamar que estava "provado o

'dumping' com a carta de um anunciante"27. Procurando também atingir figuras próximas

de Getúlio Vargas, a Tribuna da Imprensa dava a entender que as mesmas mantinham

vinculações escusas com Samuel Wainer. É o que se vê da manchete Última Hora

integrada no esquema peronista que João Goulart prepara, de 8 de julho de 1953. O

artigo era um resumo da entrevista concedida por Lacerda, na véspera, à Televisão Tupi

de São Paulo.

Segundo ele, Jango, recém-nomeado Ministro do Trabalho, estava tentando "criar

no Brasil uma nova CGT, do tipo Perón", para o que preparava um golpe

no estilo boliviano. Não se trata do fechamento do Congresso como

em 1937, e, sim da sua dominação pela massa de manobra de um

sindicalismo dirigido por 'pelegos' visando reformar a Constituição e

estabelecer uma ditadura no país. (...) O papel da 'Última Hora' em tudo isso

é histórico mas miserável, já definido por Rui Barbosa, como o papel da

'imprensa dos capões'. (...) Não há dúvida de que a 'Última Hora' está in-

tegrada ao esquema do golpe peronista que o sr. João Goulart prepara.28

Nesse ínterim, e estimulada pela pena do jornalista, a oposição conseguiu

angariar número suficiente de assinaturas para a instalação de uma Comissão

Parlamentar de Inquérito (CPI), criada, afinal, pela Resolução n. 313, de 3 de junho de

1953, sob a presidência do deputado Carlos Castilho Cabral. Tinha, como objetivo

expresso, a apuração dos empréstimos concedidos pelo Banco do Brasil à Última Hora.

26 Vejam-se: Mar de lama, e Pedida a convocação do espião nazista que financiava Samuel Wainer. Tribuna da Imprensa, 30-31/5/1953 e 2/7/1953, respectivamente. 27 Tribuna da Imprensa, 2/7/1953.

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Histórica – Revista Eletrônica do Arquivo Público d o Estado de São Paulo, n.31, 2008.

Ao que tudo indica, a idéia original da CPI partira do próprio Samuel Wainer,

inspirado nas investigações promovidas pelo Comitê de Atividades Anti-americanas do

Congresso dos Estados Unidos. Como revelou em suas memórias, esperava que a

maioria governista no Parlamento pudesse "neutralizar as espertezas da oposição

udenista" e, assim, "concluídas as investigações, que fatalmente penderiam pela

absolvição da Última Hora, seria difícil a Lacerda insistir nas denúncias"29.

Contudo, a oposição, comandada pela "Banda de Música" da UDN, não pouparia

esforços para utilizar a CPI como mais um instrumento da campanha contra Getúlio

Vargas, criando um tal clima de desconfianças em torno do Presidente que pudesse,

afinal, fornecer condições para a instauração de um processo de impeachment. Para

tanto, recebia assessoria jurídica do Escritório de Advocacia Monsen, do Rio de Janeiro,

famoso por suas estreitas ligações com grandes empresas estrangeiras, entre elas a

Standard Oil, e que contava em seus quadros com o conhecido advogado Fernando

Veloso, genro de Valentim Bouças e, sabidamente, amigo pessoal de Lacerda.

Em 14 de julho de 1953 a campanha atingiu o auge, quando Lacerda, em

pronunciamento na televisão, declarou bombasticamente ter provas de que Samuel

Wainer não havia nascido no Brasil, o que, de acordo com o artigo 160 da Constituição,

lhe vedava o direito de ser proprietário de empresa jornalística. Segundo ele, a denúncia,

feita a partir de um telefonema anônimo à redação da Tribuna da Imprensa, havia sido

confirmada pela consulta a documentos do Ministério da Educação, realizada por seu

amigo, o deputado Armando Ribeiro Falcão, do PSD, e por David Nasser, jornalista de

grande prestígio nos Diários Associados.

De acordo com os dados referentes ao ano de 1927, e constantes dos arquivos do

Colégio Pedro II, do Rio de Janeiro, o proprietário da Última Hora teria, na verdade,

nascido na Bessarábia. Com o início da Primeira Guerra Mundial, sua família emigrara

para o Brasil, onde chegou quando Wainer tinha apenas dois anos. A informação

fundamentava-se nas declarações feitas à diretoria da escola por Artur, irmão mais velho

do jornalista, cuja intenção teria sido livrá-lo do serviço militar obrigatório.

Todavia, existem indícios de que há muito Lacerda sabia da questão em torno da

nacionalidade do proprietário da Última Hora. Na realidade, ele conhecia intimamente a

família Wainer, de cuja residência fora assíduo freqüentador na juventude. Dessa forma,

28 Idem, 8/7/1953.

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Histórica – Revista Eletrônica do Arquivo Público d o Estado de São Paulo, n.31, 2008.

ali ouvira, certa vez, uma indiscrição da mãe de Samuel que, durante um almoço,

inadvertidamente revelara ter o filho nascido na Bessarábia. Lacerda, então, teria se

aproveitado do fato para atingir seu desafeto30. E foi com esse intuito que, em 15 de julho

de 1953, sob a manchete Wainer não é brasileiro, a Tribuna da Imprensa ofereceu, com

estardalhaço, as provas de que o proprietário da Última Hora "fez declaração falsa de

nacionalidade brasileira". Segundo a matéria,

Chaim Wainer, ou Jaime, pai de Samuel Wainer, ao tirar a carteira

de estrangeiro, em S. Paulo, (...) a 2-8-43, declarou-se nascido em Edenitz,

na Rumânia, tendo chegado ao Brasil, pela primeira vez, em navio cujo nome

não se lembra, em 1920. Dora Lerner Wainer, mãe de Samuel, ao tirar a

Carteira de Estrangeiro (...), em S. Paulo, declarou ter chegado ao Brasil,

pela primeira vez, em 1915, pelo 'Valdívia'. Sua declaração é de 18-9-1942.

A 27 de janeiro de 1942 ambos se casaram, para poder tirar essa carteira de

estrangeiro, pois antes não possuíam documentos de identidade válidos

perante as leis brasileiras. A 17 de fevereiro de 1922, Samuel Wainer

compareceu a cartório, no Rio, e declarou (...) ter nascido em S. Paulo a 16

de janeiro de 1912, sendo primeiro filho, e legítimo, de Jaime (Chaim) e Dora

Wainer. Assim, Samuel teria nascido no Brasil três anos antes de chegarem

ao Brasil seu pai e sua mãe31.

Ainda nesse dia, comentando a veemente contestação da denúncia, publicada em

edição extra da Última Hora32, a Tribuna da Imprensa afirmava: "Wainer não provou que é

brasileiro". Por fim, sob o título de Wainer deve ser expulso do país, informava ser esta a

opinião de "parlamentares sobre a revelação em torno da nacionalidade do diretor da

'Última Hora'"33.

A acusação tinha como finalidade exclusiva atingir Samuel Wainer, pois, como

ressaltou Nelson Werneck Sodré, o texto da Constituição de 1946 era extremamente

ambíguo no tocante à questão da nacionalidade dos proprietários de empresas

29 WAINER, Samuel, 1988, op. cit., p. 177. 30 Veja-se: FRANCIS, Paulo. Trinta anos esta noite: 1964, o que vi e vivi. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 141.

31 Tribuna da Imprensa, 15/7/1953. 32 Veja-se: Última Hora, 15/7/1953 (edição extra). 33 Tribuna da Imprensa, 15/7/1953.

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Histórica – Revista Eletrônica do Arquivo Público d o Estado de São Paulo, n.31, 2008.

jornalísticas34. Se, de um lado, a legislação vetava taxativamente essa possibilidade a

estrangeiros, de outro, concedia brechas ao capital externo, que se aproveitava

amplamente do fato, principalmente no que concerne às agências de notícias, não

mencionadas no corpo da lei, o que oferecia oportunidade para interpretações dúbias.

Salienta ainda Nelson Werneck Sodré que "revistas dirigidas por estrangeiros, de

propriedade de estrangeiros e até impressas no estrangeiro começavam a circular em

nosso país, ferindo frontalmente o dispositivo constitucional"35.

Ignorando esse fato, a Tribuna da Imprensa passou a dar imenso destaque ao

caso, publicando, quase todos os dias, manchetes sensacionalistas a respeito, tais como:

Novos documentos oficiais confirmam que Wainer não é brasileiro, Pedidas informações

sobre os Wainer ao Ministro da Justiça, Encaminhado à Comissão de Inquérito o dossier

sobre a nacionalidade de Wainer36, Nasceu mesmo na Bessarábia37, etc..

A acusação caía sobre a Última Hora como uma bomba. Movidos, cada um deles,

por razões diferentes, Lacerda, Assis Chateaubriand e a oposição udenista desencadea-

ram uma ofensiva irresistível contra Samuel Wainer. Para o dono dos Diários Associados,

tratava-se de eliminar, a qualquer custo, um concorrente que ousara desafiar seu

monopólio na edição de revistas semanais. Para a UDN, a questão principal era provar

que a Última Hora recebera, de fato, um tratamento privilegiado do Banco do Brasil, o que

lhe permitiria vincular Getúlio e todos os seus correligionários ao "mar de lama".

Finalmente, para Lacerda, essa era a grande oportunidade de se vingar,

simultaneamente, de dois grandes inimigos políticos.

A CPI da Última Hora se arrastou por meses e, a despeito de as provas terem

demonstrado que praticamente todos os órgãos de imprensa, inclusive a Tribuna da

Imprensa, mantinham estreitas relações com as agências financiadoras estatais38, a

oposição logrou êxito na tentativa de convencer a opinião pública de que, ao fornecer

34 Veja-se: SODRÉ, Nelson Werneck, 1966, op. cit., p. 455-456. 35 Idem, ibidem. 36 Veja-se: Tribuna da Imprensa, 16/7/1953. 37 Idem, 18-19/7/1953. 38 Uma simples consulta à relação fornecida pelo BB à CPI, da qual consta a posição dos débitos de diversas empresas de publicidade, jornais, revistas e rádio em 30 de junho de 1953, revela a estreita dependência daquelas entidades com os financiamentos oficiais. Pela lista, pode-se verificar que, entre outras, eram devedores do Banco: Diários Associados; Editora de Revistas e Publicações S/A - Érica; Editora Última Hora S/A; Empresa Gráfica O Cruzeiro S/A; Rádio Globo S/A; S/A Diário Carioca; S/A Editora Tribuna da Imprensa (conforme: Ata da Primeira Sessão Secreta da Comissão de Inquérito criada pela Resolução n. 313 - Arquivo Castilho Cabral - CPDOC/FGV - CC 59.06.30, c, I-2).

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Histórica – Revista Eletrônica do Arquivo Público d o Estado de São Paulo, n.31, 2008.

recursos para o jornal de Wainer, o Presidente se envolvera, de fato, num gravíssimo

caso de favoritismo39.

Os anti-getulistas conseguiam, com isso, uma oportunidade de explorar os

preconceitos da classe média a respeito de moralidade e corrupção administrativas,

sentimento difundido também no seio das Forças Armadas. Além disso, atingindo fundo o

imaginário popular, na época extremamente sensível a apelos nacionalistas, lançava

dúvidas sobre o patriotismo de Samuel Wainer, tornando-o, portanto, um alvo mais

vulnerável.

No curso das investigações, Wainer e seu irmão José teriam ainda que se

defender da denúncia de falsificação de documentos. Com efeito, em julho de 1953, José

vasculhou os arquivos do Ministério do Trabalho com o objetivo de achar alguma

anotação que comprovasse a chegada da família ao Brasil antes do nascimento do

jornalista. Encontrou um rol de roupas datado de 1905, obtendo, com isso, declaração de

um funcionário do Ministério, na qual este informava terem os Wainer desembarcado no

País naquele ano. Contudo, o documento, publicado pela Última Hora logo depois,

desencadearia nova onda de reações por parte de seus adversários.

Acompanhado de David Nasser e Armando Falcão, Lacerda se dirigiu ao

Ministério do Trabalho para investigar os papéis encontrados por José Wainer. Após

examinar o rol de roupas, um grafólogo especialmente contratado emitiu laudo, onde

afirmava ter havido falsificação das datas: o ano de 1920 teria sido, na realidade,

adulterado para 1905.

A notícia apareceu com estardalhaço na Tribuna da Imprensa, que passou a

apresentar manchetes diárias a respeito, tais como: Falsificado um documento no

Ministério do Trabalho; Enviada à perícia do DFSP a lista de passageiros adulterada no

Ministério40, Impressão geral no Ministério de que a lista foi adulterada41; Falcão denuncia

Wainer como criminoso comum42; Já foi identificado o falsificador da lista43. O escândalo,

39 Durante a campanha, poucos jornalistas se insurgiram contra a suposta defesa da moralidade pública invocada por aqueles que, sabidamente, tinham telhado de vidro. A esse respeito, vejam-se as denúncias contra Assis Chateaubriand feitas por Rafael Correia de Oliveira no Diário de Notícias (apud SODRÉ, Nelson Werneck. Memórias de um soldado. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967, p. 429-430). 40 Tribuna da Imprensa, 21/7/1953. 41 Idem, 22/7/1953. 42 Idem, 23/7/1953.

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Histórica – Revista Eletrônica do Arquivo Público d o Estado de São Paulo, n.31, 2008.

que deu origem a um novo processo, acabou provocando a condenação de Samuel

Wainer e de seu irmão a um ano de prisão. Porém, a pena não chegou a ser cumprida e,

no julgamento da ação sobre sua nacionalidade, em novembro de 1955, o jornalista seria

absolvido no Supremo Tribunal Federal (STF) por unanimidade.

Lacerda aparentemente atingira seu objetivo: a Última Hora, apesar de conseguir

manter as vendagens, passaria a enfrentar graves dificuldades financeiras, decorrentes

da debandada dos anunciantes em direção a outros jornais. Por sua vez, o governo, a

cada dia mais acuado pela oposição, não se mostrava disposto a socorrê-la e, assim, no

início de 1954, o Presidente da República determinou a execução imediata das dívidas da

empresa perante o Banco do Brasil44.

Valendo-se de estreitas ligações com Luiz Fernando Bocayuva Cunha, genro de

Ernesto Simões Filho, Ministro da Educação, Wainer logrou reunir os recursos ne-

cessários para saldar o débito. Porém, no dia do vencimento só chegou à sede do Banco

após o encerramento do expediente, e o pagamento acabou sendo efetuado, de fato,

depois de oficialmente expirado o prazo. O dinheiro foi recebido por ordem de Oswaldo

Aranha, Ministro da Fazenda, em atendimento a um pedido de Simões Filho. Como não

soubesse que Wainer havia conseguido quitar a dívida, a Tribuna da Imprensa chegou a

noticiar o fechamento da Última Hora. E, ao tomar conhecimento da atitude do Ministro,

Lacerda investiu furiosamente contra ele.

Na realidade, poucos dias antes, Aranha divulgara nota oficial em que justificava a

decisão de autorizar o Banco do Brasil a vender, para a Imprensa Nacional, o lote de

papel que, na condição de fiador da Última Hora, pagara a uma empresa fornecedora

estrangeira. Aproveitando-se disso, em 5 de março de 1954 Lacerda proclamou ter o

Ministro "transformado o Banco do Brasil em vendedor de papel para não ter que levar a

'Última Hora' à Justiça".

Resumindo a questão, Lacerda informava:

A 'Última Hora'-Wainer obteve com Jafet a fiança do Banco do Brasil

para um contrato de papel (...). A 'Última Hora'-Wainer deixou de cumprir o

contrato, não pagando o vendedor. O Banco do Brasil passou a pagar,

honrando a fiança. Aranha, que tem em Jafet um de seu íntimos, não tomou

43 Idem, 25-26/7/1953. 44 Veja-se: WAINER, Samuel, 1988, op. cit., p. 192-193.

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Histórica – Revista Eletrônica do Arquivo Público d o Estado de São Paulo, n.31, 2008.

qualquer providência para responsabilizar Jafet pelo negócio. Dantas45

requer a Aranha que dê ordem à Alfândega para que o Banco do Brasil retire

esse papel sem pagar os impostos a que estaria obrigado. Aranha

CONCEDE ESSA AUTORIZAÇÃO, sob pretexto de que no Banco

'predominam os interesses da União'. A lei não cogita desse predomínio. (...)

Dantas, então, passa a vender ao Tesouro Nacional o papel que a 'Última

Hora' não pagou. Com isso, deixa a 'Última Hora' descumprindo o contrato

sem que nada lhe aconteça. O devedor relapso encontra no Banco do Brasil

mãe carinhosa que se ocupa dos seus interesses, vende para ele a

mercadoria que comprou e não pagou46.

Nas edições que se seguiram, Lacerda continuou a lançar duríssimas acusações

contra Aranha47. Porém, dessa vez sofreria fisicamente as conseqüências, pois, dias

depois, Euclides Aranha, filho do Ministro, o atacou a socos num famoso restaurante do

Rio de Janeiro48.

Apesar da campanha, a Última Hora conseguiria sobreviver ainda por alguns

anos. As dificuldades cresceriam, porém, com o golpe militar de 1964. Por fim, em 1972,

o jornal seria vendido para um grupo liderado por Mauricio Alencar, que então assumira o

controle do Correio da Manhã.

Bibliografia:

Fontes:

Arquivo Castilho Cabral – CPDOC/FGV

Correio da Manhã

Maquis

Observador Econômico e Financeiro

O Semanário

45 Referência a Marcos Clemente de Souza Dantas, então Presidente do Banco do Brasil. 46 Tribuna da Imprensa, 5/3/1954 (grifos do texto). 47 Veja-se: Grupo americano-brasileiro obtém favores excepcionais de Aranha. Tribuna da Imprensa, 6-7/3/1954. 48 Veja-se: Euclides Aranha provoca desordem no Bife de Ouro. Tribuna da Imprensa, 24/3/1954.

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Histórica – Revista Eletrônica do Arquivo Público d o Estado de São Paulo, n.31, 2008.

Tribuna da Imprensa

Última Hora

Livros e artigos:

ABREU, Alzira Alves de, LATTMAN-WELTMAN, Fernando. Fechando o cerco: a imprensa e a crise de agosto de 1954 In: GOMES, Ângela Maria de Castro, org. Vargas e a crise dos anos 50. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994. BELOCH, Israel, ABREU, Alzira Alves de, org. Dicionário histórico-biográfico brasileiro. Rio de Janeiro: FGV/CPDOC, 2001. DULLES, John W. Foster. Carlos Lacerda: a vida de um lutador (1914/1960). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992, v. 1. FRANCIS, Paulo. Trinta anos esta noite: o que vi e vivi. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. LACERDA, Carlos. A exposição anti-comunista. Observador Econômico e Financeiro. v. 3, nº 36, janeiro/1939. MENDONÇA, Marina Gusmão de. A criação da Tribuna da Imprensa e a defesa dos interesses conservadores no Brasil. Revista de Economia Política e História Econômica. ano 1, nº 1, setembro/2004. SILVA, Hélio. 1954: um tiro no coração. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975. SODRÉ, Nelson Werneck. A história da imprensa no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966. SODRÉ, Nelson Werneck. Memórias de um soldado. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967. WAINER, Samuel. Minha razão de viver: memórias de um repórter. Rio de Janeiro: Record, 1988. WAINER, Samuel. O debate da sucessão presidencial não poderá ser mais contido In: LACERDA, Carlos et al. Reportagens que abalaram o Brasil. Rio de Janeiro: Bloch, 1973.

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Histórica – Revista Eletrônica do Arquivo Público d o Estado de São Paulo, n.31, 2008.

A ÚLTIMA HORA NA CRIAÇÃO DA PETROBRAS: DISPUTA IDEOLÓGICA E A

RELAÇÃO IMPRENSA E POLÍTICA NO SEGUNDO GOVERNO VARG AS

Luis Carlos dos Passos Martins1

Resumo: A criação da Petrobras (1951-1953) foi uma das questões mais polêmicas do segundo governo Vargas, envolvendo disputas político-ideológicas que colocaram em xeque a própria identificação de Getúlio com o nacionalismo econômico. O jornal Última Hora (UH), órgão getulista, esteve diretamente envolvido nesse processo, tentando conciliar a defesa das conflitantes demandas políticas de Vargas com sua própria identidade doutrinária no universo jornalístico. Por estas razões, a análise do posicionamento da UH neste tema oferece uma interessante oportunidade para compreendermos melhor seu alinhamento ideológico e sua relação com o governo, bem como a própria relação entre imprensa e política no período.

Palavras-chave: Última Hora – nacionalismo – Vargas Abstract: The foundation of Petrobras (1951-1953) was one of the most polemic issues during the second term of Vargas as Brazil’s president, it envolved political and ideological disputes that put in jeopardy the identity of Getulio as a patron of the nationalism in the economy. The “Ultima Hora” (UH), an supporter of Getulio, was directly envolved in that process, trying to conciliate the defence of contradictory political demands made by Vargas with his own identity and doctrine among the Brazilian journals at that time. For these reasons, the analisys of the positions pledged by the UH offers an interesting insight for a better understanding of it’s own ideological alignment and it’s relations with the Vargas administration and the relationship between press and politics in that period as well.

Keywords: Última Hora – nationalism – Vargas

O processo de criação da Petrobras 2 (1951-1953) foi uma das questões mais

polêmicas do segundo governo Vargas (1951-1954) e o desfecho de um longo debate

político-ideológico que mobilizou o Brasil por quase uma década em torno do

“problema do petróleo”.

Tradicionalmente, a historiografia dividiu este debate em duas correntes: de um

lado, os que defendiam a exploração do petróleo brasileiro mediante a atração de

capital estrangeiro – chamados de “entreguistas”; de outro lado, os que pregavam o

monopólio estatal como única alternativa aceitável para a questão – conhecidos como

nacionalistas.

1 Doutorando em História no Programa de Pós-graduação em História da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Mestre em História pela PUCRS, com a dissertação “O processo de criação da Petrobras: imprensa e política no segundo governo Vargas” (2006). 2 Emprego neste texto a grafia atual do nome da empresa.

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Histórica – Revista Eletrônica do Arquivo Público d o Estado de São Paulo, n.31, 2008.

Parte da bibliografia especializada associou o presidente e o seu projeto da

Petrobras a esta última linha, sendo a implantação do monopólio estatal do petróleo

uma das principais demonstrações de seu comprometimento com o nacionalismo

econômico 3.

O jornal Última Hora (UH), fundado pelo jornalista Samuel Wainer (junho de

1951), teve intensa participação no processo de criação da Petrobras, situação pouco

surpreendente se considerarmos que, primeiro, a imprensa foi um dos palcos

privilegiados da polêmica estabelecida em torno da questão e que, segundo, a própria

UH foi concebida para ser uma “expressão do getulismo” (WAINER,1993, p.136),

devendo, assim, defender os pontos de vista do governo no universo jornalístico.

Desta forma, não é de estranhar também que seu envolvimento no debate tenha sido

associado ao monopólio estatal do petróleo e à corrente nacionalista4. Esta

interpretação, aliás, é bastante condizente com a visão mais difundida a respeito do

papel da imprensa no período, concebida como mero instrumento político de grupos

ou partidos, sem nenhuma especificidade como meio de produção simbólica e estando

submetida à lógica da política de forma análoga a dos jornais partidários 5.

Contudo, ao observarmos a imagem difundida pela bibliografia tradicional de

Getúlio Vargas, comparada ao processo de criação da Petrobrás e a participação do

ex-presidente no projeto, verificamos que existem opiniões que se contradizem.

Quando Getúlio apresentou, no dia 6 de dezembro de 1951, seu programa do

petróleo, propôs, ao invés do monopólio estatal, a criação de uma empresa de

economia mista que, embora estivesse sob o controle da União, permitia a

participação de acionistas privados, inclusive estrangeiros, na composição de seu

capital.

Conforme WIRTH (1973), uma das razões que levaram Vargas a não incluir o

monopólio em seu programa foi a preocupação de evitar uma discussão ideológica

sobre o assunto no Congresso. O próprio autor argumenta que a fórmula encontrada

para a Petrobras (empresa de economia mista) correspondia melhor ao modelo de

desenvolvimento de Getúlio que, longe de ser antiimperialista ou autóctone, como

defendeu parte da historiografia, não excluía a participação do capital privado

estrangeiro e nem pregava a vocação industrial do Estado 6. De tudo isso importa

3 Quanto a isso, consultar o levantamento que BOITO JR (1987) fez sobre esta interpretação. 4 As associações entre a linha editorial da UH e o nacionalismo econômico são bastante comuns na bibliografia sobre o período, em especial na área de comunicação, como podemos encontrar em LAGE (2003, p. 31) e em SODRÉ (1983, p. 404). 5 Sobre esta visão da imprensa, ver RIBEIRO (2002 e 2003). 6 Quanto a esta discussão, podemos consultar BOITO JR (op.cit.), FONSECA (1987) e VIANNA (1987).

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Histórica – Revista Eletrônica do Arquivo Público d o Estado de São Paulo, n.31, 2008.

ressaltar que não houve uma necessária vinculação entre o projeto petrolífero de

Vargas e o monopólio estatal, do que decorre a seguinte pergunta: teria o presidente

se afastado ou negado seu propalado nacionalismo econômico?

Esta questão foi um dos temas básicos que fomentou a enorme polêmica

gerada pelo programa do governo no meio político. Os parlamentares ligados à

“bancada nacionalista” que defendiam o monopólio estatal – dentre os quais se

encontravam os deputados do PTB, partido do presidente – classificaram a empresa

como um projeto “entreguista” e a própria Campanha do Petróleo 7, com brados de

“abaixo a Petrobras”, saiu às ruas contra a “solução Vargas” para o problema 8. Mais

surpreendente ainda foi a postura da UDN, a qual, desejando fazer oposição a Getúlio,

abandonou o liberalismo e apresentou um substitutivo propondo a criação de uma

outra empresa (a ENAPE)9, que deteria o monopólio estatal integral no setor

petrolífero. Frente a isso, a reação inicial de Vargas foi manter a linha de seu

programa, defendendo-o como a “verdadeira” solução nacionalista e qualificando os

partidários do monopólio estatal como “arautos dum falso nacionalismo” (VARGAS,

1954, v. 3, p.156).

Em resumo, podemos perceber que, em torno do projeto inicial da Petrobras,

estabeleceu-se um conflito no que se referia à alternativa nacionalista mais adequada

para o problema do petróleo, que era, ao mesmo tempo, um confronto sobre o

nacionalismo de Getúlio e sobre o próprio significado do nacionalismo econômico.

Com o decorrer dos meses, entretanto, o debate se acirrou e a aprovação do

programa de Vargas no Congresso ficou seriamente ameaçada. Tal situação levou o

governo a negociar um acordo partidário na Câmara dos Deputados (setembro de

1952), no qual foi incluído oficialmente o monopólio estatal do petróleo na Petrobras,

mantendo-se fora dele as refinarias privadas e o setor da distribuição. Apesar desses

entendimentos, o projeto só foi aprovado no dia 19 de setembro de 1953, porque, no

Senado, os parlamentares udenistas desconsideraram o acordo e tentaram

“liberalizar” o programa, sem, contudo, consegui-lo.

Desta maneira, quando Vargas sancionou a Lei n. 2004 que instituiu a

“Petróleo Brasileiro S. A.”, estava criando uma companhia diferente da que propusera

em 1951 e cuja paternidade lhe era negada pela corrente nacionalista. Além disso, sua

própria imagem como nacionalista também havia sido amplamente questionada.

7 A Campanha do Petróleo foi uma grande mobilização de massas que, sob o slogan de “O petróleo é nosso”, reunia professores, militares, estudantes, sindicalistas e populares em torno da bandeira do monopólio estatal integral para o setor. 8 Conforme palavras do presidente em exercício do Centro de Defesa do Petróleo e da Economia Nacional, General Felicíssimo Cardoso, apud MIRANDA (1983, p. 153). 9 Empresa Nacional de Petróleo.

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Histórica – Revista Eletrônica do Arquivo Público d o Estado de São Paulo, n.31, 2008.

Tendo em vista estas questões, cabe agora perguntar: qual foi o

posicionamento da UH diante de uma situação tão contraditória? Como o jornal se

posicionou ideologicamente frente a um tema tão polêmico? E, especialmente, como

fez para conciliar, de um lado, a possibilidade de se identificar com o nacionalismo

econômico e, de outro lado, a necessidade de atender as demandas políticas do

governo Vargas, nem sempre coerentes com princípios doutrinários? Responder a

estas perguntas pode nos ajudar a entender um pouco melhor a linha ideológica do

jornal e sua relação com o governo, bem como a própria relação entre imprensa e

política no período estudado.

A Última Hora e a criação da Petrobras

O lançamento do programa do petróleo varguista ganhou amplo destaque na

UH. Nos dias 06 e 07/12, a questão é o tema das duas manchetes do jornal: “Vargas

convoca o povo para a campanha de libertação” (UH-06/12/51-1/1-R) 10 e “Governo e

povo derrotam os monopólios” (UH-07/12/51-1/1-R).

A presença do termo “povo” nesses títulos já permite perceber uma das

estratégias do jornal na abordagem do projeto de Getúlio, a saber, tentar associá-lo ao

interesse das camadas populares, percepção que é reforçada quando consideramos o

subtítulo que acompanha a manchete do dia 07: Champagne e Whiskye pagarão pelo

petróleo. Nesta frase, a UH supervaloriza a proposta de majoração do imposto sobre

artigos de luxo como uma das alternativas de financiamento da Petrobras 11,

provavelmente com o objetivo de vincular a criação da empresa a um suposto prejuízo

das “elites” em benefício indireto do “povo”. Com efeito, ao dizer que “Champagne,

Whiskye e Luxo pagarão pelo petróleo”, o jornal está empregando esses termos não

só como denominações de bens de luxo, mas também como signos dos que os

consomem, insinuando que serão esses consumidores (os ricos ou a “grã-finagem”)

que “pagarão pelo petróleo” em favor do “povo” 12.

10 A referência das citações do jornal segue a seguinte notação: uma sigla para o jornal citado (UH), seguida da data (dd/mm/aa) e, depois do hífen, da localização no jornal (são dois números: o primeiro indicando o caderno e o segundo a página). Por fim, empregou-se uma sigla para indicar o gênero: E para editorial, R para reportagem e A para artigos. A coluna Barômetro Econômico foi identificada com a sigla BE. 11 Falamos em supervalorização, porque a participação deste imposto na composição do capital da Petrobras era reduzida, tendo em vista que a maior parte do mesmo viria dos ativos da União em petróleo – cerca de 4 bilhões de cruzeiros – e da parcela de 25% do imposto único sobre combustíveis. 12 Em um editorial, a UH se referiu aos opositores da Petrobras como “defensores dos proprietários de Cadilacs” e afirmou o seguinte sobre os que se sentiam prejudicados com a empresa: “Coitadinho dos tubarões: como irão sofrer, depois que o projeto da ‘Petrobras’ for transformado em lei” (UH-06/06/52-E-1/3).

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Histórica – Revista Eletrônica do Arquivo Público d o Estado de São Paulo, n.31, 2008.

É possível afirmar que, ao representar a criação da Petrobras como uma

maneira de fazer justiça social, os editores da UH procuram atender ao interesse

político de Getúlio de se ver associado ao interesse popular. Porém, é licito inferir que

esta mesma estratégia também correspondia a uma das formas com as quais Samuel

Wainer pretendia construir a identidade do UH no universo da imprensa, ou seja, como

um periódico popular que falava a “linguagem do povo” e defendia seus interesses

frente aos ricos e privilegiados (WAINER, 2003). Em outras palavras, neste caso,

ocorreu uma conciliação razoável entre as demandas da UH como instrumento político

de Vargas e suas necessidades específicas como jornal.

Mas o termo “povo” contido nas manchetes pode ser entendido ainda

metonimicamente como “nação”, indicando que a Petrobras representaria igualmente

um confronto no qual Vargas liderava toda a nação na luta contra os monopólios

internacionais do petróleo. Temos aí outra estratégia de apresentação do programa do

governo, na qual este é representado como a “solução nacional” para o setor. Esta

estratégia, pelo que vimos antes, também correspondia a um dos interesses de

Getúlio no tema aqui tratado. Contudo, ela não era tão fácil de ser sustentada.

Analisando a UH, notamos que o jornal foi envolvido de forma bastante ativa

nessa polêmica inicial. Com efeito, assumiu-se em suas páginas a árdua tarefa de

defender o nacionalismo tanto da Petrobras (UH-06/06/52-1/3-E) quanto de Vargas

(UH-10/06/52-/3-E). E, mais ainda, o jornal tornou-se um meio de sustentação dos

princípios doutrinários que orientaram a elaboração da companhia petrolífera, batalha

na qual nem o próprio Vargas se dedicou diretamente.

Para isso, o projeto varguista foi retratado como a alternativa mais racional

para o problema do petróleo brasileiro, porque na “empresa mista, de capital público e

privado (...), o poder do Estado se concilia com a flexibilidade do empreendimento

privado” (UH-06/12/51-1/6-BE). O interessante desta argumentação é que a vantagem

apontada no programa era o fato de ele não ser uma solução “puramente estatal”.

Afirmando isso, a UH não só fazia a defesa da presença da iniciativa privada no

programa como apresentava uma relevante distinção entre nacionalismo e estatismo

(UH-14/05/52-1/6-BE). Em conseqüência, o grande inimigo combatido nas páginas do

jornal nessa campanha não foi o capital estrangeiro, como se podia imaginar, mas o

monopólio estatal, em virtude da excessiva burocratização e ineficiência que ele

implicaria frente aos “métodos flexíveis” da empresa mista (UH-13/06/52-1/6-BE).

Porém, quando o governo Vargas incluiu o monopólio estatal no projeto, a

dinâmica do jogo político acabou por colocar a UH em uma situação contraditória:

depois de se comprometer com a sustentação doutrinária da “empresa mista”, o jornal

deveria, agora, apoiar o novo programa, como monopólio estatal incluso.

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Inicialmente, a estratégia da UH foi tentar distinguir a segunda proposta,

chamado-a de “monopólio nacional”, da alternativa estatista dos adversários,

classificada como “monopólio estatal” (UH-19/05/52-1/1-E). Outra saída foi dar

cobertura à aprovação do projeto, sem mencionar a inclusão do monopólio estatal no

mesmo. Mais tarde, durante o processo de discussão da “nova Petrobras” no Senado

e mesmo no momento de sua aprovação final, a opção da UH foi defender a

configuração final da empresa não por ser a fórmula ideal para a questão, mas por ser

a única solução politicamente possível para o impasse que se estabeleceu em torno

dela. Nas palavras do jornal, a Petrobras deveria ser aprovada por ser “a média do

pensamento político brasileiro a respeito do problema do petróleo” e, assim, “o

resultado de uma conciliação das nossas forças políticas atuantes” (UH-18/11/52-1/3-

R).

Em resumo, a necessidade de acompanhar os movimentos políticos do

governo levou a UH a apoiar a aprovação da Petrobras, mesmo com a inclusão do

monopólio estatal que tanto combatera. Mas, ao fazer isso, não assumiu a defesa da

tese do monopólio, evitando contrariar a linha ideológica com a qual havia se

comprometido anteriormente.

Conclusão

A partir da análise acima, podemos destacar alguns pontos.

O primeiro ponto a destacar diz respeito ao projeto ideológico da UH. Em

relação ao caso aqui estudado, podemos afirmar que a classificação da linha

doutrinária deste jornal simplesmente como nacionalista foi insuficiente para dar conta

das suas tomadas de posição em relação ao tema, deixando muitas questões sem

esclarecimento. Para entendermos isso, devemos considerar que o termo

nacionalismo, apesar de seu largo uso na época, estava longe de possuir um

conteúdo ideológico necessário e definitivo 13. Ao contrário, a apropriação desse rótulo

por parte de diversos grupos sociais no período, devido ao seu alto valor simbólico14,

era um dos elementos essenciais da disputa política, dando margem a um intenso

conflito sobre a definição de qual programa econômico poderia ser considerado

nacionalista de forma mais legítima 15.

Dessa forma, se desejarmos fazer uma classificação da linha doutrinária da UH

devemos empregar conceitos mais refinados, como os oferecidos por 13 Quanto a isso, consultar MOREIRA (1998). 14 Em relação a isso, ver GUIBERNEAU (1997). 15 Sobre esta disputa em torno da apropriação do nacionalismo, consultar MOREIRA (op.cit.) e MARTINS (2006).

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Histórica – Revista Eletrônica do Arquivo Público d o Estado de São Paulo, n.31, 2008.

BIELSCHOWSKY (2000), que divide a disputa ideológica do período em cinco grandes

correntes. No caso estudado, a posição da UH parece mais próxima da corrente

desenvolvimentista que o autor associa ao setor público de corte nacionalista, cuja

principal bandeira seria a industrialização planificada, apoiada por empreendimentos

estatais, com a participação controlada de capital estrangeiro, desde que direcionado

aos setores não-estratégicos da economia (transportes e energia).

O segundo ponto a ressaltar diz respeito à relação do jornal com o governo

Vargas e a própria relação imprensa e política no período.

Vimos, no caso da Petrobras, o esforço da UH em defender a linha de ação do

governo Vargas. Entretanto, pudemos notar também que esta tarefa implicou em

algumas dificuldades para o jornal, indicando que nem sempre as demandas políticas

de Getúlio poderiam ser atendidas tranquilamente.

No que se refere à tentativa de apresentar o projeto varguista como uma forma

de defender os interesses “populares”, a UH parece ter encontrado uma solução

razoável que satisfazia as demandas de Vargas, sem trazer incômodos para o jornal.

Porém, em relação à possibilidade de representar este projeto como nacionalista,

surgiram algumas dificuldades. Em um primeiro momento, a UH teve que sustentar

doutrinariamente a fórmula inicial da Petrobras como a melhor alternativa nacionalista

para o problema do petróleo frente à tese do monopólio estatal. Todavia, depois que o

governo inclui o monopólio em seu programa, a UH viu-se na necessidade de apoiar a

nova configuração da empresa, que contradizia a sua campanha anterior. A solução

encontrada foi apoiar a aprovação desse novo formato sem comprometer-se com sua

defesa doutrinária, apontando-o como uma saída política para o impasse gerado em

torno do problema. Em outras palavras, o jornal esforçou-se para atender às

contraditórias demandas políticas de Vargas, sem, entretanto, abandonar os princípios

doutrinários com os quais havia se comprometido anteriormente.

Para compreendermos este processo, devemos considerar que Wainer

pretendia fazer da UH um jornal que não apenas divulgasse as realizações do governo

Vargas, mas também associasse o “getulismo” à defesa do nacionalismo econômico e

dos “interesses populares” (WAINER,op.cit., p.136). Ao agir assim, ele não somente

satisfazia às necessidades do presidente, mas poderia vincular o próprio jornal a

essas bandeiras e, dessa forma, estabelecer uma identidade própria para a UH em um

universo jornalístico maciçamente voltado para a elite e de orientação conservadora.

Buscar uma identidade ideológica própria era importante para a UH, tendo em

vista que a grande imprensa da década de 1950 se orientava por um modelo de

jornalismo definido pela literatura como doutrinário ou de opinião, no qual o

posicionamento explícito em questões políticas era prática normal. Todavia, esta

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Histórica – Revista Eletrônica do Arquivo Público d o Estado de São Paulo, n.31, 2008.

tomada de posição não derivava de um compromisso com partidos – como ocorre

entre os jornais partidários –, mas era a principal maneira com que estes jornais

podiam legitimar sua participação no debate público. Era da coerência e da eloqüência

com que defendiam bandeiras ou linhas doutrinárias específicas que podiam obter a

condição de interlocutores legítimos da arena política.

Logo, o esforço da UH em tentar manter a coerência doutrinária, mesmo diante

dos interesses políticos contraditórios que deveria satisfazer, era a maneira de firmar

sua própria identidade e legitimidade no espaço público que emergia na década de

1950. Assim, podemos concordar com GOLDENSTEIN (1987) quando afirma que o

sucesso da UH e sua possibilidade de sobreviver à própria morte de Getúlio se devem,

em grande parte, à capacidade de Wainer de encontrar fórmulas combinatórias entre

as múltiplas e divergentes necessidades que deveria atender.

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Histórica – Revista Eletrônica do Arquivo Público d o Estado de São Paulo, n.31, 2008.

_____. Clientelismo, corrupção e publicidade: como sobreviviam as empresas

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