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Histórica - A Revista Eletrônica do Arquivo Público do Estado de São Paulo, nº 56, nov. 2012

H A REVISTA ONLINE DO ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

Histórica - A Revista Eletrônica do Arquivo Público do Estado de São Paulo, nº 57, fev. 2013

Editorial

O mais antigo registro humano é constituído por imagens: as elaboradas figuras rupestres encontradas na Caverna Chauvet, no sul da França, têm emocionado o mundo através do do-cumentário de Werner Herzog, “A Caverna dos Sonhos Esquecidos”, que usa a tecnologia 3D para permitir que um público espalhado por todo o mundo tenha acesso a essa imagens de mais de 28 mil anos, que o documentarista descreve como “o primeiro ato humano”. Para Werzog e parte dos pesquisadores que desenvolvem pesquisas nesse sítio arqueológico, o que caracteriza o humano é a necessidade de se singularizar, a partir do registro. Na maior parte da existência humana o registro consciente de sua vida foi realizado por imagens, e ainda o é para grupos humanos não--ocidentais. Sendo assim, os historiadores que atuam no campo das investigações de imagens e cultura não nos trazem um novo campo de estudos, mas resgatam essas importantes fontes his-tóricas da negação a que foram submetidas pela hegemonia da escrita – que, mesmo em tempos atuais, continua sendo um código não dominado por toda a população; segue como um domínio especializado. Já as imagens nos remetem a uma recriação do mundo pela representação feita realizada pelos humanos de maneira mais ampla, sendo fortemente uma experiência sensorial e emotiva.

Nesta edição da revista Histórica trazemos artigos que discutem as relações entre ima-gem e cultura. Iniciamos a edição com o artigo de Ana Luisa de Castro e Lívia Diana Magalhães, que, através do documentarista Alexandre Robatto Filho, fazem uma discussão sobre os primeiros registros da Bahia no cinema, trazendo à tona a importância desse cineasta, que começou sua produção na década de 1930, para a memória imagética daquele estado. Também sobre cinema e os anos 30, Márcia Juliana Santos utiliza curtas-metragens de época para abordar os diferen-tes discursos, produzidos nessa novíssima mídia, por constitucionalistas e federalistas durante os conflitos entre paulistas e o governo federal em 1932.

O artigo de Antônio Cesso e Marcelo Bongagna traz uma abordagem mais teórica sobre as relações entre cultura e imagem, levantando a forma como diversos autores utilizaram elementos

Histórica - A Revista Eletrônica do Arquivo Público do Estado de São Paulo, nº 57, fev. 2013

da semiótica para o estudo do cotidiano. No último artigo desta edição, Jakson Ribeiro apresenta os resultados de sua pesquisa sobre o padrão de masculinidade no imaginário da cidade de Ca-xias, nas décadas de 1940 e 1970. Finalizando a edição, trazemos em “Imagens de uma época” a cobertura do jornal Última Hora sobre uma das mais importantes companhias cinematográficas que o Brasil já teve, a Vera Cruz, dando especial enfoque para as instalações de seu estúdio nos seus anos áureos.

Histórica - A Revista Eletrônica do Arquivo Público do Estado de São Paulo, nº 57, fev. 2013

Sumário

CULTURA E IMAGENS DA BAHIA NO DOCUMENTÁRIO DE ALEXANDRE ROBATTO FILHO............................................................................................................................................................ 5

Referências............................................................................................................................................................... 11

FEDERALISTAS E CONSTITUCIONALISTAS: A PRODUÇÃO DE IMAGENS EMMOVIMENTO NO CALOR DOS CONFLITOS DE 1932.................................................................................... 12

Referências............................................................................................................................................................... 20

O COTIDIANO COMO FORMA DE RELAÇÃO CULTURAL E VISUAL.......................................................... 22Introdução............................................................................................................................................................... 23Relação cultura e imagem................................................................................................................................. 25Referências.............................................................................................................................................................. 28

O JORNAL E O MODELO IDEAL: A REPRESENTAÇÃO DE UM DE PADRÃO DEMASCULINIDADE SOB A ÓTICA DO PERIÓDICO RELIGIOSO CRUZEIRO (1940)............................... 30

Em nome de um ideal: os discursos em prol de um padrão.................................................................. 31Considerações Finais............................................................................................................................................ 36Referências............................................................................................................................................................... 37

5COIMBRA, Ana Luisa de Castro; MAGALHÃES, Lívia Diana Rocha. Cultura e imagens da Bahia no documentário de Alexandre Robatto Filho. Histórica, São Paulo, ano 9, n. 57, p. 05-11, fev. 2013.

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Histórica - A Revista Eletrônica do Arquivo Público do Estado de São Paulo, nº 56, nov. 2012 Histórica - A Revista Eletrônica do Arquivo Público do Estado de São Paulo, nº 56, nov. 2012

H A REVISTA ONLINE DO ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

Histórica - A Revista Eletrônica do Arquivo Público do Estado de São Paulo, nº 57, fev. 2013

CULTURA E IMAGENS DA BAHIA NO DOCUMENTÁRIO DE ALEXANDRE ROBATTO FILHOAna Luisa de Castro Coimbra1

Lívia Diana Rocha Magalhães2

Resumo: A história do cinema na Bahia começa no final do século XIX com a exibição do primeiro filme em uma sala de teatro. Pouco tempo depois, os primeiros registros na capital baiana foram realizados por Diomedes Gramacho e José Dias da Costa. Os filmes rudimentares realizados pelos pioneiros não sobreviveram ao tempo, sendo de Alexandre Robatto Filho as imagens cinema-tográficas mais antigas que se tem do estado. Produzindo por mais de quatro décadas, Robatto Filho dedicou-se a documentar a Bahia em seus diversos aspectos culturais, paisagísticos e sociais. Neste artigo, apresentamos o desenrolar da atividade cinematográfica em solo baiano, culminan-do com a vida e obra de Robatto Filho e sua importância para a cinematografia brasileira.

Palavras-chave: Cinema. Bahia. Imagem.

Abstract: The story of the film begins in Bahia in the late nineteenth century with the screening of the first movie in a theater. Shortly thereafter, the first records in Salvador were performed by Diomedes Gramacho and José Dias da Costa. The films made by pioneering rudimentary did not survive the time being Alexandre Robatto Filho, the oldest cinematic images that have the rule. Producing for over four decades, Robatto Filho dedicated to documenting the Bahia in their va-rious cultural, and social landscape. This article presents the development of the cinematographic activity in soil Bahia, culminating with the life and work of Robatto Filho and its importance for Brazilian cinema

Keywords: Cinema. Bahia. Image.

1 Graduada em Comunicação Social, mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Memória: linguagem e sociedade da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – UESB. Professora da Faculdade de Tecnologia e Ciências, em Vitória da Conquista – BA. Contato: [email protected] Doutora em Educação, docente e vice-coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Memória: Linguagem e Sociedade da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – UESB, coautora. Contato: [email protected].

Histórica - A Revista Eletrônica do Arquivo Público do Estado de São Paulo, nº 57, fev. 2013

6COIMBRA, Ana Luisa de Castro; MAGALHÃES, Lívia Diana Rocha. Cultura e imagens da Bahia no documentário de Alexandre Robatto Filho. Histórica, São Paulo, ano 9, n. 57, p. 05-11, fev. 2013.

Paulo Emilio Sales Gomes, crítico e historiador do cinema brasileiro, escreveu, em 1962, um artigo intitulado “Perfis baianos”, publicado no jornal O Estado de São Paulo. Nas palavras de Gomes (1982):

[...] na conjuntura salvadoriana a expressão “cinema baiano” é ampla e envolve, num só movimento, cultura, crítica e produção cinematográfica. Essa situação dá aos acontecimentos da Bahia uma singularidade que provoca o interesse, conquista a cumplicidade e acaba mergulhando o observador numa tensa esperança. No quadro geral do grande cinema brasileiro que certamente irá eclodir na década que vivemos, a participação baiana será eminente, e os estudiosos irão um dia pesquisar o seu nascimento. (p. 401).

As primeiras projeções de um cinematógrafo tinham acontecido em Salvador ainda no final do século XIX, mas tudo indica que somente uma década depois é que começaram a ser realiza-dos os primeiros filmes na província.

Segundo Setaro (1976), essa informação sobre as primeiras exibições na Bahia estão no li-vro Os cinemas da Bahia: 1897-1918, de Sílio Boccanera Junior, o primeiro escrito no Brasil sobre assunto de cinema, no qual revela que os baianos já tomavam conhecimento das imagens em movimento desde o final do século XIX, logo depois da descoberta do cinematógrafo e de sua exibição pública que aconteceu em Paris.

O pioneirismo baiano sobre os escritos de cinema também envolvia uma revista semanal dedicada a assuntos cinematográficos. Segundo Silveira (2006), os editores Fonseca & Filho lan-çaram, em 12 de outubro de 1920, a Artes e Artistas, persistindo na publicação até abril de 1922, quando foi lançado seu último número. Foram editadas setenta e oito revistas que “refletiam uma encantadora ingenuidade provinciana, mas já é um esboço de avaliação cultural que se anuncia: desde a abertura se fala em educação cinematográfica”. (p. 124).

No entanto, não se tinha registros de produções fílmicas realizadas no estado. As salas con-centravam-se na exibição de filmes estrangeiros que dominavam os circuitos mundiais. Tudo indi-ca que o mérito de serem os primeiros realizadores cinematográficos da província cabe a Diome-des Gramacho e José Dias da Costa. Em 1910, foram exibidos Segunda-feira do Bonfim e Regatas da Bahia, filmes realizados por esses precursores que tinham aprendido a técnica com o alemão Lindemann, dono da Photo Lindemann, ateliê para confeccionar filmes nacionais (SILVEIRA, 2006).

Anos depois, os dois cineastas baianos tornaram-se proprietários da empresa, mas não ti-nham muitos fregueses; o principal era o Teatro São Paulo, cujos frequentadores admiravam os cinejornais produzidos. Outros documentários foram rodados pela Lindemann, sendo eles Explo-ração da borracha na Bahia, Carnaval na Bahia 1911, N. S. dos Navegantes e Festa da bandeira.

Embora, anos mais tarde, surgisse a Nelima Film. como possível concorrência para a Photo Lindemann, as produções mais substanciais ainda caberiam a Gramacho e Da Costa, os primeiros

Histórica - A Revista Eletrônica do Arquivo Público do Estado de São Paulo, nº 57, fev. 2013

7COIMBRA, Ana Luisa de Castro; MAGALHÃES, Lívia Diana Rocha. Cultura e imagens da Bahia no documentário de Alexandre Robatto Filho. Histórica, São Paulo, ano 9, n. 57, p. 05-11, fev. 2013.

no registro de imagens na Bahia. Com algumas tentativas frustradas de filmar um longa-metra-gem de ficção, o maior êxito da Nelima, nota Silveira (2006), foi uma reportagem sobre o time de futebol do América da Bahia.

Os aspectos da fisionomia da cidade e os costumes baianos, a tradição das festas popula-res e a transformação do urbanismo não foram salvaguardados pelo registro da película. Silveira (1978) salienta uma entrevista do próprio Gramacho, em que conta o destino das obras: a Photo Lindemann perdera os arquivos em consequência de uma penhora e os filmes ele jogara ao mar em 1920, desesperado por conta de um incêndio ocorrido no ateliê devido ao celuloide, material inflamável de que eram feitas as películas.

O fato das películas possuírem um caráter de fácil combustão, o que chegou a provocar catástrofes em vários cinemas, causava temor nos produtores dos filmes. Por isso era comum que elas fossem descartadas por ainda não se ter desenvolvida uma técnica adequada de armazena-mento. Os acidentes que vinham ocorrendo em Salvador inspiraram os conselheiros municipais a propor que o Intendente não permitisse o funcionamento de nenhum cinematógrafo na cidade sem que fossem observadas com rigor as condições de garantia para a vida. As portas teriam que ficar abertas durante as sessões, apenas com leves reposteiros, sendo expressamente proibida a entrada de explosivos e inflamáveis, havendo pena de prisão e multa para quem praticasse a infração (SILVEIRA, 1978, p. 15).

Sem a preservação das obras realizadas por Diomedes Gramacho e José Dias da Costa, des-taca-se no cinema baiano, nas primeiras décadas do século XX, o documentarista Alexandre Ro-batto Filho, que produziu por mais de quatro décadas registros videográficos de festejos, eventos políticos e sociais importantes, costumes que deixavam transparecer a Bahia em suas nuances.

A realidade baiana, em consonância com os modos de produção cinematográfica do país, vê nos documentários de Alexandre Robatto Filho os primeiros passos para uma consolidação de ações de cinema no estado. Afirma Setaro e Humberto (1992):

[...] é Alexandre Robatto Filho o primeiro cineasta do cinema baiano, principalmente porque é quem desenvolveu, durante mais de quatro décadas, uma filmografia sistemática, um tipo de cinema centrado no documentário e no registro dos festejos dos eventos, dos acontecimentos que plasmam a baianidade. (p. 33).

Nascido em Salvador, na praia do Cantagalo, em 1908, Alexandre Robatto Filho descendia de imigrantes italianos por parte de seu pai; já o lado materno pertencia a uma família aristocrá-tica de Saubara, no Recôncavo Baiano, sendo filho de Camila Rocha Robatto. Casou-se com Stella Pereira Robatto, tendo como filhos Sílvio Pereira Robatto, Yedda Pereira Robatto e Sônia Robatto. Apesar de ter nascido na capital baiana, passou parte da infância e adolescência no interior do estado, onde, desde cedo, se dedicou às experiências com imagens, visto que seu pai era proprie-tário de um cinema na cidade de Alagoinhas.

Histórica - A Revista Eletrônica do Arquivo Público do Estado de São Paulo, nº 57, fev. 2013

8COIMBRA, Ana Luisa de Castro; MAGALHÃES, Lívia Diana Rocha. Cultura e imagens da Bahia no documentário de Alexandre Robatto Filho. Histórica, São Paulo, ano 9, n. 57, p. 05-11, fev. 2013.

Ficou conhecido como “um homem de mil instrumentos” porque tinha como profissão o ofício de dentista e professor de Odontologia da Universidade Federal da Bahia, mas também era escritor, desenhista, pintor, produtor de discos fonográficos, fazia joias em ouro e prata, foi rádio--amador, fundou o Iatch Clube da Bahia, e como documentarista teve seu nome reconhecido dentro e fora da capital baiana.

Preocupava-se em registrar a cultura baiana não só através dos filmes que fazia. Por isso, junto com o pintor argentino Caybé, lançou uma série de discos intitulados “Documentários da Bahia”, registrando toques de capoeira angola e sambas de roda. Setaro e Humberto (1992) ressal-ta que Vinicius de Moraes teve contato com um dos discos e solicitou a Robatto Filho a liberação do uso da música “Labareda”, como base pra uma canção de sua autoria.

Participou ativamente da vida política e cultural do estado, desempenhando tarefas em par-ceria com o Departamento de Educação Superior da Cultura, no tempo do secretário Navarro de Brito, e também no Instituto da Pecuária da Bahia. Afirma Robatto Filho:

[...] o grosso de meu trabalho, a rigor, foi todo concentrado na bitola de 35mm e muito devo, neste sentido, à Cooperativa de Pecuária da Bahia. O filme técnico sempre me fascinou. Por exemplo: fiz um documentário sobre a plantação de fumo, desde a semente até o charuto, o produto final. Levava, mais ou menos, dois anos até a conclusão do filme. Entre os muitos que fiz, destaco o da eletrificação da Rede Ferroviária da Leste Brasileira. Também aqui há o registro de todo o processo: da primeira estação até o trem inaugural. Lauro de Freitas me acompanhava e me deu muito apoio (ROBATTO FILHO apud SETARO, 1976, p. 9).

Além disso, o cineasta, que mantinha uma sala de projeção permanente montada próxima a sua casa, conviveu de perto com artistas responsáveis pelas agitações modernas em torno das artes na Bahia. O artista plástico Mário Cravo, o pintor Carybé e Jorge Amado, que escreveu um personagem em sua homenagem no romance Dona Flor e seus dois Maridos (SETARO; HUMBERTO, 1992). Consta no prefácio do seu único livro publicado a obra “Raimunda que foi – uma estória da Bahia”, lançada em 1976, o parecer do Conselho Estadual de Cultura, assim escrito:

Alexandre Robatto Filho, personalidade das mais expressivas na vida cultural da Bahia como professor universitário, profissional liberal, cineasta pioneiro que foi do cinema de arte na Bahia, com algumas realizações premiadas e incorporadas à filmografia nacional, não surpreende também como escritor, afirmando o seu talento polimorfo (PARECER..., 1976).

Em 1930, Robatto Filho começou a produzir curta-metragem registrando aspectos da vida cotidiana da capital soteropolitana; continuou filmando até o final da década de 1950. O legado do cineasta baiano contém aproximadamente cinquenta e nove filmes; no entanto, uma parcela significativa dessa obra cinematográfica se perdeu devido à deterioração das películas. Admira-

Histórica - A Revista Eletrônica do Arquivo Público do Estado de São Paulo, nº 57, fev. 2013

9COIMBRA, Ana Luisa de Castro; MAGALHÃES, Lívia Diana Rocha. Cultura e imagens da Bahia no documentário de Alexandre Robatto Filho. Histórica, São Paulo, ano 9, n. 57, p. 05-11, fev. 2013.

dor confesso do cineasta americano Robert Flaherty, Robatto Filho ressaltava o intuito em regis-trar imagens em movimento:

Eu queria que meu trabalho chegasse até os estudiosos e que os filmes não morressem em gavetas. Tive sempre a noção de que meu papel era de um cineasta explorador. A figura de Robert Flaherty que eu procurava seguir: era meu interesse fotografar em movimento, registrar, colher. (ROBATTO FILHO apud SETARO; HUMBERTO, 1992, p.12).

É perceptível em seus filmes a influência do fazer cinematográfico de Flaherty e do movi-mento de documentarismo inglês liderado por John Grierson, que foi produtor de diversos fil-mes e defensor do uso pedagógico do cinema. Como lembra Catelli (2003), Grierson tinha como proposta rever o processo educacional, reformular seus métodos e filosofia, pois acreditava que somente pela educação poderiam se resolver parte dos problemas sociais. Por isso defendia um cinema de intervenção social, reforçando a capacidade do documentário para observar e selecio-nar cenas da própria vida e de interpretar os acontecimentos mais complexos do mundo real. A visão do documentarista precisava ser jornalística, “mas, sobretudo, poética e dramática. Defendia que os filmes documentários poderiam também ser obras de arte e que a escolha do documentá-rio representava a escolha da poesia em lugar da ficção”. (CATELLI, 2003).

Devemos considerar que a partir de 1930 o cinema ganha o acréscimo do som, fato que au-mentou ainda mais as dificuldades do fazer cinematográfico dos pioneiros que, quase sem técni-ca e capital suficiente para realizar seus filmes, buscavam apoios locais e nacionais. Robatto Filho declarava sempre, segundo seu filho Silvio Robatto (1992), que devia a Manoel Ribeiro, chefe do laboratório do INCE, onde processava os seus filmes, o estar fazendo cinema. Com as novas tecno-logias agregadas à produção e finalização dos filmes, Robatto Filho pôde continuar sua trajetória como cineasta graças ao apoio de Humberto Mauro.

Robatto Filho viajou para o Rio de Janeiro, onde conheceu Roquete-Pinto, então diretor do INCE, que segundo Setaro e Humberto (1992), logo o convida para integrar a equipe dos seus colaboradores roteiristas e operadores, incluindo de imediato na galeria do catálogo do Insti-tuto, o que lhe proporciona uma intensificação no seu processo de produção. Robatto Filho de-clarou numa reunião que ocorreu no dia 29 de junho de 1979, no Departamento de Imagem e Som da Bahia:

Mauro, com toda sua grandeza, seu espírito aberto, um homem de uma grandeza enorme, que nunca negou nada a ninguém, chegava ao ponto que, certa feita, quando eu estava no Centro Educativo ele perguntou:– Robatto, você hoje precisa da moviola?– Mas que é isso, Mauro?– Não, ele então respondia, mas você está aqui de passagem, pode estar pagando hotel.

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Depois vim saber que Mauro estava finalizando uma montagem e tinha necessidade da moviola, mas porque um espírito desprendido, fez questão de ceder-me. (ROBATTO FILHO apud SETARO; HUMBERTO, 1992, p. 15).

A posição do INCE, como núcleo principal de difusão e produção do documentário brasilei-ro entre as décadas de 30 e 60, não se restringe à produção de Humberto Mauro, sendo Robatto Filho um dos colaboradores. A parceria entre o cineasta baiano e o INCE está registrada nos catá-logos da Cinemateca Brasileira, órgão federal ligado ao Ministério de Educação e Cultura, onde constam três obras como parte do acervo do Instituto. O levantamento total dos filmes produ-zidos pelo INCE também permearam as pesquisas de Carlos Roberto de Souza (1990), onde é possível localizar o nome de Robatto Filho como um dos diretores que compunham o quadro de cineastas do órgão e como autor do texto da locução de “Cidade de Salvador – Bahia”, filmado em 1949, com direção de Humberto Mauro.

Através dos documentários de Robatto Filho, nos é revelada uma Bahia que, principalmente na segunda metade do século XX, se modernizava sem deixar de lado seu passado marcado por tradições, traços que passam a compor a ideia de uma baianidade, identificada como o modo de viver dos baianos, o que os tornavam distintos do restante do país. Manter essas tradições, como afirmou Albuquerque Júnior (1999), é inventá-la para novos fins, é garantir sua perpetuação.

Um mosaico de imagens de grande relevância para a história da Bahia dá corpo ao legado deixado por Robatto Filho. Por suas lentes não passaram ilesos o regresso de Marta Rocha ao estado, que curiosamente é retratada numa visita às instalações da Fratelli Vita, uma fábrica de refrigerantes e cristais, que também aparece como patrocinadora do filme.

Gravou o enterro do jurista Ruy Barbosa, o desfile em comemoração ao quarto centenário da capital baiana, registrando, também, peculiaridades de cidades do interior, como a feira de Caxixi de Nazaré das Farinhas, a marcha das boiadas em Ruy Barbosa, o cultivo do fumo em Cruz das Almas, Cachoeira e Maragogipe, e do cacau no sul da Bahia, a vida dos vaqueiros no interior da Bahia, as festas em clubes da elite baiana e a criação de gado ressaltando os nomes dos fazen-deiros que patrocinaram alguns dos seus documentários.

A captação de imagens dos festejos populares e religiosos, as comemorações oficiais, os traços peculiares da paisagem e do cotidiano das cidades proporcionou um importante legado documental da Bahia.

Além disso, podemos observar que o velho e o novo coexistem na obra de Robatto Filho, transitando entre uma visão otimista do desenvolvimento, observada na inauguração de uma usina hidrelétrica importante para a geração de energia no Nordeste, a construção de bacias e barragens e de obras de saneamento básico que proporcionaram uma melhor qualidade de vida. Sua obra também abordava a temática sob uma ótica do pesar, como podemos notar em Entre o Mar e o Tendal, em que esse mesmo progresso, com seus modernos métodos e com o ronco dos

10COIMBRA, Ana Luisa de Castro; MAGALHÃES, Lívia Diana Rocha. Cultura e imagens da Bahia no documentário de Alexandre Robatto Filho. Histórica, São Paulo, ano 9, n. 57, p. 05-11, fev. 2013.

Histórica - A Revista Eletrônica do Arquivo Público do Estado de São Paulo, nº 57, fev. 2013

11COIMBRA, Ana Luisa de Castro; MAGALHÃES, Lívia Diana Rocha. Cultura e imagens da Bahia no documentário de Alexandre Robatto Filho. Histórica, São Paulo, ano 9, n. 57, p. 05-11, fev. 2013.

motores, emudeceriam os cânticos poéticos dos descendentes de escravos que ainda realizavam a pesca de xaréu como seus antepassados. Era a Bahia dos cristais Fratelli Vita, de figuras públicas notórias, como Ruy Barbosa e Marta Rocha, mas era também a dos fazendeiros, dos vaqueiros e dos boiadeiros.

As imagens não deixam de revelar as memórias de um indivíduo que, inserido numa coleti-vidade, captura, através de um suporte tangível, evidências de um dado momento histórico, cap-tura o movimento sociocultural passado e/ou presente que foi vivido ou recebido, e os organiza por meio de suas visões e anseios.

Referências

ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. São Paulo: Cortez, 1999.

CATELLI, Rosana E. Cinema e Educação em John Grierson. 2003. Disponível em <http://www.mne-mocine.com.br/aruanda/cineducemgrierson.htm>. Aceso em: jan. 2013.

GOMES, Paulo Emílio Sales. Crítica de Cinema no Suplemento Literário. Rio de Janeiro: Paz e Terra; Embrafilme, 1982.

PARECER DO CONSELHO ESTADUAL DE CULTURA DE SALVADOR. In: ROBATTO FILHO, Alexandre. Raimunda que foi: uma estória da Bahia. Rio de Janeiro: Editora José Olympio, 1976.

ROBATTO, Silvio. Prólogo. In: SETARO, André; HUMBERTO, José. Alexandre Robatto Filho: pioneiro do Cinema Baiano. Salvador: Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1992.

SETARO, André. Panorama do cinema baiano. Salvador: FCEB, 1976.

SETARO, André; HUMBERTO, José. Alexandre Robatto Filho: pioneiro do cinema baiano. Salvador: Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1992.

SILVEIRA, Walter da. A história do cinema vista da província. Salvador: Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1978.

______. O eterno e o efêmero. v. I, II, III, IV. Salvador: Oiti, 2006.

SOUZA, Carlos Roberto de. Catálogo de filmes produzidos pelo INCE. Rio de Janeiro: Fundação do Cinema Brasileiro; MINC, 1990. Série Documentos.

Histórica - A Revista Eletrônica do Arquivo Público do Estado de São Paulo, nº 56, nov. 2012

12SANTOS, Márcia Juliana. Federalistas e Constitucionalistas: a produção de imagens em movimento no calor dos conflitos de 1932. Histórica, São Paulo, ano 9, n. 57, p. 12-21, fev. 2013.

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FEDERALISTAS E CONSTITUCIONALISTAS: A PRODUÇÃO DE IMAGENS EM MOVIMENTO NO CALOR DOS CONFLITOS DE 1932

Márcia Juliana Santos1

Resumo: Este artigo tem por objetivo analisar de que maneira alguns filmes construíram diferen-tes representações sobre os fatos que marcaram a revolta paulista de 1932. Para tal intento, será feita a descrição e comparação dos curtas-metragens Revolução de 1932, de João Baptista Groff (1932), e São Paulo de 32: glorificai-o (sem autoria atribuída, 1934). Essa abordagem possibilitará observar como as memórias da guerra foram elaboradas segundo o discurso de federalistas e constitucionalistas. O estudo desses dois filmes sugere a problematização de símbolos constru-ídos imediatamente após os conflitos. Naquele contexto, a narrativa e as imagens produzidas se dispuseram a atender aos interesses de grupos sociais envolvidos na elaboração de diferentes memórias de 1932.

Palavras-chave: Curta-metragem. São Paulo. 1932.

Abstract: This article intends to analyze how some films have constructed different representa-tions of events that marked the São Paulo’s revolt of 1932. For this purpose, the description and comparison of the short films Revolução de 1932, by João Baptista Groff (1932), and São Paulo de 32: glorificai-o (no author attributed, 1934) will be done. This approach will enable to observe how the memories of the war were prepared according to the speech of federalists and constitutional-ists. The study of these two films suggests the questioning of symbols built immediately after the conflict. In that context, the narrative and the images produced were willing to serve the interests of social groups involved in the preparation of different memories of 1932.

Keywords: Short film. São Paulo. 1932.

1 Doutora em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Este artigo é parte das reflexões apontadas na tese de doutorado Da capital bandeirante às imagens do cinema institucional de São Paulo (1930-1940). (História Social – Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 2004). Contato: [email protected].

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São poucos os registros de imagens em movimento que mostram a mobilização popular em São Paulo, a arregimentação e o alistamento militar ou mesmo as imagens de soldados en-trincheirados ou em campo de batalha durante a revolta paulista de 1932, chamada, ainda, de revolução constitucionalista.

Com base em pesquisa prévia realizada no acervo da Cinemateca Brasileira e no Dicionário de filmes brasileiros: curta e média metragem, de Antônio Leão de Silva Neto (2006), foi possível identificar alguns filmes produzidos na década de 1930 e que ajudaram a visualizar algumas das imagens da revolta, como M. M. D. C (1932), Revolução de 1932 em São Paulo (Armando Leal Pam-plona, 1932), Revolução de 1932 (João Baptista Groff, 1932), Operações Militares em Minas Gerais (1933), Julho de 32 (1934) e São Paulo de 32: glorificai-o (1934).

Esses são exemplos de curtas-metragens que retrataram a mobilização popular em São Paulo pela constitucionalização, a partida de tropas para o front, as cidades destruídas ou o pon-to de vista do governo sobre a guerra. A partir dos títulos é possível perceber a presença do elemento da memória, seja constitucionalista ou federalista. No entanto, são poucos os filmes disponíveis para exibição na Cinemateca Brasileira. Como parte considerável das produções do período silencioso brasileiro, é possível prever que esses filmes listados acima estejam na lista de desaparecidos.

Alguns aspectos dificultam as pesquisas sobre essas e outras possíveis produções que abor-daram a temática à época, em parte por se tratar de filmes de curta-metragem e “atualidades” (no-ticiários) a que, naquele período, não se atribuía a autoria. Para dificultar o trabalho, o pesquisador ainda se depara com a inexistência de documentação correlata sobre a produção do período, que vai do final do século XIX até meados da década de 1940.

A partir da análise do material disponível, outro elemento vem à tona. São poucas as sequ-ências de combates registradas in loco. Assim, resta-nos a descrição, comparação e análise dos filmes que foram possíveis visualizar. Revolução de 1932, de João Baptista Groff (1932), e São Paulo de 32: glorificai-o (sem autoria atribuída, 1934), lançados ao público imediatamente após o fim dos conflitos de 1932, são representativos para entender as memórias federalista e constitucionalista.

Esses dois filmes estão inseridos em um contexto do cinema brasileiro, durante a década de 1930, em que havia a predominância da produção de curtas-metragens com objetivos documen-tais. Durante as primeiras décadas do século XX, esses curtas foram chamados de naturais, atua-lidades e posados de propaganda. A lei de 1932, que obrigava a exibição de um curta-metragem nacional acompanhado por um filme estrangeiro nas salas de todo o país, acabou por intensificar esses “gêneros”.

Logo, os curtas passaram a ser identificados às campanhas de propaganda oficial e às efe-mérides em torno de políticos, artistas, religiosos e das elites locais. A intensificação dessa prática

13SANTOS, Márcia Juliana. Federalistas e Constitucionalistas: a produção de imagens em movimento no calor dos conflitos de 1932. Histórica, São Paulo, ano 9, n. 57, p. 12-21, fev. 2013.

Histórica - A Revista Eletrônica do Arquivo Público do Estado de São Paulo, nº 57, fev. 2013

14SANTOS, Márcia Juliana. Federalistas e Constitucionalistas: a produção de imagens em movimento no calor dos conflitos de 1932. Histórica, São Paulo, ano 9, n. 57, p. 12-21, fev. 2013.

foi pejorativamente nomeada de cavação2. Mas essa denominação logo seria também incorpo-rada pelos cinegrafistas. Depreciados pelos críticos, os filmes de cavação, em geral, eram consi-derados inferiores por serem encomendados e patrocinados por aqueles que detinham o poder político-econômico3.

O filme silencioso Revolução de 1932 (1932) foi produzido pelo cinegrafista paranaense João Baptista Groff, um dos pioneiros do cinema do Paraná. Para realizar o filme, Groff acompanhou as tropas federais nas cidades da fronteira entre os estados do Paraná e São Paulo para capturar imagens das tropas federalistas em ação. O filme foi classificado como “atualidades” e, no início de setembro de 1932, ainda durante os conflitos, teve alguns trechos exibidos em salas de cinema do Paraná.

Revolução de 1932 começa com a seguinte legenda de apresentação: “os combatentes to-mam posições nas proximidades do Rio das Almas”. A câmera segue um grupo de soldados a cavalo, atravessando um rio. A narrativa apresenta basicamente as incursões da campanha militar federalista na fronteira entre os dois estados.

“Em 10 de setembro dão início ao combate” – anuncia a legenda que antecipa as imagens em primeiro plano do 9.º Batalhão, manejando canhões e preparando a munição. O novo letreiro comunica: “dezenas de quilômetros de trincheiras foram construídas com arte militar”, e o foco da câmera está nas trincheiras cavadas – segundo o filme, pelos federalistas – nos barrancos e cobertas por árvores.

Os soldados são seguidos por uma câmera inquieta. “Com um magnífico plano de envolvi-mento, os federais desbordam pela estrema direita pelo Pontal do Paranapanema. Em seguida conquistam a primeira ponte, que é imediatamente reconstruída”. As imagens e o letreiro deixam subentendidos que os rebeldes (os constitucionalistas) haviam destruído as pontes das cidades por onde passavam para evitar o avanço e a vitória das tropas do governo.

Uma sequência de bombardeios é anunciada pelo letreiro seguinte: “o 5.º Grupo de Artilha-ria de Montanha em Ação”. “Novos bombardeios de canhões”. Eis que aparece uma sequência de fumaça, simulando bombardeios, sob o comando do Capitão Dimas Menezes, responsável pela campanha federalista no front sul. Os generais são focalizados pela câmera. Os mapas do Paraná e de São Paulo são sobrepostos às imagens em movimento de canhões. Em seguida, surge um fotograma com o traçado das fronteiras entre os dois estados para identificar as cidades onde ocorreram as batalhas.

2 Para conseguir dinheiro, os operadores filmavam ou “tiravam do natural” e ofereciam o produto a quem pudesse interessar. Cf. ROCHA, Luís Alberto. V Jornada Brasileira de Cinema Silencioso. São Paulo: Cinemateca Brasileira, 2011. p. 224.3 Os cavadores eram acusados de filmar ao acaso e, portanto, sem nenhum interesse com o aprimoramento de roteiros, estilo ou estética. A Enciclopédia do cinema brasileiro apresenta, em vários verbetes, esses conceitos diluídos nas explicações de alguns filmes ou cinegrafistas do período silencioso. Cf. RAMOS, Fernão; MIRANDA, Luiz Felipe (Org.). Enciclopédia do cinema brasileiro. São Paulo: SENAC, 2000.

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15SANTOS, Márcia Juliana. Federalistas e Constitucionalistas: a produção de imagens em movimento no calor dos conflitos de 1932. Histórica, São Paulo, ano 9, n. 57, p. 12-21, fev. 2013.

“Itararé – considerada inexpugnável – foi a primeira cidade paulista que caiu no poder dos federais”, anunciava um novo letreiro, destacando o poder bélico das tropas federais. Seguem-se imagens do acampamento e das trincheiras federais instaladas na cidade de Itararé, a principal cidade da frente-sul. A narrativa prossegue, apresentando sequências de destruição em outras cidades. Nova legenda: “os federais continuam avançando, passam Faxina [cidade] e localizam--se em Buri” que era “diariamente bombardeada pela aviação paulista, que faz enormes estra-gos”. A câmera focaliza as casas e os prédios destruídos com marcas de bala, fumaça e vestígios de bombardeios.

Nova legenda do filme insiste na extensão dos combates, sugerindo a derrota paulista: “Em Apiaí os constitucionais deixam grande cópia de material bélico e de transporte”. Os federais exi-bem o material encontrado. Segundo o discurso oficial, retomado no filme, os constitucionalistas não tiveram tempo de carregar consigo o material de guerra. No entanto, é claro que, para o dis-curso fílmico, toda aquela munição e morteiros abandonados nas cidades destruídas pertenciam aos revoltosos; o enredo não abre possibilidades para questionamentos.

Na sequência seguinte, fica evidente a simulação de um ataque dos federalistas contra o ini-migo. Os soldados manejam as armas de modo displicente, os sorrisos e a timidez estão estampa-dos nos rostos. Ao final da “batalha”, a câmera fecha em primeiro plano o batalhão em descanso.

O historiador Jeziel de Paula, após analisar os artefatos produzidos pelos constitucionalistas durante a guerra, destaca que muitas armas e carros de combate foram projetados na Escola de Engenharia Politécnica. Aliados à engenharia de guerra, nas fábricas e nos quartéis, os operários, militares e voluntários firmaram uma enorme campanha para equipar as tropas constituciona-listas. Jeziel sintetiza essa mobilização, destacando que nunca se havia produzido tanto em tão pouco tempo em São Paulo4.

No entanto, logo após os combates, tornou-se de conhecimento público que, em função da inferioridade de poderio bélico, os constitucionalistas elaboraram algumas estratégias para si-mular armamentos de guerra. Matracas e carros lança-chamas, artifícios utilizados nas trincheiras paulistas, não foram suficientes para amedrontar os federalistas.

No filme, a reconstituição de batalhas e o foco dos efeitos da guerra nessas cidades estão relacionados à campanha vitoriosa dos federalistas que, em fins de agosto, praticamente impuse-ram a derrota aos constitucionalistas. Ao mostrar a reocupação das cidades paulistas pelas tropas leais ao governo, o filme de Groff quis evidenciar o tormento da população civil, vitimizada pelos conflitos realizados em várias cidades no interior de São Paulo.

Na segunda parte, o narrador destaca “a mulher paranaense [que] também toma parte des-tacada no movimento cívico”. Mulheres servem os soldados com “o café ‘João Pessoa’ e o chimar-

4 DE PAULA, Jeziel. 1932: imagens construindo a história. Campinas; Piracicaba: Editora da UNICAMP; Editora UNIMEP, 1998. (Coleção Tempo & História; v. 7). p.126.

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16SANTOS, Márcia Juliana. Federalistas e Constitucionalistas: a produção de imagens em movimento no calor dos conflitos de 1932. Histórica, São Paulo, ano 9, n. 57, p. 12-21, fev. 2013.

rão ‘Getúlio Vargas’”. Aqui, o filme traz várias simbologias: o café, como um elemento nacional (João Pessoa é relembrado para fazer referência a revolução de 1930), e o chimarrão, intitulado Getúlio Vargas, retoma a liderança do estadista vitorioso que evitou o separatismo e garantiu a unidade nacional. Mas, apesar de o café ter sido apropriado como produto de exportação brasilei-ro, era São Paulo o maior produtor da matéria-prima. O discurso nacionalista do filme fora diluído paradoxalmente na narrativa regionalista em torno da supremacia da frente-sul de combate.

O filme, ao destacar a participação “também” da mulher paranaense, remete indiretamente à participação feminina do lado inimigo. Os jornais paulistas, assim como as fotos amplamente divulgadas na imprensa, mostravam a efetiva mobilização das mulheres na causa constituciona-lista. Centenas delas mobilizaram-se na campanha, fosse por meio de orações, ou na produção de uniformes, na alimentação, na doação de dinheiro ou como enfermeiras no campo de batalha.

Revolução de 1932 termina com imagens do General Góes Monteiro, chefe do Estado da Força Maior, sorrindo para as câmeras cinematográficas. A encenação produziu imagens dos ofi-ciais desprovidas de qualquer realismo. Não havia preocupação nem em reproduzir seriedade nos semblantes dos soldados ou no manejo das armas.

A companhia paranaense Groff Filme produziu também um cinejornal que exibiu em Curiti-ba, na edição de n. 90, em 1932, novas imagens do combate. O cinejornal finalizava as sequências com a bandeira do Brasil, indicando a vitória das tropas federais. Os letreiros informavam:

Esta é a única película executada durante a ação do Exército Sul que operou contra os constitucionalistas de S. Paulo e Mato Grosso. A filmagem foi autorizada pelo Estado Maior e pelo Comando Supremo das Tropas - General Waldomiro Lima (grifo nosso).5

O filme claramente atribui à campanha federalista da frente-sul a derrota dos constitucio-nalistas. Não se sabe se o governo federal encomendou o filme ao cinegrafista, mas é importante destacar que não há na película nenhum contraponto ao discurso de vitória das tropas federais.

A revista Cinearte, em edição do dia 7 de setembro de 1932, publicou um artigo criticando a produção de Groff. Para exemplificar, o artigo menciona que o curta-metragem “revela uma in-consciência de espírito, tão grande, por parte dos que o realizam, como dos que autorizam”.

Segundo a revista, o artigo foi escrito com base em telegramas de Curitiba que anuncia-vam a exibição de um filme que tratava de “combates mortíferos entre brasileiros”. O artigo critica ainda os “riscos por que passou o operador, atravessando a linha de fogo por entre o assobio das balas, o matraquear das metralhadoras, o estouro das granadas...” Ora, esse sem dúvida não era o 5 Com o fim do movimento no início de outubro de 1932, o governo provisório nomeou Waldomiro Lima “governador militar” de São Paulo em caráter interino. Próximo a Vargas, ele tinha o objetivo de pacificar os líderes do movimento e tentar uma reaproximação com diversos setores da sociedade paulista. Sobre os desdobramentos políticos de 1932, cf. GOMES, Ângela Maria de Castro. Regionalismo e centralização política. Partidos e constituinte nos anos 30. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980. p. 243-277.

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17SANTOS, Márcia Juliana. Federalistas e Constitucionalistas: a produção de imagens em movimento no calor dos conflitos de 1932. Histórica, São Paulo, ano 9, n. 57, p. 12-21, fev. 2013.

alvo da crítica, afinal percebe-se que “os riscos” mencionados pela revista não passavam de ence-nação dos militares filmados por Groff.

Por fim, fica evidente outro aspecto da crítica no artigo da Cinearte: a preocupação da ima-gem que aquele “tipo de filme” poderia produzir sobre o país no exterior:

Se a concessão foi feita, não deve ter havido uma rigorosíssima censura para as cenas apanhadas, que a estas horas, naturalmente, já estarão, em cópia, sendo remetidas para o estrangeiro para o fim de mostrar lá fora como é que os brasileiros se matam uns aos outros.6

O artigo termina conclamando o Exército para produzir as imagens dos combates. Todavia, a revista esqueceu-se de mencionar que o filme já havia passado pelo crivo da censura e que, antes disso, as filmagens tinham sido autorizadas pelo alto comando militar, focalizado diversas vezes no curta.

O texto não foi assinado, mas pode-se suspeitar de algum crítico simpatizante da causa constitucionalista, quem sabe Otávio Gabus Mendes, que escrevia para a coluna “De São Paulo” na revista carioca Cinearte naquele período. Indiretamente, o colunista estaria munido de certo des-peito e ressentimento pelo fato de o cinegrafista paranaense ter filmado os campos de batalha e lançado um filme praticamente em pleno conflito.

Os cinegrafistas paulistas não foram tão imediatos no lançamento de um filme em meio aos combates de 1932. Não quer dizer que imagens não tenham sido capturadas no período; não à toa foram montadas, posteriormente, em filmes que ovacionaram a causa constitucionalista. Não se pode deixar de mencionar também o indiscutível papel exercido pelas fotografias do ponto de vista iconográfico. Durante e após os combates, dezenas de fotos circulavam pelos jornais e car-tazes, constitucionalistas e federalistas, contribuindo para a construção de uma memória heroica da guerra.

Houve uma preocupação em produzir imagens em movimento, mas é importante destacar as dificuldades técnicas em deslocar cinegrafistas para os campos de batalha ou mesmo custear uma produção que pudesse representar a campanha constitucionalista em pleno front. Diferente-mente do filme de Groff, que foi produzido em meio à guerra, com o apoio do governo, os primei-ros filmes paulistas vieram apenas no final de 1932, quando a paz já havia sido assinada.

Sem dúvida, este foi mais um espaço em que as lideranças de São Paulo puderam ver seus discursos divulgados, alargando o espaço transmissor de símbolos e memórias recém-construídas.

É o caso do curta São Paulo de 32: glorificai-o (sem autoria atribuída, 1934). O desenho de um soldado com uma corneta inicia o curta de 10 minutos. O primeiro letreiro faz referência às datas 6 REVISTA CINEARTE. Rio de Janeiro, v. 07, n. 341, 7 set. 1932, p. 3.

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18SANTOS, Márcia Juliana. Federalistas e Constitucionalistas: a produção de imagens em movimento no calor dos conflitos de 1932. Histórica, São Paulo, ano 9, n. 57, p. 12-21, fev. 2013.

magnas do Estado e a mobilização popular: “23 de maio e 9 de julho. As famílias dividiram-se: os moços para o ‘front’, os velhos para as oficinas e as mulheres para os hospitais. E São Paulo, ajuda-do por todos os seus filhos de nascimento ou de doação, partiu para a luta grandiosa”.

Lançado em 1934, retoma datas que posteriormente serão imprescindíveis para a formação da memória política de São Paulo. Foi em 23 de maio de 1932 que centenas de pessoas saíram às ruas para protestar contra o governo provisório de Getúlio Vargas. Na mesma noite, os protestos se intensificaram e a morte de quatro estudantes, Martins, Miragaia, Dráuzio e Camargo, simboli-zou um marco para a mobilização estudantil em São Paulo naquele ano. A eclosão do movimento ocorreu em 9 de julho, quando se deu a ocupação dos quartéis militares espalhados por lugares estratégicos da capital paulista.

Após mencionar as datas, o filme apresenta rápidas sequências da corrida dos jovens para o alistamento militar, das tropas em marcha pelas ruas e de mulheres servindo café para os solda-dos. Há uma sequência que recorda a participação de centenas de mulheres que, rapidamente, mobilizaram-se por todo o estado, produzindo uniformes e bandeiras, cuidando de soldados feri-dos e, especialmente, arrecadando dinheiro e ouro para a causa constitucionalista.

A cidade é mostrada em polvorosa por causa da guerra. Um destaque para as crianças jor-naleiras que percorriam as ruas das cidades, divulgando notícias dos conflitos. Segue-se a isso um plano curto que mostra o movimento de trens que partiam da Estação da Luz em direção aos campos de batalha no interior do estado.

“Relembremos com satisfação a epopeia daqueles dias. Visualizemos, num instante rápido, o que foi a luta”. “Paz e Glória aos que tombaram”. O filme se encerra com essa frase e com a ima-gem de uma bandeira do estado tremulando no ar. Com essas últimas palavras, apresentam-se raras imagens em movimento do campo de batalha, homens entrincheirados e explosões. São imagens capturadas em meio ao cotidiano da cidade de São Paulo, nos meses que sucederam a revolta. O filme não traz informações sobre a origem dessas imagens: quem fez? Como filmou? Onde editou as imagens? Falta documentação auxiliar para responder a essas perguntas.

O fato é que se trata de uma narrativa com texto e imagens editados no filme para atender aos objetivos de uma memória em construção, imediata após o fim das batalhas. Nota-se que, por trás do significado dos fatos que ocorreram nas duas datas, 23 de maio e 9 de julho, havia uma es-tratégia do filme de combinar essas datas para avigorar a empreitada dos paulistas. Para retomar o historiador Pierre Nora, hoje essas datas passam por uma “rápida dessacralização” e, às vezes, dependendo do contexto, por uma “sacralização conduzida”7.

Ao estudar sobre a relação entre memória, mito e identidade construída após os eventos de 32, os historiadores Marco Cabral dos Santos e André Mota destacam que foi na intensa produção 7 NORA, Pierre. Entre Memória e História – a problemática dos lugares. Traduzido por Yara Aun Khoury. Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História da PUC-SP, Projeto História, São Paulo, v. 10, dez. 1981, p.13.

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19SANTOS, Márcia Juliana. Federalistas e Constitucionalistas: a produção de imagens em movimento no calor dos conflitos de 1932. Histórica, São Paulo, ano 9, n. 57, p. 12-21, fev. 2013.

memorialística que se estruturaram as principais imagens responsáveis por estabelecer as verda-des sobre os fatos8.

Esses dois curtas exemplificaram de que maneira, em âmbito paulista e federal, o constitu-cionalismo e o federalismo foram traduzidos em imagens em movimento. Os embates políticos se manifestaram por meio da reconstituição de batalhas e exaltação de generais vitoriosos. Os dois filmes abordaram o uso da memória. Contudo, ainda que sejam produções do mesmo período histórico, elas expõem particularidades, seja em relação aos objetivos políticos, seja ao tipo de memória que pretendiam construir, vencedora ou heroica.

No primeiro filme, a retomada dos fatos tem por objetivo distinguir os vitoriosos dos derro-tados, segundo o discurso federalista. Além de apresentar uma memória traumática que remetia ao separatismo e que precisaria ser evitada, superada e esquecida. Já no segundo filme, a finali-dade era construir uma memória sobre fatos recentes que deviam ser rememorados para serem aclamados e jamais esquecidos.

O historiador Elias Thomé Saliba, ao discutir os sentidos e as representações de alguns textos paulistas que ovacionavam 32, destaca a construção da “imagem da trincheira” presente nas narrativas:

Herdada da primeira guerra mundial e, de certa forma, imposta por ela, a imagem da trincheira esteve sempre ligada às vicissitudes particulares de um certo tipo de combate, como linha de obstáculo, de resistência, de demarcação.9

A “imagem da trincheira” está também presente nos dois filmes. A diferença está no sentido. Para os constitucionalistas, a trincheira torna-se um espaço de monumentalização para cultuar os mortos. Já para os federalistas, o filme aponta para o espaço de vitória e supremacia militar.

Não há derrota no filme paulista. A diferença está na forma em que a vitória foi abordada. Na produção paranaense, nota-se a preponderância militar, a exaltação do General Waldomiro Lima, além de mostrar para o espectador os efeitos da guerra nas cidades paulistas, enquanto no filme paulista retoma-se a memória dos eventos para relembrar a mobilização de vários grupos em busca do ideal constitucional.

Essas memórias retrataram eventos coletivos vivenciados na mesma temporalidade, mas em espaços diferentes. O filme federalista fala em nome das tropas; a retomada e reconquista do espaço pelos federalistas e o foco nas ações militares da frente-sul. O filme constitucionalista trata da coletividade paulista, sobretudo da capital, mobilizada de diversas formas para a guerra. Am-

8 SANTOS, Marco Cabral dos; MOTA, André. São Paulo 1932: Memória, Mito e Identidade. São Paulo: Alameda, 2010. p.19.9 SALIBA, Elias Thomé. As palavras e os homens: oratória, crônica e novela na São Paulo de 32. Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História da PUC-SP, Projeto História, São Paulo, v. 10, dez. 1981, p. 106.

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20SANTOS, Márcia Juliana. Federalistas e Constitucionalistas: a produção de imagens em movimento no calor dos conflitos de 1932. Histórica, São Paulo, ano 9, n. 57, p. 12-21, fev. 2013.

bos têm objetivos de documentar o passado recente, chamar o público para um apelo emocional, de um “tempo visual”10, vivenciado por aqueles espectadores.

Em pouco tempo, as memórias de 32 foram construídas, retomadas e reelaboradas em São Paulo para reafirmar o compromisso das lideranças locais com a democracia e a legalidade. E quando as elites políticas paulistas projetaram novas expectativas de poder, o golpe de 1937 mu-dou os rumos da história. Muitos destes que combateram o governo Vargas nas trincheiras de 32 irão assumir, logo depois, cargos políticos no mesmo governo ditatorial questionado anos antes.

Passados 80 anos dos conflitos, em meio aos debates das comemorações ou dos sentidos dessas comemorações, a imprensa, os intelectuais, os acadêmicos, os arquivos públicos e priva-dos e os mais variados lugares de memória retomam o imenso acervo documental do período para discutir os aspectos que culminaram e surgiram com e após a revolta de 1932. Já este artigo procurou nos ínfimos registros de imagens em movimento e nos poucos filmes que ainda restam do período, problematizar e entender os elementos da construção da memória federalista e cons-titucionalista.

Hoje, infelizmente, a precariedade e a escassez dessas imagens em movimento têm servido apenas para ilustrar o período ao invés de percebê-lo nos seus meandros, como uma produção cultural relacionada ao contexto político que expressava. No entanto, se olharmos para as ima-gens isoladas, sobretudo do filme paulista, produzido nesse contexto, é possível antever que não houve discurso dissonante. Pelo contrário, tratava-se de vozes e imagens confirmadoras da me-mória heroica paulista daquele ano.

Referências

Filmografia analisada

Revolução de 1932 (1932), João Baptista Groff

São Paulo de 32: glorificai-o (1934), sem autoria.

Bibliografia

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10 ROSENSTONE, Robert. A história nos filmes, os filmes na história. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2010. p. 36

Histórica - A Revista Eletrônica do Arquivo Público do Estado de São Paulo, nº 57, fev. 2013

21SANTOS, Márcia Juliana. Federalistas e Constitucionalistas: a produção de imagens em movimento no calor dos conflitos de 1932. Histórica, São Paulo, ano 9, n. 57, p. 12-21, fev. 2013.

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CESSO, Antonio Ivan; BONGAGNA, Marcelo. O cotidiano como forma de relação cultural e visual. Histórica, São Paulo, ano 9, n. 57, p. 22-29, fev. 2013.

Histórica - A Revista Eletrônica do Arquivo Público do Estado de São Paulo, nº 56, nov. 2012

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H A REVISTA ONLINE DO ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

Histórica - A Revista Eletrônica do Arquivo Público do Estado de São Paulo, nº 57, fev. 2013

O COTIDIANO COMO FORMA DE RELAÇÃO CULTURAL E VISUALAntonio Ivan Cesso1

Marcelo Bongagna2

Resumo: O presente artigo pretende abordar a relação cultural entre as práticas do cotidiano e a confirmação da imagem como processo de comunicação e educação, presentes nas diversas situações sociológicas que envolvem o aprendizado, e também as evidências das riquezas dessa vivência cotidiana em sua forma excruciante ou gratificante de se apresentar, na busca de sentido para essas práticas.

Palavras-chave: Cotidiano. Cultura. Imagem. Semiótica.

Abstract: This article aims to address the relationship between the daily live cultural practices and the image confirmation as the communication and education process, that are present in several sociological situations which involve learning, and the richness evidence of that daily experience in its excruciating or rewarding way to present itself, in the search of a meaning for these practices.

Keywords: Daily live. Culture. Image. Semiotics.

1 Professor efetivo da Rede Pública do Governo do Estado de São Paulo e professor Universitário. Doutorando em Educação pela Universidade Metodista de Piracicaba (bolsa pelo Governo do Estado de São Paulo), na linha de pesquisa em História e Filosofia da Educação, com orientação do Sr. Dr. José Maria de Paiva.2 Bacharel em Comunicação com habilitação em Jornalismo, com MBA em Marketing. Mestre em Administração pela Universidade Metodista de Piracicaba. Professor Universitário na área de Comunicação, Administração e Marketing.

Histórica - A Revista Eletrônica do Arquivo Público do Estado de São Paulo, nº 56, out. 2012

23CESSO, Antonio Ivan; BONGAGNA, Marcelo. O cotidiano como forma de relação cultural e visual. Histórica, São Paulo, ano 9, n. 57, p. 22-29, fev. 2013.

Cultura é tudo aquilo que não é natureza, ou seja, tudo o que é produzido pelo ser humano. Por exemplo: a terra é natureza e o plantio é cultura. É o desenvolvimento intelectual do ser humano, são os costumes e valores de uma sociedade. (VANNUCCHI, Aldo, 2002).

Introdução

Desde os primórdios da humanidade o homem procura explicações para as mais diversas formas de se viver, de se compreender a si próprio e aos outros. Essas necessidades, independen-temente de seus propósitos, foram sendo estudadas e pesquisadas, tanto de forma mais abran-gente como no seu cotidiano, conferindo relações de cultura3, tecnologia e imagens educativas.

Segundo Paiva (2008),

Interpretar uma cultura é de antemão, como a própria etimologia sugere, correr preço (pretium), correr valor, entre (inter) (em relação a) os diversos aspectos. Os aspectos se derivam do discurso. Este fragmenta a vida, una e indizível, o que pressupõe a validação de qualquer ponto de partida. (p. 4).[...] Uma hipótese de leitura da cultura – esta, entendida como a forma de ser das pessoas em sociedade – nada mais é do que o desejo de compreender com profundidade os atos postos por essas pessoas. (p. 152).

Existe uma inteira relação entre o cotidiano e a cultura, seus percalços e sua vivência, como aponta Alves (2003); ao se fazer o uso de imagens, não somente no contexto das escolas e de ou-tros cotidianos, se desenvolvem as questões relacionadas entre cultura e educação cotidiana.

O cotidiano, portanto, é formado pela cultura social, pela memória das pessoas, por sua inteligência, por fatos que surgem e são representativos naquele instante e depois passam a ser irrelevantes. No entendimento de Bosi (2004), “as coisas do passado podem reviver numa rua, numa sala, em certas pessoas, como ilhas efêmeras de um estilo, de uma maneira de pensar, sen-tir, falar, que são resquícios de outras épocas.” (p. 75).

Para Alves e Oliveira (2004), ao se tentar entender as realidades que possam ser quanti-ficadas em relação à mentalidade do pensamento moderno, existe a possibilidade da imagem aparecer, mesmo não inscrita em materiais diversos.

Somos surpreendidos pelos acontecimentos, que se revelam através das tramas culturais, diante das perspectivas do “paradigma indiciário” de Carlos Ginzburg4, das “maneiras de se fazer o cotidiano” em Michael de Certeau5, da “estrutura da vida cotidiana” em Agnes Heller6, construindo

3 Cf. LARAIA, Roque de Barros. Cultura: Um conceito antropológico. 14. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.4 Cf. GINZBURG, Carlo. Mitos, Emblemas, Sinais. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.5 Cf. CERTEAU, Michael de. A Invenção do Cotidiano I: as artes do fazer. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994.6 Cf. HELLER, Agnes. O Cotidiano e a História. 6. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2000.

Histórica - A Revista Eletrônica do Arquivo Público do Estado de São Paulo, nº 56, out. 2012

24CESSO, Antonio Ivan; BONGAGNA, Marcelo. O cotidiano como forma de relação cultural e visual. Histórica, São Paulo, ano 9, n. 57, p. 22-29, fev. 2013.

uma teoria sobre as práticas cotidianas: processos contínuos que vão ocorrendo todos os dias. Revel (1998) refere-se também à micro-história como tema de debate entre um restrito grupo que faz uma análise entre historiadores e antropólogos a respeito do método de trabalho em que se privilegiam a microanálise no campo histórico.

O verdadeiro desafio que se coloca à sociedade do quotidiano é o de revelar a vida social na textura ou na espuma da “aparente” rotina de todos os dias, como a imagem latente de uma película fotográfica.Definimos o quotidiano como uma rota de conhecimento. Quer isto dizer que o quotidiano não é uma parcela isolável do social. Com efeito, o quotidiano não pode ser caçado a laço quando cavalga diante de nós na exacta medida em que o cotidiano é o laço que nos permite “levantar a caça” no real social, dando nós de inteligibilidade ao social. (PAIS, 2003, p. 32).

O autor reitera que não se pode constituir a vida cotidiana num simples objeto único, qualquer, dentro de um sistema conceitual e teórico que lhe seja peculiar, coerente, onde exista, porém, uma imposição de “reivindicações, atitudes, discursos” (PAIS, 2003, p. 72). Pode-se dizer que o cotidiano seja um lugar privilegiado para se fazer uma análise social, sendo ele revelador, determinando a sociedade e toda espécie de conflitos que por ele passam:

Não custa conceber o interaccionismo como expressão de uma nova cultura feita de vibrações, contactos face to face, uma nova cultura reivindicando que tudo se passa agora, tudo se passa aqui, tudo se passa em ti: just feel it. A que responde esta produção de cultura subjetiva? Para os mais críticos, trata-se, antes do mais, de um ensaio de decomposição e recomposição das estruturas de dominação. Numa época de mudança substancial dos métodos de exercício de poder, este já não se exerce apenas reprimindo ou ameaçando, mas também gerindo a auto-realização dos sujeitos, ajudando-os a estar de acordo consigo mesmos, oferecendo-lhes uma linguagem com a qual eles mesmos falarão uma voz de autoridade. O fenômeno publicitário talvez seja elucidativo quando deixa de oferecer produtos para passar a oferecer sensações: “sinta-se jovem com...”; “a vida tem um conteúdo...” “você já pode se dar ao luxo de...”Trata-se se delimitar em repertório fixo e simples de aspirações últimas em cuja realização se estimula o conformismo (PAIS, 2003, p. 94).

Pais (2007) continua advertindo sobre as condutas cotidianas, nas quais existem regras intrínsecas, referências morais e éticas que tendem a se esvair dentro da legitimidade dos fatos, contextual ou interacional que se transita no momento. Alerta para os efeitos da modernidade entre consciências que os indivíduos têm diante de suas próprias contingências e da necessidade de responderem aos seus próprios destinos, remetendo para uma “reflexividade transformadora” vivenciada por grupos de jovens que estão sujeitos a algum tipo de dominação ou exploração, afirmando uma identidade por meio de “culturas performativas e estéticas”.

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25CESSO, Antonio Ivan; BONGAGNA, Marcelo. O cotidiano como forma de relação cultural e visual. Histórica, São Paulo, ano 9, n. 57, p. 22-29, fev. 2013.

Relação cultura e imagem

Na língua grega antiga, a palavra “imagem” corresponde ao termo eidos, raiz etimológica do termo idea ou eidea, cujo conceito é definido por Platão, segundo Watanabe (1996), no livro VII da República, o qual inicia com o mito da caverna e as imagens projetadas pelo sol. Imagem deriva ainda da expressão “imaginação”, que se propõe a explicar a construção visual de formas no pensamento humano. Para Platão, a verdade do mundo está contida nas ideias, mais real por isso que todos os fenômenos sensíveis. Para os gregos, a primeira noção de uma imagem foi o de reflexo ou sombra, algo que exclui a participação humana em sua formação.

Santaella e Nöth (2001) destacam que está por existir uma ciência que estude a imagem, e arriscam a nominá-la como “imagologia” ou “iconologia”. Opinião reiterada por Durand (2004) ao enfatizar que os progressos das técnicas de reprodução por imagens, como a fotografia, o vídeo, as “imagens sintéticas”, bem como os meios de transmissão dessas, não permitiram ao século XX desenvolver estudos vinculados à imagem capazes de abalar o reino da “galáxia de Gutemberg”, expressão de Mc Luhan, reino esse caracterizado pela supremacia da imprensa e da comunicação escrita. E completa:

Embora a pesquisa triunfal decorrente do positivismo tenha se apaixonado pelos meios técnicos (óticos, físico-químicos, eletromagnéticos etc.) da produção, reprodução e transmissão de imagens, ela continuou ignorando o produto de suas descobertas.” (DURAND, 2004, p. 33).

Aos conceitos de Watanabe (1996) e de Santella & Nöth (2001), pode-se acrescentar a defi-nição de Kosslyn (1996, apud KASMIERCZAK, 2001), o qual defende a teoria de que uma imagem, quando mental, é criada pela interação entre representações de superfície, literais e proposicio-nais, ou seja, as representações superficiais têm uma forma “quase pictórica” (estrutura e deline-amento das “bordas” de uma imagem); já as representações mais profundas subdividem-se em literais e proposicionais e são armazenadas na memória de longa duração.

Gomes (2004) prefere utilizar a expressão “imagem conceitual” ao invés de “imagem mental” para esclarecer a homonímia existente no uso da palavra imagem. Reforça: “Tratar-se-ia, o caso de duas espécies do gênero imagem, de forma que como há uma imagem visual, haverá também uma imagem social ou pública, ambas podendo ser consideradas espécies de representação ou apresentação de algo da ordem da realidade.” (p. 245).

Diante das definições anteriormente descritas, pode-se entender que a expressão imagem adquiriu, no decorrer da evolução da sociedade, dois sentidos distintos, quais sejam: imagem vi-sual e imagem mental. No campo da imagem visual têm-se, em grande evidência, os elementos li-gados à comunicação, como a publicidade, a propaganda e ações de marketing ligadas ao último dos 4Ps definidos por Kotler (2004), ou seja, a promoção.

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26CESSO, Antonio Ivan; BONGAGNA, Marcelo. O cotidiano como forma de relação cultural e visual. Histórica, São Paulo, ano 9, n. 57, p. 22-29, fev. 2013.

Trevisan (2002) remete à reflexão quando afirma que a Revolução Agrícola conservou a tradição da oralidade como veículo importante para facilitar a comunicação entre os homens. E complementa ao destacar que a Revolução Industrial consolidou o papel da escrita gráfica e a sociedade pós-moderna veio globalizar o emprego das imagens como forma legítima de difusão da informação. Ainda conforme o autor, “o culto da imagem faz com que diariamente sejamos bombardeados por imagens de todos os tipos, formas e cores, que produzem uma mudança na maneira como nossas sensações percebem o real. (p. 22).

Buoro (2002) considera que as imagens carregam significado cultural, e cita como exem-plo marcas geográficas, afetivas, religiosas, entre outras. Para ele, por meio da avaliação das ima-gens presentes, por exemplo, em anúncios publicitários, busca-se a percepção de tais imagens que podem estar associadas a palavras. Já Silverstone (1999) enfatiza que a mídia filtra e molda realidades cotidianas, por meio de suas representações singulares e múltiplas. E completa dizen-do que a mídia fornece critérios e referenciais que servem para a construção da vida cotidiana e para a produção e manutenção do senso comum.

Conforme Rocha (2005), a mídia é um espaço privilegiado para se produzir educação, confi-gurando-se, sobretudo, nas últimas décadas, como um ambiente virtuoso para a pedagogia, por meio do qual se ensina, se aprende e se constroem identidades e significados. Mas Silverstone (1999) alerta que a influência da mídia é desigual e imprevisível e que existem diferenças expres-sivas entre ver, compreender, aceitar, acreditar e agir por influência ou converter ideias em ações. O autor constata que as pessoas passaram a depender da mídia impressa e eletrônica para fins de entretenimento e fonte de informação, conforme e também segurança. Entretanto, Ghilardi (1999) ressalta que “além de entretenimento e informação, a mídia colabora para a construção da identidade cultural de um povo; é, portanto, meio de transmissão cultural e constrói opinião pú-blica.” (GHILARDI, 1999, p. 105). Lima (2011) nos alerta sobre “comunicação e cultura de massa” ao fazer uma retrospectiva dos fatos históricos, de sua valorização inconsciente e consciente, onde os meios de comunicação de massa sejam integrantes de uma outra modalidade cultural, inseri-dos em um capitalismo ocidental.

Sardelich (2006) entende que a cultura visual está entendida num campo de estudo “trans-disciplinar multirreferencial”, tomando como referências a arte, a arquitetura, a história, a psicolo-gia cultural, a psicanálise lacaniana e outros estudos culturais, como a antropologia, porém con-tinua aberto a novos campos, não sendo exclusivo de determinadas áreas, mas terá seu valor a partir dos significados culturais e da compreensão crítica do papel que cada função exerce dentro da sociedade.

Dessa forma, “a imagem passa a ser compreendida como signo que incorpora diversos có-digos e sua leitura demanda o conhecimento e compreensão desses códigos.” (SARDELICH, 2006, p. 206). Segundo Oliveira (2009), a palavra semiótica é derivada do grego semeion, que significa signo. “Semiótica é a Ciência geral dos signos; mas também pode ser considerada a Ciência da significação, ou Ciência que estuda todas as linguagens.” (OLIVEIRA, 2009, p. 38).

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27CESSO, Antonio Ivan; BONGAGNA, Marcelo. O cotidiano como forma de relação cultural e visual. Histórica, São Paulo, ano 9, n. 57, p. 22-29, fev. 2013.

As complexidades das imagens passam a ser imprescindíveis para uma leitura que con-temple o seu todo, ou o que seja imperioso interpretar e que tenha, por conseguinte, decodifica-ção dos significados:

Por isso o leitor de um texto visual deve transitar incansavelmente de um ou de mais elementos mínimos para outros elementos, de um tipo ou de vários procedimentos para outro ou outros, de elementos para procedimentos e vice-versa, e deles para o todo da imagem. Em seguida, retorna do todo ao que pode parecer detalhe, ou seja, ao que algumas vezes fica visível diante de um primeiro ou segundo olhar.Munido de seus sentidos e de sua capacidade cognitiva, continua o leitor na direção do desvelamento de novos conhecimentos, através de renovadas significações que encontra, transitando das partes para o todo e do conjunto do texto estético para seus componentes. São as inúmeras trilhas que entrecruzam no visível da imagem (plano de expressão) ao mesmo tempo em que tecem a significação (plano do conteúdo); daí a necessidade de observar minuciosamente toda a imagem, resgatando os pontos relevantes para, a partir deles, recriar, traduzindo uma teia de elementos e procedimentos significantes que, como tal, é construída por meio de linhas paralelas, concêntricas, todas relacionadas. Tudo isso é necessário para que se chegue aos incontáveis sentidos de um texto, ao que quer dizer a imagem, ao plano do conteúdo. (OLIVEIRA, 2009, p. 53-54).

No âmbito das mensagens em grandes metrópoles, as imagens estão em toda parte: em placas de sinalização, de trânsito, na propaganda, nas fachadas das organizações, nos edifícios, no mobiliário urbano de modo geral, nas bancas de jornal e vitrines, nas televisões e nos terminais de computadores, nos caixas eletrônicos. Segundo Ferrara (2008), essa comunicação em imagens só foi possível graças ao desenvolvimento da tecnosfera, sendo que essas imagens aderem ao espaço como verdadeiras próteses, atribuindo-lhe uma capacidade cada vez maior de interação e mediação com a psicosfera. Assim, completa o autor, o espaço ganha concretude, podendo ser percebido e interpretado por seus usuários por meio de suas espacialidades, que são compreendidas como “a própria natureza daquela construção e é considerada a primeira e primordial categoria de representação do espaço.” (FERRARA, 2008, p. 48).

Ao percorrerem os espaços públicos das cidades, as pessoas são estimuladas a interpretar a significação dos signos, das figuras, das cores, das formas, da arquitetura e da imagem como elemento de interação em seus cotidianos.

De acordo com Polimeno (2012), um dos grandes desafios das neurociências é acessar o conteúdo da mente produzido pela atividade cerebral: pensamentos, memórias e sonhos.  Ela relata que uma equipe de cientistas da Universidade da Califórnia, em Berkeley, liderada pelo professor Jack Gallant, deu um grande salto nessa direção ao desenvolver uma técnica que se mostrou capaz de predizer com exatidão a imagem para a qual uma pessoa está olhando. De cada dez casos, o modelo desenvolvido a partir da ressonância magnética funcional (RMF) acertou em nove vezes a fotografia na qual o observador focou. No artigo publicado pela revista americana Nature, em março de 2012, os cientistas comparam o estudo a um número de mágica em que se escolhe uma carta a ser adivinhada.

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28CESSO, Antonio Ivan; BONGAGNA, Marcelo. O cotidiano como forma de relação cultural e visual. Histórica, São Paulo, ano 9, n. 57, p. 22-29, fev. 2013.

Os resultados do estudo sugerem que será factível reconstruir uma figura vinda da experi-ência visual – de memórias e até de sonhos – de uma pessoa, utilizando as medições da atividade cerebral. O trabalho suscitou questões relacionadas ao uso da tecnologia por outras áreas das ciências e, por enquanto, como relata Polimeno (2012), a técnica pode ser aplicada somente a imagens visuais, e não a pensamentos. Entretanto, a pesquisa indica que em um futuro próximo, quando os escâneres estiverem mais evoluídos, será justificada a preocupação com a privacidade, pois entende-se que será possível o desenvolvimento de imagens que poderão expressar desejos, traumas, ideias e preferências. Por outro lado, a contribuição para a ciência é enorme, atesta Poli-meno, que destaca a importância do uso do equipamento em experiências visuais relacionadas às memórias e aos sonhos e ajuda a entender o estado mental de pacientes em coma.

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Histórica - A Revista Eletrônica do Arquivo Público do Estado de São Paulo, nº 57, fev. 2013

O JORNAL E O MODELO IDEAL: A REPRESENTAÇÃO DE UM DE PADRÃO DE MASCULINIDADE SOB A ÓTICA DO PERIÓDICO RELIGIOSO CRUZEIRO (1940)

Jakson dos Santos Ribeiro1

Resumo: No presente artigo buscamos problematizar os discursos e as representações consti-tuídas em torno da figura masculina na cidade de Caxias-MA no contexto da década de 1940. No bojo das discussões sobre o modelo de masculinidade defendido como o padrão para ser seguido, os discursos buscavam normatizar um modelo de masculinidade conforme os preceitos ideológicos das instituições, como Estado e Igreja, que comungavam na época na idealização de sujeitos para a sociedade. Desse modo, lançamos o nosso olhar para os discursos do jornal Cruzei-ro, um periódico religioso que circulava na cidade e que comungava com os preceitos acalenta-dos para a normatização desse modelo ideal de masculinidade.

Palavras-chave: Modelo. Padrão. Discurso.

Abstract: In this article we seek to problematize the discourses and representations made about the male figure in the city of Caxias-MA in the context of the 1940s. Amid the discussions about the model of masculinity advocated as the standard to be followed, the speeches sought to stan-dardize a model of masculinity as the ideological precepts of institutions like church and state, who communed at the time subject to the idealization of sociedade.Desse mode we launched our gaze to the speeches of the newspaper Cruise, a religious journal that circulated in the city and communed with the precepts of this model for standardization cherished ideal of masculinity.

Keywords: Model. Standard. Speech.

1 Mestrando em História Social pela Universidade Federal do Maranhão-UFMA, da qual pertence a Linha de Pesquisa Poder e Sociabilidade. Atualmente desenvolve pesquisa de nível de mestrado, investigando como são construídos os perfis masculinos na cidade de Caxias na primeira metade do século XX. A pesquisa tem como auxílio para o desenvolvimento dos trabalhos a Fundação de Amparo à Pesquisa e ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Maranhão – FAPEMA. Contato: [email protected].

Histórica - A Revista Eletrônica do Arquivo Público do Estado de São Paulo, nº 57, fev. 2013

31RIBEIRO, Jakson dos Santos. O jornal e o modelo ideal: a representação de um padrão de masculinidade sob a ótica do periódico religioso Cruzeiro. Histórica, São Paulo, ano 9, n. 57, p. 30-37, fev. 2013.

Em nome de um ideal: os discursos em prol de um padrão

O início do século XX, em todos os âmbitos, é um espaço de muitas possibilidades, tanto para homens como mulheres, em que ambos se comportam de maneira bem atípica à que era considerada como modelo tradicional no século XIX. No caso do homem, que era representa-do nos discursos da Igreja, do Estado e mesmo da imprensa como um sujeito sombrio, potente, um super-herói, que não demonstrava reações sentimentais para com outros indivíduos nem era um sujeito complacente com as pessoas que estavam ao seu redor, passa a ser subjetivado em outras perspectivas.

Ao trazer à discussão a ideia de masculinidade emergente nessa primeira metade do século XX, nos colocamos a favor das premissas de que não existe uma naturalização das identidades tanto do sexo masculino como feminino, mas uma construção sociocultural dessas identidades. E que ser homem, principalmente, é estar sujeito a um conjunto de considerações simbólicas.

Nessa ótica, a masculinidade estaria atrelada a um conjunto de considerações que se de-finiriam em uma perspectiva psicanalítica com a definição da predestinação por conta das suas condições físicas, como forma de alicerçar a ideia de homem e também a ideia de fatores socio-culturais como formadores da identidade masculina no jogo de relações. Os discursos de uma vertente iluminista eternizavam e contribuíam para que essa tradição hierárquica locasse em es-paços desiguais os gêneros feminino e masculino.

A tradição iluminista deixou, entre outras heranças, a noção de subjetividade autorreferente centrada no indivíduo, unificada, articulada em torno do pensamento validado pela razão, com a qual a totalidade da história humana pode ser compreendida e dominada2. Essa percepção dos sujeitos por meio de uma análise subjetiva atribuiu ao sexo masculino um privilegiado lugar dian-te das relações de gênero, constituindo nas relações entre homem e mulher uma diferenciação hierárquica em que a mulher ficou locada em um plano de percepção de imagem negativa e o homem relegado às considerações mais positivas.

A própria ideia de que o homem foi submetido ao seu papel social, que corporificava a no-ção de homem de negócios, por sua vez, vai jogar a ideia do papel da mulher para o âmbito do-méstico. Nesse caso, a subjetividade pela qual a análise da masculinidade passou levou o sujeito homem a gozar de condições constituídas por adjetivos exaltadores de suas qualidades masculi-nas, afirmando o seu grau de superioridade nas relações sociais e também nas relações de gênero.

Assim, a figura que emerge com os novos padrões de urbanidade e que salta aos olhos em muitas cidades brasileiras, principalmente em Caxias-MA, é um modelo de masculinidade que segue as características de um homem burguês, com ares de “civilizado”, baseado nos padrões cosmopolitas europeus, como o Rio de Janeiro e Florianópolis. Desse modo, podemos perceber 2 Cf. MATOS, Maria Izilda Santos de. Por uma História das Sensibilidades: em foco, a masculinidade. História Questões e Debates, Curitiba, v. 34, p. 45-63, 2001. p. 50.

Histórica - A Revista Eletrônica do Arquivo Público do Estado de São Paulo, nº 57, fev. 2013

32RIBEIRO, Jakson dos Santos. O jornal e o modelo ideal: a representação de um padrão de masculinidade sob a ótica do periódico religioso Cruzeiro. Histórica, São Paulo, ano 9, n. 57, p. 30-37, fev. 2013.

essa masculinidade como [...] um conjunto de atributos culturais e sociais associados ao sexo masculino, cuja aplicabilidade é influenciada por categorias como classe, geração, etnias, religião, grau de escolaridade, de acordo com o contexto em que está inserida”3. (VANNIN apud SIMÕES, 2007, p.14).

O “novo” homem agora admitia sua fraqueza, sua fragilidade; o corpo já não servia para se impor como uma pessoa que possui a condição masculina. A sensibilidade feminina também passaria a fazer parte das novas subjetividades masculinas. A forma de se vestir, de falar, de se comportar, já não mais se sustentaria por si só4.

Nesse caso, o jornal Cruzeiro, por exemplo, subjetiva a imagem masculina em um espaço so-cial que regulava as situações sociais com suas regras normativas e disciplinadoras. Nesse bojo é possível citar as instituições como a Igreja e o Estado, em que as normatizações são bem explícitas no que se refere ao gênero mais especificamente.

Considerando a subjetividade pelo ângulo de sua produção por instâncias individuais, cole-tivas e institucionais, procurou-se renunciar às pretensões universalistas das modalizações psico-lógicas para tentar apreender a subjetividade em sua dimensão de criatividade processual, como todo um conjunto de circunstâncias histórico-socioculturais (origem, classe social, etnia, cultura) e biográficas (trajetória de vida e de trabalho) que enseja o sentido do eu5.

Nessa perspectiva, o “eu”, que age hegemonicamente, porque detém o poder, como era o caso dos articulistas do jornal Cruzeiro, construíam regras normativas, relações situacionais entre os gêneros, como forma de privilegiar-se diante das regras construídas. Mantendo, assim, a hege-monia e consequentemente a superioridade masculina.

O discurso do jornal Cruzeiro, mais especificamente de um de seus redatores, Arias Cruz6, se encaixa nessa perspectiva em que as palavras formam um arranjo de sentidos e formaliza uma realidade, uma identidade, que está intrinsecamente relacionada ao lugar social, e às ideias e aos interesses que essa espacialidade social tem como regência de sentidos e percepções das ações da sociedade em que estão inseridos. Desse modo, o colunista afirmava que o homem deveria seguir os princípios de boa conduta que fizeram parte da vida de São José, o pai e condutor da família sagrada. Assim, apontava:

São José, o modelar pai da família e nobre cidadão, pelas suas virtudes, providenciará que todos vejam e compreendam a finalidade da existência humana

3 Cf. SIMÕES, Kleber José Fonseca. Os homens da Princesa do Sertão: modernidade e identidade masculina em Feira de Santana (1918-1928). 2007. Dissertação (Mestrado)–Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, 2007. p. 14.4 Cf. SILVA, Sergio Gomes. Masculinidade na História: a construção cultural da diferença entre os sexos. Ciência e Profissão, Brasília, v. 20, p. 8-15, 2000. p. 3.5 Cf. MATOS, Maria Izilda Santos de. Por uma História das Sensibilidades: em foco, a masculinidade. História Questões e Debates, Curitiba, v. 34, p. 45-63, 2001. p. 48. 6 Segundo Antunes (2001), era uma pessoa de grande prestígio social em Caxias na época. Um dos principais colaboradores, que escrevia para o jornal e que muitas vezes enviava seus artigos a jornais da capital.

Histórica - A Revista Eletrônica do Arquivo Público do Estado de São Paulo, nº 57, fev. 2013

33RIBEIRO, Jakson dos Santos. O jornal e o modelo ideal: a representação de um padrão de masculinidade sob a ótica do periódico religioso Cruzeiro. Histórica, São Paulo, ano 9, n. 57, p. 30-37, fev. 2013.

e a sublimidade da família e da sociedade organizadas dento dos princípios da ordem e da justiça social, respeitando os direitos de sua liberdade.7

Os estudos realizados pelas feministas8, por exemplo, na segunda metade do século XX, não percebiam a hierarquia entre gênero como algo natural, mas como uma situação construída culturalmente e que era defendida por um discurso técnico-científico. Esse ponto foi relevante para o estudo da masculinidade, pois percebeu-se que o conceito hegemônico de masculinidade é fabricado por elementos operantes que visam constituir na teia social homens com aspectos específicos, como o modelo do homem igual a José, honesto e trabalhador tanto frisado pelo periódico religioso Cruzeiro. Nessa perspectiva, não se percebia que essas construções de ideais deixam de lado que as identidades são também gestadas por elementos subjetivos, que, por sua vez, se enquadram em processos de supressão de ambiguidades a fim de apresentar na cena so-cial uma “ilusão” de coerência acerca das posturas e formas de homens e mulheres9.

O discurso que enclausurava a mulher em um espaço privado sem muito movimento e ro-tatividade, que a destinava ao cuidado com o lar, dimensionava a ação masculina para o espaço público. Nesse sentido, as produções realizadas pelas feministas buscavam igualdade dos direitos diante de muitas situações limitadoras da ação feminina.

Nessa imersão aos estudos da masculinidade, a partir das novas ações femininas, o sujeito homem, até outrora endeusado por discursos e representações, passa a ser, na década de 1940, um sujeito possuidor de identidade mais flexível nas subjetivações em torno da sua identidade. Se fizermos uma analogia ao homem do início do século XIX, por exemplo, como bem mencio-namos no início da nossa discussão sobre a masculinidade, a ideia de flexibilidade nos discursos simbólicos e nas práticas acerca do que é ser homem se volta para outro prisma.

A década de 1940 marca, assim, um período em que as mudanças em torno da identidade masculina se tornam mais perceptíveis quando nos referimos às percepções sociais em torno da figura masculina. Deparamo-nos, portanto, com um modelo de homem que se projetava na cena social, com novos valores simbólicos, mas que mantinha uma hegemonia atuante muito mais efetiva no espaço público, principalmente em relação ao trabalho.

O trabalho cumpre a função de nomear o mundo subjetivo dos homens, e faz por meio de uma tentativa de eliminar o que nele há de duvidoso, impreciso e disforme. A postura adotada pelos homens para interagir com o trabalho se

7 CRUZEIRO, n. 548, 15 mar. 1947, p. 1.8 O movimento feminista de emancipação da mulher, ao questionar o ideal de homem viril, contribuiu para o abalo da identidade dominante masculina, expressando a sua rejeição à coerção e ao controle da sociedade patriarcal. Além disso, influenciou na mudança do comportamento sexual e desenvolvimento da sexualidade, nos padrões de família, e na dinâmica de relacionamentos amorosos, por exemplo. SANTOS, Simone Cabral Marinho dos. O modelo predominante de masculinidade em questão. Revista Políticas Públicas, São Luis, v. 14, n. 1, p. 59-65, jan./jun. 2010. p. 62.9 A autora Simone Beauvoir, em seu livro O Segundo Sexo, marco no estudo do gênero, demonstra muito bem uma reflexão acerca das construções discursivas sobre a relação entre homem e mulher.

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34RIBEIRO, Jakson dos Santos. O jornal e o modelo ideal: a representação de um padrão de masculinidade sob a ótica do periódico religioso Cruzeiro. Histórica, São Paulo, ano 9, n. 57, p. 30-37, fev. 2013.

assenta no esforço para suprimir o que em ambos há de subjetivo. Esta postura, pautada por uma dissociação entre as duas dimensões, gera nos homens sua tensão interna que é reforçada por outra proveniente da forma como se relacionam com o que fazem.10

O trabalho passa a ser agora o qualificador dos homens, ou seja, ser homem não estava mais relacionado diretamente às qualidades rústicas, mas sua identidade foi sendo configurada em outro campo de subjetivações; agora o substantivo “trabalho” se passa, na mentalidade citadina, como medidor da configuração do que é ser homem, ou seja, trabalhador, tornando-se, neste alicerce de significativa relevância, a qualificação da masculinidade de homem.

Nesse processo, o trabalho aparecia como fonte básica de autorrealização, pois ele se con-figuraria como um espaço de criatividade e prazer, veículo de crescimento pessoal, com a função de nomear o mundo subjetivo dos homens, valorizando-os por sua capacidade de ação, pratici-dade e objetividade, sucesso e iniciativa, modelando-os com as expressões daqueles que têm em si atributos do poder viril11.

A masculinidade tinha como prisma valorativo o homem que trabalhava; por conseguinte, os discursos tanto da Igreja quanto do Estado, na época, buscavam constituir representações que ressaltassem a identidade masculina. Tal campanha tinha, assim, apoio do próprio presidente da República, Getúlio Vargas, que manteve uma campanha política intensa sob essa máxima.

Na esteira dos discursos, a mecânica funcionava em valorizar a ideia do homem trabalhador e, por sua vez, manter um sujeito normatizado conforme as prerrogativas de progresso que o Es-tado pregava naquele momento, assim como trazer o homem para mais perto da vida religiosa. O jornal utilizava como modelo a imagem de José, religioso que é trabalhador e dedica-se à família. Essa prática discursiva faz alusão a um homem, mas com suas bases religiosas bem estruturadas tanto na sua identidade masculina como de homem religioso.

O discurso do periódico religioso Cruzeiro potencializa o homem à imagem de José, apre-sentando tal representação, com exacerbados valores, que passam pela ótica de constituir em volta do mesmo uma subjetivação simbólica, que reforçasse a sua masculinidade, como também a constituição de modelos como tal no bojo das práticas de homens caxiense.

As subjetivações em torno da identidade do homem, mas um “homem santo”, corporifica no discurso do jornal, salientando sempre as boas qualidades que os homens detinham e mostrando os traços característicos dessa identidade masculina construída no discurso do jornal.

Ao defender um modelo padrão, o discurso do jornal estava salientando que os modelos fora dele não agradariam os anseios da Igreja Católica caxiense. Desse modo, o discurso ratificava

10 NOLASCO, Sócrates. O mito da masculinidade. Rio de Janeiro: Rocco, 1993. p. 58.11 MATOS, Maria Izilda Santos de. Por uma História das Sensibilidades: em foco, a masculinidade. História Questões e Debates, Curitiba, v. 34, p. 45-63, 2001. p. 51.

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35RIBEIRO, Jakson dos Santos. O jornal e o modelo ideal: a representação de um padrão de masculinidade sob a ótica do periódico religioso Cruzeiro. Histórica, São Paulo, ano 9, n. 57, p. 30-37, fev. 2013.

que os empecilhos para que esse modelo não viesse a se concretizar em uma prática cotidiana também deveriam ser combatidos.

Ao levantar a imagem de José como o padrão de gênero que deveria ser seguido, o jornal combate todos os hábitos que levaria o homem caxiense para além desse padrão. Como bem afirma Sena (2009), [...] o homem, pai de família e líder de casa, o Cruzeiro estabelece normas de conduta, visando destituí-lo dos maus hábitos e valores danosos ao trabalho [...]12. Para o jornal, manter um homem livre desses maus hábitos significava contribuir para que a identidade mascu-lina não fosse abalada e a ordem da moral familiar e social estivesse garantida. O deslocamento da identidade masculina para uma figura religiosa e positivada mostrava as garantias que a Igreja iria obter exortando dos sujeitos hábitos impróprios para a ordem social.

Sob essa ótica, Arias Cruz estoca no discurso os caracteres simbólicos que determinam um modelo e representa com suas colocações linguísticas a estrutura de tal, no caso, um modelo de masculinidade para os homens caxienses.

Nesse primar pelo sujeito homem com qualidades santas, Arias Cruz inicia suas proposições acerca do modelo, relembrando a funcionalidade dessa figura na estrutura familiar. Iniciando com “O chefe da Divina Família era o Patriarca”13, o Cruzeiro, com essa tônica, afirmava que o ideal seria que apesar de seu contexto ser outro, o homem deveria preservar a sua função na instituição fa-miliar, a figura de chefe, de líder. Um lugar intransferível na ordem dos gêneros.

O discurso, bem menos do que um ponto de vista, é uma organização de restrições que regulam uma atividade específica. A enunciação não é uma cena ilusória em que seriam ditos conteúdos elaborados em outro lugar, mas um dispositivo constitutivo da construção do sentido e dos sujeitos que aí se reconhecem14.

A afirmação de Arias Cruz ao dimensionar seu discurso a essa perspectiva não se afasta de uma prática, que na realidade deveria ser uma atitude primeira na vida de um homem, no caso do caxiense. Arias Cruz relembra sua colocação através da linguagem, uma competência de âmbito da identidade masculina, formalizando o gênero masculino no seu espaço de atuação.

Ao formalizar o seu olhar sobre a identidade masculina no viés santificado, Arias Cruz não deixa que características pertinentes ao modelo padrão de exemplificação sejam destituídas de seus caracteres simbólicos essenciais, como bem afirma: “E’ ele o casto esposo da Virgem Maria [..] eis [o] pai [...]”15. Ser homem, para Arias Cruz, era seguir o mesmo padrão de comportamento de

12 SENA, Laércio Rocha de. A Ressignificaçao do Trabalho e a Construção do Trabalhador Disciplinar no Discurso do Semanário Católico Caxiense Cruzeiro (1930 a 1940). Monografia apresentada ao Departamento de História e Geografia. Caxias, CESC, 2009. p. 55.13 CRUZEIRO. Caxias, Maranhão, Sábado, 23 de março de 1946, (Capa), n. 545.14 MAINGUENEU, Dominique. Novas tendências em análise do discurso. 3. ed. Traduzido por Freda Indursky. Campinas: Pontes,e Campinas, 1997. p. 50.15 CRUZEIRO. Caxias, Maranhão, Sábado, 23 de março de 1946, (Capa), n. 545.

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36RIBEIRO, Jakson dos Santos. O jornal e o modelo ideal: a representação de um padrão de masculinidade sob a ótica do periódico religioso Cruzeiro. Histórica, São Paulo, ano 9, n. 57, p. 30-37, fev. 2013.

José, e principalmente não esquecer que as funções primordiais de um homem era levar e chefiar sua família, para que ela possa oferecer à sociedade os melhores filhos e exemplos.

Para Hall (2006), a formalização do olhar sobre o outro com o intuito de personificar o in-divíduo está correlacionado aos princípios regentes de formação dos sistemas simbólicos que instrumentalizaram o conjunto de conceitos sobre os aspectos da vida, nesse caso, a identidade do homem.

Considerações Finais

A partir dos diálogos realizados com os autores citados, notamos que as bases conceituais (identidade e representação) carregam em sua estrutura elementos que podem servir como pris-ma de análise, primeiro para identificar as identidades masculinas e segundo porque são pontos de entendimento dentro das relações de gênero.

Captamos inicialmente que as representações sobre a identidade masculina foram sendo institucionalizadas sobre o prisma do conceito hegemônico, e que tal conceito conseguiu ga-rimpar um capital simbólico, que fez do conceito de homem ser algo inquestionável até o dado contexto.

Neste processo, os discursos ecoados pela imprensa caxiense eram defensores da qualifica-ção de modelos que se enquadravam ao perfil desejado, uma máxima que se segue como forma de unir pensamentos ideológicos existentes. Nesse caso, a visão da Igreja e do Estado projetam para o espaço social caxiense identidades construídas e normatizadas, conforme o prisma desen-volvimentista tanto exaltado no país naquele momento.

Assim, a construção de perfil de masculinidade em Caxias visava valorizar o padrão “per-feito”, ou seja, o homem que seguia o ideal burguês, pois correspondia a um status conceitual e histórico do perfil de masculinidade hegemônico e que possuía uma historicidade dentro das relações sociais de gênero.

Nesse sentido, o homem burguês representado nas composições discursivas da imprensa caxiense objetivava se afirmar dentro do espaço social da cidade como um homem que primeiro fosse capaz de compreender os objetivos de progresso e desenvolvimento do país e da cidade, e que também fosse honesto e trabalhador para a construção do país.

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37RIBEIRO, Jakson dos Santos. O jornal e o modelo ideal: a representação de um padrão de masculinidade sob a ótica do periódico religioso Cruzeiro. Histórica, São Paulo, ano 9, n. 57, p. 30-37, fev. 2013.

Referências

Periódicos

CRUZEIRO, Caxias, Maranhão, 21 ago. 1943.

CRUZEIRO, Caxias, Maranhão, 12 jan. 1945.

CRUZEIRO, Caxias, Maranhão, 23 mar. 1946.

CRUZEIRO, Caxias, Maranhão. 18 jan. 1947.

CRUZEIRO, Caxias, Maranhão, 5 mar. 1946.

CRUZEIRO, Caxias, Maranhão, 5 maio 1949.

Bibliografia

ATUNES, José. Reminiscências século XX: em outros tempos de Caxias. Rio de Janeiro: [S. n.], 2001.

MAINGUENEU, Dominique. Novas tendências em análise do discurso. 3. ed. Traduzido por Freda Indursky. Campinas: Pontes,e Campinas, 1997.

MATOS, Maria Izilda Santos de. Por uma História das Sensibilidades: em foco, a masculinidade. História Questões e Debates, Curitiba, v. 34, pp. 45-63, 2001.

NOLASCO, Sócrates. O mito da masculinidade. Rio de Janeiro: Rocco, 1993.

SANTOS, Simone Cabral Marinho dos. O modelo predominante de masculinidade em questão. Revista Políticas Publicas, São Luis, v. 14, n. 1, p. 59-65, jan./jun. 2010.

SENA, Laércio Rocha de. A Ressignificação do Trabalho e a Construção do Trabalhador Disciplinar no Discurso do Semanário Católico Caxiense Cruzeiro (1930 a 1940). Monografia apresentada ao Depar-tamento de História e Geografia. Caxias, CESC, 2009.

SILVA, Sergio Gomes. Masculinidade na História: a construção cultural da diferença entre os sexos. Ciência e Profissão, Brasília, v. 20, p. 8-15, 2000.

SIMÕES, Kleber José Fonseca. Os homens da Princesa do Sertão: modernidade e identidade mas-culina em Feira de Santana (1918-1928). 2007. Dissertação (Mestrado)– Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, 2007.