histórias do progresso de são paulo: cultura urbana...

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Histórias do progresso de São Paulo: cultura urbana através da obra de Adoniran Barbosa São Paulo progress’s histories: urban culture through Adoniran Barbosa’s work Yara Boscolo Bragatto 1 , mestranda IAU-USP, [email protected]. 1 Mestranda em Arquitetura e Urbanismo pelo programa de Pós-graduação do Instituto de Arquitetura e Urbanismo IAU- USP, na área de concentração Teoria e História da Arquitetura e do Urbanismo

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HistóriasdoprogressodeSãoPaulo:culturaurbanaatravésdaobradeAdoniranBarbosa

SãoPauloprogress’shistories:urbanculturethroughAdoniranBarbosa’swork

YaraBoscoloBragatto1,mestrandaIAU-USP,[email protected].

1MestrandaemArquiteturaeUrbanismopeloprogramadePós-graduaçãodoInstitutodeArquiteturaeUrbanismoIAU-USP,naáreadeconcentraçãoTeoriaeHistóriadaArquiteturaedoUrbanismo

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SESSÕES TEMÁT ICA 7 : C IDADEE H ISTÓRIA

DESENVOLVIMENTO,CRISEERESISTÊNCIA:QUAISOSCAMINHOSDOPLANEJAMENTOURBANOEREGIONAL? 2

RESUMO

Dentrodeumametrópoledosanos1950comoSãoPaulocoexistemdiversassituaçõesurbanasemanifestaçõesculturaisehabitá-laimplicaaoserhumanodiversoscomportamentosespecíficoseaadesãoasignificadosquesãoexclusivosdasgrandescidades.AoanalisarodesenvolvimentodeSãoPauloequaiscaminhosforamtrilhadosparaquea“locomotivadopaís”adquirissetalfamaépossível constatar que tal fenômeno urbano paulistano e nacional não se deu de maneirahomogênea. Dentro dessa diversidade e contrariando o discurso ufanista de sua época surge afiguradeAdoniranBarbosa,umboêmioconvicto,queemsuascaminhadaspelacidadeencontravainspiração para fazer suas canções que viriam a se tornar símbolo de São Paulo e alcançariamgrandeapelopopular.AcidadequeAdonirannarravanassuascançõesenfrentavaproblemas,equenemsempreeramvivenciadospeloartistadiretamente,masasuarelaçãocomoshabitantesdacapitalpaulistaeratãosensívelqueeleeracapazdeenxergarcomoutrosolharesumacidadelargamenteestudadaeanalisada,tendocomosonoridadeumestilodenarrativaafinadacomasvozesdaquelesquefaziampartedocenárioexaustivamenteestudado,masquedificilmenteeramenxergadosououvidos.

PalavrasChave:SãoPaulo,AdoniranBarbosa,HistóriaCultural,Metrópole.

ABSTRACT

Ina1950’smetropolis,asSãoPaulo,someurbansituationsandculturalmanifestationscoexistedandinhabitingthemimpliestothehumanbeingseveralspecificsbehaviorsandtheadherencetomeaningsthatareuniquetobigcities.WhenanalyzingthedevelopmentofSãoPauloandwhichpaths have been trodden so that the “country’s locomotive” could acquire such fame, it isestablishedthatSãoPauloandthenationalurbandevelopmenthaven’toccurredevenly.Withinthisdiversityandcounteringthevaingloriousspeechofhis time, the figureofAdoniranBarbosaappears:aconfirmedbohemianthat, inhiswalksaroundtown, found inspirationtowritesongsthat would become a symbol for the city and reach great popular appeal. The city Adonirannarratedinhissongsfacedproblems,whichwerenotalwaysexperiencedbytheartistdirectly,buthisrelationshipwiththeinhabitantsofthecapitalofSãoPaulowassosensitivethathecouldseewithothereyesacitystudiedandanalyzed,Havingassoundastyleofnarrativeintunewiththevoicesofthosewhowerepartofthescenariostudiedexhaustively,butthatwerehardlyseenorheard.

Keywords:SãoPaulo,AdoniranBarbosa,CulturalHistory,Metropolis.

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SEMPRE“ESCUITEI”FALAR

Queoprogressosóacontececomotrabalhodetodos.QueparaSãoPaulosera locomotivadopaísénecessárioquetodoscolaborem,eassim,sintamorgulhodefazerpartedela.Mesmoquepara issomorem em cortiços, em favelas oumalocas.Mesmo que para isso tenham que ver oprogressodelonge,ládosbairrosperiféricos,ondenãopassabonde,ondenãotemluzdaLight2.Ascontradiçõesparecemsempreterfeitopartedasbasesnecessáriasparaodesenvolvimentodacapital paulista. E nessa pluralidade complexa, Arruda (2001. P. 57) destaca “Os seres que ahabitam explicitam o que de mais exótico pode haver numa sociedade em processo demodernização abaixo do equador, formada a partir de um complexo mosaico de agregaçõesétnicas,raciaiseculturais”.

AdoniranBarbosa via nessa pluralidade inspiraçãopara suas canções, quenopresente trabalhosão tomadas como crônicas do cotidiano, e devido ao grande sucesso atingido pelo artistaacabaramporsetornarsímbolosdacidade,perdurandonotempoesendointerpretadasatéhoje.Acredita-se que compreender as relações cotidianas expressas por Adoniran seja parte de umaleituraquebuscaenxergaracidadeàcontra-pêlo,nocaminho inversodasexaltaçõesquetantopromoviamacidadeque“nãoéconduzida,masconduz”3.

DAMALOCAÀSÉ

Osanosde1950marcaramoinícioda“eradeourodorádio”noBrasil,eemSãoPauloumjovemfilhodeimigrantesitalianosequenãolevavamuitojeitoparaotrabalhonasgrandesindústriasdacidade começava a escrever suas primeiras canções. Adoniran Barbosa era na verdade JoãoRubinato, e sua voz rouca começava a fazer sucesso na Rádio Record com participações emprogramas de humor. Compunha suas letras como forma de crônicas dos eventos cotidianos,buscando inspiração em suas caminhadas pelos bares e cafés do centro de São Paulo. Emumadessascaminhadasconheceutrês rapazesqueajudavamsuaesposaacarregarascompras.Elesmoravam ilegalmente em um casarão no centro, e Adoniran os tinha como amigos. Um dia,passandono local,o casarãohavia sidodemolidoeos rapazeshaviamsumido.Adoniranentão,imaginando como teria sido o episódio compoz a canção que se tornaria seu primeiro grandesucessogravadonavozdosamigosDemôniosdaGaroa:

SaudosaMaloca(AdoniranBarbosa–1955)4

Seosinhônãotálembrado/Dálicençadecontá/Queaquiondeagoraestá/Esseedifícioarto/Eraumacasaveia/Umpalaceteassobradado/Foiaquiseumoço/QueeuMatoGrossoeoJoca/Construímonossamaloca/Masumdianemqueromelembrar/Chegooshomesco'asferramenta/Odonomandou

2 A Companhia Light and Power foi responsável inicialmente pelo transporte de bondes na capital paulista, eposteriormente pelo fornecimento de energia elétrica. Era comumente associada a movimentos de especulaçãoimobiliária, já que a energia elátrica atingia bairros como Higienópolis e Jardins. Nos bairros onde se concentravamoperários,osbondeserampuxadosporburros.3Alusãoeadaptaçãodosdizeresdobrasãodabandeiradacidade,“Nonducor,duco”,quetraduzidodo latim,“Nãosouconduzido,conduzo”.4TodasascançõescitadascomoexemplosnestetrabalhosãodeautoriadeAdoniranBarbosa(sozinhooucomparceiros),eareferênciadasletraséCAMPOSJUNIOR,Celso.Adoniran:umabiografia.SãoPaulo:Globo,2010.Toma-sequeaformacomoestãoescritasnaobraestádeacordocomomodocomo foram registradasporAdoniranBarbosa,porém,por setratarem de canções que foram interpretadas por diversos artistas, é provável que haja variações nas mesmasinterpretações.

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derrubar/Peguemotudasnossascoisas/Efumuspromeiodarua/Apreciáademolição /Que tristeza, que nóis sentia / Cada tauba que caía / Doía nocoração/MatoGrossoquisgritar/Masemcimaeufalei/Oshomisestáco’arazão/Nósarranjaoutrolugar/Sóseconformemos/QuandooJocafalou:/Deusdáofrio/Conformeocobertor/Ehojenóispegapaia/Nasgramadojardim / E pra esquecê / Nós cantemos assim: / Saudosa Maloca, malocaquerida/Dimdimdondenóispassemo/Diasfelizdinossavida.”

Quandoem“SaudosaMaloca”AdoniranBarbosadiscorresobreosaudosismoemrelaçãoàcasa–oupalacete–quefoiderrubadaparaaconstruçãodeumnovoedifícioaltohádesenotarquetalsentimento está na contramãodo espírito voltado para o futuro que se propagava pela cidade.Nesse sentido, estar sempre atrelado ao passado, como Adoniran parece ser não impede queo progresso aconteça,mas também semostra resistente e insiste em fazer seu relato que é aversãodequemmantémolhosnopassado.

A demolição de um simples prédio antigo do centro da cidade não passou despercebidaporAdoniran, e com certeza influenciou a vida de todos que alimoravam.Mas tal casarãonãofoi o único, visto que a cidade passava por um intenso processo de modernização,claramente demonstrado pela farta verticalização da região central e de várias outrasmodificaçõesdecaráterhorizontalemodificadoresdaconfiguraçãourbana.

OIVCENTENÁRIODAMETRÓPOLE

Um ano antes de Adoniran Barbosa estourar nas rádios com “Saudosa Maloca”, a cidade deSão Paulo estava em festa. O ano de 1954 foi marcado pelas comemorações do IVCentenário daCidade de São Paulo e o conjunto de ações tomadas para comemorar tal datadeixava claro o espírito predominante na época. Havia o desejo de projetar uma cidade“progressistaemoderna” (Arruda,2001.P.70),masquenemsempreandavaemsuatotalidadesobre os mesmos trilhos. Já era possível reconhecer desigualdades, problemas urbanos esociais, que não eram comuns deseremvistosnasrevistasqueenalteciamascomemoraçõesdosquatrocentosanosdacidade.

Sobreascomemorações,Arruda(2001)destacaquetaleventofoirealizadocomtodaaexaltaçãodepoderqueacidadejulgavaterdireito.Haviaa imagemdeSãoPaulocomocidade futurista,eisso deveria e foi muito usado nas temáticas das comemorações, juntamente com a figura dobandeirante.

Tais imagens de cunho futurista alinhavam-se ao longo de inúmeros textos de propagandas denovasideias, propondo, o mais das vezes, a equação São Paulo = cidade moderna = cultura nova. Numasobreposição otimista e frequentemente acrítica, destacam-se as visões da cidadetentacular, dacidade em crescimento, da cidade industrial, da cidade acampamento, da cidade,enfim, Moderna, à qualnão falta nenhum dos tributos exteriores que definem o processo demodernizaçãoaceleradadesdeoiníciodoséculoXX.(Fabris,1994.P.3).

Os eventos relacionados às comemorações traduziram de certa forma, o caráter que setornouinerente à sociedade paulistana, de ritualizar situações e de se orgulhar do passado –que nascomemoraçõese comopartedo imaginário foi significadona figuradosbandeirantesede suas conquistas desbravadoras do interior do país – e também de estar sempretrabalhando para a construção de um futuro próspero e moderno, em uma “ritualização dapaulistanidade”(ARRUDA,2001.P.82).

Tais imagens de cunho futurista alinhavam-se ao longo de inúmeros textos de propagandas de novas ideias, propondo, o mais das vezes, a equação São Paulo = cidade moderna = cultura nova. Numa sobreposição otimista e frequentemente acrítica, destacam-se as visões da cidade tentacular, da cidade em crescimento, da cidade industrial, da cidade acampamento, da cidade, enfim, Moderna, à qual não falta nenhum dos tributos exteriores que definem o processo de modernização acelerada desde o início do século XX. (Fabris, 1994. P. 3).

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O projeto do Parque do Ibirapuera talvez tenha sido o símbolo arquitetônico máximo de talexaltaçãodascomemorações.ProjetadoporOscarNiemeyer-quenaépocatinhaseuescritóriosediadonoRiodeJaneiroejáhaviaganhadodestaquenacionalcomaconstruçãodocomplexodaPampulha em Belo Horizonte, e com obras contratadas por Francisco Matarazzo Sobrinho - oparquetinhaemsuaslinhasarquitetônicasmodernasumapromessadetudoqueacidadedeSãoPaulomereciaedeveriaterparaseafirmarcomometrópolemoderna.

CONDIÇÃOMETROPOLITANA

Metrópoleéumstatusdadoacidadesdegrandeporte.Porém,toma-seporbasequeosentidodemetrópole vai além de características geográficas, englobando também conceitos sociológicos.Segundo Azevedo (2006), as metrópoles são aglomerações urbanas que exigem umcomportamentoespecíficodequemashabita,sendoainda“hipertrofiadas”(AZEVEDO,2006.P.7).

Dado o grande número de pessoas habitantes de umametrópole, as relações sociais adquiremdiferentes significações em relação às cidades pequenas. Ao habitar uma grande cidade comcaráter metropolitano, o sujeito está predisposto a se relacionar com um grande número depessoas,queassimcomoele,interagemoradeformadespretensiosa,oradeformacalculada.

Porém, devido ao número de interações sociais ser elevado, começam a surgir efeitos noindivíduo, que se vê cercado de estímulos e de opiniões e tendo que lidar com todas elas. Oresultadoimediatoéignorarpartedetaisestímulos.Estaremumacidadegrandefazcomqueoindivíduo esqueça sua necessidade de viver em comunidade, seu senso de vida comum. Surgeentão a ideia demultidão, de aglomeração, havendo o apagamento do indivíduo quanto a suaexistênciaemsi,passandoaconformarcomopartedeumtodomaiorqueele.

Nametrópoletransvertem-se,quera fisionomia,quera fisiologiaurbanas.Omarcante ali é amultidão, o choc emmeio a refrega do tráfego.Namoçãomultitudinária,asindividualidadessedissolvemnaviscidezdofluxohumano,eas personalidades são diluídas no manadio ruidoso, embora calado, dosdeslocamentos.(AZEVEDO,2006.P.12).

Simmel(2005)em“Asgrandescidadeseavidadoespírito”dizrespeitoàpretensãodoindivíduodeacharquesupostamentepodeserdiferentedamultidão,ecomoeleécapazdeapostarnasuadiferenciaçãoparasedestacar,mesmoqueemvão.Aindasegundoele,éa“intensificaçãodavidanervosa” que faz com que as individualidades deixem de existir. Para Simmel, o que move ametrópole é a razão, e isso acaba tornando as pessoas mais indiferentes com relação a suasindividualidades.

O que regula a vida moderna são os números e a contabilidade.Nesse âmbito, tudo torna-sepassíveldesercalculadoenumerado,deixandoasrelaçõescadavezmaisobjetivas.AeconomiaégeradoradeumaobjetividadequeSimmelclassificacomo“impiedosa”,seguindoalógicadequetudoetodossãoprodutosmonetários.Essaperspectivatornaasrelaçõeshumanasesociaiscadavezmaiscoisificadas.Essalógicaperpassaoâmbitodavidaeconômicaeatingeosindivíduosemsuas camadasmais sensíveis, numa tentativa de excluir todo e qualquer estímulo irracional ouimpulsivo.

Assim,atécnicadavidanacidadegrandenãoéconcebívelsemquetodasasatividades e relações mútuas tenham sido ordenadas em um esquematemporalfixoesupra-subjetivo.(SIMMEL,2005.P.580).

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Na cidade, o tempo émarcado por uma “impessoalidade rígida” (AZEVEDO, 2006. P.11), comohoráriosdetrens,aberturaeencerramentodocomércio,compromissos,etc.Issogeradiferentesformasdepercepçãoeapreensãodo tempo, sendoquenascidadesgrandes,adependênciadefatores externos a si está diretamente relacionada a uma lógica urbana, atrelada quase queexclusivamente a fatores inerentes ao meio urbano. Deixa-se de lado questões referentes àprópria natureza do indivíduo; ao contrário das pequenas cidades e do campo, onde aproximidadecomomeioambientenaturalfazcomqueosindivíduosencaremasimesmoscomoo fazememrelaçãoaosdiversosciclosdevidaqueoscercam.

Simmel (2005) considera que o fenômeno que mais caracteriza o modo de vida urbano dasgrandesmetrópolessejaoestadoblasé,quesetratadeumasupostaapatiadecorrentedafaltadereaçãoperanteograndenúmerodeestímulosaosquaisoindividuometropolitanoestádisposto.Ocaráterblasénãoconsistenanãoreaçãodiantedosmúltiplosfatos,esim,emumalógicaquebeiraaauto-defesa,etrata-sedereagir,porémdemaneirasuperficialerasa.

Visto que os estímulos produzidos pelas grandes cidades são muitos, torna-se impraticável edeveras dificultoso, reagir a todos com grande grau de profundidade e complexidade. Nessesentido,aatitudeblasélevaoindivíduoareagirapenasonecessárioparaquesejacompreendido.Mashá tambémquese levaremconta,quenemtodososestímulos sãoofertadospelacidade,sendoquemuitasvezeselessãobuscadospelopróprioindivíduo,gerandoentão,novosestímulos,aosquaistambémnãoépossívelreagircomgrandeprofundidade,vistoquejánãosesabe,ounãoseépossívelrealizartalmanobrapsicológica.

Assim como uma vida desmedida de prazeres tornablasé, porque excita osnervospormuitotempoemsuasreaçõesmaisfortes,atéqueporfimelesnãopossuemmaisnenhumareação,tambémasimpressõesinofensivas,mediantea rapidez e antagonismode suamudança, forçamosnervos a respostas tãoviolentas,irrompemdemodotãobrutaldelápracá,queextraemdosnervossuaúltimareservadeforçase,comoelespermanecemnomesmomeio,nãotêmtempodeacumularumanova.(SIMMEL,2005.P.581).

Vale destacar que não se trata das coisas e eventos passarem despercebidos, mas torna-sedificultoso distinguir e dar o devido valor a cada elemento diante do estímulo. Outro fatorimportante para contribuir com essa nivelação apática é a circulação de dinheiro, que semprebuscaumaequivalênciaeumamonetarizaçãodascoisas,dandopreçosevaloresaoquemuitasvezes não é corretamente traduzido nem passível de ter preço. Partindo disso, tudo se tornaniveláveldeacordocomseupreçoesuaequivalênciamonetária.

Ao se adaptar ao caráter blasé o indivíduo passa a ter suas reações nervosas quase quecongeladas,acabandopordesvalorizaroqueháasuavolta,equeporconsequência,desvalorizaasimesmo.

Ametrópoleétomada,pois,comoositusabstratodaabstração.Seaangústiaeotédiotransudamdaindeterminaçãonadificadoradonada,éláquetudosedissolve, fundindo-se no fluxo dos eventos: o eu [...] está solitário emambientediferente.(AZEVEDO,2006.P.17).

Ao se relacionar com outros indivíduos dentro de uma cidade grande, os mesmo tendem atransferirapráticadocaráterblasé traduzindo-aparaumareserva(SIMMEL,2005.P.582).Seonúmerodecontatoseconexões fosserefletidoemsuadevidaprofundidade,haveriaexaustãoeesgotamentodoindivíduo.Age-seentão,deformareservada,nosentidoderesguardarosreflexospara quando forem necessários. Têm-se, pois, indivíduos isolados em seus conteúdos, porém

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completamentecercadosdeestímulosedeumaampla rededecontatos.Paraoshabitantesdecidadespequenas, tal atitudepodeparecer fria e indiferente, como se as afliçõesdooutronãotivessemimportância.Decertomodo,elasnãopodemter,poisreagindoatodasasinfluênciaserelações,haveriaumesgotamentomental.

Essasrelaçõesinterpessoaissoamcomoindiferentes,porémsãonecessáriaseresultantesdeumprocessoquenãoéraso.Nãosetratadenãopossuirreaçãodiantedoestímulohumano,massimde filtrareprocessaroconteúdode formaquenãosejaprejudicialenemtampouco inaceitávelsocialmente,dentrodeumconjuntodemaneiras impostaspeloconvícioemsociedade.Trata-sedeummecanismodeproteção.

Destaforma,paraquehajaessemecanismodereserva,asrelaçõessãoforçadamentediminutaserestritas.Conhecem-semuitaspessoas,porémorelacionamentodefatoedemodomaisprofundose dá com poucas. São com essas pessoas pertencentes a esse grupo restrito e próximo que épossível afrouxar os vãos da peneira mental e emocional. Sabe-se que em contrapartida nascidadesmenores,essaaberturaémenospossível,poisaoentraremcontatocommuitaspessoas,edevidoàproximidadeespacialeemocionalqueseadquirecomelas, suadensidade relacionalacaba por diminuir. As relações e encontros entre pessoas tornam-se cada vez mais breves eespaçados,umavezqueadquirirlaçosemocionaistorna-seumprocessomuitasvezesdolorosoequequebracomosentidodereserva.

Quantomenoréotalcírculoqueformaaonossomeio,quantomaislimitadasas relações que dissolvem os limites perante os outros, com tanto maisinquietude ele vigia as realizações, a condução da vida e a mentalidade doindivíduo[...].(SIMMEL,2005.P.584).

Háaindaquesenotaradiferençaentreproximidade físicaeespiritual.SegundoSimmel (2005),falta de distanciamento físico não está relacionado com a proximidade espiritual entre osindivíduos, pelo contrário, nesse caso, habitar as grandes cidades inclui distanciar-seespiritualmentedaspessoas.Essecenáriogeraumestadodesolidãonaspessoas.

[...] em nenhum lugar alguém se sente tão solitário e abandonado comoprecisamentenamultidãodacidadegrande;poisaqui,comosempre,nãoédemodoalgumnecessárioquealiberdadedoserhumanosereflitaemsuavidasentimentalcomoumsentir-sebem.(SIMMEL,2005.P.585).

É possível observar que a funcionalidade metropolitana vai além dos limites geográficos,reverberandoseussentidossobreseuspróprioshabitantes.Amudançadefunçõesdeumacidadetem relação direta com as transformações funcionais que os indivíduos sofrem dentro dela. Elevando em conta as especializações e aomesmo tempo, amultiplicidade funcional de grandescentrosmetropolitanos,épossívelquenelesnasçamindivíduosextremamenteespecializados,aomesmo tempo em que surgem seres completamente multifuncionais. É a diferenciação e orefinamentoquefazcomoindivíduoganhedestaquedentrodamassaprodutivaurbana.

Aconsequênciadetalespecializaçãoéaindividualização.Torna-secadavezmaisdifícilsedestacare fazer valer a sua individualidade, fazendo com que o homem se prenda fortemente a umaparticularização a fimde ganhar algumênfase em círculo social (já restrito). Essabuscapor umevidênciaacontecenosentidodepreenchereelevaraautoestima.

Simmel (2005) trabalha com a relação de predominância do espírito objetivo sobre o espíritosubjetivo.Paraele,oespíritoobjetivoestariaatreladoaumconhecimentodascoisasdomundo,enquantooespíritosubjetivoaoconhecimentodoindivíduo.Nacidademodernaecomoavanço

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degrandesdesenvolvimentostecnológicoseculturais,oindivíduosevoltaparafora,deixandoemsegundoplano as análises de conhecimento próprio, e que levariama umprogresso interno.Oindivíduonãoéestimuladoaolharparasimesmo,massimparaosoutrosepara tudoqueporeleséfeito.

Nessesentido,segue-seaideiadequeavidacomoatividadesocialerelacionadaàutilizaçãodoespaço torna-se muito mais fácil, pois as situações de imposição de vontades pessoais ficamprejudicadas em detrimento das várias correntes externas. Por outro lado, a impessoalidadedominagrandepartedosvínculos,gerandoumanecessidadedeserparticularizado.

[...] as cidades grandes obtêm um lugar absolutamente único, prenhe designificações ilimitadas, no desenvolvimento da existência anímica; elas semostram como uma daquelas grandes formações históricas em que ascorrentesopostasquecircunscrevemavidasejuntamesedesdobramcomosmesmodireitos.(SIMMEL,2005.P.589).

Azevedo(2006)levantaumaquestãosobrearelaçãoentreaspalavras“hábito”e“habitante”,quepossuemomesmoradicalequeestãoatreladasaofatodequehabitarumdeterminadolocaldizrespeitoasehabituaraele,eamanterhábitoserotinasnesseambiente.Oqueacontecenocasodasmetrópoles,équeessarelaçãopassaaserestritamentegramatical,ehabitaracidadegrandenãopermitequesejamtraçadaslinhasdehábitoserotinas.

ENRAIZAMENTOEDESENRAIZAMENTO

NacidadedeSãoPaulo,oprocessodeindustrializaçãonoiníciodoséculoXX,aliadoachegadadeimigrantesquenãoeramdaeliteculturalemseuspaísesdeorigemcontribuíramparaaformaçãoda massa populacional paulistana. Esta teve uma constituição dividida pela duplicidade deinformações e formações, dando início a uma camada social culturalmente complexa, queenquantosentiasaudadedesuaterra,tambémbuscavaestabelecernovosvínculosemSãoPaulo.(MARTINS,2004).

EssessãoextremosdasmigraçõesparaaCapital,quesedesenhamquandoacidadedeixadeseroalternativoparasetornaroinevitável.Épormeiodelesque sepode compreenderomundode significados, de ganhoseperdas, deinvenções e supressões, que fazem de São Paulo um desembocar de Brasil.(MARTINS,2004.P.179).

AcidadedeSãoPaulotevegrandeinfluênciadeoutrasculturas,fossemelasbrasileirasdeoutrasregiões do país ou de outros países, e sempre agregou em sua massa populacional as maisvariadas culturas e, portanto, deveria compreender essamistura como elemento somatório devalores e significados, entendendo e aceitando os diversos públicos que a compôs. Porém,segundoPaolieDuarte(2004:99),SãoPaulopodetererradoaodesconhecersuaprópriamedida,tornando-se uma caricatura de si mesma, deixando evidente um crescimento desordenado edesigual,gerandoum“desperdíciodesuapluralidade”.

As buscas por desenvolvimentos de vínculos e de relações sociais eram muito fortes ecaracterísticasdehabitantesdegrandescidadesquehaviampassadoporumprocessomigratório.Muitos dos imigrantes que deixavam seus países de origem o faziam em busca de melhorescondiçõesdevida,enessesentido,deixavammuitacoisaepessoasparatrás.

NoprocessodeconformaçãodascamadaspopularesemSãoPaulodestaca-setambémumafiguramuito peculiar e recorrente: a do caipira. O termo caipira geralmente era usado de maneira

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pejorativaereferia-seapessoasquevinhamdointeriordoestadoedopaís,origináriosderegiõesdeculturaagrícolaeque, indoparaacapital, tinhamgrandesignificadonaconstituiçãopopularurbana.Assimcomoosimigranteseuropeusquesedeslocavamdeseuspaíses,oscaipirassaíamde suas regiões de origem, e por não possuírem grande conhecimento de norma culta e comcostumes relacionadosao campo,eramdiscriminadose simbolicamente relacionadosaoatraso.(YATSUDA,1992).

Com base em pensamentos da grande cidade voltados para o progresso e a industrialização, afigura do caipira aparece como um contraponto, representando alguém que vinha de ummeiocompletamentecontrárioaodesenvolvimentoindustrialdasmáquinas.Mesmoduranteperíodosde busca por ideais e heróis nacionais, como no Romantismo, essa relação se dá muito maisfortemente com a imagem do indígena do que com o caipira. Yatsuda (1992) observa que aimagemdocaipiraestavarelacionadacomocampo,ligadaaumaideiadeatrasoederesistência,comoumfatordeentravenodesenvolvimentodametrópole.

Masessesentimentodefaltadelaçosestárelacionadonãoapenasaosimigrantes,mastambémcomtodososhabitantesdemetrópolesdeformageral.Omovimentodedesenvolvimentodeumametrópole não é, por suposto, estático, nem ao menos lento. Embora esteja diretamenterelacionado com questões de caráter financeiro e político, e essas conformando variáveisextremamenterelevantes,amaneiracomoumacidadedegrandeportemodifica-seaolongodotempoéacelerada.

A emergência das grandes metrópoles e seu vórtice de efeitosdesorientadores,suasmúltiplasfacesincongruentes,seusritmosdesconexos,sua escala extra-humana e seu tempo e espaço fragmentários, suaconcentraçãode tensões,dissiparamasbasesdeumaculturade referênciasestáveisecontínuas.(SEVCENKO,1992.P.32).

Seguindo uma tendência metropolitana de rapidez e fluidez, torna-se difícil estabelecer raízesenquanto tudo está emmovimento e quanto o tempo corre tão acelerado. Habitar as grandescidadespressupõeumgraudedesapegodoindivíduoparacomseuslaçosesuasraízes,alémdeforçá-loaseadaptaracondiçõesdeextremarigidezimpostasaele.Nessesentidoeleacabaporcriar proteções contra as correntes de mudanças que passam a seu redor, continuamente(SIMMEL,2006).

SobreodesenvolvimentoaceleradoenadahomogêneodacidadedeSãoPaulo,Sevcenko(1992)discorresobreadificuldadedeseushabitantesemseorientarememumespaçoemconstantesmudanças,eporconsequência,orientarem-secomoindivíduos.Adiversidadeespacialefuncionaldeumametrópolenãoauxiliaosujeitonemnabuscapor identificaçõesexternasaele,nememestabelecerrelaçõesinternas.

APLURALIDADEDELEITURASEABOSSANOVA

QuandoSãoPaulo seassumee sevêcomometrópole,nãoémaispossívelenxergarosaresdopassado, e um futuro promissor e objetivo era largamente vislumbrado. A ideia metropolitanaestavadiretamenterelacionadaàdenovidadesetransformações.

A cidade de São Paulo, como tantas outras metrópoles, era o território propício para odesenvolvimentoculturaldeváriasmodalidadesartísticas,fossemelaseruditasoupopulares.Issodeu-se devido ao fato de a própria condiçãometropolitana, abastecida de um grande fluxo de

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informaçõesesituaçõesinerenteseexclusivasdosambientesdasgrandescidadesseremcapazesdegerar.

É importante notar como a cidade de São Paulo orgulhava-se de ter adquirido tal carátermetropolitano, mesmo que este orgulho tenha sido forjado e construído na mentalidadepaulistana. As inúmeras construções e obras davam mais estímulo a este pensamento, e osentimentodecorrentedeleeraextremamentecarregadodeeuforiaeufanismo,ecomodescreveMoraes(2000):

Ao mesmo tempo nota-se como gradativamente foram se desentranhandodesse cotidiano efervescente e turbulento as noções inventadas de “SãoPaulo,acidadequenãopara”oude“cidadedofuturo”,nasquaispresenteefuturoconfundem-sepermanentemente(MORAES,2000.P.133).

Devidoagrandepluralidadeculturaldacidade,eradifícil identificaremmeioa todaamultidãouma identidade cultural clara e específica para São Paulo, visto que a própria metrópoledesestabilizaabuscadisso.Justamenteporcontadessecaráterplural,queagregava,segregavaemisturava ufanismo com grandes desigualdades sociais que a identidade cultural paulistanaaparecedemaneiraturvaemultifacetada.

Em nenhum lugar, a urbanização e o crescimento industrial atingiram talcompletude, o que lhe facultou alcançar-se à condição de metrópole. Aomesmotempo,asdiferentescorrentesmigratóriaslheshaviamimprimidoumar cosmopolita; inseridas na dinâmica econômica alteravam a estratificaçãosocial,expandindoediversificandoaocupaçãodoespaçodeque resultaramformasrenovadasdesociabilidade(ARRUDA,2001.P.20-21).

As periferias da cidade traziam características rurais, e de certa forma, até bucólicas, compequenas propriedades que funcionavam como chácaras e sítios, e davam a cidade, como dizMoraes(2000),“múltiplastemporalidades”.OfrancêsClaudeLevi-Straussproduziuumasériedefotosqueretratamcertasincoerênciaseaconvivênciadessasdiversastemporalidades.

EssafaltadecoerêncianodesenvolvimentourbanoqueelevouacidadedeSãoPauloaostatusdemetrópoletememsuaorigemumpassadonãomuitodistanteenraizadoemtradiçõescoloniaisediretamenteligadoàproduçãoagrícola.Amodernidadequesurgianãoeracapazdecumprirtodasas suas virtuosas promessas deobjetivação e de liberdadedos homens, pois tais característicasdeveriam,antesdetudo,serobjetivodoshomensdeSãoPaulo.

Arruda (2001) declara ainda que fatores como o golpe militar de 1964, seguido dos rigorososrumos tomados pela posterior ditadura militar, foram exemplos de como a modernidade asavessasqueacontecianos trópicos tendia a caminharde forma sofrida. Enquanto isso, umpaísque sevia fadadoaomoderno forjavanos seusmonumentosdeexaltaçãodaarquiteturaedasculturasmodernas,alvosdeadoraçãoebuscadenovassignificações.

Ao longo dos anos de 1960 a cidade de São Paulo e o Brasil passaram por ummovimento demodernização tambémdasmídias de comunicaçãoemmassa, e o adventoda televisãoeraummovimento inevitável. Com os investimentos que antes eram exclusivos das rádios e de seusartistasmigrandopara as televisões,Adoniran e tantosoutros queobtiveram famanos temposáureosdorádio,encontraram-seamercêdeescassosprogramasquenãopossuíammaistodooglamourdeantigamente.Eapósumgrandeperíododericaproduçãonosanos1950,Adoniranetantos outros veteranos se viram “trocados” pelos novos fenômenos dos anos 1960: a JovemGuardaeaBossaNova.

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SegundoPastaJunior(2011),oprocessodemodernizaçãobrasileiro–enessepontoacidadedeSão Paulo não está sozinha – esteve sempre dentro de um método conservador, onde asmudanças com olhar voltado para o futuro fizeram-se em função do atraso, e não através desuperá-lo. Dada essa visão, pode-se compreender a pluralidade de sentidos, baseada em uma“experiênciadúplice,naqualsecruzam,emquiasmo,osentimentodemudançaavassaladoraeoderenitênciadopassado.”(PASTA,2011.P.62).

Nos trilhos da modernização a Bossa Nova, que sempre é ligada a uma imagem de produçãocarioca, seria talvez a musicalidade da modernidade brasileira. Ela assim como outrasmanifestaçõesculturaismostradasatravésdaarquitetura,literatura,entreoutras,demonstravaaprodução de uma elite brasileira. Não se tratava, de uma elite financeira ou oriunda de umaaristocraciarural,massimdeumaelitecultural.

Essa imagem cultural moderna trazia para os brasileiros e levava para o mundo não mais – esomente -a figuradeumpaísexótico, com“coqueirosquedãococo”e“ fontesmurmurantes”ondesemataasedeenquantosevêcercadosdemulatos.Tinha-seaideia,comaBossaNova,daclasse média carioca, que dentro de seus apartamentos projetados por Oscar Niemeyer,compunhamsuascanções,olhandoparaaorladapraia,comprojetoe jardinsdeRobertoBurleMarx (MAMMI, 2000). Amudança de ponto de vista dos compositores da imagemnacional fezcomqueopaísnãofosseapenasumcenárioexótico,mastambémmodernoebemprojetadoquetransmiteuma“ascensãosemesforço”(MAMMI,2000.P.6).

Por um brevemomento encarnou a esperança de umamodernidade leve –lúcidaeeficientecomoumdribledePelé,naturalecultacomoumjardimdeBurleMarx,exataesoltacomoumamelodiadeBossaNova.(MAMMI,2000.P.8).

A modernidade da Bossa Nova era a mesma da arquitetura moderna brasileira, que teve emBrasília sua figuramaisemblemática.Tambémeraamesma instauradapor JuscelinoKubitschek(GARCIA,2012),quevianodesenvolvimentismoaceleradodos“cinquentaanosemcinco”achavepara a modernização de um país. Era o país do crescimento urbano, do consumo de grandesmarcasedeestilosdevidaimportados,nãosomentedaEuropaedeParis,masagoratambémdosEstados Unidos. O cinema por exemplo, trazia consigo a ideia de fluidez e rapidez visual, tãoimportanteparaosjovensmodernos,mesmoquefuncionandocomo“umcatalisadormaismoraldoqueartístico”(MORSE,1970.P.277).EassimeratambémnaSãoPaulode1954,doParquedoIbirapuera, com suas curvas projetadas porOscarNiemeyer, dentro de uma cidade que cresciaaceleradamente,levantadaporsuaforteindústria.

“SEM-DUVIDAMENTE”DEADONIRAN:AFALAQUEFOGEDANORMACULTA

Percebe-senodiscursodeAdoniran,bemcomodeoutroscontemporâneos,compositoresounão,o surgimento de um ideário de “paulistanismo” (ROCHA, 2002. P. 24), carregado deespecificidades,trejeitosesonscaracterísticossoboviésdascamadaspopularesnametrópole,eno caso do autor estudado, carregado ainda com influências ítalo-brasileiras. Segundo Matos(2007)oatodecaminharapépelacidadetantodediacomoanoite,conversarcomaspessoas,aproximar-sedelas,ouvi-las,eficaratentoassuashistóriasetrejeitosfoiamaneiraqueAdoniranencontrouparabuscarinspiraçãoparasuascançõeseprosas.

Durante a elaboração do primeiro LP em 1974, duas canções de Adoniran foram barradas pelacensuradogovernomilitar,sendoumadelas“SambadoArnesto”,justamenteporcontermuitos

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erros de português. Como se não bastasse, os censores sugeriram que o compositor fosseencaminhadoparao“Mobral”–MovimentoBrasileirodeAlfabetização(CAMPOSJUNIOR,2010.P.480).AcançãoacabounãosendoliberadaparaestarpresentenoprimeiroLP,masnosegundodiscoelajáapareceuliberadapelacensura.

Ousodalinguagempopular,quenadamaiseradoqueapróprialinguagemdeAdoniran,atravésdacriaçãodeverbetesealteraçãodepalavras(muitosdelesporinfluênciasdeoutraslínguas),eraa maneira encontrada por ele de se aproximar de seus ouvintes, descendentes ou não deimigrantes,tãocomunsembairrosindustriaisdeSãoPaulo.

Sambaitaliano(AdoniranBarbosa-1965)

"Gioconda,piccinamia,/Vabrincarenilmareenilfondo,/Masatencionepertubarone,ouvisto?/Haicapito,mioSanBenedito?"./Piove,piove,/Fatempochepiovequa,Gigi,/E io,sempreio,/Sottolatuafinestra/Evoisenzamesentire/Ridere,ridere,ridere/Diquestoinfelicequi/Tiricordi,Gioconda,/DiquellaseraenGuarujá/Quando ilmareteportavavia/Emechiamaste:"Aiuto,Marcello!/LatuaGiocondahapauradiquest'onda"

Nãoocasionalmente, seu jeitoespecíficode falar,muitocaracterísticodeumacamadasocialdeSão Paulo traz por si só diversas interpretações possíveis. Adoniran foi criticado por utilizar-sedessalinguagem,porém,eleignoravaascríticasediziaqueassimofaziaporjulgarumaformadeseaproximardopovo,alémdeacharmaisbonito.

Sófaçosambaprapovo.Porissofaçoletrascomerrosdeportuguês,porqueéassimqueopovofala.Alémdisso,achoqueosambaassimficamaisbonitodesecantar.(BARBOSA,apudVITTI,2014).

AdoniranBarbosaeoutrosartistas, comoAparícioTorelly,BastosTigre,AdemarCasé,AriovaldoPires,NoelRosa,LamartineBabo,entretantosoutros,traziamàsrádiosbrasileiras,graçasassuashabilidades verbais e de humoristas, composições e textos, sons e palavras que deixavamevidentesostrejeitosdafala ítalo-caipira,queseriamintraduzíveisna linguagemescrita,atravésde músicas com sotaque “macarrônico”, sempre deixando clara a instabilidade, a mistura e ohibridismoculturaldametrópole,expressomuitasvezesemumexageroparódico.

CONFORMISMO,RESIGNAÇÃOOURESISTÊNCIA

O constante processo de modernização plural manifestado musicalmente por uma enormevariedadedeartistas,contavacomosgrandesrecursosgramaticaisemusicaisapresentadospelaBossa Nova, mas abrangia também características mais simplórias, manifestadas em canções eprosas de Adoniran Barbosa e tantos outros intérpretes. Nas músicas de Adoniran é possívelencontraroutraimagemdasruasdacapital,diferentedaimagemdoprogressoaceitoecantado.

A cidade que Adoniran narrava passava por muitos problemas decorrentes do progresso e dodesenvolvimentourbano.Dentrodestecenário tambémhaviaespaçoparaadenúnciaeparaostemasligadosaotrabalhoeàhabitação,destacadosemcançõescomo“SaudosaMaloca”de1955,“AbrigodeVagabundo”datadode1959,entretantasoutras.

Suas composições, tanto musicadas como as radiopeças, apresentam um discurso não tãoufanista, mostrando as contrariedades decorrentes do intenso processo de modernização dacidade, bem como suas consequências, vinculadas por um discurso muitas vezes tragicômico,

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fazendousodeumaestratégiaquecolocaaprópriamodernidadeemquestãoechegaapolemizarodiscursodacidadedoprogresso.

Adoniranpassouacomporotextoeastramasdestapersonagemedeoutrosqueelerecortoudamultidãoedasruasdametrópole,recriandosuaverdadena arquitetura deste espaço em transformação, onde circulam negros,imigrantes italianose retirantesvindosdeoutrosestados,numapolifoniadevozes, expressão das mais diversas heranças culturais, de onde nos pareceemergirasíntesedesuaobra(ROCHA,2002.P.38).

Pode-se notar também, em algumas composições um pensamento conformista da situação emqueoautorseencontra.Quandodiz,em“SaudosaMaloca”,queseconformacomasituação,eque quem expulsa as personagens da moradia tem razão em fazê-lo, deixa claro umposicionamentodequemaceitaoqueacontece,enãoaparentasemobilizarparatransformaroquecausa,nocasodamúsica,tantatristezaedesconforto.

PorémocantorJoãoGilberto,emumshowrealizadoem20deagostode2000,noCredicardHallemSãoPauloenquantointerpretavaacançãosaudosaMalocaacabafazendocomentáriossobreaprópria letra da música. A plateia cantava a música junto com ele em um grande coro. Nessemomento João Gilberto questiona se todos estavam compreendendo de fato o que Adoniranqueriadizer,edestacao trecho“[...]E fumuspromeioda rua /Apreciáademolição[...]”. EntãoJoãoGilberto questiona comoalguém seria capaz de apreciar a demolição da própriamoradia?(GARCIA, 2012) Nesse sentido, o ato de apreciar envolve admiração, e seria quase impossíveladmirarademoliçãodaprópriacasa!

O conformismo torna-se a primeira impressão que se tem de certas canções quando se atentapara expressões como “Só se conformemo” (Saudosa maloca, 1951); “Paciência, Iracema/Paciência” (Iracema, 1956); ou ainda em “Não tem nada não, seu doutor/ Não tem nada não”(Despejona favela, 1969).Nesses trechos e tantosoutros, há a ideia deque se conformar e seacostumarcomasituaçãoimpostaéamelhoreúnicasolução.

Porém, umaoutra visão pode alterar esse quadro lança-se aqui comohipótese para umaoutraleitura.Trata-sedo trabalhode JoséPauloPaes (1985),ondeécolocadoumpontodevistaquetrataAdoniranBarbosacomoumcidadãoque,decertaforma,segueasleis,equeporisso,aosever diante das fatalidades, compreende que estar a favor delas talvez seja a melhor forma decontinuarvivendoeresistindo.

Aanálisevaimaisafundoemostraqueoquehánaverdade,éoorgulhodeseguirasleiseagircomdignidadedentrodamáquinadoprogresso,ondeavisãodeconstruiraprópriacasa(Abrigodevagabundo,1958)seriamotivodeorgulho,poisestaseriafrutodoprópriotrabalho.

[...]AdoniranBarbosaconseguiuexprimir,comlapidarpertinência,emalgunsdos seus melhores sambas, foi o anseio de dignidade humana que leva otrabalhador a orgulhar-se do seu trabalho, ainda que injustamenteremunerado;aerguercomasprópriasmãosumacasaprasieparaosseus,mesmoqueelanãopassedeumamaloca;abuscarnasinstituiçõeslegais,pordiscriminatórias ou corrompidas que sejam, uma forma qualquer desegurança.(PAES,1985.P.263).

Paes (1985) ainda traça um contraponto temporal entre as cidades de São Paulo e o Rio deJaneiro,ondenaprimeirasempreestevevinculadaaideiadetrabalhoede“locomotiva”doBrasil;jánasegunda,sempresetrouxeaideiadeparaísotropicalturístico.Independentedaveracidadeda fama das duas capitais, estar em São Paulo na década em que a cidade se tornou amaior

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metrópole do país, é de certa forma, fazer parte dela. E para Adoniran, isso seria motivo deorgulho.

Vale ressaltar, que segundo a biografia (CAMPOS JUNIOR, 2010) e depoimentos do próprioAdoniran, ele não eramuito adepto a “filosofia do trabalho”. Porém ele se sentia no papel derepresentarquemoera,eportanto,faziadesuascançõesmeioparadisseminaresseorgulhodesertrabalhadordametrópoleequeauxiliouaconstruí-la,fisicamente,ouculturalmente.

APRAÇADASÉEASRELAÇÕESCOMACIDADE

PraçadaSé(AdoniranBarbosa-1978)

Praça da Sé / Praça da Sé / Hoje você é / Madame Estação Sé / Quem teconheceu/Háalgunsanosatrás/Comoeuteconheci/Nãoteconhecemais/Nemvaiconseguir/Tereconhecer/Sehojepassaporaqui/Alguémque jáfaz/Algumtempoquenãotevê/Poucacoisatemquecontar/Poucacoisatemquedizer /Vai pensarqueestá sonhando / Énatural /Nunca viu coisaigual/Quasequenãotemmaisnada/Nemorelógioquemarcavaashoras/Pros namorados / Encontrar com as namoradas / Da nossa Praça da Sé deoutrora /Nemovelhobonde /Dindindindindindin /Nemo condutor /DoispraLighteumpramim/Nemojornaleiro/Provocandoomotorneiro/Nemos engraxate / Jogando caixeta o dia inteiro / Era uma gostosura / Ver oscamelô/Correrdofiscaldaprefeitura/Éoprogresso/Éoprogresso/Mudoutudo/Mudouatéoclima/Vocêestábonitaporbaixo/Só indo lápraver/Masnãovásozinho,/Meusenhor/Queosenhorvaiseperder/PraçadaSé/PraçadaSé/Hojevocêé/MadameEstaçãoSé

A Praça da Sé esteve cercada durante seis anos para a realização de obras de remodelação,enquantoisso,todosseusantigosfrequentadoresepassantesacompanhavamapreensivosoquepoderiasurgirnoespaçoquerecebeuoMarcoZerodacidadeem1934,anotambémdeiníciodasobras de remodelação da Catedral. Tratavam-se das obras de construção do metrô, as quaismovimentaram cerca de 380milmetros cúbicos de terra no local, e foi utilizadomais concretoarmadodoquena construçãodoMaracanã,e aobra também foi chamadade “Itaipuurbana”(CAMPOS JUNIOR, 2010, p. 509). Entre todos os curiosos sobre as obras de reforma, estavaAdoniranBarbosa,umfrequentadorassíduodocentrodacidadeedaPraçadaSé.

AestaçãodometrôdaPraçadaSéetodocomplexometroviáriodeSãoPaulochegaramàcidadetardiamente se comparado a outras cidades europeias. As obras de grande porte foram umaalternativa aogrande crescimentoda cidadee anecessidadede implantaçãodeumsistemadetransportepúblicoeficiente,enocasodasobrasdometrô,procurava-seaideiadeincorporaçãodeplanosdeurbanizaçãoeintegraçãourbana.

Oeventode inauguraçãodanovapraçacontoucomaparticipaçãodeAdoniranBarbosa,que jáhaviafeitosua“vistoria”nolugarantesdatãoaguardadaestreiadoespaço,em16defevereirode1978.EmumadeclaraçãoparaoJornaldaTardedomesmodia,Adonirandeclaravaestarfelizcomanovapraça,masquesentiriamuitasaudadedecomoeraantes:

Eufrequentavamuitoporaqui.Restaurantes,bilhares,namoradas,tudoaqui.Puxa vida, me dá uma saudade de uma porção de coisas que não existemmais.Eupassoesintoumnegócioemmim,nãodánempraexplicar.ApraçadaSéficoulinda,agoraelaémadame.Masquandoerameninapobreeramaisgostosoviraquieconversarcomela.(BARBOSA,1978,apudCAMPOSJUNIOR,2010.P.512).

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QuandoAdoniranBarbosacompõe“PraçadaSé”em1978,estavadeveras transtornadocomasmudançasquehaviamsidorealizadasemsuatãoqueridapraça.DaídizerqueaPraçaagoraera“madame”, cheia de requinte e beleza, e nesse sentido, o metrô fez com que a praça ficasse“bonitaporbaixo”.Sermadametambémpressupunhaumdistanciamento,quaseuma“ascensãosocial”, como uma amiga que ficoumais rica e esqueceu dos amigos pobres. Embora AdoniranreconhecesseabelezadanovaPraçadaSé,temianãosercapazdereconhecê-ladepoisdetantasmudanças,ealertavaàquelesqueficarammuitotemposemvê-la:“[...]Masnãovásozinho,meusenhor/Queosenhorvaiseperder[...]”.Adoniransentiafaltadorelógio,dobarulhodobonde,dosengraxates.Nãosetrataapenasdesentirfaltadeobjetosoudepessoas.

Quando ele relata na entrevista ao jornal que a praça antes da reforma era como uma amigapobre,comquemeramaisgostosoconversar,ficamevidentes,alémdaideiadepersonificaçãodolugar,arelaçãodeproximidadequeseestabelececomela.Vistoquefoitransformadaemumserhumano,eranaturalquefossemnutridossentimentoshumanosporela.

Não se trata de um sentimento de aversão ao que é novo, de não querer ou não aceitar asmudanças.Talveztrata-seantesdoreceiodenãosercapazdereagirpositivamenteàsalterações,de perder-se nomeio de todas elas. Supõe-se que omedo das transformações na cidade podeestar relacionado aomedo demudanças das pessoas e de simesmo, dentro de uma lógica deperdadereferências.

Talvezsejaaíestejaaorigemomedodonovoedodesconhecido:trata-sedoreceiodelemesmo–deAdoniranedetodosujeitoquehabitaametrópole-seresquecido.Encararqueacidadeestavaemtransformaçãoeradecertamaneira,aceitarqueasociedadetambémestava.Ecomquestõessociaismudando,ogostodaspessoaspelamúsicadeAdonirantambémpoderiamudar.

Oestranhamentoresultantedastransformaçõesteriaorigem,nocasodeAdoniran,nomedodeser esquecido e de não sermais aceito. A composição deAdoniran traduz umdesconforto quepossivelmente tem alcance coletivo, não sendo exclusivo dele. Esse sentimento de nãoreconhecimento do novo e de não ser plenamente de acordo com as novas propostas estáintimamente ligado ao fato de não se reconhecer como indivíduo nessas novas situações e de,portanto,nãosercapazdeenxergá-lascomolharesbondososepassivos.

Nomesmoperíododacomposiçãode“PraçadaSé”,Adonirantambémcompôsumamúsicaemhomenagem ao viaduto Santa Ifigênia. A obra arquitetônica metálica havia sido montada compeças trazidas da Bélgica, durante os anos de 1911 e 19135. Em meados da década de 1970corriam boatos pela cidade que tal viaduto iria ser desmanchado, o que obviamente nãoaconteceu,epelocontrário,oviadutofoireformado.

ViadutoSantaIfigênia(AdoniraBarbosa-1978)

Venhaver/Venhaver,Eugênia/Comoficoubonito/OViadutoSantaIfigênia/ Foi aqui que você nasceu / Foi aqui que você cresceu / Foi aqui que você

5 Muitas obras doperíodona cidade contavam compeças e projeto completamente europeus, comooViaduto SantaIfigênia,oViadutodoCháeaprópriaEstaçãodaLuz.Todosesseselementosdeorigemeuropeiadavamacapitalpaulistaares de uma cidade fora da Europa, além de parecer como uma grande colagem de estilos arquitetônicos. Astransformações e remodelações urbanas em São Paulo durante os anos 1920 eram, em sua maioria, conduzidas porprofissionaisestrangeiros,epossuíamcaracterísticasestéticascaracterísticaseusuaisdepaíseseuropeus.Muitoemborahouvesse a preocupação de transformar a cidade em umametrópole cosmopolita, não havia ainda, até omomento apreocupaçãodefosseumametrópolecosmopolita“brasileira”.Tudoeraimportadoeeracadavezmaisimportantefazeralgoimponenteegrandiosodoquefuncionalepráticoparaacidade.

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conheceu/Oseuprimeiroamor/Eumelembroqueumavezvocêmedisse/Que o dia que demolissem o viaduto / Que tristeza / Você usava luto /Arrumava suasmudanças / Iaemborapro interior /Quero ficarausente /Oqueosolhosnãoveem/Ocoraçãonãosente.

O que aparentemente é apenas uma canção sobre um ponto referencial dentro da paisagemurbana na cidade, guarda significados relativos à apreensão do lugar e uma ligação afetivanostálgicacomacidade.Noviadutomuitascoisasaconteceram,onascimento,odesenvolvimentoe os encontros. Tais situações e o sentimento de afeto agregado ao lugar faz com que apersonagemprefiradeixaracidadeparanãopresenciarofimdomarco.Nãosetrataapenasdeummarcoarquitetôniconacidade,masnavidadeindivíduosqueveemnelemuitomaisdoqueumsimplespontodereferênciaespacial.

ParaAdoniranasituaçãomudou,eelenãocaiunoesquecimentocomotemiaqueacontecesse.Pelo contrário, durante os anos de 1970, ele estava fazendomuitas apresentações pela capitalpaulista;edepoisdelongoperíodoquepassouesquecidopelacríticademúsica,elevoltaafazersucessoesuasmúsicas,outroragravadasemsuamaioriapelosDemôniosdaGaroa,agorafazemsucesso na sua própria voz rouca. No final da década de 1970 o artista foi contratado pelaSecretariadeEstadodaCultura,CiênciaeTecnologiaparaestrelarumprojetocultural intitulado“Música nos Parques”, onde interpretava seus grandes sucessos em áreas verdes públicas dacapital,comooJardimdaLuzeoParquedoMorumbi.(CAMPOSJUNIOR,2010).

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