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História natural das cidades PEDRO PAULO PIMENTA COLEÇÃO OUTRAS — PALAVRAS VOLUME 7

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História naturaldas cidades

PEDRO PAULO PIMENTA

COLEÇÃO OUTRAS — PALAVRASVOLUME 7

História naturaldas cidades

PEDRO PAULO PIMENTA

SUMÁRIO

A cidade elusivaModelos imagináriosHistória e destruiçãoOs museus e a história naturalEpílogo: uma utopia possível?P.S.: outra história naturalReferências bibliográficas Sobre o autor

041014 2429353840

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SOBRE ESSAS PEDRAS, EU LEIO OS SÉCULOS UM POUCO COMO OS FORASTEIROS NOS CÍRCULOS DOS TRONCOS CORTADOS LÊEM AS IDADES DAS ÁRVORES

Henri Lefebvre (1969)

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A CIDADE ELUSIVA

Sabemos que boa parte da literatura da Antiguidade perdeu-se ao longo dos séculos, restando apenas uma fração do que foi produzido por culturas extremamente vigorosas, nas quais os signos escritos (palavras, hieróglifos, sinais etc.), de início simples instrumentos técnico-administrativos, assumiram, a partir do século VIII a.C., um papel relevante nas mais diferentes esferas da vida cotidiana. Apesar da obliteração do legado literário greco-romano, temos uma boa amostragem no que se refere aos historiadores: um conjunto de textos que permite inferir com alguma segurança as características do gênero histórico, suas possibilidades estilísticas e seus imperativos morais.

Porém, são raras as descrições da organização física das poderosas cidades que protagonizam os eventos que esses autores notáveis narram e onde a maioria deles viveu. Omissão acompanhada por certo descaso pela descrição topográfica em geral, como atestam Geografia, do grego Estrabão (c. 63 a.C.-24 d.C.), uma obra mais atenta aos fatos que aos lugares; e Viagem, de seu compatriota Pausânias (c. 115-180), que é um catálogo etnográfico e não um guia turístico à maneira moderna. Os historiadores antigos não dedicam atenção às numerosas cidades do mundo mediterrâneo, que, em suas páginas, são meros suportes para ações, eventos e

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costumes, algo impensável em uma obra moderna de narrativa histórica. Como falar da Segunda Guerra Mundial, por exemplo, sem se referir às cidades obliteradas pelos bombardeios? Guernica, Londres, Varsóvia, Dresden, Hiroshima, Nagasaki, são, para nós, nomes de entidades dotadas de personalidade própria, formadas por populações culturalmente distintas, politicamente diferenciadas, que em nada lembram os conglomerados indiferentes cercados por muros que os generais antigos invadiam e, dependendo das circunstâncias ou do capricho, poupavam, submetendo à servidão, ou saqueavam e destruíam. Quase tudo que sabemos das cidades antigas vem de sua preservação parcial fortuita ao longo dos séculos e de escavações arqueológicas realizadas a partir do século XIX. Já a memória das cidades contemporâneas, que progridem, crescem e se transformam por meio da destruição do próprio passado, está registrada nas artes e na literatura.

A ideia de que uma cidade pode ser projetada no espaço neutro da geometria, cartografada, lida e interpretada, não é, portanto, natural. O caso de Roma, cidade das cidades, é um bom exemplo. Essa república situada à beira do Mediterrâneo nunca foi objeto, na Antiguidade, de urbanização planificada. As sucessivas melhorias, introduzidas nos primeiros séculos de sua existência, mas principalmente na época imperial a partir da ditadura de Júlio César, se deram à revelia do que

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hoje chamaríamos de projeto de urbanização. Roma passou por grandes transformações desde sua fundação, no século V a.C., até sua destruição quase mil anos depois.

De aldeia, tornou-se a capital do mundo antigo, centro do poder político e da atividade comercial para o qual afluíram milhares de pessoas, oriundas de províncias europeias, africanas e asiáticas. As necessidades de seus habitantes se transformaram, e se muitas delas puderam ser acomodadas por meio de medidas de eficácia variável (a distribuição de água potável conta entre as maravilhas da engenharia romana; a coleta de lixo, não), a verdade é que uma série de mazelas que afligem seres humanos quando vivem próximos uns dos outros permaneceu sem solução.

Um Estado comercial, como observou Adam Smith em A riqueza das nações (1776), deve contar com uma força militar permanente para se defender da agressão de potências rivais. O caso de Roma ilustra essa máxima à perfeição. De início uma cidade-estado, logo se tornou uma república expansionista, adquirindo por fim os contornos de um vasto império, cujas fronteiras eram guardadas com zelo por legiões bem treinadas e destemidas. Além da cidade de Roma, havia muitos outros centros urbanos de importância, como Alexandria, Antioquia, Cartago, Éfeso e Marselha. Foi sobretudo em centros como esses que se fizeram sentir os efeitos das pestes, fenômeno particularmente devastador nas

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cidades. Ora, era inevitável que a diminuição súbita da população romana concentrada em centros urbanos tivesse alguma consequência para a estabilidade do corpo político da república imperial. No entanto, apesar da gravidade da questão, a classe governante romana aparentemente não encarava o problema nesses termos ou, ao menos, não se dispôs a tratá-lo de maneira adequada, tomando medidas para a melhoria do aparato urbano que pudessem conter ou minimizar o impacto das pestes. E não por falta de capacidade — a aristocracia romana tinha uma reserva considerável de talentos —, mas porque, entre outras coisas, os romanos não viam a cidade como nós a vemos e não pensavam que ela pudesse ou merecesse ser compreendida em termos estritamente racionais, como um espaço em que fenômenos de diferentes ordens se desenrolam com certa regularidade e adquirem uma complexidade ainda maior por estarem interligados.

O que explica essa aparente falta de interesse por um espaço tão importante? Voltemos aos historiadores, que refletem bem essa postura em seus escritos e ajudam a compreendê-la. É preciso lembrar que a história, como gênero literário, ocupa no mundo antigo uma posição intermediária. Se não é tão reles como a comédia, que narra ações ridículas ou vis, tampouco pode aspirar à nobreza da tragédia, que narra ações nobres e elevadas, situadas não no plano dos acidentes da experiência, mas no da necessidade moral. É famosa a distinção do filósofo

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grego Aristóteles: a tragédia fala do que deve ser, a história diz o que é. Enquanto a verdade daquela reluz, a desta cintila fraca e instável, como que maculada pelo peso das circunstâncias. Mas, se não é nobre, a linguagem do historiador nem por isso se rende ao vil. Ao contrário, é calculada para dilapidar o que há de nobre e moral nas coisas humanas, que podem não ser heroicas, mas têm o seu valor e são instrutivas, desde que vistas pela perspectiva adequada.

Jamais ocorreria a um historiador antigo falar do cotidiano das pessoas comuns. Legiões de soldados perdem a vida em conflitos sangrentos, mas o historiador e senador romano Tácito (c. 56-117) não fala em números e não se deixa tocar pela enormidade do desastre militar; limita-se a mencionar a perda deste ou daquele aristocrata, que tombaram liderando um batalhão de anônimos. Tácito procede assim não por temperamento, mas por respeito a uma regra do gênero. Entre o prédio que abriga o Senado e o local em que se reúnem os tribunos da plebe há uma tessitura de ruas, edifícios públicos e privados, estabelecimentos comerciais, escritórios de administração, templos religiosos, centenas de pessoas. Nada disso, porém, chama a atenção do também romano Salústio (86-34 a.C.) em sua descrição da conjuração de Catilina — interessa apenas a enormidade das ações dos homens (nobres) envolvidos na trama. Muitos historiadores romanos, quando têm de mencionar um ofício de natureza manual, recorrem

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a circunlocuções para não manchar a elevação de sua prosa com palavras como “sapateiro” ou “ferreiro”. É uma questão de imaginação: a prosa seleciona os fatos, filtra-os com um certo tom e uma determinada ênfase, e o que é transmitido à imaginação do leitor é uma versão edulcorada da experiência, da qual quase tudo, na verdade, foi expurgado. Essa disciplina estrita é completamente incompatível com a ideia de que a cidade poderia ser descrita, reconstituída, imaginada.

Pode-se dizer que essa mesma atitude pauta a política romana, que faz o Estado se voltar quase inteiramente para as ações nobres, as únicas consideradas importantes, ou seja, as relacionadas à guerra contra nações estrangeiras e ao governo das províncias, relegando os problemas das pessoas comuns ao segundo plano. Que a população seja paulatinamente abatida por pestes ocasionais é considerado uma fatalidade, e o modo como vivem os habitantes das cidades que não pertencem às elites não é problema da aristocracia, tampouco do imperador (que cultiva o favor da plebe à maneira de um ditador populista) ou dos representantes das tribos que formam a cidade, preocupados com disputas de caráter político e econômico mais gerais. Não admira, portanto, que as pestes que eventualmente terminaram por enfraquecer e combalir o poderoso Império Romano não entrassem no campo de preocupação dos “gestores” das cidades: uma cidade não forma um sistema, é um simples agregado.

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MODELOS IMAGINÁRIOS Italo Calvino tem, como se sabe, um livro sobre o simbolismo das cidades invisíveis. Roma foi, em certo sentido, uma cidade invisível, ou que só se tornou visível graças à preservação, largamente acidental, de algumas de suas estruturas públicas e privadas. A época de Michelangelo, Brunelleschi, Domenichino, Da Vinci e Rafael soube tirar proveito dessas ruínas, monumentos de um passado que se afigurou a eles como um período muito especial da história humana. Os indícios remanescentes se tornaram um manancial de imagens, um repertório de lugares, uma série de tropos recorrentes, não necessariamente ligados às suas funções e finalidades originais. Muito já se disse, e continua a ser dito, a respeito da perfeição e da excelência das formas artísticas, superiores à própria natureza (a arte, com seus dispositivos intelectuais e técnicos, supera a natureza, a arte corrige a natureza, a arte contém a natureza etc.).

Também o século XVIII, o chamado Século das Luzes, exprimiu seu fascínio pela cidade antiga, que Montesquieu e Edward Gibbon interpretaram como o centro de irradiação de um poder político, militar e econômico sem igual na história humana. Não se restringiram à leitura dos historiadores: para escrever sobre Roma, tiveram de realizar uma peregrinação, ver, examinar e tocar os vestígios de uma força que se

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concretizou em um espaço determinado e se organizou em uma estrutura que pode ser chamada de urbana. Foi então que surgiu, no imaginário ocidental, o poderoso repertório de figurações imaginárias da Roma antiga — tão forte, na verdade, que continua a nos assombrar. Mesmo nós, brasileiros, que vivemos a milhares de quilômetros de distância desse palco da Antiguidade, falamos uma língua neolatina e utilizamos, sem perceber, analogias e imagens que os romanos forjaram no bojo de sua experiência.

A cidade é filha das batalhas, travadas nos campos: essa afirmação do filósofo e historiador David Hume é um bom exemplo da disposição positiva da modernidade em relação a esse novo objeto, não mais um suporte de ações, como na Antiguidade, mas ele mesmo produto de uma história. A existência das cidades em geral, e dos grandes centros urbanos em particular, assinala simbolicamente, para o olhar iluminista, o fim da guerra do homem contra o homem, a superação do estado de natureza em que a vida é constantemente ameaçada, o advento do refinamento e da civilização, no quadro dos quais a guerra é vista como um braço da política, e não como uma situação natural inevitável. É na época do Iluminismo que surge essa admiração pela cidade em si, por Roma e Atenas, tomadas como epítomes das grandes cidades antigas, mas também por Paris e Londres, novas capitais da Europa que condensam o

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que há de melhor no mundo moderno. A cidade europeia torna visíveis os valores de estabilidade política e prosperidade econômica da civilização comercial, e é segundo esse critério que os viajantes, os missionários e os exploradores da América, oriundos de Espanha, Portugal, França e Holanda, irão decretar que esse continente se encontra estacionado em um estágio social primordial, muito próximo ou idêntico ao estado de natureza. Até onde o colonizador enxerga (e sua visão não vai muito longe), o selvagem americano não edifica cidades, mas vive como nômade ou pastor, agrega-se em aldeias que logo são desfeitas, perambula ao sabor das circunstâncias em busca dos meios de sua sobrevivência.

Por não terem visto cidades como as suas nas Américas, os europeus pensaram que elas não existiriam ali. Pois se enganaram. Pierre Clastres argumentou que o homem americano aprendeu rapidamente a se furtar ao invasor, a tornar-se invisível diante dele, a vencê-lo sem enfrentá-lo em combate (CLASTRES, 2003). A paleontologia contemporânea mostra que as cidades existiram na Amazônia, encontra o seu traçado por detrás da vegetação, escava o solo em busca de seus equipamentos, detecta o elemento humano e artificial escamoteado por uma paisagem enganosamente natural. Para chegar à cidade americana, é preciso primeiro querer encontrá-la, supor que uma aglomeração de seres

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humanos vivendo juntos por certo tempo pode ter uma configuração diferente daquela que os franceses escolheram dar a Paris ou os portugueses a Lisboa. Então, descobrir-se-á que, assim como a cidade é filha da guerra, também sua obliteração pode ser uma tática de preservação de um modo de vida, de uma urbanidade construída bem longe do padrão greco-romano. Tendo chegado a esse ponto, a imaginação se dilata, varia seus hábitos e se torna capaz de entrever outras formas de organização humana, diferentes daquelas das capitais europeias e da ideia da cidade antiga, igualmente merecedoras do nome de “cidade”.

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HISTÓRIA E DESTRUIÇÃO

A imbricação talvez inesperada entre urbanismo e paleontologia remete ao final do século XVIII, durante a Revolução Francesa, quando a paleontologia se tornou uma ciência. É um evento com local preciso, que ocorreu a poucas quadras do centro político de Paris, nas dependências do Jardim Botânico, instituição pública dedicada à pesquisa científica criada pela Convenção a partir da estatização do que fora propriedade privada do rei. Foi ali que, em 1796, o naturalista Georges Cuvier demonstrou pela primeira vez a existência de espécies extintas, abrindo caminho para a completa renovação da história natural como ciência.

O método de Cuvier era tomar os objetos do mundo natural como se eles fossem uma linguagem, um sistema de signos articulados entre si de forma coerente, um código. Ideia ousada, que lhe permitiu tomar partes das mandíbulas de fósseis encontrados na Sibéria e deduzir, a partir desses fragmentos, uma espécie completa, a do mamute, parente do elefante, porém suficientemente distinta para que Cuvier a declarasse adaptada a um meio ambiente já extinto. A anatomia revela a fisiologia, formando o sistema da economia animal, ao mesmo tempo que aponta para as relações entre esse sistema fechado e o meio circundante — as “condições de existência”. A identificação dessa espécie corresponde,

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portanto, à demarcação de um signo preciso de transformação: o clima da Sibéria, outrora propício a esse animal gigantesco, tornou-se inóspito, por alguma razão (que Cuvier pensava ser uma súbita modificação ou “revolução”), acarretando assim a eliminação da espécie. O passado da natureza adquire densidade, as sucessões de fenômenos ganham o caráter de uma história, a linguagem do naturalista se reconhece como portadora de um novo gênero, amorfo, cujos lineamentos são ditados não por prescrições previamente estabelecidas, mas pelas exigências dos objetos a serem estudados. Os historiadores romanos da Antiguidade não se dignavam a entrar nos detalhes menores da vida urbana; o naturalista está autorizado por Cuvier a falar apenas de minúcias e a atrelar o valor das grandes teorias que irá formular à quantidade de pequenos fatos e pormenores que puder detectar, sem os quais não poderá sequer formular suas teses mais gerais. A hierarquia se inverteu: o pequeno, o insignificante, são a chave para entender o grandioso, o importante.

Como observou Jacques Rancière em diversas ocasiões,1 é apropriado que essa reviravolta tenha ocorrido na época da Revolução, quando o povo passa a ser representado e, por fim, toma o lugar da aristocracia, os comerciantes se impõem aos proprietários fundiários, e o sentimento do homem comum, não as virtudes

1 Cf. Rancière 2010 e 1989.

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elevadas da aristocracia, passa a ser a regra. No plano político, a vontade geral dos cidadãos ocupa o lugar que outrora pertencera aos nobres: a Constituição republicana é formulada pelo povo, com suas preocupações comezinhas, e não imposta a ele pelos nobres, com suas grandes visões. Em certo sentido, a paleontologia é uma ciência que coaduna com uma atmosfera republicana, pois nela os grandes fatos são ancorados nos pequenos. Mais que isso, como nota Rancière, ela é também uma ciência solidária a uma mudança de registro no uso da língua. No Antigo Regime, a palavra escrita era regulada pela palavra falada: os círculos de conversação da corte e dos salões, promovidos e animados pelas grandes damas da aristocracia francesa, funcionavam como o árbitro do bom uso gramatical e estilístico. A esses juízes os escritores franceses, dos autores trágicos aos epistolares, dos poetas e críticos aos filósofos, submetiam suas composições. A arte de falar e de escrever, na França do Antigo Regime, era regrada por preceitos similares aos vigentes na Antiguidade greco-romana: fala-se do que é elevado e extraordinário, evita-se a todo custo o que é baixo e corriqueiro.

A Revolução subverteu esse circuito ao pôr abaixo os pilares institucionais que o sustentavam, mas talvez seus dias já estivessem contados a partir do momento em que Jean-Jacques Rousseau se tornou um escritor de alcance nacional, lido nas províncias e por toda sorte

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de gente, e Diderot e D’Alembert preferiram dar mais espaço, nas páginas de sua Enciclopédia, às artes mecânicas e aos ofícios do que à filosofia, à poesia e à retórica. Com isso, tornou-se possível ler sem falar sobre assuntos que não necessariamente cabem em uma conversação de salão (sentimentos íntimos, técnicas de fabricação de vidro etc.), saboreando uma linguagem calculada para o silêncio, não para a palavra falada, uma linguagem sentimental (Rousseau) ou corriqueira (a Enciclopédia). Ainda segundo Rancière, isso explica por que, na aurora da Revolução, os jovens de província que depois irão tumultuar a vida da capital leem Tácito não mais como o mestre da retórica elevada, incompreensível sem o comentário erudito, mas como um autor qualquer. É que o livro deixou de ser um objeto a ser decifrado e passou a ser uma fonte de entretenimento acessível a todos: pode-se ler por conta própria.

Da mesma maneira, os grandes animais extintos que Cuvier identificou — mamute, megatério, mastodonte etc. — deixaram de ser enigmas fósseis para oferecer, ao olhar de qualquer um, o signo inequívoco da história da sucessão das formas no mundo natural: o passado vira presente ou se impõe a este com a perspectiva de eras que se sucederam umas às outras, à revelia das expectativas humanas. História sublime e, paradoxalmente, democrática. O seu fio é a destruição: formas antigas dão lugar a novas, o tempo geológico se

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impõe aos ciclos da vida; indiferente a ela, as populações de animais vivem e morrem ao sabor de circunstâncias variáveis e fortuitas. E mesmo as formas mais portentosas — os grandes mamíferos, os grandes impérios — estão fadadas a desparecer na noite do tempo. A consciência democrática é também a noção da pequenez da espécie humana e da transitoriedade de seus anseios e ambições, incluídos aí os mais complicados emaranhados urbanos e os mais ousados planos de sua racionalização.

Rancière encontra nos romances de Honoré de Balzac esse mesmo senso de deslocamento do homem, essa consciência de sua importância relativa ao meio que habita, e os interpreta pelo duplo prisma de uma arqueologia da paisagem e de uma fisiologia da vestimenta. No primeiro registro, o homem se descobre minúsculo diante da imensidão da cidade moderna e da sucessão de camadas com que ela se acumula, testemunho de uma história da qual o homem comum é parte insignificante. Cito uma passagem de A pele de onagro (1831):

Vocês alguma vez já se lançaram na imensidão do espaço e do tempo ao lerem as obras geológicas de Cuvier? Arrebatados por seu gênio, pairaram sobre os abismos em limites do passado, como suspensos pela mão de um mágico? A alma, ao descobrir de corte em corte, de camada em camada, sob as

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pedreiras de Montmartre ou nos xistos dos Urais, esses animais cujos restos fossilizados pertencem a civilizações antediluvianas, assusta-se de entrever bilhões de anos, milhões de povos que a frágil memória humana, que a indestrutível tradição divina esqueceram, e cujas cinzas, acumuladas na superfície do nosso globo, formam meio metro de terra que nos dão o pão e as flores. Não é Cuvier o maior poeta do nosso século? Lorde Byron reproduziu bem, em palavras, algumas agitações morais; mas nosso imortal naturalista reconstruiu mundos com ossos esbranquiçados, reconstruiu, como Cadmo, cidades a partir de dentes, repovoou milhares de florestas e os mistérios da zoologia com alguns fragmentos de hulha, redescobriu populações de gigantes nos pés de um mamute. (BALZAC, 2008)

Libertada do registro da hierarquia retórica, a palavra escrita, ignorante das exigências da fala, dirige-se silenciosa ao silêncio da história, que graças a ela ganha um viço na imaginação. O naturalista é o grande poeta, e um de seus principais feitos é conferir à cidade o direito de ter uma história, tão natural, banal e grandiosa quanto a das espécies de animais que outrora fizeram das florestas o seu habitat. A visibilidade do meio urbano depende de que se reconheça uma indiferenciação originária entre a cidade e o mundo em

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estado de natureza, por assim dizer. O ambiente urbano tem com a vida uma relação de fomento e aniquilação, de cuidado e agressão similar àquela que os seres vivos não humanos claramente têm com o seu meio. Paradoxalmente, é apenas ao voltar-se para esses “outros seres” que a biologia começou a se dar conta de que o que era válido para eles também serviria para nós, apesar de toda a nossa pretensão de nos diferenciarmos do “resto da criação”. Estudar a paleontologia é começar a desvendar com mais nitidez os modos de existência da espécie humana em sua pertença a um mundo que permanece estritamente “natural”.

O segundo registro que Rancière identifica na prosa de Balzac diz respeito à fisiologia da espécie humana como espécie urbana. No Antigo Regime, as vestes declaravam a origem social. Aristocratas, burgueses e artesãos não se misturavam: pessoas de bem não iam a bairros pobres, e a circulação dos pobres pelos bairros ricos limitava-se à prestação de serviços. A cidade era, portanto, perpassada por uma diferenciação rígida, quase estamental, que incidia no espaço de circulação das pessoas. (Não estariam ainda hoje as grandes cidades brasileiras presas a essa lógica?) Já o espaço de circulação da cidade moderna, fruto da Revolução — ela mesma uma catástrofe tão grande quanto as que, na teoria de Cuvier, abalam o mundo natural —, não é neutro, por certo, mas tampouco tem força suficiente para diferenciar

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um homem de outro: na Paris do século XIX, cada um pode e deve ir aonde bem entender, é livre para se perder no circuito das ruas, avenidas, alamedas e parques. Mas basta observar um pouco para ver que, se tudo mudou, resta que os indivíduos da espécie humana estão perfeitamente cientes de que essa liberdade de movimento não é signo de igualdade de condição, e cada um deles pertence a uma variedade bem definida:

A Revolução foi para o vestuário, assim como para a ordem civil e política, um tempo de crise e anarquia. Para a gravata em particular, ela trouxe uma daquelas mudanças orgânicas, que vêm, com séculos de intervalo, renovar a face das coisas. Sob o Antigo Regime, cada classe tinha seu modo de vestir: reconhecíamos, pelos trajes, o senhor, o burguês, o artesão. A gravata — se podemos dar esse nome ao colarinho de musselina e ao retalho de renda com que alguns envolviam o pescoço — era tão somente uma peça de vestuário necessária, de tecido mais ou menos rico, mas sem interesse nem importância pessoal. Os franceses tornaram-se enfim iguais em seus direitos, bem como em suas indumentárias, e a diferença no tecido ou no corte dos trajes não mais distinguia as condições. [...] Desde então se reservou à gravata um novo destino: a partir desse dia, ela nasceu para a vida pública,

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adquiriu uma importância social, pois que foi convocada a restabelecer as nuanças inteiramente extintas no vestuário. Ela tornou-se o critério a partir do qual se reconheceria o homem polido e o homem sem educação. [...] Para dizer a verdade, a gravata é o homem, é através dela que o homem se revela e se manifesta. (IDEM, 2009)

A cidade democrática, pós-revolucionária, é também o lugar da diferenciação, onde a ordem social se exprime e se impõe codificada, e o romancista, mais do que o cientista social, é seu verdadeiro paleontólogo — o único que possui uma linguagem suficientemente versátil para aderir a signos confusos, instáveis, vulgares, em constante modificação. Walter Benjamin, ele mesmo filósofo, percebeu isso muito bem e não escondeu as dificuldades consideráveis, do ponto de vista teórico e estilístico, de dar conta de Paris vista como capital do século XIX — mesmo escrevendo a distância, como historiador, na primeira metade do século XX. Para tentar dar conta de seu objeto, Benjamin teve de ir além da filosofia, rebaixando-se, por assim dizer, a um ponto de vista que lhe permitisse enxergar coisas para as quais o filósofo, esse herdeiro inadvertido da antiga hierarquia dos gêneros, permanece cego. Imitou assim o flâneur, o observador e habitante da metrópole, e cujo gênero literário, “a fisiologia”, diz Benjamin, é “essencialmente

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pequeno-burguês e filisteu”. (BENJAMIN 1989)

Isso sugere que o urbanismo, como tentativa de compreender e sistematizar a cidade pela intervenção, seria uma disciplina herdeira, em última instância, da geologia e da paleontologia, filiação confirmada pelas aspirações dos arquitetos modernos a moldar a percepção e o comportamento dos homens — sua fisiologia, em suma — mediante a reinvenção da cidade a partir de diferentes concepções de emancipação, completa ou parcial, de seus habitantes. Para tratar de coisas tão vulgares e preocupar-se com objetos tão mesquinhos, a arquitetura terá de deixar para trás suas pretensões de pertença ao panteão das grandes artes, às quais esteve presa até o século XIX, reconhecendo-se, enfim, como uma disciplina do rol das técnicas — plenamente moderna, calcada para um mundo bem diferente daquele em que a ideia do belo foi primeiro cogitada.

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OS MUSEUS E A HISTÓRIA NATURAL

Todo museu é, em alguma medida, museu de história natural. Muitas cidades modernas têm museus dedicados a elas mesmas, que não raro servem como espaços de figuração imaginária, propondo uma coerência e uma coesão temporal que esse objeto transitório não tem. Falaremos mais uma vez de cidades estrangeiras, agora porque as grandes metrópoles brasileiras não se dão ao trabalho de ter tais museus ou, se os têm, não os julgam importantes. Estariam satisfeitas com seu presente? Teriam medo de se reconhecer em um passado pouco glorioso? Entre as aspirações de grandeza e os temores de mediocridade, elas parecem incapazes de se decidir. Mas é preciso lembrar que esses sentimentos e essas atitudes são os de suas elites e de seus habitantes comuns, e talvez os nomes de nossas grandes cidades encubram entidades mais amorfas e menos bem definidas, no espaço e no tempo, do que gostaríamos de reconhecer.

Também aí, nessa ideia do museu como instituição, a Revolução Francesa teve um papel decisivo. A abertura ao público das galerias do palácio do Louvre, antes reservadas às exposições da Academia Real, a acumulação, nesses corredores, de obras incluídas no espólio de guerra do Exército republicano, tudo isso

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criou um novo tipo de instituição.2 Conhecemos bem, que seja de ouvir falar, o Museu do Louvre que então surgiu, mas nem sempre nos damos conta de que ele tem afinidades significativas com outro museu, o de História Natural, que, na mesma Paris revolucionária, alocado no Jardim Botânico, passou a oferecer ao público as curiosidades naturais oriundas da extinta coleção do rei. Em ambos, é traçada uma história: em um deles, a história das formas produzidas pela imaginação, o repertório das possibilidades desse poder do espírito humano; no outro, a história de formas como que imaginadas pela natureza e generosamente oferecidas por ela à nossa apreciação. É claro que não parece certo dizer que a natureza faz algo em prol da espécie humana, mas esse jeito de falar, além de reconfortante, cria um clima de fábula em nossa concepção das relações entre natureza e arte — como se a natureza fosse um outro jeito de ser arte.

Na Paris revolucionária, ninguém tinha dúvidas de que as formas do Museu do Louvre e as do Museu de História Natural eram de ordem distinta: a natureza não “fabrica” coisas no mesmo sentido que os homens

2 No qual, diga-se de passagem, teve lugar de destaque o pintor Jacques-Louis David que, como mostrou T. J. Clark, foi responsável pela organização do repertório de imagens no qual a república nascente houve por bem se reconhecer (não apenas nos museus que então surgiram, como também nas festas revolucionárias). Cf. Clark, 2007.

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o fazem — a essa altura, Kant já escrevera a Crítica da faculdade de julgar (1790). Mas esse paralelismo institucional promove certa nivelação entre essas séries distintas, ao oferecê-las a um público que não foi treinado para apreciá-las, que não tem, num caso e no outro, formação crítica, mas que talvez seja capaz de compreendê-las pela mobilização de uma capacidade natural, dê-se a ela o nome de sensibilidade, sentimento, juízo, entendimento ou razão. A nivelação da palavra ao registro da escrita estende-se assim às artes plásticas e às ciências naturais: objetos “falam” e “têm uma linguagem”, podem “ser lidos” na medida mesma em que se dão a apreciar em silêncio e são privados de voz — um pouco como as facções mais radicais da Revolução se exprimem na retórica rudimentar e violenta de panfletos que, escritos dez anos após a morte de Rousseau, em nada lembram a elegância da linguagem sentimental deste que é o seu mestre em matéria de política e moral. Prosa rústica, que não foi feita para ser soletrada, mas lida na quietude, em meio à multidão, e absorvida como um bálsamo que promete, em teoria, uma libertação, em meio a toda a violência e a destruição dos processos reais.

Em breve surgirão, no rastro dessas grandes instituições, pequenos museus, mais modestos, dedicados à história da cidade, e não raro, portanto, à história das catástrofes e destruições que imprimem sucessivas formas

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a um espaço variável que recebe um mesmo nome, malgrado transformações tão profundas que o tornam irreconhecível de um momento a outro: difícil determinar, por exemplo, em que medida a São Paulo da década de 1930, retratada nas fotos de Claude Lévi-Strauss, é ou não a mesma da década de 2010, na qual vivemos (ou tentamos sobreviver).3 É então que, pela preservação da “memória” da cidade, reunida em documentos oficiais, testemunhos oculares, peças literárias, recortes de jornal etc., esse conglomerado ganha uma identidade própria, que todos reconhecemos na medida em que nos empenhamos em compreender o presente pelas lentes do passado — exercício válido e interessante, ainda que nem sempre bem-sucedido.

A proximidade entre a história natural e a história natural da cidade produz às vezes instituições que são amálgamas. Se o Jardim Botânico (“Imperial”) do Rio de Janeiro nasceu, e continua sendo, bem francês, o Museu do Ipiranga, em São Paulo, surgiu como museu de história natural à francesa e depois foi elevado (ou rebaixado) à condição de museu da Independência nacional. Impossível decidir qual seu caráter agora, visto que, por falta de recursos, ele permanece fechado ao público. O Museu Nacional, no Rio de Janeiro, também

3 A partir de Darwin, será possível falar da cidade como lugar da luta dos seres vivos pela obtenção dos meios de sua sobrevivência: A origem das espécies (1859) é publicada na mesma Londres em que surge O capital (1867) de Karl Marx.

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teve suas fases e, em sua versão derradeira, oferecia ao público uma feliz combinação de elementos de história geológica, de botânica e zoologia, e de história mediterrânea, africana e sul-americana, e ainda o curso de pós-graduação que, trabalhando sobre o acervo e a biblioteca do Museu, produzia conhecimento científico a partir dos mesmos objetos que o público simplesmente aprendeu a apreciar. Compunha assim um panorama instigante, que dava muito a pensar acerca das relações entre essas dimensões do que se chama de “história”, bem como dos processos e políticas de aquisição de acervo que teriam levado a um resultado tão único e auspicioso. Certamente havia aí, nesse caráter múltiplo, híbrido e instigante, algo da cidade em que a instituição se situava, e, em menor medida, do país ao qual se referia o adjetivo “nacional”. Nesse sentido, o museu é testemunha não só de eventos, mas também de processos. E sua destruição, pela guerra, pelo descaso, ou pelo embate de um Estado contra sua própria sociedade, é um passo importante, até necessário, para que a “nação” a qual um dia pertenceu tenha sua história suprimida, para que os processos sociais que nela transcorrem e que lhe dão uma identidade se tornem invisíveis, e o presente desponte como um recomeço absoluto, que se redobra sobre si mesmo e restringe a possibilidade de se imaginar outro futuro, diferente daquele que nele se afirma como o único possível ou necessário.

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EPÍLOGO: UMA UTOPIA POSSÍVEL?

Com o incêndio do Museu Nacional e a tíbia reação do poder público, das elites econômicas e culturais, e as homilias inócuas da imprensa, talvez tenha ficado claro que as nossas cidades são o lugar de uma disputa intestina pelo direito da imaginação, pela possibilidade de entrever, em meio à densidade do presente, as aberturas que conduzem a um futuro digno desse nome, aberto e indeterminado, que não se deixa adivinhar, que não se reduz às nossas expectativas a seu respeito. Mais que ruínas, os escombros resultantes da catástrofe de setembro de 2018 (não me refiro aqui à dos meses subsequentes) são como um monumento fóssil, obra silenciosa que declara uma história e não deixa dúvidas a respeito daquilo que, em determinado momento, os habitantes do Rio de Janeiro e do Brasil decidiram imaginar como sendo o seu destino inevitável. Nesse sentido, deveria ser levada ao pé da letra a sugestão do professor Eduardo Viveiros de Castro, ligado ao Museu, de que suas ruínas se tornassem objeto de preservação do patrimônio nacional.

Mas não é porque a destruição governa a lógica das cidades que devemos adotá-la como um princípio deliberado da ação humana. Outros destinos, diferentes desse, são possíveis. Para imaginá-los, em meio à desolação de um presente difícil de compreender e duro

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de aceitar, pode ser uma boa ideia frequentar os poucos museus de história natural dignos desse nome existentes no Brasil. É o caso, por exemplo, do Museu da Inconfidência, em Ouro Preto, com sua coleção excepcional — cujo principal atrativo, a meu ver, não é contar a história do evento que lhe dá nome, mas traçar as etapas da consolidação e do declínio de um conjunto de técnicas e artes, inclusive as relativas à escravidão, que recortaram e reconfiguraram, nas Minas Gerais portuguesas, o espaço da experiência sensível marcada pelo regime colonial de extração de riquezas. Já o Museu de Mineralogia, também em Ouro Preto, situado na mesma praça onde está o Museu da Inconfidência, exibe os materiais que compõem o solo das Minas, dando uma ideia tão variada e rica da natureza mineral quanto a que costumamos ter dos vegetais ou dos animais. Não longe dali, a antiga Casa dos Contos tem em seu subsolo uma antiga senzala. A sombria exposição oferece, além dos instrumentos de tortura dos escravos pelos feitores, uma máquina de tear similar à descrita por Diderot na Enciclopédia — objeto que evoca a indignação desse mesmo filósofo com o tráfico negreiro.

Incêndio de grandes proporções no Museu Nacional da Quinta da Boa Vista realizada no Quinta da Boa Vista em Rio de Janeiro, 2 de setembro de 2018.Foto: Celso Pupo/ Fotoarena

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Penso aqui também em uma instituição bem mais modesta, o Museu de Pesca de Santos, que visitei pela primeira vez quando de sua abertura, nos anos 1970, com meu pai, arquiteto de formação e amigo de um dos membros da equipe de restauração do prédio. Quarenta anos depois, ao lado de minha filha, reencontrei no amplo salão que ocupa metade do primeiro andar o impressionante esqueleto de baleia, cercado pelos de outros cetáceos menores. Exibição simples mas informativa, oferece uma perspectiva da história evolutiva dessa classe de animais e permite ao visitante reconstituir, inadvertidamente, o desenvolvimento morfológico desses magníficos mamíferos marinhos: estrutura e adaptação, Charles Darwin e Richard Owen reunidos na mesma sala de um antigo entreposto do Império Britânico.

Subindo a serra, entrando na capital pela rodovia Anchieta, não está longe o Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo, onde o visitante, após passar por uma sala com impressionantes fósseis de dinossauros encontrados em território brasileiro, depara com uma réplica quase perfeita do megatério de Cuvier e, mais adiante, com diversos espécimes de plantas identificadas por Lineu e numerosos moluscos cuja existência veio à tona graças à taxonomia de Lamarck. O museu, muito bem organizado, ocupa parte de um prédio maior, no qual estão instalados pesquisadores, coleções de estudo, uma biblioteca e, suponho, laboratórios. Nas visitas mais recentes que fiz ao

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local, geralmente em cinzentas tardes de domingo (uma feliz coincidência), havia muita gente por lá, interessada pelos objetos em exibição e pelas explicações que pontuam a exposição. Depois, lendo uma reportagem publicada na revista Pesquisa Fapesp (GUIMARÃES, 2018), descobri que o museu era de fato bem cuidado, e o seu prédio, bem conservado. Pois, ao contrário do Museu Nacional, o Museu de Zoologia da USP passou recentemente por reformas, incluindo a incorporação de medidas preventivas de segurança contra incêndios e outros acidentes. Uma instituição pública dirigida com seriedade, e um abrigo seguro para o exercício da imaginação, que parte sentindo-se revigorada o suficiente para desenhar, por conta própria, um traçado diferente, se não para o país, para a cidade à sua volta. Eis uma experiência muito singular e, eu diria mesmo, bastante radical.

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P.S.: OUTRA HISTÓRIA NATURAL

Quando esse livro estava em fase de preparação veio a pandemia e pareceu-me que ela deu novo significado à ideia de história natural das cidades aqui esboçada. Pois, entre outras coisas, esse evento inesperado veio lembrar que a própria cidade faz parte de uma história que a perpassa – a história de nossa espécie humana e das interações invisíveis e silenciosas entre ela e outras espécies, em disputa por espaços, em mútua colaboração, apoiando-se umas nas outras para realizar a destinação escrita em suas respectivas estruturas genéticas – a disseminação pelo espaço, a propagação através do tempo, a apropriação de um meio indiferente à vida, doravante transformado em território, com marcações políticas que se estendem do “natural” ao “social” e ignoram as supostas fronteiras entre eles.

Na Roma antiga, os surtos epidêmicos podem ter ajudado a controlar a multiplicação da população para além de certos limites, inconvenientes ao Estado. Os vírus e bactérias auxiliam os homens sem que tenham a intenção de fazê-lo. Inversamente, na situação atual, um surto epidêmico suspendeu a atividade econômica e abalou as regras de convívio social em escala planetária, permitindo a disseminação do covid-19. Os humanos auxiliam o vírus à revelia de seus interesses. Nesse sentido, a politização da pandemia não é um feito deste

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ou daquele governo, está inscrita na índole mesma do fenômeno populacional. Não custa reiterar, com Foucault ou sem ele, que a ideia de que um grupo de indivíduos forma algo como uma “população”, ideia tão cara à seleção natural darwiniana, veio da economia política, preocupada com questões de administração pública. Mas, na natureza darwiniana não há governo, apenas equilíbrios espontâneos; e eles não são os mesmos que se estabelecem nas sociedades a partir de finalidades humanas. Nesse sentido, tornou-se quase obrigatória a leitura do mais recente livro do antropólogo norte-americano James C. Scott, Against the Grain (2017), que mostra o eventual lugar da cidade na história de nossa espécie: não os problemas que a cidade veio resolver, mas tratando-a como uma contingência, os que ela criou.

Na Mesopotâmia antiga, na Amazônia de mil anos atrás, no modelo de civilização ocidental, um sistema de organização de relações, formado por interações entre indivíduos, se impõe a uma espécie e condiciona sua evolução. Tudo indica que ao menos uma parte de nossos problemas atuais, que tentamos resolver politicamente, está destinada a se furtar à nossa intervenção. Medidas de isolamento, testes em massa, vacinas, são tantas soluções imediatas, obtidas pela intervenção ativa da ciência, fomentada por governos e empresas para uma situação que não pode perdurar, porque não temos como nos adequar a ela, porque não estamos preparados para

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viver com ela, e que temos o direito de sentir como insuportável. Nunca é tarde para reconhecer os limites do humano em um mundo que insiste em permanecer natural. E se voltarmos agora o nosso olhar, mais uma vez, para as cidades, outrora tão familiares, sentiremos uma sensação inusitada, de estarmos diante de coisas conhecidas, porém muito estranhas (o Unheimilich de Freud).

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BALZAC, H. de. A pele de onagro, trad. Paulo Neves. Porto Alegre, Lpm, 2008.

________. Tratados da vida moderna, trad. Leila de Aguiar Costa. São Paulo, Estação Liberdade, 2009.

BENJAMIN, W. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo, trad. João Carlos Martins Barbosa e Hemerson Alves Baptista. São Paulo, Brasiliense, 1989.

CLARK, T. J. Modernismos, Sonia Salzstein (org.), trad. Vera Pereira. São Paulo, Cosac Naify, 2007.

CLASTRES, P. A sociedade contra o Estado, trad. Theo Santiago. São Paulo, Cosac Naify, 2003.

GUIMARÃES, M. “Uma fauna engavetada: Museu Nacional e de Zoologia da USP abrigam vastas coleções de animais, de difícil preservação”, Pesquisa Fapesp. São Paulo, Editora da Fapesp, 2018, ano 19, n. 272, ed. especial, pp. 64-69.

LEVEBVRE, H. Introdução à modernidade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1969.

RANCIÈRE, J. La parole muette: essai sur les contradictions de la littérature. Paris, Hachette, 1988.

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________. O inconsciente estético, trad. Mônica Costa Netto. São Paulo, Editora 34, 2010.

SCOTT, J. C. , Against the Grain. A deep History of the earliest States. New Haven & London, Yale University Press, 2017.

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SOBRE O AUTOR

PEDRO PAULO PIMENTA é professor livre-docente no Departamento de Filosofia da USP, onde leciona desde 2005. Desenvolve atualmente uma pesquisa sobre a gênese do pensamento econômico no período do Iluminismo, explorando suas relações com as ciências naturais. Interessa-se também pela compreensão das formas literárias envolvidas na elaboração das teorias evolutivas na primeira metade do século XIX. É autor de A trama da natureza (Unesp, 2018) e Darwin e a seleção natural (2020), além de numerosos artigos publicados em revistas acadêmicas no Brasil e no exterior. Coordenou ou realizou traduções de autores como Rousseau, Escritos sobre a política e as artes (organização) (Ubu, 2020); Darwin, A origem das espécies (tradução) (Ubu, 2018); Diderot e d'Alembert, Enciclopédia (organização, com Maria das Graças de Souza) (Unesp, 2015); e David Hume, História da Inglaterra (tradução) (Unesp, 2014). Colabora regularmente com jornais literários. Vive em São Paulo e é frequentador assíduo do bairro da Liberdade, do Instituto Butantan, do Museu de Zoologia do Ipiranga e da Livraria da Travessa em Pinheiros.

COLEÇÃO OUTRAS PALAVRAS

Viver a cidade, transformar a vida urbanaANTONIO RISÉRIO

Inventar outros espaços, criar subjetividades libertáriasMARGARETH RAGO

Conciliação, regressão e cidadeTALES AB’SABER Carolina Maria de Jesus: literatura e cidade em dissenso FERNANDA R. MIRANDA Rizoma temporal PETER PÁL PELBART

Da metrópole à aldeia: um trajeto de Antropologia UrbanaJOSÉ GUILHERME C. MAGNANI

História natural das cidadesPEDRO PAULO PIMENTA

Coronavida: pandemia, cidade e cultura urbanaGISELLE BEIGUELMAN

Esse texto é fruto de palestra realizada pelo autor no Seminário de Cultura e Realidade Contemporânea da Escola da Cidade em 14 de junho de 2017.

autor PEDRO PAULO PIMENTAedição JOAQUIM TOLEDO JRrevisão LUCIANE HELENA GOMIDEprojeto gráfico TRÊS DESIGNdiagramação EDITORA ESCOLA DA CIDADEagradecimentos JOSÉ GUILHERME PEREIRA LEITE

COLEÇÃO OUTRAS PALAVRAScoordenação FABIO VALENTIM

ASSOCIAÇÃO ESCOLA DA CIDADE FACULDADE DE ARQUITETURA E URBANISMO Rua General Jardim, 65 - Vila Buarque 01223-011 São Paulo SP T +55 11 3258 8108 [email protected]

ASSOCIAÇÃO ESCOLA DA CIDADEpresidência ALVARO LUÍS PUNTONI, FERNANDO FELIPPE VIÉGAS E MARTA MOREIRA

CONSELHO ESCOLAdiretoria CRISTIANE MUNIZ E MAIRA RIOS

CONSELHO CIENTÍFICOdiretoria ANÁLIA M. M. DE C. AMORIM E MARIANNA BOGHOSIAN AL ASSAL CONSELHO TÉCNICO diretoria GUILHERME PAOLIELLO

CONSELHO HUMANIDADES diretoria CIRO PIRONDI

CONSELHO SOCIALdiretoria ANDERSON FABIANO FREITAS

EDITORA ESCOLA DA CIDADEcoordenação FABIO VALENTIMMARINA RAGO MOREIRA, THAIS ALBUQUERQUE, ALEXANDRE BASSANI E RICARDO KALIL

NÚCLEO DE DESIGNcoordenação CELSO LONGO E DANIEL TRENCHDÉBORA FILIPPINI, BEATRIZ OLIVEIRA E GABRIEL DUTRA

MEIOS DIGITAIS E AUDIOVISUALcoordenação ALEXANDRE BENOITcoordenação baú CLARISSA MOHANYFERNANDA TEIXEIRA, LUISA MARINHO E LÚMINA KIKUCHI

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação - CIP

Catalogação elaborada por Edina R. F. Assis – CRB 8/6900

PIMENTA, Pedro Paulo História natural das cidades / Pedro Paulo Pimenta. – São Paulo: ECidade, 2020. 44 p.; digital – (Outras Palavras; v.7). ISBN: 978-65-86368-11-6

1.Cultura e Instituições. 2. Museu Nacional (UFRJ) 3.História natural. 4. Museus. 5. História do Brasil. I. Título. II.Série.

CDD 708.0981

fontes Adobe Caslon Pro e Glacial Indifference

Edição digital distribuída gratuitamente.São Paulo, agosto de 2020.

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PEDRO PAULO PIMENTA

Libertada do registro da hierarquia retórica, a palavra escrita, ignorante das exigências da

fala, dirige-se silenciosa ao silêncio da história, que graças a ela ganha um viço na

imaginação. O naturalista é o grande poeta, e um de seus principais feitos é conferir à cidade

o direito de ter uma história, tão natural, banal e grandiosa quanto a das espécies de animais que outrora fizeram das florestas o

seu habitat.