histórias :: produtores de Água

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Produtores de Água texto: Deca Furtado | fotos: Bruno Magalhães Técnicas milenares de preservação de águas, combinadas com tecnologias mais modernas, levam à ressurreição os rios Tamboril, Mocambinho, Lajes, Taboquinha, Gentil, Capivara, Capoeirão... Rogai por eles! Nos últimos 30 anos, só na mesorregião do Norte de Minas Gerais, 600 pequenos rios, riachos e córregos como esses teriam virado pó. Todos foram assassinados pelo desmatamento, pecuária bovina, ganância humana e fatores interligados. Esta é a má notícia. A boa: eles poderão renascer. Duas técnicas respondem pelo milagre. Uma é a construção de barraginhas, desenvolvida pelo engenheiro agrônomo Luciano Cordoval, da reputada Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária, a Embrapa, de Sete Lagoas, Minas Gerais. As barraginhas, também conhecidas como bacias de contenção, são tanques escavados no solo combinados com uma tropicalização de técnicas milenares de captação da água de chuva. Como toda boa idéia, é simples, barata e por isso mesmo genial: uma pá carregadeira, cujo aluguel custa ao redor de 130 reais por hora, leva 40 minutos na construção de bacias de 8 metros de raio, 16 de diâmetro, formato de meia lua e dois metros de altura, onde se estocam até 100.000 litros de água e toneladas de terra trazidas pela enxurrada, que as assoreiam e tornam obrigatória uma limpeza em cerca de três anos. Sem as barraginhas, a água, ao invés de se infiltrar e aumentar o lençol freático, correria cada vez mais para longe levando ainda a terra da erosão. A idéia matadora é não deixar a enxurrada progredir. “Contemos a enxurrada antes dela provocar erosão, assorear e assim desidratar os rios”, diz Cordoval. Isso é feito construindo barraginhas por todo o terreno, o que traz a vantagem adicional de provocar uma umidade generalizada na fazenda, em contraste com a técnica antiga, pela qual se construía um único açude na parte mais baixa das propriedades.

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O jornalista Deca Furtado escreve sobre as iniciativas que tem dado vida nova a rios e lençóis d'água degradados pela falta de planejamento e responsabilidade ambiental. As fotos são de Bruno Magalhães.

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Page 1: Histórias :: Produtores de Água

Produtores de Água texto: Deca Furtado | fotos: Bruno Magalhães

Técnicas milenares de preservação de águas, combinadas com tecnologias mais modernas, levam à ressurreição os rios Tamboril, Mocambinho, Lajes, Taboquinha, Gentil, Capivara, Capoeirão... Rogai por eles! Nos últimos 30 anos, só na mesorregião do Norte de Minas Gerais, 600 pequenos rios, riachos e córregos como esses teriam virado pó. Todos foram assassinados pelo desmatamento, pecuária bovina, ganância humana e fatores interligados.

Esta é a má notícia. A boa: eles poderão renascer. Duas técnicas respondem pelo milagre. Uma é a construção de barraginhas, desenvolvida pelo engenheiro agrônomo Luciano Cordoval, da reputada Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária, a Embrapa, de Sete Lagoas, Minas Gerais.

As barraginhas, também conhecidas como bacias de contenção, são tanques escavados no solo combinados com uma tropicalização de técnicas milenares de captação da água de chuva. Como toda boa idéia, é simples, barata e por isso mesmo genial: uma pá carregadeira, cujo aluguel custa ao redor de 130 reais por hora, leva 40 minutos na construção de bacias de 8 metros de raio, 16 de diâmetro, formato de meia lua e dois metros de altura, onde se estocam até 100.000 litros de água e toneladas de terra trazidas pela enxurrada, que as assoreiam e tornam obrigatória uma limpeza em cerca de três anos.

Sem as barraginhas, a água, ao invés de se infiltrar e aumentar o lençol freático, correria cada vez mais para longe levando ainda a terra da erosão. A idéia matadora é não deixar a enxurrada progredir. “Contemos a enxurrada antes dela provocar erosão, assorear e assim desidratar os rios”, diz Cordoval. Isso é feito construindo barraginhas por todo o terreno, o que traz a vantagem adicional de provocar uma umidade generalizada na fazenda, em contraste com a técnica antiga, pela qual se construía um único açude na parte mais baixa das propriedades.

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Dentro das bacias de contenção, 70% da água evaporam. Os 30% restantes infiltram-se. A despeito do processo de secagem, o canal subterrâneo permanece sempre intacto, isto é, não entope. Com o passar dos anos, “a água estocada engravida a terra”, diz Cordoval. A gestação é o período – pode levar anos - em que caminha subterraneamente até brotar mais abaixo, na forma de nascente. É delas que nascem e renascem os rios.

Há 17 anos Cordoval dissemina a técnica por todo o país por meio de palestras e a formação de multiplicadores. De acordo com as assinaturas nos livros de presença das palestras, ele já falou para mais de 25.000 pessoas, entre os quais 400 técnicos da Emater-MG. Desses, cerca de 250 atuam na região do Rio São Francisco e colaboram com o projeto governamental de sua revitalização. A rede de multiplicadores é responsável pela construção, só em Minas Gerais, de mais de 150.000 barraginhas. No Vale do Jequitinhonha, pobre na economia mas rico em cultura, alguns pequenos rios e riachos foram recuperados.

O mesmo começa a acontecer no Norte do Estado. Há cinco anos, dezesseis delas foram construídas próximas às vias internas da fazenda Soma, de 1.200 hectares, pertencente à família de Berilo Maia e localizada no município de Januária, uma bela microrregião do cerrado mineiro, com biodiversidade comparável à da Mata Atlântica - no seu entorno já existem estradas que podem ser chamadas de ecológicas, pois em suas beiradas foram construídas várias bacias de contenção. (Na América Latina, e na África, as barraginhas também estão em uso, levadas por alunos de países que estudaram no Brasil e visitaram a Embrapa.)

Em 1976, quando a Soma foi adquirida, havia mais de 50 pequenos cursos d’água no município, um dos maiores do estado. Limitada pelos rios Capivara e Capoeirão, e com o Tamboril bem próximo – os três desaguavam no Rio Pardo, afluente do Velho Chico --, na fazenda havia uma vereda e várias nascentes. No entorno da Soma, uma grande área foi desmatada. Em seu lugar, empresas que há mais de 30 anos ganharam terra em comodato do Governo de Minas Gerais, plantaram –- verdadeira burrice ambiental, pra não dizer outras coisas -- milhares de árvores de eucaliptos nas cabeceiras e beiradas dos rios.

Desde então 18 pequenos rios, entre os quais o Capivara, o Tamboril e o Capoeirão, viraram vaga-lumes: acendem no verão, quando caem as poucas chuvas da região, e apagam no inverno, quando secam. Para ter uma idéia da violência do processo: inaugurada em 1958 pelo presidente Juscelino Kubitscheck, a pequena central hidroelétrica do Rio Pandeiros, a primeira da Cemig na região, deixou de funcionar em 1997 por causa, entre outras, do assoreamento do rio.

Mas o Capivara, no trecho da propriedade dos Maia, pode ser considerado como renascido – o Capoeirão e o Tamboril ainda não. “A água já corre o ano todo”, comemoram os irmãos Berilo Filho e Juliano. Berilo Filho trabalhava no Igam-Instituto Mineiro de Gestão das Águas, em 2005, quando ouviu falar das barraginhas. Soube também que o Ministério Público estadual havia criado uma promotoria para o Rio São Francisco e que acertara TACs-Termos de

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Ajustamento de Conduta com várias empresas de ficha suja na questão do meio ambiente.

Estas empresas cederam horas-máquina, empregadas na construção das bacias de contenção. Berilinho, como é mais conhecido, conseguiu 600 horas-máquina para as bacias hidrográficas do Tamboril, Capivara e Capoeirão, onde foram construídas 330 barraginhas, beneficiando os cerca de 1.500 moradores da comunidade. O resultado é pífio, mas não desanimador: apenas o Tamboril se tornou perene. “Vai demorar, mas a água das nascentes vai brotar novamente e revitalizará os rios”, acredita Berilo. “Antes, queríamos produzir biodiesel. Com o Tamboril de volta à vida, mudamos. Vamos preservar a mata da fazenda. É muito mais viável e talvez rentável”, diz o mano Juliano.

É que, desde 1988, a Soma, onde antes se criava gado, está fechada. Com isso, a mata original foi totalmente refeita. A idéia é explorar o turismo de observação de pássaros. Além de papagaios, araras, periquitos, jandaias e maracanãs, muito ameaçados pelo tráfico de animais silvestres, na região, próxima ao Parque Nacional Grande Sertão Veredas, ainda abundam o pássaro preto, o sofrer, a pomba juriti e outras aves.

Os irmãos sonham também em explorar as frutas nativas do cerrado, entre elas o buritizeiro, o araticum, o coquinho azedo, todas com sabores exóticos e uma enorme demanda não atendida na forma de sorvetes. “Vamos integrar a comunidade ao projeto e impedir, pelo exemplo, que se continue a dizimar as matas ciliares”, diz Berilo Filho. Para tanto, ele depende do asfaltamento da BR 479. Ela liga o maior projeto irrigado da América Latina, o Jaíba, a Brasília, distante apenas 400 quilômetros.

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A outra técnica - coincidentemente começou a ser utilizada em 1982 -, usa curvas de nível, a construção de bolsões, o plantio de árvores e foi criada por Marco Túlio Paolinelli, proprietário da empresa Agronelli, que não conhecia Cordoval.

Na propriedade de 125 hectares que adquiriu no município de Uberaba, região de cerrado, Paolinelli, também engenheiro agrônomo, conta ter deparado com solo degradado, erosão, nascentes secas, duas voçorocas – verdadeiros sumidouros de terra erodida subterraneamente - e matas ciliares destruídas. Decidido a recuperá-la, ele construiu curvas de nível prolongadas de forma a reter a enxurrada e ao mesmo tempo garantir que a água captada na propriedade ficasse nela mesma. Depois, cavou sete bolsões, pequenos açudes. “Perto das nascentes, mas a 150 metros das matas ciliares, plantei uma boa quantidade de árvores”, explica Paolinelli.

O engenheiro agrônomo escolheu as árvores a dedo. A melhor é o jambolão: produz folhas de forma contínua e durante todo o ano. “Fui criticado por plantar essa espécie. Diziam ser uma árvore exótica”, diz Paolinelli. Mas ele estava certo, pois ao caírem, as folhas, queimadas pelo sol, apodrecem e formam uma camada protetora do solo, mantendo assim a umidade natural. Com o passar do tempo, isso ajuda a aumentar a quantidade de água da nascente, que logo começa a minar. As árvores servem ainda como uma segunda barreira para a erosão provocada pela água das chuvas.

Nos bolsões, na seca, de início a água secava em todos. Agora um deles já se tornou perene, pois ali aflorou uma nascente – no início do processo, a represa da propriedade necessitava de uma bomba para se jogar água dentro dela. Hoje, não mais. Outro bolsão está quase lá e um terceiro vai demorar um pouco mais, enquanto para os restantes não há previsão. Como todos os bolsões são interligados, no período chuvoso se tem um controle de vazão que maximiza o acúmulo de água. “Graças aos bolsões e ao jambolão, uma das voçorocas está dominada e a outra a caminho disso”, afirma Paolinelli. Hoje, na voçoroca, ao invés de erosão, escorre água.

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O engenheiro mantém, há 6 anos, uma escola ambiental, que funciona terça e quintas-feiras para visitas. Ela é frequentada por grupos de alunos de outras escolas, lideranças políticas e ecológicas. No ano passado Paolinelli previa 5.000 visitantes, alguns internacionais.

Os resultados obtidos encorajaram Paolinelli a comprar uma segunda propriedade na região, também em área degradada. “Estou começando a recuperá-la usando mais tecnologias, desenvolvidas pelo Cefet e Fazoo, Faculdade de Zootecnia de Uberaba”, diz ele, que mede a água das minas toda semana. Ao longo desse período de recuperação, a água aumentou 20% na primeira fazenda.

Extrapolando para outros locais, ONG’s ecológicas poderiam, utilizando as mesmas técnicas, fazer a água dos rios aumentar em 20% também. “Tenho tudo documentado – quanto gastei, quanto custa isto ou aquilo”, diz Paolinelli. “Está à disposição de qualquer ONG que queira contribuir para aumentar o volume de água dos rios.”