histórias infantis e aquisição da escrita

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22 S HISTÓRIAS INFANTIS E AQUISIÇÃO DE ESCRITA egundo o Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil – Documento Introdutório, “as instituições de educação infantil (pré-escolas) cum- prem hoje, mais do que nunca, um objetivo primordial na formação de crianças que estejam aptas para viver em uma sociedade plural, democrática e em constante mudança (...) Ela deve intervir com intencionalidade educativa de modo eficiente visando a possibilitar uma aprendizagem significativa e favorecer um desenvolvimento pleno, de forma a tornar essas crianças cidadãs numa sociedade de- mocrática” (MED/SEF, 1998). Um dos desafios a enfrentar hoje na educação infantil é o de conseguir adaptar uma prática pedagógica voltada para atender às necessidades da criança, que, como será visto, já está vivendo os processos envolvidos na aquisi- ção da linguagem escrita, em todos os seus aspectos. Es- pecificamente em relação à alfabetização, o objetivo a ser alcançado não é mais o de “preparação”, desenvolvimen- to de prontidões para o ensino fundamental, como se acre- ditava até então. Atualmente, a alfabetização deixou de ser encarada como um momento estanque e passou a ser compreendida como um processo, no qual a pré-escola (educação infantil) tem papel ativo e constitutivo. Portanto, torna-se necessário estimular cada vez mais o interesse da criança para que, embora carregado de significa- dos, o aprendizado não se perca no curso do tempo. A criança aprende se desenvolvendo e se desenvolve aprendendo. Ao relacionar os aspectos envolvidos na aquisição da escrita com a relevância de oportunidades que a prática de leitura de histórias infantis pode oferecer, pretende-se expor algumas sugestões práticas que podem ser desen- volvidas no ambiente escolar, de forma a atenuar as res- postas para esse desafio. APENAS PARA LEMBRAR... Em uma sociedade que tem somente 6% de crianças na faixa etária de 0 a 6 anos freqüentando as instituições de educação infantil, das quais 37% são provenientes de famílias com renda superior a cinco salários mínimos, a preocupação com a qualidade do ensino oferecido a es- sas crianças, em especial na rede pública, poderia pare- cer secundária, já que não foi possível ainda sequer atin- gir uma camada significativa da população brasileira que, a partir da Constituição de 1988, adquiriu direito legal à educação em creches e pré-escolas. Felizmente, a publicação nos últimos anos de diversos estudos vem permitindo que se discuta qual é o papel da educação infantil no processo de aprendizado da criança, e também qual seria a melhor maneira de fazer valer esse papel em nossa sociedade. Numa cultura ágrafa, essas preocupações não teriam tan- to sentido, mas nossas crianças, especialmente as oriundas de classes mais baixas, estão inseridas em uma sociedade Resumo: Atualmente, um dos grandes desafios enfrentados na área da educação infantil é o de conseguir adaptar à sala de aula uma prática pedagógica que atenda às necessidades das crianças que já estão “vivendo” o pro- cesso de aquisição de leitura e escrita. Discutindo sobre esse processo, e também a respeito da relevância do papel que cumpre a literatura infantil, tenta-se atenuar as soluções para a questão, levantando algumas sugestões práticas que se baseiam nas corre- lações encontradas. Palavras-chave: ensino; aprendizagem; literatura infantil; pedagogia. VERA LUCIA BLANC SIMÕES Fonoaudióloga, Mestre em Lingüística pela FFLCH-USP

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SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(1) 2000

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HISTÓRIAS INFANTIS EAQUISIÇÃO DE ESCRITA

egundo o Referencial Curricular Nacional para aEducação Infantil – Documento Introdutório, “asinstituições de educação infantil (pré-escolas) cum-

prem hoje, mais do que nunca, um objetivo primordial naformação de crianças que estejam aptas para viver em umasociedade plural, democrática e em constante mudança(...) Ela deve intervir com intencionalidade educativa demodo eficiente visando a possibilitar uma aprendizagemsignificativa e favorecer um desenvolvimento pleno, deforma a tornar essas crianças cidadãs numa sociedade de-mocrática” (MED/SEF, 1998).

Um dos desafios a enfrentar hoje na educação infantilé o de conseguir adaptar uma prática pedagógica voltadapara atender às necessidades da criança, que, como serávisto, já está vivendo os processos envolvidos na aquisi-ção da linguagem escrita, em todos os seus aspectos. Es-pecificamente em relação à alfabetização, o objetivo a seralcançado não é mais o de “preparação”, desenvolvimen-to de prontidões para o ensino fundamental, como se acre-ditava até então. Atualmente, a alfabetização deixou deser encarada como um momento estanque e passou a sercompreendida como um processo, no qual a pré-escola(educação infantil) tem papel ativo e constitutivo.

Portanto, torna-se necessário estimular cada vez mais ointeresse da criança para que, embora carregado de significa-dos, o aprendizado não se perca no curso do tempo. A criançaaprende se desenvolvendo e se desenvolve aprendendo.

Ao relacionar os aspectos envolvidos na aquisição daescrita com a relevância de oportunidades que a práticade leitura de histórias infantis pode oferecer, pretende-seexpor algumas sugestões práticas que podem ser desen-volvidas no ambiente escolar, de forma a atenuar as res-postas para esse desafio.

APENAS PARA LEMBRAR...

Em uma sociedade que tem somente 6% de criançasna faixa etária de 0 a 6 anos freqüentando as instituiçõesde educação infantil, das quais 37% são provenientes defamílias com renda superior a cinco salários mínimos, apreocupação com a qualidade do ensino oferecido a es-sas crianças, em especial na rede pública, poderia pare-cer secundária, já que não foi possível ainda sequer atin-gir uma camada significativa da população brasileira que,a partir da Constituição de 1988, adquiriu direito legal àeducação em creches e pré-escolas.

Felizmente, a publicação nos últimos anos de diversosestudos vem permitindo que se discuta qual é o papel daeducação infantil no processo de aprendizado da criança,e também qual seria a melhor maneira de fazer valer essepapel em nossa sociedade.

Numa cultura ágrafa, essas preocupações não teriam tan-to sentido, mas nossas crianças, especialmente as oriundasde classes mais baixas, estão inseridas em uma sociedade

Resumo: Atualmente, um dos grandes desafios enfrentados na área da educação infantil é o de conseguir adaptarà sala de aula uma prática pedagógica que atenda às necessidades das crianças que já estão “vivendo” o pro-cesso de aquisição de leitura e escrita.Discutindo sobre esse processo, e também a respeito da relevância do papel que cumpre a literatura infantil,tenta-se atenuar as soluções para a questão, levantando algumas sugestões práticas que se baseiam nas corre-lações encontradas.Palavras-chave: ensino; aprendizagem; literatura infantil; pedagogia.

VERA LUCIA BLANC SIMÕES

Fonoaudióloga, Mestre em Lingüística pela FFLCH-USP

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letrada que, além das desigualdades e injustiças a que as sub-mete, discrimina quem não é alfabetizado, considerando-oinferior. Portanto, apropriar-se da linguagem escrita pode ofe-recer futuramente a essas crianças maiores possibilidades deinserção social e conquista de autonomia.

Segundo Vygotsky (1991:133), “ensinar a escrita nosanos pré-escolares impõe necessariamente que a escrita sejarelevante à vida (...) que as letras se tornem elementos davida das crianças, da mesma maneira como, por exemplo,a fala. Da mesma forma que as crianças aprendem a falar,elas podem muito bem aprender a ler e a escrever”.

O PAPEL DA LITERATURA INFANTILNA FASE INICIAL DA ESCRITA

Contar histórias a uma criança pequena é uma ativida-de bastante corriqueira, nas mais diversas culturas domundo e em várias situações, tanto no âmbito familiarcomo no escolar. Como se sabe, essa prática vem se re-produzindo através dos tempos de maneira quase intuiti-va. Contudo, alguns estudos já demonstraram o impor-tante papel que as histórias desempenham nos processosde aquisição e desenvolvimento da linguagem humana.

As histórias infantis são utilizadas geralmente pelosadultos interlocutores (sejam pais, professores ou tera-peutas) como forma de entretenimento ou distração; já que,pelo senso comum, freqüentemente a criança sempre de-monstra um interesse especial por elas, seja qual for a clas-se social à qual pertença.

Especificamente em se tratando da aquisição da leitu-ra e da escrita, essas histórias podem oferecer muito maisdo que o universo ficcional que desvelam e a importân-cia cultural que carregam como transmissoras de valoressociais.

Existe uma acentuada diferença entre as histórias con-tadas e as histórias lidas para uma criança, já que a lin-guagem se reveste de qualidade estética quando escrita, eessa diferença já pode ser percebida por ela. Britton (apudKato, 1997:41) já afirmava que, “ao ouvir histórias, a cri-ança vai construindo seu conhecimento da linguagem es-crita, que não se limita ao conhecimento das marcas grá-ficas a produzir ou a interpretar, mas envolve gênero,estrutura textual, funções, formas e recursos lingüísticos.Ouvindo histórias, a criança aprende pela experiência asatisfação que uma história provoca; aprende a estruturada história, passando a ter consideração pela unidade eseqüência do texto; associações convencionais que diri-gem as nossas expectativas ao ouvir histórias; o papel

esperado de um lobo, de um leão, de uma raposa, de umpríncipe; delimitadores iniciais e finais (‘era uma vez... eviveram felizes para sempre’) e estruturas lingüísticas maiselaboradas, típicas da linguagem literária. Aprende pelaexperiência o som de um texto escrito lido em voz alta”.

Essa forma de contato com a linguagem escrita, poroutro lado, também oferece, ainda que subliminarmente,informações sobre um dos papéis funcionais que ela podedesempenhar dentro da comunicação.

Do ponto de vista psicológico, podemos refletir sobreo impacto e a fascinação que as histórias exercem sobre acriança, de qualquer raça, faixa etária ou inserção social,tanto normal quanto portadora de algum distúrbio (de ori-gem física, psíquica ou funcional). As histórias são umdenominador comum a todas as crianças.

Assim, para que uma história realmente prenda a aten-ção da criança, deve entretê-la e despertar sua curiosida-de. Mas, para enriquecer sua vida, deve estimular sua ima-ginação, ajudando-a em seu desenvolvimento intelectual,propiciando-lhe mais clareza em seu universo afetivo, au-xiliando-a a reconhecer, mesmo de forma inconsciente,alguns de seus problemas e oferecendo-lhe perspectivasde soluções, mesmo provisórias.

Muito mais do que um adulto, a criança vive asexperiências do tempo presente, e possui apenas vagasnoções do futuro, mesmo assim de caráter imediato. Por-tanto, suas ansiedades frente a eventuais problemas e an-gústias do cotidiano são supostamente bastante profun-das, e é justamente no enriquecimento de seus recursosinternos para enfrentá-las que as histórias infantis são umbenefício. “É exatamente a mensagem que os contos defada transmitem à criança de forma múltipla: que uma lutacontra dificuldades graves na vida é inevitável, é parteintrínseca da existência humana – mas que, se a pessoanão se intimida mas se defronta de modo firme com asopressões inesperadas e muitas vezes injustas, ela domi-nará todos os obstáculos, e ao fim emergirá vitoriosa”(Bettelheim, 1985). Segundo o autor, que elegeu especi-almente os contos de fada e suas relações benéficas parao desenvolvimento psíquico da criança como objeto deseus estudos, a maioria das histórias tem seu enredo de-senvolvido baseando-se na equação: estabilidade + proble-ma + solução = estabilidade, e trabalha assim uma série deansiedades da criança. Especialmente os contos de fada quetratam de assuntos existenciais, como morte de progeni-tores, perigos, o mal e o bem, etc. Eles colocam dilemasexistenciais de forma simples e categórica, o que possi-bilita à criança experienciar o problema de forma mais

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essencial e trabalhar suas angústias com mais nitidez. Eleainda coloca que, “aplicando o modelo psicanalítico dapersonalidade humana, os contos de fada transmitem impor-tantes mensagens à mente consciente, à pré-consciente eà inconsciente, em qualquer nível que esteja funcionandono momento. Lidando com problemas humanos univer-sais, particularmente os que preocupam o pensamento dacriança, estas histórias falam ao ego em germinação eencorajam seu desenvolvimento, enquanto ao mesmo tem-po aliviam as pressões pré-conscientes e inconscientes.À medida que as histórias se desenrolam, dão validade ecorpo às pressões do id, mostrando caminhos parasatisfazê-las que estão de acordo com as requisições doego e do superego” (Bettelheim, 1985).

Tratando também dessa dimensão, segundo Winnicott(apud Postic, 1993:18), todos nós necessitamos de umaárea de ilusão paralela ao mundo real (ou das trocas so-ciais). Esse espaço interno é responsável pela transiçãoentre o consciente e o inconsciente, movimento que ga-rante o equilíbrio do indivíduo. Por suas atividades diá-rias, a criança tem contato com o real, com os outros. Aomesmo tempo, sua imaginação se desenvolve, pois elatoma consciência de seus limites, vive conflitos, experi-menta emoções contraditórias e tem muitas dúvidas quenão consegue esclarecer. Para tentar resolvê-las e domi-nar suas angústias, impulsionada por sua curiosidade, elaprocura sonhar, imaginar. E, se conseguir canalizar essemundo imaginário em ações no mundo real, ela desen-volve a capacidade de criação. Os desenhos, as narrati-vas, enfim, são maneiras de agir para dominar as emoções;as explosões de sonhos e imagens são dirigidas então paraa criação. Portanto, a criança deve conseguir alimentar seuimaginário e expressá-lo. Desenvolver a função simbólica pormeio de textos, imagens e sons é uma forma de sustentá-lo.

SOBRE AQUISIÇÃO DA LEITURA E ESCRITA:ALGUMAS REFLEXÕES E PROPOSIÇÕES

Muito se tem pesquisado e discutido em diversas áreasdo conhecimento sobre o que acontece durante a aquisi-ção e o desenvolvimento da linguagem no ser humano.Os processos envolvidos nesse percurso têm sido obser-vados de diversos pontos de vista, e as discussões a res-peito se multiplicam.

Vygotsky, entre outros estudiosos do assunto, buscan-do compreender a origem e o desenvolvimento dos pro-cessos psicológicos do indivíduo (abordagem genética),postula um enfoque sociointeracionista para a questão, no

qual um organismo não se desenvolve plenamente sem osuporte de outros de sua espécie, o que afirma que todoconhecimento se constrói socialmente. Durante todo opercurso do desenvolvimento das funções psicológicas,culturalmente organizadas, é justamente esse aspecto cul-tural, social, de interação com o outro, que desperta pro-cessos internos desse desenvolvimento. É o contato ativodo indivíduo com o meio, intermediado sempre pelos queo cercam, que faz com que o conhecimento se construa.Especialmente em se tratando da linguagem, o indivíduotem papel constitutivo e construtivo nesse processo (elenão é passivo: percebe, assimila, formula hipóteses, ex-perimenta-as, e em seguida reelabora-as, interagindo como meio). O que lhe proporciona, portanto, modos de per-ceber e organizar o real é justamente o grupo social (ainteração que ele faz com esse grupo). É este que deter-mina um sistema simbólico-lingüístico permeador dessesmodos de representação da realidade. Ainda segundo oautor, o pensamento e a linguagem estão intimamenterelacionados na medida em que o pensamento surge pe-las palavras. A significação é a força motriz para essarelação: não é o conteúdo de uma palavra que se modifi-ca, mas a maneira pela qual a realidade é generalizada erefletida nela. E são exatamente essas construções de sig-nificados que a criança vai desenvolvendo internamente(como uma linguagem interna, seu modelo de produçãodo pensamento) que partem da fala socializada, da falados outros que a cercam.

Foi sobretudo Bakhtin (1992) que, indo mais além,explicitou teoricamente essa posição dialógica sobre anatureza da linguagem. Segundo ele, é o diálogo a unida-de real da língua. Ao observar as situações de diálogoproduzido interativamente, pode-se perceber que a fala é“polifônica”, que existem numerosas vozes atuando: a vozinterna, a voz do outro, a própria voz...; vozes caracteri-zadas pelas convergências e divergências presentes no dis-curso dialógico, que propiciam diversas mudanças de po-sição que o sujeito pode fazer, apreendendo, assim, váriasfacetas da realidade em que vive e representando-a inter-namente de forma mais completa. Essa construção, por-tanto, baseia-se no que ele chamou de uma interação socio-verbal. A linguagem é a expressão e o produto da interaçãosocial de quem fala com quem fala, acrescida do tópicodo discurso.

Para Mayrink-Sabinson (1995), a linguagem seria umaatividade que constitui não somente o sujeito e a alteridadeque descobre exercer, mas também a si própria: “Dessaforma, o processo de aquisição da linguagem oral e escri-

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ta como parte do mesmo processo geral de constituiçãoda relação entre o sujeito e a linguagem, estabelecida pormeio da dialogia entre sujeitos que se constituem em ou-tros, para seus interlocutores, num movimento contínuo,o qual implica a internalização e tomada da fala do outropelo sujeito, ao mesmo tempo que dela se distancia paratorná-la sua própria.”

Especificamente em relação à linguagem escrita, po-demos pensar, portanto, que a criança, mesmo antes deler e escrever as primeiras letras, já participa ativamentedos processos envolvidos nessa aquisição. Ela percebe,analisa, formula suas hipóteses sobre a leitura e a escritaa que está exposta em seu cotidiano. Seria, então, até ina-dequado imaginar que uma criança em idade pré-escolarnão tenha competência e condições de apreender as di-versas características da comunicação gráfica. SegundoContini (1988), uma criança exposta a um ambiente pro-pício, ou seja, material escrito e pessoas que o manusei-em, incluindo a própria criança, já estaria apreendendoseus usos e funções como forma de comunicação antesmesmo dos dois anos de idade.

Foram os estudos sobre o que seria a psicogênese dalinguagem escrita de Ferreiro e Teberosky (1985) que lan-çaram uma nova luz sobre as tentativas de descrever asetapas pelas quais a criança passa durante o processo daaquisição. Segundo as autoras, a criança, durante o perí-odo de contato com os sinais gráficos, vai evoluindogradativamente. Essa evolução foi caracterizada em qua-tro grandes níveis: pré-silábico, silábico, silábico-alfabé-tico e alfabético.

No nível pré-silábico, observaram a presença de produ-ções gráficas em que não existe correspondência entre agrafia e o som. A criança nessa fase não demonstra preo-cupação em diferenciar critérios para suas produções, quese constróem a partir de traços idênticos, garatujas ougrafismos primitivos. Não se percebe tampouco controleda quantidade de letras utilizadas para representar o que sequer escrever. Portanto, a criança não se utiliza de umapalavra escrita para simbolizar graficamente um objeto.

Também é nessa fase que se observam as ocorrênciasdo realismo nominal, quando conforme Carraher (1986)e Rego (1990), por exemplo, a criança usa muitas letraspara simbolizar objetos grandes e poucas para pequenos,demonstrando assim sua hipótese na qual a representa-ção gráfica de um objeto está diretamente relacionada aum de seus atributos.

Já o nível silábico se delimita quando a criança perce-be que é possível representar graficamente a linguagem

oral. Ela faz então várias tentativas para estabelecer umarelação entre a produção oral e a produção gráfica, entreo som e a grafia. E começa, com essas tentativas, a rela-cionar o que escreve com as sílabas das palavras faladasque deseja representar. Entretanto, com seu conhecimen-to prévio sobre o material escrito, utiliza-se de letras quepodem não representar os respectivos sons. Ela percebenessa fase que pode escrever tudo o que deseja, mesmoque aquilo que expressa graficamente não possa ser deci-frado por outras pessoas. Também nessa fase, pode acei-tar relutante o fato de escrever palavras menores compoucas letras ou ainda pode se usar, ao escrever uma fra-se, uma letra somente para uma palavra inteira.

A criança passa, então, a conviver com esses dois ti-pos de correspondência entre a grafia e o som, adentrandoassim no nível silábico-alfabético. E começa também aexperienciar um conflito, já que é capaz agora de perce-ber que existe uma representação gráfica correspondentea cada som (percebe a relação entre grafema e fonema).Ela vai reformulando sua hipótese anterior, silábica, quelhe parece insuficiente, e vai alternando sua produção entreessa e a alfabética propriamente dita.

Com suas tentativas e reformulações, ela evolui para onível alfabético, que se estabelece mais firmemente so-bre sua percepção da relação entre a grafia e o som. Elajá consegue aceitar que a sílaba é composta de letras quedevem ser representadas distintamente, e se torna capazde perceber outras características da comunicação gráfi-ca, tais como as diferenças entre letras, sílabas, palavrase frases, ainda que ela falhe nessas representações.

Vale a pena ressaltar que, em seus estudos, Ferreiro eTeberosky (1985) encontraram crianças que mostram umaseqüência de três níveis evolutivos; em outras, uma se-qüência apenas de dois níveis – por exemplo, do pré-silá-bico ao silábico, ou do pré-silábico ao silábico alfabéti-co, saltando um nível; ou ainda, em menor número,crianças que passam diretamente do nível pré-silábico aoalfabético.

Para Mayrink-Sabinson (1995), o trabalho desenvol-vido por Ferreiro e colaboradores é centrado em um su-jeito considerado idealizado e universal, e descreve astransformações efetuadas por ele. O sujeito age sobre asinformações que recebe do ambiente e produz a próprialinguagem por meio de esquemas assimilados previamenteconstruídos, deixando de lado uma explicitação teóricasobre o contexto, com o qual os indivíduos agem continua-mente e tem papel mediador e, portanto, constitutivo, emtodo o processo da aquisição da linguagem escrita. A au-

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tora desenvolveu um estudo calcado em pesquisas sobreas relações entre mãe e criança pré-escolar durante o pro-cesso de aquisição, no qual enfoca o papel do interlocutoradulto letrado em suas interpretações das produções grá-ficas do sujeito.

Essas interpretações é que atribuem um significado paraas produções da criança – suas representações gráficas(das garatujas às seqüências de letras) –, e assim o adultopassa também por transformações como interlocutor emseus modos de ação. A partir de então, sua fala sobre asproduções apresentadas pela criança também é retoma-da, modificada, enriquecida e transformada por ela e oinverso também ocorre, modificando assim a escrita dacriança. O adulto passa a admitir em suas conclusões quese forma nesse contexto uma verdadeira situação dialógicadurante o processo de aquisição da escrita, já que ointerlocutor e o sujeito vão progredindo e se transformandoreciprocamente.

Assim, podemos dizer que a leitura e a escrita já nãopodem ser encaradas meramente como atos de codificaçãoe decodificação, de identificação de palavras, ou até mes-mo simplesmente como um processo envolvido com osmovimentos oculares e maturação neurofisiológica. Elasenvolvem uma gama de outros processos que propiciama aquisição desse “novo” código pela criança, mas queestá inserida num contexto mais amplo de aquisições delinguagem que perdura até a fase adulta. E é nesse senti-do que aprender a ler e a escrever implica a constanteconstrução de significado dessas atividades.

SUGESTÕES

Alguns estudos, como já evidenciado anteriormente,constataram o sucesso alcançado no processo de alfabeti-zação por crianças que, no ambiente familiar, tiveram umcontato substancial com a literatura infantil. Essas situa-ções oferecidas a elas são rodeadas de um clima rico emafetividade e segurança, que propicia interação com seusinterlocutores adultos de forma bastante natural, com aatenção individualizada que podem receber.

Portanto, o prazer e o conforto que a criança sente emsua casa deve sempre estar presente nas atividades na esco-la. É importante que a criança esteja certa de que pode fazerperguntas e interferir nesses trabalhos, para que se sinta en-corajada a exteriorizar seus pensamentos e emoções. Assim,a linguagem escrita adquire um caráter de maior proximida-de, e os momentos de interação com o educador (interlocutorletrado) e com as outras crianças é garantido. A leitura de

histórias deve deixar de ser meramente uma distração paraevitar a dispersão do grupo. É um momento rico que deveser explorado ao máximo por todos.

É evidente que, em sala de aula, muitas vezes existe ofator agravante do grande número de crianças por pro-fessor. Quanto ao espaço físico, o ambiente deve ser pre-viamente preparado: o mais adequado seria que o educa-dor procurasse encontrar a posição mais natural possívelpara que todas as crianças estivessem unidas, se sentis-sem estimuladas para esse momento, estivessem tranqüi-las e tivessem acesso visual ao livro que está sendo lido –colocando o livro no chão com as crianças em volta dele,ou segurando-o de forma expositiva, de frente para elas,e, se necessário, apontando para as figuras e para o texto.

Reiteramos que é muito importante que o educador fi-que atento para garantir que todas as crianças (até aque-las mais tímidas, que têm vergonha de reclamar) possamvisualizar o livro. As imagens, nessa faixa etária, exer-cem maior fascínio sobre elas, e na prática podemos no-tar a ansiedade que experimentam quando não enxergamo que está sendo lido.

Apesar de ser importante que as histórias sejamvivenciadas pelas crianças, especialmente as mais novas,de diversas maneiras (contar histórias sem ler, representá-las em dramatizações, assisti-las em filmes e projeções,etc.), nos momentos de leitura, o educador deve sempreprocurar ser literal e dar certo caráter interpretativo a sualeitura, usando variações de entonação (inclusive para ca-racterizar a prosódia), de forma clara e agradável. Redu-zir ou modificar o texto escrito, transformando-o em lin-guagem coloquial, priva a criança de experimentar eperceber auditivamente as características que a linguagemescrita carrega (que diferem da linguagem oral). Mesmoque o vocabulário lhes seja desconhecido, encontra-se aíuma boa oportunidade de enriquecê-lo, a partir, sobretu-do, das perguntas que elas podem e devem sempre poderelaborar. Não só as perguntas são importantes, mas o co-nhecimento de mundo que compartilham tem de ser au-mentado. O educador deve procurar agir como elementoincentivador do interesse das crianças pelo enredo, com-portando-se não somente como leitor (mediador) das his-tórias mas, também, demonstrando entusiasmo e curiosi-dade, como mais um ouvinte – participante no mundo doimaginário. Essa postura deve ser reforçada particularmen-te quando escutar as posteriores “leituras” que as criançasfazem das histórias lidas.

Outro critério importante à preparação dessa ativida-de: o da escolha do livro a ser trabalhado. Como o objeti-

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vo é o de oferecer, pela leitura de histórias, um contatosignificativo das crianças com a linguagem escrita, aoselecionar materiais, o educador deve ter sua atençãovoltada para a qualidade da criação, a estruturação danarrativa e suas adequações à língua materna, procuran-do não perder de vista o interesse manifestado pelas crian-ças. Dessa maneira, é aconselhável que essas atividadesse iniciem por leituras de textos mais curtos (com o cui-dado de não serem simplistas a ponto de perderem a es-trutura narrativa e se limitarem a frases, figuras e pala-vras soltas), que podem e devem, com o decorrer do tempo,se tornar mais complexos. O educador também deve terem mente, ao realizar sua seleção, outros aspectos, alémda aquisição de linguagem, envolvidos no processo de de-senvolvimento: o cognitivo, o afetivo-emocional. Selecio-nar esses textos envolve, antes de tudo, bom senso e cui-dado especial para adequá-los, inclusive, a situaçõesvividas pelas crianças em determinadas épocas, poden-do-se utilizar histórias que estejam de acordo com as ex-periências que elas trazem para a escola (por exemplo,ler uma história de viagens, como Família Robinson, de-pois das férias escolares).

Outra questão a ser tratada diz respeito à freqüênciadessas atividades. A leitura de histórias tem maior eficá-cia conforme sua recorrência aumenta. Crianças nessa fai-xa etária costumam até mesmo solicitar a repetição da lei-tura. A proposta é que ela se incorpore à rotina diária naescola, o que não necessariamente implica textos semprediferentes; “... As crianças que escutam leituras desen-volvem naturalmente um interesse em aprender determi-nadas histórias e em reproduzi-las oralmente como se es-tivessem lendo (...) O grupo termina por estabelecer o seurepertório de histórias favoritas, aquelas com as quais ascrianças mais se identificam e cujas leituras costumamimitar” (Rego, 1990).

O desdobramento da leitura de histórias em outras ati-vidades relacionadas é fundamental na perpetuação dosignificado para a criança.

O educador poderia solicitar, por exemplo, que a crian-ça reproduza oralmente as narrativas lidas por ele. Nessesentido, seria interessante também estimular que a crian-ça “leia” as histórias (leitura de “faz-de-conta”) para seuscolegas. Essas atividades de retomada das histórias po-dem ir se desdobrando, por sua vez, em outras, como de-senhos, dramatizações, etc.

Salientamos aqui que o registro dessas atividades de-correntes da leitura pode ser feito de várias formas, sem-pre com a participação das crianças, seja por escrito (o

que também lhes oferece outra informação sobre os pos-síveis usos da escrita) ou por gravações em áudio e/ouvídeo.

“... A criação não surge do nada. Eis por que defende-mos a necessidade da leitura por parte da professora e oincentivo à reprodução de histórias pelas crianças comoum ponto de partida importante para o surgimento de umasegunda etapa deste processo: o momento da criação. Nadaimpede, porém, que esse momento seja estimulado, pro-pondo-se às crianças que criem seus próprios livros e pro-duzam textos, mesmo que ainda não estejam alfabetiza-das (...) O arquivo dessas produções permitirá tambémacompanhar o desenvolvimento dos esquemas narrativosdas crianças e a incorporação do estilo escrito às suas pro-duções orais” (Rego, 1990). A autora salienta ainda quea criança, em princípio, demonstra em suas reproduçõesorais muito da fala coloquial, e que é necessário certo tem-po para que se observem as características da linguagemescrita em seus discursos. A criança atravessa um perío-do de “hibernação” para que a capacidade de criação denarrativas para textos escritos se desenvolva, refletindoassim os processos construtivos da linguagem.

Para o desenvolvimento de atividades que propiciemà criança incentivo à escrita, um estudo sobre a similari-dade dos sons entre as palavras, estimulando-a em sua per-cepção e discriminação auditiva, e que, no decorrer dotempo, se transforme em associação com a escrita, já podeser iniciado na pré-escola (educação infantil), o que, evi-taria a cisão no processo de alfabetização, em que a fasepré-escolar é considerada apenas preparatória à alfabeti-zação formal do ensino fundamental. Um bom exemplo aser citado seria leituras e jogos com rimas (parlendas,poemas, etc.), nos quais a criança “experimenta” auditi-vamente as semelhanças sonoras, e, em outro momento,representa graficamente essas palavras, ao fazer a rela-ção entre fonemas e grafemas.

CONCLUSÃO

Não há necessidade de esperar pela alfabetização for-mal para que as crianças se envolvam com a leitura dehistórias infantis e a produção de textos. Entretanto, paraque elas se tornem efetivamente leitoras e autoras dos pró-prios textos, faz-se necessário que, em algum momentodo processo de alfabetização, tenham não somente adqui-rido conhecimentos específicos do código alfabético, mastambém (e sobretudo) dos aspectos lingüístico-discursivosem que ele se insere.

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Afinal, parafraseando Smolka (1993): “Não se ‘ensi-na’ ou não se ‘aprende’ simplesmente a ler e a escrever.Aprende-se uma forma de linguagem, uma forma de in-teração, uma atividade, um trabalho simbólico.”

NOTA

E-mail da autora: [email protected]

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. E.G.G. Pereira. São Paulo,Martins Fontes, 1992.

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