"histórias de adolescentes: um estudo sobre a imaginação no contexto escolar"

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Histórias de adolescentes: um estudo sobre a imaginação no contexto escolar 1 Marília Luiza Galante Cavani 2 Vera Lúcia Trevisan de Souza 3 1 Este relatório foi produto de pesquisa de Iniciação Científica realizada com bolsa FAPIC/Reitoria. 2 Graduanda em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas E-mail: [email protected] 3 Professora da Pós-Graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Campinas E-mail: [email protected]

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Page 1: "Histórias De Adolescentes: um estudo sobre a imaginação no contexto escolar"

Histórias de adolescentes:

um estudo sobre a imaginação no contexto escolar1

Marília Luiza Galante Cavani2

Vera Lúcia Trevisan de Souza3

1Este relatório foi produto de pesquisa de Iniciação Científica realizada com bolsa FAPIC/Reitoria.

2 Graduanda em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas

E-mail: [email protected]

3 Professora da Pós-Graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Campinas

E-mail: [email protected]

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RESUMO

Nesta pesquisa tivemos como objetivo investigar o papel da imaginação no

desenvolvimento de adolescentes que frequentam o 6° ano do Ensino Fundamental de uma

escola estadual do interior do estado de São Paulo. Sua natureza é documental, uma vez

que as fontes utilizadas para a construção das informações foram os diários de campo

pertencentes ao banco de dados do grupo de pesquisa ao qual se vincula o presente estudo,

e um livro de histórias produzido por esses alunos. A análise dos dados foi realizada com

base nos pressupostos da Psicologia Histórico-Cultural, especialmente os desenvolvidos

por Vigotski, com destaque ao conceito de imaginação. Observou-se que as histórias

criadas pelos adolescentes revelam o modo como pensam e vivem o contexto escolar,

demonstrando que o medo e a punição ainda são medidas que perpassam as práticas

educativas. Não obstante, observamos que nas histórias dos alunos há o predomínio da

reprodução dos fatos vividos em detrimento da criação de novas realidades pelo exercício

da imaginação, o que caracterizaria o ato criativo, evidenciando certa dificuldade dos

jovens em pensar para além de sua realidade. Também por meio das histórias escritas pelos

alunos acessamos um pensamento concreto que tem como característica o preconceito, e

observamos que as práticas escolares pouco tem contribuído para a superação desse tipo de

pensamento, o que, a nosso ver, poderia favorecer o desenvolvimento da autoria e

autonomia dos alunos. Acreditamos que o psicólogo escolar seja capaz de levar à escola

contribuições importantes para as situações descritas neste trabalho, ao passo que

possibilite reflexões sobre o importante papel da imaginação na adolescência com os

professores e gestores.

Palavras-chave: Psicologia Escolar; Psicologia Histórico-Cultural; Imaginação;

Adolescência.

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SUMÁRIO 1. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA ......................................................................................... 5

1.1. A ADOLESCÊNCIA NA CONCEPÇÃO DA PSICOLOGIA HISTÓRICO-CULTURAL........... 8

1.2. A IMAGINAÇÃO NA ADOLESCÊNCIA ............................................................................ 12

2. OBJETIVOS .......................................................................................................................... 16

2.1. GERAL ............................................................................................................................. 16

2.2. ESPECÍFICOS................................................................................................................... 16

3. METODOLOGIA .................................................................................................................. 17

3.1. CONCEPÇÃO METODOLÓGICA ..................................................................................... 17

3.2. O CONTEXTO DA PESQUISA........................................................................................... 18

3.3. CARACTERIZAÇÃO DOS SUJEITOS ............................................................................... 19

3.4. PROCEDIMENTOS ........................................................................................................... 19

3.5. FONTES DE INFORMAÇÃO ............................................................................................. 20

4. ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS ............................................................. 21

4.1. IMAGINAÇÃO E MEMÓRIA: PARES DE OPOSTOS QUE SE COMPLEMENTAM NO

PROCESSO DE DESENVOLVIMENTO .......................................................................................... 21

4.2. O DESENVOLVIMENTO DA IMAGINAÇÃO COMO POSSIBILIDADE DE SUPERAÇÃO DO

PRECONCEITO ............................................................................................................................ 35

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 45

6. REFERÊNCIAS .................................................................................................................... 48

7. ANEXOS ................................................................................................................................. 51

A. ANEXO 1 - CATEGORIAS DE ANÁLISE ........................................................................... 51

B. ANEXO 2 - ROTEIRO PARA OBSERVAÇÃO NA ESCOLA ................................................ 61

C. ANEXO 3 - DIÁRIO DE CAMPO (30/OUT/2013) .............................................................. 62

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A esperança vê o que não existe no presente. Existe

só no futuro, na imaginação. A imaginação é o lugar

onde as coisas que não existem, existem. Este é o

mistério da alma humana: somos ajudados pelo que

não existe. Quando temos esperança, o futuro se

apossa dos nossos corpos. E dançamos.

Rubem Alves (1933-2014)

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1. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

O presente estudo deriva de uma pesquisa de mestrado intitulada “Os sentidos do

respeito na escola: uma análise da perspectiva da psicologia histórico-cultural” (Barbosa,

2012), vinculada ao grupo de pesquisa Processos de Constituição do Sujeito em Práticas

Educativas – PROSPED, do Programa de pós-graduação em Psicologia da Pontifícia

Universidade Católica de Campinas, liderado pela professora Dra. Vera Lúcia Trevisan de

Souza.

A problemática desta investigação nasce de questionamentos formulados a partir de

outras pesquisas realizadas em escolas em que se constatou que, via de regra, a imaginação

não é valorizada ou trabalhada com os adolescentes. Na maioria das vezes, a imaginação é

representada como uma função que não favorece o aprendizado, ao contrário, é tomada

como negativa, visto tirar a concentração dos alunos na realização do que é proposto pelos

professores. (Barbosa, 2012; Montezi e Souza, 2012).

Entretanto, alguns dos trabalhos desenvolvidos pelo referido grupo, apontam a

imaginação como uma das funções mais importantes no desenvolvimento de adolescentes,

visto que nesta fase o sujeito vivencia diferentes afetos e emoções que podem ser

materializados via imaginação ou pelo ato criador (Barbosa, 2012; Montezi e Souza,

2012). Apesar de sua importância, ainda há carência de estudos sobre a imaginação

tomando como base a Psicologia Histórico-Cultural, o que também justifica a realização

deste estudo.

Segundo Martins (2011), a imaginação é qualquer processo que se desenvolve por

meio de imagens, e assim sendo, considera que todos os processos funcionais são, de

alguma forma, processos imaginativos. O que a diferencia das demais funções é o fato de

que “nela, as imagens das experiências prévias se alteram, produzindo outras e novas

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imagens” (p. 180), ou seja, estamos falando de uma atividade mental que permite

modificar conexões estabelecidas previamente entre o objeto real e sua imagem, sendo

possível produzir algo inteiramente novo.

Como processo individual e específico, a imaginação está intimamente ligada ao

desenvolvimento da linguagem, do pensamento e dos sentimentos.

Vigotski, principal representante da Psicologia Histórico-Cultural, coloca que a

intima relação da imaginação e das demais funções psicológicas acabou por dificultar e

comprometer as tentativas de explica-la e defini-la, o que, por sua vez, fez com que

perdesse suas propriedades individuais ao ser reduzida às outras funções, ou, nas palavras

de Martins (2011, p.179), “se convertia em um ato fortuito, fruto do acaso, “em um passe

de mágica””.

Vigotski aponta a dialética presente na concepção da imaginação como função

psicológica ao afirmar que ao mesmo tempo em que a imaginação tem em sua base

(servindo de ponto de apoio e condição de existência) a realidade, é capaz de superar a

própria experiência sensorial (Martins, 2011).

Vigotski (1930/2010) postula que a imaginação tem como base a experiência do

sujeito com a realidade, já que em sua concepção a imaginação é constituída

historicamente. Entretanto, a imaginação não se refere à simples reprodução das

experiências, mas sim à combinação de seus elementos, criando o novo, possibilitando o

estabelecimento de novos nexos. Vigotski entende a imaginação como uma função

psicológica e destaca quatro tipos de relação com a realidade.

A primeira é a de que toda obra da imaginação tem como base elementos

apreendidos da realidade e presentes na experiência anterior da pessoa, ou seja, quanto

mais rica a experiência mais elementos estão disponíveis à sua imaginação. A segunda

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refere-se à articulação entre o produto final da fantasia e um fenômeno complexo da

realidade, visto que o sujeito não se limita somente às experiências passadas, mas cria

novas combinações. A terceira forma é de caráter emocional: todo sentimento e emoção

tende a se entrelaçar com imagens conhecidas correspondentes a esse sentimento, de modo

que a emoção parece possuir a capacidade de selecionar impressões, ideias e imagens

consoantes a um determinado instante. A quarta, e última forma, tem como essência a

construção da fantasia como algo inusitado, sem ter relação com experiências anteriores da

pessoa ou algum objeto existente. Mas, ao adquirir concretude material, essa “imaginação

cristalizada começa a existir realmente no mundo e influir sobre outras coisas” (Vigotski,

1930/2009, p.28).

No que se refere à função da imaginação, Vigotski (1930/2009) aponta seu

importante papel no desenvolvimento humano. A imaginação amplia a experiência do

sujeito que, ao ser capaz de imaginar um fenômeno impossível de ser visualizado, vivencia

experiências diferentes. Desse modo, essa função psicológica constitui-se como

fundamental na educação escolar, visto que a maioria dos conteúdos ensinados são

pautados em informações abstratas, não possíveis de serem observados, que só são

aprendidas com a ajuda da imaginação.

Outra função que a imaginação pode assumir é a satisfação das necessidades não

possíveis de serem concretizadas. Muitas vezes, o sujeito não tem a possibilidade de

realizar todos seus desejos, utilizando-se da imaginação para satisfazer suas necessidades.

Além disso, quando as situações do meio são muito dolorosas, insuportáveis, a imaginação

também tem a função de distanciar o sujeito da realidade, favorecendo a elaboração das

emoções.

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Essas acepções, por si só, justificam o investimento na compreensão da influência

da imaginação no desenvolvimento de adolescentes, sobretudo aqueles que frequentam a

escola. Para tanto, necessário se faz aprofundar a compreensão desta temática pelos

teóricos cujos aportes nos guiam no desenvolvimento desta pesquisa.

1.1. A ADOLESCÊNCIA NA CONCEPÇÃO DA PSICOLOGIA HISTÓRICO-CULTURAL

A adolescência é um tema que tem despertado o interesse de muitos teóricos e

pesquisadores, o que se evidencia pelo grande número de pesquisas desenvolvidas na área

da psicologia e da educação (Bock, 2007). Talvez, uma justificativa para isso seja a

necessidade de se compreender de modo mais aprofundado como lidar com os conflitos

que parecem ser característica fundante dessa fase do desenvolvimento humano.

De forma geral, a adolescência tem sido compreendida por muitos estudos como

um fenômeno universal e natural. À vista disso percebe-se que o conceito de adolescência

utilizado pela Psicologia fundamenta-se em um único tipo de representante: “homem-

branco-burguês-racional-ocidental”. Assim, outros grupos e suas singularidades são

excluídos dos estudos, o que contribui ainda mais para uma visão descontextualizada da

adolescência (Bock, 2007).

Analisando a construção histórica da adolescência, a partir da visão da psicologia

do desenvolvimento, é notável um constante movimento de concepções, que mostram o

adolescente “ora como dominado por paixões e tormentas, ora como sujeito pleno de

racionalidade” (Oliveira, 2006, p.427).

Essa perspectiva não é a adotada por Vigotski. Diferentemente de outros teóricos

da psicologia, ele apresenta a adolescência não como uma fase natural do

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desenvolvimento, mas como sendo construída socialmente, caracterizada como idade de

transição com particularidades específicas e marcada por grandes saltos, não se tratando

somente de um período passageiro e repleto de dificuldades. Além disso, Vigotski afirma

que na adolescência a gama de vivências do sujeito se amplia, uma vez que há novos

ambientes de relações, certa independência, além de lhe conferir responsabilidades que não

existiam na infância (Vygotski, 1931/2006).

Para apreendermos o modo como a adolescência é compreendida dentro desta

perspectiva, é preciso considerarmos o lugar de onde se fala e a compreensão que se tem

do sujeito. Tendo como base os pressupostos do materialismo histórico dialético, a

Psicologia Histórico-Cultural entende que o sujeito se desenvolve a partir de suas relações

sociais e culturais. Portanto, o homem é um ser histórico, “que tem características forjadas

pelo tempo, pela sociedade e pelas relações, imerso nas relações e na cultura das quais

retira suas possibilidades de ser” (Bock, 2007, p.67). O mundo psicológico é visto por essa

concepção teórica como uma “construção no nível individual [subjetivo] do mundo

simbólico que é social” (Bock, 2007, p.67).

Mais do que entender o que é adolescência é necessário saber como ela se

constituiu historicamente, uma vez que “responder o que é adolescência implica buscar

compreender sua gênese histórica e seu desenvolvimento” (Bock, 2007, p.68).

Segundo Clímaco (1991 citado por Bock, 2007) pode-se dizer que a adolescência,

como concebida hoje, surgiu durante a Revolução Industrial (1760-1840), quando

começou a ser exigido um prolongamento na formação dos indivíduos, a qual era

fornecida nas instituições escolares, devido à sofisticação do trabalho. O desemprego

crônico proveniente da estrutura capitalista também estabeleceu o retardamento dos jovens

na entrada no mercado de trabalho, exigindo requisitos para esse ingresso. Também nesse

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período o desenvolvimento da ciência provocou um aumento da longevidade, provocando

desafios para a sociedade no que diz respeito ao mercado de trabalho e formas de

sobrevivência.

Assim sendo, apesar de possuir condições cognitivas, afetivas e fisiológicas para

fazer parte do mundo adulto, o adolescente não tem a qualificação que o mercado de

trabalho exige e, portanto, precisa ficar por mais tempo na dependência dos pais a fim de

se preparar para a inserção no trabalho. Conforme Clímaco (1991 citado por Bock, 2007),

essa contradição vivenciada pelos adolescentes pode ser responsável por uma série de

características as quais estão imbrincados, características essas que são descritas pela

Psicologia como “crises de identidade e busca de si mesmo; tendência grupal; necessidade

de intelectualizar e fantasiar; atitude rebelde; onipotência e outras”. Esses aspectos são

vistos aqui não como algo natural, mas como constituídas no processo histórico e social.

Dessa forma, a adolescência pode ser considerada como um “período de latência

social” que emerge em decorrência dos requisitos capitalistas de necessidade de preparo

técnico para o ingresso e a falta de espaço para todos no mercado de trabalho. Portanto,

essa moratória não era um período necessário no desenvolvimento do sujeito, até mesmo

porque em muitas sociedades (como a grega antiga, romana e judaica) esse período era

completamente diferente, mas uma exigência dos adultos para poderem se manter por mais

tempo no mercado de trabalho (Bock, 2007).

Sendo constructo histórico-social a adolescência não possui nada de patológico

nem natural. Pode existir hoje e não mais amanhã, em outra constituição social; em um

local e não em outro; mais evidente em uma sociedade do que em outra. “Não há uma

adolescência, enquanto possibilidade de ser; há uma adolescência enquanto significado

social, mas suas possibilidades de expressão são muitas” (Bock, 2007, p.70).

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Como ocorre em todo período de transição, as crises também estão presentes na

adolescência, porém Vigotski não as vê como algo negativo, uma vez que considera a crise

um aspecto que impulsiona o desenvolvimento humano. Assim, para se estudar a

adolescência é necessário considerar e entender essas crises bem como as mudanças de

interesses e necessidades específicas, decorrentes não só da maturação biológica, mas

principalmente das interações sociais dessa fase (Vygotski, 1931/2006). Destaca, ainda, o

autor, que a mediação do social não influencia somente na mudança de interesses dos

adolescentes, mas promove neles um salto qualitativo no desenvolvimento das funções

psicológicas, determinando todo o funcionamento futuro do sujeito. Nesta fase, o

pensamento evolui e passa gradualmente a ser operado por conceitos e não mais por

complexos (característico do pensamento infantil). Porém, para que o pensamento passe a

operar por conceitos é necessário que o sujeito tenha condições específicas para seu

desenvolvimento. Para que isso aconteça torna-se necessário um investimento no sujeito e

em suas potencialidades, lembrando sempre que ao desenvolvimento de uma função

psicológica estão atreladas as outras funções que compõem o sistema psicológico; e, ao

falarmos na revolução que marca o “surgimento” do pensamento por conceito,

conseguimos destacar a importância desempenhada pela imaginação.

É exatamente esse o foco que buscaremos ao longo deste trabalho, tentando

responder às nossas questões de pesquisa. Passamos agora a abordar o desenvolvimento da

imaginação na adolescência.

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1.2. A IMAGINAÇÃO NA ADOLESCÊNCIA

Iniciamos esse item trazendo a definição contida no Dicionário de Psicologia de

Dorin (2014) sobre a imaginação:

imaginação. Do lat. imaginatio, onis = processo de sintetizar imagens mentais em

novas ideias. “O produto da imaginação é composto de partes percebidas em

épocas diferentes e mais tarde evocadas e combinadas como um centauro é

composto de homem e cavalo e uma sereia, de mulher e peixe” (Woodworth). Na

imaginação existe uma reorganização de experiências passadas que inclui

elementos da experiência momentânea. Quando controlada, dá origem ao

pensamento criador (p. 336).

Essa definição, podendo ser entendida como mais geral dentro da Psicologia, se

aproxima da perspectiva teórica por nós adotada. De acordo com Vygotski (1930/2009;

1931/2006), o ato criador é concebido historicamente, portanto se desenvolve por meio das

experiências do sujeito com sua realidade, na combinação de elementos dessas vivências,

gerando o novo. Apesar de toda obra da imaginação ter bases nas experiências passadas do

sujeito, ela não se limita a isso, criando, na união de diferentes elementos, inclusive

emoções e sentimentos, novas combinações.

Assim, a imaginação apresenta papel fundamental no desenvolvimento do

indivíduo, uma vez que ao torná-lo capaz de conceber fenômenos impossíveis de serem

visualizados faz com que ele vivencie experiências distintas, satisfaça necessidades

impossíveis (ou difíceis) de serem realizadas, além de propiciar a elaboração de

sentimentos e emoções (Vigotski, 1930/2009).

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Vigotski entende que a atividade criadora se desenvolve de forma lenta e gradual,

partindo das maneiras mais elementares até alcançar níveis mais complexos. Segundo ele,

existem expressões singulares correspondentes às diferentes faixas etárias, possuindo

formas características de criação para cada uma. Além disso, é intrínseco a qualquer

comportamento humano, e está diretamente ligada ao acúmulo de experiências, além do

que não pode ser considerada “um divertimento ocioso da mente, uma atividade suspensa

no ar, mas uma função vital necessária” (Vigotski, 1930/2010, p.20).

Diferentemente do que se pensa comumente, a imaginação da criança é menos rica

do que a do adulto, isto porque as experiências dela são mais limitadas, e suas relações

com o meio “não possuem a complexidade, a sutileza e a multiplicidade” das do adulto

(Vigotski, 1930/2010, p.44).

Conforme a criança cresce também se desenvolve sua imaginação e, à medida que

se aproxima da adolescência, “a potente ascensão da imaginação e os primeiros rudimentos

de amadurecimento da fantasia unem-se” (p.45); os interesses de quando era criança vão

dando lugar a novos interesses, e ao atingir o “amadurecimento geral”, finalmente sua

imaginação toma uma nova forma (Vigotski, 1930/2010).

Então, por que comumente a imaginação da criança é vista como mais rica que a do

adulto? Para Vigotski (1930/2010), na infância o indivíduo “confia mais nos produtos de

sua imaginação e os controla menos” (p.46) do que os adultos. Porém essa diferença não se

restringe apenas ao material mais empobrecido da criança, mas conta também com “o

caráter, a qualidade e a diversidade das combinações” (p.46-47) que é significativamente

mais limitada quando comparada ao do adulto.

Vigotski (1930/2010) recorre a Ribot para ratificar as razões de a imaginação, ainda

que mais desenvolvida, não encontrar canais de expressão na vida adulta. Para o autor, no

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adulto a imaginação adapta-se às condições racionais, não sendo mais uma atividade pura,

e sim mista. A responsável para o que seria um declínio da imaginação é a vida cotidiana,

com seu caráter pragmático que impede que o indivíduo se dedique a atividades criativas,

adotando modos mais rápidos e ágeis para solucionar os problemas. Ou seja, não se investe

na imaginação, não se desenvolve a atividade criativa.

Nesse período fica evidente que o adolescente, em geral, abandona os desenhos,

expressão mais marcante da imaginação infantil, e se volta para a literatura, forma mais

comum de expressão da imaginação adolescente. A criação literária é impulsionada pelo

crescimento das vivências subjetivas, “pela ampliação e pelo aprofundamento da vida

íntima do adolescente”, de forma que, nesse momento, ele passa a construir em si um

“mundo interno específico” (Vigotski, 1930/2010, p.49).

Assim, a imaginação, ao contrário do que se pensa, não é uma atividade

exclusivamente interna, ela está intimamente ligada ao ambiente, como diz Vigotski

(1930/2010, p.42): “o ímpeto para a criação é sempre inversamente proporcional à

simplicidade do ambiente”. Dessa forma, “mesmo um gênio, é sempre um fruto de seu

tempo e de seu meio”, considerando-se que suas necessidades existiam antes mesmo dele,

e que a criação é um processo de herança histórica, não podendo nada ser criado sem que

antes existam condições materiais e psicológicas para tal (p.42).

Montezi e Souza (2013) destacam que a imaginação vem sendo estudada com mais

frequência, nos últimos anos, principalmente pelas áreas de Educação e Psicologia, fato

que pode ser explicado pela importância dada por esses campos a essa função psicológica

superior, que é tida como manifestação da subjetividade, condição para a criatividade e

assim fundamental para a aprendizagem.

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Nos últimos anos, a perspectiva histórico-cultural tem se atentado à questão da

imaginação por considerá-la como “favorecedora da aprendizagem e desenvolvimento”

(Mitjánz Martinez, 1997, 2004, 2006 citado por Montezi & Souza, 2013, p.78). Dessa

forma, entender a criatividade como função psicológica superior, impulsionada

principalmente pela imaginação, tal como postula Vygotski (1931/2006, 1930/2010),

promove um melhor entendimento e promoção do desenvolvimento de adolescentes,

principalmente no que diz respeito ao contexto de ensino e aprendizagem (Montezi &

Souza, 2013, p.78).

Foi do acesso a essas informações que elaboramos a questão de investigação desse

trabalho: qual o papel da imaginação no desenvolvimento de adolescentes que

frequentam a escola pública de ensino fundamental?

Abordar a temática da imaginação torna-se importante na medida em que auxilia na

compreensão do desenvolvimento do psiquismo humano, nesse caso, com foco nos

adolescentes e nas relações por eles empreendidas na escola, adotando a perspectiva da

Psicologia Histórico-Cultural, buscando contribuir para o avanço das produções científicas

na área.

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2. OBJETIVOS

2.1. GERAL

o Analisar o papel desempenhado pela imaginação no desenvolvimento de

adolescentes a partir de atividades produzidas por alunos do 6º ano do ensino

fundamental de uma escola pública estadual, com base nos pressupostos da

Psicologia Histórico-Cultural.

2.2. ESPECÍFICOS

o Identificar, dentre as atividades produzidas pelos alunos e registradas em diário de

campo, aquelas em que se investe na imaginação;

o Identificar e escolher, dentre as histórias produzidas pelos alunos, aquelas em que a

imaginação aparece como recurso a sua elaboração;

o Analisar de que modo a imaginação contribui para o desenvolvimento do sujeito;

o Discutir práticas e ações que podem agilizar a imaginação na escola.

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3. METODOLOGIA

3.1. CONCEPÇÃO METODOLÓGICA

O presente trabalho adota o método utilizado pelo grupo Processos de Constituição

do Sujeito em Práticas Educativas (PROSPED), que assume, como citado anteriormente, o

referencial teórico-metodológico da Psicologia Histórico-Cultural, sobretudo os de

Vigotski.

Durante seus estudos, Vigotski questionou os métodos da Psicologia vigente na

época, os quais, segundo ele, eram de base mecanicista ou idealista, apoiando-se em uma

visão fragmentada de homem. Na tentativa de criar uma nova psicologia, Vigotski propôs

a formulação de uma teoria que objetivava analisar o desenvolvimento psicológico como

inseparável da história do indivíduo e de sua relação com o social, permitindo que esse

fosse estudado em sua totalidade, analisando-se os fenômenos investigados dialeticamente

(Delari Jr., 2011).

Na construção de sua proposta Vigotski postula três princípios a serem seguidos na

realização das pesquisas: é preciso ter como foco o processo percorrido ao longo do

desenvolvimento do fenômeno e não somente em seu produto; explicar o fenômeno ao

invés de descrevê-lo; e, por último, dar atenção ao que Vigotski chamou de

comportamento fossilizado, que são as condutas que se dão de modo automático na vida

do sujeito, mas que tiveram um início. Esses três princípios nos colocam frente a

importância de buscarmos conhecer a gênese do fenômeno analisado, indo além do

evidente, buscando apreender sua complexidade e historicidade, que reconhecemos não ser

tarefa fácil de cumprir (Dugnani, 2011).

Aprofundar estudos já realizados pelo nosso grupo de pesquisa, construindo

análises a partir de informações que compõem o banco de dados, se apresenta, para nós

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como um caminho que se guia por esses princípios, ao possibilitar que determinados

fenômenos sejam olhados de novo para elaboração de novas explicações.

Sendo assim, consideramos a pesquisa realizada como documental, caracterizada

por um procedimento que se utiliza dos mais variados tipos de documentos para apreensão,

compreensão e análise de informações. Entende-se como documento qualquer forma de

registro, que tenha o conteúdo necessário para estudar determinada problemática (Sá-

Silvia, Almeida & Guindani, 2009).

3.2. O CONTEXTO DA PESQUISA

O estudo que deu origem aos diários de campo de Barbosa (2012), utilizados nessa

pesquisa, foi realizado em um município do interior do estado de São Paulo, localizado na

região metropolitana de Campinas. Segundo Barbosa (2012), a escola na qual sua pesquisa

de mestrado foi realizada situa-se em um bairro considerado de alto padrão na região

central do município. Apesar de estar localizada em um bairro de classe média-alta, a

grande maioria dos estudantes dessa escola residem em bairros afastados, “caracterizados

por condições menos favorecidas e alto índice de violência”, e dependem do transporte

público gratuito para chegar à escola.

A escola, cenário da pesquisa, é vinculada à rede estadual de ensino público, e

atende aos Ensinos Fundamental II, Médio e à EJA (Educação de Jovens e Adultos).

Durante o ano letivo de 2011 haviam 802 alunos matriculados na instituição, sendo que

492 frequentavam o Ensino Fundamental e 310 o Ensino Médio. O número total de

professores era de 57, e alguns deles ministravam aulas tanto para o Ensino Fundamental

quanto para o Médio.

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3.3. CARACTERIZAÇÃO DOS SUJEITOS

A pesquisa de Barbosa (2012) foi realizada com grupos de aproximadamente 90

alunos do 6º ano do Ensino Fundamental. Estes alunos tinham em média 12 anos de idade,

e este era o primeiro ano que frequentavam essa escola, uma vez que a mesma só atende ao

Ensino Fundamental II e Médio. Tais alunos residiam, em sua maioria, nos bairros mais

humildes da cidade. Relatos revelaram que grande parte desses alunos morava apenas com

a mãe, que muitas vezes trabalhava como faxineira em casas próximas à escola; alguns

também moravam com os avós.

3.4. PROCEDIMENTOS

A leitura dos pressupostos teóricos da Psicologia Histórico-Cultural, em especial

sobre a adolescência e a imaginação, a partir de diferentes autores, permearam a

construção de todo o referencial deste trabalho, assim como das informações analisadas,

dando ênfase àqueles que diziam respeito à a adolescência e imaginação, dos quais foram

elaborados fichamentos.

Foi feita, também, a seleção dos diários de campo que compõem o banco de dados

do grupo de pesquisa, e identificados 20 diários de campo produzidos por Barbosa (2012),

em sua dissertação de mestrado. Realizamos, então, uma leitura inicial dos diários

buscando identificar aqueles que continham informações que remetessem ao papel da

imaginação no desenvolvimento, foco de nosso trabalho. Foram selecionados nove diários

de campo que se constituíram como uma das fontes de informação deste estudo. Foram,

então, realizadas consecutivas leituras desse material em busca de indicadores da

importância da imaginação na adolescência (foco deste estudo).

Page 20: "Histórias De Adolescentes: um estudo sobre a imaginação no contexto escolar"

20

Ainda durante este período, apesar de não estar previsto no cronograma original,

foi realizada uma visita à escola onde Barbosa (2012) coletou suas informações para a

pesquisa, com o objetivo de conhecer este contexto e a dinâmica de sala de aula das turmas

estudas por ela em 2011. Na ocasião, foram feitas observações em sala de aula de alunos

do 8° ano do Ensino Fundamental, mesma turma observada por Barbosa no ano de 2011.

Para a atividade de observação foi construído um roteiro (anexo 2) a fim de observar e

registrar as atividades que indicavam um investimento ou desinvestimento na imaginação e

criatividade dos alunos. Também foram realizadas observações em outros espaços da

escola, como no refeitório e no pátio. As observações foram registradas em diário de

campo (anexo 3), o qual também se constitui fonte de informação desta pesquisa.

3.5. FONTES DE INFORMAÇÃO

As fontes de informações utilizadas neste estudo foram os diários de campo

produzidos por Barbosa (2012), assim como os construídos pela pesquisadora a partir das

observações realizadas na escola. Também foram selecionadas algumas histórias

produzidas pelos alunos em 2011, quando da pesquisa de Barbosa (2012). Uma vez

selecionadas as fontes de informação foram feitas leituras aprofundadas das informações

visando encontrar regularidades que permitissem a elaboração de categorias de análise. A

organização a seguir expressa o resultado de nosso investimento na análise dos dados.

Estas fontes de informações possibilitaram a construção de duas categorias de

análises: imaginação x memória e preconceito, que serão apresentadas a seguir.

Page 21: "Histórias De Adolescentes: um estudo sobre a imaginação no contexto escolar"

21

4. ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

4.1. IMAGINAÇÃO E MEMÓRIA: PARES DE OPOSTOS QUE SE COMPLEMENTAM NO

PROCESSO DE DESENVOLVIMENTO

Nos trabalhos que vêm sendo desenvolvidos pelo grupo de pesquisa ao qual

pertencemos, temos buscado formas de acessar o sujeito que permitam a construção de

narrativas de si mesmo, do outro, do contexto em que se insere e do tempo que vive

(Petroni, 2013; Andrada, 2014; Bordignon e Souza, 2011). Podemos dizer que as

atividades de contação de histórias propostas por Barbosa (2012) em sua pesquisa foi um

desses caminhos, na medida em que possibilitou a expressão desses jovens, sobretudo na

relação com a escola. Tal trabalho tornou-se uma forma de agilizar a imaginação dos

adolescentes e de estimular a criatividade desses alunos, que passaram a escrever suas

próprias histórias, utilizando suas experiências e o que foi adquirido durante os encontros

com a psicóloga-pesquisadora.

Para começar nossa análise, cabe o seguinte questionamento: Por que a contação de

história no trabalho com adolescentes?

Segundo nosso referencial teórico, o tipo de expressão mais característico da

primeira infância, principalmente de crianças no período pré-escolar, é o desenho. Isso

porque é essa forma de expressão que possibilita à criança se relacionar com o mundo em

um processo de conhecer específico de sua idade. Porém, ao longo do desenvolvimento o

desenho deixa de ser central. Em seu lugar, começa a surgir uma nova forma de criação, a

literária ou verbal, que predomina principalmente durante a adolescência (Vigotski,

1930/2010).

Page 22: "Histórias De Adolescentes: um estudo sobre a imaginação no contexto escolar"

22

Segundo o autor, “a palavra permite transmitir relações complexas, principalmente

as de caráter interno” (p.77), além de comunicar o “movimento, a dinâmica, a

complexidade de alguns acontecimentos” (p.77), muito mais claramente do que o desenho

“imperfeito e inseguro” da criança. Nas palavras de Vigotski:

“Eis porque o desenho infantil, que corresponde plenamente ao estágio da relação

simples, incomplexa, entre a criança e o mundo que a cerca, é substituído pela

palavra como meio de expressão, que corresponde de modo mais profundo e

complicado a uma relação interna com a vida, consigo mesma e com o mundo

circundante” (Vigotski, 1930/2010, p.77).

A criação literária só surge quando a criança é um pouco maior devido ao fato de

precisar de uma gama considerável de vivências pessoais, experiência de vida e de

capacidade de analisar as relações interpessoais em diferentes ambientes, para poder ser

construída, além de ter o domínio da escrita e leitura. Precisa ter acúmulo de experiência,

domínio da fala, e principalmente “de desenvolvimento do mundo pessoal e interno”

(Vigotski, 1930/2010, p.63).

É na adolescência que o mundo das vivências internas, de impulsos e anseios da

pessoa se amplia, tornando-se mais complexo se comparado com o da criança. Suas

relações também se expandem, e sua visão do mundo externo passa por um tratamento

especial, mais profundo, além do evidente amadurecimento sexual. Perante tudo isso, o

estável equilíbrio no qual vivia até então se rompe, e o equilíbrio do adulto ainda não está

formado em si. Essa falta de equilíbrio é motivo da crise vivenciada pelo adolescente.

Dessa crise surgem aspectos que estão intimamente relacionados à criação literária do

período de transição: “a emotividade aguçada” e “a excitabilidade elevada do sentimento”

(Vigotski, 1930/2010, p.75-76).

Page 23: "Histórias De Adolescentes: um estudo sobre a imaginação no contexto escolar"

23

Durante os encontros com os alunos, confirmou-se o interesse pela contação de

histórias. Foi constatado o envolvimento dos alunos, e a expressão de vários sentimentos e

emoções característicos desta fase, sobretudo durante a construção das histórias escritas.

Vejamos uma delas:

Era uma vez uma menina que vendia rosas vermelhas na porta de um bar. Certo

dia essa menina morreu, mas todo dia a garota oferecia rosas à meia noite na

porta do bar. Um dia passou uma mulher que não quis comprar rosas, a menina

saiu correndo atrás dela para oferecer rosas. Essa mulher ficou com muita dó da

menina e comprou uma rosa. A moça levou a rosa para sua casa e foi logo

amaldiçoada.

De repente a mulher viu um vulto passando pela janela, quando virou viu a menina

e ficou com muito medo. Em um piscar de olhos a menina sumiu.

No outro dia que a moça estava voltando do trabalho ela passou em frente do bar e

perguntou:

- Onde está aquela menina que vendia rosas aqui na frente?

E o homem respondeu:

- Essa menina morreu há séculos, ela está enterrada em um túmulo que tem muitas

bonecas.

No outro dia a mulher foi visitar o túmulo da menina, quando entrou no cemitério

e chegou perto da cova, a porta do cemitério se fechou. Os mortos se levantaram e

a menina apareceu e a mulher ficou aterrorizada. A menina falou:

- Moça eu preciso que você me ajude. Eu preciso pegar três colares de cruz e

colocar no pescoço das bonecas que estão dentro da minha cova à meia noite,

senão vai ser amaldiçoada para sempre. Se você fizer isso eu posso ir para o céu e

nunca mais ninguém irá mexer com você.

A mulher procurou em todas as casas e encontrou as cruzes, aí a mulher pegou as

bonecas e colocou a cruz em cada boneca à meia noite. E nunca mais ouviu falar

da menina, nem em sonho.

(A menina das rosas vermelhas - Histórias de Adolescentes, Histórias para

Adolescentes: hora do horror, p.38).

Um elemento que nos chama atenção nesta história, assim como em outras escritas

pelos alunos, é o interesse desses jovens por histórias de terror e suspense. Tal fato nos

leva a questionar o porquê deste interesse. Segundo Vygotski (1931/2006), na fase da

adolescência o sujeito vivencia um contexto social específico, único, totalmente diferente

da infância; o contexto já lhe atribui algumas responsabilidades, certa independência e

desafios que favorecem ao adolescente vivenciar novas emoções. Se, por um lado esta

nova situação social é fonte de entusiasmos e curiosidade, por outro o sentimento de medo

Page 24: "Histórias De Adolescentes: um estudo sobre a imaginação no contexto escolar"

24

em relação ao diferente também está presente. Neste sentido, acreditamos que a história de

terror permite ao sujeito vivenciar o sentimento de medo de um modo protegido, seguro e

acolhido, por meio de uma situação fictícia narrada na história (Souza, 2014). Assim,

pode-se constatar que a criação de um espaço que se utiliza como via a imaginação pode

ser uma estratégia de intervenção que favoreça ao adolescente vivenciar e elaborar suas

emoções e sentimentos característicos desta fase de desenvolvimento de um modo seguro,

protegido e mediado.

Adentrando ao conteúdo da história e analisando como a imaginação atua neste

processo, percebemos que o (a) autor (a) utilizou elementos fantasiosos em sua narrativa,

como o contexto no qual a moça aparece, tendo que cumprir uma missão para libertar uma

garota fantasma e não ser mais amaldiçoada.

Para Vigotski (1930/2010), a criação é apenas o produto final de um longo

processo, o qual é repleto de etapas e elementos. No início desse movimento encontram-se

as percepções externas e internas do indivíduo, as quais fazem parte da experiência.

Assim, tudo o que a criança vê e ouve serve de material para uma possível futura criação.

Esse material, então, passa pela dissociação, associação e combinação, ou seja, um

todo é fragmentado em partes (dissociação), e estas podem ser unidas com outras partes do

mesmo material ou de outros (associação e combinação). Para que a associação possa

ocorrer é importante que a pessoa seja capaz de romper com a ordem natural com a qual o

material foi percebido, fato que está irrevogavelmente na base do pensamento abstrato, da

formação de conceitos (Vigotski, 1930/2010). Na história escrita pelo aluno, fica evidente

a associação e combinação de vários elementos para sua confecção, os quais derivam das

experiências vividas pelo sujeito ao longo de sua vida e das histórias contadas por Barbosa

(2012) durante seu projeto. É claro que o modo de associar e combinar elementos em uma

Page 25: "Histórias De Adolescentes: um estudo sobre a imaginação no contexto escolar"

25

produção é próprio e corresponde à singularidade de cada um, mostrando, para além, o

potencial criador dos sujeitos.

Todo esse processo se liga à imaginação, enquanto função psicológica. Vigotski, ao

falar sobre essa função, a analisa como sendo privativa dos seres humanos, estando ligada

à atividade criadora. O autor entende essa atividade como a capacidade do sujeito de criar

algo novo, podendo esse “novo” estar presente no mundo externo ao indivíduo ou habitar

apenas a mente e os sentimentos daquele que cria (Vigotski, 1930/2010), como podemos

observar na história relatada.

Avançando em nossa análise, se por um lado encontramos narrativas em que os

alunos constroem uma história mais voltada para a fantasia e desprendida da realidade

concreta (como as histórias de terror), por outro a maioria das histórias criadas pelos

alunos foram voltadas a seus cotidianos, relatando sobretudo a realidade que vivem no

contexto escolar. Vejamos alguns exemplos:

Era uma vez um menino chamado Bruno que gostava muito de brigar na escola, só

para não fazer lição, e todo dia sua mãe Maria tinha que estar lá na diretoria.

Certo dia chegou um menino novo na sala que se chamava João. Ele tinha a fama

de ser nerd. Quando João chegou na sala de aula, o Bruno mandou ele fazer sua

lição de casa, mas João falou:

- Não!

Bruno respondeu:

- Tem certeza?

- Tenho.

Bruno e João começaram a bater um no outro. Depois Bruno ficou muito

arrependido do que fez e falou para João:

- Me desculpa, estou muito arrependido do que fiz.

João respondeu:

- Eu te desculpo, mas não é só porque eu não fiz sua lição que você pode sair

batendo em todo mundo assim!

- Está bem, vou tentar me controlar.

Então, os dois alunos se abraçaram e viraram amigos para sempre.

(Amigos para sempre - Histórias de Adolescentes, Histórias para Adolescentes,

p.12).

Page 26: "Histórias De Adolescentes: um estudo sobre a imaginação no contexto escolar"

26

Em um belo dia, dois meninos João e Marcos eram os melhores amigos na escola.

Todo mundo da escola tinha inveja da amizade deles, quando um menino pensou

em fazer eles brigarem. Minutos depois o menino falou para o João:

- O Marcos falou que já está cansado de você! Não quer olhar mais para sua cara!

Assustado, João vai até Marcos e xinga ele. Sem reação Marcos ameaça bater em

João na saída.

Horas depois, na saída, os dois começam a se pegar. Quando os dois pararam e se

perguntaram porque João xingou Marcos. João respondeu:

- Porque o menino falou que você me xingou.

- É mentira.

Ai já sacaram que o menino tinha tramado isso. Os dois se uniram de volta e

bateram no menino. E nunca mais ninguém desrespeitou eles.

(Melhores amigos - Histórias de Adolescentes, Histórias para Adolescentes, p.21).

Certo dia dois amigos foram para a escola e se apaixonaram por uma mesma

garota que era muito bonita. Quando descobriram que gostavam da mesma garota,

começaram a brigar e saíram no tapa [...]

(trecho de Dois amigos e amigas – uma história de amor - Histórias de

Adolescentes, Histórias para Adolescentes, p.19).

[...] Certo dia Tato não aguentou Deole chamar ele de gordo, partiu pra cima de

Deole e começaram a brigar [...]

(Trecho da história Os dois trapalhões - Histórias de Adolescentes, Histórias para

Adolescentes, p.20).

Certo dia na escola havia dois jovens brigões chamados João e Pedro. Eles batiam

em todos da escola. Todos que os enfrentavam, apanhavam e apanhavam feio.

Um dia eles pegaram um menino, o Marcos, que era um pouco forte. E todos

começaram a brigar feio [...]

(Trecho da história Os dois jovens brigões - Histórias de Adolescentes, Histórias

para Adolescentes, p.25).

Certo dia, meu melhor amigo se meteu em uma cilada na escola, só por causa de

uma garota. Era um dia de segunda-feira, iniciavam-se as aulas e os dois amigos

iam juntos para a escola, quando um garoto foi logo falando:

- Por que você deu em cima da minha garota?

Aflito com essa situação ele respondeu:

- Olha eu não sabia que você gostava dela.

O garoto estava morrendo de raiva, quando chegou em casa pegou uma arma que

estava guardada no armário e foi para a escola.

De repente todo mundo escutou um barulho de uma arma:

- POW. POW.

Foram dois tiros. O menino foi para a UTI e o outro se matou. Foi uma morte

trágica. Infelizmente o garoto e o menino morreram.

(O garoto - Histórias de Adolescentes, Histórias para Adolescentes, p.27).

Esse modo de narrar suas vidas nos possibilita conhecer melhor esses adolescentes

e o modo como se relacionam com os fatos. Nesses trechos das histórias, e em outras

Page 27: "Histórias De Adolescentes: um estudo sobre a imaginação no contexto escolar"

27

produzidas pelos adolescentes, há relatos de brigas com socos e tapas, assassinatos, entre

outras situações que parecem estar presentes na vida desses adolescentes de modo real (em

situações presenciadas) ou fictício, (vistos em filmes ou na mídia). Vigotski (1930/2010)

relata a existência de algumas formas de relação entre imaginação e realidade, sendo que

uma delas se dá pelo fato de que toda obra da imaginação se utiliza de elementos adotados

da realidade e das experiências passadas da pessoa para se consolidar. Assim sendo,

conclui-se que “a imaginação depende diretamente da riqueza e da diversidade da

experiência anterior da pessoa” (p.20), já que essas experiências são o material principal da

imaginação. Dessa forma, entende-se que há grande necessidade de ampliar as

experiências dos alunos, a fim de construir bases fortes para que ela desenvolva seu

potencial de criação.

Outro elemento destacado é a aproximação das histórias com a realidade. Parece

que os alunos que escreveram as histórias não conseguem fazer o movimento que Vigotski

relata como sendo de fundamental importância no processo imaginativo:

dissociação/associação/combinação para criar uma história com encadeamento dos fatos.

Então, os enredos criados parecem se valer de “passes de mágica” para sua resolução,

sendo que a imposição do medo no outro pela agressão física é elemento que favorece a

resolução de todos os conflitos abordados nas histórias.

As histórias remetem a situações cotidianas, concretas, da vida do aluno – brigas na

escola. Esse dado poderia indicar que o pensamento abstrato, como forma de produção

decorrente da imaginação não está apropriado por este jovem e daí não ter elementos para

construir uma narrativa com características de ficção. A ausência do pensamento abstrato

dificulta em muito o processo de imaginação, e emperra o desenvolvimento de formas

mais elaboradas de pensamento, mantendo o sujeito preso ao universo concreto que o

Page 28: "Histórias De Adolescentes: um estudo sobre a imaginação no contexto escolar"

28

circunda, além de dificultar o aprendizado de conceitos científicos característicos desta

etapa de escolarização.

Segundo Vigotski (1930/2010), é possível identificarmos dois tipos de atividades

essenciais no processo imaginativo. A primeira, que denomina de atividade reprodutora,

está intimamente ligada à memória, que consiste na produção de atividades que tomam

como base algo já vivido ou experimentado, dando-lhe novas formas ou arranjos.

Entretanto, problematizando esse tipo de criação o autor diz que se o homem se limitasse

apenas a atividades reprodutoras seria um ser voltado ao passado. Assim, para que os

indivíduos possam viver e construir o futuro é necessária outra forma de atividade, a

criadora, que tem como base a imaginação ou fantasia, que seria a capacidade do homem

de combinar elementos do passado para criar o futuro.

Observa-se que no processo de imaginação várias funções psicológicas estão

envolvidas, visto que para Vigotski (1930/2010), a imaginação compõe um sistema,

denominado pelo autor de sistema psicológico. Neste processo, em conjunto com a

imaginação outras funções como a fala, o pensamento e, sobretudo a memória têm papel

fundamental. Portanto, para o autor a memória seria base para o desenvolvimento da

imaginação. Entretanto, somente a memória não é capaz de caracterizar uma atividade

criadora, mas sim uma atividade reprodutora.

Frente à possibilidade de realizar uma atividade criadora, os alunos recorrem à

memória, ou seja, a situações vividas em sua vida cotidiana e como as lembram, relatando

situações muito frequentes na vida desses jovens, como por exemplo, a relação entre

amigos, namoro e escola.

Não estamos dizendo que a memória se constitui como uma função menos

importante que a imaginação, ao contrário, reconhecemos sua importância na manutenção

Page 29: "Histórias De Adolescentes: um estudo sobre a imaginação no contexto escolar"

29

e no desenvolvimento da humanidade, pois, como vimos, sem ela não seria possível

conhecermos todos os feitos do homem ao longo de sua história, e nem poderíamos,

enquanto pesquisadores, acessar as informações que compõem o cotidiano e o fenômeno a

serem investigados. O que queremos afirmar é que a produção escrita dos alunos nos

revela um pensamento mais concreto, característica da infância, em que a memória parece

assumir predomínio em detrimento do pensamento e da imaginação.

Parece que esses alunos não possuem experiências que favoreçam o

desenvolvimento do pensamento abstrato e da imaginação. Observamos por meio das

histórias dos alunos um comportamento quase primitivo, em que a força física prevalece

em detrimento do diálogo.

Essa acepção nos conduz a questionar se essa simbolização da violência como

modo de resolver problemas tem sido objeto de problematização na escola, com vista a

promover a reflexão dos alunos sobre o que significa, sobre suas consequências,

oferecendo novos repertórios de experiências mais saudáveis, já que o contexto escolar

aparece como espaço em que se desencadeiam conflitos e agressões.

Vejamos algumas histórias escritas pelos alunos em que a escola aparece como

protagonista:

Em um belo dia, dois amigos João e Willian estavam brigando quando seu

professor muito chato começou a dizer:

- Meninos, parem de brigar! Vão vocês dois para a diretoria agora! Já.

E todos começaram a dizer:

- Eu vou chamar seu pai aqui para conversarmos.

Chamaram os pais para conversar. Depois daquele dia o João e o Willian nunca

mais levaram reclamação para os pais que ficaram felizes.

(Trecho da história João e Willian - Histórias de Adolescentes, Histórias para

Adolescentes, p.24).

Page 30: "Histórias De Adolescentes: um estudo sobre a imaginação no contexto escolar"

30

Era uma vez um menino muito briguento que batia em todo mundo da sua escola, e

todo dia sua mãe ia na escola e sempre ouvia a mesma coisa da diretora:

- Seu filho tem que aprender a se comportar.

E sua mãe respondia:

- Eu não tenho culpa se ele é assim.

E todo santo dia era assim, a diretora falava, a mãe respondia e ia embora. [...]

(Trecho da história Amizade - Histórias de Adolescentes, Histórias para

Adolescentes, p.14).

Observe-se, nas histórias acima, o modo como os conflitos envolvendo os alunos

são encaminhados pela escola, que, via de regra, se utiliza da punição, visto a menção à

conversa com diretor, suspensão ou a presença dos pais na escola. As histórias dos alunos

nos revelam que muitas das ações na escola são voltadas para a imposição do sentimento

de medo no outro, indicando que as práticas punitivas ainda prevalecem nesse contexto em

detrimento do diálogo. E, segundo Souza (2005), quando o sentimento de medo está

presente é porque a autoridade falhou.4.

Ao trazerem elementos importantes para compreendermos o modo como vivem e

empreendem essas modalidades de relações, as histórias dos alunos se aproximam da

atividade reprodutora que, como vimos, faz parte do processo da imaginação, mas tem

como característica o predomínio da memória como função psicológica superior. Para que

ocorra o desenvolvimento da imaginação, é preciso a formação de novos nexos entre as

funções e que essas ganhem em qualidade no seu modo de funcionar, ou seja, é necessário

que a memória se una à fala e principalmente ao pensamento, o que dá a pessoa a

possibilidade de recorrer aos conteúdos memorizados e pensar sobre eles, criando algo

novo, colocando em movimento a atividade criadora. Isto reafirma o que Vygotski

(1934/1991) propõe sobre as funções psicológicas enquanto um sistema.

Frente a essas questões, temos clareza que o não investimento em ganhos

qualitativos no desenvolvimento da fala e do pensamento, pode ser uma das explicações

4 Uma análise aprofundada sobre a questão da autoridade e do respeito na escola pode ser encontrada em

Barbosa, 2012 e Souza, 2005, citadas nas referências bibliográficas.

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31

possíveis para a ampliação e desenvolvimento da imaginação desses jovens. Ao realizar a

atividade de ensino por meio do uso de tarefas em que há o predomínio da cópia, não se

coloca os alunos para refletir sobre o conteúdo e nem a falar sobre ele, ficando, muitas

vezes no âmbito dos conceitos cotidianos, sendo que o objetivo fundamental da escola

deveria ser o desenvolvimento dos conceitos científicos, que, segundo Vygotsky

(1934/1991), são aqueles conceitos que se distanciam dos aprendidos em seu cotidiano e

que são base para a apropriação do conhecimento.

Quando o aluno tem acesso aos conhecimentos produzidos historicamente,

enquanto conceitos científicos, tem seu pensamento e sua fala favorecidos, e assim

possibilita a ampliação da experiência e do desenvolvimento da imaginação. Essa função

não é necessariamente desenvolvida por atividades “diferentes” ou lúdicas. Esta pode ser

apenas uma forma de transmitir o conhecimento, e é por meio dele que o indivíduo

desenvolve sua imaginação.

De um modo geral podemos dizer que, a partir de nossas observações, o foco da

escola tem sido o ensino de um conhecimento hermeticamente pronto, sem possibilidade

de se avançar naquilo que se sabe, ou muitas vezes, naquilo que o aluno não sabe e que

serve para culpabiliza-lo por sua não aprendizagem, sendo esta um processo que se dá

somente por meio da memorização, como podemos ver a seguir, nos trechos de diários de

campo:

Em um determinado momento a professora [de inglês] aponta as frases escritas na

lousa e diz:

- Essas frases vocês podem encontrar em joguinhos, sabiam?

Enquanto a professora tenta fazer com que os alunos copiem as frases da lousa, as

alunas na minha frente conversam sobre relacionamentos e viagens com os

namorados (Diário de Campo – 30/10/2013).

O tema da aula [de artes] agora é arte afro-brasileira. A professora escreve um

texto na lousa (texto que ela copia de um livro) e solicita que os alunos copiem em

seus cadernos (Diário de Campo – 30/10/2013).

Page 32: "Histórias De Adolescentes: um estudo sobre a imaginação no contexto escolar"

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Nesses trechos é possível notar como as atividades de cópia são valorizadas pelos

professores, que a todo o momento pedem que os alunos transcrevam em seus cadernos

aquilo que está na lousa, sem, muitas vezes, contextualizar tal conteúdo. Mas observamos,

também, que esse conteúdo não tem significado e nem sentido para esses alunos.

De acordo com Vygotski (1931/2006), a adolescência, enquanto fase do

desenvolvimento, é caracterizada pela idade de transição. Nesse período, o modo como o

sujeito vivencia suas relações com o meio e com os outros é totalmente diferente dos

estágios anteriores, havendo um avanço qualitativo nos nexos estabelecidos entre as

funções psicológicas. Fato importante a ser destacado é a mudança que se dá nos interesses

e nos motivos que estão na base da ação dos adolescentes.

Essa compreensão apresenta-se como fundamental para pensarmos o processo de

ensino-aprendizagem, na medida em que fornece elementos ao professor para a construção

de seu planejamento de aula. Não restam dúvidas de que há um conteúdo a ser ensinado. A

questão é o como fazê-lo. Atrelado a isso, é preciso ainda tentar responder por que fazê-lo

e para quem se dirige. Se o professor conhece seu aluno, sabe quais são seus interesses,

consegue acessá-los e aproximá-los do conteúdo a ser ensinado, ao mesmo tempo em que

abre a possibilidade de configuração de novos significados e sentidos sobre o que ele

aprendeu.

Nesse processo todo, a imaginação desempenha papel fundamental para o

desenvolvimento do psiquismo ao permitir a criação do novo, a imaginar de que maneira

os conhecimentos construídos contribuem para sua vida, de relacionar acontecimentos já

passados com os que agora acontecem e como poderá ser no futuro. É a possibilidade do

devir que se evidencia.

Page 33: "Histórias De Adolescentes: um estudo sobre a imaginação no contexto escolar"

33

Contudo, verificamos que os alunos se acostumaram com esse método de “ensino”

e preferem copiar algo pronto a pensar junto com o professor, conforme demonstram os

recortes abaixo:

- Dona, fala para a professora passar um texto na lousa para a gente copiar!

- Pesquisadora: mas vocês gostam de ficar copiando?

- É melhor copiar do que ficar fazendo lição. (Diário de Campo – 24/10/2011).

- Pesquisadora: Tenho uma proposta para fazer para vocês. Já faz um tempo que

venho aqui ler contos e crônicas, e percebo que vocês sempre querem participar e

ler também. Que tal hoje vocês fazerem uma história e depois vocês podem vir aqui

na frente contar.

- Ah não, Dona!

- Não gosto de escrever!

- Vamos sim!

- Não sei escrever.

(Diário de Campo – 30/05/2011).

Não se pode negar que a passagem pela escolarização amplia a experiência dos

sujeitos, coloca-os em contato com novas formas de compreender o mundo, constituindo-

se, portanto, como mediação fundamental na promoção do desenvolvimento. No entanto, o

que temos visto em estudos e notícias amplamente divulgadas pela mídia é que a função

primordial assumida pela escola tem sido a garantia do convívio social, e o processo de

ensino-aprendizagem acaba se dando pela via da reprodução, sendo endossado tanto pelo

professor quanto pelo aluno.

Segundo Libâneo (2012), a função da escola não é de amparo social, mas sim

constituir-se como fonte de transmissão de conhecimentos, aprendizagem dos conteúdos

produzidos ao longo da constituição da humanidade. Como vimos nos relatos

apresentados, a escola tem se limitado, em grande parte do tempo, à reprodução de

discursos, de conhecimento, e de comportamento em que não há ação do sujeito, somente

o seu assujeitamento. Desse modo a escola forma pessoas com habilidade de memorizar,

ou seja, que não são capazes de pensar para além do concreto, que não aplicam seu

conhecimento em sua vida cotidiana, que não se vê como autor e ator de seu tempo, de sua

Page 34: "Histórias De Adolescentes: um estudo sobre a imaginação no contexto escolar"

34

história, não se imagina como sujeito participante de sua vida capaz de promover

transformações em sua realidade.

O fato de a imaginação desses alunos ser basicamente fundada na memorização,

mostra que a escola não está favorecendo o acesso ao conhecimento, e, segundo Vigotski

(1930/2010), não há imaginação possível sem o conhecimento. Isso significa que esses

alunos estão sendo afastados da possibilidade de pensar para além da sua realidade. Como

vimos, o processo imaginativo se dá a partir das experiências e do modo como o sujeito as

vivenciam, e isso nos faz questionar quais seriam as possibilidades de ampliação de

experiências que vêm sendo promovidas pela escola. Imaginar diferentes formas de lidar

com algumas situações, de se relacionar com os outros, são elementos que vamos

configurando ao longo do nosso desenvolvimento em relação ao meio no qual nos

inserimos, e a escola, via de regra, parece estar evidenciando a falta (falta respeito,

dignidade, implicação) e revelando um não investimento no potencial do sujeito e naquilo

que ele é capaz de fazer, cerceando suas experiências e limitando-os àquilo que vivem em

seu dia-a-dia.

Acreditamos que o não investimento da escola no enriquecimento das experiências

do aluno e no seu conhecimento além de não favorecer o desenvolvimento da imaginação

também nutre um pensamento baseado no preconceito, categoria que será discutida a

seguir.

Page 35: "Histórias De Adolescentes: um estudo sobre a imaginação no contexto escolar"

35

4.2. O DESENVOLVIMENTO DA IMAGINAÇÃO COMO POSSIBILIDADE DE SUPERAÇÃO

DO PRECONCEITO

Durante a intervenção realizada por Barbosa (2012) foram feitas leituras de

histórias que visavam mobilizar a imaginação dos adolescentes e que, posteriormente, os

ajudassem a expressar ideias sobre os temas abordados por tais histórias. Segundo a autora,

as histórias possuem papel fundamental no desenvolvimento dos sujeitos, uma vez que são

capazes de despertar a imaginação e a reflexão de diferentes acontecimentos e situações, o

que possibilitaria “ao leitor transitar por diferentes mundos sem sair do lugar” (p.48), além

de favorecer o aparecimento de emoções diversas (Barbosa, 2012).

Após as leituras, abria-se um espaço para a discussão entre os alunos, que podiam

livremente, um de cada vez (o que nem sempre acontecia), dizer o que tal história os fazia

pensar. Esses pensamentos, como pudemos observar, estavam intimamente ligados à suas

próprias vidas, e demonstravam situações da vida cotidiana.

No primeiro encontro com os alunos foi contada uma história de Monteiro Lobato

chamada O gato vaidoso5 que, segundo os próprios alunos, discorria sobre um “gato rico

que humilha o gato pobre”. Abaixo, vemos algumas falas de alunos ditas durante a

discussão e registradas em diário de campo:

5Todos os trechos utilizados nesse trabalho referentes ao diário de campo do dia 02/05/2011 são relativos a

essa mesma atividade na qual Barbosa (2012) utiliza o conto de Monteiro Lobato (1884-1948) “O gato

vaidoso”.

Page 36: "Histórias De Adolescentes: um estudo sobre a imaginação no contexto escolar"

36

- Dona! Minha tia é rica, mas nem olha na minha cara!

- Pesquisadora: e como é isso na escola?

- Aqui tem os pobres da escola pública e os ricos que estudam na escola

particular! (risos)

- Pesquisadora: Qual a diferença entre essas duas escolas?

- Lá eles pagam para estudar!

- Aqui a comida é ruim!

- Dona, já encontrei até um bicho na comida!

- O macarrão daqui é duro, parece o prato (risos)!

- Isso é um problema de POLÍTICA!

- Pesquisadora: Como assim? Política?

- Precisa falar com o prefeito para ele dar uma comida melhor e limpar a escola!

(Diário de Campo - 02/05/2011).

No trecho acima conseguimos nos aproximar das situações vividas pelos

adolescentes em seu dia-a-dia. São as diferenças sociais que assumem relevo,

ultrapassando os limites das cidades e dos bairros, adentrando os muros da escola. Além

disso, é possível dizer que os alunos conhecem as diferenças de se estar em uma escola

particular e em uma pública. Eles sabem que na escola particular os alunos têm que pagar

para ter suas aulas, enquanto eles, que frequentam a escola pública, têm seus estudos

financiados pelo governo, ou ao que parece, pelo prefeito, que seria quem eles deveriam

contatar para haver melhorias na estrutura escolar. Parece-nos que há a ideia de que o

público é gratuito, mas sabemos que não o é, já que o financiamento da educação pública

tem sua fonte nos impostos pagos pela própria população.

Esses são elementos presentes no cotidiano dos alunos que constituem a vida de

cada um deles. Para Heller (2004), a vida cotidiana é a vida de todo homem, pois não há

quem esteja fora dela, e do homem inteiro, na medida em que nela são postos em

funcionamento todos os seus sentimentos, capacidades intelectuais, ideias e ideologias.

Essa autora afirma que todo homem nasce inserido na vida cotidiana, porém não é possível

viver inteiramente nela ou abandoná-la completamente. Portanto, é na vida cotidiana que o

sujeito se constitui como indivíduo, sendo este compreendido como aquele que possui

certa liberdade em fazer escolhas, que é sujeito de sua história e consciente de suas ações

Page 37: "Histórias De Adolescentes: um estudo sobre a imaginação no contexto escolar"

37

no contexto em que está inserido, recorrendo a habilidades características tanto do humano

genérico como de sua particularidade (Heller, 2004).

A particularidade do homem se expressa por suas motivações e interesses, que visa

à satisfação de suas próprias necessidades. Em contrapartida, o humano genérico se orienta

para o “nós”, como um sujeito consciente de suas interferências no contexto social (Heller,

2004). Segundo a autora, na vida cotidiana há um equilíbrio entre o particular e o humano

genérico.

Heller (2004) indica a necessidade de uma gama variada de pensamentos e ações

para a vida cotidiana, considerando que esta é: heterogênea e hierárquica, em relação a seu

conteúdo e à importância atribuída às suas atividades; espontânea, na medida em que

muitas ações são realizadas de forma automática; econômica, levando-se em conta que o

pensamento e a ação manifestam-se e funcionam somente na medida em que são

indispensáveis à continuação da vida; repleta de juízos provisórios e ultrageneralizações6.

Tais necessidades, se absolutamente cristalizadas, ao ponto de impedir que o indivíduo

possa se movimentar, levando à alienação e ao preconceito.

A nosso ver, o preconceito evidencia-se no imaginário dos alunos, na medida em

que eles atribuem rótulos e caracterizações negativas àqueles que são ricos, construindo

juízos provisórios e ultrageneralizações que justificam a conduta dos sujeitos ricos e os

protegem de sua condição enquanto sujeitos da diferença social.

6 Toda ultrageneralização é um juízo provisório ou uma regra provisória de comportamento: provisória

porque se antecipa à atividade possível e nem sempre, muito pelo contrário, encontra confirmação no infinito

processo de prática. De duas maneiras chega-se as ultrageneralizações características de nosso pensamento e

de nosso comportamento cotidiano: por um lado assume-se estereótipos, analogias e esquemas já elaborados;

por outro eles nos são impingidos pelo meio em que crescemos (HELLER, 2004, p. 44).

Page 38: "Histórias De Adolescentes: um estudo sobre a imaginação no contexto escolar"

38

Com o avanço na discussão com os alunos, estes buscaram justificativas e

explicações para as diferenças socioeconômicas que vivem e percebem, conforme se

observa nas falas abaixo:

- Dona, pessoas ricas são metidas, gostam de humilhar os outros, “se acham”!

- Quanto mais rica a pessoa, mais dinheiro ela quer!

- Dona, tem um garoto aqui na escola que é rico, mas ele é um mala! E também

mariquinha! Só anda com tênis novo!

- As pessoas pobres são mais unidas, já os ricos não, são chatos.

- Pesquisadora: Mas todas as pessoas ricas são chatas?

- Nem todos são assim. Eu conheço pessoas ricas que são legais!

- Mas a maioria é chata. (Diário de Campo - 02/05/2011).

- Dona, rico come caviar, essas coisas! Já pobre come galinha, porco... (risos).

- Não concordo! Eles comem as mesmas coisas que nós, só que vão ao restaurante!

- Rico quando come fica “cheio de dedo” (fez gestos delicados com as mãos).

- Rico compra roupa sempre e usa uma vez só e já joga fora! Já o pobre usa a

roupa até ficar velha! Às vezes nem lava! (risos). (Diário de Campo - 02/05/2011).

Os alunos continuaram a atribuir características negativas ao rico, como

“mariquinha”, “chato”, “arrogante”, entre outras denominações que visam ofender ou

depreciar. Mesmo após a tentativa de promover uma reflexão mais profunda a partir do

questionamento de que “todas as pessoas ricas são chatas” apenas um aluno se manifestou

contrário à opinião dos colegas, enquanto os demais mantiveram-se firmes em suas

posições. Não encontramos nessa situação nenhum indício da mediação de um

conhecimento científico para explicar os motivos que estariam na base destas diferenças

socioeconômicas, elas continuaram a justificá-las com base no preconceito.

Podemos considerar, dessa forma, o preconceito como uma categoria do

comportamento e do pensamento cotidiano, sendo esse fixado na experiência, no empírico,

e nos juízos provisórios, e que tem em sua base a ultrageneralização (Heller, 2004).

Page 39: "Histórias De Adolescentes: um estudo sobre a imaginação no contexto escolar"

39

Segundo Heller (2004) há sempre um afetivo na base dos preconceitos. Considera-

se que existem dois principais afetos que nos ligam a uma opinião, visão ou convicção.

São eles a confiança e a fé.

A confiança relaciona-se ao indivíduo, e se apoia no saber e no conhecimento. Uma

ideia refutada pelo pensamento e pela experiência, ou seja, se um conhecimento científico

a desmistifica, a confiança na ideia ou crença acaba por desaparecer. Em contrapartida, a

fé, que nasce na particularidade do indivíduo, tende a uma maior resistência.

A fé se faz e é alimentada na necessidade do indivíduo e em suas motivações, e ao

servir para cessar essas carências internas sem o auxílio ou a companhia do pensamento e

da reflexão, é o que está na base do preconceito. Considera-se que há um par de

sentimentos sempre presente na fé. O amor-ódio. O ódio não é dirigido tão somente contra

aquilo que não pertence à nossa fé, mas também a quem não compartilhe dos mesmos

ideais, sendo que a intolerância emocional é uma consequência da própria fé (Heller,

2004).

Considerando-se que o conhecimento é o que dá ao homem autonomia para fazer

escolhas, pode-se entender que o preconceito, na medida em que se contrapõe a esse saber,

limita a liberdade do indivíduo (Heller, 2004).

Essas considerações nos permitem dizer que o que está na base das representações

dos alunos é a fé que, como dito anteriormente, alimenta as necessidades do indivíduo. Isto

nos leva a ampliar nossa reflexão questionando: o que estaria na base dessas

representações dos alunos? Se por um lado parece que ser rico para os alunos é algo

negativo, por outro parece que este discurso contra o rico esconde a grande valorização

que atribuem aos bens materiais. Os trechos a seguir ilustram essa acepção:

Page 40: "Histórias De Adolescentes: um estudo sobre a imaginação no contexto escolar"

40

- Dona, têm muitas meninas que casam com um cara rico só por causa do

dinheiro! Tem filhos e depois largam para ficar com a pensão;

- Pesquisadora: Meninas, o que vocês acham disso?

- Eu concordo!

- Pesquisadora: Vocês acham que o importante é o dinheiro do garoto?

- Sim! (Diário de Campo - 02/05/2011).

- Esses dias eu estava no Eldorado e passou um cara com uma BMW e me olhou de

cima para baixo e fez joia! (Diário de Campo - 02/05/2011).

- Dona, têm mulheres que querem dinheiro só para ficarem mais bonitas. Por

exemplo, a Xuxa, aquele olho azul dela e aqueles “peitões” são falsos, ela colocou

lentes e silicone para ficar assim;

- É mesmo, dona. As mulheres querem dinheiro para ficarem mais bonitas!

- Dona, esse garoto aí (apontando para o menino que estava do meu lado) é rico!

Fui a casa dele outro dia e tinha uma televisão tamanho 42!

- Garoto responde: Não sou rico, sou classe média. (Diário de Campo -

02/05/2011).

Essas falas revelam que os alunos valorizam o poder econômico, e que, inclusive,

demonstram uma representação de que ser rico é ter poder, é ser respeitado e sinônimo de

beleza. Neste sentido, parece que os alunos valorizam tanto o poder econômico que ao

serem expostos a impossibilidade de tal ascensão tentam compensar atribuindo

características negativas àqueles que têm acesso a esses bens (como mariquinha, arrogante,

metido, etc) e recorrem a valores morais positivos (como a honestidade e a justiça) para

definir as pessoas com nível socioeconômico menos favorecido.

As experiências vividas por esses adolescentes não permitem que haja um avanço

no modo como eles concebem a realidade na qual se inserem, as possibilidades de

mudanças acabam sendo limitadas, na medida em que essas concepções que perpassam seu

imaginário relacionam-se a um pensamento que tem em sua base o preconceito e a fé,

característico da vida cotidiana. Não há a mediação do conhecimento para favorecer a

ampliação do imaginário destes jovens e, por conseguinte, o desenvolvimento do

pensamento. Sendo assim, o que queremos afirmar nesta categoria é que na ausência do

conhecimento, o que “nutre” a imaginação é o preconceito.

Page 41: "Histórias De Adolescentes: um estudo sobre a imaginação no contexto escolar"

41

Esse modo de narrar sua realidade também aparece nas historias escritas pelos

alunos:

Era uma vez um homem chamado Pedro com 35 anos, que morava em uma casa

humilde. Era muito honesto com sua família e com as pessoas da rua. Havia

também um homem que morava em um apartamento com sua esposa, e gostava de

debochar das pessoas que eram pobres. Ele sempre dizia:

- Ra, ra, ra, esses daí eu nem dou valor porque eles são pobres e não têm

educação.

E sempre o homem humilde estava lá em frente de sua casa e não aguentava mais

ser tratado daquele jeito, então resolveu falar com sua esposa.

- Quero falar com você, amor. Posso?

- Sim, claro que pode, fala o que é.

- Eu estava pensando em desafiar aquele homem que passa aqui na frente falando

aquelas coisas horríveis pra gente. Será que é uma ótima ideia?

- Desafiar em quê?

- Em um luta de boxe.

- Humm, é uma boa ideia, será que ele aceita?

- Tem que aceitar, porque se ele é homem para falar essas coisas para nós, ele tem

que ser homem para lutar boxe.

- É, isso é verdade, ele é muito ignorante com as pessoas humildes. Como você irá

falar com ele?

- Na próxima vez que ele passar aqui em frente.

- Então tá.

O homem passou lá depois de dois dias, e o humilde disse a ele:

- Pare aí. Vamos nos desafiar?

- Em quê?

- Uma luta de boxe, e quem perder nunca mais pisa na cidade do outro.

- Então tá, só se for agora.

- Tá, deixe o carro estacionado nesse local bem nessa calçada, e você pode entrar.

Entraram os dois na casa e vestiram as roupas, colocaram as luvas e iam começar

em alguns minutos.

- Vamos começar, 1, 2, 3, e já.

A briga começou...

Acabou o 1º tempo.

Começou de novo...

E o homem humilde ganhou e venceu a luta. (O Boxe - Histórias de Adolescentes,

Histórias para Adolescentes, p.09).

Observa-se nesta história que o pobre é representado como uma pessoa honesta,

trabalhadora e que possui maior força física, enquanto que o rico é representado como

desrespeitoso, que não sabe dar valor às coisas que possuí. Nota-se o processo de

ultrageneralização no imaginário dos alunos em relação as pessoas ricas, não havendo

nenhum movimento crítico e reflexivo para explicar as diferenças que vivem com base no

Page 42: "Histórias De Adolescentes: um estudo sobre a imaginação no contexto escolar"

42

conhecimento. E segundo Heller (2004), quando o conhecimento não está presente, o

preconceito prevalece.

O que parece estar predominando no pensamento dos alunos é a particularidade, e

não o humano genérico, uma vez que o que se sobressai nessas situações não é o

pensamento e a reflexão, aspectos do âmbito do humano genérico, mas sim os interesses

pessoais de tentar compensar as diferenças que vivem na realidade. A função criadora da

imaginação não se expressa, impedindo que novas formas de vivenciar essa realidade

sejam construídas; os significados e sentidos não são reconfigurados, e as concepções

continuam cristalizadas.

Nota-se também que pela via das histórias os alunos expressam suas concepções

sobre o que é certo, errado, honesto, desonesto, questões estas que nos remetem ao modo

como são apropriados os valores.

Segundo Souza (2005), a princípio a moral é externa ao indivíduo, que com a

mediação da cultura e do social, ou seja, nas e pelas interações estabelecidas com o outro,

torna-a, assim, interna, privada, e, dessa forma, constituinte do seu ser no processo de

autorregulação da conduta. Do mesmo modo os valores vão sendo configurados (ou

reconfigurados) pelos sujeitos, pois ao se relacionar com os outros entra em contato com

aquilo que é falado dele e para ele, atribuindo valor a si e ao outro, constituindo sua

identidade de uma pessoa “boa ou má”, “bonita ou feia”, “digna ou indigna”, e edificando

seu imaginário sobre os outros de suas relações.

Nas palavras da autora:

Se ser é “ser valor” e se o ser é constituído e constituinte do social, logo, é no

processo de interação, por meio da intersubjetividade, que os valores se constroem.

Page 43: "Histórias De Adolescentes: um estudo sobre a imaginação no contexto escolar"

43

Então, quando pais e professores queixam-se dos valores presentes nos

filhos/alunos, deveriam voltar-se para si e perguntar sobre os próprios valores,

sobretudo aqueles que deveriam regular suas condutas de educadores na relação

com os educando (Souza, 2005, p.63).

Além da expressão de valores e da superioridade demonstrada para demarcar as

diferenças socioeconômicas, observamos esses mesmos aspectos para caracterizar a

utilização da força física, como aparecem nas falas dos adolescentes a seguir:

- É verdade! Esses dias fui à minha outra cidade no Paraná e um cara veio me

roubar. Eu estava com uma arma de pressão e dei dois tiros nele, mas ele levantou

a mão para mim e aí eu falei: Eu sou criança se você quiser brigar chamo meu

pai! (Diário de Campo - 02/05/2011).

- Pai pode bater no filho, mas filho não pode bater no pai!

- Pesquisadora: Como assim?

- O pai bate no filho porque está ensinando moral!

- Pesquisadora: O que é moral?

- Não sei!

- Eu sei! É como devemos nos comportar!

- O pai é quem tem que ensinar como devemos nos comportar!

- Esses dias eu não queria ir ao catecismo, então meu pai me deu uma surra! Aí eu

fui ao catecismo com o olho roxo (risos).

- Mas não somos só nós que aprontamos, às vezes os pais também aprontam, fazem

coisas erradas. A diferença é que nós não podemos bater (risos).

- Pesquisadora: O que vocês fazem quando o pai apronta?

- Aí eles mesmos (os pais) sabem que fizeram coisas erradas, eles têm consciência.

(Diário de Campo - 16/05/2011).

- Ele não deu o soco porque era Mariquinha!

- Pesquisadora: O que é ser Mariquinha?

- É quando não bate, fica com frescura! (Diário de Campo - 23/05/20117).

Os trechos acima nos colocam frente a uma contradição: como os valores morais

podem ser colocados como forma de justificar o uso da força física? Parece que para esses

alunos a força física é uma forma de impor respeito, de ser valorizado, de não ser

“mariquinha”. Eles também expressaram a concepção de que a força física é uma forma de

7Todos os trechos utilizados nesse trabalho referentes ao diário de campo do dia 23/05/2011 são relativos a

essa mesma atividade na qual Barbosa (2012) utiliza a crônica “Maluco Beleza”.

Page 44: "Histórias De Adolescentes: um estudo sobre a imaginação no contexto escolar"

44

ensinar os valores morais, conforme se observa na seguinte frase “O pai bate no filho

porque está ensinando moral!”. Novamente nota-se como as experiências e os valores

sociais vão construindo o imaginário desses jovens.

A análise desta categoria nos permite constatar que o que está nutrindo o

imaginário desses alunos não são experiências voltadas ao conhecimento, à reflexão, ao

abstrato; mas sim o cotidiano, em que o preconceito prevalece. Esta constatação nos

preocupa, nos leva a questionar o aluno formado hoje na escola pública, que muitas vezes

aparece identificado sobretudo nas avaliações oficiais como incapaz de questionar,

duvidar, e pôr em xeque os valores da sociedade contemporânea.

Page 45: "Histórias De Adolescentes: um estudo sobre a imaginação no contexto escolar"

45

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este estudo teve como objetivo analisar o papel da imaginação no desenvolvimento

de adolescentes observando o potencial da produção de histórias na agilização dessa

função psicológica e na promoção da criatividade no contexto escolar.

A imaginação possui um papel fundamental na constituição do sujeito e no

processo de ensino-aprendizagem, visto que por meio dela torna-se possível ao sujeito

visualizar conteúdos impossíveis de serem materializados, como por exemplo, os

conteúdos abstratos que compõe o currículo escolar. Também, é com o subsídio da

imaginação que o pensamento abstrato se desenvolve, permitindo ao sujeito pensar para

além de sua realidade concreta.

Entretanto, o que observamos na escola e nas histórias produzidas pelos jovens é

que a imaginação vem sendo pouco utilizada no processo de ensino-aprendizagem dos

adolescentes, o que pode ser identificado como um problema na escola, uma vez que

consideramos que a aprendizagem e a imaginação são processos imbricados e inseparáveis

no que concerne ao desenvolvimento do ser humano.

Nas histórias escritas pelos alunos observamos que os conteúdos se relacionam

com suas vivências cotidianas. Constatamos em nossa análise que a escola não vem

oferecendo um repertório de experiências que promovam o enriquecimento e

desenvolvimento da imaginação.

As histórias dos alunos são reveladoras do modo como se dão suas relações,

principalmente dentro da escola, e mostram que muitas vezes o que medeia o contato entre

alunos e alunos, alunos e professores, e alunos e direção, é a força física e o sentimento de

medo, e não o diálogo e a reflexão. Parece que esses jovens não possuem outras

Page 46: "Histórias De Adolescentes: um estudo sobre a imaginação no contexto escolar"

46

experiências que possibilitem resolver conflitos de modo mais saudável e acreditamos que

a imaginação pode ser uma via de aceso à experiência desses jovens ao mesmo tempo em

que aponta caminhos sobre o modo de se investir em sua formação. Fato é que a escola

carece de criatividade para ampliar seu próprio repertório de ação, oferecendo novas

possibilidades de se aprender e ser para os atores que dela participam.

Durante os momentos de reflexão a partir das histórias contadas por Barbosa

(2012), os alunos demonstraram um modo de pensar muito preso a realidade, sendo que o

conhecimento científico não foi utilizado em nenhum momento para explicar a realidade

que vivem. Em nossa concepção tal constatação é que sustenta o pensamento dos alunos

pautado no preconceito. Constatamos que quando o sujeito não possui uma experiência

rica e ampliada principalmente pelo conhecimento, o que “nutre” a imaginação desses

adolescentes é o preconceito.

O principal tema abordado pelos alunos nas discussões realizadas foi a diferença

socioeconômica, sendo que para explicar a diferença que vivem e percebem, recorrem a

representações baseadas no preconceito. Não houve nenhum movimento de reflexão acerca

de como nossa sociedade se constitui, sobretudo no nosso país em que a desigualdade

social é dominante. Assim sendo, consideramos que a escola não favorece o avanço deste

modo de pensar, na medida em que não oferece a mediação do conhecimento, o que alija

os alunos de pensar para além da realidade concreta, de desenvolver uma consciência mais

ampliada.

Ante o exposto, a discussão acerca do papel da imaginação e sua importância no

contexto escolar não pode ser confundida ou associada a atividades diferenciadas ou de

lazer, mas como uma função desenvolvida a partir do acesso ao conhecimento e

fundamental para o desenvolvimento do pensamento abstrato.

Page 47: "Histórias De Adolescentes: um estudo sobre a imaginação no contexto escolar"

47

Se por um lado observamos o quanto a imaginação parece não ser compreendida

pelos educadores e por conseguinte pouco valorizada no Ensino Fundamental, por outro

nos perguntamos acerca da instrução desses educadores ao longo de sua formação no que

tange a temática da imaginação. Será que tal temática é abordada nos cursos de formação?

Se sim, de que modo? A partir de qual perspectiva? Estas são questões a serem

respondidas por estudos futuros.

De nossa parte, cabe destacar a necessidade de a imaginação ser considerada como

função importante no processo de ensino-aprendizagem, e acreditamos que o Psicólogo

Escolar pode trazer contribuições para as situações descritas e analisadas neste estudo, por

meio de reflexões sobre o importante papel da imaginação na adolescência com os

professores e a equipe gestora. Enfatizamos também a contribuição das histórias em

intervenções com adolescentes, visto sua potencialidade em despertar a imaginação, a

reflexão sobre diferentes fenômenos da realidade, a vivência e elaboração de diferentes

emoções e sentimentos.

Por fim, realçamos a necessidade de estudos que abordem como tema a imaginação

na adolescência a partir da perspectiva da Psicologia Histórico-cultural, principalmente no

que se refere ao modo como professores e equipe gestora percebem o papel da imaginação

no desenvolvimento dos alunos.

Page 48: "Histórias De Adolescentes: um estudo sobre a imaginação no contexto escolar"

48

6. REFERÊNCIAS

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Católica de Campinas, Programa de Pós Graduação em Psicologia, Campinas.

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Campinas, v.24, n.62, p. 26-43.

Bock, A. M. B. (2007). A adolescência como construção social: estudo sobre livros

destinados a pais e educadores. Revista da Associação Brasileira de Psicologia Escolar

e Educacional, ABRAPEE, v.2, n.1, p. 63-76.

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sistematizando e ampliando o conteúdo dos slides de nov. 2010].

Dorin, L. (2014). Dicionário de Psicologia. (1ª.ed.). Curitiba, PR: Editora Juruá.

Dugnani, L. A. C. (2011). Os sentidos do trabalho para o orientador pedagógico: uma

análise da perspectiva da psicologia histórico-cultural-. Dissertação de Mestrado,

Page 49: "Histórias De Adolescentes: um estudo sobre a imaginação no contexto escolar"

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Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Programa de Pós Graduação em

Psicologia, Campinas.

Heller, A.. (2004). O cotidiano e a história. (7ªed.). São Paulo, SP: Editora Paz e Terra

Filosofia.

Libâneo, J. C.. (2012). O dualismo perverso da escola pública brasileira: escola do

conhecimento para os ricos, escola do acolhimento social para os pobres. Educação e

Pesquisa, v.38, p. 13-28.

Martins, L. M. (2011). O desenvolvimento do psiquismo e a educação escolar:

contribuições à luz da psicologia histórico cultural e da pedagogia histórico-crítica.

Tese de Livre-Docência, Universidade Estadual Paulista, Departamento de Psicologia

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Montezi, A. V.; Souza, V. L. T. (2013). Era uma vez um sexto ano: estudando imaginação

adolescente no contexto escolar. Psicologia Escolar e Educacional, São Paulo, v.17,

n.1, p.77-85, jan/jun.

Oliveira, M. C. S. L. (2006). Identidade, narrativa e desenvolvimento na adolescência: uma

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Petroni, A. P. (2013). Psicologia escolar e arte: possibilidades e limites da atuação do

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Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Programa de Pós Graduação em

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Souza, V. L. T. (2005). Escola e construção de valores: desafios à formação do aluno e do

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Souza, V. L. (2014). Anotações de aula, texto não publicado, Pontifícia Universidade

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Vigotski, L. V. (2009). La imaginación y el arte em la infância (9° ed). Madrid: Ediciones

Akal. (original publicado em 1930).

Vigotski, L. S. (2010). Imaginação e criação na infância. (1ªedição). São Paulo, SP:

Editora Ática. (original publicado em 1930).

Vygotski, L. S. (2006). Obras Escogidas IV- Psicología Infantil (2° ed.). Madrid: Achado

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Vygotsky, L. S. (1991). Pensamento e Linguagem (3°ed.). São Paulo: Martins Fontes.

(Original publicado em 1934).

Page 51: "Histórias De Adolescentes: um estudo sobre a imaginação no contexto escolar"

51

7. ANEXOS

a. ANEXO 1 - CATEGORIAS DE ANÁLISE

FONTE CATEGORIA INDICADORES

Imaginação e memória: pares de opostos que se

complementam

DIÁRIO

DE CAMPO

24/10/2011

- Dona fala para a professora passar um texto na

lousa para a gente copiar!

- Pesquisadora: mas vocês gostam de ficar copiando?

- É melhor copiar do que ficar fazendo lição.

Atividade

Reprodutora

DIÁRIO

DE CAMPO

30/05/2011

- Pesquisadora: Tenho uma proposta para fazer para

vocês. Já faz um tempo que venho aqui ler contos e

crônicas, e percebo que vocês sempre querem

participar e ler também. Que tal hoje vocês fazerem

uma história e depois vocês podem vir aqui na frente

contar.

- Ahh não Dona!

- Não gosto de escrever!

- Vamos sim!

- Não sei escrever.

Atividade

Reprodutora

DIÁRIO

DE CAMPO

30/10/2013

Em um determinado momento a professora aponta as

frases escritas na lousa e diz “essas frases vocês

podem encontrar em joguinhos, sabiam?”.

Enquanto a professora tentar fazer com que os

alunos copiem as frases da lousa, as alunas na minha

frente conversam sobre relacionamentos e viagens

com os namorados.

Atividade

Reprodutora

DIÁRIO

DE CAMPO

30/10/2013

O tema da aula era ‘propaganda’. Eles teriam que

usar cartolina, jornal canetas, tesoura e cola para

montar uma propaganda.

Atividade

Criadora

DIÁRIO

DE CAMPO

30/10/2013

O tema da aula agora é arte afro-brasileira. A

professora escreve um texto na lousa (texto que ela

copia de um livrinho) e solicita que os alunos

copiem em seus cadernos

Atividade

Reprodutora

JOÃO E

WILLIAN

(livro)

Em um belo dia, dois amigos João e Willian estavam

brigando quando seu professor muito chato começou

a dizer:

- Meninos, parem de brigar! Vão vocês dois para a

diretoria agora! Já.

E todos começaram a dizer:

- Eu vou chamar seu pai aqui para conversarmos.

Chamaram os pais para conversar. Depois daquele

dia o João e o Willian nunca mais levaram

reclamação para os pais que ficaram felizes.

Atividade

Reprodutora

Page 52: "Histórias De Adolescentes: um estudo sobre a imaginação no contexto escolar"

52

AMIGOS

PARA

SEMPRE

(livro)

Era uma vez um menino chamado Bruno que

gostava muito de brigar na escola, só para não fazer

lição, e todo dia sua mãe Maria tinha que estar lá na

diretoria.

Certo dia chegou um aluno novo na sala que se

chamava João. Ele tinha a fama de ser nerd. Quando

João chegou na sala de aula, o Bruno mandou ele

fazer sua lição de casa, mas João falou:

- Não!

Bruno respondeu:

- Tem certeza?

- Tenho.

Bruno e João começaram a bater um no outro.

Depois Bruno ficou muito arrependido do que fez e

falou para João:

- Me desculpa, estou muito arrependido do que fiz.

João respondeu:

- Eu te desculpo, mas não é só porque eu não fiz sua

lição que você pode sair batendo em todo mundo

assim!

- Está bem, vou tentar me controlar.

Então, os dois alunos se abraçaram e viraram amigos

para sempre.

Atividade

Reprodutora

DOIS AMIGOS

E DUAS

AMIGAS -

UMA

HISTÓRIA DE

AMOR

(livro)

Certo dia dois amigos foram para a escola e se

apaixonaram por uma mesma garota que era muito

bonita. Quando descobriram que gostavam da

mesma garota, começaram a brigar e saíram no tapa.

A garota, percebendo a situação, não quis nenhum

dos dois e saiu com outro garoto. Os dois pararam de

brigar e ficaram olhando para ela.

Eles ficaram muito tristes, mas em compensação

foram para uma balada e se divertiram a noite

inteira, e no outro dia arrumaram duas amigas muito

bonitas. Eles saíram juntos com suas amigas para as

festas. Mas teve um dia que eles se apaixonaram por

elas, e resolveram contar para elas. Quando elas

ficaram sabendo, ficaram muito felizes e foram falar

com eles. Com o tempo se casaram e tiveram filhos.

Atividade

Reprodutora

Page 53: "Histórias De Adolescentes: um estudo sobre a imaginação no contexto escolar"

53

AMIZADE

(livro)

Era uma vez um menino muito briguento que batia

em todo mundo da sua escola, e todo dia sua mãe ia

na escola e sempre ouvia a mesma coisa da diretora:

- Seu filho tem que aprender a se comportar.

E sua mãe respondia:

- Eu não tenho culpa se ele é assim.

E todo santo dia era assim, a diretora falava, a mãe

respondia e ia embora.

O Bruno, o menino briguento, já tinha brigado com

quase todos os meninos da escola, menos com Lucas

que era muito inteligente, mas os outros meninos o

chamavam de nerd. Lucas não tinha nenhum amigo.

Certo dia tinha alguns meninos zoando o Lucas, e o

Bruno chegou e empurrou o Lucas que caiu no chão.

Dias depois os meninos começaram a zoar o Bruno,

menos o Lucas que era diferente. Depois da briga

Lucas perguntou para o Bruno:

- Você quer ser meu amigo?

E o Bruno respondeu:

- É claro, agora eu entendo o que você sentia quando

aqueles garotos ficavam zoando com você.

Na hora do intervalo, quando os garotos viram o

Bruno e o Lucas andando juntos e dando muitas

risadas, alguns entraram na frente deles e

perguntaram:

- Do que vocês estão rindo?

E o Bruno respondeu:

- Não posso falar, isso é coisa de amigo, você não

iria entender.

Depois que o Bruno falou isso, chamou o Lucas e

saíram de lá, e nunca mais nenhum menino zoou o

Bruno, muito menos o Lucas.

Atividade

Reprodutora

OS DOIS

TRAPALHÕES

(livro)

Era uma vez dois trapalhões chamados Deole e Tato.

Eles viviam em uma vida de aventuras, só risos e

curtiam o dia como se fosse uma festa. Deole,

sempre de bem com a vida, adorava apelidar Tato de

gordo.

Certo dia Tato não aguentou Deole chamar ele de

gordo, partiu pra cima de Deole e começaram a

brigar.

Depois eles pararam e perceberam que era bobeira

brigar. Voltaram a ser como era antes, uma dupla

que sempre acorda de bem com todo mundo.

Viveram pelas ruas e sempre com o sorriso

estampado no rosto, sempre atentos a algum

apelido.Hoje Deole e o Tato fazem parte de um circo

que traz alegria para todos que ali estão.

Atividade

Reprodutora

Page 54: "Histórias De Adolescentes: um estudo sobre a imaginação no contexto escolar"

54

MELHORES

AMIGOS

(livro)

Em um belo dia, dois meninos João e Marcos eram

os melhores amigos na escola. Todo mundo da

escola tinha inveja da amizade deles, quando um

menino pensou em fazer eles brigarem. Minutos

depois o menino falou para o João:

- O Marcos falou que já está cansado de você! Não

quer olhar mais para sua cara!

Assustado, João vai até Marcos e xinga ele. Sem

reação Marcos ameaça bater em João na saída. Horas

depois, na saída, os dois começam a se pegar.

Quando os dois pararam e se perguntaram porque

João xingou Marcos. João respondeu:

- Porque o menino falou que você me xingou.

- É mentira.

Ai já sacaram que o menino tinha tramado isso. Os

dois se uniram de volta e bateram no menino. E

nunca mais ninguém desrespeitou eles.

Atividade

Reprodutora

OS DOIS

JOVENS

BRIGÕES

(livro)

Certo dia na escola havia dois jovens brigões

chamados João e Pedro. Eles batiam em todos da

escola. Todos que os enfrentavam, apanhavam e

apanhavam feio.

Um dia eles pegaram um menino, o Marcos, que era

um pouco forte. E todos começaram a brigar feio.

A inspetora levou o João e o Pedro para a direção da

escola e o s dois foram suspensos por 5 dias.

As mães fizeram eles copiar a frase: “nunca mais

vou brigar”.

E o Pedro disse:

- Ah, mãe, eu não vou mais brigar com o João.

- Tem certeza, filho?

- Tenho mãe.

- Então faz as pazes com ele.

- Tá.

Ele chegou no João e disse:

- João, me desculpa.

- Claro, meu irmão.

E os dois nunca mais bateram em ninguém na escola.

Atividade

Reprodutora

O

ESTUPRADOR

(livro)

Em um belo dia uma menina chamada Renata estava

passeando na praça, quando um estuprador a

sequestrou levou para um hotel e a estuprou com

uma faca.

O estuprador foi preso e ficou na prisão por 5 anos.

Depois deste tempo, ele foi solto e continua

estuprando. A família de Renata sente muito, como

todos da cidade.

Atividade

Reprodutora

Page 55: "Histórias De Adolescentes: um estudo sobre a imaginação no contexto escolar"

55

O GAROTO

(livro)

Certo dia, meu melhor amigo se meteu em uma

cilada na escola, só por causa de uma garota. Era um

dia de segunda-feira, iniciavam-se as aulas e os dois

amigos iam juntos para a escola, quando um garoto

foi logo falando:

- Por que você deu em cima da minha garota?

Aflito com essa situação ele respondeu:

- Olha eu não sabia que você gostava dela.

O garoto estava morrendo de raiva, quando chegou

em casa pegou uma arma que estava guardada no

armário e foi para a escola.

De repente todo mundo escutou um barulho de uma

arma:

- POW. POW.

Foram dois tiros. O menino foi para a UTI e o outro

se matou. Foi uma morte trágica. Infelizmente o

garoto e o menino morreram.

Atividade

Reprodutora

A MENINA

DAS ROSAS

VERMELHAS

(livro)

Era uma vez uma menina que vendia rosas

vermelhas na porta de um bar. Certo dia essa menina

morreu, mas todo dia a garota oferecia rosas à meia

noite na porta do bar. Um dia passou uma mulher

que não quis comprar rosas, a menina saiu correndo

atrás dela para oferecer rosas. Essa mulher ficou com

muita dó da menina e comprou uma rosa. A moça

levou a rosa para sua casa e foi logo amaldiçoada.

De repente a mulher viu um vulto passando pela

janela, quando virou viu a menina e ficou com muito

medo. Em um piscar de olhos a menina sumiu.

No outro dia que a moça estava voltando do trabalho

ela passou em frente do bar e perguntou:

- Onde está aquela menina que vendia rosas aqui na

frente?

E o homem respondeu:

- Essa menina morreu há séculos, ela está enterrada

em um túmulo que tem muitas bonecas.

No outro dia a mulher foi visitar o túmulo da

menina, quando entrou no cemitério e chegou perto

da cova, a porta do cemitério se fechou. Os mortos

se levantaram e a menina apareceu e a mulher ficou

aterrorizada. A menina falou:

- Moça eu preciso que você me ajude. Eu preciso

pegar três colares de cruz e colocar no pescoço das

bonecas que estão dentro da minha cova à meia

noite, senão vai ser amaldiçoada para sempre. Se

você fizer isso eu posso ir para o céu e nunca mais

ninguém irá mexer com você.

A mulher procurou em todas as casas e encontrou as

cruzes, aí a mulher pegou as bonecas e colocou a

cruz em cada boneca à meia noite. E nunca mais

ouviu falar da menina, nem em sonho.

Atividade

Criadora

Page 56: "Histórias De Adolescentes: um estudo sobre a imaginação no contexto escolar"

56

FONTE CATEGORIA INDICADORES

O desenvolvimento da imaginação como

possibilidade de superação do preconceito

DIÁRIO DE

CAMPO

02/05/2011

- Que o gato rico humilha o gato pobre, mas que

no fim eles são irmãos.

- Dona, pessoas ricas são metidas, gostam de

humilhar os outros, “se acham”!

- Quanto mais rico a pessoa, mais dinheiro ela

quer!

- Dona, tem um garoto aqui na escola que é rico,

mais ele é um mala! E também mariquinha! Só

anda com tênis novo!

- As pessoas pobres são mais unidas, já os ricos

não, são chatos.

- Pesquisadora: Mais todas as pessoas ricas são

chatas?

- Nem todos são assim. Eu conheço pessoas ricas

que são legais!

- Mas a maioria é chata.

Pergunto o que mais eles acharam da história:

- Dona tem mulher que querem dinheiro só para

ficarem mais bonitas. Por exemplo, a Xuxa,

aquele olho azul dela e aquele “peitões” são

falsos, ela colocou lentes e silicones para ficar

assim;

- É mesmo dona. As mulheres querem dinheiro

para ficar mais bonitas!

- Dona esse garoto aí (apontando para o menino

que estava do meu lado) é rico! Fui na casa dele

outro dia e tinha uma televisão tamanho 42!

- Garoto responde: Não sou rico, sou classe média.

Rico

depreciação:

mariquinha,

chato, injusto.

Diferenças

socioeconômicas

Rico

valorização:

bonito, bens

materiais.

DIÁRIO DE

CAMPO

02/05/2011

- Li na bíblia que rico e pobre não podem se

misturar, porque o rico “judia” e manda no pobre.

Outro Garoto:

- É verdade isso está na pág. 160 (senão me

engano) no salmo X (Falou o numero, mas não me

recordo);

- Deus fala que somos todos irmãos!

- É eu sei, mas nesse trecho na bíblia está escrito

que eles não podem se misturar, pois o rico vai

mandar no pobre;

Rico

Depreciação

Diferenças

socioeconômicas

DIÁRIO DE

CAMPO

02/05/2011

- Achei legal, mas às vezes o rico não sabe usar o

dinheiro e isso é pecado.

- Pesquisadora: Como assim?

- Às vezes as pessoas roubam dinheiro para

comprar drogas, cocaína, essas coisas Dona.

Diferenças

socioeconômicas

Page 57: "Histórias De Adolescentes: um estudo sobre a imaginação no contexto escolar"

57

DIÁRIO DE

CAMPO

02/05/2011

- É verdade! Esses dias fui na minha outra cidade

no Paraná e um cara veio me roubar. Eu estava

com uma arma de pressão e dei dois tiros neles,

mas ele levantou a mão para mim e aí eu falei: Eu

sou criança se você quiser brigar chamo meu pai!

Força física

DIÁRIO DE

CAMPO

02/05/2011

- Dona tem muitas meninas que casam com um

cara rico só por causa do dinheiro! Tem filhos e

depois largam para ficar com a pensão;

- Pesquisadora: Meninas, o que vocês acham

disso?

- Eu concordo!

- Pesquisadora: Vocês acham que o importante é o

dinheiro do garoto?

- Sim!

Valorização do

poder

econômico

Diferenças

socioeconômicas

DIÁRIO DE

CAMPO

02/05/2011

- Rico tem carro importado!

- Esses dias eu tava no Eldorado e passou um cara

com uma BMW e olhou eu de cima para baixo e

fez joia!

- Pesquisa: o que você sentiu?

Diferenças

socioeconômicas

DIÁRIO DE

CAMPO

02/05/2011

- Dona, rico come caviar, essas coisas! Já pobre

come galinha, porco..(risos);

- Não concordo! Eles comem as mesmas coisas

que nós só que vão no restaurante!

- Rico quando come fica “cheio de dedo” (fez

gestos delicados com as mãos).

- Rico compra roupa sempre e usa uma vez só e já

joga fora! Já o pobre usa a roupa até ficar velha!

Às vezes nem lava! (risos)

- Dona! Minha tia é rica, mas nem olha na minha

cara!

- Pesquisa: e como é isso na escola?

- Aqui tem os pobres do Jamil e os ricos que

estudam no Ângulo! (risos)

- Pesquisadora: Qual a diferença entre essas duas

escolas?

- Lá eles pagam para estudar!

- Aqui a comida é ruim!

- Dona já encontrei até um bicho na comida!

- O macarrão daqui é duro, parece o prato (risos)!

- Isso é um problema de POLITICA!

- Pesquisadora: Como assim? Política?

- Precisa falar com o prefeito para ele dar uma

comida melhor e limpar a escola!

- Pesquisadora: O que mais?

- Dona, aqui todo mundo é igual, não tem

diferença entre rico e pobre.

Diferenças

socioeconômicas

Page 58: "Histórias De Adolescentes: um estudo sobre a imaginação no contexto escolar"

58

DIÁRIO DE

CAMPO

16/05/2011

- Do filho que bate no pai e vira mostro! (todos

concordaram)

- O filho que bate no pai e se transforma em

corpo-seco, mas e o pai que bate do filho? Como

fica? (risos)

Nesse momento chamo a atenção dos demais

alunos e pergunto o que eles acham do comentário

da colega.

- Pai pode bater no filho, mas filho não pode bater

no pai!

- Pesquisadora: Como assim?

- O pai bate no filho porque está ensinando moral!

- Pesquisadora: O que é moral?

- Não sei!

- Eu sei! É como devemos nos comportar!

- O pai que tem que ensinar como devemos nos

comportar!

- Esses dias eu não queria ir no catecismo, então

meu pai me deu uma surra! Aí eu fui no catecismo

com o olho roxo. (risos)

- Mas não são só nois que aprontamos, às vezes os

pais também aprontam, fazem coisas erradas. A

diferença é que nois não podemos bater (risos)

- Pesquisadora: O que vocês fazem quando o pai

apronta?

- Aí eles mesmos (os pais) sabem que fizeram

coisas erradas, eles têm consciência.

A força física

como forma de

ensinamento dos

valores morais.

Page 59: "Histórias De Adolescentes: um estudo sobre a imaginação no contexto escolar"

59

DIÁRIO DE

CAMPO

23/05/2011

- Ele não deu o soco porque era Mariquinha!

- Pesquisadora: O que é ser Mariquinha?

- É quando não bate, fica com frescura!

- Dona ele é mariquinha! (apontou o dedo para um

aluno). Na outra aula ele fez assim com a mão

(Fez um gesto de mão caída) – risos.

- Pesquisadora: O que vocês acham disso?

- Não Pode Dona!

- Isso é errado!

- Isso é Bullying!

- Pesquisadora: O que é Bullying?

- É xingar os outros!

- É ofender!

- Não! É agressão verbal!

- Isso mesmo é agressão verbal!

Quando fiz essa pergunta: “O que é Bullying?”

Todos os alunos se manifestaram, dizendo algo, e

apresentou uma resposta imediata, algo que

parecia já estar pronto, “na ponta da língua”.

- Pesquisadora: E como o Bullying está na escola?

- As pessoas ficam xingando e isso é Bullying!

- Pesquisadora: Quem faz o Bullying? Os alunos?

- Sim! Porque colocamos apelidos nos outros!

- Dona, mas às vezes os apelidos não são para

ofender.

- É! Alguns são de brincadeira!

Depreciação do

rico: Mariquinha

Expressão de

valores

RACISMO

(livro)

Fabio era bando e Marcos, negro. Um dia Fabio

na escola xingou o Marcos de macaco e gorducho.

Marcos partiu para agressão, deu um murro no

rosto de Fabio e disse:

- Eu vou quebrar seus dentes.

E Fabio respondeu:

- Coitado de você!

- Então você vai ver quem é coitado.

Deu um murro na boca do Bruno que caiu no chão

desmaiado.

Os dois foram para diretoria, chamaram as mães

deles para conversar e eles foram suspensos por

uma semana.

Força física

Page 60: "Histórias De Adolescentes: um estudo sobre a imaginação no contexto escolar"

60

O BOXE

(livro)

Era uma vez um homem chamado Pedro com 35

anos, que morava em uma casa humilde. Era

muito honesto com sua família e com as pessoas

da rua. Havia também um homem que morava em

um apartamento com sua esposa, e gostava de

debochar das pessoas que eram pobres. Ele

sempre dizia:

- Ra, ra, ra, esses daí eu nem dou valor porque eles

são pobres e não têm educação.

E sempre o homem humilde estava lá em frente de

sua casa e não aguentava mais ser tratado daquele

jeito, então resolveu falar com sua esposa.

- Quero falar com você, amor. Posso?

- Sim, claro que pode, fala o que é.

- Eu estava pensando em desafiar aquele homem

que passa aqui na frente falando aquelas coisas

horríveis pra gente. Será que é uma ótima ideia?

- Desafiar em quê?

- Em um luta de boxe.

- Humm, é uma boa ideia, será que ele aceita?

- Tem que aceitar, porque se ele é homem para

falar essas coisas para nós, ele tem que ser homem

para lutar boxe.

- É, isso é verdade, ele é muito ignorante com as

pessoas humildes. Como você irá falar com ele?

- Na próxima vez que ele passar aqui em frente.

- Então tá.

O homem passou lá depois de dois dias, e o

humilde disse a ele:

- Pare aí. Vamos nos desafiar?

- Em quê?

- Uma luta de boxe, e quem perder nunca mais

pisa na cidade do outro.

- Então tá, só se for agora.

- Tá, deixe o carro estacionado nesse local bem

nessa calçada, e você pode entrar.

Entraram os dois na casa e vestiram as roupas,

colocaram as luvas e iam começar em alguns

minutos.

- Vamos começar, 1, 2, 3, e já.

A briga começou...

Acabou o 1º tempo.

Começou de novo...

E o homem humilde ganhou e venceu a luta.

Rico como

honesto.

Rico: gosta de

debochar.

Pobre como

honesto e que

tem maior força

física.

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b. ANEXO 2 - ROTEIRO PARA OBSERVAÇÃO NA ESCOLA

o Há espaço para a imaginação em sala de aula?

o De que modo ela se expressa?

o Observar:

- Conteúdo da aula

- Como está sendo ensinado esse conteúdo?

- Qual é a qualidade da comunicação do professor?

- Os alunos parecem entender o que o professor está explicando?

- Os alunos fazem a atividade solicitada pelo professor? De que modo?

- Em que momento os alunos falam?

- Quem fala mais, o professor ou os alunos?

- Qual é o conteúdo dessas falas?

- Qual é a forma como falam (baixo/alto, com gírias, ...)?

- Como o professor intervém na fala dos alunos (faz interrupções, correções, ...)?

Page 62: "Histórias De Adolescentes: um estudo sobre a imaginação no contexto escolar"

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c. ANEXO 3 - DIÁRIO DE CAMPO (30/OUT/2013)

Ao chegar à escola fui levada até a sala dos professores, que estavam tomando café

e se preparando para a primeira aula do dia. Eve olhou no quadro as aulas que os 8º anos

teriam no primeiro período. Como não encontrou resolveu perguntar para uma professora,

que coincidentemente daria aula de artes para o 8º1. Eve me apresentou dizendo meu

nome, que eu era uma estagiária de psicologia e que estava iniciando uma pesquisa que

visava identificar a questão da imaginação nos adolescentes, e perguntou se ela se

importaria que eu assistisse à aula dela nessa sala. A professora pareceu não se importar e

até mesmo demonstrou que seria bom ter alguém diferente em sala. Outro professor (mais

tarde descobri que lecionava matemática) que estava perto falou que o 8º1 era a sala mais

difícil e que seria maldade me colocar lá direto, mas que a turma precisava muito de uma

psicóloga, uma vez que era a turma mais difícil de toda a escola.

Como ainda havia um tempo até a aula começar, Eve nos levou para conhecer a

escola. Durante nosso passeio uma aluna chega correndo e a abraça. Elas começam a

conversar. Eve nos apresenta, dizendo que a menina é bailarina e que quer ser

fisioterapeuta. A menina pretende prestar enfermagem no Cotil no próximo ano, e está

muito preocupada, pois acredita não ser capaz de passar uma vez que não tem aula direito

nem acesso a material.

Bate o sinal e vamos em direção à sala dos professores novamente.

Acompanhei a professora até a sala e perguntei se poderia me apresentar para a

turma. Ela respondeu que sim, mas que gostaria que eu esperasse até que todos estivessem

dentro da sala, levando em conta que o sinal havia acabado de tocar e que muitos alunos

ainda estavam no corredor. Enquanto esperávamos ela disse que eu poderia me sentar onde

eu preferisse. Perguntei então se os alunos tinham lugar marcado. Ela respondeu que sim e

pegou o mapa de sala que se encontrava dentro de uma pasta vermelha. Nesse momento

começou a apontar o nome de algumas alunas e disse “essas são as alunas problema”.

- Está ouvindo essa gritaria no corredor? São elas!

Quando todos os alunos já estavam dentro da sala e a porta havia sido fechada, a

professora tentou dizer aos alunos quem eu era, mas a conversa (com muita gritaria) não

parava. Virei-me para ela e disse que eu poderia me apresentar. Desloquei-me até o meio

da sala, fiz alguns barulhos com a garganta, chamei a atenção de todos até que houvesse

silêncio. Não achei que conseguiria, mas após um tempo todos estavam quietos olhando

para mim com muita curiosidade.

Me apresentei e logo começaram as perguntas:

- Mas o que você vai fazer?

- Dona, porque essa sala? Você é louca, dona! Essa é a pior sala de todas!

Escolhi um lugar vago e me sentei, peguei meu caderno e comecei a fazer minhas

observações.

1ª aula – AULA DE ARTES

A professora não consegue fazer com que a turma faça silêncio. Todos falam ao

mesmo tempo. Todos gritam ao mesmo tempo. Usam muitas gírias e palavrões. Um aluno

levanta e começa a mexer na bolsa da professora, que grita “o que você está fazendo?

Você não pode mexer nas minhas coisas! Saia daí agora!”.

Pela sala voam muitas bolinhas e aviões de papel. A professora pergunta para um

aluno se não está na hora do “aeroporto fechar”.

Enfim a professora consegue começar a aula.

- Como amanhã é halloween quero que vocês façam um desenho sobre isso.

Uma aluna vai até a mesa da professora, pega uma caneta de lousa e pergunta se eu

sei como se escreve halloween. Eu dito e ela escreve na lousa. Faz embaixo da palavra o

Page 63: "Histórias De Adolescentes: um estudo sobre a imaginação no contexto escolar"

63

desenho de uma bruxinha. Muitos não gostam do tema e reclamam. Um aluno faz alguma

coisa que a professora não gosta e ela olha irritada para ele. No mesmo momento outro

aluno diz “a dona ta pensando em fazer exorcismo!”.

A maioria dos alunos faz a atividade, mas sem parar de conversar. É visível que

grande parte dos alunos não possui material, uma vez que gritam pedindo “lápis de lição”,

apontador, lápis de cor.

Um aluno desenha uma caveira. Se levanta e mostra para a professora, que diz que

se ele arredondar um pouco mais as curvas, o desenho ficará mais parecido com uma

caveira de verdade. Ele volta para o seu lugar e continua o trabalho.

Alunas riem quando a professora pede que elas se mantenham no lugar marcado

pelo mapa de sala e falam que elas vão ficar onde bem quiserem. Elas reclamam muito,

mas acabam sentando-se nos lugares marcados.

A professora se senta em sua mesa e passa a chamar a atenção dos alunos de lá.

Um menino desenha dois Batman na folha de desenho e diz “meu pai é o Batman e

eu também”.

Durante a aula uma das “alunas problemas” começa a fazer uma tarefa (que depois

entendi ser uma tarefa que substituiria uma suspensão) de outra matéria. A professora se

irrita com a situação e mais uma vez a aluna diz que vai fazer tudo o que quiser. A

professora então diz que a escola recebeu dinheiro para que sejam instaladas câmeras

dentro das salas de aula.

- Isso é ridículo! Essa escola ta virando uma prisão!

Os alunos reclamam que a escola não vai fazer festa de halloween e que a outra

escola vai. Começam a cantar a música do patati patata.

Professora diz que aluno precisa melhorar o desenho e quer que ele pinte o

desenho, porém ele fala que não tem lápis de cor.

- Que professora chata!

- Me fala uma legal...

Bate o sinal. A professora sai da sala, e os alunos continuam fazendo seus

desenhos.

2ª aula – AULA DE INGLÊS Professora entra na sala e pede para que os alunos sentem-se em seus lugares

segundo o mapa de sala. Ao perceber que um dos alunos estava fora do lugar pede que ele

mude. O aluno então diz que daquele lugar ele não presta atenção, e a professora responde

dizendo que “bom aluno é bom aluno em qualquer lugar” e enfatizando que ele deve sentar

no lugar certo.

Ao olhar o diário de sala a professora constata que a turma tem muitas anotações,

que se as coisas continuarem dessa forma ela terá que chamar os pais para conversar

novamente. A partir disso os alunos começam a discutir sobre a possibilidade de

receberem novas suspensões (“já tenho várias anotações, mais uma e é certeza que levo

suspensão...”).

Objetos como pedaços de papel, lápis e cadernos continuam voando pela sala.

Enquanto a professora se mantém sentada na mesa do professor e confere o diário

de sala, alunas fazem tarefa de outra matéria (ciências) e me fazem perguntas.

Muitos alunos continuam a fazer os desenhos da aula anterior, enquanto algumas

alunas conversão sobre religião e sobre seus medos de alguns rituais. Elas estavam muito

perto de mim e o tempo todo me olhavam, o que me fez parar de escrever por um período

de tempo, e assim perdi os detalhes dessa conversa que acredito serem importantes.

Após 25 minutos do início da aula a professora, ainda sentada, começa a falar sobre

a matéria. Mesmo assim os alunos não param de conversar e abafam a voz da professora,

que acredito ninguém estivesse conseguindo ouvir (eu tentei e não consegui).

Page 64: "Histórias De Adolescentes: um estudo sobre a imaginação no contexto escolar"

64

Os alunos mudam de lugar constantemente, afastam as carteiras e brincam de

escorregar pela sala. Duas alunas se levantam, vão até o fundo da sala e ficam de costas

para a professora, que se incomoda, vai até elas e pede que elas retomem seus lugares.

Bravas, elas obedecem.

Até esse momento parece não haver espaço algum para a imaginação. Porém em

um determinado momento a professora aponta as frases escritas na lousa e diz “essas

frases vocês podem encontrar em joguinhos, sabiam?”.

Enquanto a professora tentar fazer com que os alunos copiem as frases da lousa, as

alunas na minha frente conversam sobre relacionamentos e viagens com os namorados.

Essas alunas dizem a professora que não vão fazer a atividade simplesmente porque não

querem, e a professora então as ameaça com uma prova. Mesmo assim os alunos não se

intimidam e continuam sem copiar os exercícios que a professora solicita.

Outro aluno concorda com essas garotas e a professora diz a ele: “você não engana

só a mim, está se enganando”.

Meninas saem da sala sem permissão e ao voltarem a professora anuncia que

marcou o nome delas no diário. Irritadas, a chamam de pedófila, pois só anota o nome de

meninas.

O sinal que anuncia o final da aula bate e os alunos fazem festa. Assim sendo, a

professora não conseguiu dar aula.

3ª aula – AULA DE LINGUA PORTUGUESA

Antes do início da aula fui até o lado de fora da sala para me apresentar a

professora e perguntar se eu poderia assistir sua aula. Antes que eu pudesse chegar a porta

a diretora entrou na sala e começou a conversar com os alunos. Disse que ela havia

recebido reclamações sobre eles, e perguntou se eles não tinham vergonha de agir daquela

forma na frente da psicóloga que tinha vindo de tão longe para conhecê-los.

Em seguida a professora entrou na sala e fez um sinal de que eu poderia ficar ali.

Novamente me apresentou aos alunos. Uma aluna fica surpresa de saber que eu era

psicóloga, mesmo eu já tendo me apresentado e a diretora ter acabado de falar.

O tema da aula era ‘propaganda’. Eles teriam que usar cartolina, jornal canetas,

tesoura e cola para montar uma propaganda.

Os alunos xingam a professora, a pedem para ir fazer a atividade no pátio, e mesmo

assim ela autoriza.

Enquanto caminhamos até o pátio, professora me fala que essa é a sala mais difícil

de lidar, e que está procurando novos métodos para tentar fazer com que os alunos prestem

atenção à aula, como por exemplo, a utilização da criatividade. Pelo o que pude observar

até esse momento essa foi a aula que os alunos mais demonstraram interesse, pois mesmo

com toda conversa e bagunça eles estavam realizando a atividade proposta.

A professora durante todo o tempo olha para mim, sorri e parece tentar justificar o

modo de agir dos alunos, como se sentisse vergonha e precisasse de aprovação.

De repente alguns alunos se levantam e começam a brigar, se batendo e com

olhares de raiva. Eu estava muito longe deles e tudo começou muito rápido, portanto, não

sei o que motivou a briga. A professora titular e um ajudante separaram os dois meninos.

Mesmo vendo alguns dos alunos realizarem a tarefa, fica claro para mim que

muitos utilizam o fato de estarem fora da sala para bater papo e não fazer nada. Também

observo que o “ir ao banheiro” é uma das atitudes dos alunos para fugir da atividade.

Essa é a primeira professora que parece conseguir estabelecer uma comunicação

mais consistente com os alunos.

4ª aula – AULA DE ARTES

Todo o espaço que havia para a imaginação na primeira aula parece sumir na

segunda. O tema da aula agora é arte afro-brasileira. A professora escreve um texto na

Page 65: "Histórias De Adolescentes: um estudo sobre a imaginação no contexto escolar"

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lousa (texto que ela copia de um livrinho) e solicita que os alunos copiem em seus

cadernos, porém apenas uma aluna realiza a tarefa.

- Faz o favor de começar a copiar!

Os alunos aparentam estar mais calmos, mas continuam conversando muito, porém

mais baixo, sem tanta gritaria.

- No final é para vocês desenharem uma roda de capoeira. Não quero palitinho!

Não quero palitinho!

- A porta está aberta! Vou fugir! – diz uma das alunas rindo, e em seguida volta

para sua carteira.

INTERVALO

5ª AULA – AULA DE LINGUA PORTUGUESA

Os alunos continuam a fazer a atividade da 3ª aula, porém agora em sala, segundo a

professora por ordem da direção.

As quatro meninas mais bagunceiras entram na sala correndo e socando um

menino. Depois, quando chamam a professora e ela não atende por estar conversando com

outro grupo, começam a cantar. As meninas, que estão perto de mim vêm conversar

comigo sobre o porquê eu estou ali, dizem que a escola é muito ruim e que recebem

suspensão por qualquer coisa, enquanto outros alunos fazem o que quiserem sem ter

nenhum tipo de problema.

A turma, até então mais calma se descontrola, e a gritaria e a correria voltam. Uma

tesoura voa pela sala. Alguns alunos usam os materiais para bater nos colegas.

Alunas levantam, vão até a frente da sala e pedem que nenhum aluno lembre o

próximo professor que ele havia marcado prova.

Professora vai até um grupo e pede que façam uma correção no cartaz, porém um

dos meninos diz que não vai arrumar. “O trabalho é nosso, dona! Eu faço o que eu

quiser!”. “Se você fizer assim vai tirar zero!”.

Após chamar a professora e não ser atendido, um aluno se levanta, vai até a lousa, e

começa a bater nela, chamando a atenção de todos.

Menino usa uma caneta como cigarro e pergunta se alguém quer.

A preocupação com a instalação das câmeras gera alvoroço por parte dos alunos,

que acham que essa é uma medida que irá torna-los ainda mais “prisioneiros” (como eles

mesmo dizem) da escola.

As meninas que reclamaram de receber suspenção por nada discutem sobre mudar

de escola juntas no próximo ano, mas no final decidem desistir da ideia, por terem medo

de a outra escola ser pior. A professora chega até elas e olha a propaganda que fizeram.

Observo que há erros de concordância no cartaz (venha nos visita), mas até o final da aula

a professora não faz nenhum tipo de correção, nenhum feedback sobre a atividade para os

alunos. Nada é discutido.

Bate o sinal e a aula termina.