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História 44 | Agro DBO – outubro 2012 Uma obsessão: a erosão. Fernando Penteado Cardoso * N este artigo, reminiscências de um agrônomo experiente, com 80 anos * de agronomia na prática, e uma obsessão: conser- vação de solos, legado maior dessa verdadeira legenda viva que é Fernando Penteado Cardoso, entre outras atividades, fundador e presidente da Manah S/A por mais de meio século. O presente texto é uma homenagem da revista Agro DBO ao Dr. Fernando Penteado Cardoso, pelos seus 98 anos completados em se- tembro último, em reconhecimento à sua luta, e a todos os agrônomos deste país, no dia do Engenheiro Agrônomo, atividade humana das mais tradicionais e, mais do que nunca, uma profissão do futuro. Certo dia, ao alinhar ideias para uma palestra em Rio Verde/GO, procurei relembrar o porquê do in- teresse persistente sobre conserva- ção do solo durante minha carrei- ra profissional. Então veio um lam- pejo de minha memória. Aos 14 anos, conheci, assombrado, o es- trago causado pelas chuvas fortís- simas no verão de 1929, na fazen- da da família em Descalvado/SP. Cafezais lavados, morros desmo- ronados, voçorocas imensas, fo- ram imagens indeléveis para um garoto que passava sempre férias junto às lidas com café e gado, ou- vindo queixas de terra lavada, solo vidrado, cafezal decadente. Anos depois, na Escola Supe- rior de Agricultura Luiz de Quei- roz-ESALQ, escrevi meu primei- ro artigo sobre erosão, enquan- to ainda estudante. Acompanhava nos anos 30 as notícias das nu- vens de poeira no “dust bowl” no meio-oeste dos EUA. Fascinava- -me o trabalho técnico e a bandei- ra levantada por Hugh Bennett na América do Norte. Lia tudo que me chegava às mãos sobre conser- vação do solo. Já graduado, ainda nos anos 30, construía sulcos em nível com plaina rudimentar puxada por dois burros, marcava pomar de citrus alinhado em contorno para a famí- lia Siqueira, em Bragança Paulista (SP) e com colegas organizamos o Escritório Técnico Agrícola (ETA), responsável pelos pioneiros terra- ços de base larga, construídos em 1938 para Caio Ramos, Faz. Anhu- mas, em Campinas/SP. Seguiram-se 50 anos de ferti- lizantes, sempre em convívio com lavouras e lavradores, vivendo su- as vitórias e insucessos: dentre es- tes, sempre a erosão. Quanto adu- bo ia por água abaixo! Organiza- ram-se memoráveis campanhas no País. Fundou-se o Departamento de Mecanização Agrícola (DEMA) para fazer terraços. Tentamos a As- sociação Brasileira de Conservação do Solo, de vida efêmera. Milha- res de quilômetros de terraços fo- ram construídos. A curva de nível entrou no subconsciente e as plan- tações vistas do alto, formavam um belo conjunto de linhas sinuosas. Mas os estragos da erosão per- sistiam. Os solos trabalhados e ex-

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História

44 | Agro DBO – outubro 2012

Uma obsessão: a erosão.

Fernando Penteado Cardoso *

N este artigo, reminiscências de um agrônomo experiente, com 80 anos * de agronomia na prática, e uma obsessão: conser-vação de solos, legado maior dessa verdadeira legenda viva que é Fernando Penteado Cardoso, entre outras atividades,

fundador e presidente da Manah S/A por mais de meio século. O presente texto é uma homenagem da revista Agro DBO ao Dr.

Fernando Penteado Cardoso, pelos seus 98 anos completados em se-tembro último, em reconhecimento à sua luta, e a todos os agrônomos deste país, no dia do Engenheiro Agrônomo, atividade humana das mais tradicionais e, mais do que nunca, uma profissão do futuro.

Certo dia, ao alinhar ideias para uma palestra em Rio Verde/GO, procurei relembrar o porquê do in-teresse persistente sobre conserva-ção do solo durante minha carrei-ra profissional. Então veio um lam-

pejo de minha memória. Aos 14 anos, conheci, assombrado, o es-trago causado pelas chuvas fortís-simas no verão de 1929, na fazen-da da família em Descalvado/SP. Cafezais lavados, morros desmo-

ronados, voçorocas imensas, fo-ram imagens indeléveis para um garoto que passava sempre férias junto às lidas com café e gado, ou-vindo queixas de terra lavada, solo vidrado, cafezal decadente.

Anos depois, na Escola Supe-rior de Agricultura Luiz de Quei-roz-ESALQ, escrevi meu primei-ro artigo sobre erosão, enquan-to ainda estudante. Acompanhava nos anos 30 as notícias das nu-vens de poeira no “dust bowl” no meio-oeste dos EUA. Fascinava--me o trabalho técnico e a bandei-ra levantada por Hugh Bennett na América do Norte. Lia tudo que me chegava às mãos sobre conser-vação do solo.

Já graduado, ainda nos anos 30, construía sulcos em nível com plaina rudimentar puxada por dois burros, marcava pomar de citrus alinhado em contorno para a famí-lia Siqueira, em Bragança Paulista (SP) e com colegas organizamos o Escritório Técnico Agrícola (ETA), responsável pelos pioneiros terra-ços de base larga, construídos em 1938 para Caio Ramos, Faz. Anhu-mas, em Campinas/SP.

Seguiram-se 50 anos de ferti-lizantes, sempre em convívio com lavouras e lavradores, vivendo su-as vitórias e insucessos: dentre es-tes, sempre a erosão. Quanto adu-bo ia por água abaixo! Organiza-ram-se memoráveis campanhas no País. Fundou-se o Departamento de Mecanização Agrícola (DEMA) para fazer terraços. Tentamos a As-sociação Brasileira de Conservação do Solo, de vida efêmera. Milha-res de quilômetros de terraços fo-ram construídos. A curva de nível entrou no subconsciente e as plan-tações vistas do alto, formavam um belo conjunto de linhas sinuosas.

Mas os estragos da erosão per-sistiam. Os solos trabalhados e ex-

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postos perdiam porosidade e chu-vas menores começaram e escor-rer, erodindo os intervalos entre terraços, soterrando canais, saltan-do cordões, lavando e carregando a preciosa terra. Nesse quadro pre-ocupante, um agrônomo Plínio B. Junqueira, produtor em São Joa-quim (SP) me alarmou: “Desisti das roças devido à erosão, apesar dos terraços. Plantei cana pensan-do nos meus netos”. Eu mesmo, em Mogi-Mirim, arrendei para a cana, 1984 a 1988, sem qualquer escorri-mento. Voltando para soja e milho à base do arado e grade, sofri ex-tensa erosão em 1991, apesar dos terraços. Senti como que lanhada minha própria pele.

A partir da década de 60, com o progresso da química agrícola, com seus herbicidas e reguladores de crescimento, novas ideias surgi-ram nos Estados Unidos, no senti-do de manter o solo protegido por resíduos vegetais, deixando-as na superfície sem incorporar. Outros técnicos, mais ousados, evitavam a aração, abrindo novos caminhos de plantio direto – PD e / ou culti-vo mínimo.

No início dos anos 70, agricul-tores do Paraná, alarmados com a erosão, foram aos EUA para veri-ficar as novas técnicas. Trouxeram o especialista Shirley Phillips, do Kentucky para assessorá-los. Ou-tros grupos de “amigos da terra” lançaram-se ao plantio direto, exa-gerando suas virtudes, tornando-o até como ideologia, em vez de téc-nica. Os defensivos foram às vezes aceitos como panaceia. Houve er-ros e fracassos. Mas a persistência e observação de muitos técnicos e lavradores resultou, passo-a-passo, no sistema mais eficaz de proteção e melhoramento do solo.

Constatei em Palmeira (PR) 10

t/ha de milho em solo que “não via ferro há 15 anos”. Registrei Muni-cípios - Ponta Grossa (PR), Xan-xerê (SC), com 95% das lavouras em plantio direto. Ouvi depoimen-tos de agricultores de Abelardo Luz (SC), desesperados pelo estrago da chuva em terra cultivada, enquanto vizinhos com plantio direto pou-co ou nada sofreram. Registrei ob-servação pitoresca de lavrador em Montividiu (GO) que “não mais perdia o sono por trovoadas à noi-te”, após a adoção do plantio direto.

Desde muitos anos vimos acompanhando o assunto na Ma-nah. Em nosso periódico “Manah dá... notícias”, criamos uma se-ção sobre “Plantando sem erosão”. Em 1980 traduzimos e publica-mos artigo da revista Nature, rela-tando novos horizontes do cultivo com resíduos. Em 1982 resumi-mos trabalhos científicos na Áfri-

ca Equatorial sobre manejo de re-síduos como alternativa para a ro-tação com descanso em capoeira (bush fallow). Propusemos ao di-retor técnico da EMBRAPA a con-versão do CPAC em um Centro de Pesquisa de Plantio com Resíduos. Patrocinamos por 4 anos observa-ções e experiências em Morrinhos (GO) e motivamos nossa rede de vendas a perguntar aos clientes: “já ouviu falar em plantio direto?”. Convenci-me de que o manejo dos resíduos e, tanto quanto pos-sível, o plantio direto, eram o fu-turo da agricultura. Os exemplos estavam ai pra quem quiser ver. Mais de 80% dos projetos subme-tidos ao Departamento de Agri-cultura dos Estados Unidos ado-tam voluntariamente o manejo de resíduos, para cumprir a prote-ção obrigatória do solo a partir de 1995, por Lei Federal.

Outros grupos de “amigos da terra” lançaram-se ao plantio direto, exagerando suas virtudes, tornando-o até como ideologia, em vez de técnica

O Brasil inovou o plantio direto para adaptá-lo 1aos trópicos

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Sem pretender entrar em pormenores, poderíamos as-sim resumir os objetivos a alcan-çar por métodos vegetativos pa-

* Carta Aberta aos Agrônomos - OESP, Supl. Agrícola, 14.4.1993 - Editorado pelo autor em 15.9.12.**Engenheiro agrônomo Sênior, Esalq/USP, 1936.

ra conservação e melhoramento do solo:

1 - Restabelecer a porosidade e a permeabilidade da terra.2 - Criar obstáculos ao escorri-mento das águas.3 - Reduzir as flutuações de tem-peratura superficial.4 - Aproveitar mais a água da chu-va ou de irrigação.

A agricultura com resíduos tor-nou-se viável com os herbicidas e re-guladores de crescimento, que substi-tuíram o controle do inço por cultivos mecânicos, que requeriam terra solta sem torrões. Os solos se formaram ao longo de milhares de anos pelo acúmu-lo superficial de resíduos. Sua estrutu-ra e vida biológica se baseiam na depo-sição do material orgânico, camada so-bre camada, por tempos imemoriais.

Não há o que temer em retornar às regras da natureza, agora que a eco-logia se tornou preocupação mundial. Lancei por “carta aberta” um apelo veemente a todos os meus colegas da pesquisa, da divulgação, do assessora-mento e da administração rural: “Es-tudem esse assunto sem preconceitos, com interesse e com senso de respon-sabilidade para o problema.”

A agroquímica, a genética, a me-cânica robotizada nos acenam com horizontes luminosos para os próxi-mos anos. Cumpre nos prepararmos para as maravilhas agronômicas do futuro. Para tanto, é primordial ter um solo conservado e melhorado.

Fernando Penteado Cardoso em 19/outubro/2011, ao completar 97 anos