história política e cultura do medo

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HISTÓRIA POLÍTICA E CUL HISTÓRIA POLÍTICA E CUL HISTÓRIA POLÍTICA E CUL HISTÓRIA POLÍTICA E CUL HISTÓRIA POLÍTICA E CULTURA DO MEDO TURA DO MEDO TURA DO MEDO TURA DO MEDO TURA DO MEDO Prof. Dr. Antonio Torres Montenegro 1 Resumo: Este artigo reflete meu percurso de pesquisa histórica nos últimos seis anos, e nele privilegio aspectos que considero relevantes nas produções realiza- das que se consubstanciaram em artigos e capítulos de livros. O objetivo ao es- colher esse caminho é o de refletir e mapear os deslocamentos teóricos e metodológicos, os aprendizados, considerando as contribuições de diversos auto- res, os desafios e encruzilhadas, o diálogo com a historiografia num nível geral e também específico. As reflexões metodológicas foram construídas num diálogo com documentos da imprensa, do DOPS, da literatura de cordel além de relatos orais de memória relativos aos acontecimentos políticos das décadas de 1950 e 1960. Palavras-chave: História Política; História Oral; Repressão Política; Medo; Brasil Século XX Abstract: This article reflects my recent journey in historical researching, paying special attention to what I have considered as relevant issues in articles and book chapters written in the last six years. The objective in choosing this path is to reflect and map the theoretical and methodological shifts, the challenges and shifts of my historical learning, considering the contributions of various authors, and the dialogue with historiography in general and specific level. Methodological reflections were constructed in a dialogue with sources as newspapers, documents of DOPS, the “chap-books” in addition to oral reports of memory for the political events of the 1950s and 1960s. Key Words: Political History; Oral History; Political Repression; Fear; Brasil XX Century 1. LUTAS POLÍTICAS NO CAMPO. Inicio pela análise de um projeto de pesquisa histórica que teve como título Memórias da terra: a Igreja Católica, as Ligas Camponesas e as esquerdas (1954-1970) , o qual resultou em diferentes caminhos suscitados pela pesquisa 1 Professor do Departamento de História da UFPE. Email para contato: [email protected]

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  • HISTRIA POLTICA E CULHISTRIA POLTICA E CULHISTRIA POLTICA E CULHISTRIA POLTICA E CULHISTRIA POLTICA E CULTURA DO MEDOTURA DO MEDOTURA DO MEDOTURA DO MEDOTURA DO MEDO

    Prof. Dr. Antonio Torres Montenegro1

    Resumo: Este artigo reflete meu percurso de pesquisa histrica nos ltimos seisanos, e nele privilegio aspectos que considero relevantes nas produes realiza-das que se consubstanciaram em artigos e captulos de livros. O objetivo ao es-colher esse caminho o de refletir e mapear os deslocamentos tericos emetodolgicos, os aprendizados, considerando as contribuies de diversos auto-res, os desafios e encruzilhadas, o dilogo com a historiografia num nvel geral etambm especfico. As reflexes metodolgicas foram construdas num dilogocom documentos da imprensa, do DOPS, da literatura de cordel alm de relatosorais de memria relativos aos acontecimentos polticos das dcadas de 1950 e1960.

    Palavras-chave: Histria Poltica; Histria Oral; Represso Poltica; Medo; BrasilSculo XX

    Abstract: This article reflects my recent journey in historical researching, payingspecial attention to what I have considered as relevant issues in articles and bookchapters written in the last six years. The objective in choosing this path is toreflect and map the theoretical and methodological shifts, the challenges and shiftsof my historical learning, considering the contributions of various authors, and thedialogue with historiography in general and specific level. Methodological reflectionswere constructed in a dialogue with sources as newspapers, documents of DOPS,the chap-books in addition to oral reports of memory for the political events ofthe 1950s and 1960s.

    Key Words: Political History; Oral History; Political Repression; Fear; BrasilXX Century

    1. LUTAS POLTICAS NO CAMPO.

    Inicio pela anlise de um projeto de pesquisa histrica que teve como ttuloMemrias da terra: a Igreja Catlica, as Ligas Camponesas e as esquerdas(1954-1970), o qual resultou em diferentes caminhos suscitados pela pesquisa

    1 Professor do Departamento de Histria da UFPE. Email para contato: [email protected]

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    documental, associada ao debate historiogrfico. A problemtica metodolgicaque se apresentou constantemente em razo do cruzamento documentao &historiografia contribuiu de maneira decisiva para a anlise de um perodo hist-rico no Brasil marcado por um avano dos movimentos sociais rurais e urbanos,at o golpe civil-militar que se instalou em 1964 e a represso aos movimentossociais que ento se seguiu.

    No texto publicado como captulo de um livro da coleo Brasil Republica-no, com o ttulo Ligas Camponesas e sindicatos rurais em tempo de revo-luo2, desenvolvi uma ampla reflexo sobre a organizao das Ligas Campone-sas no estado de Pernambuco e sua atuao no Nordeste do Brasil, entre o finalda dcada de 1950 e incio da dcada de 1960. Para este estudo pesquisei com adocumentao do DOPS3 hoje depositada no Arquivo Pblico Estadual de Per-nambuco. As Ligas Camponesas se constituram numa Associao Civil Rural degrande fora poltica, pois surgiram como alternativa aos sindicatos rurais que osgrandes proprietrios impediam de serem criados.

    Nas dcadas de 1950 e 1960, a polcia apreendeu farta literatura produzidapor algumas lideranas dos movimentos sociais rurais consideradas como inte-grantes das Ligas Camponesas. Essa documentao possibilitou estudar diferen-tes aspectos dos discursos e das prticas dos trabalhadores. A imprensa e osrelatos orais de memria de trabalhadores e lideranas sindicais e religiosas tam-bm se constituram uma base documental importante para a anlise do cotidianodos embates polticos no campo.

    Duas perspectivas de anlise fundam a escrita do texto Ligas Campone-sas e sindicatos rurais em tempo de revoluo. Por um lado, o estudo daacirrada disputa que se estabeleceu entre a Igreja Catlica, setores da esquerda(fundamentalmente o Partido Comunista) e as Ligas Camponesas, pela hegemo-nia na conduo das lutas sociais que comeavam a eclodir no meio rural emPernambuco. Nesse aspecto, alm de estabelecer as linhas dessa disputa, procu-ro analisar como a Igreja Catlica teve um papel decisivo na criao dos sindica-tos rurais pelo Ministrio do Trabalho, antes do golpe civil-militar. A formaodos sindicatos rurais foi um meio de enfraquecer as Ligas Camponesas, as quaiseram associaes civis criadas no vazio deixado pela legislao, que dificultava afundao dos sindicatos no campo. A disputa de poder entre essas trs foraspolticas nesse perodo foi um dos focos centrais das minhas anlises.

    O segundo aspecto a ser destacado na realizao desse estudo foi a opode pensar o documento (no caso da imprensa) como uma forma de construir oreal e, desse modo, estud-lo como lcus privilegiado, observando como a seestabelece um acirrado combate entre os diversos grupos sociais no sentido denarrar, da forma mais convincente e, portanto, verdadeira, a histria cotidiana.

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    Nesse sentido, foi muito revelador analisar a srie de reportagens escritas pelojornalista Antonio Callado sobre as Ligas Camponesas e a situao poltica dePernambuco em 19594 e, posteriormente, outro conjunto de matrias sobre omesmo tema, elaboradas pelo jornalista Tad Szulc para o jornal The New YorkTimes em 1960. So os dois mesmos Nordestes completamente distintos a desa-fiar os deslocamentos analticos da escrita historiogrfica.

    Ainda ressaltaria nesse artigo o relato de memria de um trabalhadorrural da zona canavieira de Pernambuco, Joo Lopes da Silva (conhecido porBubu), que possibilitou refletir sobre as prticas paternalistas e sua ruptura. Emoutros termos, como os prprios cdigos internos da relao paternalista de com-padrio, que permeia as redes de dominao, podem ser motivo de ruptura dessepacto visvel/invisvel.

    Bubu filho de trabalhador rural. Seu pai plantava cana para o senhor deengenho e tinha direito a um stio, em que cultivava sua lavoura de subsistncia milho, feijo, macaxeira , e podia algumas vezes levar um excedente para ven-der na feira no final de semana. Mas essa prtica seria alterada ao surgir aproibio do direito de stio para os trabalhadores da cana. Nas lembranas deBubu, esse momento reconstrudo atravs de diversas experincias que se in-tercalam em um tempo simultneo:

    [...] foi quando eu me casei; bom, adepois, quando adepois demuito tempo, o senhor de engenho, todo senhor de engenhocombinava. Que tem l a Federao dele, a sede e dizia: novai mais dar stio a filho de lavrador. A gente agora s quereles tudo para trabalhar no eito da cana. Quando a gente iapedir stio... eles dizia no, d no, tudo pro eito.5

    Este pequeno fragmento de seu relato de memria revela a forma comopara o narrador foi entendida a medida de proibir os stios em que os trabalhado-res da monocultura da cana plantavam sua agricultura de subsistncia. Poder-se-ia pensar que com a proibio do direito ao stio os prprios senhores contribu-ram para a ruptura de um dos elos que constituram e cimentaram a secularrelao paternalista entre senhores e trabalhadores. No entanto, para Bubu, ou-tro acontecimento iria concorrer, de forma mais radical ainda, para romper seuslaos com as prticas paternalistas que o prendiam ao engenho Mamulenga.Recorda, ento, uma doena que a mulher contraiu, ocasio em que decidiu pedirajuda ao patro:

    [...] quando a mulher adoeceu a fui l; disse: Seu Jlio, euquero que o senhor me empreste dez mil ris, para comprar umvidro de remdio para a mulher. Seu Jlio respondeu: ...,Joo Lopes, eu vou... Eu ganhava naquele tempo, dois mil

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    ris e quinhentos ris, naquela poca. Ele disse: ..., eu vouaumentar para trs mil ris, no posso emprestar dinheiro, no!Eu digo: t certo... Vim para casa. Papai disse: Joo, v l emcasa buscar o dinheiro, a eu fui, papai me emprestou dez milris, fui em Aldeia de So Sebastio, comprei um vidro de guainglesa para a mulher, ela tomou e ficou boa.6

    Esse acontecimento teve um significado radical para Bubu. O pacto pater-nalista, para ele, foi rompido de forma definitiva com aquela recusa do senhor emajudar sua mulher que adoecera. Sobretudo, porque j vinha pensando em tra-balhar em outros lugares ou mesmo mudar-se para a cidade de Recife. Porm,antes de entregar a enxada e a casa ao patro, queria mostrar que um trabalha-dor como ele merecia outro tratamento. E no esquece de narrar a promessa quefez a si prprio naquela oportunidade:

    Eu vou mostrar a Seu Jlio o que um trabalhador... quandochegava no servio, metia a enxada para cima. A gente estavano ms de So Joo cavando rego de cana. Eu metia na frente,puxava o eito assim, eu gritava: Puxa a beira e o canto, deixao meio pra dia santo, corre o canto e a beira, deixa o meio parasegunda-feira, p, p, p... os outros homens limpando, qua-se cem homens, para cavar rego... p, p, pei, pei, pei... quan-do foi no ms de agosto, encontrei compadre Roseno no ran-cho, e ele disse: Compadre, sua vaga na usina est arrumada.Voc vai segunda-feira falar. ... eu fui, cheguei l arrumei avaga... Voltei para Mamulenga, trabalhei mais quatro dias,quando foi na sexta-feira, nesse dia trabalhei que s no sei oqu. Quando cheguei no servio, disse: Olhe! S sou mora-dor de Mamulenga at hoje! De hoje em diante, no sou mais.A o pessoal dizia: Tu bebesse gua do aude de Mamulen-ga, tu no sai mais nunca. Eu digo: T certo. Vou, a come-cei, eu vou me embora, peitei, quando larguei de cinco horas,peguei a enxada, cheguei assim, digo: Pronto, seu Jlio, estaqui sua enxada, s sou morador do senhor at hoje, de hojeem diante no sou mais. A ficou: O que isso seu Joo?Digo: ... sim senhor, seu Jlio, porque eu quero patro paraquando eu precisar da minha necessidade precisar dele, masde um patro, quando chega minha necessidade, ele no meserve, para mim no d.7

    Joo Lopes rompeu com o espao opressor, mas antes trabalhou at oslimites de suas foras, como para provar a si mesmo que seu valor estava almdo reconhecido pelo senhor. Era um trabalhador exemplar, que provavelmenteningum imaginava que estivesse preparando o golpe, o lance. Afinal, era o pr-prio lder dos cem homens que cavavam o rego para plantar a cana, puxando na

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    voz o ritmo da enxada. Mas, antes, garantiu outro emprego na usina de acar. Esua tenacidade se define tambm pelo prazer em romper com as regras queregiam a relao patro/empregado, as quais, na sua representao, no lhe atri-buam o valor de que se considerava merecedor. Por outro lado, ao anunciar aoscompanheiros que estava de partida, estes lhe relembraram o efeito mgico dasguas do aude, que tornava todos prisioneiros de seu prprio destino: o de vivere morrer trabalhando naquele engenho. Joo, entretanto, no se intimidou, en-frentando os companheiros e sua gua servil, e o patro, que no acreditava noque ouvia daquele trabalhador dedicado. Com a conscincia de que quem rompe-ra o contrato fora o senhor, declinou as razes de sua deciso de pedir demissoao dizer: patro, quando chega minha necessidade, ele no me serve, para mimno d.

    Teria Joo realmente dito ao patro que ele no atendera sua necessidadee por isso estava indo embora?! Ou aquela era uma representao silenciosa queelaborara, mas que sempre guardara para si prprio, revelando-a apenas ao re-construir sua memria oral?! No entanto, essa resposta nunca ser obtida. Ape-nas sabemos que ela apresentou-se naquele momento de recordao, reconstru-o dos tempos de despedida como trabalhador rural do engenho Mamulenga.

    O fragmento de memria da histria de vida de Joo Lopes possibilita com-preender como algumas relaes de dominao no meio rural do Nordeste, nosmeados do sculo XX, vinham se transformando: o senhor no mais cedia o stiopara o trabalhador produzir uma lavoura de subsistncia; colocava-se a possibili-dade de mudana para o Recife ou para outros locais de trabalho, em face daruptura do pacto patriarcal, pois os senhores pareciam atender cada vez menos antiga representao de que supriam a necessidade do trabalhador.

    2. O MEDO COMO QUESTO POLTICA

    Em 2004, publiquei o artigo Labirinto do medo: o comunismo (1950-1964)8, no qual parti do estudo dos incndios nos canaviais de acar no estadode Pernambuco no final da dcada de 1950 e incio da dcada de 1960. Duaslinhas bsicas de anlise definiram a construo desse artigo. Por um lado, adiscusso sobre a forma como, a um acontecimento comum no perodo o incn-dio de canaviais , na denominada zona da Mata de Pernambuco, foi associadauma outra rede de significao, ou seja, a ameaa comunista. Na imprensa, nordio, nas feiras livres do interior, nos plpitos das igrejas, era reafirmado que osincendirios dos canaviais no passavam de comunistas que desejavam destruira propriedade, a religio e a famlia. Assim, era produzida toda uma representa-o de medo, de temor associado aos incndios dos canaviais. Na poca no erauma prtica comum a queima antes do corte da cana, como se faz hoje.

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    Paralelamente, pesquisando nos arquivos, encontrei uma reportagem naimprensa do perodo que me chamou muito a ateno. Em letras garrafais, enca-beava a pgina policial do jornal Dirio de Pernambuco uma chamada que anun-ciava: Avio ateou fogo no canavial do engenho Cair: testemunha narra fatoao Dirio.9 Logo abaixo, a fotografia de um canavial incendiado e, ao lado, aimagem de uma criana em trajes prprios de trabalhador rural, aparentando unsdez anos. A legenda da foto informava que a criana havia visto o avio jogaralgo e logo em seguida o fogo se espalhara no meio da cana. A matria dizia,inicialmente, que alguns senhores da regio falaram reportagem que, provavel-mente, aquele incndio era de responsabilidade do lder das Ligas Camponesas,Francisco Julio. Este teria afirmado que tinha condies de incendiar todos oscanaviais de Pernambuco, caso os patres no cumprissem com suas obrigaestrabalhistas. No restante da matria, eram transcritos relatos de trabalhadores,moradores da regio, donos de barraces, nos quais alguns at afirmavam queno acreditavam que um avio houvesse lanado fogo no canavial.

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    A grande surpresa para mim na pesquisa com essa documentao foi en-contrar um relatrio de 14 pginas, produzido por dois agentes da polcia de Per-nambuco, acerca desse episdio. Esses agentes policiais foram encarregados defazer uma investigao no local do incndio. Durante vrios dias, percorreramdiversos engenhos da regio, conversando com trabalhadores, senhores de enge-nho, administradores, vigias e donos de barraco. O resultado de toda essa pere-grinao um rico documento, onde a histria do avio incendirio inteiramen-te desconstruda, pois os trabalhadores afirmam de forma unnime que aquilo histria de menino, ningum ali acredita, e vem tona uma ampla srie de fato-res que contribua para a ocorrncia daqueles incndios. Para minha surpresa, osagentes narram no relatrio que as razes dos incndios nos canaviais, segundoas pessoas com as quais conversaram nos engenhos, eram: pontas de cigarrojogadas nas margens da estrada; os caadores de passarinhos com suas espin-gardas soca-soca, que carregavam pela boca do cano e o tiro expelia uma buchade palha seca que provocava incndios; ou mesmo a prpria imprevidncia dedonas de casa que, ao varrerem os restos das cinzas dos foges de lenha, joga-vam os mesmos prximo aos canaviais. No h no relatrio confidencial escritopor esses agentes nenhuma referncia a comunista ou pessoal das Ligas Cam-ponesas, como costumava aparecer na imprensa. Pelo contrrio, o que surge norelatrio so os incndios associados tambm a uma estratgia de sobrevivncia,pois, algumas vezes, o trabalhador, por se encontrar sem o dinheiro da feira dofinal de semana, ateava fogo aos canaviais com o objetivo de obrigar o propriet-rio a imediatamente realizar o corte da cana, uma vez que a cana queimadaprecisa ser cortada no prazo de 48 horas, seno perde a sacarose e no servepara produzir acar.

    Em resumo, a documentao que fui descobrindo em razo da pesquisa meconduziu para uma realidade inteiramente distinta daquela que a imprensa noperodo anunciava. E o mais surpreendente foi realizar esse percurso tendo comodocumento um relatrio policial confidencial enviado ao delegado auxiliar do es-tado de Pernambuco no perodo que nunca veio a pblico.

    Outro momento significativo da pesquisa foi o ano de 2004 portanto, quaren-ta anos aps o golpe civil-militar de 1964 no Brasil , quando foram promovidosdiversos seminrios de norte a sul do pas para discutir e analisar os mltiplos signifi-cados, as diferentes produes historiogrficas, as diversas memrias acerca dessetrgico acontecimento. Escrevi um artigo, As Ligas Camponesas s vsperas dogolpe de 196410, que inicio tomando como referncia uma reflexo de Gramsci, naqual ele afirma que, em sentido espontneo, todas as pessoas so filsofas. Talvezseja possvel dizer o mesmo em relao ao historiador, ou seja, em sentido espont-neo, todas as pessoas so historiadores e historiadoras, pois esto constantemente

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    narrando histrias e, sobretudo, retornando memria do passado e repensando-o,ressignificando-o. A partir desse movimento de anlise do passado, muitas vezesocorre das pessoas redefinirem sua forma de compreender e agir no presente e derefletir acerca dos projetos futuros.

    Em seguida, procuro mostrar como o historiador tem uma maneira siste-mtica de repensar o passado. Em outros termos, o exame da historiografia, apossibilidade de acesso a novos documentos, novas abordagens metodolgicasassociadas s experincias do presente produzem novas perguntas e a reescritada histria. Dessa maneira que procuro pensar a histria do golpe civil-militarde 1964 da perspectiva dos movimentos sociais rurais do Nordeste, em especialas Ligas Camponesas. Associada a essa preocupao terica, recupero uma do-cumentao do DOPS em que os agentes policiais, ao escreverem ao DelegadoGeral seus relatrios acerca das greves em alguns engenhos, ao tempo em queinformam quem so os lderes do movimento, afirmam tambm que os propriet-rios cometem muitas injustias contra os trabalhadores. Assim, possvel perce-ber indcios de uma mudana de atitude da prpria polcia, que comeava a apon-tar como no sendo mais aceitveis as relaes de trabalho impostas por deter-minados proprietrios. Dessa forma, o artigo, ao mesmo tempo em que analisa orefazer crtico da historiografia, recuperando o debate sobre o golpe de 1964,mostra como uma parcela da polcia em Pernambuco se colocou em face dasconstantes greves de trabalhadores no meio rural. O discurso da polcia, em par-te, rompe com a afirmao de que toda mobilizao dos trabalhadores resultavada ao dos comunistas e das Ligas Camponesas, como a imprensa costumavanoticiar. No entanto, o discurso dominante na documentao pesquisada de quea sociedade assistia a um crescente descontrole e anarquia, sobretudo porque oaparelho de Estado no nvel municipal e estadual estava dominado por polticosde esquerda.

    3. HISTRIA E MEMRIA: TRILHAS METODOLGICAS

    Outro texto publicado foi Arquiteto da Memria: nas trilhas dos ser-tes de Crates11, elaborado no bojo da pesquisa Memrias da terra: a IgrejaCatlica, as Ligas Camponesas e as esquerdas (1954 -1970). O ponto departida para este texto foi uma longa entrevista com dom Antonio Fragoso, ex-bispo da cidade de Crates, no estado do Cear, realizada entre outubro e de-zembro de 2003. Essa entrevista de histria de vida, de mais de 12 horas, exigiudiversas viagens da cidade de Recife, onde vivo, cidade de Joo Pessoa, capitaldo estado da Paraba, onde Antnio Fragoso passou a morar depois de sua apo-sentadoria como bispo de Crates. Seu prprio relato de sua histria de vidainstituiu um outro dom Fragoso, distinto daquele que aparece na historiografia da

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    Igreja Catlica no Brasil, ou mesmo em relatos de memrias de padres que tive-ram oportunidade de com ele atuar. O religioso de posies polticas firmes, in-quebrantveis, sempre pensando na lgica de um cristianismo a favor dos traba-lhadores mais pobres, revelou-se tambm um homem de fala pausada e afetuosa,apreciador das rosas e sempre muito atento e curioso em saber mais sobre mi-nhas pesquisas no campo da histria.

    Esse texto, que focaliza a atuao de dom Fragoso e sua pastoral ruralfundada na Teologia da Libertao, se inicia com o relato de memria de umpadre francs que, por volta de 1963, chegou cidade de So Lus, capital doestado do Maranho. O padre Xavier Gilles de Maupeou viera de Paris paratrabalhar na diocese de So Lus, onde dom Fragoso era bispo auxiliar, antes deser transferido para a cidade de Crates. Em seu relato de memria, numa entre-vista que realizei para outro projeto de pesquisa, denominado Guerreiros do alm-mar, ele narra o choque que foi a primeira conversa com dom Fragoso, no palcioepiscopal em So Lus. Embora dom Fragoso, quando indagado sobre o episdio,nada lembrasse, essa recepo nunca fora esquecida por Xavier, que a narrouainda cheio de emoo:

    Xavier, ns pedimos um padre para o mundo operrio. Tnha-mos necessidade de um padre que viesse do mundo operrio.Tu no vens do mundo operrio, tu no conheces o mundooperrio. Precisvamos de um padre maranhense, mas no te-mos, e tu no sabes nada do Maranho. Em seguida apresen-tou-me a uma moa, que estava ao nosso lado e disse: Estsvendo essa moa, ela faz parte de uma pequena equipe dejovens trabalhadoras. Elas vo te ensinar tua tarefa sacerdo-tal, tua profisso de padre. Foi atravs dessa equipe com-posta de oito moas que comecei a entrar no mundo operriodos bairros de So Lus.12

    A mim, pessoalmente, sempre me encantam os fragmentos de memriaconstrudos a partir de pequenos relatos de casos, que se transformam em verda-deiras histrias. No apenas pelo carter inusitado e surpreendente que na mai-oria das vezes estas apresentam, mas sobretudo pelo que trazem de marcas, desinais, de ndices que desafiam a leitura historiogrfica. E voc, caro leitor, deveento se perguntar que sinais teria eu lido nessa curta reconstruo de memriade um encontro entre dois religiosos. Um religioso nordestino, mesmo ocupandouma posio superior bispo auxiliar , recebia um religioso estrangeiro e afir-mava que toda a sua formao eclesistica nos seminrios da Frana de nadavalia para atuar no Brasil. Seria ento necessrio um novo perodo de aprendiza-gem, onde os professores seriam no os doutores da terra, mas uma equipe dejovens trabalhadoras.

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    A proposta apresentada ao padre Xavier apontava para uma nova relao depoder e saber. Um padre francs iria reaprender seu ofcio com trabalhadoras dacidade de So Lus, ou seja, a formao intelectual e todo um conjunto de experin-cias trazidas da Europa pouco ou nada valiam. Talvez por isso padre Xavier nuncatenha esquecido esse acontecimento, pois significava um choque, uma anulao dasua percepo e compreenso da ordem das coisas. Em outros termos, uma inversodo discurso iluminista e da prtica colonialista que se instalara quase que de formanatural nas relaes culturais, comerciais e polticas entre a Europa, os EUA osdenominados pases do Norte e as naes deste outro lado do continente. Porm, ochoque teve ainda outra dimenso cultural, provavelmente inimaginvel para o padrerecm-chegado: suas professoras seriam mulheres, e no homens. Ou seja, um pa-dre iria aprender seu oficio exatamente com aquele tipo de pessoa que os seminriosinstituram como uma grande ameaa, simbolizada em Eva e na eterna tentao dopecado e a expulso do Paraso. importante relembrar que esse encontro entreXavier e dom Fragoso ocorreu no incio da dcada de 1960, quando a luta pela igual-dade de direitos das mulheres ainda dava seus primeiros passos e a Igreja no tinhaconcludo o Concilio Vaticano II, que aprovou algumas prticas modernizadoras. Hde se considerar, ainda, que no era fortuito que o padre Xavier, ao narrar sua histriade vida por meio de um relato oral de memria, recriasse o dilogo que se estabele-cera no seu primeiro encontro com o bispo auxiliar de So Lus e, mesmo passadosmais de trinta anos, ainda reavaliasse esse encontro como um momento difcil.

    Um ano aps esse memorvel encontro entre o padre Xavier e o bispoauxiliar, ocorreu o golpe de 1964. Dom Fragoso, que estava ento cotado paraser nomeado arcebispo de So Lus do Maranho, foi denunciado como comunis-ta ao 4 Exrcito e enviado para ser o primeiro bispo da recm-criada diocese deCrates, situada no serto do estado do Cear, a 300 km da capital Fortaleza.Para alguns era a mesma coisa de ser mandado para atuar como bispo na Sibriabrasileira. No entanto, mesmo na distante cidade de Crates, Fragoso transfor-maria sua diocese numa referncia nacional e internacional de uma igreja mili-tante pela causa dos trabalhadores. Aps mais de trinta anos de bispado dedicadoa Crates, Fragoso se aposentou e se despediu para nunca mais retornar a essacidade. Ouvi-lo foi de certa maneira conhecer a histria de muitas crianas po-bres do interior do Nordeste do Brasil, que cedo ingressam nos seminrios meno-res e, muitas vezes, no tm o dinheiro da passagem do nibus para ir visitar ospais no interior dos seus estados.

    Nesse texto, o fio condutor no se reduz narrao da histria invulgardesse combativo bispo, que na dcada de 1970 era nomeado de progressista, masabrange a anlise de seu grande esforo para transformar em documento, e tam-bm em histria, sua intensa e longa experincia sacerdotal em Crates. Um

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    guerreiro invulgar na sua cruzada por converter em histria escrita sua aopastoral naquela distante cidade.13

    Em razo do intenso trabalho com as fontes documentais orais e escritas, etambm devido ao fato de ministrar na Ps-Graduao em Histria da UFPE adisciplina Metodologia da Histria, produzi alguns trabalhos de carter mais te-rico-metodolgico.

    Esse itinerrio de pesquisa, aliado docncia de uma disciplina de carterterico, concorreu para a escrita do texto Rachar as palavras: uma histria acontrapelo.14 Este trabalho significou um esforo de sntese metodolgica de umprocesso de investigao e reflexo que fui construindo desde 2003. Diferente-mente de outros artigos de carter metodolgico j escritos por mim, neste buscoassociar a problemtica terica ao trabalho de anlise histrica de alguns docu-mentos orais e escritos. Para efetivar esse percurso, procuro mostrar como osdebates atuais da fsica e da matemtica encontram-se muito prximos da dis-cusso historiogrfica apontada por Paul Veyne e Michel Foucault. Ou seja, apartir da fsica moderna no existem mais coisas com qualidades intrnsecas;elas dependem do meio ambiente. No nvel subatmico, os objetos materiais sli-dos da fsica clssica dissolvem-se em padres ondulatrios de probabilidades. Eestas no so probabilidades de coisas, ou de objetos, mas de interconexes.Assim, na teoria quntica os fsicos no lidam com coisas, mas com relaes.Ou ainda, como escreveu o fsico Niels Bohr, as partculas materiais isoladasso abstraes, e suas propriedades so definveis e observveis somente atra-vs de sua interao com outros sistemas15. Dessa forma, o foco da anlise dafsica no seria mais o objeto, mas as relaes, porque isoladamente a natureza,no nvel subatmico, no revelaria qualquer objeto.16 Assim, se no temos obje-tos, nem um mundo a ser descoberto, mas relaes ou interconexes, as palavrastambm, ao serem enunciadas, no oferecem por si a verdade do mundo. Porextenso, no possvel mais estabelecer definies em que as palavras ou osconceitos conteriam o prprio sentido e significado do mundo. As palavras, dessemodo, no operam como representao mgica que ao ser enunciada revelaria oconhecimento, de forma clara e objetiva.

    Poder-se-ia encontrar, nessa representao do mundo que a fsica moder-na cria, um estreito paralelo com a histria, na perspectiva da anlise desenvolvi-da por Paul Veyne, quando afirma:

    Dito de outra maneira, preciso desviar os olhos dos objetosnaturais para perceber uma certa prtica, muito bem datada,que os objetivou sob um aspecto datado com ela; pois porisso que existe o que chamei anteriormente, usando uma ex-presso popular, parte oculta do iceberg: porque esquece-mos a prtica para no mais ver seno os objetos que a reifi-

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    cam a nossos olhos... Em vez de acreditar que existe uma coisachamada os governados relativamente qual os governa-dos se comportam, consideremos que os governados podemser tratados seguindo prticas to diferentes, de acordo comas pocas, que os ditos governados no tm seno um nomeem comum.17

    Em outras palavras, Veyne est colocando que tambm na histria as coi-sas, os objetos, os seres, isoladamente, nada expressam, alm do seu significan-te. No que tange ao termo governado, por exemplo, este s existe ou s adquiresignificado histrico mediante o estudo de suas prticas, analisando suas rela-es. E seria essa uma das grandes contribuies de Foucault para a histria, naviso de Veyne.

    Foucault observa que o problema ao mesmo tempo distinguir os aconte-cimentos, diferenciar as redes e os nveis a que pertencem e reconstituir os fiosque os ligam e que fazem com que se engendrem, uns a partir dos outros.18 Apartir do estudo das relaes, das prticas, dos fios, das ligaes, que so associ-ados a acontecimentos, que podemos construir formas de entendimento histri-co. Ou ainda, como afirma Deleuze, a questo no mais estudar a origem ou acausa, nem a finalidade ou a conseqncia, mas o que se passa entre19. Dessamaneira, a anlise histrica tem como foco primordial as relaes, os percursos,as prticas, porque atravs do seu estudo que se podero construir outras for-mas de compreenso, que desnaturalizem a relao ou a representao que pro-curava associar de forma unvoca o objeto ou a coisa palavra. nessa perspec-tiva que Deleuze e Veyne iro reafirmar a proposta de Foucault de rachar aspalavras, rachar as coisas. Desnaturaliz-las e ir em busca dos fios que as en-gendram, que as significam.

    Rachar as palavras, romper seus liames naturalizados e evidentes com ascoisas, com o que se denomina real. A histria como o digladiar de sentidos,produzidos pelos jogos da linguagem20, nos remete a Certeau, quando afirma:Parece que no se podendo mais atribuir s palavras uma relao efetiva comas coisas que designam, elas se tornam tanto mais aptas para formular sentidos,quanto menos limitadas so por uma adeso real.21

    Nesse territrio, torna-se fecundo privilegiar a postura terica de Wittgesns-tein, ao considerar em suas reflexes filosficas o discurso comum das pessoas,e no o dos filsofos. E atravs dele que revisito o trecho da entrevista do ldercomunitrio Arnaldo Rodrigues da Cruz.

    Na dcada de 1970, em pleno regime militar no Brasil, teve incio umamobilizao em defesa da moradia, num grande bairro popular de Recife, deno-minado Casa Amarela. Desde a dcada anterior, os agentes imobilirios vinhamtentando expulsar os moradores por meio da cobrana do foro da terra. Esta

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    tentativa recrudesceu, j que a imobiliria, em princpio, contava com o apoiooficial para reprimir qualquer manifestao popular de protesto contra essa co-brana, considerada indevida e irregular pela populao. A censura reinante noperodo, aliada ao medo que muitos cidados passaram a sentir de vir a ser nome-ados de comunistas22 por participar de qualquer movimento social, era um fatorque concorria bastante para a desmobilizao popular. No entanto, mesmo diantedesse conjunto de adversidades, um grupo de moradores iniciou uma organizaodenominada Terra de Ningum e, com o apoio da Igreja Catlica e de outrossetores, conseguiu, aps anos de luta, a desapropriao das terras e o ttulo depropriedade para seus moradores.23

    Esse prembulo tem como objetivo apresentar o relato de um dos morado-res que participou ativamente de todo o trabalho de organizao e mobilizaocontra a imobiliria e seu dono, Rosa Borges. Ao relembrar o que se denominouluta das Terras de Ningum, Arnaldo afirma:

    Eles [a imobiliria] nunca foram dono de nada e hoje ele se dizdono de tudo e todo mundo acredita que ele dono. Mas queeles nunca foram donos de nada, mas de nada mesmo, isso preciso vocs [os moradores] botarem na cabea de vocs,tirar da cabea de vocs, porque tirando da cabea de vocs,vocs levam para outro conscientes, mas enquanto estiver nacabea de vocs, vocs no leva no. Vocs vo dizer: no,mas... fica gaguejando.24

    Este pequeno fragmento do relato j revela uma perplexidade, entre a pa-lavra (dono) e a coisa (as terras de Casa Amarela). Como seria possvel cons-truir uma ligao entre a palavra dono e a coisa, terras de Casa Amarela, se estapara Arnaldo no existe? A resposta, segundo ele, estaria no fato das pessoasacreditarem. E lembra que, enquanto os moradores no retirarem de suas prpri-as cabeas a proposio ele dono, a luta estar enfraquecida, porque eles notero firmeza, ficaro gaguejando. Ou seja, para Arnaldo no existe a divisocartesiana entre matria e esprito, corpo e alma. A prtica das lutas sociais lheensinou que o pensamento e a ao so indissociveis, esto misturados. A aoe o pensamento constituem um mesmo conjunto. E em seguida amplia sua refle-xo, ao indagar: E como ele se diz proprietrio? A que danado. A que esta histria. o furto, a roubalheira, a ladroce, que existe dentro da poltica, juntocom juiz, advogado, no sei quantos diabos, que fizeram isso. Fizeram Rosa Bor-ges ser dono daquilo que no era dele.25

    Para responder a sua prpria pergunta, Arnaldo retorna histria e detalhaos procedimentos, os fios, os caminhos trilhados, pois proprietrio no umapalavra que se associa a uma coisa, a um objeto de maneira natural. Mas o

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    proprietrio que se diz Rosa Borges resultou de operaes complexas. Ao deta-lhar esses movimentos que associam, estabelecem elos, colam significados, Ar-naldo est quebrando, rachando, desnaturalizando aquela palavra, aquela hist-ria. E acrescenta:

    A histria ele conta assim. Bom, ele fez tudo isso. E a lei, aprpria lei. danado, isso. eu d uma tapa em voc, semvoc abusar comigo, mas eu tenho dinheiro e chego l nadelegacia prendo voc, voc fica preso e eu venho embora.Foi isso o que Rosa Borges fez, veio para Casa Amarela, tomarconta de tudo, dominou tudo, hoje em dia se diz dono de CasaAmarela, propriedade imensa e ele diz que dele, mas SantosMarinho foi que deu a mo a ele. Foi que botou ele aqui e eleficou aqui dentro, depois ele passou a ser administrador, ele que diz. Passou a ser administrador na histria. E, atravs daadministrao, como no tinha dono, ele passou a ser dono.Ele que diz.26

    Ler o relato de Arnaldo aprender com ele, um ex-operrio txtil, que aodescrever a experincia de luta em defesa da sua moradia oferece um brevetratado acerca do combate que se trava na histria. Como a histria o que sediz, resultante de muitos procedimentos de fora que delimitam, cercam, cor-tam, estabelecem elos, subvertem significados, rompem acordos. E conscientedo perigo da histria, Arnaldo torna-se professor, e didaticamente explica comoos signos so trocados, os significados mudados de lugar pela fora do dinheiro.E como quem se sabe um educador, narra uma breve histria: eu d uma tapaem voc, sem voc abusar comigo, mas eu tenho dinheiro e chego l na delegaciaprendo voc, voc fica preso e eu venho embora. Para Arnaldo a histria dapropriedade da terra em Casa Amarela plural, resultando num combate entreum dizer do Rosa Borges e outro do movimento dos moradores. E a vitria destesltimos depende entre outros elementos da capacidade de mudar o pensar/agir. Ahistria como desafio e movimento constantes de quem sabe o quanto rachar aspalavras exige sabedoria, tticas, trampolinagens de um viver a contrapelo.

    Toda essa pesquisa acerca do perodo que antecede ao golpe civil-militarde 1964 e do perodo posterior em que uma violenta represso se abateu sobreas lideranas dos movimentos populares, as lideranas dos sindicatos combativose as lideranas dos partidos e organizaes de esquerda levou-me de volta reflexo sobre a memria histrica. Mais propriamente ao estudo da construode uma certa tradio de memria que, focalizada em minhas pesquisas, trata daproduo, tanto na historiografia como nos meios populares, de uma representa-o poltica de que o estado de Pernambuco um lcus marcado pela resistnciae combatividade de seu povo.

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    Nesse sentido que me voltei para a investigao de uma frente eleitoralde esquerda que se constituiu inicialmente em Recife, capital de Pernambuco, apartir de 1955 e que se desmobilizou diante do golpe de 1964. No texto A Frentedo Recife chega ao poder (1955-1964)27, trabalhei com diversas leituras einterpretaes historiogrficas que se condensavam basicamente em duas pers-pectivas de anlise: ou reforavam a tradio combativa de esquerda da popula-o de Recife e de Pernambuco, ou a negavam.

    Em sntese, este artigo procurou romper com essas duas vises at entodominantes. Afinal, em diversas eleies os candidatos de partidos consideradosde esquerda venceram, no entanto, essas vitrias no autorizam afirmar que te-nha existido uma tendncia ou uma natureza de esquerda na populao, poistambm em outros momentos foram eleitos candidatos considerados de direita. Aquesto fundamental que essas leituras cristalizam a histria, transformando-aem memria histrica ou produzindo identidades que traem o movimento de res-significao e crtica permanente.

    Em outro estudo, publicado em 2007, As Ligas Camponesas e os confli-tos no campo28, trabalhei basicamente com as representaes culturais produzi-das pela literatura de cordel sobre temas como: religio, trabalho, liberdade, lati-fndio. Esta literatura era recitada por cantadores com suas violas nas feiraspopulares das pequenas cidades do Nordeste do Brasil. As Ligas Camponesas seapropriaram desse importante veculo de reproduo da cultura popular, at en-to profundamente marcada por valores tradicionais como honra, tradio, res-peito famlia, respeito a Deus e respeito ordem constituda, e introduziram umnovo discurso. Os cordis passaram a ser uma arma poderosa de crtica aosricos, ao latifndio e, sobretudo, a uma certa Igreja que apoiava a manuteno dostatus quo dominante:

    O latifndio diz assim: Deus castiga aquele que se rebelacontra ele. Se um rico e outro pobre, se um tem terra e outrono, se um deve trabalhar com a enxada para dar o cambo eoutro se mantm e se enriquece com o fruto desse cambo,se um vive num palcio e o outro numa palhoa, porqueDeus quer. Quem se rebela contra isso, se rebela contra Deus.Sofre os castigos do cu: peste, guerra e fome. E quando mor-re vai para o inferno. O pobre deve ser pobre para que o ricoseja rico. O mundo sempre foi assim. E h de ser sempre assim. Deus quem o quer... Assim fala o latifundirio ao campo-ns. Usa o nome de Deus para assustar-te. Porque tu crs emDeus. Porm esse Deus do latifundirio no teu Deus. TeuDeus manso como um cordeiro. Se chama Jesus Cristo. Nas-ceu em um estbulo. Viveu entre os pobres. Se rodeou depescadores, camponeses, operrios e mendigos. Queria a li-

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    berdade de todos eles. Dizia que a terra devia ser de quemtrabalha. E o fruto era comum. So suas as seguintes palavras: mais fcil um camelo passar por um buraco de uma agulha,que um rico entrar no reino dos cus. Porque afirmava essascoisas foi crucificado pelos latifundirios do seu tempo. Hojeseria fuzilado. Ou o internariam num asilo de loucos. Ou seriapreso como comunista. Escuta bem o que te digo campons.Se um padre ou pastor te fala em nome de um Deus que amea-a o povo com peste, guerra e fome, raios e troves e o fogodo inferno, saiba que esse padre ou esse pastor so servos dolatifndio e no um ministro de Deus.29

    A partir da anlise dessa literatura, estudei como foi sendo produzida todauma outra concepo de trabalhador, de religio, de patro, de liberdade e depoltica entre os trabalhadores do campo.

    Aps esse longo percurso de estudos dos movimentos sociais no campo ena cidade, no territrio da poltica e suas vrias representaes e prticas, foipossvel estabelecer dilogos e aproximaes com diversificados aportes teri-cos e metodolgicos. A produo resultante desses dilogos e questionamentosesteve pautada pela anlise intensa de documentos escritos e no escritos, edessa forma pude operar deslocamentos analticos que considero fundamentaisnesta minha trajetria. E hoje isso passa a ser central na pesquisa As produesdo medo: histria e poltica no Nordeste (1955-1964), tema das minhas atuaisinvestigaes, que conta com o apoio do Conselho Nacional de DesenvolvimentoCientfico e Tecnolgico do Brasil (CNPq).

    Meu interesse maior, neste estudo, analisar como foi sendo gestada, porintermdio de diversas redes, a representao do perigo que se afirmava comoameaa a toda a sociedade, e apareceria associada aos conceitos de medo e deviolncia. Investigo como a imprensa, a polcia, a Igreja Catlica e muitas outrasinstituies construram o lugar do perigo, do medo, da ameaa em relao aoque era objetivado como a ordem social e, ainda, como outras instituies incor-poraram e ampliaram os efeitos dessa produo discursiva.

    Meu plano de trabalho analisar as estratgias discursivas e as prticasque instituam a produo do medo, transformando-o em algo evidente, material epalpvel. No mbito dessa anlise situa-se o estudo das redes que, de formafragmentada, teciam esses discursos e concorriam para cimentar e solidificar arepresentao de ameaa iminente de destruio das instituies pblicas e pri-vadas, fundadas num sentimento de medo. Toda uma representao do medo foisendo oferecida populao atravs da imprensa falada e escrita, dos plpitosdas igrejas, dos palanques polticos, das falas dos professores, dos livros e revis-tas. Ao leitor, ao ouvinte, ao aluno, s pessoas, coube acreditar, completar e am-

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    pliar esse mundo que lhes era oferecido, em que eram convocados a posicionar-se, a denunciar ou, talvez, inserir-se em outras redes discursivas e rechaar omedo, ou ter dvidas, ou no aceitar, ou no compreender. Isto , torna-se neces-srio estar atento s mltiplas formas de apropriao do medo.

    Mais de quatro dcadas separam o tempo daquelas experincias sociais,polticas, culturais; outros discursos foram recriados, outros fragmentos lanadose outras rachaduras apresentadas, instituindo outros medos, outras ameaas, ou-tros perigos, embora, talvez, o maior deles esteja ao lado daqueles que os apon-tam, os nomeiam, os objetivam.

    NOTAS2 MONTENEGRO, Antonio. Ligas camponesas e sindicatos rurais em tempo de revoluo. In: FER-REIRA, Jorge; NEVES, Luclia (Orgs.). O Brasil republicano: O tempo da experincia democrtica dademocratizao de 1945 ao golpe civil-militar de 1964. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2003. p.241-271.3 O termo DOPS significa Departamento de Ordem Poltica e Social, criado para manter o controle docidado e vigiar as manifestaes polticas na ditadura ps-64 instaurada no Brasil pelos militares. ODOPS perseguia, acima de tudo, as atividades intelectuais, sociais, polticas e partidrias do que consi-derava/imaginava ser de cunho comunista.4 Srie de reportagens publicada no jornal Dirio da Manh do Rio de Janeiro, no perodo de 10 a 23de setembro de 1959.5 Apud CASA Amarela: memrias, lutas, sonhos... Srie I Entrevistados: Antonio Vidal de Lima (Tta),Arnaldo Rodrigues da Cruz, Joo Lopes da Silva (Bubu). Recife: Departamento de Memria de CasaAmarela (FEACA), 1988, p. 12-13.6 Apud CASA..., op. cit., p. 116-117.7 Apud Ibid., p. 117-118.8 MONTENEGRO, Antonio. Labirinto do medo: o comunismo (1950-1964). Clio, Recife, v. 22, p.215-235, 2004.9 Dirio de Pernambuco, Recife, 17 jan. 1962.10 MONTENEGRO, Antonio. As Ligas Camponesas s vsperas do golpe de 1964. Projeto HistriaProjeto HistriaProjeto HistriaProjeto HistriaProjeto Histria,So Paulo, v. 29, n. 2, p. 391-416, 2004.11 MONTENEGRO, Antonio. Arquiteto da Memria: nas trilhas dos sertes de Crates. In: GOMES,ngela de Castro (Org.). Escrita de si, escrita da histria. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004. p. 309-334.12 Entrevista realizada em fevereiro de 1998 com dom Xavier Gilles de Maupeou para o projeto depesquisa Guerreiros do alm-mar, com apoio do CNPq.13 Esse texto, aps algumas adaptaes, foi publicado em uma revista editada pelo Instituto Nacional deAntropologa e Histria do Mxico, com o ttulo Historia de la Iglesia Catlica en el nordeste de Brasil(1960-1990). Historias 59, Ciudad de Mxico, 2004, p. 89-108.14 MONTENEGRO, Antonio. Rachar as palavras: uma histria a contrapelo. Estudos Ibero-Americanos,Porto Alegre, v. 32, n.1, p. 37-62, jun. 2006.15 Apud CAPRA, Fritjof. O ponto de mutao: a cincia, a sociedade e a cultura emergente. So Paulo:Cultrix, 1991, p. 75.

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    16 Cf. Capra, loc. cit.17 VEYNE, Paul. Como se escreve a histria. So Paulo: Martins Fontes, 1980, p. 243.18 FOUCAULT, Michel. Verdade e poder. In: ______. Microfsica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979,p. 5.19 DELEUZE, Gilles. Conversaes. 1972 1990. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992. p. 151.20 CERTEAU, Michel de. A escrita da Histria. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 2000, p. 51.21 CERTEAU, op. cit., p. 52.22 Nesse perodo, qualquer pessoa nomeada de comunista podia ser interrogada pela polcia oumesmo presa.23 Cf. MONTENEGRO, Antonio. Histria oral e memria: a cultura popular revisitada. So Paulo:Contexto, 1992, p. 53.24 Apud CASA Amarela: memrias, lutas, sonhos... Srie I Entrevistados: Antonio Vidal de Lima(Tta), Arnaldo Rodrigues da Cruz, Joo Lopes da Silva (Bubu). Recife: Departamento de Memria deCasa Amarela (FEACA), 1988, p. 87.25 Apud Ibid., p. 88.26 Apud Ibid., p. 88.27 MONTENEGRO, Antonio. A Frente do Recife chega ao poder (1955-1964). In: FERREIRA, Jorge;REIS, Daniel Aaro (Orgs.). As esquerdas no Brasil: nacionalismo e reformismo radical (1945-1964). Riode Janeiro: Civilizao Brasileira, 2005. p. 451-488.28 MONTENEGRO, Antonio. As Ligas Camponesas e os conflitos no campo. In: ARAJO, Rita deCssia de; BARRETO, Tlio Velho (Orgs.). 1964: o golpe passado a limpo. Recife: Massangana, 2007.p. 93-101.29 JULIO, Francisco. A CARTILHA DO CAMPONS. Recife. Setembro, 1960, p. 55-56.