a cultura política do socialismo chileno

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  • 7/23/2019 A Cultura Poltica Do Socialismo Chileno

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    UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTAJLIO DE MESQUITA FILHO

    FACULDADE DE HISTRIA, DIREITO E SERVIO SOCIAL

    MRCIA CAROLINA DE OLIVEIRA CURY

    JULIO CSAR JOBET E A CULTURA POLTICADO SOCIALISMO CHILENO (1957-1973)

    FRANCA

    2007

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    MRCIA CAROLINA DE OLIVEIRA CURY

    JLIO CSAR JOBET E A CULTURA POLTICA DO SOCIALISMO CHILENO(1957-1973)

    Dissertao apresentada Universidade Estadual PaulistaJulio de Mesquita Filho Faculdade de Histria,Direito e Servio Social, para a obteno do ttulo deMestre em Histria.rea de Concentrao: Histria e Cultura Poltica.

    Orientador: Prof. Dr. Alberto Aggio.

    FRANCA2007

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    Cury, Mrcia Carolina de OliveiraJlio Csar Jobet e a cultura poltica do socialismo chileno

    (1957-1973) / Mrcia Carolina de Oliveira Cury. Franca :UNESP, 2007

    Dissertao Mestrado Histria Faculdade de Histria,Direito e Servio Social UNESP.

    1. Intelectuais Histria Chile. 2. Chile Histria poltica.3. Jlio Csar Jobet Crtica e interpretao. 4. Socialismo Histria Chile.

    CDD 983.06

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    MRCIA CAROLINA DE OLIVEIRA CURY

    JULIO CSAR JOBET E A CULTURA POLTICA DO SOCIALISMO CHILENO(1957-1973)

    Dissertao apresentada Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho Faculdade de Histria, Direito e Servio Social, para a obteno do ttulo de Mestre em

    Histria.rea de Concentrao: Histria e Cultura Poltica.

    BANCA EXAMINADORA:

    Presidente: ___________________________________Orientador: Prof. Dr. Alberto Aggio

    1 Examinador: ___________________________________Prof. Dr. Marcos Alves de Souza UNIFRAN

    2 Examinador: ___________________________________Prof Dr Teresa Malatian UNESP/Franca

    Franca, ___ de ____________ de 2007.

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    AGRADECIMENTOS

    Agradeo ao meu Vi, que me ensina todos os dias a sutil diferena entre dar as mos

    e acorrentar a alma. Obrigada por sua constante presena, pela pacincia, por suportar crises

    e dias mais difceis, tornando-os mais felizes para mim. Enfim, por ser quem voc , esta

    pessoa que se mostra especial em cada gesto do dia a dia e que me faz querer me tornar

    algum melhor. Obrigada por existir e por fazer parte da minha vida.

    minha me, a quem eu tanto amo e admiro. O seu poder de superao e a fora

    com que enfrenta o peso das injustias deste mundo sempre foram a minha inspirao para

    crescer. Ao meu pai, Mario, e Teresa; figuras que sua maneira esto sempre presentes e

    contribuindo para cada passo que dou.

    grande famlia: meu irmo, Claudio, esta personalidade controversa e muito

    marcante na minha formao. minha nova famlia, Dona Jeusa e Wagner, pessoas especiais,

    com as quais sei que sempre posso contar. Dinha e Tatiane, famlia que pude escolher e

    que sempre far parte da minha vida.

    rika, amiga so-paulina com quem compartilho sofrimentos e alegrias pelo

    futebol e pelos encontros e desencontros da vida. Aos meus bichinhos Sandro e Mylla,

    seres que no entendem o significado disto, mas que sentem o quanto so queridos e a alegria

    que trazem por fazer parte da famlia.

    Ao meu orientador, Alberto Aggio, obrigada pela oportunidade e por acreditar no

    meu trabalho. Aos professores presentes na banca de qualificao, Teresa Malatian e Marcos

    Alves, por seus questionamentos e sugestes esclarecedoras e muito enriquecedoras para a

    finalizao deste trabalho. Ao professor e colega Fabio Franzini, por sua gentileza e

    disponibilidade para ajudar.

    Devo registrar ainda as pessoas que tornaram a viagem ao Chile uma experincia

    inesquecvel e muito frutfera. Primeiramente, agradeo colega Janana Capistrano, por terfacilitado as coisas para mim com a sua ateno e dicas infalveis.

    Agradeo ao Sr. Mario e Dona Gladis por me receberem com tamanha gentileza em

    sua residncia. s figuras simpticas e sempre atenciosas que conheci nas livrarias chilenas e

    que mesmo distncia esto sempre dispostas a atender. Assim como ao Sr. Alejandro,

    funcionrio da Biblioteca Nacional, e Gina Morales, secretria do PS, que com inestimvel

    ateno, contriburam muito para a agilidade das minhas pesquisas. Aos professores Julio

    Pinto, Luiz Ortega e Juan C. Gmez, pela ateno e disponibilidade para discutir sobre o meuobjeto de pesquisa. Agradeo tambm a CAPES pelo financiamento da pesquisa.

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    RESUMO

    Em grande parte dos pases da Amrica Latina alguns intelectuais se destacaram por

    proporem no s interpretar a realidade poltica de seus pases, mas tambm intervir na

    mesma de maneira a transform-la. Entre eles, muitos mantiveram uma colaborao orgnica

    com o movimento poltico e partidrio da esquerda. Em meio ao debate de interpretaes do

    desenvolvimento nacional e de propostas de ao poltica para a Amrica Latina, o Chile se

    destacou na participao de intelectuais na formulao de projetos de ao que influenciaram

    a arena poltica do pas ao longo do sculo XX. Partindo do debate em torno da interao

    entre os intelectuais e a cultura poltica, o presente trabalho tem por objetivo refletir acerca do

    papel do intelectual Julio Csar Jobet (1912-1980) na cultura poltica do socialismo chileno.

    Vinculado organicamente ao Partido Socialista, Jobet foi dirigente desde a sua fundao edestacou-se na formulao do pensamento socialista e dos princpios tericos que o

    animariam. Buscaremos apreender a singularidade do pensamento deste intelectual por meio

    das interpretaes e propostas expressas nos seus escritos, nos debates tanto no interior do seu

    partido como com as demais foras de esquerda da poltica nacional, de maneira a apreender o

    alcance e a influncia da sua produo nos rumos do socialismo chileno.

    Palavras-chave: Intelectuais, Cultura poltica, Socialismo, Chile, Histria poltica, Amrica

    Latina.

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    ABSTRACT

    To a large extent of the countries of Latin America some intellectuals attracted attention not

    only for commenting on the political reality in their countries, but also intervening in order to

    transform it. Among them, many kept an organic collaboration with political and partisan left-

    wing movement. In the midst of the debate of interpretations of national development and

    proposals for political action for Latin America, Chile stood out because of the participation

    of intellectuals to the formulation of action plans that influenced the countrys political arena

    throughout the twentieth century. Starting from the debate on the interaction between

    intellectuals and political culture, this work aims at reflecting about the role of an intellectual

    called Julio Csar Jobet (1912-1980) in Chilean socialisms political culture. Organically tied

    to the Socialist Party, Jobet was its leader since its foundation and outstood in the formationof the socialist thinking and the theoretic principles that would drive it. We will seek to get

    hold of the singularity of his thought through the interpretations and proposals expressed in

    his writings, in the debates inside his party as well as with other Chilean left-wing groups, in

    order to apprehend the reach and influence of its production in the routes of Chilean

    socialism.

    Keywords: Intellectuals, Political culture, Socialism, Chile, Political History, Latin America.

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    SUMRIO

    APRESENTAO....................................................................................................................7

    CAPTULO 1

    O SOCIALISMO CHILENO: HISTRIA E HISTORIOGRAFIA..................................15

    1.1 O socialismo chileno: das origens ao perodo da UP......................................................16

    1.2 Elementos da historiografia do socialismo chileno........................................................39

    CAPTULO 2

    A EXPECTATIVA DA MUDANA.....................................................................................52

    2.1 Transformaes na cultura poltica do socialismo chileno............................................532.2 Uma nova configurao poltica e ideolgica.................................................................67

    CAPTULO 3

    JULIO CSAR JOBET E A CULTURA POLTICA SOCIALISTA...............................90

    3.1 Anlises e debates: as faces de um protagonista............................................................91

    3.2 Julio Csar Jobet e o socialismo:

    a construo de uma identidade partidria........................................................................109

    CONSIDERAES FINAIS...............................................................................................127

    FONTES.................................................................................................................................134

    REFERNCIAS....................................................................................................................136

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    APRESENTAO

    Praticamente desconhecido no Brasil, o chileno Julio Csar Jobet (1912-1980) se

    insere num grupo de homens que buscou, ao longo da sua trajetria, aliar a atividade

    intelectual prtica poltica no intuito de contribuir, de uma maneira ou de outra, para a

    transformao da sociedade. A trajetria deste intelectual e os aspectos mais relevantes do seu

    pensamento se relacionam diretamente com a histria do socialismo chileno e, em especial,

    com o contexto da experincia poltica que buscava a construo do socialismo por meio da

    democracia, um dos momentos cruciais da histria daquele pas.

    Membro do Partido Socialista do Chile (PS) desde a sua fundao, em 1933, Jobet sededicou produo terica, difuso das idias e da trajetria socialista, ao debate poltico

    com diferentes grupos polticos do pas e a representar o PS em diversos encontros polticos

    na regio. A sua atuao se deu principalmente no campo terico e na vida intrapartidria, no

    se constituindo em um homem vinculado vida poltico-institucional, j que no ocupou

    cargos pblicos.

    Jobet nasceu em Perquenco, uma pequena cidade chilena, em 1912. Sua vida pblicase desenvolveu a partir da dcada de 1930 e esteve compreendida entre duas profundas crises

    sociais: um golpe de Estado ocorrido em 1924 que consolidou no poder Carlos Ibaez, at

    1931 , ante o fracasso do parlamentarismo, e o golpe militar de setembro de 1973 que

    destituiu Salvador Allende e deu um duro golpe na democracia do pas. O descendente de

    agricultores franceses realizou seus estudos secundrios no Liceo de Hombres de Temuco.

    Continuou seus estudos no Instituto Pedaggico da Universidade do Chile e recebeu o ttulode Professor de Histria, Geografia e Educao Cvica, cujo trabalho para a obteno do ttulo

    se destinava a pesquisar as idias dos primeiros pensadores da questo social no pas.

    O seu trabalho historiogrfico comeou a se destacar a partir da dcada de 1940 e se

    enquadrou num perodo de mudanas de enfoque acompanhada de uma nova abordagem

    metodolgica apreendida pelas novas geraes de historiadores que, entre outros mtodos de

    anlise, assimilaram o marxismo como concepo de mundo e forma de construo do

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    conhecimento histrico. Seu trabalho veio representar uma proposta de ruptura com a

    historiografia at ento predominante.

    Como membro do PS, Jobet tambm se dedicou, desde a dcada de 1930,

    publicao de textos socialistas em peridicos nacionais e de outros pases da regio.1 De

    acordo com Jobet, a sua inclinao poltica tem origem na sua famlia e na realidade que o

    cercava, marcada por uma profunda desigualdade social. Segundo ele, seu pai lhe dava lies

    libertrias, citando idias de Jean Jaurs influncia expressada at no nome dado s terras

    cultivadas pela famlia: La Bastilha.2

    Jobet publicou diversos trabalhos acerca do pensamento social chileno, destacandoos primeiros autores que se debruaram sobre os temas polticos e sociais do pas, localizados,

    principalmente, no sculo XIX, numa tendncia literria que se tornou referncia no pas por

    seu pioneirismo no estudo da denominada questo social. Alm disso, seus ensaios esto

    entre as principais referncias da interpretao marxista da histria nacional, com abordagens

    acerca de temas polticos desde a fundao do Estado chileno, at temticas que ainda

    atingiam a sua gerao, como o imperialismo, o movimento operrio e o desenvolvimentopoltico do pas.

    O trabalho de Jobet parte da histria do pensamento marxista na Amrica Latina.

    Sua perspectiva central encontra-se referida anlise da formao e das contradies internas

    das sociedades latino-americanas. Outra dimenso fundamental do seu trabalho foi a

    elaborao de projetos polticos de transformao, caracterizando sua produo como uma

    tentativa de transplantar as concepes da abordagem marxista para a anlise da sociedadechilena. Este encontro entre as particularidades da realidade local e a teoria marxista adquiriu

    variados contornos, de acordo com a lgica da complexidade que compe o subcontinente. A

    interpretao histrica da formao desses pases expressou o desafio que os intelectuais

    contemporneos enfrentaram na utilizao dos conceitos marxistas diante das nossas

    especificidades.

    1Em 1935 Jobet elaborou o manual intitulado Estructura y ritmo de las doctrinas sociales(1760-1930), efundou com seu amigo Juan Picasso o peridico El socialista de Cautn. Em 1938, j colaborava com operidico socialista argentino, La Vanguardia.2ROBNOVITCH, Rosa. Un ensaysta quimicamente puro.La Nacin, 12 sept 1971, Suplemento, p. 15

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    Pode-se considerar que a contribuio de Jobet para o pensamento poltico chileno

    fez dele um protagonista da histria poltica do pas. Homem que viveu os dilemas do

    desenvolvimento de um partido que, embora inicialmente se definisse como classista, assumiu

    uma concepo socialista difusa, para, em seguida, adotar uma postura concertacionista at

    meados da dcada de 1950. Jobet buscou, ao longo da sua trajetria, implementar uma

    identidade e coeso internas ao PS, sempre em torno de uma perspectiva classista e

    revolucionria.

    Ao mesmo tempo, entendemos que, ao indicar as continuidades e contradies da

    histria do pas, Jobet buscou apresentar uma nova proposta poltica, identificada ao partidono qual militou, e contribuiu ativamente para a formulao das concepes revolucionrias,

    constituindo-se numa das principais referncias intelectuais da organizao socialista. A

    trajetria intelectual e a atuao poltica de Jobet estiveram, portanto, intimamente vinculadas

    sua fidelidade partidria.

    Compreende-se a atuao de maior importncia deste intelectual socialista no

    contexto do final dos anos cinqenta, perodo no qual se identifica em parte da sociedadechilena um descontentamento com a dinmica poltica pautada em compromissos e alianas

    entre diferentes setores, que visavam polticas integradoras, mas que no se mostraram

    eficientes para realizar mudanas estruturais no pas. Internamente, o Partido Socialista

    viveria uma mudana que acarretaria transformaes na sua cultura poltica, com a

    predominncia de elementos rupturais, dos quais Jobet destacou-se como um expressivo

    representante.Entendemos que o pensamento socialista, composto de diferentes correntes e

    perspectivas, representou um elemento de fundamental importncia no complexo conjunto de

    mudanas que se processaram no cenrio chileno no sculo XX. Suas proposies foram

    animadas por diferentes concepes traduzidas em manifestaes intelectuais e polticas que

    conferiram ao dos seus grupos um contedo terico e ideolgico ao longo das suas

    trajetrias na poltica nacional. A abordagem das suas formulaes tericas, que nos indica

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    uma leitura da realidade daquele pas e suas perspectivas polticas, nos remete para a sua

    singularidade.

    A perspectiva do presente trabalho entende que as idias so fruto de uma produo

    social, e os intelectuais certamente podem ser encarados como desveladores das

    representaes e prticas sociais, assumindo o papel de um analista da sociedade e propagador

    das aspiraes desta.3Trata-se de analisar o alcance e a responsabilidade dos tericos sobre os

    processos polticos, e de considerar a dimenso que assume a referncia intelectual na

    delimitao e difuso de concepes de mundo, de elementos de coeso para determinados

    grupos ou na sua organizao interna e tambm no exerccio da presso poltica.Neste processo, o referencial terico construdo pelos intelectuais, em especial

    aqueles que, assim como Jobet, apresentam como parte integrante da sua atividade a prtica

    poltica, termina por expressar elementos de uma cultura poltica especfica em um momento

    determinado, por meio de um conjunto de referenciais que se relaciona e contribui para a

    definio de uma identidade voltada a uma coletividade. Esta uma concepo em que o

    universo da cultura poltica tambm se constitui de uma produo intelectual; universocompreendido numa sistematizao de discursos capaz de explicar a realidade, gerar

    identidades coletivas, orientar prticas sociais e articular projetos de futuro.

    Para a compreenso deste processo, o conceito de cultura poltica deve estar pautado

    em sua historicidade, na qual o desenvolvimento de determinado conjunto de crenas, atitudes

    e smbolos ocorre de acordo com determinado contexto histrico, como uma resposta quilo

    que se vive. A partir de tais pressupostos, para identificar o papel do intelectual na culturapoltica do socialismo, deve-se avaliar os diversos elementos que a constituem e considerar a

    especificidade do seu contexto, a partir do movimento histrico das conjunturas.

    A mesma perspectiva deve ser adotada para a compreenso do papel que exerceu

    Jobet. necessrio inseri-lo no ambiente poltico e intelectual vivenciado pelo Chile a partir

    do incio do sculo XX, especialmente a assimilao de novas teorias que permitiram

    formulaes muito significativas para o debate da esquerda do pas. Tais teorias passaram a3FREDRIGO, Fabiana de Souza. Os intelectuais e a poltica nos regimes autoritrios: um estudo do casochileno. Estudos de Histria, Franca, v. 7, n. 2, p. 231-264, 2000.

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    influenciar o movimento operrio e, gradativamente, parte importante dos intelectuais que se

    vincularam a ele. Nesse perodo, um novo panorama poltico levou cristalizao de um

    movimento de esquerda influenciado pelos ideais marxistas, que se tratava de uma entidade

    indiferenciada multiplicada em uma gama de vertentes socialistas ou emancipadoras.4

    Em outras palavras, preciso identificar o lugar social e poltico do intelectual,

    relacionando tal descoberta com sua produo e sua ao no meio em que constri suas

    relaes, possibilitando a anlise mais precisa da sua interferncia e da relao da sua

    produo com um processo poltico e com a coletividade social. Visando apreender as teorias

    produzidas, o historiador necessita, mais do que uma articulao puramente mecnica entrecontexto e contedo, integrar no campo das investigaes os paradigmas intelectuais, as

    correntes filosficas que interferem, direta ou indiretamente, nas representaes e vises de

    mundo.5

    A compreenso da dimenso ideolgica de um partido poltico constitui um rico

    campo de anlise para o historiador na medida em que permite apreender o que ele define

    para o eleitorado, como programas, discursos da formao, etc.

    6

    Ou para aqueles que seencontram na ideologia poltica do partido, que consiste em uma grade comum de leitura dos

    acontecimentos, capaz de fundar uma solidariedade de ao e, para alm de toda finalidade

    prtica, um conjunto de crenas que permite integrar os membros do partido numa

    comunidade. Destaca-se, dessa maneira, a importncia da ideologia expressa pelos membros

    de um partido poltico e por seus intelectuais, por meio de uma cultura poltica que constitui

    o ncleo das formaes polticas e que garante, para alm dos acontecimentos conjunturais, aperenidade dos partidos expressa na longa durao.7

    Nesse trabalho de compreenso das motivaes dos atos polticos, buscou-se a

    apreenso desse conjunto de referentes compartilhados pelos indivduos e pela coletividade

    representada no partido, referentes ao sistema de valores, de uma leitura comum do passado,

    4MOULIAN, Toms. El marxismo en Chile: produccin y utilizacin. Santiago de Chile: FacultadLatinoamericana de Ciencias Sociales, 1991. Serie Estudios Polticos, p. 1.5FREDRIGO, op. cit., p. 260.6O sentido de ideologia utilizado no presente texto refere-se ao conjunto de idias do partido.7BERNSTEIN, Serge. Os partidos. In: RMOND, Ren (Org.). Por uma histria poltica. Rio de Janeiro:IUPERJ, 1996, p. 90-91.

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    de aspiraes e projees de um futuro, da comunho de uma viso de mundo, elementos que

    constituem, em geral, a compreenso dos historiadores em torno da cultura poltica, e que

    utilizamos neste trabalho, considerando o papel de um dos principais intelectuais do

    socialismo chileno na formao dessa cultura poltica.8

    Esse estudo permite alcanar um amplo espectro de anlise que deixa compreender

    as razes e filiaes dos grupos e restituir coerncia aos seus comportamentos frente poltica

    em permanente dilogo com os contextos e experincias vividas pelos atores sociais,

    permitindo assim, no se prender a esquemas de anlise pr-estabelecidos para apontarmos os

    supostos desvios na postura poltica desses grupos.O intuito do presente trabalho analisar a especificidade do pensamento de Jobet e a

    sua influncia na cultura poltica socialista entre o incio da Frente de Ao Popular (FRAP),

    em 1957, e o governo da Unidade Popular, at 1973, passando pelas candidaturas

    presidenciais de Salvador Allende, em 1958 e 1964, considerando o cenrio poltico do

    perodo. Considera-se que esse foi um momento de crescente radicalizao da esquerda e de

    uma polarizao ideolgica do sistema partidrio chileno. A inteno procurar apreendertambm de que maneira e em que grau esse processo comprometeu e alterou a cultura poltica

    socialista e, consequentemente, influiu ou determinou a sorte do governo da esquerda no

    Chile.

    Um aspecto que deve ser considerado que ao empreender-se a tarefa de analisar a

    trajetria de um intelectual dedicado poltica, da importncia de Jobet, pode-se incorrer em

    dois perigos. Por um lado, ao tomar contato com o pensamento de um historiador que seposicionou frente s contradies da sua sociedade, a incorporao do seu discurso torna-se

    um risco. Por outro, observar o dilema da relao entre a atividade intelectual e a prtica

    poltica exige uma arguta clareza diante das funes, bem como frente fuso das atividades,

    para no se perder em crticas maniquestas em torno da negatividade do envolvimento

    intelectual com os assuntos polticos.

    8BERSTEIN, Serge. A cultura poltica. In: RIOUX, Jean-Pierre; SIRINELLI, Jean-Franois (Org.). Para umahistria cultural. Lisboa: Editorial Estampa, 1998, p. 355.

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    Para a compreenso da sua trajetria foi importante analisar tal questo, j que Jobet,

    como um intelectual marxista, concebia a teoria como instrumento de transformao da

    sociedade. Nesse sentido, foi necessria a abordagem da sua trajetria a partir da reflexo em

    torno da tenso que configura este tipo de prtica intelectual. No entanto, uma dificuldade a

    mais se coloca. Sob a perspectiva de que a dimenso da cultura constitui uma forma de

    transcender a poltica, as concepes acerca dos intelectuais como homens de cultura so

    recorrentes para referir-se ao grupo, considerado por vezes como independente e autnomo

    diante dos dilemas da sociedade.

    Dessa forma, esta discusso em torno do engajamento poltico dos intelectuais, quecoloca em questo a relao entre teoria e prxis, tratada de maneira a direcionar o debate

    para a distino entre as atividades. A partir destas observaes, considera-se que analisar a

    atividade partidria e a construo terica de um intelectual que almejava a insero prtica

    na transformao da sociedade significa abordar esta categoria social distanciando-se de uma

    percepo idealista que encara os intelectuais como um grupo autnomo.

    O intuito do trabalho, portanto, realizar uma abordagem da sua trajetria e do seupensamento que no resulte unilateral. Em outras palavras, o desafio consiste em analisar seu

    papel intelectual e poltico dialeticamente. Recorrendo terminologia gramsciana9, busca-se

    encarar a funo organizativa desempenhada por Jobet e dimensionar o alcance da atividade

    do intelectual no papel da produo, reproduo e organizao de bens de identificao e de

    consensos coletivos, compreendendo o presente trabalho na seguinte perspectiva: a da atuao

    intelectual numa determinada cultura poltica.Para apresentarmos o texto, optamos por dividi-lo em trs captulos: o primeiro se

    destina a esboar a trajetria da esquerda chilena desde as suas origens, localizadas nas

    organizaes operrias e nas primeiras publicaes de cunho socialista, passando pela

    sistematizao do discurso poltico e a sua vinculao com o movimento partidrio. Esta

    abordagem permite compreender a singularidade da formao e do desenvolvimento da

    esquerda chilena bem como os aspectos que compreendem a formao da sua identidade,9GRAMSCI, Antonio. Os intelectuais e a organizao da cultura. 9 ed. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira,1995.

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    visto que muitos elementos so resgatados ou negligenciados pelo movimento ao longo do

    sculo XX.

    Ainda no primeiro captulo dedica-se um tpico discusso historiogrfica,

    demonstrando algumas das interpretaes a respeito do socialismo chileno. O enfoque

    adotado objetivou traar um debate com autores que desconsideraram muitas das

    singularidades deste segmento poltico, e apresentar novas perspectivas para o entendimento

    acerca das suas origens, do significado dos processos que marcam a sua atuao na poltica

    institucional at o alcance do poder, considerando os diversos elementos e conjunturas que

    contriburam para a construo da sua cultura poltica.O contexto poltico que conforma o cenrio histrico da nossa pesquisa abordado

    no segundo captulo, abarcando um panorama do perodo que compreende as dcadas de 1950

    e 1960, os novos atores que surgem ou se fortalecem nesse momento, bem como os diferentes

    processos que dinamizaram a disputa poltica, destacando o espao ocupado pelo socialismo.

    So subsdios que nos permitem obter uma melhor compreenso da maneira como se desenha

    a polarizao ideolgica que culmina no 11 de setembro de 1973 e, especialmente, dasmetamorfoses da cultura poltica do socialismo chileno que alterariam, em alguns aspectos, a

    sua identidade, temtica abordada no segundo item deste mesmo captulo.

    O terceiro e ltimo captulo objetiva apresentar um mapeamento dos conceitos,

    temas discutidos e influncias sofridas por Julio Csar Jobet. Analisar o papel do intelectual e

    dirigente poltico na cultura poltica do socialismo chileno, em especial no processo de

    radicalizao daquele segmento, examinando sua funo organizativa a partir de um projetopoltico. Para tanto, busca-se apreender a sua leitura da sociedade chilena, suas propostas e os

    principais debates empreendidos tanto no interior do seu partido como com as principais

    foras polticas do Chile por meio dos seus escritos, compreendendo a sua atuao em meio

    ao efervescente debate poltico e intelectual do perodo. Ao compreender as formulaes

    tericas que animavam as aes do socialismo chileno, possvel apreender os limites da

    cultura poltica da esquerda que almejava a construo do socialismo naquele pas e quevivenciou o fracasso do governo da Unidade Popular.

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    CAPTULO 1

    O SOCIALISMO CHILENO: HISTRIA E HISTORIOGRAFIA

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    1.1 O socialismo chileno: das origens ao perodo da UP

    importante considerar que a compreenso do socialismo chileno deve levar em

    conta uma grande tradio histrica do Chile que remonta ao perodo das lutas operrias do

    sculo XIX, passando pela formao dos partidos de esquerda, bem como pelos diversos

    processos dos quais participaram, considerando que a Unidade Popular um captulo

    carregado de capital histrico acumulado. Trata-se de um perodo capaz de expressar todas

    as tenses e contradies do pas.

    Dessa forma, a apreenso daquele movimento vai alm da sua vinculao com o

    comunismo internacional do ps-guerra, com a Guerra Fria ou com o impacto do processo

    revolucionrio cubano. preciso pensar o socialismo chileno como uma expresso poltica

    daquela sociedade, em especial, dos trabalhadores.

    At as primeiras dcadas do sculo XX, a estrutura agrria da sociedade chilena se

    manteve juntamente com os seus reflexos nos setores poltico e social. Enquanto que pases

    como Brasil, Mxico e Argentina apresentaram o processo de consolidao do Estado

    Nacional juntamente com uma maior insero no sistema capitalista mundial, o Chile, j em

    1830, dava sinais de um Estado forte, e ao final do mesmo sculo passou por uma experincia

    parlamentarista, que indicava a reorganizao dos grupos dominantes na poltica nacional.1A

    imagem de um pas politicamente maduro e democrtico se fortaleceu ainda mais com a

    possibilidade de vivenciar o socialismo pelas vias institucionais no sculo XX.

    Mas certo tambm que, assim como os demais pases latino-americanos, o Chile

    sofreu no incio do sculo XX presses que caracterizaram os pases perifricos, como a forte

    presena imperialista, tenso social gerada pelo processo de modernizao capitalista e uma

    precria e insuficiente incorporao das classes populares. Foi nesse sentido que o debate da

    esquerda se desenhou ao longo do seu desenvolvimento: o da superao da contradio entre

    a estabilidade poltica e a questo social do pas. Debate que se ampliou de acordo com as

    1AGGIO, Alberto. Frente popular, radicalismo e revoluo passiva no Chile. So Paulo: Annablume, 1999, p.26.

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    interpretaes marxistas no pas, que indicaram as diferentes vias de transformao para

    aquela sociedade.

    No Chile, o Estado assumiu um importante papel na intermediao entre a presena

    imperialista e as elites locais na explorao das riquezas nacionais. Ao final do sculo XIX,

    intensificou-se no pas a explorao de minerais que se tornariam os seus principais produtos

    comerciais. Ao mesmo tempo, o pas viveu um grande desenvolvimento urbano e sua

    conseqente concentrao populacional.

    O desenvolvimento das relaes sociais de produo na minerao e na indstria

    determinou um crescimento do proletariado, sobretudo nas exploraes de prata e cobre, e demaneira especial, na explorao do salitre, alm de aumentar o nmero de operrios na

    construo de ferrovias. Os primeiros ncleos do proletariado industrial surgiram nas ltimas

    dcadas do sculo XIX e j realizavam atos de greve expressivos que se intensificaram no

    sculo XX.2

    As relaes estabelecidas na minerao, propcias para a ao das massas, a

    migrao para o norte mineiro, estabeleceu uma corrente de transmisso poltica com o sul,com operrios, camponeses e parentes que se deslocavam em ambas as direes,

    disseminando idias e comportamentos que afloravam entre os trabalhadores do salitre. Estas

    so algumas das condies, bastante originais no meio latino-americano dessa poca, que

    motivaram o precoce surgimento de partidos operrios, de franca definio socialista, ainda

    antes da revoluo bolchevique de 1917.

    Como conseqncia da Guerra do Pacfico (1879-1884)

    3

    , o Chile se converteu nonico produtor mundial de salitre, transformando a explorao salitreira, ao longo da mudana

    de sculo, no eixo dinamizador do conjunto da economia chilena, de maneira a favorecer a

    diversificao de sua base produtiva e tornar mais complexa a sua estrutura social.4

    2ELGUETA, Belarmino. La cara oculta de la historia: el legado intelectual de Julio Csar Jobet. Chile:Factum Ediciones, 1997, p. 69.3Em decorrncia deste conflito, o Chile expandiu seu territrio, recebendo parte do Atacama (cidade deTarapac), do Peru, e parte do territrio boliviano (Antofagasta), que perdeu a sada para o mar.4CORREA, Sofa; FIGUEROA, Consuelo (Org.). Historia del siglo XX chileno: balance paradojal. Santiago:Editorial Sudamericana, 2001, p. 23.

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    possvel identificar as primeiras organizaes operrias modernas nas cidades,

    entre os crculos de artesos que passaram a ser integradas por operrios industriais e os

    mineiros. Inicialmente tratavam-se das mutuales, sociedades de socorro mtuo, que estavam

    investidas de preceitos ilustrados, e buscavam, atravs da associao de trabalhadores de

    diferentes sindicatos, incentivar a cooperao e a solidariedade entre seus filiados. A principal

    caracterstica destas organizaes era a ateno especial formao educacional dos seus

    membros atravs da integrao cultural, especialmente articulada por meio de diversos

    peridicos e folhetins operrios.

    No final do sculo XIX, emergiram outros tipos de organizaes operrias, como asmancomunales e as sociedades de resistncia. De acordo com Sofia Correa e Consuelo

    Figueroa, as primeiras se caracterizavam por reunir trabalhadores de diferentes atividades,

    enquanto que as sociedades de resistncia eram marcadas por opor-se de forma permanente a

    qualquer tipo de negociao nos conflitos, evidenciando um maior esprito confrontacional

    nos seus postulados.

    No entanto, ambas, diferentemente do mutualismo da primeira poca, ostentaram umcarter revolucionrio, apresentaram-se em termos programaticamente confrontacionais frente

    aos setores que oprimiam a classe operria, com propenso conformao de uma identidade

    de classe de mais claro perfil. Sofia e Consuelo destacam a transio das organizaes na

    medida em que:

    [...] se observa um evidente trnsito de um associacionismo com demandasexclusivamente sociais e com ambies de cooperao mtua a entidades embudasde uma orientao e discurso de carter poltico. Os postulados socialistas e

    anarquistas, de crescente gravitao durante a mudana de sculo, estimularam odesenvolvimento desse tipo de organizao, que experimentou um notvelincremento, aumentando de 240 sociedades operrias na ltima dcada do sculoXIX, a 433 em 1910.5[traduo nossa]

    Nesse primeiro momento, havia estudiosos que se voltavam para as questes sociais

    e, ao mesmo tempo, homens que iniciaram suas atividades no meio operrio para se

    destacarem como articuladores de movimentos de trabalhadores e difusores de idias

    questionadoras daquela ordem. O contexto inicial de difuso de um ideal socialista ou

    5CORREA; FIGUEROA, op. cit.., p. 59.

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    anarquista caracterizado pela atuao de grupos de agitadores independentes, articuladores e

    at poetas que estabeleciam a necessidade de mudana do sistema e denunciavam os

    problemas que atingiam, especialmente, os trabalhadores urbanos e industriais.

    Surgiram nesse perodo os primeiros grupos operrios com suas publicaes

    peridicas iniciais, como o Centro Social Obrero e a Unin Socialista, em 1897, que

    buscaram expressar as reivindicaes nacionais do proletariado chileno. Os grupos, que eram

    orientados por idias socialistas e anarquistas, disseminavam sua propaganda nos grandes

    povoados e regies industriais. Seus jornais eram elaborados, principalmente, em Santiago e

    Valparaso, na regio salitreira e em Magallanes, traduzindo as aspiraes de uma classe quese formava vigorosamente.6

    Eduardo Devs indica o incio do socialismo cientfico no Chile, gestado na figura de

    Alejandro Bustamante, no interior de duas organizaes polticas: o Partido Obrero Francisco

    Bilbao e o Partido Socialista, sucessor do primeiro.7De acordo com o autor, este movimento

    contrastava com o corte revolucionrio dos grupos anteriormente mencionados, destacando

    em seu programa a defesa do progresso, da liberdade; a oposio servido do povo e presso exercida pela oligarquia; em combate pobreza, bem como a defesa do sufrgio

    universal. Tais documentos teriam sido redigidos por Ricardo Guerrero, apontado como o

    primeiro marxista chileno.

    A formao de partidos polticos ligados ao mundo operrio se inicia em 1887, com a

    fundao do Partido Democrtico, grupo de tendncia laica denominao necessria para

    um perodo no qual as disputas polticas se demarcavam com especial ateno na questoreligiosa liberal e democrtica. A identificao do grupo com as demandas de artesos e

    operrios permitiu uma postulao reformista, de defesa da luta no interior do sistema vigente.

    Ao mesmo tempo, formou-se no pas um importante nmero de correntes anarquistas

    identificadas com postulados libertrios e que se filiaram IWW (Industrial Workers of the

    World).

    6JOBET, Julio Csar.Ensayo crtico del desarrollo econmico social de Chile. 3.ed. Mxico: Centro deEstudios del movimiento obrero Salvador Allende, 1982, p. 123-124.7Cf. DEVS, Eduardo; DAZ, Carlos. El pensamiento socialista en Chile: antologa 1893-1933. Chile:Ediciones Documentas, 1987.

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    A prosperidade econmica vivenciada aps a guerra de 1879 sofria flutuaes e

    crises que afetavam com maior intensidade os estratos mais pobres, situao que gerou o

    grmen dos movimentos de protesto que culminaram com a primeira greve geral do pas, em

    1890, abrindo um ciclo grevista de orientaes trabalhistas e polticas que se estendeu por

    quase duas dcadas.

    A partir de 1903, os trabalhadores chilenos passaram a realizar manifestaes e

    greves de maior repercusso. O nome de Luis Emilio Recabarren8, considerado o mais

    importante lder do movimento dos trabalhadores no Chile, destacou-se nesse perodo de

    efervescncia social. Liderou manifestaes por aumento de salrio, reduo de preos emelhores condies de trabalho. Recabarren ingressou no Partido Democrata, que agrupava

    artesos e alguns setores operrios e consistiu no nico partido popular da poca.

    Recabarren o principal nome do socialismo chileno a ser reivindicado pelo Partido

    Socialista. Como um dos mais importantes lderes do movimento operrio e fundador do

    Partido Obrero Socialista, ele iniciou este grupo no intuito de criar uma organizao que fosse

    verdadeiramente representante dos trabalhadores, e o fez a partir da sua desvinculao doPartido Democrata e da crtica postura dessa organizao.

    possvel extrair das suas postulaes algumas idias que sero reivindicadas por

    membros do socialismo, especialmente Jobet, na busca de uma identidade operria e de

    elementos para o projeto socialista, que denotam o pioneirismo do lder operrio no incio do

    sculo XX. A questo da independncia de classe uma das principais caractersticas do

    pensamento de Recabarren, na medida em que ele j buscava diferenciar os componentes daburguesia e da oligarquia nacional reunidos no Partido Democrata.

    Egresso deste grupo, Recabarren publicou, em 1912, o folheto intitulado El

    Socialismo, que constituiu o manifesto da nova organizao fundada neste mesmo ano, em

    Iquique, o Partido Obrero Socialista. Neste folheto, Recabarren se preocupa em tecer severas

    crticas aos democratas, apontando-os como vendidos da oligarquia. Inicia-se, portanto,

    8A contribuio de Luis Emilio Recabarren destacada em diversos trabalhos a respeito do desenvolvimentomarxista na Amrica Latina e do movimento operrio no Chile. Alm das obras utilizadas no presente trabalho,ver: JOBET, Julio Csar. Recabarren y los orgenes del movimiento obrero y el socialismo chilenos.2.ed.Santiago de Chile: PLA, 1973.

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    uma delimitao importante do movimento da esquerda nacional que, no obstante as

    mudanas sofridas, ser retomada com fora em diferentes momentos: a independncia de

    classe, as crticas em torno do reformismo burgus e, especialmente, crticas democracia

    nacional:

    [O programa democrata] s contm um programa de reformas por realizar sobre asinstituies existentes, ampliando-as, suavizando e democratizando, mas deixandosempre o que so: instituies coercitivas da liberdade dominadas pela burguesia.Democracia o governo do povo, pelo povo e para o povo.9[traduo nossa]

    Recabarren dedicou-se organizao de uma estrutura sindical da classe operria e

    consistiu no maior responsvel pela organizao do movimento e, posteriormente, passou a

    ser o principal nome da Federacin Obrera Chilena (FOCH), organizao criada pelos

    conservadores, sob bases mutualistas, com finalidade de assistncia social e de mediaes nas

    relaes de trabalho. A despeito desse carter inicial, Recabarren passou a liderar o que viria a

    ser um dos principais centros de atuao do proletariado chileno, gerando uma radicalizao

    das aes do setor e a sua filiao Internacional Comunista, em 1921, pouco antes da

    criao do Partido Comunista.

    O lder tornou-se uma das referncias do movimento operrio chileno, dentre outros

    motivos, por congregar o movimento trabalhista e a luta partidria no mbito da poltica

    institucional chilena, ao tomar contato com a teoria socialista. Essa particularidade do

    movimento operrio daquele pas serve de referncia para pensar que a adoo do marxismo

    foi realizada historicamente e de acordo com a sua insero nos processos polticos e sociais

    especficos, legando ricas e frustrantes experincias histricas que permitem analisar

    movimentos e culturas polticas desenvolvidas a partir desse encontro.

    O exemplo da influncia exercida pelos ideais revolucionrios, com o triunfo da

    Revoluo Bolchevique, sobre a constituio da esquerda do pas est na transformao do

    Partido Obrero Socialista, fundado por Recabarren, em Partido Comunista, em 1921. A

    mudana se deu aps a sua visita a Moscou, ilustrada a partir do registro das suas impresses,

    bastante equivocadas, que j deixam visualizar a concepo mecanicista de transplantao de

    um modelo revolucionrio:

    9RECABARREN, Luis Emilio. Democracia Socialismo (1907). In: DEVS; DAZ, op. cit., p. 87.

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    Pude ver com alegria que os trabalhadores da Rssia tinham efetivamente em suasmos toda a fora do poder poltico e econmico, e que parece impossvel que tenhano mundo fora capaz de despojar o proletariado da Rssia daquele poder jconquistado.[...] ao proletariado do Chile s falta disciplinar um pouco mais sua organizao

    poltica e econmica para encontrar-se capacitado a realizar a revoluo social queexpropriar todo o sistema de explorao capitalista [...]10[traduo nossa]

    Ao longo da dcada de 1920, diversos nomes se destacaram como herdeiros do ideal

    de Recabarren, tais como Ramn Seplveda, Carlos Alberto Martinez, Manuel Hidalgo Plaza.

    Foram lderes polticos que faziam parte do mundo operrio e que trabalhavam em

    organizaes sociais, especialmente voltados para a difuso dos ideais socialistas da zona de

    Valparaso, do norte salitreiro, de organizaes operrias de Via Del Mar e do porto.

    Parte dessas lideranas deixou o ento Partido Comunista aps cises internas e

    fundou grupos de orientao socialista que viriam a formar o Partido Socialista do Chile,

    como a Nueva Accin Pblicae a Izquierda Crist. Somaram-se a eles o Partido Socialista

    Marxista, a Orden Social, o Partido Socialista Unificado, aAccin Revolucionria Socialista.

    Alm do crescimento do operariado e de um movimento de esquerda, o Chile viveu,

    no incio do sculo XX, a ascenso das classes mdias ao cenrio poltico com forte

    representao partidria. Dessa forma, a arena poltica chilena, que tinha como demarcao

    dos debates a questo clerical/anticlerical, representados pelos partidos da oligarquia nacional,

    evidenciou o conflito de classes latente no seio da sociedade, a partir do seu deslocamento

    para a luta poltico-partidria e da colocao de novas alternativas que iriam percorrer todo o

    sculo.

    O sistema de partidos passou a se definir tanto em funo de diferenas doutrinrias

    como em termos de representao social: de modo geral, liberais e conservadores se

    identificavam com a elite, proprietria de grande parte da terra e do capital; os radicais

    representavam a classe mdia em particular aos empregados pblicos e aos profissionais de

    provncia , assim como aos grandes latifundirios do sul; democratas, socialistas e

    comunistas eram os representantes das classes populares.

    10RECABARREN, Luis Emilio. La Rusia obrera-campesina. In: DEVS; DAZ, op. cit., p. 108-109.

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    Na dcada de 1930, portanto, iniciava-se o conflito poltico estruturado em dois

    campos contrapostos - direita e esquerda - bem definidos; coexistindo, em cada um, uma

    pluralidade de foras diferenciadas entre si, ainda que aglutinadas em torno de projetos

    compartilhados e em funo da sua confrontao em relao a outro setor. Sendo assim,

    possvel falar em direitas e esquerdas, de acordo com os matizes que se advertiam no interior

    de cada um desses blocos, no doutrinrio ou nas estratgias polticas.11

    Formando a ala direita da poltica chilena, tem-se o Partido Conservador que,

    sinteticamente, pode ser caracterizado como o grupo representante da aristocracia

    latifundiria. Alm da defesa da doutrina catlica, principal elemento de oposio ao PartidoLiberal, a plataforma conservadora apoiava com firmeza a livre empresa privada como fator

    chave no processo de desenvolvimento do pas.

    Formado em 1840, o Partido Liberal representa um segmento da elite orientado para

    o comrcio. Com a proposta de laicizao do Estado, da ampliao das liberdades civis e do

    sufrgio, e da limitao da autoridade Executiva, as foras liberais chegaram ao poder em

    1861 e governaram por trinta anos, durante a chamada Repblica Liberal. Ideologicamente,as diferenas entre estes e os Conservadores so bastante tnues, em especial, aps o fim da

    questo religiosa nos assuntos de Estado.

    Conforme se ver adiante, durante o perodo de 1932 a 1964, o Partido Radical (PR)

    teve o maior poderio eleitoral. Protagonista de um dos governos de maior impulso

    modernizador, o grupo tambm apresenta divises internas entre uma ala direitista que

    identifica sua filosofia poltica com a dos conservadores e liberais, e uma ala esquerdistapromotora de reformas sociais. De acordo com Julio Pinto e Gabriel Salazar, trata-se de uma

    diviso que tem suas razes sociais e ideolgicas. Sociologicamente, o PR foi dirigido pela

    classe mdia de provncias, com um ncleo dirigente formado nas escolas secundrias do

    Estado e na Universidade do Chile.12

    11CORREA; FIGUEROA, op. cit.., p. 117.12SALAZAR, Gabriel; PINTO, Julio. Historia contempornea de Chile I: Estado, legitimidad, ciudadana.Santiago: LOM, 1999, p. 275, v. 1.

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    Inicialmente, o anticlericalismo constitua o principal eixo ideolgico do movimento,

    com um desenvolvimento vinculado maonaria e reforma educacional, alm de

    latifundirios do sul, de inclinao conservadora, que se transformaram em radicais pelo

    desejo de reformas eclesisticas e pela desconfiana em torno da centralizao poltica. Este

    o partido do sistema poltico chileno que tem a mais variada composio, que compreende

    desde operrios at latifundirios. Inclui nortistas dos distritos mineiros, latifundirios do sul,

    pequenos comerciantes, profissionais, intelectuais, artesos, operrios especializados. A sua

    espinha dorsal provm da classe mdia.

    Na esquerda, de forma muito particular no contexto latino-americano, o PartidoComunista (PC) esteve representado precocemente e de forma mais consistente do que os seus

    similares no subcontinente, marcando, assim, uma especificidade da esquerda chilena na

    Amrica Latina, que apresentou, primeiramente, a formao de um partido comunista

    originado do movimento operrio, para somente duas dcadas depois se formar um partido

    socialista.

    O PC exerceu um papel central no movimento sindical do pas durante quasequarenta anos, ao mesmo tempo em que se configurou como a principal fora poltica entre os

    trabalhadores chilenos. De acordo com Pinto e Salazar, a mudana ttica do partido, que passa

    a seguir um caminho gradualista e pacfico at o poder, seu forte impacto em crculos

    sindicais e intelectuais ajudou a manter a influncia nacional da organizao, chegando a

    alcanar, no ano de 1964, aproximadamente 30.000 filiados.13

    No entanto, o que se observa na histria do Partido Comunista a sua orientao apartir dos ditames da Internacional Comunista, o que revela, entre as dcadas de 1920 e 1930,

    a adoo pelo PC da linha ultraesquerdista do chamado Terceiro Perodo, caracterizada por

    uma postura confrontacional, que o isolou de outros grupos da esquerda nacional. Essa linha

    13Devemos considerar que os programas de recuperao econmica, adotados na dcada de 1930, alm do

    impulso industrializao, significaram a incorporao de um importante segmento do setor popular urbano sreas fabris e construo. O proletariado industrial, por exemplo, experimentou um aumento quantitativo quevariou de 84.991, em 1926, para 389.700, em 1949. ATRIA, Raul; TAGLE, Matias (Edit.). Estado y poltica enChile: ensayos sobre las bases sociales del desarrollo poltico chileno. Santiago de Chile: CPU, 1991, p. 162.

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    ditada pelo Comintern rechaava os contatos com os partidos burgueses e objetava as

    tendncias parlamentares do Partido Socialista.

    Por outro lado, os socialistas se contrapunham orientao ultraesquerdista dos

    comunistas, porque entendiam que essa postura isolaria a classe trabalhadora de outros

    segmentos sociais igualmente explorados, e principalmente, por tratar-se da adoo de uma

    orientao externa. O abandono da linha do Terceiro Perodo pelos comunistas deu-se a

    partir da proposta de criao de amplas alianas, inclusive com os partidos considerados

    burgueses, para salvar a democracia da ameaa fascista, consolidada na coalizo da Frente

    Popular, em 1936.Nos anos cinqenta, a estratgia do PC era a de libertao nacional. Do ponto de

    vista programtico, permaneceram as chamadas tarefas da revoluo: expropriao dos

    latifndios e nacionalizao das empresas imperialistas; manteve-se da fase anterior a

    inteno estratgica de aliana com a burguesia nacional, afirmando-se a concepo de que,

    no Chile, o caminho poderia ser pacfico.14

    No entanto, para os comunistas, havia terminado a etapa histrica de direo daFrente de Libertao por parte da burguesia chilena. A aliana s seria segura se se optasse

    pelos setores antagnicos ao imperialismo, aos monoplios e ao latifndio. A esquerda

    deveria, portanto, constituir a aliana comunista-socialista para atrair a esses setores da

    burguesia; deveria se objetivar a hegemonia do proletariado, indicando-se, assim, como

    ncleo, o eixo comunista-socialista. Esta nova linha estratgica apresentava como requisito

    indispensvel a classe operria e as suas vanguardas como plo dirigente da revoluo delibertao nacional. Vale lembrar que o XX Congresso do PCUS admitia a tese da transio

    pacfica, o que legitimava o percurso do PC chileno na dcada de 1950.15

    O Partido Comunista considerava a sua luta como parte da revoluo mundial do

    proletariado a efetuar-se nos moldes da Revoluo de Outubro. A Frente de Libertao

    Nacional era considerada a ferramenta com a qual se poderia construir uma democracia

    popular e um governo popular para a criao de um pas independente e democrtico.14AGGIO, Alberto. Democracia e socialismo: a experincia chilena. 2.ed. So Paulo: Annablume, 2002, p. 83.15Ibidem, p. 83-84.

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    No projeto comunista, a unio das foras populares, dirigida pelos operrios e

    agricultores, desalojaria a minoria oligrquica do poder econmico e poltico para impulsionar

    as reformas estruturais da sociedade. Tratava-se de uma organizao essencialmente de

    operrios. Sua fora provinha basicamente de trabalhadores urbanos e sindicalizados,

    incluindo seguidores provenientes do setor campons, a partir da dcada de 1950, fator

    impulsionado, principalmente, aps a Revoluo Cubana; alm de um pequeno segmento dos

    setores mdios e um nmero pequeno, mas significativo, de intelectuais.

    Em geral, possvel indicar trs momentos na trajetria do PC, sendo o primeiro, o

    perodo que compreende desde a sua fundao, em 1921, at 1933. O segundo momento, queabarca o perodo de 1933 at o X Congresso de 1956; e o terceiro at fins de 1980. O primeiro

    momento se caracteriza como a etapa confrontacional, inserida no contexto de crise do Estado

    oligrquico, no qual o PC preconizava a poltica do enfrentamento de classes e se mantinha

    margem da poltica estatal.

    Como conseqncia da Guerra Fria, da ampliao do campo socialista e das

    intervenes norte-americanas em diversas partes do mundo, a posio comunista se definiucomo uma linha de frentes amplas com signo antiimperialista. Nas eleies presidenciais de

    1946, o PC fez parte de uma composio poltica com os radicais que elegeria Gonzalez

    Videla presidncia da Repblica.

    Este governo herdou srios problemas econmicos e sociais e se viu numa situao

    delicada, especialmente no plano externo, devido participao comunista na administrao.

    O Chile dependia dramaticamente do financiamento externo, ao mesmo tempo em que a suacomposio poltica era contrria orientao da nova poltica exterior norte-americana no

    perodo da guerra fria, cujo apelo solidariedade nas naes americanas a fim de defender o

    continente da ameaa comunista ditava as regras das relaes entre os pases vizinhos. Mesmo

    aps o afastamento dos comunistas do governo, os Estados Unidos mantiveram o embargo, a

    fim de assegurar a completa ruptura entre o governo e o Partido Comunista.

    No entanto, o apoio dos comunistas s greves contra a poltica do governo e aspermanentes crticas feitas relao do Chile com os Estados Unidos proporcionaram ao

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    presidente Gonzlez Videla a justificativa necessria ao rompimento definitivo com os

    comunistas. Para conseguir conter a presso do PC e a agitao operria, apoiada pelos

    comunistas, o governo decretou, em 1948, a Lei de Defesa da Democracia, proscrevendo o

    Partido Comunista e atingindo diretamente os direitos e liberdades sindicais. O movimento

    operrio e popular voltou a atuar com maior desenvoltura em meados da dcada de 1950.16

    J no X Congresso, de 1956, refletiu-se a tese da transio pacfica e a linha da

    frente nica entre socialistas e comunistas, substituindo a poltica de enfrentamento que a

    Guerra Fria estabeleceu no mundo, e que foi ratificada na formao da Frente de Ao

    Popular (FRAP), como se ver adiante. Os comunistas concebiam um movimento no qual eraessencial uma poltica de alianas pluriclassistas para a revoluo de libertao nacional, no

    bojo de um processo que acentuasse a participao das massas, levando em conta as suas lutas

    de classe mais diretas.

    Para que ambos se efetivassem, defendiam reformas substanciais nas estruturas

    polticas do pas, de forma a que se restaurassem todas as liberdades polticas, com vistas a

    um aprofundamento de processo de democratizao. Nesse sentido, o Partido Comunista foiuma das foras polticas que mais se empenharam na defesa de reformas polticas e

    institucionais de cunho democratizante, visando aperfeioar o sistema institucional.17

    Este contexto que permitiu a formao da FRAP marca um momento de redefinio

    para o socialismo chileno, cuja cultura poltica fora caracterizada por forte antagonismo ao

    comunismo. A criao do Partido Socialista se deve tambm insatisfao de alguns grupos

    socialistas com a liderana comunista dentro da esquerda, o que o levou a delimitar, desde oincio, o carter alternativo ao comunismo na esquerda nacional como uma das suas principais

    caractersticas, e que se fortaleceu ao longo da sua trajetria. A sua histria tem a

    particularidade do contexto de crtica ao stalinismo, poltica da URSS e aos partidos

    comunistas. O partido se autodefiniu, constantemente, a partir da diferenciao com relao

    ao comunismo, do anseio de realizar o que o PC no havia sido capaz de fazer, e de

    representar verdadeiramente os anseios populares.16AGGIO, op. cit., 1999, p. 152-153.17AGGIO, op. cit., 2002, p. 84.

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    preciso problematizar o surgimento da esquerda chilena, j que esta se formou

    primeiramente com o comunismo, com o pioneirismo de Recabarren. O fortalecimento do PS

    se deu no momento de crise da URSS, o que permite afirmar que o seu discurso, caracterizado

    como humanista e libertrio, tambm tem a ver com esse momento de contestao ao regime

    sovitico e das denncias contra o stalinismo.

    O Partido Socialista, fundado em 1932, pode ser caracterizado como um grupo

    formado essencialmente pelas classes mdias, unido por uma concepo bastante difusa do

    socialismo. Sua formao tem como marco a Repblica Socialista de 12 dias, movimento

    liderado pelo comandante da aviao Marmaduque Grove, para destituir do governo EstebanMonteiro, primeiro presidente eleito pelo Partido Radical.

    Deste governo pode-se afirmar que Monteiro buscou articular em torno de si apenas

    os setores tradicionais da poltica chilena, deixando de lado a esquerda que se fortalecia e que

    tentava afirmar um projeto de ao capaz de superar a grave questo social que atingia o pas.

    A partir deste evento, as organizaes socialistas se reuniram para formar o Partido Socialista,

    que esteve sob a liderana de Grove at 1943.

    18

    Tratava-se inicialmente de uma organizao definida como marxista, mas que

    privilegiava um projeto nacional e popular e que enfatizava o carter pluriclassista da sua

    identidade. possvel afirmar que se tratou de uma organizao que veio compor um novo

    quadro poltico que se configurava no pas, marcado pela concepo antioligrquica e

    antiimperialista. Seu carter nacional e popular, alm da sua caracterizao como um partido

    dos trabalhadores manuais e intelectuais, e que no admitia a diviso classista, marca apostura do grupo que tambm se comprometeu com a proposta modernizadora da Frente

    Popular, abrindo, assim, a primeira etapa das recorrentes cises no partido.

    Podemos destacar que, o que definiria a adeso de um indivduo ao Partido Socialista

    no seria o seu pertencimento de classe, mas a sua conscincia poltica revolucionria, a sua

    oposio oligarquia e ao capital estrangeiro, como possvel observar no seguinte excerto:

    18Os lderes da rebelio foram destitudos e presos na Ilha de Pscoa. Ainda em 1932, Marmaduque Groveconcorreu eleio presidencial, vencida por Arturo Alessandri, e obteve a segunda colocao, com 17,7% dosvotos.

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    No se vem ao Partido porque intelectual ou operrio, vem porque se adquiriuconscincia revolucionria do atual momento histrico. Por isso lutamos contra ademagogia, a mentira de fazer crer que s os intelectuais podero salvar-nos, ou ques os operrios so os revolucionrios. Por isso um atentado unidade de nossopartido o divisionismo mentiroso do obrerismo e intelectualismo, e quem atenta

    contra a unidade do Partido Socialista atenta hoje contra o futuro do povo,pretendendo destruir o seu instrumento de libertao.19[traduo nossa]

    Ainda de acordo com Schnake, uma das principais lideranas do grupo naquele

    contexto, o movimento que originou o partido se denominava socialista por ser contrrio ao

    liberalismo individualista. O partido se caracterizaria pela unidade social e poltica da classe

    operria, setores camponeses e classe mdia do pas, no intuito de libertar-se da explorao

    econmica e poltica do capital internacional e da oligarquia. Nas suas palavras, significava a

    mobilizao do povo para uma ao de Segunda Independncia Nacional, a Independncia

    Econmica do Chile.

    Essa caracterstica nacionalista do socialismo chileno um dos componentes que vo

    perdurar ao longo da sua histria, mas que, como se nota, trata-se tambm de uma forma de

    demarcar a originalidade do movimento frente ao comunismo, entendido como uma extenso

    do socialismo sovitico; alm de referendar o passado das lutas operrias e se projetar como

    alternativa para o futuro, um dos determinantes mais evidentes da ao do PS, constantemente

    preocupado com a chilenidad dos seus pressupostos, como afirma Marie Nolle Sarget.20

    Trata-se de um nacionalismo unido ao ideal da unio continental fundado no sonho de

    Bolvar.

    Um elemento que ilustra esse ideal nacionalista o smbolo do Partido Socialista,

    que permite observar a constante referncia feita ao passado do pas, assim como aos ideais de

    luta e da originalidade do grupo. O desenho de um machado ndio sobre o mapa da Amrica

    Latina remete ao toqui, instrumento utilizado pelos ndios mapuche, do sul do Chile, tanto

    para destruir, como para construir, e que se tornou smbolo da resistncia mapuche ao invasor

    19SCHNAKE, Oscar. Poltica Socialista (1938). In: WITKER, Alejandro (Org.). Histria documental delPSCH 1933-1993: signos de identidad. Chile: IELCO, sd, p. 23-24, v.18.20SARGET, Marie-Nolle. Systme politique et Parti Socialiste au Chili: un essai danalyse systematique.Paris: ditions LHarmattan, 1994.

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    espanhol. O smbolo colocado sobre o mapa do continente para se referir coletividade,

    unio e libertao antiimperialista.21

    Em geral, os postulados da Repblica Socialista de 1932 apregoavam a justia social

    e a libertao econmica do pas por meio da unio dos trabalhadores manuais e intelectuais.

    Sendo a unio de diferentes setores sociais um dos principais pontos da declarao socialista,

    assim como a definio de socialismo como um programa contrrio ao liberalismo

    individualista. Questionado sobre qual ideologia correspondia revoluo, seu representante,

    Marmaduque Grove, respondeu:

    A nenhuma. Ns tratamos de fazer para esta revoluo seu peculiar contedoideolgico [...] As doutrinas sociais foram criadas [a partir da] observao darealidade europia [...] Assim que aplicadas na Amrica Latina, cuja realidade distinta, postergam-nos as solues imediatas de nossos problemas e introduzem oconfusionismo.22[traduo nossa]

    Esta afirmao d uma dimenso do carter inicial do PS, que apregoava, dentre

    outras coisas, a flexibilidade das ideologias, como na utilizao do marxismo, e do carter

    pluriclassista de um grupo que era composto de correntes ideolgicas que variavam desde

    tendncias trotskistas, passando por grupos denominados antioligrquicos, latino-

    americanistas, at personalidades intelectuais advindas do anarquismo e do socialismo

    humanista. Os autores latino-americanos no chilenos influenciaram relativamente pouco o

    PS, em comparao com outros marxistas europeus. O argentino Juan B. Justo e Jos Carlos

    Maritegui, marxista peruano, figuram entre os autores socialistas que ocupam lugar em

    algumas referncias, mais por tradues e comentrios que fizeram da obra de Marx.

    No entanto, o partido valoriza constantemente a contribuio de autores nacionais,

    como Recabarren e, sobretudo, a daqueles fundadores do partido, como Grove, Eugenio

    Matte, Oscar Schnake, nomes que constituram a liderana nos primeiros anos de vida do

    partido. Alm disso, o grupo conferia especial espao aos escritores do partido, como Jobet,

    Alejandro Cheln, Raul Ampuero, Salomon Corbaln, Eugenio Gonzalez, Oscar Waiss, cujos

    textos, especialmente aps a dcada de 1940, contriburam diretamente para forjar uma

    determinada cultura poltica ao partido, bem como sua identidade.

    21SARGET, op. cit., p. 79.22GROVE, Marmaduque. Manifiesto Socialista (1934). In: WITKER, op. cit., p. 221.

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    Esses membros, em especial quando formavam parte do Comit Central (CC),

    tinham importante influncia nas deliberaes do partido quanto s linhas e rumos a adotar. O

    CC representava a organizao nas suas relaes com outros grupos, decidia os acordos a

    estabelecer, designava as candidaturas socialistas em via de eleies, tomava as sanes

    eventuais contra dirigentes e militantes, nomeava e destitua diretores da imprensa do partido

    e aplicava as decises do Congresso Geral. Alm de exercerem forte influncia nas idias a

    serem seguidas pelo grupo, j que o contedo terico-ideolgico representava um elemento

    muito valorizado na conduo no partido.

    possvel conceber a histria do Partido Socialista em duas etapas. A primeira podeser demarcada do momento da sua fundao at a reunificao do socialismo, em 1957;

    enquanto que a segunda abarca desse momento at a diviso de 1979; sem, no entanto,

    caracterizar-se como momentos estanques, ou seja, trata-se de momentos nos quais elementos

    diversos, concertacionistas e rupturais se imbricavam na conformao da cultura poltica

    socialista, alm da sua identificao latino-americanista, popular e dos objetivos de ocupao

    do poder serem elementos compartilhados por grupos internos com orientaes diferentes.So concebidas aqui essas duas fases na trajetria do socialismo chileno por entender-se que

    ocorre uma modificao na postura ideolgica do Partido Socialista, demarcada pela

    predominncia do carter confrontacional a partir do final da dcada de 1950 naquele

    movimento.

    A etapa que compreende o perodo de 1933 a 1957 pode ser definida como o

    momento nacional-popular

    23

    , no contexto em que o socialismo surgiu como uma alternativapara as classes populares e setores mdios, apresentando caractersticas definidas por uma

    clara distino ideolgica e poltica dos comunistas, antioligrquicas e antiimperialistas.

    23Um projeto nacional-popular tem como caractersticas: a concepo da poltica como constituio da vontadecoletiva, como uma busca pelo consenso, e no como o aproveitamento das conjunturas em funo de umamobilizao manipulada de massas disponveis; pensa cada um dos elementos da poltica em uma perspectivautpica, como realizao de graus cada vez maiores de democracia, portanto, como processo que deve conduzir

    ao socialismo, este concebido como sistema que permite a mxima liberdade de todos; e o consenso encaradocomo algo alm da articulao de interesses econmicos e polticos, trata-se de um pacto social em funo deuma mudana concertada. Cf. MOULIAN, Toms. Democracia y socialismo en Chile. Santiago: FLACSO,1983.

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    Esta distino demarcada por elementos, como um papel mais flexvel e

    instrumental do marxismo, a necessidade de substituir o Estado burgus pelo Estado dos

    trabalhadores, a superao do capitalismo, crtica ao internacionalismo comunista, a definio

    do partido como popular e no exclusivamente operrio. Alm disso, a defesa, por parte das

    suas principais lideranas do perodo, da participao ativa em coalizes de governo, e a

    defesa de programas de reformas democratizantes, de fomento industrializao e do

    fortalecimento do papel do Estado como regulador das desigualdades.

    Esse foi um perodo bastante conturbado na histria do partido, que reunia diferentes

    grupos e concepes acerca do papel do socialismo. Incapacidade de influncia do partido nasdecises do governo, seguidismo frente direo burguesa e ausncia de uma perspectiva

    estratgica para iniciar o processo de construo socialista a partir da etapa de reformas,

    foram algumas das crticas internas dirigidas s lideranas do grupo. Comeava a se delinear a

    trajetria da convivncia conflitiva entre as tendncias com pretenses confrontacionais e os

    grupos que defendiam alianas e a promoo de reformas a partir do Estado.

    A segunda etapa do socialismo chileno o momento do qual se ocupa o presentetrabalho, identificada na mudana das suas lideranas. Esta pode se caracterizar por sua

    crescente ideologizao e o progressivo abandono da perspectiva nacional-popular,

    influenciada por processos e teorias revolucionrias externos, alm do descontentamento com

    as experincias de governo vivenciadas pelo pas sob o comando das classes dominantes;

    tendncia alimentada por concepes que visualizavam uma crise total na sociedade, que

    passavam a guiar seus projetos polticos.Caractersticas centrais da cultura poltica socialista, como o nacionalismo, o

    antiimperialismo, a postulao da substituio do Estado burgus pelo Estado dos

    Trabalhadores eram compartilhadas por esta nova tendncia frente do socialismo. No

    entanto, o Partido Socialista confrontaria ento o que se denominou na poca de

    colaboracionismo, expresso na poltica de lideranas do socialismo chileno que

    participaram do governo da Frente Popular, como Grove, Oscar Schnake e Salvador Allende,

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    e o inconformismo de algumas de suas lideranas apoiadas por intelectuais como Oscar

    Waiss, Julio Csar Jobet e Alejandro Cheln Rojas.

    O governo da FP pode ser considerado o processo que ratificou a incorporao da

    esquerda no cenrio poltico do Chile, a partir da formao de uma aliana entre o Partido

    Radical e os partidos Comunista e Socialista, apesar das pssimas relaes estabelecidas entre

    ambos, como resultado basicamente de duas conjunturas especficas: uma crise econmica

    marcada por agitaes populares reprimidas pelo segundo governo de Arturo Alessandri

    (Alianza Liberal) e uma estratgia poltica externa advinda da ttica definida no VII

    Congresso da Internacional Comunista, em 1935. A partir desta diretiva, formou-se a coalizono Chile para estabelecer a oposio ao governo autoritrio alessandrista. Alm disso,

    preciso destacar que a formao da coalizo foi favorecida por uma srie de iniciativas

    polticas graduais que propugnavam alianas entre foras polticas consideradas defensoras

    das liberdades pblicas.24

    Diante da impossibilidade de uma aliana com a direita, que sustentava o governo

    repressor, os Radicais assumiram uma postura mais esquerda. Outro fator que contribuiupara a unio dos diferentes segmentos foi a represso do governo contra os sindicatos, que

    atingiu seguidores dos partidos populares; bem como a represlia a uma expressiva greve dos

    ferrovirios. Portanto, essas medidas do governo deram maior sustentao ao projeto da FP

    medida que validou a posio dos dirigentes do Partido Radical a favor de uma aliana

    antialessandrista e ocasionou a convergncia dos interesses dos partidos de esquerda.

    Pela Frente Popular, Pedro Aguirre Cerda, indicado como pr-candidato Presidncia da Repblica, venceu a disputa interna em que o Partido Socialista apresentou a

    candidatura de Marmaduque Grove, um dos principais lderes do grupo, e que passou a ser

    presidente de honra da aliana. Numa conjuntura de fortes suspeitas de instalao de uma

    ditadura no pas comandada por Alessandri, a eleio de 1938 tornava-se decisiva para a

    democracia do pas. A necessidade de barrar o governo repressor por meio da unidade dos

    setores populares se refletiu na eleio do candidato da coalizo.

    24AGGIO, op. cit., 1999, p. 102.

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    A despeito das divergncias presentes na aliana, que se tornaram fator de desunio

    aps a conquista do governo, a poltica conduzida pelo Partido Radical possibilitou relativo

    consenso em torno de temas como o fortalecimento da democracia representativa no pas, do

    desenvolvimento econmico e, principalmente, a presena do Estado na economia e da defesa

    dos interesses sociais e polticos das camadas subalternas.

    A emergncia dessa coalizo poltica, que compartilhava a defesa da democracia

    como um dos principais valores, garantiu maior estabilidade ao sistema poltico do pas,

    assegurando aos partidos de esquerda o seu papel de representantes dos trabalhadores no

    quadro institucional e tambm uma ampliao das suas bases sociais. So fatores que,contudo, foram concebidos negativamente por suas lideranas, a partir das dcadas seguintes,

    e que teve a complexidade da sua formao poltica e social negligenciada por Jobet e por

    intelectuais, que, como ele, debruaram-se sobre a formulao e difuso de idias rupturais.

    Estas teses eram baseadas em concepes preestabelecidas nos moldes do socialismo

    internacional, direcionando o debate e a conduo poltica por parte da esquerda para uma

    polarizao.O processo poltico iniciado em 1938 pode ser caracterizado como o marco da

    consolidao da modernizao do pas, anunciada na dcada de 1920, como a afirmao de

    um novo papel do Estado na economia e da democracia representativa. Essa poltica

    conduzida pela Frente Popular, no entanto, no correspondeu integralmente s aspiraes dos

    grupos que a constitua, principalmente, devido correlao de foras estabelecida no

    governo, que favorecia, em grande medida, direita.A direita, que alm do poder econmico, contava com maioria parlamentar,

    representou um obstculo implementao de medidas democratizantes que afetavam seus

    interesses imediatos. Nesse sentido, a esquerda ficou impossibilitada de influenciar as

    resolues na economia de maneira a alcanar seus objetivos por meio de projetos de

    desenvolvimento e da diminuio da dependncia do pas em relao ao capital estrangeiro.25

    25AGGIO, op. cit., 1999, p. 22.

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    Depois da vitria da Frente Popular, em 1938, a direita conseguiu se favorecer nas

    disputas no governo, num perodo em que deveria enfrentar ameaas manuteno da

    estrutura social e dos seus interesses, dentre elas o desafio ordem senhorial no mundo rural.

    Esta questo colocava para o setor o dilema de como evitar a formao de sindicatos nos

    campos, que os partidos de esquerda comeavam a propugnar. Assim, o perodo aberto em

    1938, no que concerne s dificuldades e restries organizao sindical no campo pode ser

    registrado como negativo para as expectativas da esquerda.

    De acordo com Sofia e Consuelo, estas mudanas seriam sentidas nas dcadas

    seguintes, junto com a chegada de pautas culturais urbanas ao mundo rural, agora maispermevel devido difuso do rdio e da bicicleta. Alm disso, os partidos de esquerda e a

    Democracia Crist, principal motor da poltica nacional da dcada de 1960, penetraram, pela

    primeira vez, de forma exitosa no campo, tornando esse setor um espao de disputa poltica

    entre estes grupos pela adeso do campesinato, mobilizando-os em prol de demandas

    trabalhistas e com promessa de diviso de terras, o que significou, posteriormente, o aumento

    das greves camponesas.

    26

    Como destaca Aggio, as divergncias na esquerda se acentuaram a partir do

    momento em que o PR assumiu a hegemonia da coalizo e que Pedro Aguirre Cerda,

    apontado como uma expresso da moderao e da negociao poltica, foi designado

    candidato presidencial da FP.27Alm disso, a despeito da presso da retrica ruptural exposta

    pela esquerda, pautada em propostas nacionalistas e de amplo apelo popular, a esquerda no

    foi capaz de ditar de maneira determinante os rumos da conduo do governo. Estas so asprincipais limitaes que ficaram marcadas na participao socialista no governo, e que foram

    criticadas por parte das suas lideranas, especialmente, a partir da dcada de 1950.

    De acordo com Sarget, durante as presidncias radicais, o Partido Socialista teria

    sido um elemento totalmente passivo no sistema poltico chileno, de maneira que o sistema

    teria agido sobre ele, ameaando a sua identidade; relao que se inverteria durante a dcada

    26CORREA; FIGUEROA, op. cit.., p. 223.27AGGIO, op. cit., 1999, p. 123.

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    de 1950, na qual o partido se tornaria um dos elementos motores do sistema poltico,

    juntamente com a grande novidade que representava a Democracia Crist.28

    No entanto, entendemos que ao longo da sua trajetria, em especial durante a

    experincia da coalizo, o Partido Socialista exerceu importante papel na expresso dos

    conflitos sociais e demandas populares, na mobilizao do mundo do trabalho e na defesa

    desses interesses, ao mesmo tempo em que canalizou tais demandas para inseri-las nas pautas

    do quadro institucional.

    Alm do partido se constituir em um importante grupo de presso e de mobilizao

    dos grupos populares, o perodo contribuiu para forjar a sua identidade, cuja delimitao sedeu em relao aos outros grupos polticos como o Partido Radical, representante dos

    setores mdios, e do Partido Comunista, que, no discurso socialista, servia de instrumento

    para a poltica sovitica ; identidade que assumiu novos contornos e veio a se impor como

    um forte elemento para a polarizao ideolgica do sistema poltico do pas.

    Esta histria foi marcada por embates entre os grupos de esquerda que conquistaram

    uma rpida insero e poder de representao no quadro institucional e que mudaram aconfigurao poltica chilena. A anlise desta experincia e das idias e perspectivas que

    constituram o socialismo chileno remete para uma histria singular na Amrica Latina.

    A apreenso das motivaes e perspectivas que animaram o socialismo daquele pas

    requer um mapeamento da trajetria dos grupos que protagonizaram aquele processo,

    consistindo, assim, a perspectiva adotada, numa anlise das idias que constituram a cultura

    poltica do socialismo e das conseqncias advindas da sua postura, a partir do aporte de umadas suas principais referncias intelectuais. Para tanto, a anlise deve se centrar naquele que

    o principal contexto de definio da polarizao ideolgica caracterstica do perodo de 1957

    a 1973.

    Nesse perodo, de acordo com Jocelyn Holt, o Chile comeava a ser pensado em

    termos de subdesenvolvimento e de atraso, de maneira que, segundo alguns intrpretes da

    poca, a realidade vivida por aquela sociedade corroborava tal qualificao. Pode-se afirmar,

    28SARGET, op. cit., p. 214.

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    no entanto, que mais do que germinar essa concepo acerca da sociedade chilena, o perodo

    marca uma difuso e cristalizao de idias j construdas, principalmente, pela esquerda

    poltica daquele pas.

    Concepes traduzidas em diversas manifestaes intelectuais e polticas que

    apresentaram importantes nomes, como Anbal Pinto, Julio Csar Jobet, Jorge Ahumada, que

    conferiram ao poltica de diversos grupos o contedo terico e ideolgico ao longo das

    suas trajetrias na poltica nacional. Estas postulaes contriburam para a forte polarizao

    ideolgica que caracterizou a dcada de 1960, e consequentemente, as concepes em torno

    da conduo do governo da Unidade Popular.Com a formao de um forte e combativo movimento operrio no Chile, desde fins

    do sculo XIX, a questo social ocupou espaos no debate intelectual e poltico, de forma que

    os setores populares passaram a ser solicitados como apoio eleitoral no discurso dos partidos

    tradicionais, mas sem ser canalizados pelos mesmos. Esse contexto de ausncia de um partido

    ou movimento que conseguisse articular as demandas das classes populares em crescimento, e

    que exercia forte presso naquela sociedade determinou, em grande medida, a formao dospartidos de esquerda.

    Primeiro, o Partido Comunista, criado exclusivamente por lderes do movimento

    sindical de princpios do sculo XX, e que, inicialmente, teve apoio fundamentalmente

    operrio e, posteriormente, o Partido Socialista, com uma formao bastante ecltica, que

    reunia desde militares at operrios, e conseguiu tornar-se um dos maiores representantes

    populares do sistema poltico chileno.

    Diferentemente dos seus similares na Amrica Latina, os partidos de esquerda do

    Chile no se isolaram da cultura e dos movimentos populares, ao contrrio, constituram-se

    em seus principais representantes polticos. Nas palavras de Moulian:

    [...] o marxismo representou no Chile algo mais que a ideologia de um conjunto departidos, com uma relao superficial e aparente com as massas, uma simplesreferncia ritual, importante para os intelectuais polticos, mas carente de sentidopara os homens comuns. possvel afirmar que constituiu um componenteimportante da cultura poltica nacional, especialmente entre os setores populares.Desenvolveu-se como um dos sistemas hegemnicos no mbito das ideologias

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    polticas, cuja influncia se podia sentir alm dos partidos polticos de esquerda.29[traduo nossa]

    Ainda que o presente trabalho no possa apreender o alcance do marxismo e da

    teoria poltica da esquerda chilena para alm dos seus quadros, essa cultura poltica que rene

    indivduos em torno de concepes acerca da poltica, da sociedade, de projetos e da diferena

    entre os grupos polticos e sociais, tem especial importncia na mobilizao de diversos

    setores. Mesmo se pensarmos que o marxismo surgia consubstanciado na figura material do

    partido, como uma entidade aglutinadora onde os intelectuais adquiriam sua organicidade,

    esta idia bastante vlida.

    Esse processo de formao da esquerda poltica do pas, da sua incorporao no

    sistema institucional e da introduo dos seus projetos polticos demarca o incio da trajetria

    desta tendncia que vivenciou a expectativa do trnsito democrtico ao socialismo. A

    construo desta experincia pode ser avaliada desde a atuao do seu movimento operrio no

    sculo XIX, at a posterior organizao dos seus partidos de representao popular, no se

    configurando, portanto, como uma experincia discrepante dentro da sua trajetria.

    possvel afirmar que um dos fatores mais destacados da vida poltica chilena foi a

    existncia de uma esquerda muito forte e estruturada, no sentido da sua constante participao

    e no exerccio da presso poltica sobre o centro decisrio, alm da capacidade de mobilizao

    que remonta s suas origens. Esta trajetria diferenciada de um movimento de esquerda na

    poltica institucional dentro da Amrica Latina foi um dos elementos discutidos e

    incompreendidos por parte da historiografia do pas.

    29MOULIAN, Toms. La forja de ilusiones: el sistema de partidos (1932-1973). Santiago: FLACSO, 1993, p.73.

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    1.2 Elementos da historiografia do socialismo chileno

    O tema do socialismo chileno adquiriu espao considervel na historiografia daquele

    pas, porm com contornos pouco diferenciados no que se refere s abordagens adotadas. Em

    geral, encontram-se trabalhos destinados a analisar o sistema poltico nacional, preocupados

    com o seu desenvolvimento a partir das influncias e relaes entre os diferentes partidos que

    o compuseram, entre eles, os partidos de esquerda.

    Em geral, as avaliaes acerca da esquerda se remetem trajetria dos seus partidos,

    e, pautam-se nas mesmas categorias analticas adotadas no perodo analisado, de maneira aapontar os limites e os desvios polticos de suas escolhas, visto que grande parte desses

    trabalhos elaborada por protagonistas daquele processo30; alm de compilaes de

    documentos referentes a diferentes perodos dessas trajetrias.31

    possvel destacar tambm trabalhos dedicados ao Partido Socialista que buscaram

    identificar suas principais caractersticas, e, numa abordagem que abarca a sua trajetria desde

    a sua fundao at o seu governo, em 1970, analisa a sua participao no sistemainstitucional, numa avaliao que adquiriu poucas variaes. Dentre elas, podemos destacar

    comparaes com o Partido Comunista e, principalmente, a indicao de desvios na sua

    prtica poltica, especialmente no que se refere a sua atuao poltico-institucional, bem como

    as deficincias tticas na transio ao socialismo no governo da Unidade Popular.

    Uma das anlises mais significativas desta concepo de deficincia ttica na

    conduo do governo para a construo do socialismo a abordagem presente no trabalho deIgncio Walker, cuja hiptese central sustenta que a ausncia de uma concepo socialista

    democrtica privou Allende do necessrio apoio poltico no interior da coalizo de partidos

    30ALTAMIRANO, Carlos. Dialtica de uma derrota: Chile 1970-1973. So Paulo: Editora Brasiliense, 1979.Neste trabalho, Altamirano tece duras crticas UP por sua inadequada percepo poltica da inevitabilidade doconflito; Alejandro Cheln, liderana intelectualmente prxima a Altamirano, publicou Trayectria delSocialismo: apuntes para una historia critica del socialismo chileno. Trata-se de um trabalho que expressasignificativamente a posio inconformista, que se ops s participaes governamentais em coalizes

    pluripartidrias do PS e cobrou uma posio confrontacional do partido.31Alm das compilaes utilizadas neste trabalho, podemos citar El socialismo y la unidad: (cartas del PartidoSocialista al Partido Comunista). Coleccin Documentos, n.1, Santiago, 1966, publicada pela Secretaria deEducao Poltica do PS.

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    que o conduziu ao poder, o que teria contribudo para o fracasso da via allendista ao

    socialismo.32

    Numa leitura teleolgica da trajetria do Partido Socialista, Walker entende que o

    desfecho do processo do governo socialista esteve d