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História dos Judeus no Brasil Compilação de Artigos sobre Documentos Históricos e Achados Arqueológicos História dos Judeus no Brasil

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História dos Judeus no BrasilCompilação de Artigos sobre Documentos Históricos e Achados Arqueológicos

História dos Judeus no Brasil

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A DESCENDÊNCIA JUDAICA NO BRASIL

Um povo para ser destacado dentre as nações precisa conhecer sua identidade, buscando profundamente suasraízes. Os povos formadores do tronco racial do Brasil são perfeitamente conhecidos, como: o índio, o negro e o branco,destacando o elemento português, nosso colonizador. Mas, quem foram estes brancos portugueses? Pôr que eles vieramcolonizar o Brasil? Viriam eles atraídos só pelas riquezas e Maravilhas da terra Pau-Brasil? A grande verdade é que muitoshistoriadores do Brasil colonial ocultaram uma casta étnica que havia em Portugal denominada por cristãos novos, ou seja,os Judeus ! Pôr que? (responder esta pergunta poderia ser objeto de um outro artigo). Em 1499, já quase não havia maisjudeus em Portugal, pois estes agora tinham uma outra denominação: eram os cristãos novos. Eles eram proibidos dedeixar o país, a fim de não desmantelar a situação financeira e comercial daquela época, pois os judeus eram prósperos.Os judeus sefarditas, então, eram obrigados a viver numa situação penosa, pois, por um lado, eram obrigados a confessara fé cristã e por outro, seus bens eram espoliados, viviam humilhados e confinados naquela país. Voltar para Espanha, deonde foram expulsos, era impossível, bem como seguir em frente, tendo à vista o imenso oceano Atlântico. O milagre doMar Vermelho se abrindo, registrado no Livro de Êxodo, precisava acontecer novamente.

Naquele momento de crise, perseguição e desespero, uma porta se abriu: providência divina ou não, um corajosoportuguês rasga o grande oceano com sua esquadra e, em abril de 1500, o Brasil foi descoberto.

Na própria expedição de Pedro Álvares Cabral já aparecem alguns judeus, dentre eles, Gaspar Lemos, Capitão-mor,que gozava de grande prestígio com o Rei D. Manuel. Podemos imaginar que tamanha alegria regressou Gaspar Lemosa Portugal, levando consigo esta boa nova: - descobria-se um paraíso, uma terra cheia de rios e montanha, fauna e florajamais vistos. Teria pensado consigo: não seria ela uma “terra escolhida” para meus irmãos hebreus ? Esta imaginaçãocomeçou a tornar-se realidade quando o judeu Fernando de Noronha, primeiro arrendatário do Brasil, demanda trazer umgrande número de mão de obra para explorar seiscentas milhas da costa, construindo e guarnecendo fortalezas na obriga-ção de pagar uma taxa de arrendamento à coroa portuguesa a partir do terceiro ano. Assim, milhares e milhares de judeusfugindo da chamada “Santa Inquisição” e das perseguições do “Santo Ofício” de Roma, começaram a colonizar este país.Afinal, os judeus ibéricos, como qualquer outro judeu da diáspora, procurava um lugar tranqüilo e seguro para ali seestabelecer, trabalhar, e criar sua família dignamente. O tema é muito vasto e de grande riqueza bibliográfica e histórica.Assim, queremos com esta matéria abordar ligeiramente o referido tema, despertando, principalmente, o leitor interessadoque vive fora da comunidade judaica. Neste pequeno estudo, queremos mencionar a influência judaica na formação daraça brasileira, apresentando apenas alguns fatos históricos importantes ocorridos no Brasil colonial, destacando uma listade nomes de judeus portugueses e brasileiros que enfrentaram os julgamentos do “Santo Ofício” no período da Inquisição.Os fatos históricos são muitos e podem ser encontrados em vários livros que tratam com detalhes desse assunto, como jámencionado. Comecemos, então, apresentando um pequeno resumo da história dos judeus estendendo até ao período doBrasil Colonial. Desde a época em que o Rei Nabucodonosor conquistou Israel, os hebreus começaram a imigrar-se paraa península ibérica. A comunidade judaica na península cresceu ainda mais durante os séculos II e I A.C., no período dosjudeus Macabeus. Mais tarde, depois de Cristo, no ano 70, o imperador Tito ordenou destruir Jerusalém, determinando aexpulsão de todo judeu de sua própria terra. A derrota final ocorreu com Bar Kochba no ano 135 d.C, já na diásporapropriamente dita. A história confirma a presença dos judeus ibéricos, também denominados “sefaradim”, nessa península,no período dos godos, como comprovam as leis góticas que já os discriminavam dos cristãos. As relações judaico-cristãscomeçaram a agravar-se rapidamente após a chegada a Portugal de 120.000 judeus fugitivos e expulsos pela InquisiçãoEspanhola por meio do decreto dos Reis Fernando e Isabel em 31.03.1492. Não demorou muito, a situação também seagravava em Portugal com o casamento entre D. Manoel I e Isabel, princesa espanhola filha dos reis católicos. Várias leisforam publicadas nessa época, destacando-se o édito de expulsão de D. Manoel I. Mais de 190.000 judeus foram forçadosa confessar a fé católica, e após o batismo eram denominados “cristãos novos”, quando mudavam também os seusnomes. Várias atrocidades foram cometidas contra os judeus, que tinham seus bens confiscados, saqueados, sendo suasmulheres prostituídas e atiradas às chamas das fogueiras e as crianças tinham seus crânios esmagados dentro daspróprias casas. O descobrimento do Brasil em 1500 veio a ensejar uma nova oportunidade para esse povo sofrido. Já em1503 milhares de “cristãos novos” vieram para o Brasil auxiliar na colonização. Em 1531, Portugal obteve de Roma aindicação de um Inquisidor Oficial para o Reino, e em 1540, Lisboa promulgou seu primeiro Auto de fé. Daí em diante oBrasil passou a ser terra de exílio, para onde eram transportados todos os réus de crimes comuns, bem como judaizantes,ou seja, aqueles que se diziam aparentemente cristãos novos, porém, continuavam em secreto a professar a fé judaica. Eé nesses judaizantes portugueses que vieram para o Brasil nessa época que queremos concentrar nossa atenção. Deuma simples terra de exílio a situação evoluiu e o Brasil passou a ser visto como colônia. Em 1591 um oficial da Inquisição

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era designado para a Bahia, então capital do Brasil. Não demorou muito, já em 1624, a Santa Inquisição de Lisboa proces-sava pela primeira vez contra 25 judaizantes brasileiros (os nomes abaixo foram extraídos dos arquivos da Inquisição daTorre do Tombo, em Lisboa). Os nomes dos judaizantes e os números dos seus respectivos dossiês foram extraídos doLivro: “Os Judeus no Brasil Colonial” de Arnold Wiznitzer – página 35 – Pioneira Editora da Universidade de São Paulo:Alcoforada, Ana 11618 - Antunes, Heitor 4309 - Antunes, Beatriz 1276 - Costa, Ana da 11116 - Dias, Manoel Espinosa 3508- Duarte, Paula 3299 - Gonçalves, Diogo Laso 1273 - Favella, Catarina 2304 - Fernandes, Beatriz 4580 - Lopes, Diogo4503 - Franco, Lopes Matheus 3504 - Lopes, Guiomar 1273 - Maia, Salvador da 3216 - Mendes, Henrique 4305 - Miranda,Antônio de 5002 - Nunes, João 12464 - Rois, Ana 12142 - Souza, João Pereira de 16902 - Teixeira, Bento 5206 - Teixeira,Diogo 5724 - Souza, Beatriz de 4273 - Souza, João Pereira de 16902 - Souza, Jorge de 2552 - Ulhoa, André Lopes 5391.

Continuando nossa pesquisa, podemos citar outras dezenas e dezenas de nomes e sobrenomes, devidamente docu-mentados, cujas pessoas foram também processadas a partir da data em que a Inquisição foi instalada aqui no Brasil. Èimportante ressaltar que nesses processos os sobrenomes abaixo receberam a qualificação de “judeus convictos” ou“judeus relapsos” em alguns casos. Por questão de espaço citaremos apenas nesta primeira parte os sobrenomes, dispen-sando os pré-nomes:

Abreu Álvares Azeredo Ayres - Affonseca Azevedo Affonso Aguiar - Almeida Amaral Andrade Antunes - AraújoÁvila Azeda Barboza - Barros Bastos Borges Bulhão - Bicudo Cardozo Campos Cazado - Chaves Costa CarvalhoCastanheda - Castro Coelho Cordeiro Carneiro - Carnide Castanho Corrêa Cunha - Diniz Duarte Delgado Dias -Esteves Évora Febos Fernandes - Flores Franco Ferreira Figueira - Fonseca Freire Froes Furtado - Freitas GalvãoGarcia Gonçalves - Guedes Gomes Gusmão Henriques - Izidro Jorge Laguna Lassa - Leão Lemos Lopes Lucena -Luzaete Liz Lourenço Macedo - Machado Maldonado Mascarenhas - Martins Medina Mendes Mendonça Mesquita- Miranda Martins Moniz Monteiro - Moraes Morão Moreno Motta - Munhoz Moura Nagera Navarro - Nogueira NevesNunes Oliveira - Oróbio Oliva Paes Paiva - Paredes Paz Pereira Perez - Pestana Pina Pinheiro Pinto - Pires PortoQuaresma Quental - Ramos Rebello Rego Reis - Ribeiro Rios Rodrigues Rosa - Sá Sequeira Serqueira Serra - SylvaSilveira Simões Siqueira - Soares Souza Tavares Telles - Torrones Tovar Trigueiros Trindade - Valle Valença VargasVasques - Vaz Veiga Vellez Vergueiro - Vieira Villela.

(A lista dos sobrenomes citados acima não exclui a possibilidade da existência de outros sobrenomes portugueses de origemjudaica. – Fonte: Extraído do livro: “Raízes judaicas no Brasil” – Flávio Mendes de Carvalho – Ed. Nova Arcádia 1992).

Todos esses judeus brasileiros, cujos sobrenomes estão citados acima, foram julgados e condenados pela Inquisiçãode Lisboa, sendo que alguns foram deportados para Portugal e queimados, como por exemplo o judeu Antônio Felix deMiranda, que foi o primeiro judeu a ser deportado do Brasil Colônia. Outros foram condenados a cárcere e hábito perpétuo.

Quando os judeus aqui chegavam, desembarcavam na maioria das vezes na Bahia, por ser naquela época o principalporto. Acompanhando a história dessas famílias, nota-se que grande parte delas se dirigia em direção ao sul, muitas vezesfixando residência nos Estados do Rio de Janeiro e Minas Gerais. Outros subiam em direção ao norte do país, destacandoa preferência pelos Estados de Pernambuco e Pará. Esses estados foram bastante influenciados por uma série de costu-mes judaicos, que numa outra oportunidade gostaríamos de abordar. É importante ressaltar que não podemos afirmar quetodo brasileiro, cujo sobrenome constante desta lista acima seja necessariamente descendente direto de judeus portugue-ses. Para saber-se ao certo necessitaria uma pesquisa mais ampla, estudando a árvore genealógica das famílias, o quepode ser feito com base nos registros disponíveis nos cartórios. Mas, com certeza, o Brasil tem no seu sangue e nas suasraízes os traços marcantes deste povo muito mais do que se imagina, quer na sua espiritualidade, religiosidade ou mesmoem muitos costumes.

Constatamos que o Brasil já se destaca dentre outras nações como uma nação que cresce rapidamente na direção deuma grande potência mundial. A influência histórica judaica sefardita é inegável. Os traços físicos de nosso povo, oscostumes, hábitos e algumas tradições são marcas indubitáveis desta herança. Mas, há uma outra grande herança denosso povo, a fé. O brasileiro na sua maioria pode ser caracterizado como um povo de fé, principalmente, quando esta féestá fundamentada no conhecimento do Deus de Abraão, Isaque e Jacó, ou seja, no único e soberano Deus de Israel.

Isto sim, tem sido o maior, o melhor e o mais nobre legado do povo judeu ao povo brasileiro e à humanidade.

Breve História dos Judeus no BrasilCapítulo I

INTRODUÇÃO A história dos judeus no Brasil constitui um caso único; pois de nenhum outro país se pode dizer que nele os

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judeus tenham vivido ao longo de toda a sua existência, contribuindo substancialmente para o seu desenvolvimentoeconômico e social.

De fato, desde o descobrimento do país - evento este do qual participaram, tendo inclusive ajudado nos seus prepara-tivos - até a época presente, os judeus, quase sem intermitência, aberta ou disfarçadamente, estiveram integrados nosprocessos de formação da nacionalidade.

Isso não obstante, vale dizer, embora os judeus tenham representado continuamente uma parcela da sociedade, asua história não acompanha simplesmente a do Brasil. Longe de um esperado paralelismo, o que se verifica é a existênciade inúmeros desvios e meandros, os quais não raro atingem o grau de contraste.

À guisa de exemplo, mencione-se o período da ocupação holandesa, que, traduzindo um fracasso para o país,constituiu, entretanto, o ponto mais alto do desenvolvimento da coletividade judaica local, dando-se o inverso com afase subseqüente, quando, após a expulsão dos invasores, sobreveio a decomposição, o êxodo e a dispersão dosjudeus do Brasil.

Semelhantemente, as intensas perseguições religiosas da primeira metade do século XVIII, de parcos efeitos diretossobre a população geral do país, tiveram influência específica marcante sobre a vida dos judeus brasileiros.

Finalmente, sob outro aspecto, a implantação do regime e disposições liberais no país, no início do século XIX, culmi-nando com a proclamação da Independência, e que resultou tão favorável ao progresso geral do país, determinou poréma assimilação quase total dos judeus, efeito este que é de se considerar negativo do ponto de vista da preservação dacomunidade judaica brasileira.

Por tais motivos, o estudo da história dos judeus no Brasil não pode ater-se às fases e aos marcos gerais da evoluçãopolítica e social do país, senão orientar-se, ao revés, segundo os fatos e acontecimentos históricos que hajam repercutidoespecificamente nas condições de vida individual e sobretudo coletiva dos judeus.

1) 1500-1570 - FASE PACÍFICA DE CRESCENTE IMIGRAÇÃO e de ampla integração dos judeus na vida econômica dopaís, compreendendo os três sub-períodos:a) - Primeiras explorações (1501- 1515);b) - Primeira colonização (1515- 1530);c) - Colonização sistemática (1530- 1570)2)1570-1630 – FASE TUMULTUÁRIA, caracterizada pelo surgimento de DISCRIMINAÇÕES ANTIJUDAICAS.3) 1630-1654 - Período de EXUBERANTE DESENVOLVIMENTO, sob o domínio holandês – verdadeiro APOGEU DAORGANIZAÇÃO COLETIVA dos judeus do Brasil.4) 1654-1700 - Período pós-holandês, FASE CRÍTICA na vida dos judeus brasileiros, compreendendo ÊXODO em massa,desagregação da comunidade, DISPERSÃO e final acomodação local.5) 1700-1770 - Período das GRANDES PERSEGUIÇÕES promovidas pela Inquisição portuguesa.6) 1770-1824 - Período de LIBERALIZAÇÃO progressiva, queda da imigração judaica e GRADUAL ASSIMILAÇÃO dosjudeus.7) 1824-1855 - Fase de ASSIMILAÇÃO PROFUNDA, subseqüente à cessação completa da imigração judaica homogêneae à igualização total entre judeus e cristãos perante a lei.8) 1855-1900 - Período PRÉ- IMIGRATÓRIO MODERNO, caracterizado pelas primeiras levas de imigrantes judeus, oriun-dos, sucessivamente, da África do Norte, da Europa Ocidental, do Oriente Próximo e mesmo da Europa Oriental, precur-sores das correntes caudalosas que, nas primeiras décadas do século XX, vieram gerar e moldar a atual coletividadeisraelita do país.

Breve História dos Judeus no BrasilBIBLIOGRAFIA

1) AZEVEDO, J. Lúcio D. - “História dos Cristãos Novos Portugueses”, Lisboa. 1921.2) BENARUS, Adolfo - “Os Judeus”, Lisboa.3) BORGES DOS REIS, A. A. - “História do Brasil”, Bahia. 1929.4) CALMON, Pedro - “História do Brasil”, S. Paulo, 1943.5) DIEGUES JUNIOR, Manuel - “Etnias e Culturas no Brasil”, Rio de Janeiro. 1952.6) DUBNOV, Simon - “História Universal do Povo Judeu” (em idich), Buenos Aires. 1952.7) FREYRE, Gilberto - “Nordeste”, Rio de Janeiro. 1937.

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8) HOROWITZ, Eduardo - “Judeus no Brasil - uma estranha coletividade” (em idich) – in “Nossa Contribuição”, Rio deJaneiro. 1956.9) LEITE FILHO, Solidônio - “Os Judeus no Brasil”, Rio de Janeiro. 1923.10) LOEWENSTAMM, Kurt - “Vultos judaicos no Brasil”, Rio de Janeiro. 1949.11) MORAES, Evaristo de - “Cárceres e Fogueiras da Inquisição”, Rio de Janeiro.12) NEIVA, Artur Hehl - “Estudos sobre a imigração semita no Brasil”, Rio de Janeiro. 1945.13) NEIVA, Artur Hehl - “O problema imigratório brasileiro”, Rio de Janeiro. 1945.14) PINKUSS, Frederico - “O caminho de Israel através dos tempos”, São Paulo. 1945.15) RAIZMAN, Isaac - “História dos Israelitas no Brasil”, São Paulo. 1937.16) SCHATZKY, Jacob - “Comunidades Judias in Latino america”, Buenos Aires. 1952.17) VAINER, Nelson - “Antônio José da Silva - o Judeu” (em idich) - in “Nossa Contribuição”, Rio de Janeiro. 1956.18) VIANA, Hélio - “História da Viação Brasileira”, Rio de Janeiro, 1949.19) WÄTJEN, Hermann - “Das holländische Kolonialreich in Brasilien”, Gotha. 1921.20) WIZNITZER, Arnold - “Os marranos no Brasil do século XVIII”, in “Aonde Vamos”, Rio de Janeiro. 1956.21) WIZNITZER, Arnold - “O número dos judeus no Brasil Holandês”, in “Aonde Vamos”, Rio de Janeiro. 1954.

HISTÓRIA DOS JUDEUS NO BRASILINTRODUÇÃO

A história dos judeus no Brasil constitui um caso único, pois não se conhece outro país no qual se tenham elesinstalado logo nas primícias do respectivo povo, ficando-lhe continuamente associados e participando do seu desenvolvi-mento econômico e social.

De fato, desde o descobrimento do Brasil até a época presente, os judeus, quase sem intermitência, aberta oudisfarçadamente, estiveram integrados nos processos de formação da nacionalidade brasileira.

Isso não obstante, a historiografia judaica referente ao Brasil não deve ater-se às fases e aos marcos gerais daevolução política e social do país, e sim orientar-se essencialmente segundo os fatos e acontecimentos históricos quehajam repercutido especificamente nas condições de vida individual e sobretudo coletiva dos judeus.

De acordo com tal critério, é lícito destacar quatro grandes ciclos na história dos judeus no Brasil, cada qual compor-tando diversas fases de ascensão, consolidação e declínio: 1 - O Primeiro Ciclo Português (1500-1630); 2 - O CicloHolandês (1630-1654); 3 - O Segundo Ciclo Português (1654-1822); 4 – O Ciclo Cosmopolita (1822-1966).

1 - O PRIMEIRO CICLO PORTUGUÊS (1500-1630)

Verificou-se o descobrimento do Brasil no ano de 1500, quando Portugal se achava no auge da sua expansão nomundo. Não era então somente a glória militar ou apenas o desejo de dilatar a fé católica que impeliam os portugueses àssuas grandiosas expedições marítimas. Ao lado desses motivos, ou mesmo acima deles, imperava o espírito comercial, eisque Portugal visava controlar o intercâmbio com o Levante e ambicionava concentrar em suas mãos as principais atividadeseconômicas daquela época.

Mas apenas esses motivos, por mais estimulantes que fossem, não teriam bastado para promover o extraordinárioalargamento de Portugal; o grande ciclo das conquistas portuguesas, entre elas a do Brasil, não se teria concretizado semo longo período de descobertas e aperfeiçoamentos científicos que o precedeu, e no qual tiveram papel de sumo relevo ossábios judeus ibéricos. Estes, aliás, desde o século XII, vinham se distinguindo sobremaneira nos domínios da matemáti-ca, astronomia e geografia, ciências essas básicas para a arte náutica, especialmente para a navegação oceânica, e osgovernantes portugueses aproveitaram de forma esgotante tal acervo científico israelita em prol da ascensão de Portugalà posição de grande potência naval. Assim, para a direção da “Escola de Sagres”, primeira academia portuguesa denavegação, fundada em 1412, foi escolhido um dos mais famosos cartógrafos do século XV, o judeu Jehuda Crescas, cujamissão essencial era ensinar aos pilotos portugueses os fundamentos da navegação bem como a produção e o manejo decartas e instrumentos náuticos. Mais tarde, outros judeus de renome científico prestaram sua colaboração à “Escola deSagres”, destacando-se os sábios José Vizinho, Mestre Rodrigo e, sobretudo, Abraham Zacuto, autor do “AlmanaquePerpétuo de Todos os Movimentos Celestes”.

Mas, a contribuição judaica ao descobrimento de novas rotas e de novas terras para a coroa portuguesa não se limitouao campo científico de feição preparatória, senão também se traduziu em participação direta nas temerárias viagens,

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inclusive na expedição que resultou no descobrimento do Brasil, eis que, na frota dirigida por Pedro Álvares Cabral,viajavam como conselheiros especialistas pelo menos três judeus: Mestre João, astrônomo equipado com os instrumentosde Abraham Zacuto, Pedro Nunes, navegador, e Gaspar de Lemos, intérprete e comandante de navio, justamente consi-derado pelos historiadores como co-responsável pelo descobrimento do Brasil.

Logo nos primeiros anos após a descoberta do Brasil, arrefeceu o interesse do rei de Portugal pela nova terra. A corteera naquele tempo verdadeiramente uma grande casa de negócio e como, por um lado, estivesse fundamente absorvidacom as dispendiosíssimas expedições à Índia, onde pretendia estabelecer um vasto império colonial, e, por outro lado, nãoenxergasse lucros apreciáveis e imediatos na exploração do Brasil, este ia sendo relegado a um simples ponto de ligaçãonas viagens à Índia, uma escala de refresco e aguada.

É assim de todo compreensível que, tendo o monarca D. Manoel recebido em 1502, de um consórcio de judeusdirigido pelo cristão novo Fernando de Noronha, uma proposta para exploração da nova colônia mediante contrato dearrendamento, ele a aceitasse de bom grado; era a colonização do Brasil que se lhe oferecia, para ser feita a expensas departiculares, sem riscos e sem ônus ou quaisquer encargos para o erário público. O contrato, que era um monopólio decomércio e de colonização, foi firmado em 1503, pelo prazo de 3 anos, tendo sido, com algumas modificações, sucessiva-mente renovado até 1515. A exploração concentrou-se especialmente na madeira de “pau-brasil” (também chamada na-quele tempo “madeira judaica”), artigo então grandemente procurado nos mercados europeus para as indústrias de corantes.Tão intenso se tornou o comércio do pau-brasil durante o arrendamento do país a Fernando de Noronha, e de tal importân-cia econômica ele se revestiu, que deu origem à denominação de “ciclo do pau-brasil”, sob o qual é conhecido, na históriado Brasil, aquele período, além de ter determinado a adoção do nome definitivo da terra - Brasil - em substituição ao deSanta Cruz, como era antes designada.

Admite-se que, ao lado dos objetivos comerciais, Fernando de Noronha, ao propor ao governo português o arrenda-mento do Brasil, visasse ainda facilitar o êxodo dos judeus, então perseguidos em Portugal. De qualquer forma, é doconsenso geral que, nas expedições comerciais do sindicato de Fernando de Noronha, judeus constituíram a maioria,cabendo-lhes assim o mérito de terem lançado no solo da nova pátria os primeiros marcos da civilização.

Na altura do ano de 1515, o Governo de Portugal despertou para a realidade: teria que tomar conta do vastíssimoterritório brasileiro se não quisesse expor-se ao risco de perder o comércio com ele e mesmo a soberania. Efetivamente,esse perigo existia, pois, àquele tempo, o litoral brasileiro era também freqüentado grandemente por franceses contraban-distas, que procuravam traficar com os indígenas, infringindo assim o monopólio português do pau-brasil; era visível, alémdisso, que a simples exploração localizada dessa essência florestal não poderia conduzir à colonização e ocupação danova terra.

Interrompeu então o Governo de Portugal o contrato com Fernando de Noronha e passou a tomar medidas de proteçãomilitar do território brasileiro, bem como a incentivar a sua colonização mediante a implantação da cultura da cana-de-açúcar. Mas, a despeito das expressivas facilidades concedidas pelo Governo português nessa tentativa de colonizaçãodirigida, tais como transporte, equipamentos e assistência técnica, raros eram os colonos portugueses cristãos que qui-sessem emigrar para o Brasil - provavelmente em virtude da atração que sobre eles continuava a exercer a Índia - razãopor que, ao lado de criminosos, condenados ou exilados, se destacaram os voluntários judeus, que constituíam a maioriadas levas imigratórias.

Verifica-se, assim, que, não apenas no descobrimento e nas primeiras explorações do Brasil, mas também na coloni-zação inicial do país, parece ter cabido aos judeus uma honrosa participação fundamental.

Com os crescentes incentivos do Governo português à ocupação e ao povoamento do território brasileiro - inclusiveatravés da sua divisão, entre os anos de 1534 e 1536, em 14 capitanias hereditárias, entregues a donatários - , novosmotivos de estímulo foram se apresentando para a vinda de judeus ao Brasil. Os donatários, desejosos de imprimir pros-peridade às suas capitanias, porfiavam em atrair colonos, mas, ainda desta feita, os portugueses cristãos preferiam aÍndia, cujos efeitos atrativos perduravam. Não restava aos donatários senão recorrer mais uma vez aos judeus, que, aliás,se revelaram excelentes colonizados: estavam familiarizados com a indústria do açúcar, que já vinha sendo, desde muitosanos antes, a ocupação preferencial dos judeus das ilhas da Madeira e de São Tomé - de onde provavelmente foi a cana-de-açúcar transplantada para o Brasil - e, além disso, eram os colonos judeus hábeis no trato com o gentio, a cujos hábitose língua logo se adaptavam, passando a contar depressa com a sua amizade. Assim, as possibilidades de progresso dascapitanias dependiam em bom grau dos judeus, e, graças a essa circunstância, puderam eles gozar de bastante liberdadede costumes. E mesmo quando, depois de 1548, se implantou no Brasil um novo sistema de governo - o dos GovernosGerais -, a situação favorável dos judeus não sofreu qualquer alteração, muito embora na mesma ocasião se fixassem nopaís os jesuítas. As condições eram tais que as autoridades se viram forçadas a uma política de transigência e cautela. Na

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contingência de ou perderem as esperanças de colonização do Brasil, ou levarem a bom termo a missão de que seachavam incumbidas, optaram pela segunda alternativa e, para tanto, tiveram que fazer tábua rasa das exigências daInquisição. Esse panorama de tolerância contrastava vivamente com a onda de ódio e discriminação que varria Portugal,onde crepitavam sem cessar as fogueiras dos autos de fé. É assim compreensível o efeito que entre os judeus de Portugaldeviam exercer as notícias ali chegadas sobre a vida judaica no Brasil.

Tangidos pela fúria avassaladora da perseguição religiosa, sentiam-se os judeus de Portugal impelidos a tentarvida nova no Brasil, que se lhes afigurava como refúgio seguro, onde poderiam concretizar-se os seus anseios depaz e liberdade.

Em tais condições, tudo favorecia o estabelecimento de uma intensa e ininterrupta corrente migratória de judeusportugueses para o Brasil, onde, prosperando rapidamente, passaram a formar numerosos núcleos, dando mesmo inícioa uma razoável vida coletiva, como o testemunham referências encontradas sobre uma sinagoga que funcionava numacasa de propriedade do cristão novo Heitor Antunes, na cidade de Salvador - sede do Governo Geral - e sobre uma outraque fazia parte de um centro marrano em Camaragibe, capitania de Pernambuco, capitania que chegou a contar com um“rabi” - o cristão novo Jorge Dias do Caia.

Essa situação bonançosa dos judeus brasileiros, nos meados do século XVI, pôde concretizar-se em virtude da exis-tência dos principais fatores que permitem a evolução de uma comunidade minoritária: havia “suficiência numérica”, tendoos judeus, graças à intensa imigração e ao crescimento natural, alcançado uma proporção razoável em confronto com apopulação geral, o suficiente para se opor ao risco de assimilação; havia “refrescamento imigratório”, pois o processo deimigração era contínuo, e as sucessivas levas de judeus portugueses exerciam um papel reativante, contra aculturativo;finalmente, havia “liberdade de culto”, com tolerância bastante para que os judeus mantivessem abertamente suas práti-cas religiosas, ainda que algo sincretizadas com o catolicismo.

Entretanto, por volta de 1570, passou a toldar-se o horizonte judaico no Brasil, até então sereno.Começaram a surgir sinais de restrição à liberdade, que com o tempo se avolumaram, fazendo definhar a vida coletiva

dos judeus - justamente quando parecia aproximar-se a sua consolidação - e forçando os judeus a retornarem, qual na suamãe pátria, a uma vida disfarçada, de forma a guardarem as tradições apenas no recesso da família e assim mesmo coma devida cautela.

A primeira manifestação oficial de intolerância verificou-se em 1573, na cidade do Salvador, onde foi instalado um autode fé. Paradoxalmente, mas talvez de propósito, não era israelita a primeira vítima: era um francês que, acusado deheresia, foi condenado e queimado vivo. O balão de ensaio não surtiu, porém, os esperados efeitos junto à opinião pública,pelo que a Inquisição teve que encerrar pouco depois a sua nefanda tentativa.

Alguns anos decorridos, entretanto, ela reiniciou a conspirata, até que, em 1591, veio ao Brasil a missão conhecidacomo “Primeira Visitação do Santo Ofício às Partes do Brasil Pelo Licenciado Heitor Furtado de Mendonça”. Na Bahia,permaneceu a Inquisição durante dois anos, até 1593, seguindo então o Inquisidor para Pernambuco, ltamaracá e Paraíba,onde ficou até 1595.

Em 1618, a Bahia foi alvo de uma nova visitação do Santo Ofício, que ficou a cargo do Inquisidor de Évora, o Bispo D.Marcos Teixeira. Diante dessas comissões inquisitoriais, que, aliás, se limitaram ao Nordeste do Brasil, foram denunciadosinúmeros marranos, entre eles muitos senhores de engenhos de açúcar, fato que propiciou o primeiro movimento migrató-rio interno dos judeus Brasileiros, os quais abandonaram o Nordeste em busca do Sul, especialmente da capitania de SãoVicente (São Paulo), que era a parte mais liberal do país. Não se sabe ao certo dos motivos das duas visitações do SantoOfício ao Brasil. É todavia de se presumir que tivessem fundo político, receosa como se achava a coroa portuguesa de queos cristãos novos brasileiros viessem a ajudar a Holanda, que então cobiçava conquistar o Brasil. Tal suspeita tinha certofundamento. Com efeito, em virtude das crescentes perseguições aos judeus em Portugal nas últimas décadas do séculoXVI, eles passaram a emigrar, não só para o Brasil, mas também, em grandes levas, para vários países da Europaocidental, sobretudo para a Holanda, onde florescia o comércio e reinava tolerância religiosa, o que permitiu a célereformação de uma ampla comunidade israelita, com centro na cidade de Amsterdã, justamente cognominada de “NovaJerusalém”. E é certo que essa simultânea emigração dos judeus portugueses, para o Brasil e para os Países Baixos,propiciou o estabelecimento de um elo comercial e afetivo entre os judeus brasileiros e os judeus portugueses da Holanda.

Desiludidos que se achavam com a mãe-pátria - onde seus parentes e correligionários sofriam privações e persegui-ções tremendas -, e já agora decepcionados com o próprio Brasil português, onde tudo a princípio parecia sorrir-lhes, masonde passavam a acumular-se indícios hostis, os judeus brasileiros, instintivamente, na procura de algum outro ponto deapoio, sentiam-se impelidos a um intercâmbio cada vez mais estreito com os judeus portugueses residentes na Holanda,onde a liberdade, nos fins do século XVI, era absoluta em todos os terrenos.

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Era a possibilidade que eles vislumbravam de vir a ser melhorada a sua sorte graças à conquista do Brasil por umaoutra potência - no caso, a Holanda!

2 - O CICLO HOLANDÊS (1630-1654)

A esperança dos judeus do Brasil de que a sua sorte melhoraria graças a alguma forma de intervenção holandesa nãofalhou. Finalizando uma série de tentativas de conquista do Nordeste brasileiro, através de invasões da Bahia, nos anos de1624 a 1627 - a primeira das quais inicialmente favorável, pois conseguiram dominar a cidade do Salvador por quase umano -, os holandeses afinal lograram seu intento em 15 de fevereiro de 1630, quando atacaram Pernambuco com umapoderosa esquadra de 70 navios, tripulada e guarnecida por 7000 homens, e assim iniciaram a ocupação do Nordeste, aqual iría durar até 1654.

Foram poucos os anos de domínio holandês pacífico, mas bastaram para que os judeus, numa rapidez impressionan-te, alçassem a um nível excepcional a sua vida econômica, social e cultural, dentro do arcabouço de uma organizaçãocoletiva, vindo a constituir no Nordeste do Brasil uma comunidade das mais florescentes do mundo de então.

Antes da conquista holandesa, os judeus brasileiros exerciam, em larga escala, as atividades de plantadores deaçúcar, mas os donos de engenho representavam apenas uma percentagem razoável, e os magnatas não passavam deuma escassa minoria.

No mais, a colônia judaica era constituída de pequenos comerciantes e de profissionais manuais mal remunerados.Com o advento dos holandeses e a decorrente implantação de uma grande tolerância religiosa, o panorama foi se alteran-do. Levas ininterruptas de judeus afluíam a Pernambuco de vários países, especialmente da Holanda, trazendo cabedais,experiência comercial e um prodigioso espírito de realização. Esses judeus vindos da Holanda - e que em grande parteeram ex-refugiados de Portugal, Espanha e França - tinham a vantagem de falar vários idiomas: espanhol, francês, ladino,holandês, afora o mais importante, o português, que era a língua falada no Brasil; era-lhes fácil assim servir de intérpretespara os milhares de homens do exército e da marinha holandesa, constituídos de mercenários - holandeses, ingleses,franceses, alemães, polacos e outros - que não falavam o português. De simples intérpretes, foram rapidamente passandoa cambiadores e comerciantes, de um modo geral a intermediários, profissão que se tornou quase monopólio dos judeus,com eles não podendo competir os pequenos negociantes e operários brasileiros e flamengos. Não tardou que os judeusse tornassem grandes proprietários urbanos e rurais, passando a controlar a vida econômica da Nova Holanda brasileira,merecendo lembrar, como testemunho disso, que a principal rua do Recife era conhecida como “Rua dos Judeus” e o portoera chamado “cais dos judeus”.

Paralelamente com a prosperidade econômica dos judeus no Brasil holandês, desenvolveu-se com vigor a sua vidacoletiva. Para tanto, contribuiu fundamentalmente a liberdade de culto implantada pelos holandeses, sobretudo durante ogoverno do conde Maurício de Nassau, no período de 1635 a 1644.

Havia ainda, como circunstância essencial, o crescimento contínuo e sensível da população judaica e sua concentra-ção preponderante numa área restrita, em torno da cidade do Recife. Esse crescimento populacional resultou principal-mente da intensa imigração oriunda da Holanda, de cujo porto Amsterdã partiam constantemente naus carregadas dejudeus e conversos, sendo que, só de uma feita, em 1642, embarcaram 600; mas, aos imigrantes do estrangeiro, cabetambém acrescentar os judeus que, de outras partes do próprio Brasil, vinham para Pernambuco, em busca de liberdadereligiosa. Não se sabe exatamente o número de judeus no Brasil holandês, variando as estimativas entre 1.500 e 5.000;mas, admite-se que, no apogeu do desenvolvimento da comunidade judaica da Nova Holanda, os judeus representavamcerca de metade da população branca civil, e no Recife havia judeus em tamanho número que, à primeira vista, se tinha aimpressão de uma cidade puramente judaica. Para se ter uma idéia da importância de que, naquele tempo, se revestia umnúcleo israelita de 1.500 almas, segundo a menor das referidas estimativas, basta lembrar que a própria comunidadejudaica de Amsterdã, no seu pleno fastígio, não era mais numerosa.

Ao alcançarem a forma de coletividade organizada, os judeus de Pernambuco contavam com duas sinagogas e umcemitério próprio, e possuíam uma comunidade sagrada - Kahal Kadosh - chefiada por uma diretoria, sendo conhecidos oscomponentes de uma delas: David Senior Coronel, Dr. Abraham de Mercado, Jacob Mucate e Isaac Castanho. Havia aindaa Congregação Zur Israel (A Rocha de Israel) do Recife, que mantinha um “Pinkes” (livro de atas) e baixava “haskamot”(regulamentos). Assim, os “regulamentos” revistos em 1648 estabeleciam que todos os judeus residentes no “Estado doBrasil” e todos os futuros imigrantes tornavam-se automaticamente membros da Comunidade Judaica e deviam inscreveros nomes no “Pinkes”, como demonstração de que aceitavam os regulamentos. Também na ilha de Itamaracá, havia umacomunidade organizada, e era presidida por um rabino próprio, Jacob Lagarto, que foi, aliás, o primeiro escritor talmúdico

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na América do Sul.Em tal ambiente de segurança e de organização coletiva, a consciência de grupo avultou, chegando as festas judaicas

a ser celebradas publicamente com procissão nas ruas. O auge desse desenvolvimento sócio-cultural foi atingido pelosjudeus de Pernambuco em 1642, quando providenciaram a vinda da Holanda de um insigne líder espiritual, Isaac Aboabda Fonseca, que veio acompanhado do “hazan” Moisés Rafael de Aguiar. Isaac Aboab permaneceu à testa da comunidadejudaica do Brasil até o fim do domínio holandês, tendo desenvolvido um vasto programa de trabalhos, rabínicos e sociais,sem prejuízo da atividade literária, da qual é testemunho a obra “Miiméi Iehuda” que ele escreveu em colaboração comMoisés Rafael de Aguiar, e que tratava da vida cultural dos judeus brasileiros.

Em 1645, tendo Maurício de Nassau deixado o governo, entrou em fase de declínio a vida judaica no Brasil, fase queiría terminar um decênio mais tarde com a melancólica liquidação da pujante comunidade que se havia erguido - aparen-temente com tanta solidez - no Nordeste do Brasil.

A saída de Nassau favoreceu sobremodo o nascimento da insurreição pernambucana, pois, em substituição a essenotável estadista, que havia logrado granjear as simpatias gerais da população, ficara a administração do domínio holan-dês entregue a um triunvirato composto de indivíduos completamente incapazes, que não tardaram a implantar um regimeopressor e tirânico.

Os judeus de Pernambuco cedo deram-se conta do que a nova situação viria representar para eles. Previram facil-mente que, sem a política tolerante e apaziguadora do príncipe de Nassau, seria inevitável o enfraquecimento e queda dodomínio holandês, ficando eles irremediavelmente expostos à sanha dos insurrectos pernambucanos. Em vista disso,iniciaram o processo de retorno à Holanda, tendo emigrado em alguns anos cerca da metade da população judaica,sobretudo os negociantes mais ricos.

O comércio começou então a decair, o dinheiro passou a escassear, e as tropas já se recusavam a combater, chegan-do mesmo a, mediante suborno, desertar para o exército português, que, em verdadeiro contraste, possuía moralelevadíssimo. Para agravar a situação, a Holanda, que então se achava em guerra com a Inglaterra, não podia prestar anecessária ajuda à colônia decadente, e os reforços, que todavia lhe mandava, eram insuficientes e extemporâneos.

Embora a conjuntura se apresentasse nitidamente desfavorável aos holandeses, os judeus que permaneceram emRecife - cerca de 700 - resignaram-se a aguardar até o último instante o desfecho da luta, ficando fielmente ao lado dosholandeses e com eles compartilhando de todos os horrores do longo cerco da cidade. Sobre essa atitude de inteirafidelidade, assumida pelos judeus remanescentes de Recife - no mesmo sentido da anterior solidariedade judaica, de-monstrada por ocasião das invasões holandesas - não faltam pronunciamentos desfavoráveis. Há, com efeito, quem aconsidere uma espécie de deslealdade ao Brasil, é um erro que cabe corrigir. Merece notar desde logo que o Brasil nãoestava propriamente em jogo.

Aos judeus impunha-se escolher entre dois ocupantes, entre duas potências estrangeiras: Portugal e Holanda.De um lado - o país que perseguia, expulsava e queimava vivos os judeus; do outro - a nação que agia para com os

judeus, tanto na metrópole como nas colônias, com a maior tolerância religiosa. De um lado - a Inquisição e os autos de fé;do outro - a liberdade de consciência. Entre os dois senhores, não havia outra possibilidade de escolha!

E aliás, procedendo como procederam, os judeus guardaram uma linha de impecável coerência. Eles que,por todas as formas a seu alcance, ajudaram os holandeses a conquistar o Nordeste brasileiro, na esperança,não desmentida, de obterem no Brasil um lar tranqüilo, não poderiam abandonar os aliados e protetores davéspera no momento em que a sorte começava a faltar-lhes. Tal como souberam os judeus da Nova Holandaarmar os seus sonhos - que chegaram a ver em boa parte realizados -, também mostraram saber suportar a suaruína, lutando bravamente até a queda final da sua cidadela, com o que se haveria de encerrar o ciclo maisfastigioso, embora efêmero, da vida judaica no Brasil colonial.

3 - O SEGUNDO CICLO PORTUGUÊS (1654-1822)

Com a queda de Recife e subseqüente capitulação dos holandeses, entrou em plena desagregação a comunidadeisraelita do Nordeste do Brasil.

Uma pequena parcela resignou-se à permanência no país, dispersando-se pelo seu território, enquanto o grossooptou pela emigração. Destes, um grupo - constituído provavelmente dos mais ricos e mais relacionados na Holanda -decidiu retornar a esse país, ao passo que a maioria preferiu enfrentar o desconhecido, aventurando-se em direção dasmais longínquas paragens das três Américas - Guianas, Antilhas e Nova Holanda norte-americana -, onde lançaram aafirmação pujante de sua vitalidade, contribuindo eficazmente para o desenvolvimento econômico de várias colônias

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francesas, inglesas e holandesas, e nelas implantando numerosas aglomerações judaicas, uma das quais viria a sernos tempos modernos a extraordinária comunidade israelita dos Estados Unidos da América do Norte. Nas Guianas, osjudeus fugitivos fixaram-se de começo em Caiena e, mais tarde, em Suriname, onde organizaram uma comunidadeduradoura, que chegou a contar mais de 1.300 almas; seu núcleo mais importante – com 1.045 judeus numa populaçãode 2.000 - ficava nos arredores de Paramaribo e era conhecido como “Savana Judéa”. Nas Antilhas, distribuíram-seentre a Martinica, Guadalupe, Barbados, Jamaica e São Domingos, dedicando-se à sua tradicional ocupação - a indús-tria açucareira. Graças a esse concurso dos judeus foragidos do Brasil, conseguiu a América Central estabelecer o seumonopólio no mercado mundial do açúcar, monopólio esse que antes estava nas mãos do Brasil. Forneceram, assim,aqueles judeus às colônias centro americanas os elementos de riqueza que, por influência da desastrada política dosmonarcas portugueses, o Brasil desprezara!

Na América do Norte, um grupo de 23 judeus, que deixou Recife logo depois da sua queda, acampou, em 12 desetembro de 1654, à margem do Hudson, na aldeia de Nova Amsterdã (atual Nova York), então capital da Nova Holanda.Vencendo toda a sorte de dificuldades opostas pelo governador da colônia, o autocrata e anti-semita Pierre Stuyvesant,os judeus originários do Brasil foram se radicando na nova pátria, crescendo em número, organizando-se em comuni-dade e disseminando-se pelo país, onde, com o correr dos séculos, viria desenvolver-se a maior das coletividadesisraelitas do mundo.

Como já foi mencionados o êxodo que se verificou após a expulsão dos holandeses não abrangeu a totalidade dapopulação judaica do Nordeste dos Brasil, tendo um bom número de marranos resolvidos permanecer na terra que haviamaprendidos a amar. E uma vez apagados os primeiros ressentimentos, puderam esses judeus remanescentes difundir-sepacificamente pelo território brasileiro, inclusive em áreas do próprio Nordeste, reduzindo ao mínimo as aparências da suaorigem judaica.

Acresceu que, após a morte do rei D. João IV em 1656, a Inquisição fez recrudescer as perseguições aos judeus emPortugal, culminando com a promulgação da lei de 9 de setembro de 1683, que determinava a expulsão dos cristãos novose a aplicação da pena de morte aos que voltassem ao país. Esse fato contribuiu para que se intensificasse a transmigraçãode cristãos novos portugueses para o Brasil, cuja população judaica pôde, assim, não somente recompor-se do tremendoabalo sofrido com a desagregação pós-holandesa, mas ainda experimentar um razoável crescimento numérico.

Mas essa acomodação, tão bem levada a efeito pelos judeus brasileiros na segunda metade do século XVII, nãologrou transpor o umbral do século seguinte, quando, afinal, a Inquisição de Lisboa, cujas garras até então mal haviamconseguido arranhar a população judaica do Brasil, acabou estendendo sobre este país a sua implacável rede de perse-guições. A sanha natural dos inquisidores viu-se atiçada pelas renascidas perspectivas de maciços confiscos, eis que osjudeus brasileiros, graças ao seu ajustamento econômico operado na parte final do século XVII, e ao posterior enriqueci-mento em conseqüência da intensa exploração das minas de ouro e do comércio de diamantes no começo do século XVII,haviam voltado a constituir uma parcela das mais opulentas da colônia.

Essa onda de terror que, com algumas intermitências, se desdobrou por longos 70 anos, com especial virulêncianos períodos de 1707 a 1711 e 1729 a 1739, conferiu à primeira metade do século XVII as características de épocanegra da história dos judeus no Brasil. E somente após 1770, começaram a criar-se condições outras, que viriamextirpar para sempre o cancro da Inquisição, que tanto manchara a história de Portugal e tanto fizera decair essegrande império dos tempos manoelinos. (*) (*) Entre as vítimas brasileiras da Inquisição Portuguesa, no fase da suamais nefanda atuação, figura Antônio José do Silvo, cognominado “O Judeu”, e tido como uma das maiores expressõesda genialidade judaico-brasileira.

Nascido no Rio de Janeiro em 1705, transladou-se aos oito anos de idade para Lisboa, onde se achava a sua mãe,levada prisioneira pelos agentes da Inquisição sob a acusação de judaísmo. Cedo começou Antônio José a revelar os seusexcepcionais dotes de inteligência, aliados a um invulgar pendor literário, e em poucos anos enriqueceu a literatura portu-guesa de numerosas peças teatrais de singular valor. Como dessas peças extravasasse com freqüência um sarcasmosem rebuços contra a torpe atividade da Inquisição, esta o marcou e não mais descansou no afã de eliminá-lo. E não tendoconseguido fazê-lo calar-se por meio de uma série de intimidações, acabou enredando-o numa complicada trama dedenúncias e falsos testemunhos e, afinal, condenando-o a pena capital em 11 de março de 1739. Em 21 de outubro domesmo ano, foi Antônio José do Silva queimado, na praça pública, não tendo faltado sequer alguns requintes de cruelda-de: foram obrigadas a assistir ao ato - a sua mãe, sexagenária, sua mulher e sua filha de quatro anos.

Até hoje não se sabe ao certo quantos judeus oriundos do Brasil caíram vítimas da Inquisição de Portugal. Há quemavalie em apenas 400 o número dos judaizantes brasileiros processados, dos quais não mais de 18 teriam sofrido a penacapital; mas essas hão de ser cifras por demais modestas, longe de darem uma idéia exata da extensão que na verdade

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a tragédia assumiu, pois que, ainda hoje, permanecem inexplorados, nos arquivos da Torre do Tombo, em Lisboa, 40.000processos da Inquisição, cuja investigação revelaria certamente à História toda a hediondez dessa fanática instituição.

Em 1770, a vida judaica no Brasil passou a beneficiar-se de um liberalismo crescente como reflexo das mudançashavidas em Portugal, onde a Inquisição acabava de entrar em seus últimos estertores, golpeada de morte pelo clarividentee poderoso ministro Sebastião José de Carvalho e Melo, mais conhecido como Marquês de Pombal. O ato decisivo,conseguido pelo Marquês junto ao rei D. José I, foi a promulgação, em 25 de maio de 1773, de uma lei que extinguiu todasas diferenças entre cristãos velhos e cristãos novos, lei essa que, um ano mais tarde, em 1° de outubro de 1774, foiregulamentada por um decreto que passou a sujeitar os veredictos do Santo Ofício à sanção real.

A repercussão das disposições pombalinas no Brasil foi automática e eficaz. Após setenta anos de perseguiçõestremendas, estavam os judeus e cristãos novos brasileiros ansiosos de se igualarem aos demais habitantes do país, eo liberalismo da nova lei foi um franco estímulo a esse anseio de assimilação. Bem entendido, tal processo de integraçãonão se fez de pronto, nem de maneira cabal, pois que não desaparecera a desconfiança com relação às reviravoltaspolíticas da coroa portuguesa. Foram necessários 50 anos para que, alcançada a Independência do Brasil em 1822, epromulgada a Constituição de 1824, desaparecesse, pela via aberta da assimilação, o problema judaico brasileiro degênese portuguesa.

É oportuno lembrar que foi marcante a contribuição dos próprios judeus brasileiros para o movimento emancipadorque viria trazer a sua extinção como grupo pela completa integração na coletividade nacional.

Sirvam de testemunho as palavras do grande historiador brasileiro Adolfo Varnhagen: “Os judeus foram os pioneirosda Independência do Brasil. A sua valiosa contribuição, a sua tenacidade de raça eleita, de povo perseguido, constituíramos alicerces onde colocou-se o lábaro ardente da esperança da libertação do Brasil do jugo da mãe-pátria.”

4 - O CICLO COSMOPOLITA (1822-1966)

Uma vez emancipado o país, e implantada liberdade integral de consciência, nada mais restava que pudesse susten-tar a sobrevivência coletiva dos judeus, os quais, tão logo perceberam que desta vez a liberdade viera em caráter duradou-ro, cortaram as últimas e débeis amarras que os prendiam ao passado judaico e difundiram-se rapidamente no seio dapopulação geral.

O único fator que, nessa conjuntura, talvez ainda lograsse reacender a chama pretérita e preservar aqueles judeus daassimilação total teria sido uma imigração maciça e homogênea de judeus de nível cultural elevado e de tradições afins.Mas, essa possibilidade única inexistiu de todo, pois que, depois da Independência, enfraqueceu de muito o movimentoimigratório no Brasil, sendo que a imigração judaica praticamente se anulou.

Cabe, apenas, abrir um parêntese para uma exceção verificada no extremo norte do país. Logo após a Independência,principiaram a afluir para a Amazônia judeus provenientes do Marrocos. Tratando-se de uma imigração de origem nova,sem qualquer afinidade histórica ou cultural com a população brasileira da região, fácil e cômodo foi a esses judeusmarroquinos conservarem sua religião e tradições, cedo vindo a fundar, no ano de 1824, uma sinagoga de nome “Porta doCéu”, na cidade de Belém.

Essa aglomeração judaica da Amazônia, que com o decorrer dos anos foi sendo ampliada de maneira contínua comelementos oriundos da mesma região norte-africana, disseminou-se pelos pontos estratégicos do grande rio, passando adesempenhar um papel relevante no desenvolvimento econômico da região, bem como no intercâmbio comercial com oestrangeiro. Entretanto, o agrupamento judaico da longínqua Amazônia, isolado cultural e materialmente das regiões vitaise mais adiantadas do país, não podia, evidentemente, exercer qualquer influência sobre o judaísmo indígena que, deresto, já havia entrado então na sua fase de total oclusão. E assim, durante a primeira metade do século XIX, coube àremota e minúscula comunidade israelita-marroquina da Amazônia - que mal contaria duas centenas de almas - o papel desustentáculo único da continuidade judaica no Brasil.

Entretanto, no limiar da segunda metade do século, começou a modificar-se a situação. Sem prejuízo do prossegui-mento da migração judaica norte-africana para a região amazônica, foram chegando ao Rio de Janeiro - de onde irradia-vam para os Estados vizinhos, especialmente para São Paulo e Minas Gerais - judeus procedentes de vários países daEuropa Ocidental - franceses, ingleses, austríacos e alemães, sobretudo alsacianos - a tal ponto que, em 1857, já sentirama necessidade de fundar uma sinagoga na capital do país. As duas aglomerações - a da região amazônica e a do Rio deJaneiro - não mantinham entre si quaisquer relações de grupo e apresentavam, aliás, características diferentes.

A coletividade amazônica era mais estável, eis que os judeus marroquinos vinham para o extremo norte do Brasilcom a intenção de ali se radicarem, tendo eles, em conseqüência, alargado com o tempo o seu campo de atividades, de

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molde a abranger não somente o comércio interno e o de exportação e importação - este especialmente de tecidos -mas também o setor da navegação e da exploração de seringais, afora a participação nas atividades públicas e noexercício de cargos oficiais.

Já no Sul, os judeus, originários do oeste europeu, vinham antes com o objetivo de prosperar e de em seguidaregressar aos países de origem, embora muitos acabassem permanecendo no Brasil, ou porque não houvessem logradoo desejado enriquecimento rápido, ou porque já se sentissem dominados pelo apego à nova terra. Em face daquelapredisposição inicial, limitavam-se os judeus dos Rio de Janeiro e dos Estados vizinhos às ocupações comerciais, semnenhuma tentativa de integração em outras atividades econômicas, de feição mais estável e caráter mais fundamental, emuito menos procuravam imiscuir-se na vida pública do pais.

Na última década do século XIX e durante a primeira do século XX - 20 anos estes que constituem a verdadeira fasepré-imigratória moderna - a imigração judaica cresceu de vulto, multiplicando-se os países de procedência e também asregiões em que os imigrantes passavam a fixar-se no Brasil.

Enquanto, até então, os imigrantes judeus provinham quase exclusivamente do Norte da África e do Ocidente euro-peu, já agora passaram a chegar também levas de judeus do Mediterrâneo Oriental - Grécia, Turquia, Síria, Líbano ePalestina - bem como da Rússia e países vizinhos, localizando-se de preferência na zona sudeste do país - Rio de Janeiro,São Paulo e Minas Gerais - mas também se disseminando, em pequenos núcleos, por muitos outros Estados, tanto do Sulcomo do Nordeste.

Não obstante o caráter rapsódico da imigração judaica nessa fase (1890-1910), alguns pontos peculiares podemser estabelecidos:

1) No extremo sul do país, a comunidade judaica originou-se de uma tentativa de colonização empreendida pela JCA(Jewish Colonization Association), a qual, na primeira década do século XX, adquiriu terras no Rio Grande do Sul e nelasinstalou colonos trazidos principalmente da Rússia. Ao contrário do que ocorreu na Argentina, a iniciativa da JCA no Brasilnão logrou seu objetivo, em boa parte devido à má escolha da região, tanto que, em poucos anos, as colônias Philipson eQuatro Irmãos viram-se abandonadas pelos colonos, que foram trocando a agricultura pelo comércio nas vilas e cidadespróximas, acabando por se concentrarem na capital do Estado, a próspera cidade de Porto Alegre, onde com o tempo sedesenvolveu uma significativa coletividade judaica - a terceira do país.

2) Nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo, a parcela mais substancial dos imigrantes proveio de uma pequenaregião do sul da Rússia, mais precisamente, da parte norte da Bessarábia; é, assim, historicamente justo reconhecer osimigrantes bessarabianos do início do século XX como grupo germinativo da coletividade judaica moderna do Brasil.

3) O quadro das principais concentrações israelitas do Brasil, no ano de 1910 - ás vésperas do início da vida judaicaorganizada no país - pode ser apresentado nestes termos sucintos: no extremo norte – o agrupamento da Amazônia,datando de 1822, isolado e conservantista, de origem norte-africana; no extremo sul - o conjunto de colônias judaicas doRio Grande do Sul, com imigrantes de origem russa; e no sudeste - o possante binário Rio de Janeiro - São Paulo, comnumerosos núcleos satélites, resultante de uma imigração cosmopolita.

Conquanto ainda não existissem quaisquer ligações de grupo mais firmes entre essas diversas aglomerações judai-cas, é entretanto fato digno de registro que em 1910 já existia no Brasil uma coletividade judaica em potencial, quepraticamente abarcava todo o território nacional; uma rica infra-estrutura, sobre a qual viriam em breve apoiar-se as vastase homogêneas ondas imigratórias do leste europeu - Bessarábia, Ucrânia, Polônia, Lituânia, Romênia - consolidadoras damoderna coletividade israelita do Brasil (*). (*) O quadro da população judaica do Brasil, na começo do Século XX, ficariaincompleto se não fosse mencionada a existência então, no Rio de Janeiro, e também em São Paulo, de fortes contingen-tes israelitas de categoria inteiramente distinta, quer no tocante aos motivos da sua imigração, como no referente ao seugênero de ocupação. Trata-se dos judeus ligados ao mercado do meretrício, o ominoso “tráfico das brancas” que operavadentro do quadro de uma grande organização internacional. Socialmente isolados pela coletividade judaica nascente, quecom eles não queria ser confundida, esses elementos marginais - chamados tméim (impuros) e também linke (esquerdos)– não tiveram oportunidade de contribuir para a formação da moderna comunidade israelita do Brasil, sendo que, depoisde 1930, sobretudo por motivos de repressão legal, eles foram rareando e afinal desaparecendo, sem deixar vestígios.

Em 1911 é que teve verdadeiramente início a vida judaica organizada no Brasil, em seu ciclo moderno. No Rio deJaneiro, foi fundada, no referido ano, uma sinagoga - Bet Iacov; no ano seguinte - a sociedade de “Ajuda Fraternal”Achiezer; em 1913, a organização sionista Tiferet Zion; e em 1916 - o Comitê em prol das Vítimas da Guerra, bem como aBiblioteca Sholem Aleichem - esta de se considerar a primeira instituição cultural judaica do Brasil - afora outras associa-ções de menor vulto. Em São Paulo, na mesma época, foi fundada, em 1912, a Comunidade Israelita; em 1915 - aSociedade Beneficente Feminina; e em 1916 - a Instituição Beneficente “Ezra”, a Biblioteca Judaica, o centro sionista

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“Ahavas Zion”, e o Comitê de Auxilio às Vítimas da Guerra. Também em Porto Alegre foram, no correr da segunda década,criadas várias instituições religiosas, filantrópicas e educacionais, merecendo-se destacar a fundação, em 1915, dos pri-meiro órgão de imprensa judaica no Brasil, um semanário redigido em idish, sob o nome de “Di Mentshait” (A Humanida-de). Cabe, finalmente, mencionar ainda a cidade de Curitiba, onde, já em 1913, a reduzida população judaica se organizouem torno de um centro social.

Mas, se foi tão dinâmica a atuação organizacional judaica ao longo do segundo decênio do século, é certo que nume-ricamente a coletividade permaneceu pequena, e só depois de terminada a Primeira Guerra Mundial é que a imigraçãoteve um forte incremento, de um lado porque então já se desvanecera entre os judeus brasileiros a aspiração de regressarà Europa, pelo que mandavam buscar seus parentes para aqui se radicarem, e do outro lado porque, naquela altura, ogoverno americano havia imposto severas restrições à imigração nos Estados Unidos. Sobretudo no decorrer do período1920-1930, foram ininterruptas as levas de imigrantes judeus vindos da Europa oriental, circunstância que deu extraordi-nário impulso á vida coletiva judaica no Brasil; com singular entusiasmo, foram sendo criadas, inclusive nas cidadesmenores, instituições de toda sorte - sinagogas, escolas, sociedades beneficentes, bibliotecas, centros sociais, clubesjuvenis, grupos dramáticos e órgãos de imprensa.

Quanto ao campo educacional - muito ajudado pela JCA - basta mencionar que, ao findar a terceira década do século,havia funcionando no país nada menos que 27 escolas judaicas. No setor da imprensa, há a assinalar, naquele período, osurgimento dos jornais Dos Idishe Vochenblat (Semanário Israelita), fundado em 1923, Di Idishe Folkstzaitung (A GazetaIsraelita), em 1927, órgão de elevado gabarito, e Di Idishe Presse (A Imprensa Israelita), em 1930, todos surgidos no Riode Janeiro, e A Gazeta Israelita, fundada em 1931, em São Paulo. E mesmo a produção literária eclodiu nesse período comlivros de poesias e contos, em hebraico e idish.

Cabe ressalvar apenas que a situação econômica da coletividade judaica não acompanhou esse surto surpreendenteda sua vida sócio-cultural, e isto, em parte, por causa dos reflexos da depressão mundial. Com exceção de uma parcelaque se encaminhou para a indústria (têxtil, de confecções e de móveis), especialmente em São Paulo, e para o comérciovarejista (tecidos e móveis), o resto, ou seja a grande maioria dos imigrantes, dedicou-se ao comércio ambulante (klientéle),ramo este trabalhoso e de rendimento em geral discreto.

No ano de 1933, a vida judaica penetrou em nova fase, tumultuária e decadente. Como fator mais ponderável, é de seapontar o regime restritivo à imigração, instituído em 1931. Sem o constante refrescamento imigratório que caracterizou odecênio anterior, só a inércia fez com que a vida coletiva judaica ainda prosseguisse viçosa por mais uns poucos anos. Emacréscimo, sobreveio no ano de 1933 o movimento nazista, cujo espectro acabou atingindo as plagas do Brasil; fascinadospelo prestígio alemão, alguns componentes de um partido brasileiro quiseram, numa imitação ingênua, disseminar peloBrasil o mito racial, mas, mesmo então, com todas as condições conjunturais favoráveis, tanto no país como no campointernacional, a tentativa fracassou redondamente, por falta de ressonância da parte do povo.

Liberta dos sobressaltos provocados por esse ensaio anti-semita, a coletividade judaica passou, entretanto, a sofreros efeito de certos atos legais restritivos às atividades de estrangeiros em geral, um de tais atos, baixado em 1939,exigindo que os jornais em língua estrangeira inserissem a tradução dos artigos publicados, e o outro, em 1941, interditan-do totalmente a publicação de jornais em línguas estrangeiras; além disso, ficou praticamente proibido usar o idish nasreuniões e assembléias.

Amordaçada, assim, a imprensa idish - embora sem intenção específica - e freada a liberdade de reunião, a vida socialjudaica ficou por vários anos reduzida a atividades religiosas e beneficentes, cabendo mencionar a este respeito o valiosoconcurso trazido pelos imigrantes judeus alemães, que começaram a afluir ao Brasil depois de 1933, e que, com muitaeficiência, organizaram suas próprias instituições.

Resta entretanto ressalvar que a educação judaica não decaiu de ritmo durante essa fase sombria, o mesmo se dandocom a produção literária, que prosseguiu razoavelmente nas suas proporções discretas.

E quanto à imprensa judaica, que teve, lamentavelmente, silenciados os seus órgãos em idish, há a assinalar depositivo o surgimento, no Rio de Janeiro, em 1942, de uma bem estruturada revista semanal, “Aonde Vamos”, redigidaem português, idioma em que também foram publicados com êxito os periódicos “Jornal Israelita” (Rio) e “A Civiliza-ção” (São Paulo).

Terminada a Segunda Guerra Mundial, em 1945, os ideais democráticos voltaram a dominar o país, dando azo a quese reanimasse a vida coletiva dos judeus do Brasil. Conhecido o saldo trágico da hecatombe européia, com a perdapesadíssima de seis milhões de almas judias, cresceu sobremaneira entre os judeus brasileiros a consciência de solidari-edade grupal, o senso de responsabilidade pela sobrevivência judaica no mundo, agora repousando mais acentuadamen-te sobre os ombros do judaísmo americano. Por um lado, formaram-se e reorganizaram-se então instituições para ajudar

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os prováveis imigrantes da Europa, indo-se ao extremo de fundar duas grandes escolas profissionais “ORT”, no Rio e emSão Paulo, destinadas a facilitar aos refugiados a sua integração na economia do país; por outro lado, revigorou-se o idealsionista e multiplicaram-se as respectivas atividades, que atingiram o auge com o advento do Estado de Israel, em 1948.

A educação judaica intensificou-se sensivelmente depois de 1945, embora não chegasse jamais a contemplar senão20 a 30% das crianças em idade escolar. A imprensa em idish ressurgiu com muita vitalidade a partir de 1947, com a IdishePresse e Idishe Tzaitung, no Rio de Janeiro, e Undzer Shtime e Der Naier Moment, em São Paulo, ao lado de diversosperiódicos judaicos em português. E a produção literária prosseguiu satisfatoriamente, com vários livros publicados degênero diversificado, em idish e português, sobre temas judaicos e gerais. Também as atividades associativas tiveramforte incremento, com a fundação de numerosas instituições religiosas e clubes recreativos culturais de alto gabarito, noRio de janeiro e em São Paulo, e mesmo nos centros menores, afora a criação de Federações e uma ConfederaçãoNacional. Finalmente, a situação econômica no pós-guerra experimentou enorme avanço, tendo os judeus brasileirosquase abandonado a mercancia ambulante para progressivamente penetrar na indústria e no grande comércio. Entretan-to, a partir de 1955, a vida sócio-cultural judaica passou a definhar qualitativamente, fato este que se pode atribuir a váriascircunstâncias de efeito conjugado: 1) a sensível melhoria do nível econômico dos judeus brasileiros e conseqüente enfra-quecimento do seu espírito gregário; 2) a consolidação e relativa normalização do Estado de Israel e conseqüente reduçãodo seu poder galvanizador; 3) a irresistível ação assimilante do ambiente não-judaico;

4) o império da improvisação nas atividades de criação e condução das instituições, sem planejamento e semenquadramento democrático em entidades-teto; e 5) a falta de entrosamento entre os líderes da geração pioneira,refratários à evolução do processo social judaico, e a nova geração, ávida de uma orientação mais condizente com oespírito da época.

CONCLUSÃO

A história dos judeus no Brasil é uma longa e honrosa trajetória, pontilhada sem dúvida de sofrimentos, mas tambémrepleta de sucesso, traduzido em contribuições positivas e fundamentais para o desenvolvimento do país e para a forma-ção do seu povo.

Na exploração das costas brasileiras, no desbravamento do interior, no progresso da lavoura, do comércio e dasindústrias, enfim nos movimentos ideológicos de emancipação política da terra - em tudo os judeus dos séculos passadosdeixaram marcas indeléveis da sua participação ativa, e tudo eles impregnaram do seu senso progressista e dos seusvalores de cultura; por outro lado, em conseqüência de ampla miscigenação ao longo de centenas de anos, entraram elespoderosamente na composição étnica nacional, e transmitiram ao brasileiro de hoje largos contingentes éticos, antropoló-gicos e culturais.

Os judeus brasileiros do século XX vêm prosseguindo na mesma trilha construtiva e, conquanto não guardem estritacontinuidade com as populações israelitas de antanho, eles têm, como coletividade, todos os motivos para se apossaremdaquele patrimônio histórico, de o integrarem com a sua própria contribuição e, portanto, de se terem por legítimos partícipesda nacionalidade. Eis que seus ancestrais, por quatro séculos, foram deixando um legado precioso ao país. Quatro sécu-los: nem sequer um dia menos que a própria história do Brasil!

Capítulo IIDESCOBRIMENTO DO BRASIL (1500)Contribuição judaica ao descobrimento do BrasilO judeu Gaspar de Lemos, primeiro explorador do Brasil

CONTRIBUIÇÃO JUDAICA AO DESCOBRIMENTO DO BRASIL

Verificou-se o descobrimento do Brasil numa época em que Portugal estava no auge da sua expansão no mundo.Não era então somente a glória militar ou a busca romanesca de aventuras, ou ainda o desejo de dilatar a fé católica,

que impeliam os portugueses às suas grandiosas expedições marítimas, em que singravam “mares nunca dantes navega-dos”, intimoratos aos perigos, insensíveis às provações.

Ao lado desses motivos, e quiçá acima deles, o espírito comercial dominava as expedições. Visavam os portuguesesquebrar o monopólio que até então, por intermédio das caravanas árabes, mantinham venezianos e genoveses sobre ointercâmbio mercantil com os portos do Levante, e desse modo assegurar a Portugal a posição de centro as grandes

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atividades econômicas da época, a função de empório de produtos e especiarias intensamente procurados pelos meiosconsumidores da Europa.

Fossem quais fossem, entretanto, os móveis do alargamento marítimo de Portugal, o certo é que ele não lograriaproduzir-se sem o longo período de descobertas e aperfeiçoamentos científicos, que precedeu o grande ciclo das conquis-tas, e no qual tiveram papel de sumo relevo os sábios da época.

Desde o século XII, aliás, vinham os judeus ibéricos se distinguindo extraordinariamente nos domínios da matemática,astronomia e geografia, ciências essas básicas para a arte náutica, especialmente para a navegação oceânica.

Merecem menção, entre muitos outros:ABRAHAM BAR CHIA Autor das obras “Forma da Terra”, “Cálculo do Movimento dos Astros” e “Enciclopédia”;ABRAHAM IBN ESRA Autor de “Utensílios Éneos”, “Tratado do Astrolábio”, “Justificação das Tábuas de Kvarismi” e “Tábu-as Astronômicas”;JOÃO DE LUNA Que escreveu “Epítomes de Astrologia” e “Tratado do Astrolábio”;JACOB BEN MACHIR Que escreveu “Tratado do Astrolábio” e inventou um instrumento de observação, chamado“Quadrante de Israel”;ISAK IBN SAID Que elaborou um resumo concatenado das obras sobre astronomia dos gregos e árabes; RABÍ LEVÍ BENGERSON (GÉRSONIDES) Que escreveu as obras “Tratado sobre a Teoria e Prática do Cálculo”, “Dos Números Harmônicos”,“Tábuas Astronômicas sobre o Sol e a Lua” e “Tratado sobre a Balestilha”, e construiu dois importantes instrumentos: acâmara escura e o telescópio, cuja invenção é geralmente atribuída a outros;ISAAC ZADDIK Que escreveu “Tábuas Astronômicas”, “Tratado sobre Instrumentos Astronômicos” e “Instruções para oAstrolábio de Jacob Ben Machir”.

Esse vicejante movimento científico foi de forma excelente aproveitado pelos governantes portugueses em prol daascensão do seu país à posição de grande potência naval.

Assim, o infante D. Henrique, apelidado “O Navegador”, ao fundar, em 1412, a primeira academia de navegação, atradicional “Escola de Sagres”, escolheu para sua direção um dos mais famosos cartógrafos do século XV, o judeu JehudaCrescas, indo buscá-lo, especialmente, nas Ilhas Baleares.

Jehuda Crescas, também conhecido como mestre Jácome de Malorca e ainda comumente chamado “El judio de lasBrújulas” - devido à sua grande experiência na fabricação de bússolas - teve por essencial missão ensinar aos pilotosportugueses os fundamentos da navegação e a produção e manejo de cartas e instrumentos náuticos.

Mais tarde, outros judeus de renome científico prestaram sua colaboração à Escola de Sagres, destacando-se ossábios José Vizinho, mestre Rodrigo e, sobretudo, Abraham Zacuto - autor do “Almanaque Perpétuo de todos os Movimen-tos Celestes” - figura de grande influência em todas as decisões que diziam respeito aos interesses do Estado, inclusiveportanto às expedições oceânicas, uma das quais - a importante e bem sucedida viagem de Vasco da Gama que trouxe adescoberta do caminho marítimo à Índia - foi por ele planejada.

Afigura-se, desse modo, evidente que, em grande parte, a cooperação científica dos judeus do século XV tornoupossível as viagens transoceânicas e as descobertas realizadas pela frota lusitana.

Mas, a contribuição judaica ao descobrimento de novas rotas e de novas terras para a coroa portuguesa não selimitou ao campo científico de feição preparatória, senão também se traduziu na participação direta das temeráriasviagens, nas quais os judeus se revelaram de vital utilidade, graças inclusive ao conhecimento que tinham das línguase costumes de vários países.

Assim, também tomaram parte saliente na expedição que resultou no descobrimento do Brasil, pois que, na frotadirigida por Pedro Álvares Cabral, viajaram como conselheiros especialistas pelo menos dois judeus:

Mestre João, médico particular do rei e astrônomo equipado com os instrumentos de Abraham Zacuto, e que tinhacomo incumbência realizar pesquisas astronômicas e geográficas; e Gaspar de Lemos, também conhecido como Gasparda Gama e Gaspar das Índias, intérprete e comandante do navio que levava os mantimentos, e justamente consideradopelos historiadores como co-responsável pelo descobrimento do Brasil.

O JUDEU GASPAR DE LEMOS, PRIMEIRO EXPLORADOR DO BRASIL

A importância que merece atribuir à participação de Gaspar de Lemos da expedição que descobriu o Brasil ressaltadesde logo da circunstância de haver decorrido de uma ordem régia vazada em termos elogiosos, conforme refere GasparCorreia nas “Lendas da Índia”:

“El Rei entregou ao Capitão-mor Gaspar da Gama (Gaspar de Lemos), o judeu, porque sabia falar muitas línguas, a

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que El Rei deu alvará de livre e fôrro de sua comédia em terra dez cruzados cada mês, muito lhe recomendando que oservisse com Pedralves Cabral, porque se bom serviço lhe fizesse, lhe faria muita mercê; e porque sabia as coisas daÍndia, sempre bem aconselhasse ao Capitão-mor o que fizesse, porque este judeu tinha dado a El Rei muita informaçãodas coisas da Índia mormente de Gôa”.

Divergindo embora os historiadores quanto à origem de Gaspar de Lemos e à sua vida até haver entrado em contatocom os portugueses, a versão mais aceita é a que o dá como judeu nascido na Polônia, de onde foi expulso ou teve quefugir em 1450, quando criança, por não ter querido sua família converter-se ao cristianismo. Após uma longa peregrinaçãoatravés da Itália, Terra Santa, Egito e vários outros países, teria resolvido permanecer em Gôa, na Índia, ali adquirindoprestígio e vindo a ocupar a função de capitão-mor de uma armada pertencente a um rico mouro na ilha de Arquediva.

Foi nessa ilha que Vasco da Gama, em 25 de setembro de 1498, ao regressar de uma viagem à Índia, conheceuGaspar de Lemos, que se lhe apresentou a bordo como cristão e prisioneiro do poderoso Saboya, proprietário da ilha.

Não tendo conseguido burlar a perspicácia de Vasco da Gama, este depressa forçou-o a confessar que tinha sob suasordens quarenta navios com instruções de Saboya para, na primeira oportunidade, atacar a frota lusitana.

Paradoxalmente, o incidente acabou gerando uma sólida amizade de Vasco da Gama por Gaspar de Lemos, a quemlevou consigo para Portugal, onde o apadrinhou no batismo, deu-lhe o seu nome - pelo que passou a chamar-se Gaspar daGama - e apresentou-o ao rei, D. Manoel, que o fez pessoa grata na corte e o nomeou “cavalheiro de sua casa”.

Na falta de elementos informativos seguros sobre o real papel desempenhado por Gaspar da Gama no descobrimentodo Brasil, há quem admita inclusive que, apoiado na sua enorme experiência de viagens marítimas, tivesse ele intencional-mente induzido Pedro Álvares Cabral a afastar-se da África por acreditar na existência de outras terras na direção oeste davastidão dos mares.

Seja como for, e ainda que sem fundamento tais suposições avançadas, permanece fora de dúvida que Gaspar daGama fez jus ao epíteto de “o primeiro explorador da terra”, que lhe dá Afrânio Peixoto, e mesmo ao de “co-descobridor doBrasil”, que lhe atribui Alexandre Von Humboldt.

Capítulo IIIPRIMEIRAS EXPLORAÇÕES DO BRASIL (1501 - 1515)

O arrendamento do Brasil e o ciclo do pau-brasilFernando de Noronha, o arrendatário judeu

O ARRENDAMENTO DO BRASIL E O CICLO DO PAU-BRASIL

Logo nos primeiros anos após a descoberta do Brasil, arrefeceu o interesse do rei D. Manoel pela nova terra. Aexpedição enviada à costa do Brasil no ano de 1501, e que regressou a Portugal em 1502, não apresentou resultados quefossem de molde a entusiasmar o Governo português, cúpido do mito do metal, pois no Brasil “nada fôra encontrado deproveito, exceto infinitas árvores de pau-brasil, de canafístula, as de que se tira a mirra e outras mais maravilhas danatureza que seriam longas de referir” (carta de Américo Vespuccio a Soderini).

A corte era naquele tempo verdadeiramente uma grande casa de negócio e, como, por um lado estivesse fundamenteabsorvida com as dispendiosíssimas expedições à Índia, onde pretendia estabelecer um vasto império colonial, e, poroutro lado, não enxergasse lucros apreciáveis e imediatos na exploração do Brasil, este ia sendo relegado a um simplesponto de ligação nas viagens à Índia, uma escala de refresco e aguada. É assim de todo compreensível que, tendo omonarca recebido em 1502, de um consórcio de judeus dirigido pelo cristão-novo Fernando de Noronha, uma propostapara exploração da nova colônia mediante contrato de arrendamento, ele a aceitasse de bom grado; era a colonização doBrasil que se lhe oferecia, para ser feita a expensas de particulares, sem riscos e sem ônus ou quaisquer encargos para oerário público, e ainda com a possibilidade de lhe serem proporcionados lucros e de, sob certa forma, ser sustentada,ainda que fracamente, a autoridade portuguesa na nova possessão.

O acordo - que era um monopólio de comércio e de colonização - foi firmado em 1503, pelo prazo de 3 anos, ecompreendia os seguintes principais compromissos dos arrendatários:1. Enviar seis navios anualmente;2. Explorar, desbravar e cultivar, cada ano, uma nova região de 300 léguas;3. Construir nessas regiões fortalezas e guarnecê-las durante o prazo do contrato;4. Destinar à Coroa, no segundo ano do arrendamento, a sexta parte das rendas auferidas com os produtos da terra, e, no

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terceiro ano, a quarta parte das mesmas.Esse contrato foi, com algumas modificações, sucessivamente renovado em 1506, 1509 e 1511, estendendo-se até

1515.No próprio ano do contrato inicial - mais precisamente, em maio de 1503 - desferrou de Portugal com destino ao Brasil

a primeira frota, composta de seis navios, sob o presumível comando pessoal de Fernando de Noronha, tendo aportadoem 24 de junho de 1503 a uma ilha até então desconhecida, que inicialmente recebeu o nome de São João, mais tardetrocado para “Fernando de Noronha” em reconhecimento aos méritos do seu descobridor, a quem acabou sendo doadapelo rei em 1504.

Nesse ano de 1504, os navios de Fernando de Noronha voltaram para Portugal com enorme carregamento de pau-brasil (também chamado “madeira judaica”), artigo então grandemente procurado nos mercados europeus para as indús-trias de corantes.

Tão intenso se tornou o comércio do pau-brasil durante o arrendamento do Brasil a Fernando de Noronha - exporta-vam-se nada menos de 20.000 quintais por ano - e de tal importância econômica ele se revestiu, que deu origem àdenominação de “ciclo do pau-brasil”, sob a qual é conhecido aquele período, além de ter determinado a adoção do nomedefinitivo da terra - Brasil, em substituição ao de Santa Cruz (ou ainda Terra dos Papagaios), como era antes designada.

Fernando de Noronha, o arrendatário judeu Fernando de Noronha - também chamado Fernão de Noronha ou Fernãode Loronha - foi sem dúvida uma personalidade marcante na vida pública de Portugal.

Homem de extraordinária atividade e singular visão comercial, não tardou a entrosar muitos e vultosos negócios coma côrte, a qual não lhe regateou manifestações de reconhecimento pela sua destacada contribuição ao desenvolvimentocomercial e marítimo do reino, concedendo-lhe vários títulos nobiliárquicos, afora a permissão de usar o brasão que lheconferira a Coroa Inglesa.

Admite-se que Gaspar da Gama, ao voltar do Brasil, teria sugerido a Fernando de Noronha a conveniência de ser anova colônia portuguesa utilizada como refúgio para os judeus perseguidos, e que essa sugestão teria induzido Fernandode Noronha a propor ao Governo o arrendamento do Brasil, visando assim facilitar a transmigração judaica.

Refere-se subsidiariamente, com base em documentos do arquivo da Torre de Tombo, que Fernando de Noronha,para ajudar o êxodo de numerosos judeus, comprava-lhes as propriedades que, de outro modo, teriam de perder.

Esses e outros indícios têm levado muitos historiadores a admitirem a origem judaica de Fernando de Noronha.Que tenha ou não tenha sido Fernando de Noronha descendente de judeus, cristão novo ou criptojudeu, não envolve

especial interesse. Importa antes a afirmativa, de consenso geral, de que, nas expedições comerciais do sindicato deFernando de Noronha, judeus constituíam a maioria, cabendolhes assim o mérito de terem lançado no solo da nova pátriaos primeiros marcos da civilização.

Capítulo IVPRIMEIRA COLONIZAÇÃO (1515 - 1530)

Expedições de guarda-costasPrimeiras tentativas de colonização dirigidaParticipação dos judeus na introdução da cana de açúcar

EXPEDIÇÕES DE GUARDA-COSTAS

Tendem os historiadores a considerar que, até 1530, a Coroa pouco se importou com o aproveitamento do Brasil, nãofaltando mesmo quem tache, englobadamente, de “período da indiferença” toda a fase de 1500 a 1530.

Parece, entretanto, haver exagero em tal juízo, que só é justamente aplicável ao período 1500-1515, durante o qual,como visto no capítulo anterior, o Brasil chegou a ser arrendado, todo ele, a uma empresa comercial, dirigida por Fernandode Noronha.

Na verdade, o próprio fato de não ter sido prorrogado em 1515 o contrato de arrendamento com Fernando de Noronha- sem que jamais fosse dada qualquer explicação dessa solução de continuidade - leva a supor que o Governo de Portugal,na altura do ano 1515, despertara para a realidade: teria que tomar conta do vastíssimo território brasileiro se não quisessedispor-se ao risco de perder o comércio com ele e mesmo a soberania.

Efetivamente, tal perigo era real, pois, àquele tempo, o litoral brasileiro era também freqüentado grandemente por france-ses contrabandistas, que procuravam traficar com os indígenas, infringindo assim o monopólio português do pau-de-tinta.

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Tudo parece confirmar, portanto, que tenha sido para obviar os aludidos perigos que o Governo de Portugal recorreua um duplo programa de medidas: por um lado, organizou armadas, ditas de guarda-costa, em cujo comando se notabili-zou Cristóvão Jaques, para reprimir o comércio dos entrepolos, sabendo-se de três expedições, entre 1516 e 1519, 1521e 1523, e entre 1526 e 1528; por outro lado, tomou medidas de incentivo à colonização do Brasil, facilitando o embarquede todos quantos quisessem partir como colonos.

PRIMEIRAS TENTATIVAS DE COLONIZAÇÃO DIRIGIDA

Tem-se mesmo notícia de um decreto, baixado em 1516 por Dom Manuel I, rei de Portugal, segundo o qual todoaquele que emigrasse para o Brasil receberia, por conta da Coroa, o equipamento necessário para aí construir um enge-nho de açúcar, não se tendo o decreto descuidado de ordenar que fosse enviado um perito à nova colônia a fim de dar anecessária assistência.

O decreto dizia explicitamente em certo trecho: “Machadinhas, enxadas e outros instrumentos deverão ser dados àspessoas que vão popular o Brasil e um homem experiente e capaz deverá ser enviado ao Brasil para dar início a umengenho de açúcar. Deverá receber toda a assistência e materiais e instrumentos necessários para a construção doengenho”.

A despeito das facilidades concedidas pelo Governo, sabe-se que eram todavia raros os colonos portugueses cristãosque quisessem emigrar para o Brasil - provavelmente em virtude da atração que sobre eles continuava a exercer a Índia -razão por que, ao lado de criminosos, condenados ou exilados, se destacaram os voluntários judeus, constituindo amaioria das levas imigratórias.

Ao que tudo indica, as providências tomada pelo Governo de Portugal trouxeram os resultados almejados, pois docu-mentos de 1526 já se referem a direitos alfandegários pagos em Lisboa sobre açúcar importado do Brasil.

PARTICIPAÇÃO DOS JUDEUS NA INTRODUÇÃO DA CANA DE AÇÚCAR

A suposição de que predominavam os judeus entre esses primeiros colonizadores do Brasil é corroborada pelo fatoinconteste de que a indústria do açúcar já vinha sendo, desde muitos anos antes, a ocupação preferencial dos judeus dasilhas da Madeira e de São Tomé, de onde provavelmente foi a cana de açúcar transplantada para o Brasil.

Assim, pois, nesse período de transição, de 1515 a 1530, em que o Governo de Portugal fez os primeiros ensaios decontrole e ocupação do território brasileiro, parece ter cabido aos judeus uma parcela fundamental no cumprimento dessatarefa, como primeiros colonizadores do Brasil.

Capítulo VCOLONIZAÇÃO SISTEMÁTICA(1530 - 1570)Expedição de Martim Afonso de SousaBahia e São VicenteCapitanias HereditáriasGovernos GeraisAs figuras histórico-lendárias de Caramuru e João RamalhoO papel dos judeus no período de 1530 a 1570

EXPEDIÇÃO DE MARTIM AFONSO DE SOUSA

Verificando que as esparsas expedições de guarda-costa e os reduzidos ensaios de colonização, empreendidos noperíodo de 1515 a 1530, eram insuficientes para afastar do Brasil os traficantes estrangeiros, já agora acrescidos deespanhóis, que, além de negociarem, mostravam intenções de aqui se estabelecerem, o rei de Portugal, D. João III,passou a uma ação decidida, visando a uma colonização sistemática em larga escala e pois a uma ocupação efetiva doterritório brasileiro.

Assim, em 1530, mandou ele aprestar uma armada com 400 homens, sob o comando do seu amigo Martim Afonso deSousa, a quem nomeou “Capitão-mor e Governador das Terras do Brasil”, dandolhe autorizações especiais de muitaamplitude, que abrangiam “o direito de tomar posse de todo o país, fazer as necessárias divisões, ocupar todos os cargos,

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exercer todos os poderes judiciários, civis e criminais”.A expedição de Martim Afonso de Sousa, dando cumprimento à sua missão, cobriu, em 2 anos, todo o litoral brasileiro,

estendendo-se desde o Amazonas até o rio da Prata.Bahia e São VicenteMerece notar, todavia, que Martim Afonso de Sousa concentrou as suas atenções em dois pontos do litoral, pontos

esses que perdurariam ao longo de toda a história do Brasil como focos de progresso: o Nordeste (Bahia-Recife) e oSueste (Rio-S. Paulo).

Tal bicentrismo econômico e social, já pouco comum, raramente se estabelece tão cedo na formação de países comoocorreu no caso do Brasil, onde já em 1530 se delinearam os dois focos, que viriam exercer, com alternância de relevo,uma influência decisiva sobre a história econômica do país, até os nossos dias: o Nordeste predominando nos séculos XVIe XVII - ciclos do pau-brasil e do açúcar; o Sueste se sobressaindo no século XVIII, à época da mineração do ouro; umcurto ressurgimento setentrional; e, finalmente, um predomínio meridional definitivo no século XIX, ao influxo da grandeagricultura, especialmente da cultura do café; tudo isso, sem prejuízo das perspectivas de franco progresso que tornam adesenhar-se para o Nordeste, embora sem afetar o centro-sul.

Constituindo esse bicentrismo um fato em si notável, acresce, como aspecto paradoxal, a circunstância de que ambosos focos de progresso do país se localizaram longe, e um de cada lado, da região onde se deu o descobrimento.

Evidentemente, não pode satisfazer o argumento da maior proximidade da costa nordestina com relação à Europa,quando comparada com a região de Porto Seguro, pois inclusive não explicaria a preferência dada à região de SãoVicente. Antes, deve-se admitir que havia no litoral sul da Bahia condições naturais adversas ao desbravamento e àcolonização, não sendo de se excluir o fato de ser o clima daquele trecho da costa por demais chuvoso, quase nãoapresentando uma verdadeira estação seca no decorrer do ano.

No que respeita à questão dos judeus do Brasil, a existência dos aludidos dois centros econômicos importantesmerece dois reparos: um de caráter essencial, relativo às migrações internas dos judeus, os quais, sempre que acossadospelas perseguições no Nordeste, escolhiam em boa parte como refúgio a província de São Vicente; o outro, de caráterilustrativo, consiste na circunstância de, em cada um dos aludidos pontos - Bahia e São Vicente (S. Paulo) - ter MartimAfonso de Souza encontrado um judeu influente - respectivamente, Caramuru e João Ramalho - que lhe prestasse decisi-vo auxílio na sua tarefa colonizadora.

CAPITANIAS HEREDITÁRIAS

Tendo verificado, pelas sucessivas expedições dos anos anteriores, a grande extensão litorânea do Brasil e julgandoos meios até então empregados insuficientes para assegurar a soberania portuguesa na colônia bem como para promovero seu povoamento, resolveu D. João III, em 1532, criar capitanias situadas ao longo da costa, medida que pôs em práticaentre os anos de 1534 e 1536, mediante a divisão do litoral entre Maranhão e Santa Catarina em 14 lotes, de 10 a 100léguas de costa, doando essas 14 capitanias hereditárias a 12 “donatários”, escolhidos entre os nobres e mais valorososvassalos, os quais deviam explorar e colonizar à sua custa as regiões que lhes haviam sido confiadas, tudo fazendo peloseu rápido e seguro progresso.

Apresentou-se aí um novo motivo de estímulo para a vinda de judeus ao Brasil. Os donatários, desejosos de imprimirprosperidade às suas capitanias, porfiavam em atrair colonos patrícios e, ainda desta feita, os portugueses cristãos prefe-riam a Índia, cujos efeitos atrativos perduravam. Não restava aos donatários senão recorrer mais uma vez às famíliasisraelitas, às quais concediam direitos e vantagens iguais aos dos demais colonos.

Acrescia que os judeus se revelaram excelentes colonizadores: hábeis no trato com o gentio, a cujos hábitos e línguaslogo se adaptavam, passando a contar depressa com a sua amizade.

Assim, as possibilidades de progresso das capitanias dependia em bom grau dos judeus, e, graças a esta circunstân-cia, puderam eles gozar de ampla liberdade de costumes.

Das capitanias, apenas duas se desenvolveram com resultados apreciáveis: Pernambuco e São Vicente, justamentenos já aludidos dois focos de progresso - Nordeste e Sueste.

Prosperidade excepcional conheceu a capitania de Pernambuco, superiormente dirigida por Duarte Coelho Pereira.Tendo verificado, pelas tentativas desenvolvidas nos anos precedentes, que a região era favorável à agricultura - fumo,algodão e cana de açúcar - especialmente para esta última, resolveu Duarte Coelho implantar o cultivo intenso e sistemá-tico de cana e incrementar a indústria açucareira.

Nesse sentido, determinou ele o estabelecimento de grandes plantações de cana de açúcar e a construção de bom

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número de engenhos, mandando trazer, das ilhas da Madeira e de São Tomé, mecânicos, capatazes e operáriosespecializados - que em sua maioria eram judeus - para dirigirem engenhos e impulsionarem a produção do açúcar.

Merece lembrar o nome do judeu Diogo Fernandes, que foi o maior técnico trazido por Duarte Coelho ao Brasil.

GOVERNOS GERAIS

Por vários motivos - tamanho excessivo dos territórios, falta de recursos para repelir os ataques dos selvagens (*) ouas invasões estrangeiras, falta de união entre os donatários - falhou totalmente o sistema de colonização das capitanias,mesmo com as exceções que representavam as de São Vicente e Pernambuco.

(*) Não seriam os antigos brasileiros, chamados pelo autor de “selvagens”, que estariam tentando repelir a invasão dosestrangeiros portugueses?

Resolveu, então, D. João III, em 1548, criar um governo geral, com sede na Bahia, capaz de, em torno dele, reunir osesforços dos donatários, dando-lhes “favor e ajuda” e deles recebendo auxílios, inclusive “gente e mantimentos”.

Com a implantação do novo sistema de governo em 1549, não sofreu alteração a situação dos judeus no Brasil, muitoembora na mesma ocasião se fixassem no país os jesuítas. As condições eram tais, que estes se viram forçados a umapolítica de transigência e prudência, merecendo destacar a atividade do padre José de Anchieta e do primeiro bispo doBrasil – Pero Fernandes Sardinha - que se opuseram energicamente à instalação de tribunais inquisitoriais no país e aquaisquer outras formas de discriminação e perseguição.

Na contingência de ou perderem as esperanças de colonização do Brasil ou levarem a bom termo a missão de que seachavam incumbidas, as autoridades optaram pela última alternativa e, para tanto, tiveram que fazer tábua rasa dasexigências do 5º Livro das Ordenações da Inquisição e negligenciar as reclamações dos Inquisidores.

Em 1554, escrevia o padre José de Anchieta “ser grandemente necessário que se afrouxasse o direito positivo nestasparagens”. Semelhantemente, o bispo Pero Lopes Sardinha opinava que “nos princípios muitas mais coisas se hão dedissimular que castigar, maiormente em terra tão nova como esta”.

Esse panorama de tolerância contrastava vivamente com a onda de ódio e discriminação que varria Portugal, ondecrepitavam ininterruptamente as fogueiras dos autos de fé. É assim compreensível o efeito que sobre os judeus de Portu-gal deviam exercer as notícias ali chegadas sobre a vida judaica no Brasil. Tangidos pela fúria avassaladora de persegui-ção religiosa, sentiam-se os judeus de Portugal impelidos a tentar vida nova no Brasil, que se lhes afigurava como refúgioseguro, onde poderiam concretizar-se os seus anseios de liberdade, as suas esperanças de paz e de tranqüilidade.

Em tais condições, tudo favorecia o estabelecimento de uma intensa e ininterrupta corrente imigratória de judeusportugueses para o Brasil, onde, prosperando rapidamente, passaram a formar numerosos núcleos, dando mesmo inícioa uma vida coletiva que com o tempo viria assumir nitidamente características judaicas como o testemunham as esparsasreferências encontradas sobre uma sinagoga que funcionava em uma casa de propriedade do cristão-novo Heitor Antunes,na cidade do Salvador - sede do Governo Geral - e sobre uma outra que fazia parte de um centro marrano em Camaragibe,capitania de Pernambuco, capitania esta que inclusive chegou a contar com um “rabi” - Jorge Dias do Caia, cristão-novo,calceteiro. As figuras histórico-lendárias de Caramuru e João Ramalho Martim Afonso de Souza, ao deter-se, como já foimostrado, com especial interesse nas regiões da Bahia e de São Vicente, teve a sorte de encontrar nesses dois pontosduas extraordinárias figuras, respectivamente Caramuru e João Ramalho, que lhe prestaram decisiva ajuda na sua funçãodesabrochadora da colonização do Brasil.

Esses dois vultos, de vida semi-lendária, justamente considerados os primeiros colonizadores efetivos do país, apre-sentam viva semelhança quanto ao desenrolar das suas longas existências. Ambos aportaram à costa brasileira comonáufragos, e na mesma época, por volta de 1510; ambos tiveram que se acomodar com os indígenas, aos quais acabaramimpondo a sua autoridade: ambos integraram-se na vida dos selvícolas, inclusive casando com índias; um e outro realiza-ram uma prodigiosa obra de pacificação e aproximação entre os indígenas e os representantes do Governo de Portugal;finalmente, a ambos, é atribuída ascendência judaica.

CARAMURU

Acerca do aparecimento de Caramuru - cujo verdadeiro nome era Diogo Álvares Correia - existe a seguinte lenda: Em1509 ou 1510, um navio português naufragou junto da atual Bahia de Todos os Santos. Quase todos os homens morreramafogados ou foram devorados pelos índios Tupinambás. Entre os poucos deixados para serem sacrificados posteriormen-te, em espetáculo festivo, estava Diogo Álvares Correia. Quando se aproximava a hora de ser ele sacrificado, uma idéia

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relampejante salvoulhe a vida: Disparou Diogo o mosquete que retivera do naufrágio e matou um pássaro em pleno vôo.Os selvagens que presenciavam a cena foram tomados de grande terror, pondo-se a gritar: “Caramuru! Caramuru!”, o que,na sua língua, significava “homem do fogo” ou “filho do trovão”. (Há quem considere, talvez com mais acerto, que o apelidoCaramuru se deriva do fato de ser esse o nome com que os indígenas designavam um peixe comum no Recôncavo daBahia, a moréia, freqüentadora das águas baixas das locas, numa das quais teria sido encontrado Diogo Álvares depois donaufrágio). Passou logo Diogo Álvares Correia a ser altamente considerado pelos índios que, daí em diante, o respeitavamcomo a um chefe.

Mais tarde, casou-se Caramuru com Paraguaçu, filha do chefe Taparicá, com o que se tornaram mais íntimas e sólidasas suas relações com os indígenas.

Quando da chegada de Martim Afonso de Souza, Caramuru serviu de intérprete e elemento de ligação entre esseprimeiro Governador do Brasil e os chefes índios, acertando medidas para a introdução de trabalhos agrícolas na regiãocom o aproveitamento de sementes trazidas por Martim Afonso.

Papel ainda mais saliente desempenhou Caramuru a partir de 1538, no período do primeiro Capitão-mor, D.FranciscoPereira Coutinho, cujo governo decorreu tumultuoso, em virtude de sucessivos desentendimentos entre os portugueses eos indígenas.

Tão grande se tornou a fama de Caramuru e tão alto o seu prestígio junto ao Governo de Portugal, que, ao sernomeado, em 1548, o primeiro Governador Geral do Brasil - Tomé de Souza - o rei dirigiu-se em carta a Caramuru, pedindosua imprescindível cooperação, nestes termos:

“Diogo Álvares. Eu, El Rei, vos envio muito saudar. Eu ora mando Tomé de Souza, fidalgo da minha Casa, a essaBahia de Todos os Santos... E porque sou informado pela muita prática que tendes dessas terras e da gente e costumesdelas o sabereis bem ajudar e conciliar, vos mando que, tanto o dito Tomé de Souza lá chegar, vos vades para ele e oajudeis no que lhe deveis cumprir e vos encarregar, porque fazeis nisso muito serviço...

Sendo necessária vossa companhia e ajuda, encomendo-vos que ajudeis no que virdes que cumpre, como creio queo fareis. Bartolomeu Fernandes a fez em Lisboa a 19 de novembro de 1548. Rei”.

Caramuru atendeu ao pedido do rei e tão proveitoso foi o auxílio prestado a Tomé de Souza que, em meio a uma plenacooperação dos índios, pôde rapidamente ser fundada, em 1549, a cidade do Salvador, Capital do País, no lugar ondeanteriormente Caramuru estabelecera a aldeia “Vila Velha”.

Quanto à origem judaica de Caramuru, na falta de quaisquer provas, muitos historiadores a admitem levados porsimples presunções, inclusive pelo fato de que, segundo muitas indicações, era tradicionalmente israelita o nome defamília Álvares Correia.

JOÃO RAMALHO

Embora o historiador Rocha Pombo admita que João Ramalho tenha vindo antes da descoberta do Brasil, possivel-mente em 1497, época da expulsão dos judeus de Portugal, a suposição mais aceita é a de ter ele aportado em 1512, salvode um naufrágio na costa de São Paulo.

Tal como Caramuru no Norte, conseguiu João Ramalho captar depressa a amizade dos indígenas, merecendo espe-cialmente a simpatia de Tibiriçá, o todo-poderoso chefe dos índios Guaianases, que, posteriormente, lhe deu em casamen-to sua filha Bartira.

Quando, em 1532, Martim Afonso de Souza alcançou São Vicente, lá encontrou João Ramalho que, havia vinte anos,vivia com os indígenas. Induzido pelas informações de Ramalho acerca das características do clima e do solo da região eestimulado pela situação estratégica da baía, Martim Afonso, com a ajuda substancial de João Ramalho, fundou então aprimeira colônia agrícola, formada de duas povoações: São Vicente - na planície da ilha do mesmo nome, e Piratininga –na região serrana do continente, ao lado da aldeia de Santo André da Borda do Campo, onde vivia Ramalho com suafamília e seus aliados.

Em consideração aos relevantes serviços prestados por João Ramalho à capitania de São Vicente, Martim Afonsoconferiu-lhe o título de “guarda-mor”, deu-lhe poderes sobre toda a terra de Piratininga e, finalmente, antes do seu regressopara Lisboa, elevou-o ao cargo de “Capitão-mor”.

No que toca à origem judaica de João Ramalho, abundam as conjeturas. Há, de um lado, os que se associam à ilaçãofeita da circunstância de que nunca participara João Ramalho dos exercícios religiosos dos jesuítas e de que, ao cair seria-mente doente, recusou as consolações religiosas, fatos estes que são interpretados como indicando pertinência judaica.

Entretanto, a maior parte dos adeptos da estirpe israelita de Ramalho liga a sua argumentação ao sinal, em forma de

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um ferradura, que João Ramalho incluía na sua assinatura, entre o prenome e o nome de família. Sobre o assunto, existeuma verdadeira literatura, sendo as mais desencontradas as interpretações dadas com respeito ao mencionado símbolo.Enquanto alguns o consideram um mero ornamento ou simples talismã, e outros o julgam um hieróglifo que testemunhariaa origem egípcia de Ramalho, a maioria o qualifica como letra hebraica; mesmo estes últimos, porém, divergem entre si,achando uns que a letra é um “caf”, representando a letra inicial da palavra “Cohen” (sacerdote) ou da palavra “cabir” (forte)ou ainda da palavra “cafui” (cristão-novo), ao passo que outros consideram a letra como sendo um “bes”, que seria aabreviação da palavra “ben” (filho), significando a assinatura - “João, filho de Ramalho” - e, finalmente, alguns admitem quese trate de um “reich”, letra inicial do nome Ramalho.

Como visto, a questão constituiu-se em objeto de amplas discussões e análises de caráter exegético, cujo desenvol-vimento evidentemente não apresenta nenhum interesse especial a não ser o incentivo ou a satisfação da curiosidadesobre a ascendência étnica ou religiosa de João Ramalho, esse inconfundível personagem que tanto contribuiu para acolonização de São Vicente.

O PAPEL DOS JUDEUS NO PERÍODO DE 1530 A 1570

O período de 1530 a 1570 é talvez o único em toda a história dos primeiros quatro séculos do Brasil, do qual se podedizer que, no seu decorrer, a evolução da vida judaica se entrosou plenamente com a do país, numa cooperação ativa,uma coexistência pacífica e uma integração harmoniosa. Para a formação do Brasil, esse período foi decisivo. No seutranscurso, fez-se sentir o poderio da metrópole, primeiro através das capitanias hereditárias e depois por intermédio doGoverno Geral, que unificou politicamente o território, exercendo o poder da Coroa sobre o dos capitães-mores; simultane-amente, a língua portuguesa se impôs como elemento de coesão entre os núcleos esparsos do povoamento, coesão essareforçada pela união espiritual desenvolvida pela extraordinária atividades dos jesuítas.

E é da maior importância que, durante esse excepcional período de expansão, os judeus tenham desempenhado umpapel sobremodo honroso e atuante na vida econômica e social do país.

Capítulo VIPERÍODO DAS PRIMEIRAS DISCRIMINAÇÕES (1570 - 1630)

A conjuntura em 1570Dificuldades de emigração judaica de PortugalOs tentáculos inquisitoriais no BrasilMigrações internasIntercâmbio judaico Brasilo-HolandêsO complexo judaico no período 1570-1630

A CONJUNTURA EM 1570

No período da colonização sistemática (1530-1570), criaram-se, como ficou visto, todas as condições favoráveis à eclosãode uma sólida comunidade israelita no Brasil:a) Suficiência numérica. - O número dos judeus, graças à intensa imigração e aob) crescimento natural, alcançou uma proporção razoável em confronto com a população geral, o suficiente para seopor ao risco de assimilação.c) Liberdade de culto. - Havia tolerância e liberdade bastantes para que os judeus mantivessem abertamente suaspráticas religiosas, ainda que, como é de se supor, algo sincretizadas com o catolicismo.d) Refrescamento imigratório. - As sucessivas levas imigratórias de judeus portugueses exerciam um papel reativante,contra aculturativo.

Graças a tal conjuntura, estavam se desenhando perspectivas seguras para que, nos fins do século XVI, se corporificasseno Brasil uma coletividade judaica, numerosa e estável. Vários fatores adversos intervieram, porém, para tumultuar esseprocesso em marcha.

Dificuldades de emigração judaica de Portugal Nas vizinhanças de 1570, sobreveio uma alteração na política emigratóriade Portugal. Às normas liberais até então vigorantes substituiu-se uma longa série de medidas restritivas, entremeadas depermissões, condicionadas e efêmeras, concedidas a troco de vultosas somas pecuniárias.

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Assim, em 30 de junho de 1567, na regência do Cardeal D. Henrique, foi expedido o primeiro alvará qie proibia a saídado reino, por mar ou por terra, a todos os cristãos-novos.

Em 1573, foi essa proibição reforçada por D. Sebastião.E, embora quatro anos mais tarde, em 1577, o próprio D. Sebastião o revogasse, mediante a contribuição de 250.000

cruzados para o custeio da malograda expedição à África, voltou o alvará a ser revigorado em janeiro de 1580, pelo Rei-Inquisidor D. Henrique.

Nesse mesmo ano de 1580, perdeu Portugal sua independência para a Espanha e, em 1587, foram confirmadas todasas leis anteriores sobre a proibição da saída de judeus.

Em julho de 1601 - dada a péssima situação do erário castelhano - foi, por Carta-Patente, concedida aos judeuslicença para sair do reino, a troco de 200.000 cruzados.

Mas, nove anos mais tarde, em março de 1610, foi promulgada uma lei que revogou a concessão de saída, apesar daspromessas de que a proibição não mais se repetiria.

Somente em 1627, voltou a ser concedida aos judeus uma permissão condicionada de saída e, finalmente, em 1629,a lei estabeleceu definitivamente a livre saída do reino, benefício para cuja concessão tiveram os judeus que contribuir coma quantia de 250.000 cruzados.

Tais reviravoltas na política emigratória eram determinadas - abstração feita das freqüentes incompatibilidades entre aigreja e a coroa - pela situação precária das finanças do país, que impelia ao recurso da extorsão de dinheiro judaico, emalternância com a necessidade de reter os judeus no país, eis que, emigrando para outros países, eles concorriam parasua prosperidade, enquanto se depauperava o reino, como chegou a confessá-lo o Conselho de Fazenda nestes termos:“...estar o comércio empobrecendo e terem os homens de mais cabedal deixado o País”.

Apesar de todas as restrições mais acima enumeradas, é fora de dúvida que o êxodo dos judeus de Portugal em buscado Brasil prosseguia intenso. Tais e tão crescentes eram as perseguições a que os judeus se viam expostos, que certa-mente eles haviam de encontrar meios de contornar as proibições, nos períodos em que não o conseguiam oficialmenteatravés das já mencionadas contribuições de vulto.

Na última década do século XVI, a corrente emigratória dirigiu-se predominantemente para a França e sobretudo aosPaíses Baixos, onde florescia o comércio e reinava tolerância religiosa, o que permitiu a célere formação de uma amplacomunidade israelita, com centro na cidade de Amsterdã, justamente cognominada de “Nova Jerusalém”.

Mas, mesmo nesse período, é de se admitir que continuava a vinda de judeus portugueses ao Brasil.Há indícios de que, de um modo geral, os países europeus, e em especial a Holanda, eram preferidos pelos emigran-

tes mais abastados, enquanto ao Brasil se dirigiam os pertencentes às camadas sociais mais modestas, sobretudo os quetinham propensão à agricultura.

Fosse como fosse, o certo é que essa simultânea emigração de judeus portugueses, para o Brasil e os Países Baixos,propiciou o estabelecimento de um elo comercial e afetivo entre os judeus brasileiros e holandeses, o qual nos anosseguintes veio a ter importante repercussão político-social, decorrente do conflito de consciência em que se viram lança-dos os judeus brasileiros em virtude do triângulo Brasil- Portugal-Holanda que passou a dominar os seus interessesindividuais e suas aspirações coletivas. Os tentáculos inquisitoriais no Brasil Como visto acima, as sucessivas restrições àemigração dos judeus de Portugal, as quais cobriram todo o período de 60 anos (1570-1630), não foram de molde a afetarsubstancialmente a entrada contínua de judeus no Brasil, onde prosseguia crescendo seu número e sua prosperidade.

Entretanto, fatores outros passaram a toldar a vida judaica no Brasil, até então tranqüila e serena. Começaram asurgir sinais indiscutíveis de restrição à liberdade, que com o tempo se reforçaram, fazendo definhar a vida coletivajudaica, justamente quando parecia aproximar-se a sua consolidação, e forçando os judeus a retornarem, qual na suamãe-pátria, a uma vida disfarçada, de forma a guardarem as tradições apenas no recesso da família e assim mesmocom a devida cautela.

A primeira manifestação de intolerância verificou-se logo em 1573, na cidade do Salvador, onde foi instalado um autode fé. Paradoxalmente, mas talvez de propósito, não era israelita a primeira vítima; era um francês que, acusado deheresia, foi condenado e queimado vivo.

O balão de ensaio não surtiu, porém, os esperados efeitos. Verificado que os espetáculos dos autos de fé em si nãoexerciam nenhuma emoção especial sobre os selvícolas - habituados, de resto, à incineração de prisioneiros - e que,por outro lado, permanecia incompreensível para os gentios que se queimassem pessoas vivas por respeitarem eservirem outro Deus, o que os levava a simpatizarem com os prisioneiros da Inquisição, esta encerrou brevemente asua nefanda tentativa.

Pôde assim restabelecer-se o ambiente de tolerância, aliás com o franco apoio da opinião pública. Entretanto, em

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1591, acabou vindo ao Brasil o Santo Ofício, sendo essa missão conhecida como “Primeira visitação do Santo Ofício àsPartes do Brasil pelo licenciado Heitor Furtado de Mendonça”.

Na Bahia, permaneceu a Inquisição durante dois anos, até 1593, seguindo então o Inquisidor para Pernambuco,Itamaracá e Paraíba, onde ficou até 1595.

Decorridos 25 anos, a Bahia, então capital do Brasil, foi, entre 11 de setembro de 1618 e 26 de janeiro de 1619, alvo deuma nova visitação do Santo Ofício, que ficou a cargo do Inquisidor de Évora, o bispo D. Marcos Teixeira.

Diante desta segunda comissão inquisitorial, foram denunciados nada menos de 90 marranos, entre eles muitossenhores de engenhos de açúcar.

MIGRAÇÕES INTERNAS

Merece notar que o Santo Ofício limitou suas visitas ao Nordeste, jamais tendo tentado instalar-se no Sueste do país,talvez para não se expor a um fracasso completo, dado o ambiente hostil que certamente ali iría encontrar.

Essa circunstancia teria propiciado o primeiro movimento migratório interno dos judeus do Brasil.É provável que, mesmo anteriormente, se viesse processando, em condições normais, a disseminação dos judeus

pelo território brasileiro, e isso sobretudo por motivos econômicos, pois não se ocupavam os judeus somente de agricultu-ra; o seu senso inato de mobilidade e de ubiqüidade certamente os levara a monopolizar o comércio entre os núcleos ruraise urbanos, assim penetrando nas mais recônditas partes do país.

Mas essas haviam de ser migrações lentas, centrífugas e de caráter voluntário.Já por ocasião dos inquéritos da Inquisição no Nordeste deve ter sido de forma forçada, e em mais rápido ritmo,

a saída de judeus daquela região em direção da parte mais liberal do país, onde não medravam preconceitos, e queera sobretudo a capitania de São Vicente - justamente o segundo foco de progresso do país, como ficou indicadopáginas atrás.

INTERCÂMBIO JUDAICO BRASILO-HOLANDÊS

Não se sabe ao certo dos motivos das visitações do Santo Ofício ao Brasil, pois tornaram os inquisidores ao reino semque viessem a lume os efeitos das sindicâncias.

É todavia de se presumir que tivessem fundo político, receosa como se achava a Coroa quanto aos negócios doscristãos-novos com a Holanda e quanto a certos indícios de que o inimigo encontraria no Brasil aliados e guias.

A conjetura tinha certo fundamento, e os registros da visitação de 1618-1619 revelaram, efetivamente, que, durantecerca de 25 anos, os marranos do Brasil vinham se mantendo em constante comunicação com os judeus confessos deFlandres e, em especial, com os ex-marranos portugueses que tinham escapado para Amsterdã.

As suspeitas foram reforçadas mais tarde com a criação da Companhia da Índias Ocidentais, aprovada em 1621 pelogoverno holandês. Em face do programa e dos poderes dessa Sociedade - entre os quais se incluíam os de nomear edepor governadores, fazer tratados de aliança com os indígenas, erguer fortalezas e construir colônias - e da circunstânciade que o capital da empresa era constituído em grande parte com os cabedais de judeus hispano-portugueses, era lógicodesconfiar que o íntimo intercâmbio entre os judeus do Brasil e da Holanda pudesse vir a ajudar os propósitos conquista-dores dessa última.

E a primeira prova real da justeza desse receio foi de fato obtida em 1624, quando os holandeses invadiram e conquis-taram a cidade do Salvador, capital do Brasil. A população israelita, que na Bahia era então mais numerosa do que emqualquer outra cidade do País, submeteu-se alegremente aos conquistadores, com os quais haviam vindo muitos judeus.Refere-se que cerca de 200 cristãos novos aceitaram desde logo o jugo holandês e passaram a induzir os demais habitan-tes de origem judaica a seguirem o seu exemplo.

O COMPLEXO JUDAICO NO PERÍODO 1570-1630

Esse longo período de 60 anos foi altamente favorável ao desenvolvimento e à prosperidade da população judaica doBrasil, mas, em contraste com o período anterior (1530-1570), ele não constituiu uma fase tranqüila de evolução.

Foi um período essencialmente tumultuário, cheio de sobressaltos e de vai-vens que, se não impediram o progressomaterial dos judeus - os quais em 1600 chegaram a possuir uma ponderável porcentagem dos 120 engenhos entãoexistentes no Brasil - solaparam todavia a sua organização coletiva, que vinha tomando corpo, e feriram fundo as suas

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esperanças de liberdade. Os fatos e circunstâncias característicos do período em questão podem assim ser recapitulados:- Perseguição cada vez maior aos judeus em Portugal e restrição à sua emigração para o Brasil, o que provavelmenteprovocou entre os judeus brasileiros um ânimo adverso para com a mãe-pátria; - Surgimento de um auto de fé em Salvador (Bahia), embora sem conseqüências sensíveis; bastante, porém, para susci-tar entre os judeus brasileiros a idéia de que a nova pátria não estava imune a preconceitos e a eventuais perseguições;- Vinda de 2 comissões da Inquisição de Portugal, em 1591-95 e 1618-19, com os respectivos processos de acusações edenunciações, o que deve ter levado os judeus brasileiros a um retrocesso na evolução da sua vida coletiva e a umalimitação das práticas religiosas ao âmbito da família e a formas disfarçadas;- Primeira migração forçada de judeus dentro do país, por motivos de perseguição religiosa – do Nordeste para a capitaniade São Vicente;- Fracasso da invasão na Bahia, em maio de 1624, pois a conquista não chegou a durar um ano, terminando com totalderrota dos holandeses em 1º de maio de 1625.

Em decorrência de todos esses fatos, os judeus do Brasil foram sendo, cada vez mais, dominados por um senti-mento de frustração, vendo se esboroarem as suas ilusões e esperanças quanto à segurança e tranqüilidade do seuporvir na nova terra.

Desiludidos com a mãe-pátria - onde seus parentes e correligionários sofriam privações e perseguições tremendas - ejá agora decepcionados com a própria Nova Lusitânia, onde tudo a princípio parecia sorrir-lhes, mas onde passavam aavolumar-se indícios hostis, os judeus do Brasil, instintivamente, na procura de algum outro ponto de apoio, sentiam-seimpelidos a um intercâmbio cada vez mais estreito com os judeus portugueses residentes na Holanda, onde a liberdade,nos fins do século XVI, era absoluta em todos os terrenos.

Era a possibilidade que eles vislumbravam de vir a ser melhorada a sorte dos judeus do Brasil graças à intervenção deuma outra potência - no caso a Holanda!

Capítulo VIIDOMÍNIO HOLANDÊS (1630 - 1654)Fases da comunidade judaica sob a ocupação holandesaAspectos da atividade econômica dos judeusAspectos sócio-culturais da vida judaica. Isaac Aboab da FonsecaDecadência e “débâcle”

FASES DA COMUNIDADE JUDAICA SOB A OCUPAÇÃO HOLANDESA

A esperança dos judeus no Brasil de que sua sorte melhoraria graças a alguma forma de intervenção holandesa nãofalhou. Finalizando uma série de tentativas frustradas com que visavam tornar a conquistar a Bahia no decorrer do ano de1627, os holandeses, após verificarem que a façanha seria mais exeqüível em Pernambuco - ponto pior defendido e maisfácil de ser depois fortificado - atacaram-no em 15 de fevereiro de 1630 com uma poderosa esquadra de 70 navios,tripulada e guarnecida por 7.000 homens, iniciando assim a ocupação do Nordeste brasileiro, a qual iría durar até 1654,centralizada na próspera capitania de Pernambuco.

Esse período singular da vida judaica no Brasil é de ser considerado em inteira conexão com a ocupação holandesa,com ela tendo começado e também tido fim, quase abruptamente. Mas, o que impressiona não é simplesmente essacoincidência, senão a rapidez com que os judeus lograram constituir no Nordeste do Brasil uma comunidade das maisflorescentes do mundo de então.

De fato, cabe descontar a tumultuada fase de 1630 a 1635, em que se processou a consolidação da conquista e quefoi assinalada por lutas incessantes, que a resistência tenaz dos pernambucanos tornou inevitáveis; outrossim se devededuzir a fase de decadência do domínio holandês, a qual se estendeu de 1645 a 1654; resta, assim, o período de 1635a 1644, que abrangeu o governo liberal e progressista do Conde Maurício de Nassau, espaço esse de apenas 10 anos, oqual, entretanto, bastou aos judeus para alçarem a um nível excepcional a sua vida econômica, social e cultural, dentro doarcabouço de uma organização coletiva.

ASPECTOS DA ATIVIDADE ECONÔMICA DOS JUDEUS

A ocupação holandesa do Nordeste do Brasil introduziu profundas modificações na vida econômica dos judeus, alar-

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gando o seu âmbito, diversificando os seus ramos ocupacionais e erguendo a sua potencialidade a um grau singular.Antes da conquista holandesa, os judeus exerciam, em larga escala, as atividades de plantadores de açúcar,

mas os donos de engenho representavam apenas uma percentagem razoável, e os magnatas não passavam deuma escassa minoria. No mais, a colônia judaica era constituída de pequenos comerciantes e de profissionaismanuais mal remunerados.

Com o advento dos holandeses e a decorrente implantação de uma grande tolerância religiosa, o panorama foi sealterando. Levas ininterruptas e judeus afluíam a Pernambuco de vários países, especialmente da Holanda, trazendocabedais, experiência comercial e um prodigioso espírito de realização.

Esses judeus vindos da Holanda - e que em grande parte eram ex-refugiados de Portugal, Espanha e França -tinham a vantagem de falar vários idiomas: espanhol, francês, ladino e holandês, afora o mais importante - português,que era a língua falada no Brasil; era-lhes fácil assim servir de intérpretes para os 7.000 homens do exército e damarinha holandeses, constituídos de mercenários - holandeses, ingleses, franceses, alemães, polacos e outros - quenão falavam o português.

De simples intérpretes, foram rapidamente passando a cambiadores e comerciantes, de um modo geral a intermediá-rios, profissão que se tornou quase monopólio dos judeus, com os quais não podiam competir os pequenos negociantes eoperários brasileiros e flamengos.

Por volta de 1638, aproveitando-se do confisco dos engenhos pertencentes aos portugueses, feito pelosgovernantes holandeses, que puseram essas propriedades em hasta pública, os judeus fizeram grandes aquisiçõespor preços irrisórios.

Não tardou assim que os judeus se tornassem grandes proprietários urbanos e rurais, controlando a vida econômicada Nova Holanda; merece lembrar, como testemunho disso, que a principal rua do Recife era conhecida como “rua dosJudeus” (depois de 1654 - “rua da Cruz”) e o porto era chamado “cais dos judeus”.

Um documento da época, vazado em linguagem pitoresca, ainda que algo exagerada, dá um retrato expressivo darapidez com que se efetuou a ascensão econômica dos judeus no Brasil Holandês:

“Haviam vindo com os holandeses, quando tomaram a Pernambuco, alguns judeus, os quais, não trazendo mais doque um vestidinho roto sobre si, em breve se fizeram ricos com seus tratos e mofatras, o que sabido por seus parentes,que viviam em Holanda, começaram a vir tantos, e de outras partes do Norte, cada um com suas baforinhas, que emquatro dias se fizeram ricos e abundantes, porque, como os mais deles eram portugueses de nação e haviam fugido dePortugal por temor da Santa Inquisição, e juntamente sabiam falar a língua flamenga, serviam de línguas entre osholandeses e portugueses e por esta via granjeavam dinheiro, e como os portugueses não entendiam os flamengos,nem eles aos portugueses, e não podiam negociar nas compras e vendas, aqui metiam os judeus a mão comprando asfazendas por baixo preço e, logo, sem risco nem perigo, as tornavam a revender aos portugueses com o ganho certo,sem trabalho algum”.

A prosperidade dos judeus na Nova Holanda não se processou todavia sem incômodos. O acréscimo do seu bemestar e o desenvolvimento extraordinário do seu poderio econômico despertaram inveja e geraram uma perigosa inimizadeda concorrência cristã.

Se tais ondas de ódio coletivo não tiveram maiores conseqüências, o fato se deve à ação equilibrada de Maurício deNassau, que, durante a sua regência de sete anos, trabalhara honestamente para fazer a união de todas as oposiçõesreligiosas na colônia, distribuindo justiça imparcial: era o primeiro a exigir reparação quando provadas infrações legaiscometidas por judeus, mas também sabia defendê-los com o seu braço poderoso quando os via vítimas de atiçamento.

ASPECTOS SÓCIO-CULTURAIS DA VIDA JUDAICA.Isaac Aboab da Fonseca

Sob o domínio holandês, criaram-se no Nordeste do Brasil todas as condições favoráveis à eclosão de uma sólidacomunidade judaica com vida coletiva de características próprias: a)liberdade de culto; b) suficiência numérica econcentracional; c)continuidade imigratória; d)superioridade cultural. a) - LIBERDADE DE CULTO. - Já quando de suaorganização, a Companhia das Índias Ocidentais havia declarado que toda e qualquer crença seria respeitada na NovaHolanda. Ao assumir o governo o conde Maurício de Nassau, a promessa, que já vinha sendo posta em prática parcial-mente, tornou-se realidade.

No dizer de Hermann Wätjen: “Aos judeus o Conde tolerante permitiu guardarem a santidade do sábado, havendo feitopromulgar que os cristãos dos dois credos deveriam considerar o domingo como o dia do Senhor. No mais, o Governador

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tinha o ponto de vista de deixar cada um ser feliz da sua forma em Pernambuco”.Estava, assim, implantada a condição básica para que pudesse desabrochar uma comunidade judaica no

Brasil holandês.b) - SUFICIÊNCIA NUMÉRICA E CONCENTRACIONAL. - A tolerância religiosa, embora indispensável, não era condiçãobastante. Fator complementar, da maior importância, foi o crescimento numérico suficiente da população judaica e suaconcentração preponderante numa área restrita, tendo a cidade do Recife como centro.

Trata-se aí, efetivamente, de duas circunstâncias essenciais para que um grupo étnico ou cultural logre conservar ascaracterísticas próprias, sem se deixar absorver pelo meio dominante.

E o certo é que, sob o domínio holandês, a população judaica cresceu desmesuradamente, concentrando-se emRecife, bastando dizer que, enquanto essa cidade, em 1630, apenas possuía 150 casas, já em 1639 ali existiam 2.000.Havia judeus em tamanho número que, à primeira vista, se tinha a impressão de uma cidade puramente judaica.

Esse crescimento populacional dos judeus do Brasil resultou principalmente da intensa imigração que se operounaquele período, vindo para o Brasil - qual para uma terra da Promissão - judeus de vários países, sobretudo da Holanda,de cujo porto Amsterdã partiam continuamente naus carregadas de judeus e conversos, sendo que só de uma feita, em1642, embarcaram 600. A intensidade da emigração de judeus dos Países Baixos para o Brasil ressalta de uma notaescrita por Francisco de Souza Coutinho, embaixador de Portugal na Holanda, em 1644, ao conde de Vidigueira: “Estaterra é a mãe dos cristão-novos, e daqui vão para o Brasil”.

Aos imigrantes do estrangeiro, cabe ainda acrescentar os judeus que, de outras partes do próprio Brasil, vinham paraPernambuco, em busca de liberdade religiosa.

Não se sabe exatamente o número de judeus no Brasil holandês, inclinando-se a maioria dos historiadores para aelevada cifra de 5.000.

Ainda que esse numero seja exagerado - parecendo mais prudente adotar o de 1.500 - o certo é que, no apogeu dodesenvolvimento da comunidade judaica da Nova Holanda, os judeus representavam cerca de 50% de toda a populaçãocivil, que então orçava em 3.000.

Para se ter uma idéia da importância de que, naquele tempo, se revestia um núcleo israelita de 1.500 almas, bastalembrar que a própria comunidade judaica de Amsterdã, no seu pleno fastígio, não era mais numerosa.

c) - CONTINUIDADE IMIGRATÓRIA. - Trata-se de um fator supletivo, de grande ação anti assimilatória.E o que se verificou, durante mais de dois decênios de domínio holandês, foi justamente - em vez de um restrito

número de imigrações maciças - uma ininterrupta entrada de judeus, refrescando permanentemente o espírito de grupodos judeus já aqui residentes.

d) - SUPERIORIDADE CULTURAL - Igualmente, constitui fator contra aculturativo a superioridade cultural do grupoconsiderado, em relação ao meio dominante. E, no caso em foco, não resta dúvida de que os judeus imigrados -especialmente os oriundos da Holanda - eram elementos de expressão cultural bastante superior à existente no Brasilnaquela época.

Em face das condições favoráveis acima apontadas, é compreensível que fosse evoluindo a passo rápido a vida socialdos judeus em Pernambuco, até assumir a forma de uma coletividade organizada.

Nesta altura, havia duas sinagogas - uma no Recife, a outra em Santo Antônio - e um cemitério próprio, naBoa Vista. Possuíam os judeus pernambucanos uma comunidade sagrada - Cahal Cadoch - chefiada por umadiretoria, sendo conhecidos os componentes de uma delas: David Senior Coronel, Dr. Abraham de Mercado,Jacob Mucate e Isaac Castanho.

Havia ainda a Congregação Sur Israel do Recife, que mantinha um Pinkes (livro de atas) e baixava hascamot (regula-mentos). Assim, os “regulamentos” revistos em 1648 estabeleciam que todos os judeus residentes no “Estado do Brasil” etodos os futuros imigrantes tornavam-se automaticamente membros da Comunidade Judaica e deviam inscrever os seusnomes no Pinkes como demonstração de que aceitavam os regulamentos.

Também na ilha de Itamaracá formou-se uma comunidade presidida por um rabino próprio, Jacob Lagarto, que foi,aliás, o primeiro escritor talmúdico na América do Sul.

Em tal ambiente de segurança e de organização coletiva, a consciência de grupo avultou, chegando as festas judaicasa serem celebradas publicamente com procissão nas ruas.

O auge desse desenvolvimento sócio-cultural - de fundo predominantemente religioso - foi atingido pelos judeus dePernambuco em 1642, quando providenciaram a vinda da Holanda de um insigne líder espiritual, Isaac Aboab da Fonseca,que veio acompanhado do “hazan” Moisés Rafael de Aguiar.

ISAAC ABOAB DA FONSECA. Era Isaac Aboab originário de Portugal, de onde emigrara para Amsterdã aos 7 anos.

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Nesta cidade, por suas qualidades excepcionais, fez brilhante carreira, alcançando altas posições, inclusive a de membrodo rabinato.

Quando se tratou de enviar um chefe espiritual para o Brasil, foi ele o escolhido pelo presidente da comunida-de holandesa, o que, aliás, serve para corroborar a importância que então se atribuía à coletividade israelita doNordeste brasileiro.

Ao chegar ao Brasil, já encontrou Aboab uma vida judaica florescente, um campo amplo para aplicar a sua experiênciae o seu alto saber.

Desdobrou-se ele em várias atividades, destacando-se os seus admiráveis discursos sobre leis e costumes judaicos,cujo êxito era devido não só aos seus vastos conhecimentos, senão ainda à sua extraordinária eloqüência e ao fato dedominar a língua portuguesa.

Ao lada das suas atividades rabínicas, continuou Isaac Aboab no Brasil os seus trabalhos literários, tendo escrito, emcolaboração com o rabino Moisés Rafael de Aguiar, a obra “Miiméi Iehuda”, que trata da vida cultural dos judeus brasileiros.

Permaneceu Isaac Aboab fielmente à testa da comunidade brasileira até a sua “débâcle” em 1654.

DECADÊNCIA E “DÉBÂCLE”

Em 1645, começa a entrar em declínio a vida judaica no Brasil. A bem dizer, já a data de 6 de maio de 1644 - em queMaurício de Nassau, após uma série de desinteligências com a Companhia das Índias Ocidentais, deixa o governo - marcao início simbólico dessa fase que iría terminar um decênio mais tarde com a melancólica liquidação da pujante comunidadeque se havia implantado – aparentemente com tanta solidez - no Nordeste do Brasil.

A saída de Nassau - esse espírito culto e apaixonado pelos supremos ideais políticos, que se afeiçoara ao Brasil, onde,não obstante as violências da guerra, tentara introduzir adiantados processos administrativos e instituições liberais - favo-receu sobremodo o nascimento da insurreição pernambucana, pois, em substituição àquele notável estadista que haviagranjeado as simpatias gerais da população, ficara a administração do domínio holandês entregue ao Supremo Conselhodo Recife, composto do negociante Hamel, do ourives Bass e do carpinteiro van Bollestraten, indivíduos completamenteincapazes para a missão.

Inutilmente, Nassau, no seu testamento político, havia apontado a tolerância como uma das diretrizes mais importan-tes do Governo. O triunvirato que o sucedeu implantou um regime opressor e tirânico, inclusive passando a tratar oscatólicos como infiéis, dificultando aos seus sacerdotes a celebração de missas e expulsando os frades do país, porsuspeitá-los beleguins do Governador da Bahia.

Os judeus de Pernambuco cedo deram-se conta do que a nova situação viria representar para eles. Previram facil-mente que, sem a política tolerante e apaziguadora do príncipe de Nassau, seria inevitável o enfraquecimento e a quedado domínio holandês, ficando eles irremediavelmente expostos à sanha dos insurrectos pernambucanos.

Em vista disso, iniciaram o processo de retorno à Holanda, tendo emigrado em alguns anos cerca de metade dapopulação judaica, sobretudo os negociantes mais ricos. O comércio começou então a decair, o dinheiro passou a escas-sear e as tropas já se recusavam a combater; ainda mais – mediante suborno, os soldados holandeses desertavam comfreqüência para o exército português, que, em verdadeira antítese, possuía moral elevadíssima.

Para agravar a situação, a Holanda, que então se achava em guerra com a Inglaterra, não podia prestar a necessáriaajuda à colônia decadente e os reforços, que todavia lhe mandava, eram insuficientes e extemporâneos.

Embora a conjuntura se apresentasse nitidamente desfavorável aos holandeses, os judeus que permaneceram emRecife - cerca de 700 - resignaram-se a aguardar até o último instante o desfecho da luta, ficando fielmente ao lado dosholandeses e com eles compartilhando de todos os horrores do longo cerco da cidade.

O que os sitiados tiveram de suportar nesse período foi descrito de modo comovente pelo chefe da comunidadeisraelita, rabino Isaac Aboab da Fonseca, que assistiu, do início ao fim, ao combate desesperado:

“Livros não seriam capazes de descrever os nossos sofrimentos. O inimigo espalhava-se nos campos e no mato,espreitando aqui despojos e ali vidas. Muitos de nós morreram de espada na mão, outros por carência de víveres. Jazemagora na terra fria. Nós, que sobramos, estávamos expostos a morrer de qualquer maneira. Os que antes estavam habitu-ados a iguarias, sentiam-se felizes quando conseguiam pão seco o mofado para acalmar a fome”.

Sobre a atitude de inteira fidelidade aos holandeses, assumida pelos judeus remanescentes de Recife, não faltampronunciamentos desfavoráveis. Há, com efeito, quem a considere uma espécie de deslealdade ou ingratidão ao Brasil. Éum erro que cabe corrigir.

Merece notar desde logo que o Brasil não estava propriamente em jogo. Aos judeus impunha-se escolher entre dois

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ocupantes, entre duas potências estrangeiras: Portugal e Holanda. De um lado – o país que perseguia, expulsava equeimava vivos os judeus; do outro - a nação que agia para com os judeus, tanto na metrópole como nas colônias, com amaior tolerância religiosa. De um lado – a inquisição e os autos de fé; do outro - a liberdade de consciência.

Entre dois senhores - não havia outra possibilidade de escolha!E, aliás, procedendo como procederam, os judeus guardaram uma linha de impecável coerência. Eles que, por todas

as formas a seu alcance, ajudaram os holandeses a conquistar o nordeste brasileiro, na esperança, não desmentida, deobterem no Brasil um lar tranqüilo, não poderiam abandonar os aliados e protetores da véspera, no momento em que asorte começava a faltar-lhes.

Tal como souberam os judeus da Nova Holanda armar os seus sonhos - que chegaram a ver em boa parte realizados- também mostraram saber suportar a sua ruína, lutando bravamente até a queda final da sua cidadela, com o que sehaveria de encerrar o ciclo mais fastigioso, embora efêmero, da vida judaica no Brasil colonial.

Capítulo VIIIPERÍODO PÓS-HOLANDÊSDISPERSÃO E ACOMODAÇÃO (1654 - 1700)O grande êxodoO destino dos fugitivos nas colônias americanasA acomodação no Brasil

O GRANDE ÊXODO

Com a queda de Recife e subseqüente capitulação dos holandeses, entrou em plena desagregação a comunidadeisraelita no nordeste do Brasil.

Viram-se então os judeus dessa região, após vários anos de privações e sofrimentos, em face de uma dolorosaencruzilhada: permanecer no Brasil, onde presenciaram a calamitosa destruição da sua vida coletiva e dos seus benspessoais, e onde os ameaçavam os horrores de uma implacável perseguição - não obstante o arranjo feito pelos holande-ses com os portugueses no sentido de ficarem impunes os judeus remanescentes - ou emigrar em busca de refúgio, ondepudessem reconstruir as suas vidas.

Uma pequena parcela resignou-se à permanência no Brasil, dispersando-se pelo seu território, enquanto o grossooptou pela emigração. Destes, um grupo - constituído provavelmente dos mais ricos e mais relacionados na Holanda, entreeles o próprio chefe da comunidade rabino Isaac Aboab da Fonseca - decidiu retornar a esse país - ilha de liberdade novasto oceano de intolerância que então era o continente europeu - ao passo que a maioria, a parte mais pobre, preferiuenfrentar o desconhecido, aventurando-se em direção das mais longínquas paragens das três Américas.

Os que regressaram à Holanda, ali se reintegraram na comunidade israelita, sem deixarem maiores vestígios. Osoutros, pulverizados entre diversas colônias francesas, inglesas e holandesas das Américas, lançaram nas novas pátriasa afirmação pujante da sua vitalidade, contribuindo eficazmente para o desenvolvimento econômico das mesmas e im-plantando aglomerações judaicas, uma das quais viria a ser nos tempos modernos a extraordinária comunidade israelitados Estados Unidos da América do Norte.

O destino dos fugitivos nas colônias americanas O êxodo dos judeus brasileiros para as colônias européias nasAméricas tomou três rumos: Guianas, Antilhas e Nova Holanda (América do Norte), dos quais o segundo foi queatraiu a maioria.

Guianas. - De começo, um grupo de judeus fugitivos, sob a direção de David Nassib, fixou-se em Caiena (1657),donde, por ter sido hostilizado pelos habitantes locais, passou mais tarde para Suriname, que naquele tempo era umacolônia inglesa, somente vindo a ser conquistada em 1667 pelos holandeses.

Em Suriname, os judeus contribuíram substancialmente para o desenvolvimento da colônia, à base da cultura da canade açúcar, e, graças à absoluta liberdade de que gozavam, foram crescendo em número e se organizando em umacomunidade duradoura que, em fins do século XVIII, chegou a contar mais de 1.300 almas. O núcleo mais importante -com 1.045 judeus numa população de 2.000 - ficava nos arredores de Paramaribo e era conhecido como “Savana Judéa”.

Antilhas. - A primeira leva de judeus procurou atingir a Martinica, que gozava da fama de ser bem administrada pelogovernador Parquet. Este, entretanto, embora a princípio disposto a aceitá-los, resolveu, por influência dos jesuítas, nãopermitir o desembarque, o que fez com que os forasteiros, em número de 900, seguissem para Guadalupe, onde foramacolhidos e, bem depressa, prosperaram.

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Mais tarde, Parquet, arrependido, permitiu que outras levas de judeus se estabelecessem na ilha, a qual passou entãoa experimentar enorme progresso na agricultura e no comércio.

Outro grupo atingiu Barbados, onde já havia alguns cristãos-novos trazidos pelos ingleses e que, acrescidos agorados judeus brasileiros, deram um forte incremento à indústria do açúcar. Finalmente, vários outros grupos estabeleceram-se em Jamaica e São Domingos, dedicando-se, como sempre, à sua tradicional ocupação - indústria açucareira.

Graças a esse concurso dos judeus foragidos do Brasil, conseguiu a América Central estabelecer o seu monopólio nomercado mundial de açúcar, monopólio esse que antes estava nas mãos do Brasil. Forneceram, assim, aqueles judeus àscolônias centro americanas os elementos de riqueza que, por influência da desastrada política dos monarcas portugueses,o Brasil desprezara!

América do Norte. - Um grupo de judeus, numericamente pequeno, porém de importância significativa para a históriados judeus no Novo Mundo, deixou Recife, logo depois da sua queda, em direção à longínqua Nova Amsterdã (atual NovaYork), então capital da Nova Holanda norte americana.

Quando esse grupo de 23 judeus, levado pelo navio de guerra francês “St. Charles”, acampou em 12 de setembrode 1654, à margem do Hudson, era sua esperança encontrar ali boa acolhida, por se tratar de uma colônia holandesa.Entretanto, o governador da colônia, Pierre Stuyvesant, autocrata e anti-semita, fanático e inflexível em matéria dereligião, exigiu a retirada desses “inimigos e blasfemadores do nome de Cristo”. E foi somente graças à intervenção daCompanhia das Índias Ocidentais - em cujo seio acionistas judeus exerciam influência - que afinal se permitiu a perma-nência dos 23 judeus brasileiros na aldeia de Nova Amsterdã, com a condição de que “os pobres entre eles fossemmantidos por sua própria nação”, que não exercessem cargos públicos, que não se dedicassem ao comércio a varejo,e que não fundassem congregação.

Evidentemente, tais restrições passaram em breve a ser letra morta, pois, decorridos apenas dois anos, já haviam osjudeus, sob a liderança de Asser Levy, conseguido adquirir um terreno para um cemitério próprio.

Pouco mais tarde, tendo os ingleses se apoderado em 1664 das colônias holandesas da América do Norte, os judeuspassaram a gozar de absoluta liberdade de consciência, podendo assim consolidar a sua comunidade e disseminar-sepelo país, onde, com o correr dos séculos, viria desenvolver-se a maior das coletividades israelitas do mundo, tendo comoprincipal centro a cidade de Nova York, justamente a antiga aldeia de Nova Amsterdã onde, em meados do século XVII, umpunhado de judeus brasileiros fugitivos estabelecera a primeira aglomeração judaica da América do Norte.

A ACOMODAÇÃO NO BRASIL

Como já foi mencionado, o êxodo que se verificou após a expulsão dos holandeses não abrangeu a totalidade dapopulação judaica do nordeste do Brasil. Certo número de marranos resolveu permanecer na terra que havia aprendidoa amar, confiando não só no compromisso estipulado no tratado de capitulação dos holandeses no sentido de que osjudeus remanescentes não seriam molestados, como ainda no ambiente de relativa tolerância religiosa que entãoreinava em Portugal.

Contribuiu para tal ambiente a influência do padre jesuíta Antônio Vieira, enérgico, persistente e abnegado defensordos judeus. O ardor com que lutou pela sua causa provinha-lhe da convicção de que os judeus não podiam ser jamaisum perigo para Portugal: e de que, ao contrário, eles eram a energia vital da nação, tornando-se assim urgente chamarde volta os judeus expulsos ou foragidos com o fim de revigorar as forças empobrecidas. O mais importante dostrabalhos que escreveu em defesa dos judeus intitulava-se: “Proposta feita a El Rei D. João IV, em que se lhe represen-ta o miserável estado do reino e a necessidade, que havia, de admitir os judeus mercadores, que andavam por diversaspartes da Europa”.

Graças à visão esclarecida e aos esforços do padre Antônio Vieira, fundou-se, em 8 de março de 1649, a CompanhiaGeral do Brasil, semelhante à Companhia anteriormente criada pelos holandeses, tendo os cristãos-novos ricos do paíssubscrito grande número de ações da nova sociedade. Como contrapartida, obtiveram os cristãos-novos várias conces-sões tais como a isenção do confisco dos seus bens e facilidades para comerciarem e se transportarem ao Brasil.

Em tais condições, compreende-se que, com a retirada dos holandeses do Brasil, e apagados os primeiros ressenti-mentos, pudessem os judeus remanescentes difundir-se pacificamente pelo território brasileiro, inclusive em áreas dopróprio Nordeste, reduzindo ao mínimo as aparências da sua origem judaica.

É certo que, decorridos alguns anos, tendo falecido D. João IV em 1656, a Inquisição conseguiu pôr termo à tolerânciaanteriormente instituída para com os judeus e - sem se esquecer de vingar-se do padre Vieira - fez recrudescer as perse-guições. Estas culminaram com a promulgação da lei de 9 de setembro de 1683, que determinava a expulsão dos cristãos-

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novos e a aplicação da pena de morte aos que voltassem ao país.Os efeitos dessa nova onda de perseguições não alcançaram todavia de forma sensível o Brasil, tendo até contribuído

para que se intensificasse a vinda dos cristãos-novos acossados em Portugal.E, assim, pôde a população do Brasil, não somente recompor-se do tremendo abalo sofrido com a desagregação

pós-holandesa, mas ainda experimentar um razoável crescimento numérico. Do exposto, cabe concluir, portanto, que asegunda metade do século XVII foi um período de lenta e discreta acomodação dos judeus no Brasil: um períodocertamente sem brilho e sem quaisquer manifestações de vida coletiva judaica, mas também sem grandes abalos,sofrimentos e dissabores.

Capítulo IXPERÍODO DAS GRANDES PERSEGUIÇÕES (1700 - 1770)Apogeu da inquisição portuguesa e sua repercussão no BrasilAntônio José da Silva: “O Judeu”

APOGEU DA INQUISIÇÃO PORTUGUESA E SUA REPERCUSSÃO NO BRASIL

A acomodação, tão bem levada a efeito pelos judeus brasileiros na segunda metade do século XVII, não logroutranspor o umbral do século seguinte, quando, afinal, a Inquisição de Lisboa, cujas garras até então mal haviam consegui-do arranhar a população judaica do Brasil, acabou estendendo sobre este país a sua implacável rede de perseguições.

Essa onda de terror que, com algumas intermitências, se desdobrou por longos 70 anos, com especial virulência nosperíodos de 1707 a 1711 e 1729 a 1739, conferiu à primeira metade do século XVIII as características de época negra dahistória dos judeus no Brasil.

Várias razões, entre essenciais e subsidiárias, contribuíram para esses trágicos eventos. Em primeiro lugar, a perse-guição aos cristãos-novos em Portugal atingira então justamente o seu apogeu, assumindo ali a obra vandálica da Inquisiçãoaspectos verdadeiramente pavorosos.

“Despovoavam-se extensas zonas do país e a Europa contemplava atônita uma nação que se destruía à ordem debroncos frades”. Não admira, pois, que tal fúria infrene acabasse também repercutindo nesta banda do oceano.

Por outro lado, os judeus brasileiros, graças ao seu ajustamento econômico e social, operado na segunda metadedo século XVII, haviam voltado a constituir uma parcela das mais opulentas da colônia; havia, pois, bens a confiscar, ecom facilidade!

E, se isso não bastasse, fôra designado bispo do Rio de Janeiro - D. Francisco de São Jerônimo, que exercera, emÉvora, o cargo de qualificador do Santo Ofício, ali se distinguindo pela sua intolerância religiosa e pelo seu rancor contra araça hebréia.

Tão furiosa passou a ser então a caça aos judeus brasileiros, principalmente no Rio de Janeiro e na Paraíba, que, sóentre 1707 e 1711, mais de 500 pessoas foram levadas prisioneiras para a Inquisição de Lisboa.

O pânico se fez geral, paralisando por completo o desenvolvimento das relações mercantis da colônia com a metrópo-le, e a esta causando tão sérios prejuízos que a coroa portuguesa afinal se viu forçada a proibir que prosseguisse oconfisco dos engenhos de açúcar, na maioria pertencentes a indivíduos de origem judaica.

Sucedeu então uma relativa calma, que, entretanto, não chegou a durar 20 anos. Tendo neste interregno osjudeus se refeito dos abalos anteriores e mesmo voltado a enriquecer graças ao incremento da exploração dasminas de ouro e do comércio de diamantes, recomeçou a sanha dos inquisidores, atraídos pelas renascidas pers-pectivas de maciços confiscos.

A nova fase de perseguições, mais intensa durante o decênio 1729-1739, prosseguiu, praticamente até 1770, quandooutras condições vieram extirpar, e para sempre, o cancro da inquisição, que tanto manchara a história de Portugal e tantofizera decair esse grande império dos tempos manoelinos.

Até hoje não se sabe ao certo quantos judeus oriundos do Brasil caíram vítimas da Inquisição de Portugal.Há quem avalie em apenas 400 o número dos judaizantes brasileiros processados, dos quais não mais de 18 teriam

sofrido a pena capital; são cifras relativamente modestas, não perfazendo senão 1 a 2% do total de processos e condena-ções da Inquisição nos seus 230 anos de funcionamento em Portugal.

Mas, tal estimativa parece longe de dar uma idéia exata da extensão que na verdade a tragédia assumiu, pois que,ainda hoje, existem nos arquivos da Torre de Tombo, em Lisboa, 40.000 processos da Inquisição, cujos mistérios aguar-dam o trabalho paciente dos que se disponham a investigá-los para revelar à história toda a sua hediondez.

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ANTÔNIO JOSÉ DA SILVA: “O JUDEU”

Entre as vítimas brasileiras da Inquisição portuguesa, na fase da sua mais nefanda atuação, figura Antônio José daSilva, nascido no Rio de Janeiro, em 1705, e que, por consenso geral, é considerado descendente de judeus.

Aos oito anos de idade, transladou-se ele com seu pai para Lisboa, aonde acabava de ser enviada como prisioneira asua mãe, acusada como fôra de judaísmo pelos agentes da Inquisição.

Em Portugal, freqüentou Antônio José colégio e universidade, sempre revelando excepcionais dotes de inteligência einvulgar pendor literário. Em poucos anos, seu espírito criador enriqueceu a literatura portuguesa de numerosas peçasteatrais de singular valor, galgando ele os mais altos degraus da fama e da popularidade.

Como de suas peças, genialmente arquitetadas, com freqüência extravasasse um sarcasmo sem rebuços contra atorpe atividade da Inquisição, esta o marcou e não mais descansou no afã de eliminá-lo.

E ela conseguiu o seu intento, não obstante o prestígio imenso do poeta. Tentara a princípio intimidá-lo, confiscando-lhe os bens e esmagando-lhe os dedos - ato este praticado na igreja de São Domingos em 13 de outubro de 1726 - naesperança de que assim não mais viesse a manejar a sua pena mordaz.

Vendo, porém, que com isso ainda mais haviam acirrado o seu ódio ao monstruoso tribunal, os inquisidores enredaramAntônio José da Silva numa complicada trama de denúncias e falsos testemunhos, entre os quais o de que ele ria do nomede Cristo, jejuava às segundas e quintas-feiras, vestia roupa limpa aos sábados, e rezava o Padre Nosso substituindo, nofim, o nome de Jesus pelo de Abraão e do Deus de Israel.

E assim, inapelavelmente condenado à pena capital em 11 de março de 1739, foi Antônio José da Silva - cognominado“O Judeu” - queimado, em 21 de outubro do mesmo ano, na praça pública, não tendo faltado sequer alguns requintes decrueldade: foram obrigadas a assistir ao ato - a sua mãe, setuagenária, sua mulher e sua filha de quatro anos.

Uma das maiores expressões da genialidade judaico-brasileira acabava de pagar com a preciosa vida o seuinconformismo com a bestialidade da Inquisição!

Capítulo XPERÍODO PRÉ-ASSIMILATÓRIO (1770 - 1824)Disposições liberais em Portugal. O Marquês de PombalRepercussão no Brasil. Tratado de comércio de 1810. Proclamação da Independência do Brasil

DISPOSIÇÕES LIBERAIS EM PORTUGAL. O MARQUÊS DE POMBAL

Em 1770, teve início um novo ciclo para a vida judaica no Brasil, sem nenhuma semelhança com todo o seu passado.As cinco décadas seguintes constituem uma fase de transição para uma política liberal, que não mais sofreria retrocessos,ampliando cada vez suas conquistas até a eclosão definitiva em 1824, após a proclamação da independência do Brasil esua constitucionalização.

Em Portugal, o cenário mudara e a Inquisição acabava de entrar nos seus últimos estertores, golpeada de morte peloclarividente e poderoso ministro Sebastião José de Carvalho e Melo, conhecido como o Marquês de Pombal.

Já em 5 de outubro de 1768, como medida precursora, havia esse estadista excepcional desarmado os denominados“puritanos”, isto é, os nobres que timbravam em não se alinhar a sangue suspeito de cristão-novo: determinou o Marquêsum prazo de 4 meses àqueles que tivessem filhos em idade casadoura, para que procedessem a enlaces com famílias atéentão excluídas.

Poucos anos depois, em 25 de maio de 1773, conseguiu ele junto ao rei, D. José I, a promulgação de uma lei queextinguiu as diferenças entre cristãos-velhos e cristãos-novos, revogando todos os decretos e disposições até entãovigorantes com respeito à discriminação contra os cristãos-novos. As penalidades pela simples aplicação da palavra“cristão-novo” a quem quer que fosse, por escrito ou oralmente, eram pesadas: para o povo - chicoteamento em praçapública e banimento para Angola; para os nobres - perda dos títulos, cargos, pensões e condecorações; para o clero -banimento de Portugal.

Finalmente, um ano mais tarde, em 1 de outubro de 1774, foi a referida lei regulamentada por um decreto, que sujei-tava os veredictos do Santo Ofício à sanção real.

E assim, com essa restrição, estava praticamente anulada a Inquisição portuguesa.Sobre o especial empenho do Marquês de Pombal junto ao rei em favor da extinção de quaisquer discriminações

contra os cristãos-novos, encontra-se na “História Universal do Povo Judeu” de S. Dubnov, a seguinte conjetura: “Mas,

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consta que o rei manifestou o desejo de que os marranos fossem pelo menos reconhecíveis por um sinal especial. Então,Pombal tirou três chapéus amarelos, dos que usavam os judeus em Roma, explicando que um seria destinado a elepróprio, outro ao inquisidor geral e o terceiro ao rei, visto como ninguém - disse ele - podia estar certo de que nas suasveias não corria o sangue dos marranos”.

Repercussão no BrasilTratado de comércio de 1810Proclamação da Independência do Brasil

A repercussão das disposições pombalinas no Brasil foi automática e eficaz. Após setenta anos de perseguiçõestremendas, estavam os cristãos-novos brasileiros ansiosos de se igualarem aos demais habitantes do país, dos quais, narealidade, freqüentemente em nada se distinguiam, a não ser pela discriminação que lhes era imposta. Assim, nesseambiente já por si propício - favorecido ainda pelos intensos cruzamentos étnicos e processos trans culturativos que sevinham verificando naquela época, graças à mutação econômica parcial da base agrária para a de mineração - o liberalis-mo da nova lei foi um franco estímulo à completa assimilação dos cristãos-novos.

Bem entendido, esse processo de integração não se fez de pronto, nem de maneira cabal, pois que não desapareceraa desconfiança com relação às reviravoltas políticas da coroa portuguesa.

Tanto assim que, mesmo 25 anos mais tarde, quando, pelo tratado de comércio formado em 19 de fevereiro de 1810,na cidade do Rio de Janeiro, entre a Inglaterra e Portugal, foi dado mais um passo à frente no caminho da liberalização,ficando oficialmente proibidas as atividades da Inquisição no Brasil, o governo de Portugal ainda receava os judaizantes.

É como se explica que, no mesmo artigo nº 12 do aludido tratado, em que se dispunha que: “nem os vassalos daGrande Bretanha, nem outros quaisquer estrangeiros de comunhão diferente da religião dominante dos Domínios dePortugal, serão perseguidos ou inquietados por matérias de consciência, tanto nas suas pessoas, como nas suas propri-edades, enquanto eles se conduzirem com ordem, decência e moralidade, e de uma maneira conforme aos usos do Paíse ao seu estabelecimento religioso e político”, acrescentou-se:

“porém, se provar-se que eles pregam ou declamam publicamente contra a religião católica, ou que eles procuramfazer prosélitos ou conversões, as pessoas que assim delinqüirem poderão, manifestando-se o seu delito, ser mandadassair do País...”

Foram necessários mais outros 15 anos para que, alcançada a independência do Brasil em 1822 e promulgada aconstituição de 1824, desaparecesse, pela via aberta da assimilação, o problema judaico brasileiro.

Não será demais lembrar que foi marcante a contribuição dos próprios judeus brasileiros para o movimento que viriatrazer a sua extinção como grupo pela completa integração na coletividade nacional. Assim o testemunha o historiadorRocha Pombo: “Os primórdios da rebeldia para constituir uma nação independente tiveram por parte dos israelitas e dossues descendentes destacada contribuição”, e assim o reforça o historiador Adolfo Varnhagen: “Os judeus foram os pionei-ros da independência do Brasil. A sua valiosa contribuição, a sua tenacidade de raça eleita, de povo perseguido, constitu-íram os alicerces onde colocou-se o lábaro ardente da esperança na Libertação do Brasil do jugo da mãe-pátria”.

Capítulo XIPERÍODO DA ASSIMILAÇÃO (1824 - 1855)Assimilação profunda da população judaica autóctoneSurgimento do foco judaico da Amazônia

ASSIMILAÇÃO PROFUNDA DA POPULAÇÃO JUDAICA AUTÓCTONE

Uma vez constitucionalizado o país e implantada a total liberdade de consciência, nada mais restava que pudessesustentar a sobrevivência da população judaica, já bastante reduzida em conseqüência da assimilação que se vinhaoperando, lenta mas continuamente, nos 50 anos precedentes, à sombra do crescente liberalismo pós-pombalino.

Esses judeus remanescentes, cujo espírito coletivo já estava muito debilitado - pois, como mencionado atrás, elesquase só se consideravam judeus em virtude da discriminação vinda de fora - tão logo perceberam que desta vez aliberdade viera em caráter duradouro, cortaram aquela última amarra, de odioso fundo discriminatório, que os prendia aopassado judaico e difundiram-se rapidamente no seio da população geral, com a qual, de resto, já se achavam inteiramen-te identificados, sob todos os aspectos histórico-culturais.

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(A título de curiosidade, aliás expressiva, merece notar que, não obstante essa integração total, muitos assimiladoscontinuaram, pelos anos afora, a declinar a sua condição de ex-cristãos-novos, sendo mais notável o fato de que, mesmodepois de decorrido mais de um século, em pleno meado do século XX, encontram-se todavia descendentes de criptojudeusque, com certo sentimentalismo, evocam a sua origem e testemunham o seu enternecimento pelos sofrimentos dos an-tepassados comparecendo aos templos israelitas por ocasião das principais cerimônias religiosas do ano).

O único fator que, nessa conjuntura criada após a Constituição de 1824, talvez ainda lograsse reacender a chamapretérita e preservar aqueles judeus da assimilação total, teria sido uma imigração maciça e homogênea de judeus, denível elevado e de tradições afins.

Mas essa hipótese única, assim mesmo de efeito problemático, inexistiu de todo, pois que, depois da Independência,enfraqueceu de muito o movimento de imigração no Brasil, sendo que a imigração judaica praticamente se anulou. Eviden-temente, não se pode levar em nenhuma conta os judeus esporadicamente encontrados de permeio com grupos imigran-tes europeus. Tais elementos isolados, oriundos provavelmente de esferas israelitas já bastante assimiladas da Europaocidental, passaram a atuar no país de forma exclusivamente individual, sem nenhum resquício de comportamento grupale sem a menor manifestação de hábitos e tradições judaicos.

SURGIMENTO DO FOCO JUDAICO DA AMAZÔNIA

Cabe, apenas, abrir um parênteses para uma exceção de valor pouco mais que simbólico, verificada no extremonorte do país.

Logo após a Independência, principiaram a afluir para a Amazônia elementos judaicos provenientes do Marrocos.Tratando-se de uma imigração de origem nova, sem qualquer afinidade histórica ou cultural com a população brasileira daregião, e dado o clima liberal criado pela Constituição de 1824, fácil e cômodo foi a esses judeus marroquinos conservaremsua religião e tradições, cedo vindo a fundar - no ano de 1828 - uma sinagoga, de nome “Porta do Céu”, na cidade deBelém do Pará.

Essa aglomeração judaica da Amazônia, que, com o decorrer dos anos, foi sendo ampliada de maneira contínuacom elementos oriundos da mesma região norte-africana, difundiu-se pelos pontos estratégicos do grande rio, passan-do a desempenhar um papel relevante no desenvolvimento econômico da região, bem como no intercâmbio comercialcom o estrangeiro.

Entretanto, esse agrupamento judaico da longínqua Amazônia, pouco numeroso, aliás, e isolado, cultural e material-mente, das regiões vitais e mais adiantadas do país, não podia, evidentemente, exercer nenhuma influência sobre ojudaísmo indígena que então já entrava na sua fase de total oclusão.

Por isso mesmo, a existência da minúscula comunidade do extremo norte do país não tira, de modo nenhum, aoperíodo 1824-1855 a sua característica inconfundível, que é a de se ter, no seu decurso, processado a profunda assimila-ção da população judaica remanescente após a Independência do Brasil.

Capítulo XIIPERÍODO PRECURSOR DA IMIGRAÇÃO MODERNA (1855 - 1900)Imigração ocidental (Norte da África e Oeste europeu)Imigração oriental (Mediterrâneo oriental e Leste europeu)

IMIGRAÇÃO OCIDENTAL (NORTE DA ÁFRICA E OESTE EUROPEU)

Na segunda metade do século XIX, por volta de 1855, começou a modificar-se a situação judaica no Brasil. A popula-ção israelita, até então reduzida unicamente ao remoto agrupamento amazonense, passou a crescer em número e aespalhar-se pelo território brasileiro.

Sem prejuízo do prosseguimento da imigração judaica norte-africana para a região amazônica, foram chegando parao Rio de Janeiro - de onde irradiavam para os estados vizinhos, especialmente para São Paulo e Minas Gerais - judeusprocedentes de vários países da Europa Ocidental - franceses, ingleses, austríacos e alemães, sobretudo alsacianos - atal ponto que, em 1857, já sentiram a necessidade de fundar uma sinagoga.

As duas aglomerações - da região amazônica e do Rio de Janeiro - não mantinham entre si quaisquer relações degrupo e apresentavam, aliás, características diferentes.

A coletividade amazônica era mais estável, eis que os judeus marroquinos vinham para o extremo norte do Brasil

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com a intenção de ali se radicarem, tendo eles, em conseqüência, alargado com o tempo o seu campo de atividades, demolde a abranger não somente o comércio interno e o de exportação e importação - este especialmente de tecidos -mas também o setor de navegação e da exploração de seringais, afora a participação nas atividades públicas e noexercício de cargos oficiais.

Já no sul, os judeus, originários do oeste europeu, vinham antes com o objetivo de prosperar e de em seguida regres-sar aos países de origem, embora muitos acabassem permanecendo no Brasil, fosse porque não houvessem logrado odesejado enriquecimento rápido, fosse porque já se sentissem dominados pelo apego à nova terra. Em face daquelapredisposição inicial, limitavam-se os judeus do Rio de Janeiro e dos estados vizinhos às ocupações comerciais, semnenhuma tentativa de integração em outras atividades econômicas, de feição mais estável e caráter mais fundamental, emuito menos procuravam imiscuir-se na vida pública do país.

IMIGRAÇÃO ORIENTAL (MEDITERRÂNEO ORIENTAL E LESTE EUROPEU)

Na última década do século XIX, a imigração judaica cresceu de vulto, multiplicando-se os países de procedência etambém as regiões em que os imigrantes passavam a fixar-se no Brasil.

Enquanto, até então, os imigrantes judeus provinham quase exclusivamente do Norte da África e do Ocidente euro-peu, já agora, afora aquelas regiões, chegavam levas de judeus oriundos do Mediterrâneo oriental - Grécia, Turquia, Síriae Líbano (sefaradim) e da própria Palestina (sefaradim e asquenazim) - e ainda da Rússia e países vizinhos do lesteeuropeu, localizando-se de preferência na zona sueste do país - Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais - mas tambémse disseminando por muitos outros estados, tanto do Sul como do Nordeste.

Ficou assim o Brasil, no final do século XIX, pontilhado de núcleos judaicos multicolores.Conquanto ainda não existissem quaisquer ligações de grupo mais firmes entre essas diversas aglomerações judai-

cas, e nem mesmo se houvessem ainda estabelecido coordenações locais entre os elementos israelitas policrômicos - quetinham línguas, tradições e interesses diferentes - é entretanto fato digno de registro que, ao findar o século XIX, já existiano Brasil uma coletividade judaica em potencial, que abarcava todo o território nacional; uma rica infra-estrutura, sobre aqual viriam em breve apoiar-se as vastas e homogêneas ondas imigratórias do leste europeu - Bessarábia, Ucrânia,Lituânia, Polônia - as quais, nas primeiras décadas do século XX, ergueriam no Brasil o arcabouço de uma sólida comuni-dade israelita.

DISTRIBUIÇÃO DA POPULAÇÃO JUDAICA DO BRASIL, POR ESTADO, NO LIMIAR DO SÉCULO XX(Dados do censo de 1900)Amazonas 153 - Pará 211 - Maranhão 2 - Ceará 25 - Rio G. do Norte 5 - Paraíba 6 - Pernambuco 8 - Alagoas 2 - Bahia 17- Minas Gerais 37 - Espírito Santo 30 - Rio de Janeiro 25 - Distrito Federal 202 - São Paulo 226 - Paraná 17 - Santa Catarina1 - Rio Grande do Sul 54 - Total 1.021.

CONCLUSÃO

Um relance retrospectivo sobre o passado dos judeus no Brasil - compreendendo judeus propriamente ditos, criptojudeus,cristãos-novos e meros descendentes de judeus - revela uma trajetória honrosa, pontilhada sem dúvida de dissabores e desofrimentos, mas também repleta de sucesso, traduzido em contribuições positivas e fundamentais para o desenvolvimen-to do país e para a formação do seu povo.

Na exploração das costas brasileiras, no desbravamento do interior, no progresso da lavoura, do comércio e dasindústrias, no avanço das artes e das ciências, enfim nos movimentos ideológicos de emancipação política da terra - emtudo os judeus deixaram marcas indeléveis da sua participação ativa, e tudo eles impregnaram do seu senso progressistae dos seus valores de cultura.

Por outro lado, o seu dom de grande mobilidade e sua notável capacidade de adaptação e convivência deram margempermanentemente a cruzamentos em alta escala, fazendo com que os judeus entrassem poderosamente na composiçãoétnica nacional e transmitissem ao brasileiro de hoje largos contingentes éticos, antropológicos e culturais.

Conquanto não guardem propriamente continuidade com as populações israelitas de antanho, os judeus brasileiros doséculo XX, como coletividade, têm todos os motivos para se apropriarem de tal patrimônio histórico e de se terem porpartícipes da nacionalidade.

Eis que seus ancestrais, por quatro séculos, foram deixando um legado precioso ao país. Quatro séculos: nem sequer

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um dia menos que a própria história do Brasil!

BIBLIOGRAFIA

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ANTIGA HISTORIA DO BRASIL

IntroduçãoFENÍCIOS, DESCOBRIDORES E COLONIZADORES DO BRASIL

Milhares de obras já foram escritas apresentando a tese de que os pré-egípcios teriam saído da América do Sul, eque foi também aqui o berço da civilização européia. Freqüentemente vemos surgirem aqui e ali indícios que reavivamessa tese, e volta a manchetes o assunto, seja devido a escavações, quando se descobrem prováveis cidades soterra-das, túneis e cavernas com objetos de origem antiga, ou inscrições petroglíficas, seja porque algum cientista vem apaíses sul-americanos.

O Brasil tem sido, talvez, o menos estudado em assuntos arqueológicos ou, esporadicamente, um cientista estrangei-ro descobre aqui e ali um indício e chama nossa atenção, olhe aqui... ali...

Mas ultimamente tem sido despertada a consciência dos brasileiros para a necessidade de conhecer melhor a suaterra, a sua origem. Tem havido, mesmo, grande interesse em tudo o que se relaciona com a nossa terra. O dizer-se queos índios brasileiros nasceram autóctones há 50 ou 100 mil anos é teoria já não muito aceita, ou dizer-se que os primeiroshabitantes da terra surgiram na África ou na Ásia, e um bocadinho no Brasil, é assunto para estudar-se com maior profun-didade. Mas o afirmar-se que os primitivos brasileiros emigraram do lendário continentes Atlântida, via Venezuela, ouchegaram em pirogas, ou desceram dos Andes, ou são pré-egípcios, ou grande parte descende dos Fenícios, ou por quenossos índios possuem uma memória do Dilúvio, é assunto para estudar-se mais ainda. A História existe, mas ela étambém uma teoria que poderá ser ampliada ou até renegadas algumas de suas verdades. As teorias e verdades aristotélicasdominaram a civilização durante mais de mil anos e, tentando reformular essas verdades, muitos cientistas morreram emfogueiras, quando os senhores da verdade oficial achavam que a nova verdade poria em perigo sua hegemonia sobre oshomens. Se tivermos que amanhã reformular a História brasileira, por que não o fazermos, a bem da verdade?

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Se aqui e ali aparecem indícios de que os Fenícios descobriram e colonizaram parte do Brasil há 3.000 anos, estude-mos os indícios, os sinais de sua passagem, as escritas cuneiformes, as inscrições petroglíficas, a mão encarnada quealguém deixou gravada na pedra ou a marca noutra pedra que deixaram para indicar que por aqui passaram outros.

A obra que ora apresentamos, ANTIGA HISTÓRIA DO BRASIL (de 1100 a.C. a 1500 D. C.), de LUDWIGSCHWENNHAGEN, é um desafio. Desafio aos arqueólogos, geógrafos, geólogos, aos antropólogos, filólogos, etimólogos,indianistas, aos prefeitos de Municípios, governos de Estados brasileiros, desafio a todos os brasileiros, para que estudeme expliquem melhor a sua terra, a sua gente, suas heranças mais remotas.

Desafio lançado por esse austríaco em 1928 e que se perdeu na restrita área do Piauí, quando a Imprensa Oficial deTeresina lançou essa obra em primeira edição e seus poucos exemplares desapareceram no manuseio de mão em mão.

Desafio que volta a ser lançado na reedição desta obra de excepcional valor para os estudos da origem brasileira,quando as teses de seu autor vêm despertando intensa curiosidade e está merecendo até apoio oficial.

Ao tomar o leitor este livro às mãos, por certo se fará perguntas que talvez nunca tenha ouvido, como, por exemplo: foiPedro Álvares Cabral quem descobriu o Brasil em 1500 d.C. ou navegadores Fenícios em 1100 a.C.? Cabral o terádescoberto por acaso como narram os compêndios de história, ou ele já conhecia, detalhadamente, a descrição feita pelohistoriador grego Diodoro, no século I, antes de Cristo, na sua História Universal? Ou teria Cabral em mãos a carta denavegação, descrevendo as costas do Brasil, confeccionada por Toscanelli, a mando de Fernando Teles, em 1473?

Onde fica a lendária Insula Septem Civitatum, ou Ilha das Sete Cidades, que os romanos tanto buscavam, e já apare-cia a sua descrição em latim numa crônica de Porto-Cale (Porto), em 740 d.C., como sendo um novo Éden, a ilha dos SetePovos, onde existiam ouro e muitas outras riquezas? Ficaria nos Açores, na Ilha da Madeira, nas Antilhas ou nas costas doPiauí, no Brasil? Quais os primeiros mineradores que exploraram ouro e pedras preciosas no Brasil? Os portugueses ouengenheiros egípcios? Buscavam apenas ouro e metais preciosos ou também salitre para o embalsamamento de seusmortos? Ou engenheiros mandados pelos reis Davi e Salomão, em aliança com o rei Hirã, nos anos 991 a 960 antes da eracristã? Quem primeiro oficiou funções religiosas aos índios brasileiros? Henrique de Coimbra ou sacerdotes da Ordem dosMagos da Caldéia, da Suméria ou da Mesopotâmia? Foram os portugueses os primeiros a exportarem pau-brasil? Mas, senas memórias de Georg Fournier, da Marinha francesa, não consta que os bretões e normandos já traficavam com osselvagens do rio São Francisco, que lhes vendiam o Pau-Brasil?

Perguntas dessa natureza estão implícitas nesta admirável obra de LUDWIG SCHWENNHAGEN, que pode ser lidaaté por leitores de literatura circunstancial, como se lê um livro de mistério, tal o interesse que nos desperta, mas é obra deexaustiva pesquisa.

A primeira edição de ANTIGA HISTÓRIA DO BRASIL é de 1928, da Imprensa Oficial de Teresina, e menciona sob otítulo: Tratado Histórico de Ludovico Schwennhagen, professor de Filosofia e História. Como vemos, o autor assinou-se,não sabemos se por espontânea vontade, como Ludovico. Preferimos, na sua reedição, conservar-lhe o nome original,que é Ludwig. Pouco se sabe a seu respeito. Em Teresina existe uma memória no povo de que “por aqui passou essealemão calmo e grandalhão que ensina história e bebia cachaça nas horas de folga, andava estudando umas ruínas peloEstado do Piauí e outros do Nordeste, e que chegou a Teresina no primeiro quartel deste século, não se sabe de onde, emorreu sem deixar rastro, não se sabe de quê, e andava rabiscando uns manuscritos sobre a origem da raça Tupi, lendotudo o que era pedra espalhada por aí. Seu nome é tão complicado que muitos o chamavam Chovenágua”. É muito poucopara se situar um estudioso de seu quilate.

No livro Roteiro das Sete Cidades, de autoria de Vitor Gonçalves Neto, publicado pela Imprensa Oficial de Teresina,para as Edições “Aldeias Altas”, de Caxias, Maranhão, em 1963, livro gostoso de se ler, em que descreve as Sete Cidadese cita vários trechos deste livro de Schwennhagen, comentando-o através de personagens bem típicos, o autor faz oseguinte oferecimento: “À memória de Ludovico Schwennhagen, professor de História e Filosofia, que em maio de 1928levantou a tese meio absurda de que os fenícios foram os primeiros habitantes do Piauí. Em sua opinião, as Sete Cidadesserviram de sede da Ordem e do Congresso dos povos tupis. Nasceu em qualquer lugar da velha Áustria de ante-guerras,morreu talvez de fome, aqui, n’algum canto do Nordeste do Brasil. Orai por ele!”

Encontramos na Biblioteca Nacional um livreto intitulado: “Meios de Melhorar a Situação Econômica e Moral daPopulação do Interior do Amazonas”, conferência dos Drs. Ludwig Schwennhagen, membro da Sociedade de Geogra-fia Comercial de Viena, d’Áustria, e Luciano Pereira da Silva, publicista – Rio de Janeiro, tipografia do “Jornal doComércio”, 1912. Esse livreto reproduz as conferências que fizeram esses dois estudiosos no salão nobre da Associa-ção Comercial do Amazonas, na noite de 15 de agosto de 1910. Ali não só este autor se escreve com o nome originalde Ludwig, como na conferência seguinte, Luciano Pereira da Silva refere-se constantemente às opiniões de seucolega, citando sempre o doutor Ludwig.

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Na sua conferência, cita Schwennhagen que com o “Deputado Federal Monteiro Lopes, meu companheiro de viagematé a fronteira peruana, estivemos com as pessoas mais distintas de Tefé, Fonte Boa, São Paulo de Olivença, Santa Ritae outros. Estacionamos nessa viagem em mais de quarenta cidades, vilas e povoações... eu mesmo visitei cinco seringais,nos quais examinei...”

Mais adiante, à pág. 14, opina: “há ainda uma outra objeção importantíssima: segundo meu plano de colonização,talvez dez mil famílias poderiam ser domiciliadas aqui como colonos...” – E ainda: “Quando os cearenses virem que comocolonos domiciliados podem encontrar para si e para suas famílias uma vida melhor e um lucro mais alto que viajandocomo nômades de um lado para o outro do país...

Vemos por aí que Ludwig Schwennhagen já andava em 1910 percorrendo o Brasil e estudando as condições sociaisdo povo brasileiro. Posteriormente, iniciou longo curso de viagens por todo o interior do Norte e Nordeste, cremos quetambém do Sul, tendo estado no Espírito Santo, estudando o aspecto das inscrições petroglíficas encontradas em todo oterritório brasileiro.

Infelizmente não temos maiores dados sobre ele, quando e onde morreu. Não encontramos referências a ele nosdocumentos a que recorremos. Talvez na Áustria se conheça mais sobre ele. Concitamos principalmente os piauienses abuscarem maiores dados sobre esse “alemão calmo e grandalhão” que, para explicar a história antiga e a origem da raçabrasileira, tanta contribuição deu à história do Piauí, tendo ali residido durante anos, ensinado e pesquisado.

Quanto ao seu livro ANTIGA HISTÓRIA DO BRASIL, tem sido fonte de estudos há mais de quarenta anos, inspiraçãodo livro a que nos referimos, de Vitor Gonçalves Neto, e motivo principal de dois artigos em jornais, um publicado no Jornaldo Comércio, de Recife, em 16 de março de 1969, de nossa autoria, e o último publicado no Jornal do Brasil, em 21 dejaneiro de 1970, de Renato Castelo Branco. Devemos a divulgação de obra de Schwennhagen ao esforço e entusiasmo doeminente engenheiro Raimundo Nonato Medeiros, delegado do Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal do Piauíe Administrador do Parque Nacional de Sete Cidades, no município de Piracuruca, região hoje tombada como patrimôniohistórico, a única pessoa, talvez, que possui um exemplar dessa obra, além do exemplar existente na coleção de obrasraras da Biblioteca Nacional. Tivemos conhecimento dela em fevereiro de 1968, quando fomos a Teresina a convite denosso amigo João Bezerra da Silva. Através dele travamos conhecimento com a nova geração de intelectuais piauienses,da qual destacamos o desembargador Simplício de Souza Mendes, Arimathea Tito Filho, Fontes Ibiapina, Drs. Darcy eNodge, Otávio Bentes Guimarães, o Basílio, cultores da melhores tradições de sua terra e entusiastas colaboradores dadivulgação daquele patrimônio histórico milenar que são as ruínas das Sete Cidades de Piaguí.

Em maio de 1968 lemos no jornal O Dia, do Rio de Janeiro, uma notícia vinda dos Estados Unidos, acompanhada dareprodução de um quadro de símbolos; dizia o texto: “Encontrados na Paraíba e levados para Walthan, em Massachussets,nos EUA, estes símbolos foram estudados durante quase cem anos. Finalmente o professor Cyrus Gordon, especialistaem assuntos mediterrâneos, conseguiu decifrá-los. Indicam que os fenícios estiveram nas terras que hoje formam o nossopaís, pelo menos dois mil anos antes de Cristóvão Colombo descobrir a América e Cabral chegar ao Brasil”.

Dois dias após a publicação dessa nota, vimos em outro jornal outra nota: “Lusos: Cabral chegou antes”, em quealguns portugueses radicados no Brasil mostram-se mesmo “revoltados, manifestando a disposição de fazer uma repre-sentação junto à Embaixada dos Estados Unidos...”

Logo abaixo, na mesma nota, afirma um professor do Instituto de Geociências da Universidade de Geociências daUniversidade Federal do Rio de Janeiro, que “o professor americano pode estar certo, lembrando que os vikings, lideradospor Ericson, estiveram na América antes de Colombo descobri-la. Acrescentou que o professor teve o mérito de decifrar ossímbolos encontrados na Paraíba e levados para os EUA.

Assinalou que a notícia o surpreendeu, porque nunca ouvira falar na existência desses símbolos em áreasdo Nordeste”.

Ora, não é outro assunto se não esse, o de que trata o presente livro, e de que tratam muitos outros livros já publicadosno Brasil e em Portugal, na Inglaterra e em outros países, embora seja ANTIGA HISTÓRIA DO BRASIL o que mais sededica ao assunto.

Primeiramente, vejamos o que traduziu o professor Cyrus Gordon dos símbolos encontrados na Paraíba:“Somos filhos de Canaã, de Sidon, a cidade do rei. O comércio nos trouxe a esta distante praia, uma terra de monta-

nhas. Sacrificamos um jovem aos deuses e deusas exaltados no ano 19 de Hirã, nosso poderoso rei. Embarcamos emEzion-Geber, Mar Vermelho, e viajamos com 10 navios. Permanecemos no mar juntos por dois anos, em volta da terrapertencente a Ham (África), mas fomos separados por uma tempestade e nos afastamos de nossos companheiros e assimaportamos aqui, 12 homens e 3 mulheres. Numa nova praia, que eu, o almirante, controlo. Mas, auspiciosamente possamos exaltados deuses e deusas intercederem em nosso favor”.

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Foram descobertas pelo engenheiro de minas Francisco Soares da Silva Rotunda, que dirigiu, a respeito, um relatório,em 7 de julho de 1896, ao presidente da Província da Paraíba, o qual foi transcrito na Memória constante do nº 4 da Revistado Instituto Histórico Brasileiro. Foi justamente Rotunda quem co-piou as inscrições de uma pedra.

Na ocasião, o Dr. Ladislau Neto examinou-as e as conside-rou apócrifas. Mas, tendo sido enviadas, cremos que primeira-mente à França, o sábio francês Ernesto Renan as estudoudetalhadamente e declarou serem de verdadeira origem fenícia.Seguindo depois para os Estados Unidos, o assunto dormiu du-rante quase cem anos, até que o professor Cyrus Gordon, deBrandeis University, em boston, com a sua reconhecida autori-dade em línguas mortas, aprofundou-se no assunto e decifrou-as, tendo em princípio deste ano vindo ao Brasil paraassenhorear-se melhor, no local, da natureza das inscriçõespetroglíficas brasileiras.

Em 1896 foi publicado em Manaus um tratado do historiadorHenrique Onfroy de Thoron, que pretendeu interpretar as misteri-osas viagens do rei Salomão. Thoron sabia latim, grego e hebraico e conhecia também as línguas tupi e quíchua. Interpre-tou ele da Bíblia hebraica, palavra por palavra, que a narração do I Livro dos Reis sobre a construção e viagem da frota dosjudeus, juntamente com a frota dos fenícios, do rei Hirã, da cidade de Tiro, então capital fenícia, referem-se ao rio Amazo-nas, para organizarem a procura de ouro e pedras preciosas, estabelecendo naquele local colônias e ensinando aosindígenas a mineração e lavagem de ouro pelo sistema dos egípcios, conforme descrição que nos deixou Diodoro, minu-ciosamente, nos capítulos 11 e 12 do 3º tomo de sua História Universal.

O nosso grande historiador e arqueólogo Bernardo de Azevedo da Silva Ramos, amazonense, chegou a juntar cópiasde 3.000 letreiros e inscrições encontrados no Brasil e em outros países americanos, e aponta semelhanças com inscri-ções encontradas em outros países do velho mundo. Bernardo Ramos esteve na Pedra da Gávea, no Rio de Janeiro,estudou a inscrição ali encontrada, afirmou ser de caracteres fenícios e traduziu-as:

“Tiro, Fenícia, Badezir Primogênito de Jethabaal”.Essas inscrições foram encontradas em 1836, no pico dessa montanha, a uma altitude de 840 metros, e mede cada

uma três metros. Badezir reinou na Fenícia de 855 a 850 a. C., como se pai reinara em 887 a 856. Pode-se concluir quea inscrição, se considerarmos verdadeira a tradução de Ramos, teria sido gravada entre os anos 887 a 850 a.C. eprovaria a evidência de que os fenícios, já antes da era cristã, teriam estendido seus expedições à América do Sul, eessas inscrições teriam tido o intuito de imortalizar a glória do nome fenício, além da simples demarcação das entradasao interior do Brasil.

Alexandre Braghine, no seu livro O Enigma da Atlântida, Irmãos Pongetti Editores, 2a. edição, 1959, sustenta a tese deque o berço da civilização teria sido a América do Sul, de povos descendentes do continente Atlântida. A teoria sobre aAtlântida aparece em milhares de obras, desde Platão, que a menciona em seus diálogos Timeu e Crítias.

“Era um país – dizia Platão – que ficava situado além das colunas de Hércules (o estreito de Gilbraltar até as ilhas deCabo Verde). Essa ilha era mais vasta que a Líbia e a Ásia reunidas, e os navegantes passavam dela para outras ilhas edestas para o continente que borda esse mar”. Referia-se o filósofo, evidentemente, à América.

Também Homero alude à ela, e Sólon, Eurípides, Estrabão, Dionísio de Halicarnasso, Plínio. Até sobre um hipotéticocontinente chamado Mã, desaparecido no Pacífico, levantaram discussões e é tema do livro The Lost Continent of Mã, deJames Churchward, editado nos Estados Unidos. O autor manuseou o Codex Cortesianus e analisou as duas mil pedrascom inscrições descobertas por Niven no noroeste do México, para reforçar sua teoria. Tradições arraigadas de povosorientais, chineses, tibetanos, indianos, mongóis, se referem a um continente situado no Pacífico e que teria submergidoem conseqüência de uma grande catástrofe. E os homens daquele continente já dispunham de aparelhos voadores epossuíam mesmo a capacidade de poderem viajar pelas estradas siderais desconhecidas e atingir os desembarcadourosde distantes planetas.

São teorias e antigas tradições que apresentamos apenas como referências. Mas, voltando a Alexandre Braghine, citaele à pág. 258 de sua obra:

“Os principais arqueólogos que percorreram o Mato Grosso são o Srs. R. O. Marsh, o general Cândido Rondon, o Dr.Barbosa, Bernardo da Silva Ramos e Lecointe. A. Frot Ramos e Frot descobriram naquele Estado inscrições rupestres em

Essas inscrições foram encontradas no final doséculo passado, em Pouso Alto, Paraíba.

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fenício, em egípcio e até em língua sumérica, assim como textos escritos em caracteres alfabéticos análogos aos empre-gados antigamente em Creta e Chipre. Certamente são surpreendentes essas descobertas, porém Marsh chegou à con-clusão de que o Mato Grosso encerra vestígios de uma civilização muito mais antiga que a dos fenícios e cários. Como jádisse anteriormente, as tradições correntes entre os indígenas falam num grande e poderoso império que se estendia emtempos muito afastados, para o Oeste e o Norte de Mato Grosso, e nessas lendas parece haver fundamento”.

Na mesma obra, à pág. 153, Braghine menciona uma carta que recebeu do Brasil, do engenheiro ApolinárioFrot, que dizia:

“Os fenícios serviam-se, para gravar suas inscrições sul-americanas, dos mesmos métodos que os antigos egípciosusavam nos primeiros tempos para a sua escrita hieroglífica. Estes métodos eram empregados pelos astecas, comotambém pelos povos desconhecidos aos quais se atribuem os petróglifos da bacia do Amazonas. O resultado de minhasinvestigações é tão surpreendente que eu hesito em publicá-lo. Para dar-lhe uma idéia, basta dizer que tenho em mãos aprova da origem dos egípcios: os antepassados desse povo saíram da América do Sul”.

Ora, resultados tão surpreendentes que Frot se recusava a publicá-los, temendo contrariar as verdades estabelecidas,são bem explicáveis, porquanto Humboldt, que tanta contribuição deu ao Brasil nos seus estudos da vegetação amazônica,das condições climáticas e até de inscrições, foi atingido pela ordem régia em 2 de junho de 1800, que proibia a entrada deestrangeiros nos domínios das províncias do Pará e do Maranhão. Mas, as notas de Apolinário Frot devem existir emalgum lugar e, se descobertas, muito adicionariam aos estudos das origens do povo brasileiro.

Cândido Costa, paraense, foi outro historiador que muito se dedicou ao estudo das inscrições encontradas no Brasil.Em 1896 publicou em Belém, Pará, sua obra O Descobrimento da América e do Brasil, em homenagem ao quarto cente-nário do descobrimento do Brasil. Em 1900, tendo ampliado a mesma obra, publicou-a em Lisboa, pela antiga CasaBertrand, de José Bastos – Mercador de Livros, com o título As Duas Américas. Nessa obra, Cândido Costa mencionainúmeras inscrições e obras de arte e utensílios antigos encontrados no Brasil.

Menciona ele à pág. 38:“Lorde Kingborough dispensou somas consideráveis para provar que às tribos de Israel é que o Novo Mundo deve a

origem de suas civilizações; e Brasseur de Bourbourg reconheceu entre os selvagens do México e da América Central overdadeiro tipo judaico, assírio e egípcio, tendo também observado perfis gravados nas ruínas de Karnac muito semelhan-tes aos da Judéia”.

Escreveu Ferdinand Denis que, tendo o conde de Nassau enviado ao centro de Pernambuco um seu compatriota,encontrou este duas pedras perfeitamente redondas e sobrepostas, e outras amontoadas pelas mãos dos homens, e ascomparou com alguns monumentos toscos que vira em Drenthe, na Bélgica.

José de Sá Betencourt Acioli, natural de Minas Gerais, e bacharel em ciências naturais pela Universidade de Coimbra,fundando em 1799 um estabelecimento de plantações de algodão nas margens do rio Das Contas, na Bahia, em terrascompradas do capitão-mor João Gonçalves da Costa Dias, por ocasião das escavações para firmar alicerces de uma casanesse terreno, encontrou uma espada com copos de prata, e prosseguindo as escavações, foram ainda encontradospedaços de loução puríssima da Ásia e diversos artefatos de vidro com bordados e dourados.

Existe também uma Memória, datada de 1753, em que o seu autor dá notícia de uma cidade abandonada no interiorda Bahia, na qual existiam palácios, inscrições, colunas, aquedutos, ruas, arcos. É mencionado nessa Memória que certoindivíduo chamado João Antônio achara nas ruínas das casas da dita cidade um dinheiro em ouro, de forma circular, tendode um lado a figura de um jovem ajoelhado e do outro, arco, coroa e seta. Como preciosidades que foram encontradasnuma praça, citam uma coluna de pedra preta e de grandeza extraordinária, e sobre ela a estátua de um homem regular,com a mão na ilharga esquerda e o braço direito estendido, mostrando com o dedo index o pólo Norte; e em cada canto dapraça estava uma agulha imitando as que usavam os romanos, mas algumas já estragadas e partidas.

Em 1840, chegou à Bahia a fragata dinamarquesa Belonne, com os tenentes Svenson, Schuls, e o naturalistaKruger, encarregados de examinarem as ruínas dessa cidade, mas não lhes foi possível descobrir o local em queestava localizada.

Antônio Galvão, no seu Tratado dos Descobrimentos Antigos e Modernos, Lisboa, 1731, cita à pág. 8:“No ano 590, antes da encarnação de Cristo, partiu da Espanha uma armada de mercadores cartagineses feita

a sua custa, e foi contra o Ocidente por esse mar grande, ver se achava alguma terra; diz que foram dar nela. E queé aquela a que agora chamamos Antilhas e Nova Espanha, que Gonçalo Fernandes de Oviedo quer nesse tempofosse já descoberta”.

O mesmo Galvão afirma que os antigos não só conheciam a América, como a sua primitiva população é oriunda da Ásia.Cândido Costa diz, na obra citada, referindo-se ao “Santuário da Lapa”, em Pernambuco:

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“Se ficar provado que este antigo templo é obra humana, estará provada também a existência de uma civilização pré-histórica no Brasil”.

E menciona também que Robert M. Larney, reitor de Clanfert, escreveu uma carta ao editor de Public Opinion, alegan-do que São Brandão, o patrono de sua igreja, catedral de Clonfert, Galway, na Irlanda, fundada em 558 de nossa era, nãosomente colonizou a América 900 anos antes do nascimento de Colombo, como também evangelizou uma porção do povodaquele país, naquela época.

Há também na Irlanda a lenda de que São Patrício percorreu diversas partes do Atlântico.Como vemos, é vasta a literatura e as teorias, teses e hipóteses levantadas quanto à descoberta e colonização do

Brasil por povos antigos. Mas, nenhum se aprofundou tanto no assunto quanto LUDWIG SCHWENNHAGEN nesta obra. Emais extensos são seus estudos etimológicos sobre a origem da língua tupi.

CAPÍTULO IO Estudo da História no Antigo Brasil

O Brasil possui uma extensa literatura sobre sua “pré-história”; os autores dessas obras chamam-se também “indianistas”,devido aos seus estudos sobre as línguas e dialetos dos antigos habitantes deste continente. São trabalhos de alto interes-se e grande valor, como os de Couto Magalhães, do pernambucano Alfredo Carvalho, cuja morte prematura foi lamentável,assim como de muitos outros. Mas, essas obras não tratam de história, não procuram as datas cronológicas para osacontecimentos que descrevem. Por isso elas não encontram o nexo das coisas, que é o fio condutor no desenvolvimentodos povos do nosso planeta.

É muito interessante raciocinar que o planalto de Goiás foi o primeiro ponto seguro da crosta terrestre; dizer que a raçatapuia nasceu autóctone no Brasil, há 50 milênios, ou calcular que a Atlântida foi antigamente ligada com o Brasil e ficouafundada entre 90 mil a 9 anos antes de Cristo. Essas são lendas paleológicas, com as quais não pode contar a historiografia.

O estudo da antiga história brasileira começou no Norte. Em 1876, apresentou Onfroy Thoron, em Manaus, seuexcelente tratado sobre as viagens das frotas do rei Hiran de Tiro, da Fenícia, e do Rei Salomão, da Judéia, no rio Amazo-nas, nos anos 993 a 960 antes de Cristo .[1] O sucessor de Thoron em Manaus é Bernardo Ramos [2], um legítimoamazonense, com traços característicos da descendência tapuia, também com a inata modéstia dessa antiga raça brasi-leira. Bernardo Ramos é hoje o primeiro paleógrafo do Brasil, um Rui Barbosa no terreno das ciências arqueológicas. Suaobra é o produto de um trabalho assíduo, de 30 anos; são quatro grandes volumes, com as cópias de 3.000 letreiros einscrições, a metade do Brasil e de outros países americanos, a outra parte dos países dos três velhos continentes. O autorcompara sempre as inscrições americanas com inscrições semelhantes dos países do velho mundo, para provar ahomogeneidade da escrita. Bernardo Ramos foi primeiro numismático e vendeu algumas coleções de moedas, com bomlucro. Esse dinheiro, ele o aproveitou em fazer viagens longínquas às três Américas, visitou também Europa, Egito eBabilônia, para estudar, em todos esses países, as antigas inscrições.

Bernardo RamosA obra de Bernardo Ramos ainda não está impressa (1928). O autor apresentou o seu manuscrito, com todas as

fotografias e desenhos anexos, sucessivamente aos presidentes Drs. Epitácio Pessoa e Arthur Bernardes, que examina-ram minuciosamente a obra e prometeram providenciar sobre a impressão de trabalho tão valioso. É de esperar quedificuldades não se sobreponham à publicação de tão erudito e importante trabalho.

Cândido Costa, o grande historiador-colecionador do Pará, mandou publicar o seu magnífico livro As Duas Américas,prudentemente, em Portugal. Esse livro vale para o Brasil como uma biblioteca de história universal nas faculdades deletras do Sul do Brasil. Seu livro é farto em notícias importantes sobre o antigo Brasil, obrigando o leitor a pensar e iniciarnovos estudos. Apreciável e coerente é, por exemplo, a crítica do autor a respeito do chamado Santuário da Lapa, emPernambuco, de que afirma: “Se ficar provado que esse antigo templo é obra humana, provada será também a existênciada civilização pré-histórica do Brasil”. Isso é claro e inegável. O autor deste tratado pesquisou, no interior de Pernambuco,aquele importante edifício pré-histórico.

No respectivo capítulo serão explicados todos os pormenores desse testemunho da antiga civilização e da clarividên-cia histórica de Cândido Costa.

No Maranhão formou-se, em redor da simpática figura do jovem professor Ruben Almeida, um novo centro de estudoshistóricos, para indagar do passado maranhense e restabelecer a antiga fama da “Atenas Brasileira”.

No Piauí, o interesse pela história antiga do Estado faz parte do seu patrimônio intelectual. Desde o erudito Governa-

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dor do Estado, que favorece generosamente todos os estudos científicos piauienses, até o novíssimo aluno do Liceu ou daEscola Normal, existe em todos o mesmo interesse pela história da antiga pátria dos Tabajaras. [3]

O Ceará é um notável centro de inteligência e energia intelectual, onde se estuda, com alto interesse, as coisashistóricas. Na primeira fileira estão as figuras proeminentes do senador Thomaz Pompeu e do Barão de Studart, queexortam pelo seu trabalho infatigável seus contemporâneos, assim como a geração jovem, para se dedicarem a novosestudos. Mesmo nas cidades menores, como Camocim, Sobral, Quixadá, Baturité e muitas outras, existem centros intelec-tuais, onde se trabalha e estuda a história e a pré-história da terra cearense. [4]

Nos quatro menores Estados do Nordeste encontrou sempre o autor deste opúsculo um forte interesse pelos estudosda Antigüidade brasileira. Os presidentes dos Estados facilitaram as suas indagações em toda parte; os Institutos Históri-cos forneceram-lhe indicações importantes sobre todos os pontos da história. Esses institutos já possuem pequenascoleções de cópias de letreiros antigos, provenientes do interior desses Estados. Também particulares se ocupam com oestudo das inscrições. Em Acari, no Rio Grande do Norte, encontramos um agricultor e desenhista, José Azevedo, que nassuas horas livres copiou os letreiros da região, com muito cuidado, e compilou um interessante quadro de letras do antigo“alfabeto brasílico”, sobre que falaremos adiante.

Em Bananeiras, na Paraíba, surpreendeu-nos o filósofo-químico José Fábio com um grande quadro de letreiros,apanhados nos rochedos da Serra dos Cariris Velhos. Havia tirado também pequenas quantidades da tinta encarnada,com a qual são sobrepintadas as linhas cravadas nas pedras. O exame químico dessa tinta revelou a mistura de óxido deferro com um elemento gomoso vegetal, que os antigos químicos fabricavam com tanta felicidade e que resistiu, com suacor viva, ao sol e à chuva, durante dois milênios. Em Picuí, na Paraíba, conseguimos obter, no Paço Municipal, do comer-ciante José Garcia e de outro senhor, cópias de inscrições que existem na vizinhança daquela cidade, com indicaçõesexatas dos respectivos lugares. Muito grande é também o número dos prefeitos que nos deram minuciosas informaçõessobre os letreiros que existem nos seus municípios. [5]

Esses fatos constataremos oportunamente perante a crítica dos incrédulos, que reclamam cópias fotográficas dosletreiros e certificados elucidativos sobre a veracidade de tais comunicações. É-lhes fácil tal crítica, a eles que nuncaandaram mesmo nos sertões e nunca viram um só letreiro com seus próprios olhos. Petróglifos que existem em rochedoshá 2000 a 2500, não é possível fotografá-los. Ficam cuidadosamente desenhados; verifica-se com os dedos, com boalente, as linhas meio gastas, tiram-se com faca as crostas sobrepostas e reconstrói-se, com critério, o conjunto da antigaescrita. [6]

O engenheiro francês Apollinário Frot, que viveu 30 anos no interior da Bahia e juntou ali cerca de cem cópias deinscrições e letreiros, constatou que todos esses petróglifos são documentos da antiga mineração. Encontrou a chave dossinais, compreendeu as medidas das distâncias e o sistema das antigas estradas de penetração. Finalmente, descobriu oSr. Frot que há 300 anos antes o português Roberto Dias tinha encontrado e compreendido o significado desses letreiros,que lhe haviam indicado o lugar das ricas minas de prata, na bacia do alto São Francisco. [7]

Está largamente provado que existiu, no primeiro milênio antes da era cristã, uma época de civilização brasileira. Jáconhecemos dois mil letreiros e inscrições espalhados sobre todo o território brasileiro e escritos nas pedras com instru-mentos de ferro ou de bronze, ou com tintas indeléveis, quimicamente preparadas.

Essas inscrições petroglíficas foram feitas por homens que sabiam escrever e usaram os alfabetos dos povoscivilizados do Mar Mediterrâneo. Já provado também se acha que existiu uma navegação transatlântica entre essespovos e o continente brasi-leiro, durante muitos sécu-los antes de Cristo.

A maior parte dos letrei-ros brasílicos são escritoscom letras do alfabeto fenícioe da escrita demótica doEgito. Existem também ins-crições com letras da antigaescrita babilônica, chamadasumérica. Além disso, temosletreiros escritos comhieróglifos egípcios, e pode-mos diferenciar, em outros Influência fenícia no Mediterrâneo

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lugares, variantes de letras que se encontram nas inscrições da ilha de Creta, da Caria, da Etrúria e Ibéria. Encontram-setambém letras gregas e mesmo latinas.

Os sábios especialistas que se dedicam só ao estudo da petroglífia compreenderão mal esse “caos” da antiga escritabrasileira. O historiador tira suas conclusões numa outra base. O estudo da história começa com a cronologia. Primeiro seindaga a data histórica de um acontecimento, ou de uma inscrição. No caso de ser impossível encontrar o ano, procura-sea década; se essa também é incerta, define-se o século no qual se deu o acontecimento.

As navegações dos fenícios começaram 2500 anos a.C., mas limitaram-se, durante muitos séculos, ao mar Mediterrâ-neo. O estreito de Gibraltar foi dominado pelo império dos Atlantes, cuja capital foi Gades; a dinastia de Atlas reinou emambos os lados do estreito cerca de 500 anos. Fora do estreito, nas costas e ilhas atlânticas dominaram os Tartéssios, cujacapital era Tartessos (ou Tarsos, na foz do rio Ton Tarsis) Guadiana. As frotas dos Tartéssios andaram, como disse osalmista hebraico Davi, em todos os lugares, e sua capital possuía riquezas iguais às riquezas da Babilônia. Essesantecessores dos Portugueses já navegavam entre a Península Ibérica e América Central 1500 anos antes da era cristã.É provável que os Tartéssios navegassem também nas costas do Brasil.

Os Atlantes, bem como os Tartéssios, foram sobreviventes e refugiados da Atlântida, cujo último desmoronamentodevemos colocar na época de 2000 a 1800 a.C. Os Atlantes, que se domiciliaram em Marrocos e no sul da Ibéria, torna-ram-se um povo conquistador. Platão conta que eles quiseram subjugar todos os povos do Mediterrâneo e apareceramtambém com grandes exércitos na Grécia, mas sofreram uma derrota perto de Atenas. No Peloponeso, um filho do rei Atlasfundou um reinado, e a filha Maia casou com outro rei da mesma península, que era aliado dos Atlantes. Cerca de 1300 a.C. foi destruído o império dos Atlantes pela dinastia ibérica dos Geriões, que fundaram um poderoso império nacional napenínsula, com a capital Carteja.

Os tartéssios se abstiveram de qualquer ingerência nas lutas continentais e limitaram-se ao seu império marítimo. Osfenícios aproveitaram-se da queda do império dos atlantes e procuraram uma aliança com os geriões, bem como umaamizade e aliança comercial com os tartéssios. Ambos concordaram que os fenícios estabelecessem uma estação marí-tima em Gades e que suas frotas mercantes pudessem passar o estreito, para navegarem nas costas atlânticas. Isso foicerca do ano 1200 a.C., quando já a cidade de Tiro (ou Turo) tinha alcançado a hegemonia sobre todas as cidades ecolônias fenícias. Em 1100 a.C. chegou a primeira frota dos fenícios às costas do Nordeste do Brasil, e em 1008 a.C.entrou o rei Hirã de Tiro numa aliança com o rei Davi, da Judéia, para explorarem comumente a Amazônia brasileira.

O rei salmista conta esse acontecimento com as seguintes palavras: “O meu Senhor encheu meu coração com pru-dentes conselhos. Para edificar ao Supremo um templo digno de sua glória, precisava eu de um aliado que me ajudassecom a sua riqueza. Deus me mostrou Hirã, rei daquele poderoso Tur, que ganhou tantas riquezas pela sua aliança com ostartéssios, cujas frotas andam em todos os mares”. E num outro salmo, disse Davi:

“Quando o Supremo mandar seu delegado, o Messias, todos os reis deste mundo se submeterão ao seu império, eapresentarão tributo e ricos presentes: os reis do Egito, da Núbia, de Tartessos e das ilhas longínquas do Oceano.”

Verifica-se que Davi, o aliado dos fenícios, tinha seguro conhecimento do império marítimo dos tartéssios e sabia queos fenícios já haviam feito parte desse domínio colonial. Davi morreu em 997 a.C. e temos, nessa data histórica, um pontoseguro para o nosso cálculo cronológico da antiga história brasileira.

No capítulo seguinte será explicada a primeira viagem transatlântica dos fenícios, cerca de 1100 a.C., e contaremos aestada dos fenícios no Brasil, desde esta data. A metrópole da Fenícia, a cidade de Tiro, foi destruída por Alexandre Magnoem 332 a.C.; até essa data, quer dizer, durante 769 anos, continuaram as relações marítimas e comerciais entre a Fenícia(a atual Síria) e o Brasil. As emigrações de egípcios para o Brasil, em navios dos fenícios, começaram no tempo dousurpador Chechonk, que se apoderou do trono dos faraós em 935 a.C. Essa imigração recebeu um novo impulso pelainvasão dos núbios, sob o chefe Napata, em 750 a.C., que anarquizou todo o Egito.

Os cartagineses participaram do domínio brasileiro dos fenícios desde 700 a.C. e ficaram ali até a destruição deCartago pelos romanos, em 147 a.C., quer dizer, durante 533 anos.

Nessa época, que se estendeu quase sobre um milênio inteiro, foram escritos os letreiros que encontramos ainda hojenos rochedos do interior do Brasil. Não é possível que todos eles sejam escritos pelo mesmo sistema e alfabeto. A escritados fenícios modificou-se, nesse grande espaço de tempo, diversas vezes. Também a escrita demótica dos egípcios nãoficou sempre na mesma. Formou-se o alfabeto grego e depois apareceu o alfabeto itálico-latino. Os cartagineses foram umpovo conquistador e levaram nos seus navios tripulantes e soldados de diversas nações. As inscrições brasileiras foramescritas por mercantes e mestres de obras das minas. Foram comunicações deixadas pelas diversas expedições, paraindicar o rumo das estradas, as distâncias dos lugares e a situação das minas.

É muito provável que tenha desaparecido, no correr do tempo, uma grande parte dos letreiros e quase todos que foram

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escritos em placas soltas. Bernardo Ramos encontrou algumas placas com escritos em Atuma, no Amazonas. No MuseuGoeldi, no Pará, existem alguns vasos com letras, que foram encontrados nos aterros da ilha de Marajó. Na sala do Sumé,do Castelo das Sete Cidades, no Piauí, existe ainda a chamada “biblioteca”, contendo dúzias de placas de pedras coladaspela ação atmosférica, umas em cima das outras; talvez, desligando-se essas placas por um processo químico, se poderáverificar se elas contêm escritos.

Finalmente, é de supor-se que os chefes dos povos tupis, principalmente os sacerdotes piagas, aprenderam o modode escrever dos estrangeiros e o preparo das tintas indeléveis. Assim começou também o costume entre os povos indíge-nas, de fazer desenhos artísticos e humorísticos nas paredes lisas dos rochedos, costume que se estendeu até a Américado Norte. O investigador cuidadoso, porém, encontrará sem dificuldades, grande diferença entre as inscrições da escritafenício-egípcia e as similares petroglíficas do humorismo dos indígenas.

[1] Henrique Onfroy de Thoron, monografia intitulada Voyages des Vaisseaux de Salomon au Fleuve dês Amazones,publicada em Gênova em 1869 e em Manaus, em 1876. Consta também do tomo IV dos Anais da Biblioteca e ArquivoPúblico do Pará, de 1905.

[2] Bernardo da Silva Ramos, Inscrições e Tradições da América Pré-Histórica.[3] Odilon Nunes, o notável historiador piauiense, dedica algumas páginas ao assunto tratado nesta obra, referindo-se

a ela e às opiniões emitidas por Ludwig Schwennhagen, na sua Pesquisas para a História do Piauí, Vol. I, Imprensa Oficialdo Estado do Piauí, 1966.

[4] Também Gustavo Barroso dedicou-se a esses estudos em Aquém da Atlântida.[5] “Contudo, as inscrições lapidares que se encontram em penhascos e grutas, por muitas partes do Brasil, espe-

cialmente no Nordeste e na Amazônia, quando não esculpidas, são desenhadas com tintas que, pelo frescor e nuançasque ainda guardam, levam a crer foram feitas com alguma substância mineral que as torna quase indeléveis. Foramtraçadas por artífice de uma civilização que havia ultrapassado a idade da pedra, e que já se utilizava de metais e setornara capaz de elaborar uma composição química. Os índios contemporâneos da conquista atribuíam tais pictografiasa seus avoengos mais remotos, enquanto pesquisadores modernos presumem que foram deixadas por povoadoresdoutra casta de gentios que antecedeu as dos gentios da época do Descobrimento, ou mesmo pertencentes a algumacivilização que floresceu no continente oriental. Uns aceitam-nas como simples passatempo de seus autores, outros,como propósito comunicativo e até mesmo descritivo, aqui deixadas por tribo nômade ou povo errante ainda nãoidentificado. Ainda outros pretendem elucidar as dúvidas e afirmam que foram gravadas pelos fenícios, há cerca de2500 anos. Os argumentos em torno da teses histórica, com referência aos fenícios, são por vezes pueris, outrosrepousam, entretanto, em critério científico e, pela complexidade do assunto, abrangem toda a área cultural dos primi-tivos americanos”. – Odilon Nunes, Obra cit. pg. 24/25.

[6] Em página anterior, refere-se o autor a Bernardo da Silva Ramos, em cuja obra, então inédita, apareciam cópias dequase 3.000 letreiros, e formulava Schwennhagen esperanças de que fosse publicada, dada a sua importância. Foi essaexcepcional obra de Ramos editada no Rio de Janeiro, em 1930, pela Imprensa Oficial. Consta de dois volumes, num totalde mais de mil páginas, com cópias de cerca de 3.000 inscrições, encontradas no Brasil e outros países. Numa dasprimeiras páginas consta o seguinte Parecer, conferido pelo Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas:

“A Comissão de Arqueologia, examinando o trabalho apresentado pelo Coronel Bernardo de Azevedo da Silva Ramos,sobre “Inscrições e Tradições do Brasil Pré-Histórico”, considerando:

· que, isolados, os símbolos das inscrições exibidas correspondem eles a caracteres de alfabetos fenício, grego,paleográfico, grego de inscrição, hebraico, árabe e chinês;

· que a coordenada dos caracteres forma palavras;· que a sucessão de palavras, assim representadas, forma sentido;· que a autenticidade das inscrições é assegurada, ora por fotografias, ora pela autoridade das obras de onde

foram extraídas;· que as tradições referidas no trabalho estão vulgarizadas por autores cuja competência não se pode contestar;· que os desenhos da cerâmica, representada nesse trabalho, correspondem ao estilo grego;· que esses desenhos, pela sua precisão e simetria, jamais poderiam ser feitos pela tribos indígenas existentes no

Brasil por ocasião de sua descoberta;· que aquelas inscrições foram indubitavelmente produzidas por mão humana e hábil; resolve julgar o aludido trabalho

digno de ser aprovado e aceitas as suas respectivas teorias e conclusões.Manaus, 4 de maio de 1919

(a) João Baptista de Farias e Souza - Nicolau Tolentino José da Costa Teixeira

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[7] Alexandre Braghine, em sua obra O Enigma da Atlântida, Irmãos Pongetti Editores, 1959, tradução de MarinaBastian Pinto, do original The Shadow of Atlantis, também se refere a A. Frot, à pág. 153:

“Viajando pelo norte do Brasil há uns quinze anos, tive ocasião de encontrar na Bahia um engenheiro francês, residen-te no país havia cinqüenta anos... Recebi mais tarde do Sr. Frot, uma carta muito interessante, que assim se pode resumir:‘Os fenícios serviam-se, para gravar suas inscrições sul-americanas, dos mesmos métodos que os antigos egípcios usa-vam nos primeiros tempos para a sua escrita hieroglífica. Esses métodos eram empregados pelos astecas, como tambémpelos povos do Amazonas. O resultado das minhas investigações é tão surpreendente que eu hesito em publicá-lo. Paradar-lhe uma idéia, basta dizer que tenho em mãos a prova da origem dos egípcios: os antepassados desse povo saíram daAmérica do Sul. Eles tinham criado três poderosos impérios, dos quais dois no continente que acabo de citar e um noAntigo Continente. Este englobava o noroeste da África, a península Ibérica e as ilhas vizinhas. Os pré-egípcios tinhampartido de 57º 42’ 45” de Longitude Oeste de Greenwich (Frot não indicava a Latitude): o fato está mencionado em umantigo documento tolteca que possuo e o qual contém ao mesmo tempo uma história resumida dos pré-egípcios. Aindamais, descobri na Amazônia uma inscrição que narra a viagem efetuada na terra que hoje é a Bolívia, por um certosacerdote pré-egípcio’. A inscrição à qual alude este trecho da interessante carta de Frot é sem dúvida a que foi descobertana bacia do rio Madeira. Este acontecimento produziu sensação naquele tempo na imprensa brasileira. A decifração dotexto prova que em época remota um grupo de pré-egípcios foi ter às minas de prata da Bolívia.

Capítulo IILISTA CRONOLÓGICA DOS FATOS HISTÓRICOS, DESDE 1100 ANOS ANTES DE CRISTO ATÉ 1500 DE-POIS DE CRISTO

I - O PRIMEIRO DESCOBRIMENTO

O escritor grego Diodoro (da Sicília) dá-nos, nos capítulos 19 e 20 do 5º livro da sua História Universal, a descrição daprimeira viagem duma frota de fenícios que saiu da costa da África, perto de Dacar, e atravessou o Oceano Atlântico norumo do Sudoeste.

Os navegadores fenícios encontraram as mesmas correntezas oceânicas de que se aproveitou Pedro Álvares Cabralpara alcançar o continente brasileiro, e chegaram com uma viagem de “muitos dias” às costas do Nordeste do Brasil.

Conforme o cálculo cronológico, dado no capítulo precedente, devemos colocar essa viagem, esse primeiro descobri-mento do Brasil, na época de 1100 anos a.C. Diodoro conta a viagem da frota dos fenícios quase com as mesmas palavrascom que narram os compêndios escolares brasileiros a viagem de Cabral: os navios andavam para o Sul, ao longo dacosta da África, mas, subitamente, perderam a vista do continente e uma violenta tempestade levou-os ao alto mar. Ali,perseguindo as mesmas correntezas, descobriram eles uma grande ilha, com praias lindas, com rios navegáveis, commuitas serras no interior, cobertas por imensas florestas, com um clima ameno, abundante em frutas, caça e peixe, e comuma população pacífica e inteligente.

Os navegantes andaram muitos dias nas costas dessa ilha (que foi a costa brasileira entre Pernambuco e Bahia), etendo voltado ao mar Mediterrâneo, contaram a boa nova aos Tirrênios, que eram parentes e aliados dos fenícios de Tiro.Estes resolveram logo mandar também uma expedição à mesma ilha e fundar ali uma colônia.

Para compreender essa narração de Diodoro, precisamos nos ocupar desse grande escritor. Nascido em Agrigento,cidade grega da Sicília, viveu em Roma, como contemporâneo de Cícero e Júlio César, com os quais esteve emrelações amigáveis.

Escreveu uma história universal em 45 livros, dos quais possuímos mais da terça parte.Era um historiador muito consciencioso, fez longas viagens, e sabia numerosas línguas.Sua obra é uma fonte inesgotável para os nossos conhecimentos da Antigüidade. Como grego, não era ele amigo dos

fenícios e dos cartagineses, mas reconheceu o grande valor dessas nações de navegantes para a civilização geral dospovos. Seria uma ofensa pueril contra a historiografia pretender que Diodoro tivesse inventado aquela narração da viagemtransatlântica dos fenícios.

Temos para isso uma confirmação indireta de parte do mesmo escritor. Em outro lugar fala Diodoro sobre a viagemduma frota cartaginesa na costa da África, até o golfo de Guiné. Foram 50 grandes cargueiros, chamados carpássios, com30.000 pessoas a bordo, para o fim de fundar colônias no Sudoeste da África. Era chefe da expedição o general Hanon,que foi encarregado de estabelecer um grande domínio colonial para Cartago, no lado oriental do Oceano Atlântico, nolado oriental do Oceano Atlântico.

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Essa viagem foi realizada cerca de 810 a.C.; mas a expedição não obteve resultado.Diodoro enumera todas as estações da viagem e indica as distâncias geográficas, que correspondem exatamente às

atuais. Os Kerneos, um povo civilizado, resquício da Atlântida desfeita, que moravam na costa do Senegal, ajudaram aoscartagineses para encontrarem lugares para a projetada colonização; mas as condições do país eram tão selvagens queninguém quis ficar ali, e Hanon foi obrigado a voltar, com todos os navios e passageiros, à sua terra.

Essa narração prova que Diodoro conhecia bem a situação da África Ociden-tal, do Oceano Atlântico e do golfo de Guiné, e sabia perfeitamente que a “grandeilha”, descoberta pelos fenícios, era situada no outro lado do Atlântico. A expedi-ção de Hannon prova mais que os cartagineses, naquele tempo rivais dos feníciosdo Partido de Tiro, invejavam-nos, devido ao domínio colonial que os Tírios pos-suíam no continente brasileiro. Por esse motivo, quiseram criar um domínio igualno Sul da África.

Quanto às correntes oceânicas que levaram os fenícios, bem como PedroÁlvares Cabral, ao Brasil, “contra a sua vontade”, é preciso destruir essa len-da definitivamente.

O capitão do porto de Natal, no Rio Grande do Norte, recebeu no fim do ano de1926, de um pescador, uma garrafa-correio que continha uma notícia do cruzadoringlês Capetown. Essa belonave cruzava a costa ocidental da África e, passando ogolfo da Guiné, lançou a garrafa, que chegou, em rápida viagem de seis semanas, àcosta do Rio Grande do Norte. As correntes oceânicas que saem da Guiné, rumo aoBrasil, foram conhecidas dos navegadores da antiguidade como na Idade Média.

Os fenícios haviam navegado nas costasocidentais da África, como amigos e alia-dos dos Tartéssios, já há cem anos, e tiveram conhecimento da existência da“grande ilha” no outro lado do Atlântico. Por isso, procurando as correntes ociden-tais, chegaram em poucas semanas à costa brasileira. Pedro Álvares Cabral, omais nobre navegador da frota do rei Manoel, ele, cujo bisavô já conhecia toda acosta ocidental da África, com todas as suas correntes, aproveitou aquela conhe-cida estrada marítima para chegar rápida e seguramente à costa do Brasil, daqual já tinha em mão o mapa geográfico.

Colocamos o primeiro descobrimento do Brasil no ano 1100 a.C. porque osfenícios ofereceram ao rei Davi da Judéia a aliança para a comum exploração daAmazônia, em 1008 a.C. Os portugueses gastaram para chegar na Bahia aoMaranhão e ao Pará mais de cem anos. Os fenícios fizeram suas operações in-vestigadoras com maior rapidez e conheceram, em poucos decênios, todo o lito-ral do Brasil, incluindo o grande “rio-mar do Norte”.

Durante o primeiro século da estada dos fenícios no Brasil, deram-se aindaoutras ocorrências de grande importância. Já mencionamos a resolução dostirrênios de mandar uma frota para a mesma “ilha”, quer dizer, ao continente bra-sileiro. Tirrênios e etruscos são os habitantes da Etrúria, da Itália Superior; forampovos pelasgos de alta cultura, conhecidos por suas construções ciclópicas e sua

fina arte cerâmica. Na ilha de Marajó mostram os compridos aterros e os antigos muros de pedras “toscas” o sistema dotrabalho ciclópico dos etruscos. Mais característicos são ainda os vasos cerâmicos encontrados em Marajó, que revelamclaramente a arte e letras do alfabeto dos etruscos. Essa imigração pode ser colocada no espaço de 1080 a 1050 a.C.

Um outro ponto histórico está em relação com a guerra de Tróia, cujo término colocam os antigos historiadores no ano1181 a.C. É nossa suposição, porém, que aquela época guerreira continuou ainda durante decênios. A luta para ganhar acabeça da ponte entre Europa e Ásia era uma guerra mundial. Os troianos tinham como aliados mais de 30 povos da Ásia;os agressores gregos tiveram ao seu lado 50 povos e tribos. A guerra quase ficou sem fim e resultado. Tróia foi conquistadae destruída seis vezes, como provaram as escavações. A sétima conquista era definitiva. A guerra estendeu-se sobre aTrácia e Ásia Menor e suas conseqüências foram desastrosas para muitos povos. Os fenícios, que viam nos gregos osseus competidores marítimos e comerciais, estiveram com suas simpatias ao lado dos troianos e prestaram seu auxílioaos vencidos. Diodoro e outros escritores gregos contam que os fenícios levaram milhares de pessoas dos povos vencidos

Criação artística mostrandoum barco fenício navegando

Reprodução de moeda feníciamostrando o que parece ser ummapa-múndi com todos os con-tinentes conhecidos atualmente,inclusive a América

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para suas colônias e assim fundaram diversas novas cidades com o nome de Tróia. As mais conhecidas foram Tróia, pertode Veneza, uma Tróia no Lácio, donde nasceu a história de Enéias (1) uma Tróia na Etrúria, que foi chamada tambémTroila, uma Tróia na costa de Marrocos e uma Tróia na costa atlântica da Ibéria, perto da cidade de Vigo.

No Norte do Brasil ficou a tradição de que a cidade mais antiga dessa região fosse Tutóia, cujo morubixaba era, aindana chegada dos europeus, o chefe reconhecido do litoral Norte, desde o Rio Grande do Norte até o Pará. O nome antigofoi provavelmente Tur-Tóia, a união dos dois nomes mais ilustres: Tur, a metrópole dos fenícios, e Tróia, o centro heróicoda resistência contra os invasores gregos. A cronologia concorda perfeitamente com essa explicação, e a eliminação daconsoante r é regra comum na evolução da língua tupi. Os fenícios fundaram mais duas cidades com o nome Tur ou Turo,uma no Rio Grande do Norte, hoje Touros, e uma na Bahia, hoje Torre.

A chegada das Amazonas ao Brasil foi na mesma época. O nome Amazonas, dado para a bacia inferior do grande rio,isto é, a região entre as fozes do rios Xingu e Parintins, é antiga; no tempo da conquista européia assim também chama-vam os Tupinambás o curso inferior do mesmo rio, conquanto o seu nome geral fosse Maranhão.

A história das Amazonas é um capítulo interessantíssimo da história da Antigüidade.Em geral, só se conhece a aparição dessas guerreiras sob sua rainha Pentesiléia, na guerra troiana, onde a valente

mulher desafiou Aquiles, o primeiro herói dos gregos.Mas, a história dessas guerreiras é muito mais antiga. Diversos historiadores opinam que a primeira sociedade de

mulheres guerreiras formou-se na cidade Hespera, localizada numa ilha do grande lago Tritonis, na África ocidental. Esselago era ligado ao Oceano Atlântico por um canal; mas, ao tempo duma grande enchente, entrou o mar pelo a dentro,destruindo a cidade Hespera e obrigando as Amazonas a procurarem uma nova pátria.

Essa narração lembra os cataclismos oceânicos que destruíram a Atlântida; mas, existe também no interior da ÁfricaOcidental o grande lago de Tchad, e de lá sai um rio que percorre o país do Dahomé (2), onde hoje ainda vive um povo commulheres montadas e armadas, as chamadas Amazonas de Dahomé. Muitos escritores viajantes do século passadovisitaram e descreveram esse Estado de guerreiras africanas.

Depois da destruição da cidade de Hespera, reuniu a rainha Mirina as sobreviventes e entrou com seu exército noterritório dos Atlantes, em Marrocos; estes exigiram que as Amazonas entregassem suas armas e se dedicassem aotrabalho agrícola. Mirina recusou-se a essa imposição e venceu-os numa batalha, obrigando-os a fornecer cavalos evíveres às Amazonas. Depois invadiram a Numídia (hoje Algéria), onde existiu, sob a rainha Gorgo, uma outra sociedadede mulheres guerreiras. Mirina venceu Gorgo, a quem também foi imposto fornecer animais, vestidos e víveres. As Amazo-nas continuaram sua viagem pelo litoral da Líbia até o Egito, onde o Faraó as recebeu com amizade e ofereceu-lhesvíveres. De lá passaram à Palestina e à Síria, onde o povo lhes foi hostil, travando-se muitos combates. Os reis fenícios,porém, de Sidon e Tiro, ofereceram a Mirina paz e amizade, as Amazonas ali ficaram algum tempo para repousar dasfadigas da longa viagem.

Saindo da Fenícia, passaram as Amazonas para a Ásia Menor, apoderando-se de um território perto do Cáucaso, naatual Armênia. Mirina organizou ali um Estado e governou-o até sua repugnância por um tal estado de tranqüilidade;sempre fizeram invasões e pilhagens no território dos vizinhos, e quando rebentou a guerra troiana, logo resolveramintervir na luta. Depois da morte da rainha Pentesiléia, uma parte das Amazonas voltou à Armênia, as outras erraram evagabundearam nos países da Ásia Menor, até que os fenícios as convidaram a irem nos seus navios para a Nova Canaã,descoberta por eles no Oceano Atlântico.

Caracteristicamente, tinham as Amazonas, na Armênia, um lago com uma ilha chamada Faro, onde estabeleceram umcentro nacional com um pequeno templo, no qual foi sepultada a rainha Mirina. Isso foi sem dúvida em lembrança da suaantiga cidade, Hespera, na ilha do lago Tritonis. No Baixo Amazonas fundaram elas a cidade Faro, e lá existe também olago, com seu antigo templo, escondido ao meio duma pequena ilha.

(1) Essa Tróia é a mais conhecida, arqueologicamente e literariamente, devido à obra Ilíada, o mais antigo poemaépico, escrito antes de 750 a.C., atribuído a Homero, em que narra a guerra com os gregos.

O herói troiano Enéias, filho de Vênus, escapa com alguns partidários e instala-se no Lácio, dando origem ao povoromano. Entre 1870 a 1890 o arqueólogo Henrich Schiliemann identificou o local da antiga Tróia com a Colina de Hissarlik,descobrindo ali sete cidades superpostas (N. do Apres.)

II - AS FROTAS DE HIRÃ E SALOMÃO NO RIO AMAZONAS (993 A 960 a.C.)

O tratado de Henrique Onfroy de Thoron sobre o suposto país Ophir, publicado em Manaus, em 1876, e reproduzidoem As Duas Américas, de Cândido Costa, em 1900, é um trabalho completo que acabou com todas as lendas e conjeturas

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a respeito das misteriosas viagens da frota de Salomão. Thoron sabia latim, grego e hebraico, e conhecia a língua tupi,como também a língua “quíchua”, que é ainda falada nas terraslimítrofes entre o Brasil e o Peru. Da bíblia hebraica prova ele, pala-vra por palavra, que a narração dada no 1o. livro dos Reis, sobre aconstrução, a saída e viagem da frota dos judeus, junto à frota dosfenícios, refere-se unicamente ao rio Amazonas. (1)

As viagens repetiram-se de três em três anos; as frotas gasta-ram um ano entre os preparativos e a viagem de ida e volta, e fica-ram dois anos no Alto Amazonas, para organizar a procura do ouroe de pedras preciosas. Estabeleceram ali diversas feitorias ecolônias, e ensinaram aos indígenas a mineração e lavagem deouro pelo sistema dos egípcios, descrito por Diodoro, minuciosa-mente, no 3º livro, cap. 11 e 12. Ali, no Alto Amazonas, exploraramas regiões dos rios Apirá, Paruassu, Parumirim e Tarchicha. No li-vro dos Reis, da Bíblia, está bem narrado quantos quilos de ouro orei Salomão recebeu dessas regiões amazônicas.

O mister de nosso trabalho é principalmente a exatahistoriografia, e por isso devemos acrescentar aqui algumas expli-cações históricas que não se encontram no trabalho de Thoron. Quando o Brasil era colônia de Portugal, os seus destinoseram dirigidos em Lisboa. Quando chegaram aqui os antigos descobridores, dependeram também, para o desenvolvimen-to de suas empresas, da situação política dos países do Mediterrâneo.

Os fenícios tiveram sempre muitos inimigos que invejavam as suas riquezas; mas, bons diplomatas, com ninguémbrigaram, nunca fizeram guerras agressivas e, em toda parte, solicitaram alianças políticas e comerciais. Assim, esse povopequeno, que nunca foi mais de meio milhão de almas, espalhado sobre centenas de colônias longínquas, pôde conser-var, durante dois milênios, um grande domíno marítimo e colonial.

O rei David, dos judeus, havia fundado um poderoso reino, que atingiu seu apogeu no longo governo de Salomão.Os fenícios mostraram-se muito amigos de seu grande vizinho, que lhes forneceu principalmente trabalhadores, quefaltavam na Judéia.

Ambos os países estiveram também em boas relações com o Egito, onde reinava a dinastia dos Tanitas. Essa “TrípliceAliança” deu a seus componentes uma certa segurança contra os planos conquistadores dos Assírios, e favoreceu asempresas coloniais, no Atlântico. Mas, em 949 a.C., apoderou-se o chefe dos mercenários líbicos, Chechonk, do governodo Egito e destronou a dinastia dos Tanitas. Esse chefe não era amigo do rei Salomão, tendo este querido repor a dinastiacaída. Chechonk vingou-se, incitando Jeroboão a fazer uma revolução contra Salomão, e tornou-se o instigador da divisãodo reino judaico em dois Estados. Jeroboão ficou como rei das províncias do Norte e Roboão, filho de Salomão, ficou comJerusalém e a província da Judéia. Depois, no quinto ano de governo de Roboão, apareceu Chechonk com grandesexércitos na Judéia, sitiou Jerusalém e obrigou Roboão a entregar-lhe quase todos os objetos de ouro do templo. Assim,levou Chechonk a maior parte do ouro que Salomão recebera da Amazônia, além de quatro grandes escudos que pesa-vam 5 quilos de ouro, cada um, para o Egito. O usurpador mandou colocar no templo de Amon, em Karnac, uma grandelápide, na qual são narrados todos os pormenores dessa guerra contra a Judéia e enumeradas as peças de ouro que ovendedor trouxe para colocá-las nos templos egípcios. Essa lápide ainda hoje existe. (2)

Chechonk, que olhara de mau grado os negócios que haviam feito os fenícios com os judeus, ofereceu àqueles umasociedade comercial, com o fim da procura de ouro.

Assim, apareceram, de 940 a.C. em diante, egípcios no Brasil, chegados nos navios dos fenícios. Foram engenheiros,mestres de obra e trabalhadores de mineração que Chechonk mandou para abrirem minas de ouro no Brasil. (3)

Os maiores compradores de ouro, na antiguidade, eram os egípcios. Nenhum povo desprezou o ouro, mas os egípciosprecisavam sempre do duplo e do triplo de que necessitavam os outros. Crentes na ressurreição da carne no dia do juízofinal, preparavam-se para poder ingressar na vida futura em boas condições. Tinham artistas que sabiam embalsamar eembelezar os corpos e os rostos dos mortos, de tal maneira que estes apareceriam perfeitos e belos ainda depois de 2 a3 mil anos, como sabemos do túmulo da rainha Tinhanen. Mas os mortos não apenas queriam permanecer novos e belos;necessitavam também de ouro, prata e pedras preciosas para reaparecerem na vida futura com os meios financeiros quecorrespondiam às suas posições anteriores.

Por esse motivo, não só os reis, altos sacerdotes, nobres e altos funcionários, como também todas as mulheres e os

Reprodução artística do Templo de Salomão

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homens menos ricos, juntavam e acumulavam ouro durante sua vida, para ser depositado nos seus túmulos.Uma única restrição devemos fazer às conclusões de Onfroy Thoron. É certo que os judeus fundaram nas regiões do

Alto Amazonas algumas colônias, onde negociavam, e ali se mantiveram durante muitos séculos, tendo deixado,indubitavelmente, rastros da civilização e da línguahebraica. Também o nome Solimões, para o cursomédio do grande rio, tem a sua origem no nome do reiSalomão, cuja forma popular era sempre “Solimão”.Mas isso não justifica que a antiga língua brasílica, otupi, fosse muito influenciada pela língua hebraica. Otupi é muito mais antigo e pertence à grande famíliadas línguas pelasgas, que foram faladas em todos ospaíses do litoral mediterrâneo. Os povos da antigaAtlântida falaram essa língua, e a mesma “línguasumérica”, dos antigos babilônios, pertenceu a essalíngua gerla, dos cários, respectivamente, dospelasgos. Os diversos ramos dessa língua diferenciaram-se entre si como, no tempo moderno, as línguas romanas.

O laço comum dos povos pelasgos era a organização da ordem sacerdotal dos cários e o comércio marítimo dosfenícios. Os sacerdotes e os mercantes entendiam-se com todos, e por isso formou-se, já no segundo milênio a.C., uma“língua geral”, que foi falada desde a Ásia Menor até a América Central, e deveria ser chamada “pelasgostupi”.

Essa língua, que os antigos brasileiros chamaram “nhenhen-catu” (o bom andamento), falaram os mercantes fenícios,bem como os sacerdotes (sumés e piagas) dos povos tupis. O hebraico é muito mais novo; quando Moisés apareceu comseu povo em Canaã não trazia ainda uma língua organizada. Os tijolos com os dez mandamentos, recebeu-os Moisés daCaldéia e foram escritos em língua babilônica. Depois, aprenderam os judeus a língua popular dos fenícios e, muito maistarde, elaboraram os levitas, com os elementos da língua fenícia, uma língua hierática, que ficou chamada “hebraica”. Alíngua tupi no Brasil não tem ligação com essa formação posterior.

(1) É conhecida a grande amizade e forte aliança entre Salomão e Hirã. Além de servir-se Salomão da frota marítimados fenícios, numa associação de interesses comerciais, recorreu a Hirã, quando da construção de seu templo, tendo o reide Tiro designado um seu homônimo, o arquiteto Hirã, para comandar os trabalhos da construção do templo. (S. do Apres.)

(2) Um documento assírio do ano 876 a.C. refere-se ao tributo que os habitantes de Tiro eram obrigados a pagar aoseu país para manterem por algum tempo aparente independência: “grande quantidade de ouro, prata, chumbo, bronze emarfim, 35 vasos de bronze, algumas vestimentas de cores vivas e um delfim” (N. do Apres.)

(3) Reportamo-nos à carta de A. Frot mencionada por Braghine (N. 7): “para dar-lhe uma idéia, basta dizer que tenhoem mãos a prova da origem dos egípcios; os antepassados desse povo saíram da América do Sul”. Também Thoron é daopinião que egípcios e pelasgos eram procedentes da América, dizendo que a língua quíchua tem muita semelhança como egípcio antigo, o grego e até com o hindustani. Lembramos também a hipótese de Wegener de que o Ceará e o Saaraformaram outrora uma única região, considerando a semelhança das condições geográficas e físicas entre o Estadobrasileiro e aquele deserto. (N. do Apres.)

III - A CHEGADA DOS EGÍPCIOS E A IMIGRAÇÃO DOS POVOS TUPIS (940 a 900 a.C.)

O segredo do sucesso em todos os grandes empreendimentos humanos está na continuação inalterável dos primeirosconceitos. Planos efêmeros, hoje iniciados, amanhã alterados, depois interrompidos, novamente recomeçados em outraépoca, com novos mestres, com outras ambições, nunca terão resultados satisfatórios. Os fenícios foram um povo discipli-nado, onde cada qual se submetia ao interesse comum.

Uma prática de mil anos os havia educado a todos. O navegador é um homem calado, o bom comerciante sabeguardar seus segredos. A Fenícia nunca teve reis ambiciosos, nunca teve poetas ou literatos, nem legisladores. Cada qualconhecia o seu dever: era religioso, zeloso no seu trabalho, não conhecia medo, nem do mar, nem dos obstáculos naturais,nem dos inimigos. Venceu sempre pela sua perseverança e pela prudente diplomacia. E nunca faltava-lhe a grande forçamotriz: o dinheiro.

Tais foram os homens que conquistaram o grande Brasil, sem soldados e sem belonaves. Já tinham eles diversasestações e colônias na costa do Nordeste. No Nordeste, no delta do Parnaíba, foi fundada Tutóia; na foz do Amazonas, emMarajó, estava a colônia dos tirrênios; mais acima, andaram as mulheres guerreiras; no alto Amazonas, trabalharam as

Gravura representando o comércio dosfenícios com os egípcios

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colônias hebraicas. A obra já estava bem iniciada quando chegaram os mineiros egípcios à procura dos filões auríferos.Isso não era praticável no litoral; era preciso penetrar o interior, nas regiões montanhosas. Mas, ali estava a população

indígena, os povos tapuios da raça malaia. O povo era pacífico e não mostrou hostilidade contra os estrangeiros. Noentanto, eles necessitavam de trabalhadores para as suas empresas, e de garantia e segurança para suas obras. Semesses meios, a penetração era impossível.

Os fenícios não ficaram muito tempo indecisos. Já conheciam asilhas da América Central, as Antilhas, quer dizer: “Atlan-tilha” (as peque-nas Atlântidas). Mil anos antes de Cristo, essas ilhas eram ainda maio-res, e no lugar onde hoje está o Mar das Caraíbas, havia ainda um gran-de pedaço de terra firme, chamado Caraíba (isto é, terra dos caras oucaris). Nessa Caraíba e nas ilhas em redor viviam naquela época as setetribos da nação tupi, que foram refugiadas da desmoronada Atlântida.Chamaram-se Caris, e eram ligados aos povos cários, do Mar Mediterrâ-

neo. Os sacerdotes deram-lhe o nome tupi, que significa filho de Tupan.O país Caraíba, porém, teve a mesma sorte que a Atlântida. Todos os anos desligava-se em pedaços até que desapa-

receu inteiramente, afundado no mar. Os tupis salvaram-se em pequenos botes, rumando para o continente, onde estáhoje a república Venezuela.

O nome da capital Caracas prende-se a essa origem. Os fenícios tiveram conhecimento dessa região e resolveramlevar os tupis em seus navios para o Norte do Brasil. Quando chegaram os primeiros padres espanhóis na Venezuela,contaram-lhes os piagas aqueles acontecimentos do passado. Disseram que a metade da população das ilhas, ameaçadapelo mar, retirou-se em pequenos navios para a Venezuela, mas que morreram milhares na travessia. A outra metade foilevada em grandes navios para o Sul, onde encontraram terras novas e firmes.

Varnhagem, Visconde de Porto Seguro, confirma, na sua História Brasileira, que essa tradição a respeito da emigraçãodos Caris-Tupis, da Caraíba para o Norte do continente sul-americano, vive ainda entre o povo indígena da Venezuela. Opadre Antônio Vieira, o grande apóstolo dos indígenas brasileiros, assevera em diversos pontos de seus livros, que osTupinambás, como os Tabajaras, contaram-lhe que os povos tupis imigraram para o Norte do Brasil, pelo mar, vindo de umpaís que não existia mais. Os Tabajaras diziam-se o povo mais antigo do Brasil. Isso quer dizer que eles foram aquela tribodos tupis que primeiro chegou ao Brasil, e que conservou sempre as suas primeiras sedes entre o rio Parnaíba e a Serrada Ibiapaba. Essa tradição confirma também que a primeira imigração dos tupis passou pela foz do rio Parnaíba. Os tupis,que imigraram mais tarde pela baía de São Marcos e fixaram seu centro na Ilha Tupaon, hoje São Luiz, tornaram-se menosestimados pelos Tabajaras, Potiguares e Cariris. Por isso, aqueles se chamavam orgulhosamente Tupinambás, que querdizer homens da legítima raça tupi. Pagaram o desprezo de parte dos outros tupis, pelo insulto Tupiniquins e Tupinambarana,que quer dizer Tupis de segunda classe.

Sempre conservou-se também a tradição de que os tupis tinham sete tribos. Qual foi o fim desejado pelos fenícios coma imigração dos tupis para o Brasil?

Procuravam um povo auxiliador para a sua grande empresa; um povo inteiro que assim identificou os seus interessesnacionais com os interesses da nova pátria. Os outros que chegaram no Mediterrâneo permaneceram sempre estrangei-ros; ficaram em relações com sua antiga pátria e pensavam voltar para lá, logo fosse possível. Os tupis não podiam voltar;sua pátria fora vítima do mar. Procuravam uma nova pátria, uma terra de promissão, destinada para eles por Tupã, comodisseram seus sacerdotes.

Os fenícios tinham simpatias pelos tupis, que eram da mesma estirpe dos povos cários; entenderam a sua língua geral“do bom andamento”; eram brancos, um pouco amarelados, como todos os povos do Sul da Europa e da Ásia Menor, etinham uma religião com sacerdotes semelhantes à organização religiosa dos fenícios. Além disso, eram agricultores etinham um caráter guerreiro. Um tal povo, transferido para o continente brasileiro e nele domiciliado com o auxílio dosfenícios, poderia tornar-se um bom aliado para estes. Os antigos historiadores citam diversos outros exemplos da imigra-ção de povos, com o auxílio e nos navios dos fenícios. Isso foi um dos meios eficazes de que se serviram para segurarsuas espalhadas colônias.

As primeiras massas dos emigrantes entraram na foz do Parnaíba, onde Tutóia era porto de recepção. Dividiram-seem três tribos (ou povos) e chamavam-se Tabajaras, entre o Rio Parnaíba e a Serra do Ibiapaba, Potiguares, que sedomiciliaram além do rio Poti, e Cariris, que tomaram as terras da Ibiapaba para o nascente. Não é possível que eles jáchegassem com essa distinção de tribos. Os chefes escolheram esses nomes depois da colocação do emigrantes edelimitação dos respectivos territórios.

Cinturão de ouro fenício

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Entretanto, escolheram os fenícios um outro ponto de entrada para a segunda onda dos imigrantes. Foi a ilha doMaranhão, um ponto importante para a navegação e para a penetração ao interior. Cinco rios perenes: Muni, Itapecuru,Mearim, Pindaré e Grajaú unem suas fozes em redor da linda ilha e abrem o caminho para o interior. Além disso, foinaquele tempo a baía de São Marcos a embocadura oriental do rio Amazonas, quer dizer, do rio Pará, formado pelos dozerios paraenses, inclusive o Guamá, o Tocantins e o Xingu. Desde a foz desse grande rio até a foz do Mearim, existiu a“estrada dos furos”, entre a costa do continente e a linha ao longo das ilhas e bancos oceânicos.

Mesmo no tempo dos Europeus, existia ainda a passagem pelos furos, desde S. Luiz até Belém, somente interrompidaem dois pontos. Por isso, os Tupinambás chamaram Mara-Ion, “o grande rio da terra”, que se estendeu desde a baía daSão Marcos até os Andes, no Peru. Mas, é provável que tenham sido os navegadores fenícios os formadores desse nome,que é hoje a denominação do Estado do Maranhão e do curso alto do Amazonas. “Nomina quoque habent sua fata”.

Os fenícios escolheram então a ilha de São Luiz como porto de entrada e iniciaram os alicerces para a cidade, empre-gando o grande labirinto do sistema pelasgo. Os emigrantes deram à ilha o nome de Tupaon, que significa burgo de Tupan,e nela fundaram numerosas vilas e aldeias, das quais existiam ainda 27 no tempo da chegada dos europeus. Se osTabajaras duvidaram da descendência legítimo-tupi dos emigrantes da segunda época, foi talvez o motivo dessa dúvida, ofato de que aqueles tupis tinham levado consigo um certo número dos antigos indígenas da Caraíba e das Ilhas, que lhesserviam como trabalhadores. Mas, os emigrantes repeliram qualquer dúvida sobre a pureza de seu sangue tupi e adotaramo nome significativo de Tupinambás, iniciando logo uma política de expansão, sobre a qual falaremos em lugar próprio.

O pagamento para os sacrifícios que fizeram os fenícios com a transferência dos tupis para o Brasil foi o contrato peloqual se obrigaram estes a fornecer aos fenícios soldados para garantirem e policiarem suas empresas no interior. Tupigaranisignifica “guerreiro da raça tupi”. Os padres portugueses escreveram tupi-guarani, mas no nome antigo é garani, derivadoda palavra pelasga “garra”, que mudou nas línguas posteriores em guerra pela lei do abrandamento das vogais. Osguaranis nunca foram um povo separado, foram legítimos tupis que andavam armados com as boas armas de bronze quelhes forneceram os fenícios. Por esse contrato ganharam estes um exército aliado, cujo efetivo subiu depois a muitosmilhares de guerreiros.

A respeito dos mineiros egípcios que chegaram ao Brasil, deve-se constatar o seguinte: nas lápides, onde são inscritosos acontecimentos do governo do faraó Ramsés III, está narrado que esse rei fundou na sua capital Tebas, em 1170 a.C.,uma escola de engenharia e mineração. Dos engenheiros de minas que foram ali instruídos, mandou o faraó uma comis-são para diversas regiões da Arábia para explorar as jazidas de lápis lazuli.

Uma outra comissão mandou ele à Etiópia para estudar a explorar todas as minas de ouro que ali existiam. Uma outracomissão foi encarregada de explorar as minas de cobre de Ataca; outros engenheiros egípcios foram, em navios dosfenícios, para o Sudeste da África e exploraram ali, por conta do faraó, as minas auríferas de Moçambique e do Transval.Assim, não foi coisa extraordinária que cedesse Chechonk aos fenícios engenheiros egípcios para organizarem as empre-sas de mineração no Brasil.

IV - A PARTICIPAÇÃO DOS CARTAGINESES NA COLONIZAÇÃO DO BRASIL (750 a.C.)

Colocamos a fundação de Cartago no espaço de 850 a.C. a 840 a.C. Em 1240 a.C. foi fundada, no mesmo lugar, acolônia fenícia Birsa, que ficou bem fortificada para poder servir como um ponto estratégico da estrada marítima, que ligaa bacia oriental do Mar Mediterrâneo à sua bacia ocidental. Nesse sentido, ganhou a pequena cidade de Birsa uma certaimportância no movimento marítimo. No ano 850 a.C., deu-se uma tragédia real de Tiro, mas não conhecemos exatamentenem os fatos, nem os nomes dos implicados. O rei foi assassinado - por instigação de um parente - e a rainha viúva Elisa(ou Dido) refugiou-se, com seus partidários, e com uma grande frota, em Birsa, onde foi construída a grande cidade deCartago. Não é possível que esse plano nascesse do cérebro de uma mulher. (1)

Foram dois partidos que lutaram entre si violentamente, e o partido vencido ficou obrigado a procurar uma outracidade, um acontecimento muito comum na história da antiguidade. Neste caso, porém, saíram os dissidentes com oplano de fundar uma nova metrópole, bastante forte para dominar mesmo a antiga pátria. Começou logo o combateentre os dois rivais.

Os cartagineses mandaram emissários a muitos países para juntar operários, colonos e soldados para sua novacapital; os tírios mandaram frotas para impedir esse recrutamento. Mas Cartago cresceu e, para vingar-se dos tírios, osenado cartaginês declarou que não deixaria passar pelo estreito de Gades (Gibraltar), qualquer navio que levasseemigrantes para a grande ilha dos fenícios, no Oceano Atlântico. Isso foi cerca de 820 a.C. Os cartagineses quiseram,principalmente, impedir que os tírios levassem mestres de obras e trabalhadores egípcios para o Brasil e ameaçaram

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todos esses emigrantes com a pena de morte, no caso de caírem eles em poder dos navios encarregados do policia-mento do estreito.

Poucos anos depois, cerca de 810 a.C., organizaram os cartagineses a grande expedição ao golfo de Guiné, sob achefia de Hannon, sobre a qual já falamos. Foi a orgulhosa tentativa de fundar, no Oceano Atlântico, um domínio colonialainda maior do que o domínio dos tírios. Essa tentativa fracassou e os cartagineses ficaram desiludidos e desanimados.Mas, finalmente, com o correr do tempo, desapareceram a animosidade e a rivalidade entre os dois irmãos Tiro e Cartago;eles entraram num acordo que estabeleceu um certo condomínio sobre as possessões coloniais das duas potências.Assim, aparecem de 750 a.C. em diante também os cartagineses no Brasil.

Sua estação marítima estava no lago Extremoz, perto de Natal, atual capital do Rio Grande do Norte, o que seráexplicado no respectivo capítulo.

(1) A fundação de Cartago é assunto ainda meio nebuloso entre os historiadores. Alguns afirmam que Pigmalião, filhode Bélus, rei de Tiro, e irmão de Elisa (Dido) e de Ana, matou Siquei e provocou a fuga de Dido para o Norte da África, ondefundou Cartago. Outros citam que Pigmalião era rei de Tiro, em 850 a.C., época que Schwennhagen dá como a provávelfundação de Cartago. Quanto à Elisa, é tradicionalmente apresentada como a fundadora da cidade, situada a 16 km daatual Túnis, e seu nome vem da palavra fenícia Karthadshat (nova cidade). (N. do Apres.)

V - TESTEMUNHOS LITERÁRIOS DO 4º SÉCULO a.C.

O filósofo grego Platão escreveu o seu diálogo Timeu e Crítias em 380 a.C. Declara ele nesse livro que seu avô Crítiasadquiriu um manuscrito do legislador Sólon, no qual este relatou diversas e interessantes notícias geográficas. Disse Sólonque os sábios egípcios lhe explicaram a posição e a história da Atlântida submersa e dos outros países que existem aindaatrás do lugar onde estava a Atlântida. Platão se declara convicto que ao lado ocidental do Oceano Atlântico existisse umgrande país. (1)

O filósofo Aristóteles escreveu a sua Geografia cerca de 350 a.C. Nesse livro, ele confirma as notícias de Platão sobrea Atlântida e declara que os fenícios e cartagineses haviam fundado muitas colônias no grande país do Ocidente.

Aristóteles foi o preceptor de Alexandre Magno. É certo que esse sábio ensinou a seu discípulo tudo o que sabia sobrea geografia do nosso planeta, e que o jovem Alexandre esboçou seus grandes projetos de “conquista do mundo” nasdoutrinas de seu mestre.

Esses planos implicavam também a soberania sobre os mares e sobre as colônias dos fenícios.(1) Assim se refere Alexandre Braghine, em seu O Enigma da Atlântida, à pg. 13, ao diálogo de Platão: “Depois ossacerdotes fizeram saber a Sólon que conheciam a história de Saís, a partir de 8000 anos antes daquela data. ‘Há manus-critos’, disseram-lhe, ‘que contêm o relato de uma guerra que lavrou entre os atenienses e uma poderosa nação quehabitava uma ilha de grandes dimensões situada no Oceano Atlântico. Nas proximidades dessa ilha existiam outras e maisalém, no extremo do oceano, um grande continente. A ilha chamava-se Posseidonis ou Atlantis, e era governada pelos reisaos quais pertenciam também as ilhas próximas, assim como a Líbia e os países que cercam o mar Tirreno. Quando sedeu a invasão da Europa pelos atlantes, foi a cidade de Atenas, como cabeça de uma liga de cidades gregas, que pelo seuvalor, salvou a Grécia do jugo daquele povo. Posteriormente a estes acontecimentos, houve uma tremenda catástrofe: umviolento terremoto abalou a terra, que foi logo depois devastada pelas torrentes de chuva. As tropas gregas sucumbiram ea Atlântida foi tragada pelo oceano”.

VI - A DESTRUIÇÃO DE TIRO, EM 332, E A EXPEDIÇÃO DA FROTA DE ALEXANDRE MAGNO PARA A AMÉRICA DOSUL EM 328 a.C.

O ato mais brutal do grande chefe da nação helênica, cuja figura mostra tantos traços de generosidade e magnanimi-dade, foi a cruel destruição de Tiro e a matança de 8.000 prisioneiros, que se entregaram depois de uma resistênciaheróica de sete meses, abatidos pela fome e pelos ferimentos. Além disso, Alexandre mandou saquear todas as casas evender 30.000 mulheres e crianças como escravas. Só deixou, na cidade demolida, alguns velhos, e nomeou um mendigocomo rei dos tírios, de nome Abdalonimo, que era vendedor de água nas ruas.

Assim terminou a glória dessa cidade que dominou durante um milênio em todos os mares e contribuiu para acivilização humana. Foi a inata inveja do grego contra o pequeno e tão poderoso competidor comercial e marítimo queimpeliu o grande Alexandre a esse ato de brutalidade, que obscureceu o seu retrato histórico, tornando-se a sombra dasua morte prematura.

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Logo depois da queda de Tiro, invadiu Alexandre o Egito, que não fez resistência (331 a. C.). Visitou a capital, Tebas,o afamado templo tríplice de Karnac e o oráculo do deus Amon. Voltando para o mar, escolheu no delta do Nilo o lugar paraser construída ali uma nova capital, que devia trazer seu nome, “Alexandria”, e devia tornar-se a “Rainha dos Mares”, emlugar de Tiro destruída. Nomeou seu general Ptolomeu governador (sátrapa) do Egito, deu-lhe ordem para edificar a novacapital com o maior esplendor, e para construir, depois, uma grande frota. Esta devia procurar e conquistar o domíniocolonial dos fenícios, no Oceano Atlântico.

Alexandre continuou suas conquistas na Ásia; Ptolomeu edificou Alexandria e preparou a grande expedição para o Oci-dente. Agora deixemos falar Cândido Costa (nas Duas Américas, pg. 48): “Não há muito, na vila de Dores, em Montevidéu, umfazendeiro descobriu uma lápide sepulcral de tijolos, onde se achavam espadas antigas e um capacete, danificados pelapassagem do tempo, e uma jarra de barro, de grande dimensão. Todos estes objetos foram apresentados ao douto padreMartins, o qual conseguiu ler na lápide, em caracteres gregos: ‘Alexandre, filho de Felipe, era rei da Macedônia na olimpíada113. Nestes lugares Ptolomeu... ‘ Faltava o resto. Numa das espadas se achava gravada certa efígie que parecia ser a deAlexandre, e no capacete se viam esculpidas várias figuras, representando Aquiles arrastando o cadáver de Heitor em rodados muros de Tróia. Pode-se supor que algum chefe das armadas de Alexandre, levado por alguma tormenta, surgisse ali emarcasse com tal monumento a sua estadia”. Cândido Costa extraiu essa notícia dos jornais de Montevidéu.

Temos aí um dos mais importantes documentos da antiga história do continente sul-americano.É deplorável que o exame da lápide não fosse feito mais minuciosamente, para realçar o seu valor histórico. A olimpí-

ada 113 começou no ano 328 a.C., Ptolomeu já era há três anos governador do Egito, e o texto mutilado começou prova-velmente assim: “para estes lugares mandou o sátrapa Ptolomeu uma frota sob o comando de...” O sepulcro era do chefeda expedição, que recebera do próprio Alexandre a espada com a efígie do rei; a ferrugem destruiu as palavras da dedica-tória. O capacete foi também um presente do rei. Alexandre sempre levava nas suas viagens um exemplar da Ilíada, deHomero; o seu ídolo foi o herói Aquiles. Apeles deveria pintar para ele o grande quadro, mostrando Aquiles levandoarrastado o corpo do chefe dos troianos vencidos, em redor dos muros de Tróia. A mesma cena era gravada no grandecapacete, que trazia Alexandre nas duas batalhas decisivas contra os exércitos de Dario. Foi o mesmo elmo, ou foi umaimitação do seu próprio, que deu Alexandre ao seu general, por ele incumbido de conquistar a América do Sul?Indubitavelmente, estava escrito o seu nome na lápide, mas o examinador não o decifrou.

Devemos supor que a frota foi conduzida por práticos fenícios até as costas do Brasil, na altura da foz do rio SãoFrancisco. Ali aportou ela e o chefe foi informado pelos egípciosque no Sul existia mais um grande rio, pelo qual se poderia pene-trar no interior do continente. O rio da Prata foi conhecido dosfenícios, como provam as inscrições. A frota grega navegou ao lon-go da costa, até a foz do grande rio do Sul, onde naufragou, oupelo menos uma parte, incluído o navio do almirante. Morreram elee muitos de seus companheiros, o que indica o grande número dearmas depositadas no mesmo sepulcro.

Ou travou-se um combate naval com um adversário que tinha tam-bém navios armados? Talvez fossem estes os navios dos cartagineses.

Os sobreviventes da frota grega juntaram os corpos dos náufra-gos, queimaram-nos, recolhendo as suas cinzas na “jarra de gran-des dimensões”. Isto também deixa supor que tivessem morrido nu-merosos guerreiros de alta patente. Soldados e tripulantes comunsnão se sepultavam com tais honras.

Alexandre morreu em 324, provavelmente envenenado por seusgenerais. Seu vasto império foi dividido entre os seus generais, quelogo começaram a guerrear entre si. As notícias a respeito da sorte

da expedição atlântica não tinham ainda chegado ao Mediterrâneo. Ptolomeu proclamou-se rei do Egito e devia enfrentarbastante dificuldade para assegurar o seu poder contra as ambições dos outros generais. Não se interessou mais pelascoisas do Oceano Atlântico.

VII - O DOMÍNIO CARTAGINÊS NO BRASIL

Quando o rei Alexandre começou o sítio contra Tiro, mandaram os fenícios navios com muita gente rica, com a mulher

Tumba de Alexandre

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e as filhas do rei Straton, com pessoas doentes e com grandes quantidades de ouro e jóias a Cartago, pedindo auxíliocontra os agressores.

Os sitiados contaram com esse auxílio até o último dia, mas os cartagineses não mandaram nem navios, nem solda-dos, nem víveres, desculpando-se sob a alegação das grandes lutas que mantinham na Sicília. Depois da queda de Tiro,tomaram eles posse de todas as colônias dos fenícios, na Espanha e nas costas atlântidas. Depois da morte de Alexandre,tornaram-se os únicos senhores do Oceano Atlântico.

Em 270 a.C. começaram as lutas entre os cartagineses e os romanos, as quais terminaram em 147, com a destrui-ção de Cartago. Nessas guerras sofreram os romanos inumeráveis derrotas, mas venceram pela sua persistência epelo patriotismo de seus soldados, enquanto os cartagineses enchiam seus exércitos e suas frotas com soldadosestrangeiros e mercenários.

Já em 230 a.C. compreenderam os cartagineses que não poderiam resistir aos romanos, que sempre recomeçaram aguerra com novas forças militares. Por isso, resolveu o senado cartaginês transferir a capital de seu império para as ilhasMacárias, hoje chamadas Canárias. (Os escritores latinos traduziram o nome Maçarias erradamente em Fortunatas). Osnavegadores da Idade Média mudaram o antigo nome em Canárias).

Os senadores cartagineses, que eram todos comerciantes, capitalistas e proprietários de navios, quiseram salvar o domí-nio colonial que lhes fornecera as suas riquezas. A ilha, onde está hoje o porto marítimo Las Palmas, conserva diversasinscrições com letras fenícias, escritas no mesmo sistema que as inscrições brasileiras. Quando as Canárias foram coloniza-das, nos séculos XIV e XV, pelos portugueses e espanhóis, encontraram eles uma população indígena branca, e na costa, emdiversos pontos, erguiam-se seis altas colunas de pedras que serviam de balizas e faróis aos navegadores.

A resolução do senado cartaginês de transferir para essa ilha a sua capital mostra claramente que os cartaginesestinham um intercâmbio permanente com as costas sul-americanas.

Os historiadores Tito Lívio e Políbio falavam sobre essa resolução, afirmando que, caso os cartagineses tivessemrealmente esse plano, os romanos não poderiam aniquilar o poder deles, pois estes não tinham conhecimento do oceano,nem forças marítimas para dominar regiões tão afastadas. Diodoro diz que os cartagineses sempre pensaram firmar-seem lugares escondidos e desconhecidos, onde seus inimigos não os pudessem perseguir.

A prudente resolução do partido dos mercantes, porém, não se realizou. Amílcar Barcas, o chefe do partido conservador emilitarista, organizou demonstrações populares contra uma tal traição à pátria e a mocidade jurou nos templos defender o solopátrio até a última gota de sangue. Amílcar prometeu organizar, na Espanha, um novo poder militar, suficiente para enfrentar todasas ameaças dos romanos. As guerras continuaram e Cartago caiu, não sem própria culpa, em 147 antes de Cristo.

VIII - AS RELAÇÕES CORTADAS

Cortadas as relações marítimas e comerciais entre o mar Mediterrâneo e o Brasil, os fenícios e egípcios, restantesaqui, procuraram outros campos para a sua atividade.

Influenciou também o declínio do rendimento das minas de ouro e prata em muitas partes do Brasil. Assim, começouo êxodo dos fenícios para os países do Oeste e do Norte: para a Bolívia, Peru e México. Apolinário Frot descobriu umainscrição, indicando que um grupo de egípcios subiu o rio Madeira, fundou uma colônia no território boliviano e iniciou ali aexploração de minas de prata.

Outras expedições subiram o Amazonas até os Andes do Peru. A civilização peruana começou no último século antesda era cristã, oito séculos antes da chegada dos Incas, como provou o sábio cearense Domingos Jaguaribe. Outrosprocuraram, nos navios dos fenícios e cartagineses, as costas da América Central. A civilização mexicana principioutambém 100 a.C. O grande calendário solar do antigo México começa com o ano 75 depois de Cristo. Todas as grandesconstruções, pirâmides, templos, necrópoles e palácios do antigo México manifestam a arte egípcia. Esse desenvolvimen-to concorda perfeitamente com os nossos cálculos cronológicos.

Os eruditos romanos da era cristã tiveram também conhecimento do continente americano. O filósofo Sêneca, quemorreu em 65 d.C., escreveu: “Sabemos que no Oceano existe um país fértil, que além do Oceano existem outros paísese nasce um outro orbe, pois a natureza das coisas em parte nenhuma desaparece”.

IX - AS VIAGENS DO APÓSTOLO SÃO TOMÉ AO BRASIL (50 a 60 D.C.)

Na antiga literatura cristã encontramos a tradição de que o apóstolo São Tomé pregou o Evangelho nas costas e ilhasdo Nordeste da África. O nome S. Tomé foi dado àquela ilha, devido à essa tradição.

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Os primeiros padres portugueses que chegaram ao Brasil ouviram dos piagas que já mil anos antes chegara umSumé que ensinou uma nova religião. Ele fez longas viagens pelo interior e ganhou muitos crentes. O padre AntônioVieira escreveu muitas vezes estar convencido de que um apóstolo de Cristo já andara no Brasil. Ele pensava que onome Sumé era uma modificação de Tomé. Isso é um erro; a palavra Sumé, como nome de um alto sacerdote, pertenceà antiga pelasga.

Os tupis deram esse nome ao apóstolo para venerá-lo.Os piagas mostraram aos padres diversos sinais de pés que significaram que ali estivera o Sumé, cercado por seus

amigos e adeptos. Tais sinais de pés existem no interior de Alagoas, onde os padres deram ao rio, que passa ali, o nomede S. Tomé. O mesmo sinal existe em Oeiras, no Piauí, e o povo sempre venerou esse sinal, desde a antiguidade. A formado pé, gravada numa chapa de pedra, é uma placa comemorativa, usada pelos povos antigos para indicar que naquelelugar esteve um homem que foi um benfeitor do povo.

A travessia de S. Tomé pelo Atlântico nada tem de milagrosa. Naquela época, a população das Canárias e das ilhas deCabo Verde tinha ainda bons conhecimentos do Brasil, e o zeloso apóstolo procurou uma caravela para ir com seusamigos pregar a nova religião aos povos do outro lado do oceano.

X - A NAVEGAÇÃO ÁRABE NOS SÉCULOS II A VII

Nos três primeiros séculos da era cristã dominaram os romanos inteiramente o mar Mediterrâneo. Cada navio que nãofosse registrado pela polícia marítima era confiscado, a carga vendida em hasta pública e os tripulantes condenados comopiratas. A navegação livre foi expulsa para as costas da África, e um novo centro marítimo formou-se nos mares da Arábia.O patrimônio marítimo dos fenícios passou para os povos da raça árabe.

Esses navegadores percorreram os mares entre as Índias e África do Sul e andaram até a América do Sul.Um sábio sírio que fez viagens pelo Brasil declarou, numa conferência que fez, em 1923, no Maranhão, com

diversos professores brasileiros, que na antiga literatura árabe existem muitos documentos sobre as viagens dos nave-gadores árabes para o Brasil e Chile. Aqueles navios rodearam, nos séculos IV e V, quase todas as costas da Américado Sul, e as narrações sobre essas viagens contêm muitas notícias a respeito dos antigos países e povos deste conti-nente. Nos eruditos círculos árabes de Cairo se estuda essa literatura, fazendo-se publicações interessantes sobreesses fatos históricos.

Nós sabemos que Marco Pólo, o único escritor europeu que publicou na Idade Média um livro sobre a geografiamarítima, colheu todos os seus conhecimentos nas viagens que fez em navios árabes. Foram então navegadoresárabes que contaram a Marco Pólo a existência dos países Catai e Sipanga, nomes até aquele tempo desconhecidosna Europa. Sobre isso falaremos mais tarde; aqui seja somente constatado que esses nomes foram comunicados àposteridade pelos árabes.

XI - A ORIGEM DA “ILHA DAS SETE CIDADES”

Já no tempo do império romano apareceu na nomenclatura geográfica a Insula Septem Civitatum, que significa Ilhados Sete Povos. No latim, civitas não é cidade, mas a coletividade dos cidadãos. Os escritores romanos chamam umpequeno povo civitas, quase o mesmo a que nós chamamos uma tribo. Na língua portuguesa esqueceu-se a antigasignificação e civitas ficou erradamente traduzida como cidade, com o significado de urbe.

O primeiro documento é uma crônica da cidade Porto-Cale (hoje, o Porto), escrita em latim por um padre católico,cerca de 750 d.C. Foi quando os maometanos árabes já haviam destruído (em 711) o império dos Visigodos da Espanhae invadido a Lusitânia.

O arcebispo de Porto-Cale recusou submeter-se à dominação dos maometanos e deliberou, com seus co-diocesanos,como fazer para evitar as grandes humilhações dos cristãos. Perante o grande poder dos árabes, que tinham quase apenínsula inteira, surgiu como único meio a emigração. O Porto já possuía naquela época um extenso comércio marítimoe os peritos de navegação declararam ao arcebispo que existia no Oceano Atlântico um grande país a que os pilotoschamavam a “Ilha das Sete Civitates”.

O arcebispo resolveu ir para lá e com mais outros bispos e cônegos. Milhares de fiéis se declararam prontos a acom-panhar o corajoso prelado. Juntaram-se 20 veleiros e a expedição saiu em 734, com 5.000 pessoas. A crônica narra que afrota chegou salva no país de seu destino e que muita gente se preparava a seguir para a grande ilha.

Outros cronistas narram que a emigração do povo lusitano para a mesma ilha tomou, naquela época, grandes propor-

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ções, de maneira que os árabes ficaram muito inquietos com esse acontecimento. Os comerciantes árabes, por essemotivo, armaram uma esquadra, que devia ir para a mesma ilha, e verificar as condições daquele país.

Essas narrações são uma segura indicação de que:1º) os navegadores ibéricos das costas atlânticas e os navegadores das Canárias e do Cabo Verde sempre guardaram

a lembrança do grande país do Ocidente, cujo nome se identificou com o nome da ilha dos sete povos, respectivamente,das sete cidades;

2º) que se realizou, já à época de 700 a 950 anos d.C. uma extensa emigração da Península Ibérica para a AméricaCentral e a América do Sul, precedente à chegada dos normandos, noruegueses e irlandeses na América do Norte.

A respeito da expedição do arcebispo de Porto-Cale, não temos provas de que ela chegasse ao Brasil; é possível queficasse nos Açores ou chegasse a uma ilha das Antilhas, onde se encontrou, no tempo de Colombo, descendentes dumaantiga emigração européia. O ponto saliente para as nossas investigações é que, naquela época, a existência da ilha dassete civitates, ou cidades, era conhecida, e que todos os emigrantes só procuraram essa ilha.

Quanto a “cavalaria dos mares”, dirigida pelo Infante Dom Henrique, começou, de 1420 em diante, a procurar novasterras, todos os navegadores buscaram a grande ilha das sete cidades. Muitos voltaram com a nova de ter encontrado ailha lendária; mesmo à Ilha da Madeira chamaram eles primeiro de “Ilha das Sete Cidades”. Mas, o grande geógrafo eeremita de Sagres sabia bem que essa “Ilha” era um continente.

Finalmente, em 1473, chegou em Lisboa o açorense Fernando Telles, mostrou o seu roteiro e apresentou o mapaduma longa costa, com muitas ilhas, furos e rios, declarando que essa costa pertencia à grande ilha das sete cidades. Eraa costa do Norte do Brasil, entre Maranhão e Ceará, com o delta do rio Parnaíba. O rei D. Afonso V e a junta dos Matemá-ticos, presidida por seu filho, o futuro rei D. João II, acharam a descoberta de Fernando Telles muito importante, mas nãoconsentiram que Telles recebesse a reclamada carta de doação para a ilha das Sete Cidades. Uma carta de doação nãolhe foi recusada, mas em seu teor ela evitou aquela denominação e falou só de uma grande ilha ocidental que Tellespretendia povoar. Os documentos desses descobrimentos e as cópias das respectivas cartas de doação estão guardadosno Arquivo de Tombo, na repartição das ilhas. Foram publicados na ocasião do centenário da independência do Brasil.

Telles, que possuía oito caravelas e cujos pilotos navegaram em redor das ilhas Antilhas, bem como no litoral do Nortedo Brasil, não ficou muito satisfeito com o teor da sua carta de doação e, tendo largas relações com o comércio lisbonense,pôde ele influenciar de certo modo o governo. A Junta dos Matemáticos encarregou então o cônego Fernão Martins (ouFernão Roriz) de escrever uma carta ao geógrafo florentino Toscanelli e consultá-lo a respeito da situação da ilha das setecidades. A resposta do sábio italiano foi tal que a Junta dos Matemáticos não se apôs mais à entrega a Fernando Telles dacarta de doação para a ilha das sete cidades, em 1476.

O genro de Telles, Fernando Ulmo, que fez depois da morte de seu sogro uma campanha comercial com um cidadãoda Madeira de nome Afonso Estreito, e outros sócios, para explorarem a ilha das sete cidades, recebeu em 1485 uma novacarta de doação, na qual o rei se obrigou a fornecer ao donatário navios armados e forças militares para a CONQUISTADAS ILHAS E TERRAS FIRMES DAS SETE CIDADES. Esse documento, escrito sete anos antes da primeira viagem deColombo, prova que os “matemáticos” do rei João II sabiam perfeitamente que a chamada ilha das Sete Cidades era umCONTINENTE, com ilhas e terras firmes.

XII - O SIPANGA, RESPECTIVAMENTE, CIPANGO, DE MARCO PÓLO E PAULO TOSCANELLI

O veneziano Marco Pólo escreveu seu livro cerca de 1250 d.C. Ele fez viagens ao Oriente durante 20 anos (1230 a1250) e formou seu conhecimento, a respeito de Catai e Sipanga, pelos navegadores árabes. Estes explicaram a MarcoPólo que esses países eram situados da Arábia para o nascente, mas se poderia alcançá-los também NAVEGANDO PARAO POENTE. Marco Pólo compreendeu bem essa idéia e baseou nela a sua teoria de circunavegação da Terra. Já osnavegadores fenícios sabiam que a Terra tem a forma esférica, e os árabes, que navegaram naquela época entre as ÍndiasOrientais e a América do Sul, sabiam que se pode chegar ao Extremo Oriente e às ilhas do Pacífico navegando para Leste,bem como para Oeste. O esperto veneziano, que nem foi geógrafo, nem astrônomo, nem físico como Copérnico e outros,compreendeu o segredo da geografia terrestre e voltou para Europa com a nova teoria: “para ir às Índias, pode-se tomaruma caravela e navegar para o poente”. Os Turcos ameaçaram o caminho terrestre para as Índias; então, o comércio teveum outro caminho mais fácil, mais barato e mais seguro. Aqui está o grande mérito de Marco Pólo e, realmente, seu livrofoi a base, não só para a nossa ciência geográfica e astronômica da época da Renascença, mas também para o descobri-mento do “Novo Mundo”.

Mas, por outro lado, o livro de Marco Pólo criou também uma grande confusão nas outras noções geográficas. Ele não

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sabia a língua dos árabes e entendeu-se com os navegadores por meio de intérpretes que sabiam italiano. Não tinha amenor noção sobre distâncias marítimas, e como os navegadores dissessem que atrás das Índias e das ilhas (quer dizer,Polinésia e Austrália) estava o grande país Catai e atrás dele Sipanga, pensava Marco Pólo que Catai fosse a China eSipanga fosse o Japão. Os modernos escritores chineses e japoneses provaram, há muitos anos, que a China nunca teveo nome Catai, nem o Japão o nome Sipanga.

No livro de Marco Pólo o último nome não é escrito Sipanga, mas Cipango, diferença que não tem importância. No italianosempre se usa a terminação “o” em palavras exóticas, e o “C” no princípio da palavra é errado, pois ninguém disse “Tchipanga”,como se devia pronunciar o nome com o C italiano. Nem a língua japonesa, nem o árabe, nem o tupi possui a consoante “tch”.Podemos, por isso, bem supor que o nome era Sipanga. Marco Pólo conta que esteve na China, onde foi chanceler econselheiro íntimo do “Grande Khan da Mongólia”, e acrescenta muitas histórias fantásticas, que os modernos chinesesdeclaram puras invenções. Mas, para lá ele viajou por terra, saindo da Índia; por isso não pôde ele calcular a distânciamarítima. No Japão, a que ele chama Sipanga ou Cipango, não esteve, mas declara que essa ilha estava situada longe doGrande Oceano, DEZ MIL MILHAS DISTANTE DO CONTINENTE ASIÁTICO, QUASE NO MEIO ENTRE A ÁSIA E A ÁFRICA.

Esta foi, indubitavelmente, a indicação que Marco Pólo recebeu dos navegadores árabes. No meio, entre as Índias,nas quais contavam-se também as ilhas da Polinésia e África, está a América do Sul, e não o Japão. Assim, confirmaMarco Pólo, mesmo contra a sua vontade, a nossa hipótese de que Sipanga era o nome antigo duma parte da América doSul, respectivamente do Brasil.

E agora Catai. Plínio diz que os Montes Catai são altas montanhas da Sarmenha. Isso é uma noção vaga: Sarmácia éa grande planície do Norte da Europa e da Sibéria. Lá existe a montanha “Altai”, mas os romanos tinham poucos conheci-mentos daquelas regiões. Os navegadores árabes da Idade Média, que andaram no país Catai, não atingiram essasregiões continentais do Norte.

O autor deste tratado viajou no Alto Solimões e nos rios do Acre, no ano de 1910, quando não estudava ainda aantiguidade do Brasil. Ali ele foi informado que as tribos indígenas chamam aquela parte do Brasil de “Catai”. O grandemapa do Acre, organizado por ordem do Governo Federal no tempo das negociações com a Bolívia e Peru, contémdiversos lugares com o nome Catai, conforme as denominações dadas pelos moradores daquela região.

A palavra tubi cata-i significa “o grande mato do rio”. Esse rio, respectivamente todos os rios que formam a bacia doAlto Amazonas, vem dos Andes. Por isso, pode-se explicar Catai como o grande país do mato que se estende até as altas“montanhas”. A nossa hipótese é que Sipanga, o país dos sete povos, era o nome dado ao Nordeste do Brasil, até o Pará,enquanto Catai era a denominação do interior da Amazônia, até os Andes.

Toscanelli acrescentou à sua carta, escrita em 1475 ao rei D. Afonso V, um mapa, no qual ele desenhou a posição dasilhas, Antilhas e Sipanga, quase no meio entre a África e a Índia Oriental, com distâncias quase exatas, a respeito dasdimensões do Atlântico, mas não conhecia ainda a existência do continente americano. Ele pensava que se pudessenavegar desde o mar Mediterrâneo até o continente da Ásia, numa linha reta, que passava entre as Antilhas e Sipanga,opinando que as ilhas Antilhas fossem uma grande ilha apenas.

Depois disse: “O que vós chamais a Ilha das Sete Cidades é a grande ilha Antilha, que se estende para o Sul, quase atéa ilha Sipanga. A distância entre essas duas ilhas é de 2500 espaços, que são iguais a 225 léguas. A ilha Sipanga é a maior ilhaque nós conhecemos e é riquíssima em metais e pedras preciosas, assim como em todas as outras riquezas da natureza”.

Toscanelli escreveu essa carta na idade de 73 anos. Era um dos mais instruídos geógrafos do seu tempo. Tinha feitomuitas viagens para o Oriente, onde recebeu da parte dos árabes as informações sobre as distâncias marítimas. Eleconvenceu-se de que a asserção de Marco Pólo a respeito da identidade de Japão e Sipanga fosse errada e calculou bemque Sipanga estivesse situada no lugar onde está o Norte do Brasil. A distância entre a ilha mais meridional das Antilhas eas Goianas é menor de 225 léguas.

O erro de Toscanelli de que as Antilhas fossem uma única ilha é sem importância. Se ele tivesse sabido que as Antilhassão um grande grupo de ilhas não poderia identificá-las com a ilha das Sete Cidades. Em todo caso, a Junta dos Matemá-ticos de Lisboa tirou da carta do geógrafo florentino a confirmação de que Sipanga seja um continente, como indicou omapa de Fernando Telles. A costa, com embocaduras de grandes rios, não podia ser a duma ilha.

A lista dos fatos acima enumerados forma a grande moldura histórica, dentro da qual desenvolveu-se a antiguidade doBrasil. Examinaremos agora os acontecimentos que se desenrolaram no próprio solo brasileiro.

ARTIGOS VARIADOS

A Documentação Inquisitorial como fonte para a Genealogia

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IntroduçãoO Tribunal do Santo Ofício da Inquisição foi instalado na Espanha em 1478 e em Portugal em 1536.Diversamente da Inquisição Medieval, não era mais uma instituição idealizada e dominada pelo Papa, mas pelos reis

espanhol e português. As principais razões para seu estabelecimento podem ser encontradas no século XIV. Desde 1391milhares de judeus, membros de comunidades estabelecidas na Espanha desde o século I – foram obrigados a se conver-ter ao cristianismo ou seriam mortos – e muitos o foram, nos chamados “massacres de Sevilha”. Havia então na Espanhatrês diferentes grupos de religiosos: os cristãos, os judeus e os conversos, e estabeleceu-se na Península Ibérica umatradição herética. Alguns, depois de convertidos, se tornaram bons cristãos. Mas também havia aqueles que, convertidospor medo, continuaram a praticar a religião de seus antepassados em segredo. Em 1449 em Toledo, foram promulgadosos Estatutos de Pureza de Sangue, que proibia os conversos de participar das corporações de ofícios, da Igreja, dasOrdens Militares, impedia o acesso a cargos burocráticos e oficiais, e dificultava a entrada nas universidades. Ou seja,enquanto judeus, eram submetidos a uma legislação específica e restritiva. Como cristãos, deixavam de estar sujeitos aela e podiam concorrer em condições de igualdade com os cristãos-velhos. Os Estatutos de Pureza de Sangue eram umalegislação de origem econômica, porém também racista, estabelecendo que os conversos (chamados cristãos-novos emPortugal) não eram iguais aos cristãos-velhos uma vez que o judaísmo era transmitido pelo sangue.

Essa política racista quanto aos conversos, acusava todos de serem falsos cristãos. Refletia o conflito entre aburguesia cristã-velha e a burguesia cristã-nova, uma competição por mercado de trabalho, por mercados de comércio.Como judeus, estavam sujeitos à sua própria legislação, que nesse período era cada vez mais restritiva. Como conversos,eram cristãos, não estando mais sujeitos à legislação restritiva dos judeus; estavam em igualdade com os cristãos, epodiam então concorrer com eles em todos os campos. Daí a necessidade de uma legislação que limitasse a açãodesses conversos. A política anti judaica atingiu seu ápice em 1492, quando os reis católicos da Espanha deram aosjudeus a alternativa de conversão ao cristianismo ou a expulsão do reino. O édito de expulsão foi emitido em 31 demarço e tiveram prazo até o final de agosto para sair. Foram proibidos de levar quaisquer metais preciosos. O grandeproblema era para onde ir: haviam sido expulsos da França, Inglaterra e grande parte das cidades alemães. Muitascidades italianas não aceitaram receber os refugiados. Restava o norte de África, o Levante e Portugal. Muitos judeuspreferiram a conversão, apesar do perigo que corriam sendo conversos, uma vez que o Tribunal do Santo Ofício daInquisição, cuja função era verificar sua religião, já estava em plena atividade, tendo preso e penitenciado milhares depessoas. A grande maioria dos judeus que deixaram a Espanha, cerca de 120 ou 100 000 judeus (segundo o cronistajudeu Abraão Zacuto), foram para Portugal e mediante o pagamento de uma taxa por pessoa poderiam ficar duranteoito meses. Findo esse prazo, o rei D.João II se comprometia a conseguir navios para sua partida. Muitos não consegui-ram embarcar, e os que não pagaram por sua liberdade foram escravizados. Em conjunto com os judeus portugueses,formaram cerca de 10% da população portuguesa. Após a morte de D.João II subiu ao trono português D.Manuel –porrazões do coração e de estado, quis se casar com a filha dos reis católicos de Espanha – e uma das condiçõesimpostas pelos espanhóis era que em Portugal não existissem mais judeus. D.Manuel promulgou um édito de expulsão– mas temendo perder repentinamente uma porção substancial de sua classe média e nascente burguesia, e sem teruma população significativa de conversos (como acontecera na Espanha) que continuaria suas atividades, mudou suapolítica. Nessa época, os judeus representavam uma importante parcela da mão-de-obra portuguesa, como os ferrei-ros, essenciais na produção de armamentos para a guerra no norte da África, e mesmo para armar aqueles que parti-cipavam das grandes navegações. O rei imaginava que muitos judeus aceitariam a conversão voluntariamente, mas omedo de uma crise econômica foi maior. Em 1497, houve a conversão forçada de todos os judeus de Portugal, porordem do rei D.Manuel, sem a opção de sair do Reino. Em Portugal, a tradição herética foi mais acentuada, uma vezque formaram um enorme contingente dos chamados “batizados em pé” – ou seja, judeus adultos que foram batizadosà força, que abandonaram seus nomes judeus e foram obrigados a adotar nomes cristãos, em geral nomes dos cris-tãos-velhos que os haviam batizado, nomes de conhecidos ou mesmo nome de famílias nobres.

Após a morte de D.Manuel, em 1521, subiu ao trono D.João III, e foi com esse rei que começou a perseguiçãometódica aos cristãos-novos portugueses, com a instalação do Tribunal da Inquisição em 1536. Os Estatutos de Pureza deSangue foram adotados em todo o império português, e passaram a orientar a política portuguesa com relação aos antigosjudeus e seus descendentes. O Tribunal instalado na Península Ibérica foi político, em que o rei, além de nomear osinquisidores e assim, ser o detentor do poder, também recebia metade dos bens confiscados pelo tribunal. Era um tribunaleclesiástico, composto por membros do clero: mas subordinados ao poder civil, ao poder da Coroa. O poder pertencia aorei, e durante os séculos em que o tribunal existiu, houve vários períodos de disputas entre a Coroa e o Papado. O objetivodeclarado do Tribunal da Inquisição era o de acabar com as heresias no Império Português, em especial com a heresia

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judaizante. Logo após a publicação da bula que instalava a Inquisição,o primeiro inquisidor-mor Diogo da Silva, bispo deLamego, publicou em 1536 o primeiro edito da fé – no qual se enumeravam todos os crimes contra a fé cristã..Citava comoindícios de heresia e suspeita de judaísmo a circuncisão, observação do sábado, celebração das festas judaicas, rituais dareligião judaica, regras alimentares, etc. Concedeu também trinta dias de graça nos quais os judeus secretos poderiam seconfessar, com a garantia de perdão. Logo Diogo da Silva, considerado tolerante demais com os conversos, foi substituídopelo cardeal-infante D.Henrique, irmão mais novo do rei, que foi nomeado inquisidor-mor em 22 de junho de 1539. Come-çou a proceder com toda a severidade contra os cristãos-novos e em 1540 realizou-se o primeiro auto de fé em Lisboa. Otribunal da Inquisição – ou o auto–denominado – o Tribunal do “Santo” Ofício da Inquisição de Portugal foi na realidade umtribunal político que serviu os interesses da Coroa em primeiro lugar, do próprio tribunal em segundo e somente depoisservia aos interesses da religião.O estabelecimento da Inquisição em Portugal e na Espanha está ligado às ambições decentralização de poder. Tendo um tribunal que funcionasse sob seu controle, os reis teriam uma arma a mais para fazerdobrarem-se posições a seu favor. Apesar de todo o aparato religioso e da auréola divina com que o tribunal se revestiu,apesar das funções “santas” que alegou, foi uma instituição vinculada ao Estado em que era o poder civil que executava assentenças de morte que a inquisição sentenciava. Respondeu aos interesses das facções de poder: coroa, nobreza eclero. Se focalizarmos os três séculos em que o tribunal da inquisição funcionou, podemos dizer que as facções do poder(coroa, nobreza e clero), apesar da rivalidade entre si - tinham interesses na continuidade da instituição e a utilizaram pragarantir a persistência da estrutura tradicional do regime, sem o qual suas posições e seus privilégios estariam ameaça-dos. Coroa e nobreza apoiaram-se na instituição, que durante séculos foi o sustentáculo e garantia da continuidade dosistema. As restrições impostas pelos Estatutos de Pureza de Sangue, que impediam os cristãos-novos de participarem daigreja, de cargos oficiais, da universidade, eram aplicadas conforme as conveniências políticas e econômicas do momen-to. O Tribunal do Santo Ofício da Inquisição de Portugal Foram estabelecidos tribunais em seis localidades:

Lisboa, Coimbra, Évora, Porto, Lamego e Tomar. Porém esses três últimos tribunais tiveram curta duração. Os trêsprimeiros, Lisboa, Coimbra e Évora funcionaram durante quase três séculos. Fora do Reino foi estabelecido somente umtribunal, em Goa em 1560 (apesar de já funcionar desde 1543) – o primeiro auto de fé foi em 1563 e até o final do séculoXVII foram julgadas ali mais de 3000 pessoas, em 37 autos de fé. Os réus brasileiros pertenciam à alçada do Tribunal deLisboa. O Tribunal tinha um Regimento próprio – vigoraram quatro regimentos no tribunal: o de 1552, 1613, 1640 e oregimento pombalino de 1774. Em geral nos referimos ao regimento de 1640, que tem codificada toda a legislação inquisitorialà maneira das Ordenações do Reino. Era uma legislação ligada à legislação civil .O “santo” tribunal não matava – mascondenava à morte, sentença que era executada pelo poder civil: daí a expressão “relaxado ao braço secular”. Os inquisidoresseguiam os procedimentos indicados no Manual dos Inquisidores de Eymerich, escrito na Idade Média A Inquisição portu-guesa, nascida de uma combinação do poder pontifício com o poder régio, tornou-se praticamente um terceiro poder, quenomeava seus funcionários, tinha seus réus, seus súditos e vivia de sua receita particular – os confiscos.

Os familiares (funcionários leigos do Tribunal) e comissários do Santo Ofício, juntamente com a população em geral,foram integrantes ativos daquilo que se tornou o motor propulsor do Santo Ofício: as denúncias. O Tribunal dependia dasdenúncias para obter réus – e na sociedade portuguesa formou-se uma teia de delação. Qualquer denúncia era recebidapela Inquisição, independente da idoneidade dos denunciantes: Podiam ser denúncias anônimas, secretas, sem qualquercomprovação, vindas de todos os tipos de pessoas. No decorrer do processo, essas denúncias seriam ou não comprova-das: mas a priori, o denunciado era considerado culpado: se houvera a denúncia, possivelmente era culpado. No processoinquisitorial – que era secreto e corria sempre em segredo – não era possível a acareação das testemunhas. O réu nuncaera informado sobre quem o denunciara nem do que fora acusado. Mas em contrapartida, tinha que denunciar a todos queo haviam denunciado – ou seja, tinha que adivinhar quem o denunciara e o que dissera. A fase de instrução, em que o réuera submetido a interrogatórios que pretendiam levá-lo a confessar as culpas de que estava denunciado. A fase de julga-mento, onde era apresentado o libelo da acusação, com base nas denúncias e nos depoimentos do réu, seguindo-se adefesa deste, que se baseava principalmente nas contraditas, isto é, na prova de que eram suspeitas as testemunhas deacusação. As duas fases do processo eram secretas – a sentença final era votada por maioria na mesa da Inquisição. Agrande maioria (mais de 80%) dos réus da Inquisição foram cristãos-novos.

Geralmente, seus processos inquisitoriais apresentavam-se da seguinte maneira: 1) As denúncias: testemunhosdo alegado crime do acusado, geralmente anexados ao processo. Era então emitida 2) A Ordem de Prisão, e na mesmajá vinha a ordem de seqüestro de todos os bens do acusado. No momento da prisão, todos os bens eram seqüestrados,isto é, um Juiz dos Confiscos retirava tudo do réu, inclusive a casa e os bens perecíveis, como alimentos e vinhos, queeram leiloados no ato, deixando a família imediatamente na miséria 3) Planta do Cárcere, mostrando em que cela oprisioneiro ficaria detido.

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Seguiam-se as primeiras sessões de interrogatórios 4) Inventário – onde o réu dizia quais os bens, móveis e imóveisque possuía, além de dívidas a pagar e créditos a receber. 5) Genealogia: o réu relacionava os membros de sua família. Aliestavam os elementos que permitiam que o cristão-novo fosse processado como herege judaizante, apóstata da fé cató-lica. Dizia se era batizado e crismado – estando assim, sob a autoridade eclesiástica. Era ali também que, através doexame da qualidade de sangue de seus antepassados, que ficava provado serem portadores de sangue cristão-novo,chegava-se a que por via o réu possuía sangue “infecto”. Um fator importante: o sangue judeu não se “limpava” nunca, nãoera limpo através do casamento, por exemplo: ao contrário, o casamento de um cristão-novo com um cristão-velho, “suja-va” o sangue cristão-velho. Para o Tribunal do Santo Ofício, o casamento com cristãos-velhos não “limpava” o sangue“infecto” dos cristãos-novos, ao contrário, manchava a família cristã-velha, cujos filhos e netos seriam “parte de cristão-novo”, parte que variava segundo a quantidade de sangue judeu: um neto de judeu seria “um quarto cristão-novo”, um filhode judeu “meio cristão-novo” 6) In Genere, onde o réu era interrogado sobre as práticas e cerimônias judaicas que eraacusado de observar. Eram feitas aos réus as seguintes perguntas: se em algum tempo se apartou da Santa Fé Católicae se passou para a crença na Lei de Moisés para nela se salvar, não crendo no mistério da Santíssima Trindade nem emCristo Senhor Nosso se rezava as orações judaicas ou o Padre Nosso sem dizer Jesus no fim, ou os Salmos de Davi semdizer Gloria Patri no fim se guardava os sábados de trabalho como se fossem dias santos se seguia as Páscoas dos judeuse demais festas e cerimônias se fazia algum jejum judaico, como o do Dia Grande de Setembro, o da rainha Éster, estandoneles sem comer nem beber senão a noite, só ceando coisas que não fossem de carne se quando morria alguma pessoaem sua casa ou vizinhança, lançava fora a água dos cântaros e os colocava com a boca para baixo se varria a casa àsavessas se mandava amortalhar o corpo com mortalha nova e enterrava em terra virgem e cova funda se quando abenço-ava pessoa de sua relação, o fazia pondo a mão aberta sobre a cabeça se comia carne de porco, lebre, coelho ou peixe depele 7) In Specie. Nessa sessão, o inquisidor procurava fazer com que o réu especificasse quando, onde , com quem equais as práticas e cerimônias observadas ‘se em certo dia, certo lugar, com certas pessoas, fez tal cerimônia.....” 8)Inquirições, que os inquisidores mandavam realizar no local de moradia do réu, onde eram formuladas perguntas a cris-tãos-velhos que o conheceram sobre contraditas levantadas pelo réu, ou sobre sua conduta e religiosidade 9) Inquiriçõesde Genere, nos locais de onde provinha a família, para verificar a qualidade de sangue dos antepassados. Seguiam-sevárias sessões de libelo, interrogatórios, provas de culpa, estâncias com o procurador, contraditas, reperguntas as teste-munhas. Essas sessões, às vezes, demoravam anos. 10) e havia a peça essencial do processo: a confissão. Ali o réuadmitia sua culpa – que desde tal época, através do ensino de alguém, deixara a Lei de Cristo para crer na Lei de Moiséscom a intenção de nela salvar sua alma e fizera tais práticas e cerimônias. A confissão era essencial – se não confessasseter tido crença na Lei de Moisés em algum momento, era considerado culpado e condenado à morte como negativo. Aconfissão era necessária para salvar sua vida. E também era necessária a delação: delatar a todos os que conhecia,começando pela própria família, inclusive quem já havia falecido. Todo o réu, para salvar-se, tinha que acusar as pessoasde sua intimidade: pais, filhos, irmãos, parentes, amigos, vizinhos. Os inquisidores guiavam-se por uma lista de nomesextraídos de denúncias anteriores, que o réu ignorava, mas aos quais devia referir-se um por um e as fizera com taispessoas – tinha que denunciar a todos que o tinham denunciado, sob pena se ser diminuto. 11) ambos os casos, fosse umréu negativo ou diminuto, levariam à sessão de tormento. As torturas mais comuns nos processos de cristãos-novos eramo potro e a polé. 12) antes de ser promulgada a sentença era feita a sessão Crença, em que o réu devia confessar suacrença. Todos os cristãos-novos confessavam que criam na Lei de Moisés para salvação de sua alma, e confessavam queem certo dia, certo lugar, com determinadas pessoas haviam feitos determinadas cerimônias. Caso os inquisidores consi-derassem satisfatórias as confissões do réu – “satisfazendo a prova de justiça” era então emitida a sentença. 13) assentenças mais comuns, no caso de cristão-novos, foram as condenações a cárcere e hábito penitencial perpétuo. Cárce-re significava que o réu teria que ficar confinado em um lugar determinado pelos inquisidores – geralmente alguma aldeiadistante e teria que usar o hábito penitencial – o sambenito – durante o resto da vida (sambenito era uma espécie de capacom a cruz amarela de Santo André). 14) caso o réu não satisfizesse a prova de justiça, era relaxado ao braço secular – ouseja, era entregue ao poder civil para ser queimado em praça pública.

Na hora da morte, se declarasse desejar morrer na Lei de Cristo, era garroteado antes de ser queimado. Caso contrá-rio, seria queimado em carne, queimado vivo. Mas os Inquisidores sempre pediam “que se aja benignamente com eles, esem profusão de sangue”. 15) promulgada a sentença, os réus a ouviriam no auto de fé – grande espetáculo público. Eantes de ir ao auto de fé, todos os réus tinham que assinar um termo de segredo, em que se comprometiam a não contarnada do que acontecera durante o período em que estiveram presos. Também tinham que assinar um formulário deabjuração em forma Somente após essas formalidades era encaminhado ao auto de fé – cerimônias públicas, espetáculosde massa, realizados em geral aos domingos ou dias santos, acompanhados de sermão e procissão, onde eram lidas as

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sentenças dos réus, na presença do rei e autoridades. A Igreja recebia de volta o reconciliado, mas este ficava para sempremarcado com o estigma de herege. O objetivo declarado do Tribunal do Santo Ofício da Inquisição era coibir as heresiasno Império Português – mais especificamente, a heresia judaizante – embora também os muçulmanos tivessem sidoincluídos no rol dos hereges. Após o Concílio de Trento, também passaram para a alçada do Tribunal os chamados “crimesde costumes”, ou seja, passaram a ser processados pela Inquisição as pessoas acusadas de sodomia, bigamia, proposi-ções heréticas, feitiçaria, gentilidades (geralmente um sincretismo do catolicismo com a religião dos índios), solicitação ea heresia “protestante”. Entretanto, os acusados desses crimes foram em número muito menor do que os cristãos-novos –a proporção chega, no caso do Brasil e provavelmente também em Portugal a cerca de 80% de cristãos-novos acusadosde judaísmo para 20% de réus acusados por outros crimes – desses, a maioria incorria no crime de bigamia, seguido pelasodomia. O motivo alegado da perseguição aos cristãos-novos era religioso: perseguir hereges, acabar com a heresia.Entretanto, esse não era o único motivo da perseguição aos cristãos-novos. Essa perseguição foi conduzida por razões deestado, políticas e econômicas, além de religiosas, que variaram durante os três séculos de duração do tribunal. Apesar detodo aparato religioso, e da auréola “divina” com que o Tribunal da Inquisição se revestiu, apesar das funções “santas” quealegou, foi uma instituição vinculada ao Estado. O caráter econômico acentuado da perseguição aos cristãos-novos podeser constatado através de vários indícios. Por exemplo, quando era emitida a ordem de prisão de um cristão-novo, nopróprio documento havia a ordem de seqüestro de todos os bens do acusado. Ou seja, antes mesmo do processo e dequalquer julgamento, os bens eram seqüestrados, deixando a família do acusado na mais profunda miséria. Os bens deum cristão-novo eram seqüestrados no ato da prisão. E esses bens eram indispensáveis para a manutenção do própriotribunal. Os inquisidores argumentavam que, caso fosse inocente, os bens seriam devolvidos – mas raramente um réucristão-novo era inocentado. E mais, esse seqüestro imediato dos bens dos cristãos novos representava também um pré-julgamento, e um julgamento racista: o réu tinha sangue judeu – portanto era culpado – portanto, os bens podiam serconfiscados antes de qualquer julgamento. Um outro indício desse caráter econômico da perseguição pode ser claramentevisto quando estudamos a ação da Inquisição no Brasil: nos séculos XVI e XVII, a atenção foi dirigida para o Nordeste dacolônia – especialmente Bahia e Pernambuco, onde se concentrava a produção do principal produto de exportação doperíodo – o açúcar. No século XVIII, após a descoberta das riquezas das gerais, é que as capitanias do sul foram alvo dointeresse inquisitorial. No Rio de Janeiro, mais de trezentas pessoas foram presas em menos de trinta anos. No início doséculo XVIII, eram cristãos há mais de dois séculos, portanto não eram mais exatamente “novos”.Os cristãos-novos eramperseguidos não porque fossem hereges, mas porque tinham ancestrais judeus. Desde a conversão forçada, a religiãojudaica estava proibida. As sinagogas foram fechadas, muitas transformadas em igrejas, os livros e a língua hebraicaforam proibidos. Mas os inquisidores consideravam que o judaísmo havia chegado até eles pelo sangue, e não peloensino, pela sinagoga, pelas tradições transmitidas nas famílias. A perseguição aos cristãos-novos tinha, antes de tudo,um caráter de discriminação racista: eram perseguidos, presos e penitenciados devido à sua ascendência judaica. Seeram ou não hereges, criptojudeus, se praticavam o judaísmo em segredo, na verdade pouco interessava ao Tribunal,como é possível ver pelo próprio desenvolvimento do processo inquisitorial, em que o réu tinha sempre que se confessarculpado, para salvar sua vida.

Genealogia A genealogia é parte fundamental de um setor da história social, a história da família, importantemeio de resgatar a memória tanto familiar como social. Até a pouco, os processos inquisitoriais eram usados comofonte para a história social de um modo geral; mas revelaram-se úteis para o conhecimento das famílias no passado.A história da família apresentou um grande desenvolvimento especialmente nas décadas de 1970/80, destacando-se entre seus adeptos o grupo de Cambridge com Peter Laslett e Michel Anderson, americanos como Michel Gordone Elizabeth Kuznesof com seus estudos sobre o Brasil, franceses ligados à Nouvelle Histoire, liderados por PhilippeÁries, com seus estudos sobre a criança e a família, considerado por Tâmara Hareven como o iniciador dos estudoscontemporâneos sobre a família. No Brasil também houve desenvolvimento significativo dos estudos sobre a famí-lia, com autores como Eni de Mesquita Samara e Maria Beatriz Nizza da Silva, entre outros. A história da família é umcampo propício a interdisciplinaridade; tanto a psicologia, como a antropologia, sociologia e demografia tem umacarga grande de influência nos estudos dessa área.

Uma das questões mais instigantes que se colocam para o historiador da família é a adaptação da teoria e do métodode outras disciplinas. Daí a diversidade de abordagens e até mesmo de escolas existentes na história da família. Só paracitar um dos problemas da história social, temos as fontes. Há uma enorme quantidade de fontes para a história social,como testemunhos contemporâneos, romances, relatos de viajantes, coletâneas de lembranças, memórias, correspon-dências, artigos de imprensa, jornais, periódicos, manifestações de sociabilidade e sentimentos coletivos, como festaspopulares e vida religiosa, relatórios administrativos, arquivos de empresas; há também a iconografia, canções e lendas.

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As informações das administrações públicas, de certos organismos privados, ou de publicações privadas, tais comodados estatísticos, relatórios de administrações públicas, câmaras de comércio e outros. Os arquivos eclesiásticos e aspesquisas elaboradas a pedido dos bispos são também muito úteis, assim como os textos jurídicos, a legislação e ajurisprudência, alem dos documentos que testemunham sobre a condição de indivíduos e famílias, como os levantamen-tos nominativos, atas do estado civil, arquivos notariais, processos pessoais e biografias. Para a história da família, tradi-cionalmente tem sido usados dois tipos principais de fontes: as civis e as eclesiásticas. Dentre as civis, há os maços depopulação e recenseamentos, as listas avulsas de população, cartas de alforria, listas de qualificação de votantes e listasde categorias sociais, listas de forasteiros, livros de passaportes, relação de estrangeiros, registro de embarque de navios,testamentos, inventários, partilhas post-mortem, processos civis de divórcio, arquivos de famílias, contratos de casamen-tos, dotes, etc. As fontes religiosas incluem os registros paroquiais, os mapas gerais, rol dos confessados, rol da desobriga,status anima, rol das diversas freguesias, dispensas matrimoniais, livros de ordenações e votos, a documentação dasirmandades, recolhimentos, confrarias e seminários, processos de genere et moribus e processos eclesiásticos. Um tipode documentação religiosa imprescindível para a história social, e principalmente para a história da família, são os livros dedevassas e visitações e os processos inquisitoriais. Um exemplo de como essa fonte pode ser extremamente bem utilizadaé a obra de Emmanuel Le Roy Ladurie, que em Montaillou analisou a vida, a morte, o trabalho, o sexo, a religião, as teiasfamiliares e os costumes em uma aldeia dos Pirineus no final do século XIII, tendo utilizado como fonte a documentaçãoinquisitorial deixada pelo Tribunal de Carcassona, que se encontra no Arquivo do Vaticano. Para a história social do Brasil,já existem alguns trabalhos importantes que utilizaram as fontes inquisitoriais. A Inquisição enquanto instituição e a açãodas Visitações ao Nordeste são tema de trabalho pioneiro de Sonia Aparecida Siqueira, que editou, em conjunto comEduardo d´Oliveira França também a documentação relativa à Visitação de 1618. Salvador José Gonçalves tambémutilizou a Inquisição como base para seus trabalhos. Anita Novinsky tem livro fundamental para a compreensão da questãodo cristão-novo, tema que retomou em inúmeros artigos e trabalhos, inaugurando os novos estudos sobre Inquisição ecristãos-novos no Brasil e dirigindo um grupo de pesquisadores que trabalha com os cristãos-novos nas várias regiões doBrasil. Os processos inquisitoriais são material riquíssimo em informações. Através de sua análise é possível extrair dadossobre inúmeros aspectos da vida colonial, como o nível de riqueza dos acusados, atividades econômicas, comércio,profissões liberais, dados sobre a posse de escravos, a convivência com os escravos domésticos; relacionamentos fami-liares entre maridos e esposas, pais e filhos; relacionamentos dentro da comunidade, com outros cristãos-novos e com oscristãos-velhos; participação na vida religiosa católica, as festas, irmandades e ordens religiosas; aspectos variados davida cotidiana, os objetos que tinham em suas casas, vestuário; e, evidentemente, informações sobre o crime de que eramacusados, fosse heresia judaizante ou crime de costumes. São fonte privilegiada para o estudo das mulheres, por ser dospoucos documentos do período colonial onde a fala das mulheres foi registrada. É possível encontrar nesses processos asatividades econômicas, os parentes, amigos, vizinhos, inimigos, conflitos familiares, enfim, informações que permitem umaanálise do papel da mulher no passado colonial brasileiro. Vários níveis de informações são passíveis de serem pesquisadosnesse corpo documental; além da ação do Santo Ofício e das questões relativas à condução do processo, da prisão até asentença, é fonte imprescindível para o estudo de vários aspectos da história colonial.

Esses processos devem ser lidos com muito cuidado. Sendo uma fonte oficial, manuscrita, necessita um profundoexame, uma vez que ao serem elaborados, esses documentos sofriam a manipulação dos inquisidores, que muitas vezesconfundiam o acusado, levando-o a dizer, às vezes, coisas que não haviam acontecido; levavam até o réu a acreditarnaquilo que dizia. É importante lembrar que além de mostrar o discurso “possível dos réus”. Mostra também, especialmen-te na sessão “confissão”, o discurso necessário: confessar as culpas - verdadeiras ou não - e delatar todos aqueles que ohaviam delatado - para salvar sua vida. O discurso do réu e as declarações de testemunhas aparecem no processointermediados por um notário, que transcrevia suas declarações; geralmente, eram utilizadas formas esquematizadas,feitas sempre as mesmas perguntas aos réus; para as testemunhas, também os interrogatórios eram similares; na sessão“contraditas” e nas “inquirições” havia maior fluidez, uma vez que ali eram relatadas histórias, deixando transparecersentimentos e envolvimentos. Através das genealogias e de outras informações presentes nos processos inquisitoriais,pode-se reconstituir a história das famílias no passado colonial. Usando como exemplo uma família do Rio de Janeiro, quedesde o início do século XVII teve membros presos pelo Santo Ofício, é possível verificar como seus processos inquisitoriais(que estão arquivados no Arquivo Nacional da Torre do Tombo em Lisboa) são fundamentais para a elaboração de suasgenealogias e de sua história familiar. O primeiro membro da família preso no Rio de Janeiro, no século XVII, foi IzabelMendes, a única cristã-nova presa pela Terceira Visitação às Partes do Brasil, liderada pelo Visitador D.Luis Pires da Veiga.Presa em 1727 e enviada para Lisboa, ficou presa durante sete anos, até ser condenada pelo Santo Ofício como judaizante.Ao chegar em Portugal, foi considerada louca pelos inquisidores e enviada para um hospício.

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Passados três anos, foi enviada novamente aos cárceres da Inquisição, apta para ser julgada. Assim, a sessão“Genealogia” neste caso foi realizada somente 7 de outubro de 1633, quando já estava presa nos Estaus ( os cárceres daInquisição) há dois anos. Genealogia Aos sete dias do mês de outubro de mil e seiscentos e trinta e três anos em Lisboa,nos Estaus e casa do despacho da Santa Inquisição, estando ai em audiência da tarde o Inquisidor Diogo Osório de Castromandou vir perante si a Izabel Mendes, ré presa conteúda neste processo, e sendo presente para responder em verdadea tudo o que lhe fosse perguntado lhe foi dado juramento dos Santos Evangelhos em que pôs sua mão sob cargo do qualprometeu de assim o fazer. Perguntada se cuidou em suas culpas como nesta mesa lhe foi mandado. E as quer acabar deconfessar para descarga de sua consciência e salvação de sua alma e ser bom despacho.

Disse que não tinhas culpas que confessar pelo que lhe foram feitas as perguntas seguintes de sua genealogia.Perguntada como é o nome e de que idade e nação era filha, de onde era natural e moradora.

Disse que ela se chama Isabel Mendes de Cea, meia cristã-nova, de quarenta e quatro anos de idade, natural de Vianae moradora vinte e três até o tempo de sua prisão no Rio de Janeiro. E tornou a dizer que era cristã-velha de todos osquatro costados e que nessa conta teve sempre seus pais. E é filha de Gregório Mendes de Cea, contratador que foi daAlfândega de Aveiro, natural da dita vila, e sua mãe chamavam Isabel Gómez, natural da dita vila de Caminha. Já seu avôpaterno chamavam Gaspar de Cea, provedor que foi da Misericórdia de Viana, e sua avó Isabel Mendes, natural da vila deCaminha. E que seu avô materno chamavam Gabriel Ribeiro da Costa, natural desta cidade de Lisboa, e sua avó CaterinaRodrigues, não sabe, digo, que lhe parece que foi natural de Caminha. E que ela não conhecera tio nenhum da parte deseu pai, mas que lhe disseram que tivera cinco, e um deles Francisco de Cea e dos mais não sabe os nomes, todosmorreram solteiros. E uma tia por nome Gracia (…) que foi casada em Caminha com Gonçalo Rodrigues, sirgueiro e teveum filho e uma filha, esta Filipa Mendes e aquele Gregório Mendes, os quais conheceu desde menino. E teve da parte desua mãe dois tios que eram meio irmãos de sua mãe e um por nome(…),que faleceu solteiro,e outro Tomaz Rodrigues, foicasado nesta cidade e não teve filho nem filha. E que teve muitos irmãos e só conheceu cinco irmãs, duas inteiras e trêsmeias irmãs e um meio irmão que se chama Gabriel Ribeiro da Costa, solteiro. E uma das irmãs inteiras se chamamMessia Barboza, casada com Paulo Rodrigues, cristão-velho, no Rio de Janeiro e tem filhos pequenos Gregório, Manoel eIsabel. E outra irmã inteira se chama Beatriz da Costa, casada com Duarte Ramires de Leão não sabe se cristão novo secristão-velho, moradores no mesmo Rio de Janeiro, e tinham seis filhos Branca, de dez anos é mais velha, Gregório,Antonio, José, Leonor e Isabel.

E das três meias irmãs uma se chama Marinha de Monserrate, Catarina Rodrigues e Maria da Costa, todas as trêssolteiras. E que ela declarante é casada com Luis Pires, cristão-velho, mercador, de quem teve dois filhos, um dos quaisque se chamava Gaspar e faleceu de três anos e Isabel de ano e meio, e não foi casada outra vez. E que ela é cristãbatizada e o foi na Igreja de Viana, não sabe por quem nem quem foram seus padrinhos. E é crismada e o foi na mesmaigreja pelo arcebispo Dom Frei Bartolomeu dos Mártires. E que ela tanto que teve(…) idade consciente ia a Igreja, ouviamissa e pregação, confessava-se e comungava quando manda a Santa Madre Igreja e fazia as mais obras de cristã. Logoposta de joelhos disse(…)se persignou e benzeu. Disse o Padre Nosso e Ave Maria e creio em Deus Padre, mandamentosda Lei de Deus e os da Santa Madre Igreja. E Salve Rainha. E que ela nunca foi presa pelo Santo Ofício senão agora, e oforam Gabriel Ribeiro e Tomas Rodrigues que saíram soltos e livres havia vinte e dois anos pouco mais, e que ela não foifora deste Reino mais que ao Rio de Janeiro. Perguntada se sabe ou suspeita porque está presa. Disse que não sabia, quenão sabia, salvo se fosse por haver ensinado a uma mulher a quem seu marido dava má vida que quando ele pelejassecom ela tomasse uma bochecha de água a não lançasse fora e se seu marido se não aquietar para que a dita mulher senão descompusesse com o dito seu marido, o que alguns cuidaram que eram feitiços. Foi-lhe dito que ela está presa porculpas que cometeu contra Nossa Santa Fé Católica e lhe fazem saber que no Santo Ofício se não prende alguém sembastante informação. E que esta houve para ela o haver ser, portanto a admoestam com muita caridade da parte de CristoNosso Senhor confesse inteiramente suas culpas dizendo em tudo a verdade delas para assim merecer a misericórdia quenesta mesa se costuma conceder aos bons e verdadeiros confidentes, e salvar a sua alma. E por dizer que ela não tinhaque dizer nesta mesa mais que o que tem dito nesta mesa, foi admoestada em forma e mandada a seu cárcere, e assinoucom o dito Inquisidor. João Carreira, notário o escrevi. E sendo-lhe lida esta sessão que estava escrita na verdade, osobredito o escrevi. Diogo Osório de Castro Izabel Mendes Esse documento, além de informações essenciais sobre apossibilidade de o réu estar sob a autoridade da igreja, por ser batizado, investigava a qualidade de sangue do preso. Edeixa para o historiador pistas importantes sobre os antepassados deste, além de informações sobre a dinâmica familiar.Por exemplo, sabe-se que o pai – ou a mãe – de Izabel já haviam sido casados anteriormente, tendo filhos do primeirocasamento, com um filho e três filhas, meio-irmãos da ré. O mesmo acontecera com seu avós maternos. Através dessagenealogia, vemos que as três irmãs tinham filhos. Mas é através da nova investida inquisitorial no Rio de Janeiro, no início

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do século seguinte, que se conhece a descendência da família. Os filhos de Izabel e da irmã Messia, desapareceram dosregistros históricos. Não se sabe se morreram, se saíram do Rio de Janeiro ou se simplesmente conseguiram escondersua origem cristã-nova e assim escaparam do Santo Ofício – embora essa hipótese seja menos provável, uma vez que osdescendentes da terceira irmã, Beatriz que formaram a família Vale, foram presos. O sobrenome Vale surgiu em meadosdo século com o casamento de Izabel Gomes da Costa, de sua terceira geração, com um reinól cristão-novo chamadoManoel do Vale da Silveira. Nos processos inquisitoriais, as informações não se encontram somente na sessão Genealogia.Nas denúncias e confissões também encontramos inúmeros dados sobre as famílias de cristãos-novos. Por exemplo, noprocesso de Izabel Mendes, ela denuncia outros cristãos-novos que fundaram grupos familiares que se tornariam impor-tantes na região, como Manuel de Paredes da Costa, que ao casar-se com Guiomar Rodrigues inauguraram a família desobrenome Paredes, também em inícios do século XVII. Este importante clã contou com advogados e senhores de enge-nho em seus quadros. Foram um elo fundamental na rede familiar de cristãos-novos que se constituiu no Rio de Janeiro doperíodo. Os filhos, filhas, netos e netas estabeleceram laços de união matrimonial com outras famílias cristãs-novas,radicadas na cidade, como por exemplo, os Lucena Montarroyo, Barros, Azevedo Coutinho, Cardoso, Costa ou mesmo osVale. Outro casal denunciado por Izabel Mendes foi Beatriz Cardosa e Baltazar Rodrigues Coutinho, que foram antepassa-dos de Antonio José da Silva, o dramaturgo que teve o cognome “O Judeu” na Lisboa do século XVIII. No caso específicoda família Vale, um outro documento foi de grande auxílio para a montagem das genealogias. Um parente, judeu portuguêsque saiu de Portugal e estabeleceu-se na Holanda, deixou uma genealogia que foi encontrada em Londres.

Ishack Mathatia de Aboab escreveu o manuscrito Livro e Nota de ydades Reduzido por my Ishack Aboab e copiado pormy Mathatia do senhor Ishack Aboab. Ali estão listados dez filhos do casal Beatriz da Costa e Domingos Ramires Leão, eaponta um parente importante: don frey Francisco de Vitória, Bispo de Tucumã e Arcepisbo de México. Izabel Mendeslistou somente seis sobrinhos – provavelmente, os demais nasceram após ela ter sido presa. As declarações dos proces-sos devem sempre ser verificadas – nem sempre os irmãos dão a mesma informação a respeito dos familiares – mesmoos avós, às vezes são desconhecidos para os netos. Para do Rio de Janeiro, pode-se contar ainda com as genealogiaselaboradas por Carlos Rheingantz, baseadas na documentação paroquial.E há outras obras, como por exemplo a deElysio de Oliveira Belquior. Um dos grandes problemas são os homônimos – nomes que se repetem nas várias e nasmesmas gerações.Por exemplo, uma das filhas de Beatriz da Costa chamava-se Izabel Gomes da Costa. Entre muitosfilhos, uma era chamada Izabel Gomes. Duas de suas netas chamavam-se Izabel Gomes da Costa, além de outras netaschamadas Izabel -de Andrade, de Mesquita – mas às vezes também chamadas de Gomes ou Gomes da Costa poralgumas pessoas. Na família Paredes, há inúmeros Manoel de Paredes (Manoel de Paredes da Costa, Manoel de Paredesda Silva) e outros tantos Agostinho de Paredes e Rodrigo Mendes de Paredes, todos parentes. É necessário muito cuidadona leitura dos processos e genealogias, porque é fácil cometer enganos, confundir os personagens. Através do depoimen-to do acusado, é possível recompor o quadro familiar deste. A genealogia permite solucionar um dos mais difíceis proble-mas da história brasileira, ou seja, recuperarmos um perfil mais exato da família colonial. Por exemplo, encontra-se nahistoriografia estudos sobre a idade de casamento das moças na colônia. Na Península Ibérica, a idade do casamentovariou de região para região; por exemplo em Castela, no início do século XVII, a idade média de acesso ao casamentodas mulheres era de cerca de 20 anos, idade essa que aumentaria no final do século.Na região noroeste de Portugal, nosséculos XVI, XVII e XVIII há um modelo de precocidade do casamento feminino, com a associação entre um sistemafamiliar nuclear e a precocidade do casamento feminino; em outras regiões, onde o modelo cultural e a instituiçãosocioeconômica do domicilio pressupõem a co-residência do herdeiro casado e de seus pais, durante um período detempo que poderia ser longo, havia o acesso tardio do casamento feminino. Russel-Wood indicou que a fase casadouradas mulheres da colônia era quando elas recebiam maior atenção; a idade em que era considerada pronta para o casa-mento dependia em parte da posição social e condição econômica dos pais; 14 anos era uma idade geralmente aceitapara um primeiro casamento, e as filhas eram encorajadas a casar cedo; a velhice para uma mulher começava aos 40anos; e era comum que as moças se casassem com homens bem mais velhos. Para as mulheres cristãs-novas do Rio deJaneiro o casamento não ocorria tão cedo; em geral os noivos eram mais velhos. De cinqüenta moças, somente oitocasaram-se com 15 anos ou menos. Mais da metade das cristãs-novas presas no Rio de Janeiro casaram-se entre os 18e os 25 anos de idade. Somente seis eram mais velhas e, delas, somente uma não teve filhos. Quanto à seus maridos, emtrinta e seis casos pesquisados; a maioria casou-se entre os 26 e 30 anos; dois dos três homens que se casaram com maisde 40 anos estavam no segundo casamento: Um segundo casamento era comum para as mulheres que ficavam viúvas,especialmente tendo em vista a falta de mulheres brancas que havia na colônia. Esse segundo casamento, provavelmen-te, era limitado pela idade. Das vinte e oito cristãs-novas que eram viúvas, somente três casaram-se novamente. 40 anos,para as mulheres, era considerada como o início da velhice nos tempos coloniais, enquanto para os homens, a velhice

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chegava aos 60 anos.Também a afirmação sobre as atividades profissionais das mulheres, que ficariam em casa sem fazer nada, não

condiz com a documentação inquisitorial, onde encontramos um grande número de mulheres que não só sabiam exatamenteo montante do patrimônio familiar, as dívidas a serem pagas e créditos a receber, como mulheres que administravamsozinhas engenhos e lojas. Mesmo os relacionamento afetivos, tão difíceis de serem apreendidos na documentaçãocolonial, aparecem nos processos. Em uma peça chamada contraditas, encontramos declarações de amigos e inimigos,de amantes, de flertes. O amor materno também pode ser visto em várias das atitudes de proteção aos filhos feitas pelascristãs novas.

A cristã-nova Brites de Lucena, presa pelo Santo Ofício em 1714, denunciou seus filhos como criptojudeus; e depoisrevogou a denúncia, dizendo que eram inocentes; alguns dias depois, denunciou-os novamente, salvando a própria vida.Outra mãe, Izabel de Barros Silva, também tentou proteger seus filhos, ensinando-os no que declarar ao Tribunal do SantoOfício. Acabou sendo presa pela segunda vez, açoitada e degredada para o Algarve. É possível também encontrar infor-mações relativas à composição das famílias, inclusive os relacionamentos econômicos e solidariedade. Por exemplo, nafamília Vale, havia vários núcleos, com muitos filhos – núcleos que se relacionavam não só afetivamente, mas tambémeconomicamente. Além de ser uma família em que e endogamia, não somente étnica como familiar era dominante, tam-bém o relacionamento econômico era importante. Assim, em um dos engenhos da família, um cunhado, o irmão deste, eum genro, mantinham partidos de cana. O processo inquisitorial, assim, permite fazer recortes e encontrar as famílias taiscomo elas se apresentavam no momento da prisão e reconstituí-las por algumas gerações, sendo assim fonte importantepara o estudo das genealogias.

Variados

Cartas

Em relação ao belo artigo sobre a família Sulzberger e o jornalThe New York Times, gostaria apenas de acrescentar que esta famíliadescrita como sendo de judeus alemães, esquece ou esconde umramo que é basicamente de judeus portugueses, no qual sobrenomescomo Mendes Peixoto, Campos Pereira, Mendes Seixas, Maduro, Vi-era e Lopes identificaram os ancestrais próximos de Arthur OchsSulzberger, o atual patriarca da família.

Entre todos estes ancestrais há também uma brasileira nascida em Recife, que pertenceu ao enclave holandês forma-do naquela cidade durante o século XVII.

Os judeus holandeses eram em sua maioria, naquele período, cristãos-novos ibéricos ou seus filhos, que fugiram dosrigores da Inquisição, para desfrutar a relativa tolerância religiosa dos Países Baixos. Quando os holandeses ocuparamPernambuco, muitos judeus aproveitaram a oportunidade para voltar ao mundo ibérico. Eles permaneceram no Brasil atéa expulsão dos ocupantes holandeses.

Nestes anos, desenvolveram atividades comerciais e, como era natural, religiosas também. Interagiram com cristãos-novos locais, estabeleceram sinagogas, trouxeram rabinos.

Um destes rabinos, Isaac Aboab da Fonseca, nascido como cristão-novo em Castro Daire, Portugal, é considerado oprimeiro rabino do hemisfério ocidental. Ele pertencia a uma velha dinastia rabínica espanhola e que na expulsão dosjudeus da Espanha optou por Portugal, país no qual seus descendentes tiveram que se converter ao catolicismo em 1497,e onde nasceu Simão da Fonseca, que alteraria seu nome quando foi para a Holanda integrando-se ao judaísmo. IsaacAboab casou-se e teve filhos e, destes, netos e netas, descendência que chegou até os nossos dias.

Levantando a genealogia dos primeiros judeus que chegaram aos EUA, o rabino Malcolm H. Stern encontrou apernambucana Rachel, de quem ele não conseguiu identificar os pais, mas, que baseado em outras evidências, atribuiu-lhe o sobrenome Aboab, entroncando-a na família do primeiro rabino brasileiro. Ainda não temos muitos elementos sobreesta matriarca brasileira. Sabe-se apenas que ela se casou com Moses Cohen, filho de Diogo Mendes Peixoto. O filho docasal, Josuah Cohen Peixoto, nasceu em Caiena, em 1663, mas foi casar-se em Amsterdã com Ester de Jacob CohenPeixoto, originária de Bordeaux. O casal teve um filho, Daniel Cohen Peixoto, que saiu de Amsterdã para Curaçao. Suaesposa, Garcia de Abraham Campos Pereira, pertencia também a famílias portuguesas. A filha de ambos, Leah CohenPeixoto, casou-se o curaçaense Samuel Levy Maduro Peixoto, em 1765, e tiveram Moses Levy Maduro Peixoto, que se

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casou com Judith de Samuel Lopes Salzedo. Eles tiveram Daniel Levy Maduro Peixoto, e este se casou com RachelMendes Seixas, de uma família que chegou aos EUA em 1730, vinda de Portugal, onde tinham vivido como cristãos-novosquase dois séculos e meio.

Daniel Levy Maduro Peixoto (1767-1828), foi um médico importante em New York, e de seu casamento com RachelMendes Seixas teve dois filhos. Um deles, Judith Salzedo Peixoto, casou-se com David Holis Hays, e tiveram RachelPeixoto Hays, em 1861. Ela rompeu com a tradição de casamentos entre judeus portugueses (Portogeese Joden) e casou-se com o judeu ale- mão Cyrus Lindauer Sulzberger. O filho deste casal, Arthur Hays Sulzberger, casou-se com IphigeneBertha Ochs, filha e herdeira de Adolph Simon Ochs, cria-dor do The New York Times. Ele sucedeu ao sogro na direção dojornal, que repassou o cargo ao filho Arthur Ochs Sulzberger, atual presidente do grupo.

Assim, quase oculta na genealogia de uma família da aristocracia judaica norte-americana, onde encontramos rabinosimportantes, comerciantes e médicos, empresários e editores do mais conhecido jornal mundial, encontramos tambémuma pernambucana quase anônima, a recifense Rachel, como a matriarca de todos.

(Fonte: Stern, Malcolm H., First American Jewish Families, 600 Genealogies, 1654-1988, Baltimore, 1991) PauloValadares Historiador, Sociedade Genealógica Judaica do Brasil - São Paulo, SP Cronologia Histórica da Etnia JudaicaIbero-Brasileira Anonymous Enviou “

Cronologia Histórica da Etnia Judaica Ibero-Brasileira Entre os Séculos XII e XIII - Época de maior esplendor judaicona península ibérica, na Espanha.

1147- D. Afonso Henrique, na tomadaCronologia Histórica da Etnia Judaica Ibero-BrasileiraEntre os Séculos XII e XIII - Época de maior esplendor judaico na península ibérica, na Espanha.1147- D. Afonso Henrique, na tomada de Santarém dos Mouros, encontrara ali proeminente colônia judaica, com

autonomia em Portugal, numerosos durante toda a Idade Média.Início do Século XIII- Tribunais do Santo Ofício da Inquisição, na Espanha1383- Representantes da Aristocracia Burguesa, os chamados “homens bons”, apresentamreivindicações à Rainha de Portugal, dentre elas uma que exigia a retirada dos judeus dos oficiais públicos. O “Mestre

de Avis” (futuro D. João I) defende os judeus da “Gente Miúda” (um grupo do povo com motivos revolucionários).Meados do Século XIV - Desencadeia na Espanha, perseguições aos judeus pelo baixo clero.1391- Meados do séc. XV- Um Clérigo fanático declara um “progrome” em Sevilha, milhares de judeus morrem e são

forçados a se converterem ao catolicismo na Espanha.1449- É posto em vigor a primeira lei de “limpeza de sangue”, os judeus são proibidos de ter acesso a inúmeros cargos

públicos, honras e profissões na Espanha.1449- O corregedor de Lisboa manda açoitar publicamente certos cristãos, que tinham insultado judeus na rua.1478- Para combater o “marranismo” os Reis Católicos obtêm do Papa, uma bula instituindo a “Inquisição em

Castela”, na Espanha.1487- O primeiro livro impresso em Portugal foi a Torah (Pentateuco) em caracteres hebraicos.1480-1492- Período de grande perseguição, nestes anos cresceu um estado de miséria por toda comunidade

judaica na Espanha.1491-1492 - Os Reis Católicos ordenam a expulsão dos judeus da Espanha; muitos vão para Portugal e para o

Norte da África1492- Desaparecimento dos judeus mosaicos e judeus marranos na Espanha.1495-1496- D. Manuel por casar com a filha dos “Reis Católicos” (Rainha Isabel) comprometeu-se em expulsar os

judeus que viviam em seu reino.1495- Os judeus recém chegados à Portugal pela expulsão espanhola se tornavam escravos, mas D. Manuel deu-lhes

liberdade quando subiu ao trono.1496 - O Rei D. Manuel declara a expulsão dos judeus que não aceitassem ser batizados; nada muito ofensivo, era

apenas uma estratégia política (cumprimento de seu compromisso com os reis católicos).1496-1497 - Crianças judias menores de 14 anos foram obrigadas a se batizarem e foram adotadas por famílias

cristãs (católicas).1497 - (04 de Maio). Saiu uma lei que proibia que se fizessem indagações sobre crenças dos novos convertidos.1499 - (21 e 22 de Abril). Proibição da imigração de cristãos-novos de Portugal por D. Manuel.1500 - O Brasil é descoberto pela Esquadra de Pedro Álvares Cabral, abrindo-se, assim, um “Mar Vermelho” para os

judeus portugueses que corriam risco de vida.

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1503 - O judeu Fernando de Noronha lidera um grupo de judeus portugueses e apresenta a D. Manuel a primeiraproposta de colonização do território brasileiro.

1506 - Milhares de judeus foram assassinados e queimados barbaramente pelo Progon de Lisboa.1507 - (01 de Março). Lei que abolia qualquer discriminação aos cristãos-novos, permitindo-lhes os mesmos direitos

dos cristãos-velhos.1515 - (26 de Agosto). D. Manuel pede ao Papa uma inquisição segundo o modelo de castelhana.1516 - D. Manuel distribui ferramentas aos que mudassem para o Brasil. Ele queria implantar engenhos de cana nesta

terra “recém descoberta”. Milhares de judeus aproveitam esta oportunidade.1524 - D. João III confirma as leis de D. Manuel contra a discriminação.1524 - (Junho). Assassínio de Firme Fé. (12 de dezembro). Lei em confirmação da de Março de 1507, sobre os direitos

iguais dos conversos.1525 - Instrução a D. Martinho de Portugal, para pedir ao Papa a Inquisição.1531 - Dita para Braz Neto, com o mesmo fim. (17 de Dezembro). Frei Diogo da Silva nomeado primeiro Inquisidor.1531 - Martin Afonso de Souza, discípulo do judeu Pedro Nunes Português, foi mandado pelo Rei D. João III para a

primeira expedição sistemática colonizadora.1531 - Terremoto em Portugal. Os frades de Santarém diziam ser um castigo de D-us pela tolerância quanto à perma-

nência dos judeus no seu seio.1532 - (14 de Junho). Proibição por 03 anos de saírem do Reino os cristãos-novos.1533 - Martin Afonso de Souza funda o primeiro engenho de açúcar no Brasil.1534-1560 - Período de crise no monopólio português.1535 - (14 de Junho). A mesma proibição de 1532 é renovada por outros três anos. (12 de Outubro). Paulo III concede

perdão geral aos culpados de judaísmo.1536 - (Janeiro). Tentativa de morte de Duarte da Paz. (23 de Maio). Bula de Paulo III que institui a Inquisição em

Portugal. São isentos por dez anos de confiscação os bens dos réus condenados. (22 de Outubro). Publica-se em Évorao estabelecimento da Inquisição. 1540 - (20 de Setembro). Primeiro auto da fé em Lisboa.

1544 - (22 de Setembro). Paulo III manda suspender a execução das sentenças do Santo Ofício.1546 - (08 de Agosto). Prorroga-se por mais um ano a isenção dos confiscos.1547 - (15 de Junho). Renova-se por mais três anos a proibição de saírem do Reino os cristãos-novos. (11 de Maio).

Segundo perdão geral. (16 de Julho). Bula de Paulo III restabelecendo a Inquisição. Suspende-se por mais dez anos apena de confisco.

1558 - Prolonga-se por mais outros dez anos a concessão acima.1560 - Inaugura-se a Inquisição em Goa.1567 - (30 de Junho). Alvará que proíbe saírem do Reino, por mar ou por terra, os cristãos-novos.1573 - (02 de Junho). Renova-se a proibição.1577 - (21 de Maio). Anula-se a mesma. (05 de Junho). A coroa concede, por dez anos, a isenção dos confiscos, a

troco de um serviço de 225 mil cruzados.1577 - Término do domínio espanhol sobre Portugal. Muitos judeus vieram para o Brasil direto da Península Ibérica.

Alguns destes foram para a América do Norte, Holanda e América Espanhola.1579 - (19 de Dezembro). São restabelecidos os confiscos.1580 - (18 de Janeiro). Revoga-se a permissão de livre saída do Reino.1587 - (26 de Janeiro). Lei que confirma a antecedente, e todas as anteriores de sentido igual.1591 - Primeira visitação do Santo Ofício ao Brasil.1591 - O Santo Ofício continha um documento que denunciava práticas judaicas e ritos judaicos.1591-1618 - Os judeus se espalharam por todo o Brasil, principalmente para o Sul.1601 - (04 de Abril). Licença para a saída do Reino e promessa de nunca mais se renovar a proibição. Serviço de

170 mil cruzados.1605 - (16 de janeiro). Perdão geral. Donativo de 1.700.000 cruzados.1610 - (13 de Março). Retira-se a concessão de saída de 1601.1618 - Segunda visitação do Santo Ofício ao Brasil.1624 - Primeira condenação de 25 judeus cristãos-novos pela Inquisição de Lisboa.1626 - Visitação a Angola.1627 - (19 de Setembro). Édito de graça.

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1629 - (23 de Maio). Junta dos prelados em Tomar. Primeira reunião. (17 de Novembro). A livre saída do Reino defini-tivamente restabelecida.

1630 - (15 de Janeiro). Sacrilégio de Santa Engrácia.1631 - Projetos de expulsões e outros contra apóstatas.1637-1644 - Tempos áureos para os judeus no governo holandês de Maurício de Nassau. Neste período, funda-se

a 1ª Sinagoga “Zur Israel”, em Pernambuco, quando vem da Holanda o 1º rabino de descendência portuguesa IsaacAboab da Fonseca.

1649 - (06 de Fevereiro). Alvará que isenta da confiscação a fazenda dos cristãos-novos. Contrato com a Compa-nhia do Brasil.

1654 - Portugal retoma o domínio de Pernambuco, expulsando os judeus.1654 - O 1º Judeu cristão-novo Antônio Félix de Miranda, dossiê 5002, é deportado para Portugal, condenado e

queimado em Lisboa.1657 - (02 de Fevereiro). Alvará que revoga o antecedente.1671 - (11 de Maio). Roubo da matriz de Odivelas. (22 de Julho). Decreto de expulsão dos apóstatas penitenciados.1674 - (03 de Outubro). Clemente X priva do exercício os Inquisidores.1678 - (24 de Dezembro). Inocêncio XI suspende o funcionamento das Inquisições.1681 - (22 de Agosto). O Santo Ofício é restabelecido como anteriormente era.1682 - (18 de Janeiro). Auto da fé em Coimbra, o primeiro depois da interdição.1683 - (09 de Setembro). Lei de expulsão dos heréticos penitenciados.1765 - (27 de Outubro). Último auto da fé público; último em que sai um judaizante.1768 - (05 de Outubro). Lei pombalina (Marquês de Pombal) contra os chamados Puritanos.1773 - (25 de Maio). É abolida a distinção de cristãos-velhos e cristãos-novos.1774 - (01 de Setembro). Último regimento do Santo Ofício.1770-1824 - Período de liberalização progressiva, queda da imigração judaica e gradual assimilação dos judeus.1824-1855 - Fase da assimilação profunda, subseqüente à cessação completa da imigração judaica homogênea e à

igualização total entre judeus e cristãos perante a lei.1855-1900 - Período pré-imigratório moderno, caracterizado pelas primeiras levas de imigrantes judeus, oriundos,

sucessivamente, da África do Norte, da Europa Ocidental, do Oriente Próximo e mesmo da Europa Oriental, precurso-res das correntes caudalosas que, nas primeiras décadas do século XX, viriam gerara e moldar a atual coletividadeisraelita do país.

JUDEUS, SIM SENHORTestes de DNA indicam que uma tribo de negros africanos tem origem judaica

Além de solucionar crimes e processos de paternidade, a pesquisa genética estáreescrevendo algumas páginas da história de maneira surpreendente. Uma delas foianunciada na semana passada: uma tribo de negros moradores da região norte da Áfri-ca do sul e arredores tem ascendência judaica. Os Lemba fazem a circuncisão, casam-se apenas entre si, guardam um dia da semana para orações e não comem carne deporco. A maior semelhança entre eles e os judeus, no entanto, está no código genético.Testes feitos com a saliva dos habitantes dessa tribo revelaram que os Lemba possuemuma seqüência de DNA que é característica do Cohanim, um dos três grupos em que sedivide o povo judeu.

A origem da tribo africana começou a ser estudada nos anos 80 pelo historiador inglêsTudor Parfitt, diretor do Centro de Estudos Judaicos de Londres. Durante dez anos elemergulhou no universo so Lemba. Além dos costumes parecidos - como a proibição de

comer carne de hipopótamo, considerado um parente do porco - , Parfitt ficou intrigado com os nomes dos dez clãs datribo. Com formação em lingüística, ele identificou uma raiz semita em nomes como Hamisi e Sadiki. A tradição oral datribo diz que eles viviam num lugar chamado Senna, de onde partiram em grupo. Parfitt descobriu no sul do Iêmen umapequena vila com esse nome. Segundo as lendas locais, até o século X ela ficava em um vale fértil, abastecido por umaçude. Quando este secou, a maioria das pessoas partiu.

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Filhos de AarãoAs desconfianças de Parfitt quanto ao parentesco entre

judeus e os Lemba, no entanto, só ganharam força quandoforam respaldadas pelas pesquisas de seqüências de genes.Estes estudos foram feitos nos últimos dois anos. No anopassado, o geneticista inglês David Goldstein, da Universi-dade de Oxford, descobriu que 56% dos Cohanim estuda-dos apresentavam certo tipo de assinatura genética que sóse repetia entre 3% a 5% dos membros dos outros doissubgrupos judaicos, so Levi e Israel. Entre não judeus, aseqüência praticamente inexiste. Quando a pesquisa foi apli-cada aos Lemba, veio a surpresa. Entre o clã Buba, um dosque formam a tribo, a incidência da assinatura foi de 53%.

Nos demais clãs, ficou em 9%.Os Buba são o principal clã da tribo. Como as Cohanim, que no passado eram a elite dos judeus, de cuja linhagem

saíam os sumos sacerdotes. O inglês Goldstein também conseguiu calcular uma data para a origem da assinatura gené-tica. Segundo o geneticista, ela teria pertencido a um ancestral que viveu entre 2.600 e 3.100 anos atrás. Pela tradiçãojudaica, o período coincide com a vida de Aarão, o irmão de Moisés, de quem os Cohanim se dizem descendentes diretos.Provavelmente o grande pai também dos negros Lemba.

RENASCE EM RECIFE A PRIMEIRA SINAGOGA DAS AMÉRICAS

Templo fundado na Rua dos Judeus, em Recife, à época do domínio holandês, no século XVII,será centro de memória hebraica.

A breve ocupação holandesa de Pernambuco, entre 1630 e 1654, foi um hiato de tolerância religiosa num continentemarcado pela imposição, à força, do catolicismo e pela severa vigilância da Inquisição.

Maurício de Nassau, que representava, na região, os esclarecidos déspotas dos Países Baixos viu, sob seu domínioflorescerem templos de vários credos, dos quais talvez o mais notável tenha sido a Sinagoga Tzur Israel (“Rochedo deIsrael”), a primeira das Américas.

Seus fundadores eram os descendentes daqueles judeus portugueses que, quando dos éditos de expulsão dos ju-deus da Península Ibérica, tinham ido buscar abrigo nos Países Baixos - onde continuaram a falar português.

Com a tomada do nordeste açucareiro pelos holandeses, eles,de refugiados, rapidamente se transformaram em instrumentos-chave na implementação do domínio político e econômico deNassau. Além da habilidade ao negociar e da lealdade à coroaholandesa, eles conheciam bem o idioma das novas terras deHolanda na América e foram, por isto, essenciais para mediar asrelações entre os cidadãos locais e os representantes dos novossoberanos.

Prosperaram, assim, rapidamente e em 1636 a sinagoga TzurIsrael foi erigida em Recife, sob o comando de um rabino de ori-gem portuguesa trazido especialmente de Amsterdã.

A rua onde foi construído o edifício - nos altos de uma próspe-ra casa de comércio - passou a chamar-se Rua dos Judeus, evidenciando a tolerância religiosa dos novos soberanos. Anova liberdade também levou muitos dos cristãos-novos (judeus convertidos ao catolicismo por imposição da Inquisição)- que ali residiam antes da chegada dos holandeses e praticavam secretamente os rituais judaicos - a assumirem empúblico a verdadeira religião.

Hoje, a Rua dos Judeus, localizada no bairro do Recife Antigo, faz parte de um grande projeto de restauração dobairro. Encontrar o local exato da Sinagoga demandou um grande trabalho de pesquisadores, coordenado pelo historiadorJosé Antonio Gonçalves de Mello. Diversas plantas das ruas tiveram que ser verificadas, pois as fachadas das casas forammodificadas ao longo do tempo, principalmente no século XIX. O trabalho deu resultados. Contudo, hoje, quem quiser

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visitar o local deve ter paciência para encontrar uma pequena placa comemorativa na fachada do prédio da antiga Sinago-ga, a primeira das Américas.

O local deve seguir os passos do bairro do Recife Antigo e ser restaurado. O Banco Safra, em conjunto com a prefei-tura e a comunidade judaica, quer fazer da Sinagoga um centro de memória com exposições sobre os judeus no Recifecolonial holandês. O projeto deve custar em torno de 1 milhão. Dentre os documentos expostos deverão estar as listas dasfamílias judias que vieram da Europa para o Brasil e as histórias de perseguições aos cristão-novos, especialmente aque-les que, com a derrota dos holandeses e a retomada portuguesa de Pernambuco, ficaram no Recife e foram denunciadospor terem participado, abertamente, dos cultos na Rua dos Judeus. “Recuperar esta tradição é muito importante paraRecife. A herança holandesa é uma da marcas mais fortes do passado colonial brasileiro”, diz o historiador José AntonioGonçalves de Mello, de 80 anos.

A Sinagoga, quando for reformada, vai servir de centro para os estudos da sociedade religiosamente tolerante que secriou sob o domínio holandês, e onde protestantes, católicos e judeus conviviam em paz.”Como entender as transformações decorridas depois desse período de liberdade religiosa? A equipe de pesquisadoresque vai trabalhar na casa tentará recuperar o passado analisando documentos, mapas e a iconografia do período”, dizGonçalves de Mello. O historiador sabe do que está falando. No final dos anos 80, escreveu “Gente da Nação”, livro queaborda o passado judaico de Recife, em 546 páginas.

Para a empreitada intelectual foram consultados os mais de 60 mil documentos relativos ao período, guardados noArquivo Municipal da Prefeitura de Amsterdã, e que agora se encontram no Instituto de Ciências do Homem de Recife efarão parte do acervo da Sinagoga.

Gonçalves de Mello analisa o período com sobriedade. “O capitalismo comercial faturava alto com um comércio trian-gular entre o açúcar brasileiro, os escravos africanos e os países europeus. A conquista holandesa esteve pautada novalor do açúcar no mercado internacional”, diz. Chamado de ouro branco em pó, a especiaria também foi o motivo debrigas entre judeus e holandeses. Como a maioria dos comerciantes da comunidade judaica falava português, possuíamuma enorme vantagem nas negociações com os comerciantes e fazendeiros brasileiros. A rivalidade entre holandeses ejudeus não tardou a virar reclamação para as autoridades holandesas. “Os pedidos foram enviados em diversas formas:cartas de notários, relatório de pequenos burocratas e reclamações dos próprios homens de negócios”, explica Mello.

O acervo que será reunido na Sinagoga incluirá uma série de documentos importantes, como os Cadernos do Promo-tor, do cartório da Inquisição de Lisboa. Aí estão registrados depoimentos prestados às autoridades eclesiásticas pordenunciantes, que mencionam “o bairro dos observantes da lei de Moisés”.

Em 1642, um denunciante em Lisboa dizia que os judeus ajuntavam-se “três vezes ao dia na esnoga (Sinagoga) quetinham na entrada de Arrecife à mão direita, da banda de dentro, andando vestidos como judeus e guardando os sábados,pois nele fechavam as tendas”.

“O cotidiano do mundo holandês em Recife pode ser aferido neste depoimento”, diz o historiador. Essas três vezesao dia eram, usualmente, a manhã, às três da tarde e ao pôr do sol. A referência de andarem vestidos como judeus ésignificativa, pois a roupa era um sinal de distinção entre classes e profissões na época. Em 1648, outro depoente contaa respeito das roupas que: “em uma festa de sua Lei andavam com uns panos brancos na cabeça”. O preconceito doscatólicos, acostumados a denunciar os atos judaizantes de seus vizinhos para a Inquisição, aparece claramente.

O pano branco, referido no depoimento e usado sobre os chapéus, era chamado talé, feito de algodão branco, comfios postiços de lã nas quatro pontas. Várias gravuras dos séculos XVII e XVIII mostram essa prática no Recife. Aiconografia é uma parte importante do projeto, já que os holandeses são os responsáveis pelo melhor retrato do Brasilna época. “O que eles retrataram em pouco mais de vinte anos, os portugueses não fizeram em séculos de coloniza-ção”, conta o historiador.

Esta passagem dos judeus por Recife, no século XVII, deixou também uma herança literária: Recife foi o berço dosprimeiros textos literários em hebraico do continente americano, com os poemas e orações dos “Hahamim” (em hebraico,sábios, termo com que eram designados os eruditos) Isaac Aboab e Moisés Rafael de Aguiar. O historiador norte-america-no Geoffrey Parker diz que os primeiros livros judaicos do continente foram impressos em Recife em 1636.

Com o fim da ocupação holandesa, em 1654, os judeus que eram cidadãos holandeses fugiram, pois sabiam queseriam denunciados e implacavelmente perseguidos pelos portugueses.

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