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Bruce G. Trigger HISTÓRIA DO PENSAMENTO ARQUEOLÓGICO Tradução: Ordep Trindade Serra 2a Edição ODYSSEUS 2004

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Uma das mais ilustres obras da teoria na arqueologia

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  • Bruce G. Trigger

    HISTRIA DO PENSAMENTO ARQUEOLGICOTraduo: Ordep Trindade Serra

    2a Edio

    ODYSSEUS 2004

  • Para Barbara

  • Prefcio edio brasileiraHaiganuch Sarian

    Museu de Arqueologia e Etnologia

    Universidade de So Paulo

    Publicado em 1989 e vrias vezes reimpresso, este livro de Bruce G. Trigger no apenasuma recenso crtica da histria da Arqueologia como uma disciplina. Mais do que isso, oautor oferece uma contribuio significativa sobre a natureza da Arqueologia, acrescentandosua prpria opinio em relao a outros eminentes pensadores. No seu prprio dizer, estelivro examina as relaes entre a Arqueologia e seu meio social em uma perspectivahistrica.Esta traduo nos chega em boa hora: no so poucos os leitores que se interessam pelaArqueologia, porm buscando mais os resultados obtidos por uma longa tradio depesquisas de campo do que o entendimento profundo e acertado do pensamentoarqueolgico, suas teorias e mtodos, seu nvel de reflexo, seu discurso prprio ediferenciador. Este livro de Trigger vem, pois, preencher uma lacuna em nosso meio,atendendo tanto a interessados em geral quanto a estudantes e pesquisadores dessa rea.Trata-se, sem dvida, de um filo promissor a ser seguido e explorado no mercado editorialbrasileiro.Bruce G. Trigger (1937-) professor de Arqueologia na McGill University, Canad.Notabilizou-se com inmeros artigos publicados em diferentes pases e sobretudo com oslivros Time and Traditions: Essays in Archaeological Interpretation (Edinburgh, 1978) e GordonChilde: Revolutions in Archaeology (London, 1980). A sua Histria do pensamentoarqueolgico uma obra de plena maturidade. Os dez captulos de que se compeapresentam-se cronologicamente, enfocando as maiores correntes tericas e seu meio sociale ressaltando que as abordagens interpretativas nas quais est interessado tendem a sesobrepor e interagir umas com as outras no espao e no tempo. Desde a relevncia da histriada Arqueologia (cap. 1) at as snteses da histria do pensamento arqueolgico no sculo XX(caps. 2 a 5), Trigger revela a natureza dessa disciplina como um produto social.Assim que discorre sobre a Arqueologia Clssica e o Antiquarianismo, desde suas origensna Antigidade at o Romantismo do final do sculo XVIII (cap. 2); o incio da Arqueologiacientfica no sculo XIX (cap. 3) com a introduo da cronologia relativa e o estudo dodesenvolvimento cultural a partir das perspectivas humansticas (Escandinvia) e das cinciasnaturais (Inglaterra, Frana). Sob o ttulo A sntese imperial (cap. 4), discute a raiz de umpensamento racista imperial baseado numa abordagem unilinear evolutiva que colocou osbrancos acima dos povos de cor, opinies estas que acompanharam o expansionismoeuropeu por todo o sculo XIX. Para completar esta srie de captulos histricos, examina nocap. 5 o desenvolvimento da Arqueologia histrico-cultural no incio do sculo XX, surgindo deconceitos europeus de etnicidade e nacionalismo e a propagao antropolgica do conceitode cultura.Seguem quatro captulos explorando as tendncias do pensamento arqueolgico no decorrerdo sc. XX, como o relato sobre a Arqueologia na Unio Sovitica e a fora de sua teoria

  • marxista, sendo os soviticos os pioneiros na dcada de 1930 a desenvolver a arqueologiados assentamentos e a explicao social de dados arqueolgicos (cap. 6). Passando peloFuncionalismo na Arqueologia ocidental (cap. 7) e seu grande impacto na rea a partir daSegunda Guerra Mundial, e pelo Neo-evolucionismo e Nova Arqueologia com seu anti-historicismo (cap. 8), completa com A explicao da diversidade (cap. 9) caracterizada pelaexpanso de vrias correntes de pensamento na dcada de 1970 e seguintes e a reabilitaoda Histria nas tendncias neo-historicistas.Finalmente, no captulo conclusivo A Arqueologia e seu contexto social (cap. 10) que serevela mais profundamente o pensamento arqueolgico de Trigger, acreditando como Childe(Archaeology and Anthropology, 1946; Archaeology as social science, 1967) que aArqueologia pode contribuir para uma cincia do progresso mais objetiva. Enquanto concluique fatores subjetivos influenciam a interpretao arqueolgica em todos os seus nveis, eletambm assinala que o registro arqueolgico constrange e limita o que possvel acreditarsobre o passado. Os achados da Arqueologia, diz Trigger, ainda que subjetivamenteinterpretados, modificaram a percepo que a humanidade tem de sua histria, de sua relaocom a natureza, e de sua prpria natureza, e o fizeram de maneira irreversvel - a menos quese abandone de todo o mtodo cientfico. E completa seu pensamento: O fato de que aArqueologia pode gerar um nmero cada vez maior de idias sobre o que aconteceu nopassado sugere que ela pode construir uma base cada vez mais eficaz para a compreensoda mudana social.Um livro to denso, to profundamente fundamentado em vasta erudio, s poderia ser obrade Bruce G. Trigger, cujo perfil cientfico como grande conhecedor da histria da Arqueologiase revela no s nos vrios captulos do livro como tambm no Ensaio bibliogrfico e nasReferncias bibliogrficas que encerram o volume.

  • Prefcio do autorEste livro o resultado combinado de aprendizagem atravs da leitura, experinciaarqueolgica e tradio oral. Construiu-se a partir do curso de Histria da Teoria Arqueolgica,que leciono anualmente desde 1975. Desde que comecei a ministrar o curso, eu tencionavaescrever um livro sobre o assunto. Meus primeiros esforos nesse sentido resultaram nosensaios originais publicados em Times and Tradition (Trigger, 1978) e Gordon Childe:Revolutions in Archaeology (Trigger, 1980). Embora eu continuasse a escrever estudos sobrevrios aspectos da histria da arqueologia, duas outras tentativas de comear este livro deramem nada, por vrias razes. Uma delas foi minha percepo de que o tempo no era propcio.J na primavera de 1986, fiz uma terceira tentativa e descobri que o livro estava a escrever-sea si mesmo. Acredito que esta mudana deveu-se a minha satisfao crescente com osavanos contemporneos na interpretao arqueolgica. Muitos arquelogos (no apenas noOcidente, mas tambm na Unio Sovitica aparentemente) tm mostrado preocupao com oque vem como a fragmentao terica da disciplina. Quanto a mim, ao contrrio, acredito queo desenvolvimento contemporneo ajuda os arquelogos a transcender os limites de enfoquessectrios muito estreitos, o que resulta em interpretaes mais holsticas e frutferas dos dadosarqueolgicos. H tambm um realismo crescente na constatao das limitaes dos dadosarqueolgicos, ao mesmo tempo em que se verifica maior flexibilidade na busca de super-las.Esses avanos decorrem de faanhas arqueolgicas tanto do passado como do presente. E,portanto, tempo oportuno para uma reviso do pensamento arqueolgico em uma perspectivahistrica.Cabe aqui uma breve declarao de minha posio terica. Sempre considerei o enfoquematerialista mais apto a produzir uma compreenso do comportamento humano do quequalquer outra abordagem. Aplicado com inteligncia, no diminui, de modo algum, aapreciao das caractersticas que tornam nica a mente humana, e facilita a insero dateoria social em uma compreenso biolgica mais ampla das origens e do comportamentohumano. Contudo, nunca achei que o determinismo ecolgico, a teoria neo-evolucionista ou omaterialismo cultural fornecessem explicaes satisfatrias para todo o espectro de variaesque podem ser encontradas na conduta humana, ou para as muitas complexidades presentesem seqncias concretas de mudana cultural. Em toda a minha carreira, tentei conciliar umenfoque materialista com o empenho de levar em conta a diversidade histrica que caracterizao registro arqueolgico. Isso nutriu meu apreo cada vez maior pelo materialismo histrico,para o qual fui inicialmente atrado por obra de meus esforos para entender o passado, e nopor conta de convices polticas dogmticas. Em particular, sempre achei o marxismo deGordon Childe, de orientao histrica e contextual, infinitamente prefervel s formas maisdeterministas do marxismo evolucionista, ou ao namoro com o idealismo caracterstico doneomarxismo.Embora esse livro tenha sido escrito como uma unidade, eu extra muito do que aqui seencontra de meus escritos prvios. O esboo do estudo de histria da arqueologia que se achano ensaio bibliogrfico do primeiro captulo apoia-se fortemente em Trigger, 1985. Muitas dasidias de que me vali para estruturar os captulos 4 e 5 haviam sido desenvolvidas em Trigger,1978 e 1984, ao passo que as sees que tratam de Childe nos captulos 5 e 7 baseiam-seem Trigger, 1980, e mais particularmente em Trigger, 1984b e 1986c. O captulo 6 baseia-separcialmente em Trigger, 1984c, embora os pontos de vista que exprimo a respeito daarqueologia sovitica naquele escrito tenham sido consideravelmente modificados. Algumas

  • das referncias citadas no captulo 6 foram assinaladas por Rose Marie Bernard em sua tesede mestrado Arqueologias marxistas: uma histria de seu desenvolvimento na UnioSovitica, na Europa e nas Amricas (1985), apresentada na Universidade McGill. Sou gratotambm a Peter Timmins por suas ponderaes relativas ao esboo da seo do captulo 9que trata de processos de formao de stios. No tocante a informaes factuais e apoiobibliogrfico, agradeo a Chen Chun, Margareth Deith, Brian Fagan, Norman Hammond,Fumiko Ikawa-Smith, June Kelley, Philip Kohl, Isabel McBryde, Mary Mason, Valerie Pinsky,Neil Silberman, Robert Vogel, Alexander von Gernet, Michael Woloch e Alison Wylie, assimcomo a muitos outros colegas de todo o mundo que me mandaram cpias de seus escritos.A histria da arqueologia no assunto novo. Portanto, quem quer que escreva um estudogeral a esse respeito ergue-se sobre os ombros de seus predecessores. Por essa razo,sempre que me pareceu adequado faz-lo, citei fontes secundrias de autoridadesreconhecidas, em vez de anexar uma bibliografia extensa e gigantesca com referncias afontes primrias cada vez mais remotas e inencontrveis na maioria das bibliotecas. Sempreque possvel, entretanto, consultei as fontes primrias, e onde encontrei discrepnciasabandonei as fontes secundrias defectivas, ou chamei a ateno sobre suas deficincias. Asobras antigas reeditadas (e traduzidas para o ingls) so sempre citadas segundo a reedio,com a data da primeira edio entre colchetes.

    A pesquisa necessria para a elaborao deste livro foi possvel, em grande medida, graas auma licena sabtica concedida pela Universidade MacGill e uma bolsa concedida peloCanada Council, em 1983. A todos os alunos, tanto de graduao como de ps-graduao,que fizeram comigo o curso Histria da teoria arqueolgica, quero agradecer por suas muitascontribuies para o desenvolvimento das idias expostas neste livro. Agradeo tambm aminhas irms, Isabel e Rosalyn, por sua ajuda na verbalizao das idias e por estimular-me busca da mxima clareza de expresso. Por fim, dedico esse livro a minha esposa, Barbara.

  • Captulo 1A IMPORTNCIA DA HISTRIA DA ARQUEOLOGIA

    Embora haja uma indstria acadmica principal... dizendo aos cientistas sociais... como eles podem tornar-se verdadeiros cientistas, h uma outra, de produo igualmente vigorosa,supostamente a confirmar que o estudo dos homens e da sociedade no pode ser cientfico.

    Ernest Gellner, Relativism and the Social Science (1985), p. 120

    A partir da dcada de 1950, a arqueologia, sobretudo na Amrica do Norte, passou daortodoxia histrico-cultural (em que parecia comprazer-se) a inovaes tericas ambiciosas. Altima delas, ao invs de inaugurar um novo consenso, levou a crescentes divergncias notocante aos objetivos da disciplina e ao modo como esses objetivos podem ser alcanados(Dunnel, 1983: 535). Em nmero cada vez maior, muitos arquelogos, na esteira dehistoriadores e socilogos, abandonaram a certeza positivista e passaram a ter dvidas acercada objetividade de sua pesquisa. Advertem esses arquelogos que fatores sociais determinamno apenas as questes que eles colocam, mas tambm as respostas que julgamconvincentes. Verses extremas desta concepo negam que os arquelogos possamapresentar interpretaes de seus dados que no sejam um mero reflexo de valorestransitrios das sociedades nas quais vivem. No entanto, se verdade que a arqueologia nopode produzir algum tipo de entendimento cumulativo e um comentrio do passadoindependente, ao menos em parte, de contextos histricos especficos, ento que justificativascientficas (e no apenas polticas, psicolgicas ou estticas) podem ser dadas para se fazerpesquisa arqueolgica?Esse livro examina as relaes entre a arqueologia e seu meio social em uma perspectivahistrica. Um tal enfoque possibilita uma viso comparativa a partir da qual problemasrelativos a subjetividade, objetividade e acumulao gradual de conhecimento podem serapreciados. Nos ltimos anos, um nmero cada vez maior de arquelogos passou a concordarcom o filsofo e arquelogo R. G. Collingwood (1939: 32) quanto a que nenhum problemahistrico deve ser estudado sem que se estude ... a histria do pensamento histrico a seurespeito (Dunnel, 1984: 490). Pesquisas histricas acerca da interpretao arqueolgica semultiplicaram e foram adotadas metodologias mais sofisticadas (Trigger, 1985). A esteenfoque, porm, no lhe faltam crticos. Michael SchifFer (1976:193) declarou que os cursosde ps-graduao devem deixar de ser histrias do pensamento e, em vez disso, devemexpor, de forma articulada, teorias contemporneas. Sua colocao encarna o ponto de vistasegundo o qual a verdade, ou falsidade, de formulaes tericas independe de influnciassociais e, portanto, da histria, podendo ser determinada pela aplicao cientfica deprocedimentos vlidos de avaliao a conjuntos de dados adequadamente reunidos. Levadoao extremo, este ponto de vista implica que a histria e a filosofia da arqueologia estointeiramente desconectadas uma da outra. Ironicamente, a anlise histrica oferece um postode observao privilegiado a partir do qual os mritos respectivos dessas duas posiescontrastantes podem ser apreciados.Os prximos captulos passaro em revista as principais idias que influenciaram ainterpretao dos dados arqueolgicos, principalmente nos ltimos duzentos anos. Examinareicuidadosamente alguns dos fatores sociais que ajudaram a delinear as idias que estruturamesta obra, e o impacto recproco das interpretaes arqueolgicas sobre outras disciplinas esobre a sociedade. Para faz-lo, necessrio comparar os modos como o pensamento

  • arqueolgico se desenvolveu em vrias partes do mundo. impossvel, em um nico volume,examinar todas as teorias, ou todas as tradies arqueolgicas regionais. Mas espero que aconcentrao em um nmero limitado de desenvolvimentos significativos torne possveldescobrir alguma coisa a respeito dos principais fatores responsveis por conformar ainterpretao arqueolgica. Seguindo os passos de L. R. Binford, ser feita aqui uma distinoentre dilogo interno - o dilogo atravs do qual os arquelogos tm procurado desenvolvermtodos para fazer inferncias sobre o comportamento humano a partir de dadosarqueolgicos - e dilogo externo - aquele do qual eles se valem nessas descobertas a fim detratar de questes genricas relativas ao comportamento humano e histria. Embora eu noafirme que esses dois nveis de discurso sejam claramente separveis, o dilogo internoenvolve os interesses que distinguem a arqueologia como uma disciplina particular, ao passoque o dilogo externo representa a contribuio da arqueologia s cincias sociais. Mas esta uma distino que apenas recentemente se tornou clara para a maioria dos arquelogos.A reao do pblico aos achados da arqueologia um indicativo da necessidade deenquadrar sua histria em um amplo contexto social. A imagem popular da arqueologia a deuma disciplina esotrica que no tem qualquer relevncia no tocante s necessidades einteresses do presente. Ernest Hooton (1938:218) assim descreveu, certa vez, o modo comoos arquelogos so vistos: playboys senis da cincia, de ps fincados em monturos deantiqualha. No entanto, ao longo de cerca de duzentos anos, o interesse amplamentedifundido pelas vastas implicaes de descobertas arqueolgicas contradiz esta imagem.Ningum poderia negar o fascnio romntico suscitado por achados arqueolgicosespetaculares como os de Austen Layard em Nnive, ou os de Heinrich Schliemann em Tria,no sculo XIX, e pelas descobertas mais recentes do tmulo de Tutancmon, do Palcio deMinos, do exrcito de esttuas de cermica em tamanho natural do imperador chins QinXihuangdi e de fsseis homnidas de muitos milhes de anos, na frica oriental. Todavia, istono explica o profundo interesse do pblico por controvrsias travadas em torno dainterpretao de muitos achados arqueolgicos rotineiros, a ateno que numerososmovimentos polticos, sociais e religiosos tm prestado pesquisa arqueolgica, e os esforosde diversos regimes totalitrios no sentido de controlar a interpretao de testemunhosarqueolgicos. Durante a segunda metade do sculo XIX, ambas as partes envolvidas nadiscusso acerca da origem do homem buscaram apoio na arqueologia para decidir qualrelato era mais fidedigno: se a teoria evolucionista ou o livro do Gnesis. E ainda h pouco, nadcada de 1970, um arquelogo contratado pelo governo verificou que sua posio se tornarainsustentvel quando se recusou a pr em dvida a evidncia de que runas lticas da fricaCentral correspondiam a edificaes de ancestrais dos povos bantos modernos.Minha adoo de uma perspectiva histrica no significa que eu reivindique uma posioprivilegiada para semelhante enfoque no que diz respeito objetividade. Interpretaeshistricas so notoriamente subjetivas, a tal ponto que muitos historiadores chegaram aconsider-las meras expresses de opinies pessoais. Tambm um fato reconhecido que,por causa da abundncia de testemunhos histricos, pode-se reunir dados para comprovarquase tudo. Pode haver alguma verdade no argumento de William MacNeill (1986:104)segundo o qual, se que a interpretao histrica vem a ser uma forma de fabricao demitos, d-se, em todo o caso, que os mitos ajudam a orientar a ao coletiva e so umsubstituto humano para o instinto. Sendo assim, segue-se que eles esto sujeitos operaodo fator social equivalente seleo natural e podem, portanto, com o transcurso de longosperodos de tempo, tornar-se mais prximos da realidade. Esta , porm, uma base de apoiofrgil para nossas esperanas de objetividade nas interpretaes histricas.

  • No afirmo que o estudo histrico aqui apresentado seja mais objetivo do que asinterpretaes de testemunhos arqueolgicos ou etnolgicos que ele examina. Tal comomuitos outros estudiosos da arqueologia, admito, porm, que a abordagem histrica prove umngulo especialmente favorvel a partir do qual podem ser examinadas as relaescambiantes entre a interpretao arqueolgica e o meio socio-cultural. A perspectiva temporaloferece ao estudo das ligaes entre a arqueologia e a sociedade uma base diferente dosenfoques filosfico e sociolgico. Em particular, permite ao pesquisador identificar fatoressubjetivos atravs da observao de como, e sob quais circunstncias, as interpretaes deregistros arqueolgicos tm variado. Embora isso no elimine o vis do observador, nem apossibilidade de que tais enviezamentos influenciem a interpretao de dados arqueolgicos,quase com certeza se pode dizer que assim aumentam as chances de alcanar percepesmais ricas do que aconteceu no passado.Contribuies para a Histria da Arqueologia

    A necessidade de estudos mais sistemticos sobre a histria da interpretao arqueolgica indicada por srias divergncias acerca da natureza e do significado dessa histria. A maiorcontrovrsia centra-se na avaliao do papel desempenhado pela explicao no estudo dedados arqueolgicos nos ltimos dois sculos. J. R. Willey e J. A. Sabloff organizaram suaobra A History of American Archaeology [Uma histria da arqueologia americana] com base nadiscriminao de quatro perodos sucessivos: fase especulativa, fase classificatria-descritiva,fase classificatria-histrica e fase explicativa, esta ltima com incio em 1960. No entanto,como nos recordou o historiador britnico E. H. Carr (1967: 3-35), a simples caracterizao dosdados como relevantes ou irrelevantes, que ocorre nos estudos histricos mais descritivos, jimplica a existncia de algum tipo de quadro terico. Alm do mais, contestando a tese de queexiste uma linguagem observacional neutra, possvel argumentar que nem mesmo o maissimples fato pode ser estabelecido independentemente de um contexto terico (Wilye,1982:42). No passado, os quadros tericos no eram, em sua maioria, explcita ou mesmoconscientemente formulados pelos arquelogos. Hoje, em especial no contexto daarqueologia americana, muitas proposies tericas so sistematicamente elaboradas. Noentanto, seria enganoso conferir o status de teoria to somente s formulaes auto-conscientes das ltimas dcadas. De resto, um exame mais detido da histria da interpretaoarqueolgica sugere que as teorias anteriores nem sempre foram to implcitas e desconexascomo em geral se acredita.Outros autores aceitam que os arquelogos empregaram teorias no passado, mas sustentamque at recentemente no se verificava, nesse processo, consistncia suficiente para que taisteorias viessem a constituir o que Thomas Kuhn chamou de paradigma de pesquisa. Kuhn(1970:10) chamou de paradigma um cnon consensual de prtica cientfica, incluindo leis,teorias, aplicaes e instrumentos, capaz de prover um modelo para uma tradio particularcoerente de pesquisa cientfica. Uma tal tradio sustentada pela comunidade cientfica epropagada em peridicos e livros controlados por essa comunidade. D. L. Clarke (1968: xiii)descreveu a arqueologia como uma disciplina emprica indisciplinada e sugeriu que suaconcepo terica, pelo menos at tempos muito recentes, pode ser considerada como seestivesse em um estado pr-paradigmtico. At a dcada de 1960, a arqueologia permaneceuum feixe desconexo de suhteorias no compatibilizadas que no fora estruturado em umsistema global. Clarke tambm postulou que apenas abordagens reconhecidasinternacionalmente podem qualificar-se como paradigmas (ibidem, 153-5). Porm, estudosdetalhados de fases anteriores do desenvolvimento da arqueologia vm revelando

  • formulaes muito mais abrangentes e dotadas de consistncia interna do que se acreditavaat agora ter havido. Isso especialmente verdadeiro no caso de estudos que respeitam aintegridade do passado e julgam a obra nos termos das idias vigentes no perodo em que elaapareceu, em vez de faz-lo com base em padres modernos (Meltzer, 1983; Grayson, 1983 e1986).Alguns arquelogos combinam a tese de Kuhn a respeito das revolues cientficas com umaviso evolutiva do desenvolvimento de sua disciplina. Sustentam eles que as fases sucessivasda concepo da teoria arqueolgica mostram consistncia interna suficiente para que sejamcategorizadas como paradigmas, e para que a substituio de um paradigma por outro sejaconsiderada uma revoluo cientfica (Sterud, 1973). De acordo com este ponto de vista,sucessivos inovadores, como Christian Thomsen, Oscar Montelius, Gordon Childe e R. LewisBinford, identificaram anomalias considerveis em interpretaes convencionais de dadosarqueolgicos e moldaram novos paradigmas que modificaram significativamente a direo dapesquisa arqueolgica. Esses paradigmas no somente alteraram o significado outroraatribudo aos dados arqueolgicos, como tambm determinaram que tipos de problemaspodiam, ou no, ser considerados importantes.Contudo, os arquelogos no esto de acordo no que toca seqncia efetiva dosparadigmas que supostamente caracterizaram o desenvolvimento da arqueologia (Schwartz,1967; ensaios em Fitting, 1973). Ao menos em parte, isso pode ser um reflexo da falta declareza da concepo de paradigma de Kuhn (Meltzer, 1979). Alguns crticos entenderam queuma disciplina pode ser caracterizada, de modo simultneo, por uma srie de tiposfuncionalmente distintos de paradigmas, que podem interligar-se apenas frouxamente ealterar-se em propores diversas, de modo a produzir um padro genrico de mudana antesgradual que abrupto. Margaret Masterman (1970) distinguiu trs tipos principais deparadigmas: metafsico, relacionado com a viso de mundo de um determinado grupo decientistas; sociolgico, definitivo do que vem a ser consensual; e construtivo, que supre osinstrumentos e mtodos para a soluo de problemas. Nenhum desses trs tipos constitui porsi s o paradigma de uma poca. Kuhn tambm foi acusado de ignorar a importncia dacompetio e da mobilidade entre escolas rivais enquanto fatores de mudana no seio deuma disciplina (Barnes, 1974:95). possvel ainda que, por conta da complexidade doassunto que tm por objeto, as cincias sociais tenham mais escolas e mais paradigmas rivaisque as cincias da natureza, e talvez por causa disso seus paradigmas individuais tendam acoexistir e substituir um ao outro de forma relativamente lenta (Binford e Sabloff, 1982).Outro ponto de vista, mais afinado com essas crticas e com a tese de Toulmin (1970) segundoa qual as cincias no experimentam revolues, e sim mudanas graduais, ou progresses,afirma que a histria da arqueologia compreendeu um crescimento cumulativo deconhecimentos a respeito do passado transcorrido desde os tempos primitivos at o presente(Casson, 1939; Heizer, 1962; Willey e Sabloff, 1974; Meltzer, 1979). Sustenta-se que, emboraas vrias fases desse desenvolvimento possam ser delineadas de modo arbitrrio, aarqueologia muda de forma gradual, sem rupturas radicais ou transformaes bruscas (Daniel,1975: 374-6). Alguns arquelogos vem o desenvolvimento da disciplina seguir um cursonico, linear e inexorvel. V-se a base de dados em expanso contnua, e novasinterpretaes so consideradas como a elaborao gradual, o refinamento e a modificao deum corpo terico subsistente. Entretanto, esta abordagem no leva em conta o freqentefracasso dos arquelogos em desenvolver suas idias de forma sistemtica. Por exemplo,embora naturalistas do sculo XIX eruditos com interesses arqueolgicos, como Japetus

  • Streenstrup (Morlot, 1851) e William Buckland (Dawkins, 1984:281-4) - j realizassemexperimentos com o objetivo de determinar de que modo resduos faunsticos vieram aintroduzir-se em determinados stios, esse tipo de pesquisa s se tornou rotineira naarqueologia depois de 1970 (Binford, 1977 e 1981).Um terceiro ponto de vista trata o desenvolvimento da teoria arqueolgica como um processono-linear, e freqentemente no-previsvel. As mudanas seriam causadas mais por novasidias, formuladas em outras cincias sociais, a respeito do comportamento humano que pornovos dados arqueolgicos, e poderiam refletir valores sociais de popularidade varivel. Poreste motivo, a interpretao arqueolgica no evolui de modo linear, com uma construocada vez mais abrangente e satisfatria dos dados; em vez disso, as mudanas do modo deentender o comportamento humano podem alterar radicalmente interpretaes arqueolgicas,tornando informaes que antes se afiguravam relevantes em informaes de pouco interesserelativo (Pigott, 1950, 1968 e 1976; Daniel, 1950; Hunter, 1975). Esse ponto de vista est deacordo com a observao de Kuhn (1970:130) de que paradigmas, ao sofrer modificaes, noapenas selecionam novos assuntos, como tambm desviam a ateno de problemas queoutrora teriam sido considerados dignos de abordagem. Tal modo de ver, diferentemente dosevolucionismos, no tem como certo que a maioria das mudanas de orientao terica resultaem avano da pesquisa arqueolgica.Alguns arquelogos duvidam de que interesses e conceitos da disciplina mudemsignificativamente de um perodo para outro. Bryony Orme (1973: 490) sustenta que asinterpretaes arqueolgicas oferecidas no passado eram mais parecidas com as atuais doque geralmente se imagina e que as preocupaes arqueolgicas pouco mudaram. No casode algumas idias que comumente so consideradas modernas, possvel demonstrar umanotvel antigidade. Os arquelogos afirmaram que densidades populacionais crescentesconduzem adoo de formas mais laboriosas de produo de alimentos muito antes deterem redescoberto esta tese na obra de Ester Boserup (Smith & Young, 1972). J em 1673, oestadista britnico William Temple havia prenunciado esta teoria quando observou que altasdensidades populacionais foram as pessoas a trabalhar arduamente (Slotkin, 1965:10-11).Em 1863, o arquelogo sueco Sven Nilsson (1868: lxii) argumentou que o crescimento dapopulao acarretara a passagem do pastoreio para a agricultura na Escandinvia pr-histrica. O conceito tambm se achava implcito na teoria do osis a respeito da origem daproduo de alimentos, tal como ela foi exposta por Rafael Pumpelly (1908: 65-6) e adotadapor Harold Peake e H. J. Fleure (1927), e depois por Gordon Childe (1928). Eles propuseram atese de que a seca posterior ltima glaciao, no Oriente Prximo, compelira as populaesa concentrar-se em torno das fontes de gua remanescentes, onde tiveram de inovar a fim dealimentar grupos com maior densidade populacional. Contudo, embora se verifique apersistncia e a recorrncia de idias na histria da arqueologia, isto no significa que no hnada de novo na interpretao dos dados arqueolgicos. Essas teses podem ser apreciadastomando como base os diferentes quadros conceituais que elas integraram em cada perodo. deles que as idias em questo tiram seu significado para a disciplina, e medida que elesse alteram, os significados tambm mudam. Dar demasiada importncia a certas idias, semprestar ateno ao seu cambiante contexto, levaria os arquelogos a subestimar o acervo demudanas significativas que tem caracterizado o desenvolvimento da interpretaoarqueolgica.Muitos arquelogos j observaram que uma das principais caractersticas da interpretaoarqueolgica sua diversidade regional. Tanto David Clarke (1979: 28, 84) como Leo Klejn

  • (1977) trataram a histria da arqueologia como uma histria de escolas regionais. Clarkeafirmou que s recentemente a arqueologia deixou de ser uma srie de tradies divergentes,cada qual com seu prprio corpo terico valorizado de modo particular e sua forma peferida dedescrio, interpretao e explicao (Daniel, 1981b; Evans et al., 1981: 11-70; Trigger &Glover, 1981-2). O que ainda no foi suficientemente estudado a natureza das divergnciasque as separam. At que ponto elas representam diferenas irreconciliveis de compreensodo comportamento humano, incidindo sobre a natureza das questes apresentadas, ou atque ponto se trata das mesmas idias bsicas, abordadas com terminologias diferentes? Porcerto, as diferenas culturais so importantes. Porm, a um exame mais detido, v-se que amaioria das interpretaes produzidas por arquelogos atuantes no contexto de diferentestradies nacionais podem ser adscritas a um nmero limitado de orientaes gerais. Em outroestudo, identifiquei trs tipos de orientaes: colonialista, nacionalista e imperialista (ouglobalizante). Essas orientaes tm-se reproduzido na arqueologia de pasesgeograficamente distantes uns dos outros; sucede tambm que a arqueologia de umadeterminada nao mude de um para outro tipo, conforme as circunstncias polticas. Taisabordagens da interpretao arqueolgica sero examinadas em detalhe em captulosposteriores.

  • Com poucas excees dignas de nota (Bernal, 1980; Chakrabarti, 1982), o estudo de tradiesarqueolgicas regionais no tem levado em conta, porm, o vasto intercmbio intelectual quecaracterizou o desenvolvimento da arqueologia em todas as partes do mundo, durante ossculos XIX e XX. Uma dramtica ilustrao deste fato o estudo dos concheiros. Relatos deestudos pioneiros de sbios dinamarqueses, que comearam sua obra na dcada de 1840,estimularam um vasto nmero de pesquisas sobre concheiros ao longo da costa atlntica e dacosta do Pacfico na Amrica do Norte, na ltima metade do sculo XIX (Trigger, 1986 a).Quando, depois de ter analisado material proveniente de concheiros encontrados ao longo dacosta do Maine para o arquelogo Jefries Wyman, da Universidade do Maine, o zologoamericano Edward Morse foi lecionar no Japo, descobriu e escavou um vasto depsito deconchas do mesoltico em Omori, nas cercanias de Tquio. Alguns de seus alunos de zoologiaescavaram por conta prpria um outro concheiro, pouco antes de arquelogos japonesesformados na Europa estabelecerem o estudo da cultura mesoltica Jomon em basesprofissionais (Ikawa-Smith, 1982). Os estudos escandinavos tambm estimularam as primeiraspesquisas sobre sambaquis no Brasil (Ihering, 1895) e sobre concheiros no sudoeste da sia(Earl, 1863). Mesmo as tradies arqueolgicas ideologicamente opostas da Europa ocidentale da Unio Sovitica influenciaram-se mutuamente de modo significativo, a despeito dedcadas em que o contato cientfico de qualquer espcie entre elas era muito difcil, e mesmoperigoso. Por todas essas razes, parece insensato superestimar a independncia ou asingularidade terica de arqueologias regionais.

  • Deu-se menos ateno ao impacto que a especializao interna no seio da arqueologia tevesobre a forma como os dados arqueolgicos so interpretados (Rouse, 1972: 1-25). Noentanto, diferentes orientaes nesse plano podem ser responsveis por no menosdiferenas que as devidas s arqueologias regionais. A arqueologia clssica, a egiptologia e aassiriologia eempenharam-se fortemente no estudo da epigrafia e da histria da arte em umenquadramento histrico (Bietak, 1979). A arqueologia medieval desenvolveu-se como umestudo de vestgios materiais que complementam a pesquisa baseada em registros escritos(M. Thompson, 1967; D. M.Wilson, 1976; Barley, 1977). A arqueologia paleoltica desenvolveu-se paralelamente geologia histrica e paleontologia, e manteve estreitos vnculos comestas disciplinas, ao passo que o estudo dos perodos pr-histricos recentes combina, comfreqncia, os achados arqueolgicos com dados de diversas outras fontes, incluindo-se alingstica, folclore, antropologia fsica e etnologia comparada (D. McCall, 1964; Trigger,1968, Jennings, 1979). Embora esses muitos tipos de arqueologia tenham-se desenvolvidoem considervel isolamento intelectual recproco, ao longo de extensos perodos, e tenham-setornado ainda mais estranhos uns aos outros por efeito da balcanizao de seus jarges, oslaos histricos, a interao espordica e os interesses metodolgicos comuns foramsuficientes para que todos esses ramos da arqueologia viessem a compartilhar numerososconceitos interpretativos.Numa tentativa de evitar pelo menos alguns dos problemas assinalados acima, o presenteestudo no abordar correntes de interpretao arqueolgica de acordo com uma perspectivacronolgica, geogrfica, histrica ou sub-disciplinar especfica (Schuyler, 1971). Em vez disso,examinar um certo nmero de linhas de interpretao, mais ou menos na ordem cronolgicade sua apario. Essas correntes interpretativas com freqncia vieram a sobrepor-se einteragir, tanto no plano temporal como no geogrfico, e a obra de vrios arquelogos reflete oimpacto de muitas delas, quer alternando-as, em diferentes etapas de suas carreiras, querfazendo-as entrar, de forma simultnea, em algum tipo de combinao. Este enfoque permite aum estudo histrico levar em conta os estilos cambiantes de interpretao arqueolgica queno podem ser colocados em nichos cronolgicos ou geogrficos claramente delimitados, masrefletem ondas de inovao que tm transformado a arqueologia.O Ambiente da Arqueologia

    Ningum pode negar que a pesquisa arqueolgica influenciada por diversos tipos de fatores.Na atualidade, o mais controverso deles vem a ser o contexto social em que os arquelogosvivem e trabalham. Muito poucos arquelogos, inclusive entre os que defendem uma visopositivista da pesquisa cientfica, negariam que as questes por eles elaboradas so, pelomenos em alguma medida, influenciadas por seu meio. Mas os positivistas afirmam que,desde que dados adequados estejam disponveis e sejam analisados com o emprego demtodos cientficos apropriados, a validade das concluses resultantes independe dospreconceitos ou crenas do pesquisador. J outros arquelogos acreditam que, porquanto osachados de suas disciplinas so, consciente ou inconscientemente, vistos como tendoimplicaes quer para o presente, quer para a natureza humana em geral, as condiessociais variveis influenciam no apenas as questes abordadas como tambm as respostasque os arquelogos se predispem a considerar aceitveis.David Clarke (1979:8) tinha em mente os fatores externos quando descreveu a arqueologiacomo um sistema adaptativo relacionado internamente com seu contedo varivel eexternamente com o esprito dos tempos. Em outra passagem, ele escreveu: Expostos vidaem geral, a processos educacionais e a sistemas de crena contemporneos em

  • transformao, adquirimos uma filosofia geral e uma filosofia arqueolgica em particular - umsistema em parte consciente e em parte subconsciente de crenas, conceitos, valores eprincpios, tanto reais como metafsicos (ibidem: 25). Ainda antes, Colingwood (1939: 114) jobservara que todo problema arqueolgico em ltima instncia decorre da vida real...estudamos histria a fim de ver com mais clareza a situao em que somos chamados aagir.Nos ltimos anos, a arqueologia foi fortemente influenciada pelos ataques que os relativistaslanaram contra o conceito de cincia como um empreendimento racional e objetivo. Essesataques tm sua raiz no antipositivismo da paramarxista Escola de Frankfurt, representada,nos ltimos anos, pelos escritos de Jrgen Habermas (1971) e Herbert Marcuse (1964). Essesestudiosos enfatizam que as condies sociais influenciam tanto a eleio dos dados julgadosrelevantes, como a maneira pela qual so interpretados (Kolakowsky, 1978c: 341-95). Seuspontos de vista foram consideravelmente reforados pela concepo paradigmtica de Kuhn,pelos argumentos do socilogo Barry Barnes (1974, 1977) - para quem o conhecimentocientfico no de uma espcie diferente das outras formas de crena cultural - e pelasproclamaes anarquistas do filsofo da cincia americano Paul Feyerabend (1975), segundoo qual, como no h critrios objetivos para a avaliao de teorias, a cincia no pode seracorrentada a regras rgidas, e se tem de confiar em preferncias pessoais e gostos estticosao apreciar o valor relativo de teorias rivais. Nos ltimos tempos, idias como essa atraram umnmero considervel de seguidores entre os autodenominados arquelogos crticos,especialmente na Gr-Bretanha e nos Estados Unidos. Enquanto alguns ponderam que, como passar do tempo, na longa durao, o incremento da conscincia dos vieses sociais acabarpor produzir maior objetividade (Leone, 1982), outros argumentam que mesmo dadosarqueolgicos bsicos so construes mentais, portanto no independentes do meio socialonde so utilizados (Gallay, 1986: 55-61). As formulaes mais extremadas ignoram aponderao de Habermas e Barnes de que o conhecimento surge de nossos encontros com arealidade e est continuamente sujeito a correo pela retroalimentao oriunda dessesencontros (Barnes, 1977:10). Em vez disso, concluem que as interpretaes arqueolgicasso inteiramente determinadas pelo contexto social e no por alguma evidncia objetiva.Assim, afirmaes a respeito do passado no podem ter sua validade aferida por qualquercritrio que no o da coerncia intrnseca de um estudo particular, que s pode ser criticadoem termos das relaes conceituais internas, no em termos de padres impostos de fora paradentro, ou de critrios para a mensurao ou determinao de sua verdade ou falsidade(Miller & Tilley, 1984:151). Um amplo espectro de alternativas separa os arquelogoshiperpositivistas, confiantes de que apenas a qualidade dos dados arqueolgicos e dastcnicas analticas determinam o valor das interpretaes arqueolgicas, e os hiperrelativistas,inclinados a no atribuir nenhum papel aos dados arqueolgicos, em vez disso explicando asinterpretaes arqueolgicas to somente em termos de lealdades culturais e sociais dopesquisador.Conquanto sejam muito diversas as influncias que as sociedades exercem sobre asinterpretaes arqueolgicas, o desenvolvimento da arqueologia tem correspondnciatemporal com a ascenso ao poder das classes mdias na sociedade ocidental. Emboramuitos dos primeiros patronos da arqueologia pertencessem aristocracia (desde Ciriaco dePizzicolli, no sculo XV), os arquelogos tm sido, predominantemente, membros da classemdia: funcionrios pblicos, clrigos, comerciantes, fazendeiros e, com o crescimento daprofissionalizao, professores universitrios. Alm disso, a maior parte do pblico que seinteressa por achados arqueolgicos se encontra nas classes mdias educadas, incluindo, por

  • vezes, lderes polticos. Todos os ramos da pesquisa cientfica que se desenvolveram a partirdo sculo XVII fizeram-no sob a gide da classe mdia. No entanto, a arqueologia e a histriaso disciplinas de pronta inteligibilidade, e suas descobertas tm implicaes importantes noque concerne natureza humana e razo pela qual as sociedades modernas vieram a sercomo so (Levine, 1986). Sua clara relevncia no tocante a questes polticas, econmicas esociais contemporneas tornam as relaes entre arqueologia e sociedade especialmentecomplexas e significativas. Parece razovel, pois, examinar a arqueologia como umaexpresso da ideologia da classe mdia e tentar descobrir at que ponto as mudanas nasinterpretaes arqueolgicas refletem variaes na sorte desse grupo.Isso no eqivale dizer que as classes mdias so um fenmeno unitrio. Cumpre distinguir aburguesia do ancien rgime composta, em grande medida, de clrigos, profissionais eadministradores a servio da realeza - da burguesia empresarial protagonista da revoluoindustrial (Darnton, 1984:113). O interesse e o grau de desenvolvimento das classes mdiastambm tm variado muito de um pas para outro, e at dentro do mesmo pas elas costumamdividir-se em vrios estratos, em cada um dos quais encontram-se indivduos com opesradicais ou conservadoras. E tambm evidente que a arqueologia nunca esteve associada atoda a classe mdia, mas apenas a uma parte dela, em que predominam os profissionaisinclinados a interessar-se pela prtica erudita (Kristiansen, 1981; Levine, 1986).Relaes entre interesses e idias so contextualmente mediadas por um vasto nmero defatores. Portanto, os arquelogos no podem esperar que se estabeleam relaes unvocasentre determinadas interpretaes arqueolgicas e interesses particulares de classe. Em vezdisso, devem analisar as idias que influenciam interpretaes arqueolgicas comoinstrumentos com os quais grupos sociais buscam alcanar seus objetivos em determinadassituaes. Entre esses objetivos constam os seguintes: reforar a auto-confiana do grupo,fazendo com que seu sucesso aparea como natural, predestinado e inevitvel; inspirar, oujustificar, ao coletiva; mascarar de altrusmo interesses coletivos (Barnes, 1974: 16); prover adeterminados grupos, ou sociedade como um todo, credenciais mticas (MacNeill, 1986).Sem com isso contestar a relevncia de traos psicolgicos individuais e tradies culturais, arelao entre a arqueologia e a classe mdia constitui um foco importante para o exame dasrelaes entre a arqueologia e a sociedade.A maioria dos arquelogos profissionais acredita que a disciplina influenciada por umgrande nmero de fatores, tanto internos quanto externos. Com exceo apenas dosrelativistas mais radicais, todos concordam que um desses fatores a base de dadosarqueolgica. Os dados arqueolgicos vm sendo acumulados de maneira contnua durantemuitos sculos, e o surgimento de novos dados normalmente percebido como um teste parainterpretaes anteriores. Mas os tipos de dados coletados e de mtodos utilizados sofrem ainfluncia da percepo de cada arquelogo do que relevante, o que, por sua vez, refleteseus pressupostos tericos. Isso cria uma relao de reciprocidade entre coleta e interpretaode dados, de modo a deixar tanto uma como outra abertas a influncias sociais. Alm disso, osdados recolhidos no passado com freqncia no so suficientes nem apropriados para asoluo de problemas considerados importantes em uma poca posterior. Isso no acontecesimplesmente porque os arquelogos ainda no estavam familiarizados com tcnicas que setornaram decisivas depois, e assim deixaram de preservar carvo para a datao porradiocarbono, ou amostras de solo para anlise de fitlitos (embora essas lacunas dedocumentao se revelem limitadoras em extremo). Com freqncia, novas perspectivasinauguram novas linhas de investigao. Por exemplo, o interesse de Grahame Clark (1954)

  • pela economia do perodo mesoltico levou-o a propor questes que simplesmente no podiamser respondidas com o uso dos dados coletados quando o principal interesse nos estudos domesoltico eram tipolgicos (Clark, 1932). De modo similar, o desenvolvimento do interessepela arqueologia dos assentamentos revolucionou as pesquisas arqueolgicas de stios(Willey, 1953) e fortaleceu o empenho em registrar e analisar as distribuies intra-stios devestgios e artefatos (Milon et al., 1973). Portanto, embora os dados arqueolgicos estejamsendo constantemente coletados, os resultados no so necessariamente cumulativos, comomuitos arquelogos acreditam. Na verdade, os arquelogos parecem trabalhar mais com asconcluses de seus predecessores do que com as evidncias nas quais essas concluses sebasearam.O que os arquelogos podem estudar tambm influenciado pelos recursos disponveis paraa pesquisa, pelos contextos institucionais em que ela transcorre e pelos tipos de investigaoque sociedades ou governos esto dispostos a deixar que eles empreendam. A fim de obterfinanciamento, os arquelogos devem agradar seus patrocinadores, sejam eles mecenas(Hinsley, 1985), colegas, polticos responsveis pela alocao de fundos pblicos ou asociedade em geral. Pode tambm haver restries sociais quanto escavao de certos tiposde stios, a exemplo de cemitrios ou locais sagrados (Rosen, 1980). Assim, embaraosconsiderveis podem ser criados tanto para as pesquisas que os arquelogos fazem quantopara o modo como eles interpretam os seus achados.At o sculo XX, poucos arquelogos tinham formao em sua disciplina. Em vez disso, elestraziam para a arqueologia habilidades e pontos de vista variados, adquiridos em muitoscampos e ocupaes diferentes. Todos passavam por estudos em que a nfase eram temasclssicos e bblicos. Princpios bsicos derivados de um amplo interesse pela numismticadesempenharam um importante papel no desenvolvimento de esquemas de tipologia eseriao, fruto das obras de Christian Thomsen, John Evans e outros arquelogos pioneiros(McKay, 1976). No sculo XIX, um nmero cada vez maior de pessoas que vieram a dedicar-se ao estudo da arqueologia tinham sido formadas em cincias fsicas e biolgicas. Mesmohoje, afirma-se que diferenas significativas podem ser observadas nas obras de arquelogosprofissionais, dependendo de sua formao ter sido em cincias humanas ou cincias naturais(Chapman, 1979: 121). Mais recentemente, um grande nmero de arquelogos especializadosem pr-histria se tm formado uns em departamentos de antropologia, outros emdepartamentos de histria, dependendo das preferncias locais. tambm significativo opapel desempenhado por mestres bem-sucedidos, ou por arquelogos carismticos, naconformao da prtica da arqueologia, tanto no mbito nacional quanto em escalainternacional. Arquelogos mais jovens podem empenhar-se em abrir novas trilhas e tornar-sepioneiros em tcnicas inovadoras, a fim de firmar sua reputao. Esse fenmeno especialmente comum em perodos de rpido crescimento, com ampliao de oportunidadesde emprego.A interpretao arqueolgica tambm foi influenciada por progressos nas cincias fsicas ebiolgicas. At as ltimas dcadas (quando a pesquisa realizada em regime de colaborao,envolvendo arquelogos e cientistas naturais, tornou-se rotineira), o fluxo da informao entreas disciplinas, com raras excees, era unidirecional, com os arquelogos no papel dereceptores. Conseqentemente, a pesquisa em cincias naturais s de maneira fortuitacorrespondia s necessidades dos arquelogos, embora de tempos em tempos a fossemfeitas descobertas de fundamental importncia para a arqueologia. O desenvolvimento domtodo de radiocarbono e de tcnicas geocronomtricas de datao, depois da Segunda

  • Guerra Mundial, muniu os arquelogos, pela primeira vez, de uma cronologia universalmenteaplicvel e capaz de facultar a determinao tanto da durao quanto da ordem relativa dasmanifestaes arqueolgicas. A anlise do plen propiciou novas e valiosas constataes demudanas climticas e ambientais na pr-histria, e a anlise de traos de elementosacrescentou uma dimenso importante ao estudo da circulao pr-histrica de certasmercadorias. De um modo geral, em todo o mundo, inovaes derivadas das cincias fsicas ebiolgicas foram incorporadas pesquisa arqueolgica com rapidez e pouca resistncia. Oprincipal obstculo sua difuso a falta de fundos e de pessoal qualificado nos pasesmenores e mais pobres, um fator que provavelmente cria mais disparidades que qualqueroutro entre a arqueologia dos pases ricos e a dos pases pobres. Ainda hoje, quando cada vezmais pesquisas fsicas e biolgicas so realizadas especificamente para solucionar problemasarqueolgicos, as descobertas neste campo continuam a ser dos acontecimentos mais difceisde prever dentre os que influenciam a interpretao arqueolgica.A proliferao de formas eletrnicas de tratamento de dados revolucionou a anlisearqueolgica tanto quanto a datao por radiocarbono. Hoje possvel, de forma rotineira,estabelecer correlaes entre grandes quantidades de dados, num montante que, no passado,apenas arquelogos excepcionais, como W. M. Petrie, poderiam tentar analisar (Kendall,1969, 1971). A computao permite aos arquelogos usar os abundantes dados a seu disporem busca de uma padronizao mais detalhada dos testemunhos arqueolgicos e permite-lhes testar hipteses mais complexas (Hodson et al, 1971; Doran & Hodson, 1975; Hodder,1978; Orton, 1980; Sabloff, 1981). Progressos matemticos estimularam novas orientaestericas. A teoria geral dos sistemas (Flannery, 1968; Steiger, 1971; Laszlo, 1972; Berlinski,1976) e a teoria das catstrofes (Thom, 1975; Renfrew, 1978; Renfrew & Cook, 1979;Saunders, 1980) constituem procedimentos matemticos empregados no estudo da mudana,ainda que em sua aplicao aos problemas arqueolgicos seus aspectos estritamentematemticos tenham sido menos enfatizados que os conceitos subjacentes.A interpretao de dados arqueolgicos tambm tem sido afetada de modo significativo pelasvariveis teorias do comportamento humano defendidas pelas cincias sociais. De um modoespecial, influenciaram-na conceitos derivados da etnologia e da histria, disciplinas com asquais a arqueologia tem mantido os vnculos mais estreitos. Conceitos tericos oriundos dageografia, da sociologia, da economia e da cincia poltica tambm tm influenciado aarqueologia, quer diretamente, quer atravs da antropologia e da histria. Porm, na medidaem que todas essas disciplinas foram conformadas pelos mesmos movimentos sociais queinfluenciaram a arqueologia, com freqncia torna-se difcil distinguir as influncias dascincias sociais incidentes sobre a arqueologia das que lhe advm da sociedade como umtodo.A interpretao dos dados arqueolgicos tambm consideravelmente influenciada porcrenas arraigadas a respeito do que se aprendeu a partir do registro arqueolgico. D-se,com freqncia, que interpretaes antigas so acomodadas de forma acrtica a novas evariveis concepes tericas gerais, ao invs de ser examinadas com cuidado edevidamente avaliadas; isso ocorre mesmo quando as interpretaes ultrapassadas foramformuladas de acordo com uma concepo geral j rejeitada. Por exemplo, quando R. S.MacNeish (1952) recorreu seriao cermica para demonstrar que o desenvolvimento localexplicava a origem de culturas iroquesas setentrionais do leste da Amrica melhor do que amigrao, continuou a aceitar que migraes de pequena escala eram responsveis pelasorigens de uns poucos grupos especficos. MacNeish e outros arquelogos esqueceram que

  • essas micromigraes no tinham sido postuladas com base em evidncia arqueolgicasadia, mas faziam parte de uma teoria sobre movimentos migratrios de maior escala, coisaque o prprio MacNeish havia contestado. Assim, concepes especficas sobre o passadopodem persistir e influenciar a interpretao arqueolgica muito depois que o arrazoadoconducente a sua formulao j foi desacreditado e abandonado (Trigger, 1978b).Interpretao Arqueolgica

    A arqueologia uma cincia social no sentido de que ela procura explicar o que aconteceu aum grupo especfico de seres humanos no passado e fazer generalizaes a respeito doprocesso de mudana cultural. Porm, ao contrrio dos etnlogos, dos gegrafos, dossocilogos, dos cientistas polticos e dos economistas, os arquelogos no podem observar ocomportamento da populao que eles estudam; ao contrrio dos historiadores, tambm notm, na maioria dos casos, acesso direto ao pensamento dessa gente registrado em textosescritos. A arqueologia infere comportamento humano, e tambm idias, a partir de materiaisremanescentes do que pessoas fizeram e usaram, e do impacto fsico de sua presena nomeio ambiente. A interpretao de dados arqueolgicos depende da compreenso de comoseres humanos se comportam no presente e, em particular, de como esse comportamento sereflete na cultura material. Os arquelogos tambm tm de recorrer a princpios uniformitaristaspara que possam valer-se do entendimento de processos biolgicos e geolgicoscontemporneos na inferncia de como tais processos ajudaram a configurar o registroarqueolgico. No entanto, eles esto longe de chegar a um acordo a respeito de como essessaberes podem ser legtima e compreensivamente aplicados aos seus dados a fim de tornarinteligvel o comportamento humano passado (Binford, 1976, 1981; Gibbon, 1984; Gallay,1986).Os arquelogos comearam a seguir o exemplo dos filsofos da cincia (Nagel, 1961), assimcomo o de outras cincias sociais, no classificar suas teorias e generalizaes em termos denvel baixo, mdio e alto (Klejn, 1977; Raab & Goodyear, 1984). Esse esquema possibilita umacompreenso mais sistemtica da natureza da teoria arqueolgica e dos processos deraciocnio que caracterizam a disciplina.As teorias de nvel baixo tm sido descritas como pesquisas empricas com generalizaes(Klejn, 1977:2). Parecem eqivaler s leis experimentais de Ernest Nagel (1961:70-105), porele exemplificadas com a seguinte proposio: todas as baleias fmeas amamentam seusfilhotes. Essas generalizaes normalmente se baseiam em regularidades que sorepetidamente observadas e, entretanto, podem ser refutadas pela observao de casoscontrrios. A grande maioria das generalizaes em que as interpretaes arqueolgicas sebaseiam so desse tipo, empricas. Abrangem a maior parte das classificaes tipolgicas deartefatos a identificao de culturas arqueolgicas especficas, a demonstrao (com recurso aestratificao, seriao ou datao por radiocarbono) de que uma manifestao arqueolgica anterior, ou posterior, a uma outra e a observao de que, em uma determinada cultura,todos os humanos so enterrados em uma certa posio e acompanhados por certos artefatos.Essas generalizaes baseiam-se na observao de que atributos especficos, ou artefatostpicos, ocorrem repetidamente em uma associao particular recproca, em relao a umadada localidade geogrfica, ou datando de um certo perodo. As dimenses a que se reportamtais generalizaes so as clssicas de espao, tempo e forma (Spaulding, 1960; Gardin,1980: 62-97). Arquelogos tambm podem presumir que determinados tipos de pontas deprojteis serviram a funes especficas e que cada tipo de cultura arqueolgica estavaassociada a um povo especfico. Essas inferncias, que se referem a comportamentos

  • humanos, diferem substancialmente de generalizaes baseadas em observaes empricasde correlaes entre duas ou mais categorias de dados arqueolgicos concretos. Muitasvezes, os pressupostos comportamentais se mostram incorretos, no comprovados ouequvocos. Por conta da natureza dos dados arqueolgicos, generalizaes de pequenoalcance nunca concernem ao comportamento humano. Do ponto de vista dessecomportamento, constituem regularidades a ser explicadas, e no explicaes efetivas.

    As teorias de nvel mdio so definidas como generalizaes que tentam dar conta deregularidades ocorrentes, em mltiplas instncias, entre duas ou mais sries de variveis(Raab & Goodyear, 1984). As gene-ralizaes da cincia social devem ter validadetranscultural e tambm fazer alguma referncia ao comportamento humano. Alm disso,devem ser suficientemente especficas, de modo que possam ser testadas quando submetidasa diferentes conjuntos de dados. Um exemplo de generalizao antropolgica de mdioalcance a proposio de Ester Boserup (1965) de que, em economias agrcolas, a pressodemogrfica conduz a situaes que requerem mais trabalho para cada poro de alimentoproduzida, com vistas obteno de mais alimento em cada trecho de terra cultivvel. Essateoria poderia ser arqueologicamente verificvel se os arquelogos pudessem estabelecermedidas confiveis de mudana demogrfica absoluta e relativa, de intensidade de trabalhoexigvel e de produtividade em regimes agrcolas especficos, alm de uma cronologiasuficientemente precisa para especificar a relao temporal entre oscilaes demogrficas eproduo de alimentos. Para faz-lo, seria preciso elaborar o que Lewis Binford (1981) chama

  • de teoria de mdio alcance: a que tenta usar dados etnogrficos para estabelecer relaesvlidas entre fenmenos passveis de observao arqueolgica e comportamento humanoarqueologicamente inobservvel. Embora teorias de nvel mdio e teorias de mdio alcanceno se equivalham, na medida que teorias de nvel mdio podem referir-se exclusivamente aocomportamento humano, ao passo que teorias de mdio alcance devem reportar-se tanto aocomportamento humano quanto a traos arqueologicamente observveis, em conjunto asteorias de mdio alcance de Binford podem ser consideradas de nvel mdio. Teorias demdio alcance tm importncia vital para o teste de todas as teorias de nvel mdio que serelacionam com dados arqueolgicos.Teorias de alto nvel, ou teorias gerais, que Marvin Harris (1979: 26-7) chama de estratgiasde pesquisa e David Clarke (1979: 25-30) rotulou de modelos de controle so definidascomo regras abstratas que explicam as relaes entre proposies tericas e vm a serrelevantes para a explicao de importantes categorias de fenmenos. O evolucionismo deDarwin e, mais recentemente, a teoria sinttica da evoluo biolgica (que combina princpiosdarwinianos com gentica) so exemplos de teorias gerais nas cincias biolgicas. Nodomnio das humanidades, teorias gerais referem-se exclusivamente ao comportamentohumano; neste nvel, portanto, no h formulaes tericas que pertenam especificamente arqueologia, e sim s cincias sociais em geral. Tampouco existem teorias gerais que tenhamsido universalmente aceitas por cientistas sociais, como a teoria sinttica da evoluo o foipelos bilogos. Exemplos de teorias de alto nvel que atualmente influenciam a pesquisaarqueolgica so o marxismo (materialismo histrico), o materialismo cultural e a ecologiacultural. Todas so abordagens materialistas, portanto tm pontos em comum, em vriosgraus. Embora enfoques idealistas, como os presentes na antropologia boasiana do sculoXIX, sejam menos elegantemente articulados do que suas contrapartes materialistas, aindaassim inspiram muitas obras realizadas nas cincias sociais (Coe, 1981; Conrad, 1984). Comoesses sistemas tericos procuram inter-relacionar conceitos antes de dar conta deobservaes especficas, no podem ser diretamente confirmados nem invalidados (Harris1979:76). Quanto a isso, assemelham-se a dogmas religiosos ou credos. No entanto, suacredibilidade pode ser influenciada pelo repetido sucesso ou fracasso das teorias de nvelmdio que deles dependem logicamente.O teste indireto, porm, no coisa simples. Ainda que muitas teorias de mdio alcance sejamrelevantes por sua capacidade de distinguir entre formas de explanao materialista e no-materialista, os cientistas sociais mostram grande ingenuidade ao descartar resultados queno esto de acordo com seus pressupostos, tratando-os como excees, e at mesmoreinterpretando-os como confirmaes inesperadas daquilo em que acreditam. Dada acomplexidade do comportamento humano, h espao suficiente para a ginstica intelectual.Chega a ser mais difcil para os arquelogos distinguir entre as trs posturas materialistasrelacionadas acima. Por conta da natureza indireta dos testes, a ascenso e queda napopularidade de certas generalizaes de nvel alto parecem ser influenciadas mais porprocessos sociais do que pelo exame cientfico de teorias de nvel mdio. Entre 1850 e 1945,deu-se grande nfase a explicaes biolgicas, e mais especificamente raciais, para asvariaes do comportamento humano. Demonstraes cientficas de que explicaes dessetipo no se sustentavam em instncias especficas no tiveram fora para abalar a crena,amplamente difundida entre os estudiosos, na validade genrica de uma concepo racista.No entanto, as teorias racistas foram quase totalmente abandonadas como explicaocientfica do comportamento humano aps a derrota militar da Alemanha nazista em 1945 e asubseqente revelao plena de suas atrocidades de inspirao racista.

  • Em termos ideais, seria possvel estabelecer uma relao lgica e coerente entre os nveisalto, mdio e baixo de teoria e uma correspondncia entre, de um lado, generalizaes denvel mdio e baixo, e, de outro, dados observveis. Nos ltimos anos, arquelogosamericanos discutiram apaixonadamente se uma teoria de nvel mdio pode ser derivadadedutivamente, como uma srie coerente de conceitos interrelacionados, oriundos de teoriasde nvel alto, ou se tem de ser construda por induo, a partir de dados e de generalizaesde nvel baixo. Aqueles que apoiam a linha dedutiva argumentam que explicaes docomportamento humano, ao contrrio de generalizaes sobre o mesmo, s podem basear-seem leis de cobertura postas como hipteses e testadas em confronto com sriesindependentes de dados (Watson et al., 1981; Binford, 1972: 111). Os partidrios dessaabordagem procuram estabelecer conexes lgicas explcitas entre teorias de nvel alto eteorias de nvel mdio. Mas geralmente subestimam a natureza frgil, complexa e intratveldas relaes entre esses dois nveis. Por outro lado, os hiperindutivistas tendem a ver a teoriageral como o objetivo ltimo, que s pode ser estabelecido depois de considerado um enormecorpus de generalizaes confiveis nos nveis baixo e mdio (M. Salmon, 1982: 33-4; Gibbon,1984: 35-70; Gallay, 1986: 117-24). No entanto, uma vez que numerosos postulados implcitosa respeito da natureza do comportamento humano influenciam o que se acredita ser umaexplicao vlida de dados arqueolgicos, conceitos de nvel alto s podem ser ignoradoscom o risco de que outros, implcitos, inconscientemente distoram a interpretaoarqueolgica. A maior parte dos processos de construo terica que logram xito na cinciaenvolvem uma combinao de ambos os enfoques. Numa primeira instncia, as explicaespodem ser formuladas quer indutiva, quer dedutivamente. No entanto, no importa como elassejam formuladas, seu status de teoria cientfica depende de sua coerncia interna (com seusprprios elementos) e externa (com outras formas aceitas de explicao do comportamentohumano); por outro lado, depende ainda da sua capacidade de estabelecer umacorrespondncia satisfatria no s entre tais elementos, como com quaisquer generalizaesempricas correlatas e ainda com um corpus adequadamente erigido de evidncia factual(Lowther, 1962).Os arquelogos tambm esto em desacordo quanto natureza formal das generalizaesque buscam realizar. Na moderna arqueologia americana, tal como geralmente acontece natradio positivista, acredita-se que todas as leis devem ser de natureza universal. Issosignifica que elas produzem afirmaes acerca de relaes entre variveis, que so aceitascomo vlidas independentemente da poca, da regio do mundo ou das culturas especficasem estudo. Essas generalizaes variam em escala: vo desde grandes postulaes arespeito do processo histrico at regularidades que concernem a aspectos, at certo ponto,triviais do comportamento humano (M. Salmon, 1982: 8-30). Um exemplo a economiaformalista, a qual sustenta que as regras empregadas para explicar o comportamentoeconmico das sociedades ocidentais explicam o comportamento de todos os seres humanos.Semelhante abordagem trata de variaes significativas do comportamento humano emdiferentes sociedades, considerando-as como novas combinaes e permutaes em umasrie fixa de variveis que interagem (Burling, 1962; Cancian, 1966; Cook, 1966).Generalizaes universais so freqentemente interpretadas como reflexo de uma naturezahumana invariante.Outros arquelogos sustentam que as leis gerais desse tipo, concernentes natureza humana,so relativamente poucas. Um nmero bem maior de generalizaes aplica-se apenas asociedades que compartem o mesmo modo de produo, ou modos de produo muitoprximos. Esta posio similar, em sua orientao geral, dos economistas substantivistas.

  • Contrastando com o modo de ver dos formalistas, os substantivistas sustentam que as regras,e tambm as formas de comportamento econmico, so basicamente alteradas pelo processoevolutivo (Polanyi, 1944; Polanyi et al, 1957; Dalton, 1961). O enfoque substantivista supe,portanto, que novas propriedades podem emergir, e de fato emergem, em funo de mudanassocioculturais; supe tambm que a natureza humana pode ser transformada emconseqncia disso (Childe, 1947). A distino entre generalizaes universais e outras dealcance mais restrito pode no ser to global e absoluta como seus propugnadores pretendem.Algumas das que se aplicam apenas a tipos especficos de sociedades podem ser transpostasem termos de generalizaes universais, enquanto generalizaes universais podem serreformuladas, geralmente com detalhamento maior, de modo a aplicar-se especificamente auma determinada classe da sociedade. No entanto, aqueles que enfatizam a importncia dasgeneralizaes restritas argumentam que, se no todas, pelo menos a maioria delas nopodem ser transformadas em generalizaes universais sem uma severa perda de contedo esignificado (Trigger, 1982).O terceiro tipo de generalizao tem pertinncia especfica, relativa a uma cultura ou a umgrupo singular de culturas historicamente relacionadas. Um exemplo seria a definio doscnones que regeram a arte do antigo Egito ou a arte grega clssica (Childe, 1974: 43-9;Montan, 1980: 130-6). Esse tipo de generalizao potencialmente muito importante, namedida em que corresponde maior parte da padronizao cultural. No se encontrou, porm,modo convincente de ir alm da especulao na interpretao do significado de semelhantepadronizao no registro arqueolgico em situaes em que no se dispe de documentaohistrica ou etnogrfica complementar. Onde estas faltam, as regularidades permanecemcomo generalizaes empricas.Desafios

    Uma questo final consiste em saber se um estudo histrico tem como avaliar o progresso nainterpretao de dados arqueolgicos. Estaro acontecendo grandes avanos em direo auma compreenso mais abrangente e objetiva dos achados arqueolgicos, como muitosarquelogos presumem? Ou seria a interpretao desses dados, em grande medida, umaquesto de modismos, e as realizaes de uma etapa posterior no se tornariamnecessariamente mais amplas e objetivas que as de uma fase anterior? Examinando ospadres sucessivos que influenciaram a interpretao de dados arqueolgicos, tentareideterminar at que ponto a interpretao da histria e do comportamento humano foiirresistivelmente modificada a partir da atividade arqueolgica. E possvel, porm, que asinfluncias sociais responsveis por moldar uma tradio cientfica no passado se desnudemmais facilmente depois de mudadas as condies sociais, ao passo que as influnciascontemporneas so muito mais difceis de se reconhecer. Isso faz com que as interpretaesatuais de dados arqueolgicos geralmente paream mais objetivas que as do passado.Portanto, observaes histricas por si s no distinguem necessariamente progresso objetivode fantasias as mais variadas culturalmente compartilhadas. Para operar essa distino, ainvestigao histrica tem de empenhar-se em descobrir at que ponto a irreversibilidade foiassegurada, no s pela fora lgica da interpretao arqueolgica, como tambm por suacontnua correspondncia factual com uma base de dados crescente. Se isso puder ser feito,podemos ter esperana de apurar alguma coisa a respeito da objetividade, ou subjetividade,das interpretaes arqueolgicas; de ver at que ponto a arqueologia pode ser mais do que opassado revivido no presente (no sentido em que Colingwood definiu este processo); deavaliar o grau em que qualquer tipo de conhecimento se faz comunicvel de uma poca para

  • outra - ou de uma cultura para outra - e, por fim, de estimar em que medida uma compreensoda histria da arqueologia pode influenciar a interpretao arqueolgica.Para fazer justia a esses tpicos, evitarei escrever uma histria da interpretao arqueolgicaindevidamente calcada no presente e tentarei compreender a histria intelectual de cada umadas principais correntes em seu contexto social. A fim de cingir este livro a limites razoveis,porm, vou referir-me mais s obras que contriburam para o desenvolvimento da interpretaoarqueolgica no longo prazo do que a estudos malsucedidos e repetitivos, ou a muitaspublicaes que s primaram por aumentar nosso conhecimento factual de vestgios dopassado. No exame que Chippindale (1983) fez da histria da interpretao de Stonehenge,ele mostrou que obras desta ltima classe constituem a maior parte do acervo da bibliografiaarqueolgica.

  • Captulo 2ARQUEOLOGIA CLSSICA E ANTI-QUARIANISMO

    Conhecer o passado uma faanha to assombrosa quanto conhecer as estrelas.George Kubler, The Shape of Time (1962) p. 19.

    Algumas formas recentes de tratar a histria da arqueologia sugerem que o interesse atualpela explicao uma conquista moderna (Willey & Sabloff, 1980: 9-10). Alega-se que antesde 1960 no havia um corpo terico estabelecido. Em vez disso, cada pesquisador tinhaliberdade para erigir a disciplina sobre suas prprias idias. No entanto, d-se que convicesde carter geral, potencialmente testveis com emprego de dados arqueolgicos, relativas sorigens humanas e ao desenvolvimento da sociedade, de muito antecedem uma disciplina daarqueologia reconhecvel como tal. Conceitos dessa ordem vieram a constituir, implcita ouexplicitamente, as mais antigas teorias de nvel alto capazes de dar direo e sentido coletae ao estudo de dados arqueolgicos. Nem a arqueologia nem, tampouco, qualquer outradisciplina cientfica passou jamais por um estgio em que a coleta de dados fosse feitasimplesmente por se fazer, na esperana de que, no futuro, se conheceria o bastante parapropor questes srias. Desde que os dados arqueolgicos se tornaram um objeto de estudosrio, os pesquisadores os examinam na esperana de lanar luz sobre importantesproblemas filosficos, histricos e cientficos.O Mundo Antigo

    Todos os grupos humanos parecem ter alguma curiosidade quanto a seu passado. Porm, emgrande parte da histria humana, esse interesse teve de satisfazer-se com mitos e lendas arespeito da criao do mundo e da humanidade, e com tradies que compem a crnica degrupos tnicos. Entre os povos tribais, esses relatos freqentemente referem-se a um reinosobrenatural contnuo e servem de guia mtico para as relaes sociais e polticas do presente,como no caso do conceito dos aborgenes australianos de um tempo dos sonhos (Isaacs,1980). Em outros casos, as tradies orais preservam relatos precisos de atividades humanasao longo de muitas geraes (Vansinna, 1985).Uma outra concepo desenvolveu-se nas civilizaes arcaicas em que registros escritospossibilitaram um enquadramento cronolgico, e a informao sobre o que aconteceu nopassado tornou-se independente da memria humana. Mesmo assim, a mera compilao deanais no originou a escrita de histrias detalhadas do passado, nem narrativas de eventoscontemporneos, antes de 500 a.C., quer no Mediterrneo, quer na China (Van Seters, 1986;Redford, 1986). Alm do mais, o desenvolvimento da histria como gnero literrio noassegurou o crescimento paralelo de um interesse disciplinado pelas relquias de temposanteriores.Artefatos oriundos de um passado desconhecido foram coletados por algumas sociedadestribais. Pontas de projteis, cachimbos de pedra e ferramentas nativas de cobre, feitasmilhares de anos antes, so encontradas em stios iroqueses dos sculos XV e XVI, no lesteda Amrica do Norte. Esses objetos podem ter sido descobertos no curso de atividadescotidianas e guardados pelos iroqueses (Tuck, 1971: 134) assim como pedras de raio(machados lticos) e dardos de elfo (pontas lticas de projteis) eram coletados por

  • camponeses europeus na Idade Mdia (machados de pedra europeus eram tambm vendidosa ourives, que os empregavam para brunir [Heizer, 1962: 63]). Embora no tenhamos nenhumregistro primrio de como os iroqueses interpretavam esses achados, devem t-los tratadocomo fetiches, como se sabe que faziam com vrios tipos de pedras, as quais elesacreditavam pertencer a espritos que as teriam perdido nos bosques (Thwaites, 1896-1901,33: 211). Em muitas culturas acredita-se que artefatos semelhantes tm origem sobrenatural, eno humana, e lhes so atribudas virtudes mgicas, que podem ter sido a razo principal parasua coleta.Resduos do passado tambm eram usados em cerimnias religiosas nas civilizaesprimitivas. No sculo XVI, com intervalos regulares, os astecas perfaziam rituais nas runas deTeotihuacan, uma cidade que fora habitada no primeiro milnio d.C. e onde se acreditava queos deuses haviam restabelecido a ordem csmica, no comeo do mais recente ciclo daexistncia (Heyden, 1981). Eles incluam estatuetas olmecas e bens valiosos vindos dediversas partes de seu imprio nos depsitos rituais periodicamente queimados nos muros doGrande Templo, em Tenochtitlan (Matos, 1984). No entanto, identificar essas atividades comoarqueologia, mesmo que seja arqueologia indgena, seria diluir o significado da palavra almde seus limites de utilidade.Em estgios posteriores das civilizaes antigas, artefatos podiam ser valorizados comorelquias de determinados governantes, ou de perodos de grandeza nacional, e ainda comofontes de informao sobre o passado. No Egito, um arcasmo consciente j era ostentado naconstruo de tumbas rgias no comeo daxii dinastia (1991-1786 a.C.) (Edwards, 1985:210-17). Na XVIII dinastia, (1552-1305 a.C.), escribas deixaram grafitos para registrar sua visita amonumentos antigos abandonados, e encontrou-se uma paleta pr-dinstica fragmentria coma inscrio do nome da rainha Tiye (1405-1367 a.C.). Naxix dinastia (1305-1186 a.C.),Khaemwese, um dos filhos de Ramss II, cuja fama de sbio e mago perduraria at a pocagreco-romana, estudou cuidadosamente os cultos associados a monumentos antigos nascercanias da capital Mnfis, como base para a restaurao dessas observncias (Kitchen,1982: 103-9), e, no perodo sata (664-525 a.C.), o conhecimento da tcnica de baixo-relevo doAntigo Imprio era detalhado o bastante para propiciar a tentativa de um renascimentoestilstico (W. Smith, 1958: 246-52). Uma coleo de artefatos babilnicos antigos, inscriesinclusive, reunida por Bel-Shati-Nannar, uma das filhas do rei Nabonide, no sculo VI a.C., foidescrita como o primeiro museu de antigidades conhecido (Wooley, 1950: 152-4). Esseinteresse crescente pelos remanescentes fsicos do passado fazia parte de uma profundapreocupao com os primeiros tempos, principalmente entre as classes letradas. Taisinteresses tinham um forte componente religioso. Acreditava-se que deuses, ou uma srie deheris culturais, haviam fundado a civilizao em uma forma j perfeita no comeo dostempos. As geraes humanas subseqentes teriam fracassado em conservar essa formaideal. Portanto, os monumentos, assim como os registros escritos do passado, constituamvnculos tangveis com eras mais prximas do tempo da criao e, portanto, eram os meiosatravs dos quais se poderia chegar mais perto do prottipo sagrado da civilizao. Por contade sua proximidade com o drama csmico da criao, imaginava-se tambm que essesartefatos eram dotados de poderes sobrenaturais incomuns.Nas civilizaes clssicas da Grcia e de Roma, a produo de histrias narrativas reaisbaseadas em registros escritos, assim como o interesse por prticas religiosas, costumeslocais e instituies civis, apenas esporadicamente se faziam acompanhar por um interessepelos vestgios fsicos do passado. O historiador grego Tucdides observou que alguns

  • tmulos escavados em Delos, quando a ilha foi purificada, no sculo V a.C., pertenciam acrios, porquanto continham armas e armaduras que se pareciam com as dos crios de seutempo. Na opinio de Tucdides, isso confirmava a tradio segundo a qual os crios haviamoutrora habitado a ilha (Casson, 1939:71). Na sua Descrio da Grcia, escrita no sculo IId.C., o mdico Pausnias descreveu sistematicamente edifcios pblicos, obras de arte, ritos ecostumes de diferentes regies do pas, e tambm tradies histricas associadas a essascoisas. No entanto, embora Pausnias tenha descrito brevemente as clebres runas da Idadedo Bronze de Tirinto e Micenas, para ele, e para outros escritores clssicos de roteiros deviagem, edifcios em runas mal mereciam ser mencionados (Levi, 1970: 1-3). Os gregos eromanos preservaram valiosas relquias do passado como oferendas votivas em seus templose tmulos, por vezes abertos para a retirada de relquias dos heris. Com o propsito deconfirmar os testemunhos literrios segundo os quais guerreiros da idade homrica haviamusado armas de bronze, Pausnias observou que a lmina da suposta lana de Aquiles,guardada no templo de Atenas, em Faslis, era feita de bronze (Levi, 1979: 2:17). Masreferncias histricas como essas so notveis por sua raridade. Bronzes antigos e vasos decermica que eram acidentalmente desenterrados ou pilhados por mercadores eram vendidospor alto preo a ricos colecionadores de arte (Wace, 1949). Contudo, os eruditos no seesforavam de modo sistemtico por recuperar esses artefatos, que tampouco constituam -malgrado as alegaes em contrrio de especialistas no mundo clssico (Weiss, 1969:2) - umfoco de estudo especial. No havia absolutamente nenhuma conscincia de que os vestgiosmateriais do passado poderiam ser usados para a verificao das inmeras especulaesfilosficas conflitantes, caractersticas da civilizao clssica, a respeito das origens e daslinhas gerais da histria humana.Si-ma Quien, o primeiro grande historiador chins, que escreveu no sculo II a.C., visitouantigas runas e examinou relquias do passado, alm de pesquisar textos, quando compilavamaterial para o Shi Ji, sua influente crnica da histria da China antiga. O estudo sistemticodo passado foi valorizado pelos eruditos confucianos como um guia de comportamento morale - graas sua nfase em um legado comum que remontava, pelo menos, at a dinastia Xia(2205-1766 a.C.) -, desempenhou um importante papel na unificao da vida cultural e polticachinesa (Wang, 1985). No entanto, por quase um milnio, os historiadores chinesescontinuaram a basear seus estudos em registros escritos, ao passo que vasos de bronze,esculturas em jade e outras obras de arte antigas eram colecionadas como curiosidades ouheranas de famlia, tal como acontecia nas civilizaes clssicas do Mediterrneo.Embora uns poucos eruditos do mundo antigo ocasionalmente usassem artefatos paracomplementar o que podia ser descoberto a respeito do passado a partir de registros escritos,o fato que eles no desenvolveram tcnicas especficas para o resgate ou o estudo dessesartefatos e falharam completamente no que tange ao estabelecimento da tradio dessapesquisa. No possvel dizer que existiu algo semelhante a uma disciplina arqueolgica emqualquer dessas civilizaes. Embora os filsofos substitussem crenas religiosas por vriasexplicaes estticas, cclicas ou mesmo evolucionrias para a origem dos seres humanos edas civilizaes, as explicaes eram puramente especulativas.O Paradigma Medieval de Histria

    Na Europa medieval, tmulos e monumentos megalticos eram objetos de interesse local esacerdotes ocasionalmente registravam contos populares a seu respeito. Poucos dessesmonumentos escaparam da pilhagem, fosse ela feita por nobres senhores, fosse realizada porcamponeses que julgavam haver tesouros encerrados neles (Klindt-Jensen, 1975:9). Edifcios

  • antigos eram tambm saqueados, na demanda por material de construo, relquias de santose tesouros (Kendric, 1950; Skleno, 1983: 16-18). O nico conhecimento certo do passado quese acreditava existir cingia-se ao registrado na Bblia, s histrias remanescentes da Grcia ede Roma e aos registros histricos envolvendo tradies que remontavam Idade das Trevas.Com esta base desenvolveu-se uma viso crist do passado, a qual, de certo modo, continuoua influenciar a interpretao de dados arqueolgicos at os dias de hoje. Essa viso crist dopassado pode ser sumarizada em seis proposies:

    1. Acreditava-se que o mundo tinha origem recente e sobrenatural, e no duraria mais que unspoucos milhares de anos (mais que isso era considerado improvvel). Autoridadesrabnicas calcularam que o mundo teria sido criado cerca de 3700 a.C.; o papa ClementeVIII datava a criao de 5199 a.C.; em pleno sculo VII, o arcebispo James Usher situou acriao em 4004 a.C. (Harris, 1968: 86). Essas datas, que eram calculadas a partir degenealogias bblicas, coincidiam em atribuir ao mundo uns poucos milhares de anos.Acreditava-se que o mundo atual acabaria com o retorno de Cristo. Embora o tempopreciso deste evento fosse desconhecido, geralmente se acreditava que a terra se achavaem seus ltimos dias (Slotkin, 1965:36-7).

    2. O mundo fsico achava-se em avanado estado de degenerao e a maioria das mudanasnaturais representavam a decadncia da criao divina original. Como a terra estavadestinada a resistir por apenas uns poucos milhares de anos, a divina providncia pouca

  • necessidade tinha de compensar sangrias resultantes de processos naturais e daexplorao humana de seus recursos. A maior longevidade humana nas priscas eras,atestada na documentao bblica, constitua uma confirmao da crena de que os sereshumanos, e tambm o ambiente, vinham-se deteriorando fsica e intelectualmente desde acriao. A decadncia e o empobrecimento do mundo natural tambm dava testemunho humanidade da transitoriedade de todas as coisas materiais (Slotkin, 1965: 37; Toulmin &Goodfield, 1966: 75-6).

    3. A humanidade foi criada por Deus no Jardim do den, localizado no Oriente Prximo, eespalhou-se pelas outras regies do mundo, o que aconteceu, primeiramente, logo aps aexpulso dos ancestrais humanos do Jardim do den e, de novo, depois do dilvio deNo. A segunda disperso foi incrementada pela diferenciao das lnguas, imposta humanidade como um castigo divino por sua presuno manifesta na edificao da torrede Babel. O centro da histria humana permaneceu por muito tempo no Oriente Prximo,onde a Bblia fizera a crnica do desenvolvimento do judasmo, e de onde o cristianismofora levado Europa. Os eruditos procuravam ligar a Europa do Norte e a EuropaOcidental histria registrada do Oriente Prximo e do mundo clssico atravs daconstruo de genealogias fantasiosas que identificavam personagens bblicos, ouindivduos conhecidos por outros relatos histricos, como fundadores das naeseuropias ou como antigos reis desta parte do mundo (Kendrick, 1950:3). Essassuposies, freqentemente baseadas em etimologias populares, faziam os godosdescenderem de Gog, um dos netos de No (Klindt-Jensen, 1975-10), e Brutus, umprncipe troiano, tornar-se o primeiro rei da Britnia, depois de haver derrotado uma raade gigantes que a habitava antes. Divindades pagas foram, muitas vezes, interpretadascomo mortais deificados que podiam se identificar com figuras bblicas menores ou comseus descendentes (Kendrick, 1950:82). Linhas de continuidade com o Oriente Prximoeram sistematicamente buscadas, a exemplo da alegao (primeiro feita pelos monges deGlastonbury, no ano de 1184 d.C.) de que Jos de Arimatia levara para a Britnia o SantoGraal no ano de 63 d.C. (Kendrick, 1950:15).

    4. Acreditava-se que os padres humanos de conduta tendiam naturalmente a degenerar. ABblia afirmava que Ado e seus descendentes tinham sido agricultores e pastores e que asiderurgia fora praticada no Oriente Prximo apenas umas poucas geraes depois. Osprimeiros humanos participaram da revelao direta de Deus a Ado. O conhecimento deDeus e de sua vontade foi posteriormente mantido e aperfeioado atravs de sucessivasrevelaes divinas, feitas aos patriarcas e profetas hebreus, e depois, junto com ascontidas no Novo Testamento, tornadas propriedade da Igreja Crist, que, por isso, eraresponsvel pela elevao dos padres de conduta humana. Por outro lado, grupos quese tinham deslocado para longe do Oriente Prximo e deixado de ter sua f renovada pelarevelao divina ou pelo ensinamento de Cristo tendiam a degenerar, caindo nopolitesmo, na idolatria e na imoralidade. A teoria da degenerao tambm era usada paraexplicar as tecnologias primitivas de caadores-coletores e de agricultores tribais quandoessas sociedades eram encontradas pelos europeus. Aplicado aos domnios da tecnologiae da cultura material, o conceito de degenerao competia com a tese alternativa, propostapor historiadores romanos como Cornlio Tcito, de que a prosperidade materialencorajava a depravao moral. Os eruditos medievais interessavam-se mais por explicaro progresso e a decadncia no plano moral e espiritual que no campo tecnolgico.

  • 5. A histria do mundo era interpretada como uma sucesso de eventos extraordinrios. Acristandade estimulava uma viso histrica dos assuntos humanos, no sentido de que ahistria mundial era vista como uma srie de acontecimentos com significado csmico.Esses eventos eram interpretados como resultado de intervenes pr-determinadas deDeus, de que a ltima encerraria a luta entre o bem e o mal. No havia, pois, uma noode mudana ou de progresso inerente histria humana, nem era possvel conceber queos seres humanos, sem ajuda de Deus, fossem capazes de qualquer realizaohistoricamente significativa (Kendrick, 1950: 3; Toulmin & Goodfield, 1966: 56). Nosintervalos entre as intervenes de Deus, os negcios humanos continuavam estticos ousubmetidos a um regime cclico.

    6. Por fim, os eruditos medievais estavam ainda menos conscientes que os antigos gregos eos romanos das mudanas histricas na cultura material. Uns poucos papas eimperadores, como Carlos Magno e Frederico Barbarroxa, colecionavam gemas e moedasantigas, repunham em uso elementos da arquitetura antiga e imitavam a escultura romana(Weiss, 1969:3-15). Em geral, porm, no havia um reconhecimento explcito de que nostempos clssicos e bblicos os seres humanos usavam roupas e viviam em casassignificativamente diferentes das medievais. Quando eram descobertas esttuas dedivindades pags, com freqncia elas eram destrudas ou mutiladas como coisas ligadasao culto do diabo, ou como figuras indecentes (Sklen, 1983: 15). Quase por toda aparte, os tempos bblicos eram vistos como idnticos cultural, social e intelectualmente aosda Europa medieval.

    Durante a Idade Mdia, o interesse por vestgios materiais do passado foram ainda maisrestritos que na poca clssica; limitava-se, em grande medida, coleta e preservao derelquias sagradas. Isso no propiciava o desenvolvimento de um estudo sistemtico dosvestgios materiais do passado. Ainda assim, a noo de passado que ento prevalecia veio aconstituir a base conceituai sobre a qual a arqueologia havia de desenvolver-se, na Europa,com a mudana das condies sociais.Desenvolvimento da Arqueologia Histrica

    Por volta do sculo XIV d.C., as mudanas econmicas e sociais aceleradas que marcaram ofim do feudalismo no norte da Itlia levaram os eruditos a tentar justificar inovaes polticasdemonstrando que tinham precedentes nos tempos antigos. Os intelectuais da Renascenavoltaram-se para a literatura remanescente da era clssica com o intuito de prover de umpassado glorioso as emergentes cidades-estados italianas e justificar a crescentesecularizao da cultura (Slotikin, 1965: X). Suas teses geralmente refletiam os interesses danobreza ascendente e da burguesia de cujo patrocnio dependiam. Embora o uso deprecedentes histricos para justificar inovaes tivesse razes no pensamento medieval, aexpanso da pesquisa voltada para a busca de tais precedentes pouco a pouco levou constatao de que a vida social e cultural contempornea no se assemelhava daantigidade clssica. Como resultado da familiaridade cada vez maior com textos histricos eliterrios da antigidade greco-romana que haviam permanecido desconhecidos, ou nohaviam sido estudados na Europa desde a queda do imprio romano, os eruditos constatarama separao e a diferena entre o passado e o presente, e perceberam que cada perodo tinhade ser entendido em seus prprios termos, no podendo o passado ser julgado pelos padresdo presente (Rowe, 1965).

  • As faanhas culturais da Grcia e da Roma antigas foram interpretadas como prova de umadegenerao cultural que acontecia desde ento, o que, por outro lado, reforou a tradicionalviso crist da histria humana. O objetivo dos eruditos da Renascena era entender e emular,o mais que pudessem, as gloriosas realizaes da Antigidade. A princpio, pouca confianase tinha em que os humanos, no seu presente estado de degenerao, pudessem, em algummomento, ultrapassar a excelncia das obras dos antigos. Apenas no tocante sua religio,baseada na revelao divina, a idade moderna podia ser vista como inequivocamente superior antiga.A apreciao da antigidade clssica no ficou restrita literatura, expandindo-serapidamente de modo a incorporar os domnios da arte e da arquitetura, objeto de particularinteresse da nobreza italiana e dos mercadores ricos, que rivalizavam como patronos dasartes. O estilo gtico foi rejeitado e envidaram-se esforos no sentido de emular a arte e aarquitetura da Roma antiga. Esta evoluo pouco a pouco tornou claro que no apenas apalavra escrita, mas tambm os objetos materiais sobreviventes do passado, podiam constituirimportantes fontes de informao sobre a civilizao clssica.Ambas as linhas de interesse se acham expressas na obra de Ciraco de Ancona (Ciriaco dePizzicolli, 1391-1452 d.C.), merecedor, por suas pesquisas, do ttulo de primeiro arquelogo.Era ele um mercador italiano que, por 25 anos, fez longas viagens pela Grcia e peloMediterrneo oriental, muitas vezes com o objetivo especfico de col