história do direito o cangaço como um movimento social causado por um problema de acesso à...

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1 1. Introdução A análise e a pesquisa a serem apresentadas neste trabalho têm como base um processo judicial penal contra membros de um grupo de Cangaço liderado pelo famoso Lampião – nome pelo qual Virgulino Ferreira da Silva é mais conhecido. O referido processo, que data das primeiras décadas da República no Brasil, está arquivado no Memorial da Justiça – Centro de Documentação e Espaço Cultural do Poder Judiciário de Pernambuco – o qual possui uma vasta coleção de documentos históricos e importantes para a Justiça Pernambucana. A estrutura deste trabalho consiste, primeiramente, em uma apresentação do processo, seguida de uma análise de seus componentes e dispositivos legais, comparando-os, também, com o atual Direito Brasileiro. Posteriormente, será realizada uma explanação do contexto histórico no qual este processo se encontrava, elucidando-se os elementos principais dos primeiros anos do Brasil República e do Cangaço, movimento banditista que teve expressão no Nordeste Brasileiro por quase um século. Por fim, será trazida uma exposição do tema “Acesso à Justiça” e sua relação com o contexto social e jurídico da época da qual data o processo. 2.O Processo O Processo aqui analisado foi instaurado em 1935, no município de Garanhuns em Pernambuco contra seis membros da equipe de Cangaço que possuía atividade no Nordeste Brasileiro, liderada por Lampião. O pedido apresentado no

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Page 1: História Do Direito O Cangaço Como Um Movimento Social Causado Por Um Problema de Acesso à Justiça

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1. Introdução

A análise e a pesquisa a serem apresentadas neste trabalho têm como base

um processo judicial penal contra membros de um grupo de Cangaço liderado pelo

famoso Lampião – nome pelo qual Virgulino Ferreira da Silva é mais conhecido. O

referido processo, que data das primeiras décadas da República no Brasil, está

arquivado no Memorial da Justiça – Centro de Documentação e Espaço Cultural do

Poder Judiciário de Pernambuco – o qual possui uma vasta coleção de documentos

históricos e importantes para a Justiça Pernambucana.

A estrutura deste trabalho consiste, primeiramente, em uma apresentação do

processo, seguida de uma análise de seus componentes e dispositivos legais,

comparando-os, também, com o atual Direito Brasileiro. Posteriormente, será

realizada uma explanação do contexto histórico no qual este processo se

encontrava, elucidando-se os elementos principais dos primeiros anos do Brasil

República e do Cangaço, movimento banditista que teve expressão no Nordeste

Brasileiro por quase um século. Por fim, será trazida uma exposição do tema

“Acesso à Justiça” e sua relação com o contexto social e jurídico da época da qual

data o processo.

2.O Processo

O Processo aqui analisado foi instaurado em 1935, no município de

Garanhuns em Pernambuco contra seis membros da equipe de Cangaço que

possuía atividade no Nordeste Brasileiro, liderada por Lampião. O pedido

apresentado no referido processo consiste na prisão dos supracitados indivíduos

pelo estupro de duas filhas de um agricultor da cidade.

Conforme o inquérito policial e a fundamentação feita pelo juiz Edmundo

Jordão de Vasconcellos para acatar a denúncia do promotor público, que constam

no processo, Lampião e cinco membros de seu grupo - Cabo Velho, Medalha,

Maçarico, Gato e Moita Braba – praticaram o crime de estupro em uma de suas

investidas, no distrito de Serrinha na cidade de Garanhuns.

O crime ocorreu na madrugada do dia 19 para o dia 20 de Julho de 1935. De

acordo com os relatos das vítimas e das testemunhas, os acusados atacaram a

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residência de Francisco Basilio da Silva, pequeno agricultor, e, dentre outros delitos,

retiraram violentamente suas filhas menores de idade Josepha e Antonia Anelina da

Conceição de sua casa e as levaram para um lugar próximo onde cometeram o

crime de estupro.

Francisco, pai das duas vítimas, denunciou o crime na delegacia do distrito e

apresentou quatro testemunhas para sustentar sua denúncia: Manoel Costa Filho,

Salustiano Bazilio da Silva, Pedro Baptista de Azevedo e Miguel Fabiano de

Azevedo. O processo foi instaurado em 11 de Novembro de 1935 e registrado no

cartório da Rua Santo Antônio em Garanhuns pelo escrivão Josephat Pereira.

No relatório apresentado pelo juiz do caso para acatar a denúncia pode-se

encontrar elementos que este descreve para corroborar o fato de que a denúncia

prestada se encontra em conformidade com o dispositivo legal que regia o estupro.

Transcreve-se aqui o trecho que apresenta tais elementos:

“As declarações das menores que em regra assumem capital importancia nesses crimes de violencia carnal, [...] coincidem rigorosamente com a dita das testemunhas. Josepha e Antonia contam com [..] detalhes a maneira como foram violentadas na sua virgindade por dois cabras pertencentes ao grupo do famigerado bandaleiro Lampeão, no momento em que o grupo deste bandito atacou a casa de seu pae. Dizem todas as testemunhas que as menores Josepha e Antonia eram [...] virgens no loyar de sua residencia onde viviam honestamente em casa de seu pae. Ás menores Josepha e Antonia era impossível não se considerarem em iminente perigo que punha em risco suas vidas diante de bandidos armados que as arrastaram violentamente para o matto [...].”

A ênfase dada neste trecho, e no decorrer de todo o relatório, às palavras

“violência”, “virgindade”, “honestidade” e “defloramento” decorrem do fato de que

dois dos artigos que regem o crime de violência carnal na legislação penal da época

estão centrados nestas expressões. O artigo 267 da Consolidação das Leis Penaes

instituía como crime: “Deflorar mulher de menor idade, empregando sedução,

engano ou fraude”1, assim, um dos elementos que caracterizavam o crime de

estupro era a defloração de menores de idade, situação esta na qual as duas

vítimas, Josepha e Antonia, se enquadravam. Voltaremos ao segundo artigo

referido, o 268, mais adiante.

1 BRASIL. Consolidação das Leis Penaes. Rio de Janeiro: Jornal do Comércio Rodrigues &C, 1933, p. 128.

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Acatada a denúncia e instaurado o processo, em 11 de Novembro de 2015 o

juiz Edmundo Jordão requereu que as testemunhas fossem citadas por edital a fim

de comparecerem perante ele e serem inquiridas sobre o crime. O edital de citação

foi publicado no “Diario do Estado” na seção do “Diario do Poder Judiciário” em 14

de novembro de 1935, já que as várias citações mandadas aos réus nunca

chegavam em suas mãos dado que estes não possuíam domicílio determinado.

Com esta publicação se buscou fazer conhecido aos réus o fato de que estes foram

indiciados pelo crime e deveriam apresentarem-se diante do juiz no prazo de vinte

dias.

Abaixo encontra-se reproduzido um dos mandados de citação das

testemunhas e dos réus. Houveram, também, outros mandados do juiz para

comparecimento das testemunhas em audiência, em 22 e 31 de janeiro de 1936 e

um anterior a estes, em 12 de dezembro de 1935.

“JUIZO DE DIREITO DA COMARCA IM GARANHUNHS, ESTADO DE PERNAMBUCO

Mandado

O Doutor Edmundo Jordão de Vasconcellos,

Juiz de Direito da Comarca de Garanhuns, do Estado

de Pernambuco, em virtude da lei, etc.-

Mando a qualquer dos officiaes de justiça de minha jurisdição, que em

cumprimento do presente, indo por mim assignado, se dirija a villa de Serrinha deste

município, e ahi sendo, intime Manoel Costa Filho; Salustiano Bazilio da Silva; Pedro

Baptista de Azevedo e Miguel Fabiano de Azevedo para, na qualidade de

testemunhas do processo crime instaurado contra Virgulino Ferreira, vulgo

LAMPEÃO; Natalicio de Tal, vulgo FORTALESA ou CABO VELHO; Medalha;

Maçarico ou Jurity; Gato; Moita Braba, denunciados como incurso na sancção do art.

268 comb. com o 18 §1º da Consolidação das Leis Penaes, comparecerem no dia

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16 do andante, pelas 14 horas, na sala das audiencias deste Juizo, afim de deporem

o que souberem e lhes for perguntado, sob às penas da lei. Citem-se os réus e

scientifique-se o dr. PROMOTOR PÚBLICO. CUMPRA-SE. Dado e passado nesta

cidade de Garanhuns, aos 8 de janeiro de 1936. Dactylographei e subscrevo.”

Anexado aos autos do processo encontra-se também o laudo médico de

Violência Carnal realizado em Antonia Anelina da Conceição no dia 31 de Agosto de

1935 pelos peritos Paulo Lyra e Tavares Correia, com o objetivo de apontar se

houve: a) defloramento, b) se sim, qual o meio empregado, c) copula carnal, d)

violência para fim libidinoso, e) se sim, qual o meio empregado – força física ou

outros meios que privassem a mulher de suas faculdades e assim da possibilidade

de resistir e defender-se. Este exame foi realizado na própria Delegacia de Polícia,

perante um Capitão (Cap. Miguel Cabral) e duas testemunhas e atestou que

realmente houve o crime de estupro.

Ao fim de seu relatório, o juiz Edmundo Jordão reconhece que houve o crime

e profere uma sentença condenatória aos seis acusados, designando que eles

cumpram a pena proferida na Casa de Detenção do Recife. Segue transcrito o

documento onde constam o mandado de prisão e a sentença, devidamente

fundamentada em dispositivos legais.

“JUIZO DE DIREITO DA COMARCA IM GARANHUNHS, ESTADO DE PERNAMBUCO

Mandado De Prisão

O Doutor Edmundo Jordão de Vasconcellos,

Juiz de Direito da Comarca de Garanhuns, do Estado

de Pernambuco, em virtude da lei, etc.-

Mando a qualquer um dos officiaes de justiça de minha jurisdição a quem este

for apresentado, indo por mim assignado, em seu cumprimento PRENDA ONDE

FOREM ENCONTRADOS, onde, digo, os indivíduos VIRGOLINO FERREIRA, vulgo

LAMPEÃO; MEDALHA; NATALICIO DE TAL ou FORTALESA; MAÇARICO ou

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JURITY; GATO e MOITA BRABA, que acabam de ser condemnados por este Juizo,

à pena de sete (7) annos de prisão simples, gmo máximo do art. 268 combinado

com os arts. 18 §1º e 409 da Consolidação das Leis Penaes, por concorrer as

agravantes do art. 39, digo, do §13 do art. 39 da precitada Consolidação.

Presos os criminosos e lavrados os competentes autos, sejam recomendados

na autoridade sob cuja guarda ficarem, dando-se-lhes copia do presente mandado,

do que passarão recibo. CUMPRA-SE. Dado e passado nesta cidade de Garanhuns,

comarca de igual nome, aos primeiro dia do mez de Agosto de 1936. Dactylographei

e subscrevo. “

A decisão foi, então, como pode se observar no documento supra,

fundamentada em 4 artigos da Consolidação das Leis Penaes, instituída pelo

Decreto Nº 22.213 de 14 de Dezembro de 1932, a qual funcionava, na época, como

uma espécie de Código Penal do Brasil. O primeiro artigo citado é o 268:

“Art. 268 – Estuprar mulher virgem ou não, mas honesta:PENA – de prisão cellular de um a seis annos.§1º - Si a estuprada fôr mulher pública ou prostituta:PENA – de prisão cellular de seis meses a dois annos.§2º - Si o crime fôr praticado com concurso de duas ou mais pessoas, a pena será augmentada da quarta parte.” 2

Analisando-se este artigo percebe-se a influência de algumas características

consideradas socialmente importantes naquela época. Verifica-se que o caput do

artigo acolhe como elementos do crime de estupro o fato de que este só era

materializado se a vítima fosse mulher. Também há a presunção de esta mulher ser

virgem e se não, ser honesta. O termo honesta aqui pode ser entendido como

sinônimo de casada ou viúva, já que no parágrafo primeiro separa-se uma pena

diferente – e mais branda – se o crime ocorrer contra “mulher pública ou prostituta”.

Estes elementos considerados como suportes fáticos para a concretização do

crime de estupro equiparam-se aos valores patriarcais fortemente presentes em

grande parte do século XX. Apesar de o atual Código Penal Brasileiro ser originário

do ano de 1940, a redação do artigo que trata do crime de estupro foi dada por uma

lei do ano de 2009 e consiste em uma norma muito mais abrangente e em

2 BRASIL. Consolidação das Leis Penaes. Rio de Janeiro: Jornal do Comércio Rodrigues &C, 1933, p. 128.

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consonância com o contexto social contemporâneo. O atual artigo, o 213, afirma que

é crime de estupro “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter

conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato

libidinoso.”3

O segundo artigo referido é o 18, se encaixando no crime especificamente o

seu parágrafo primeiro: “Art. 18 – são autores: §1º - Os que directamente resolverem

e executarem o crime”4, por isso, todos os seis acusados foram condenados, já que

todos eles participaram de alguma maneira do crime de estupro contra Josepha e

Antonia.

O artigo 409 diz que:

“Emquanto não entrar em inteira execução o systema penitenciario, a pena de prisão cellular deve ser cumprida, como a de prisão com trabalho, nos estabelecimentos penitenciarios existentes, segundo o regimen actual; e, nos logares em que não os houver, será convertida em prisão simples, com augmento da sexta parte do tempo.”5

Este terceiro artigo refere-se aos requesitos que devem ser utilizados para

determinar o local onde os sentenciados devem cumprir pena; no caso, como já

mencionado, o local escolhido foi a Casa de Detenção do Recife. Esta Casa

funcionou até 1973 e hoje se tornou a Casa da Cultura de Pernambuco. O quarto e

último artigo trata das circunstâncias agravantes e, na decisão, foi utilizado seu

parágrafo 13: “Ter sido o crime ajustado entre dois ou mais indivíduos.”6 Assim

sendo Lampião, Cabo Velho, Maçarico, Gato, Medalha e Moita Braba, foram

sentenciados a 7 anos de prisão celular pelo estupro de Josepha e Antonia;

sentença esta agravada pelo crime ter sido cometido por mais de um indivíduo.

3. O Cangaço

O cangaço foi um movimento caracterizado como banditismo social que

vigorou entre as últimas décadas do século XIX e a primeira metade do século XX

pelas áreas do sertão nordestino brasileiro.A prática do cangaço está associada a 3 BRASIL. Código Penal. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm. Acesso em: 9 de Junho de 2016. 4 BRASIL. Consolidação das Leis Penaes. Rio de Janeiro: Jornal do Comércio Rodrigues &C, 1933. 5Idem, Ibidem, p. 192.6Idem, Ibidem, p. 46.

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questões econômicas e sociais que sempre assolaram o Nordeste do Brasil. A onda

de secas prolongadas pela qual o Nordeste passou, como por exemplo as de 1877 e

de 1915, acabou dizimando um número significativo de pessoas, além de ser um

dos principais motivos para a migração, contribuindo também, para a evolução da

miséria entre os que lá permaneceram.

Com a proclamação da república em 1889, foi concretizada a autonomia

estatal. Controlados por uma elite reduzida, os partidos republicanos decidiam os

destinos da política nacional e fechavam os acordos para a indicação de candidatos

à presidência da república.7 Diante desse clima de caos social e econômico surgiu,

durante a República, as formas de política clientelista e coronelista, isto é, o

estabelecimento de relações de dependência direta entre a população humilde e

miserável com os grandes proprietários de terras dessas regiões. O termo “república

dos coronéis” então, refere-se aos coronéis da antiga guarda nacional, em sua

maioria, proprietários rurais com base local de poder, uma relação resultante da

desigualdade social, da impossibilidade de os cidadãos efetivarem seus direitos e da

precariedade ou inexistência de serviços assistenciais do Estado.8

Diante desse contexto, vale trazer alguns conceitos a respeito de justiça, para

melhor compreender as razões para o surgimento desse movimento. Baseando-se

na ideia de que a justiça é uma aspiração emocional, suscetível de inclinar os

homens segundo diversas direções9 e na de que nenhum homem pode sobreviver

numa situação em que a justiça, enquanto sentido unificador do seu universo moral,

foi destruída10, o surgimento de movimentos como o cangaço é mais que

compreensível, tendo em vista que, se tratando dos poderes públicos, eles sequer

tentavam realizar alguma especial de melhoria para esses pobres do campo. 11

A condição social e econômica do homem do sertão acaba o compelindo a

cometer delitos (ao ver do sistema político/social). Contra a fome e a miséria que

7 FAUSTO, Boris. História do Brasil. 14ª edição. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2013. P. 2258 FAUSTO, Boris. História do Brasil. 14ª edição. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2013. P. 2269 REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 27ª edição. São Paulo: Saraiva, 2002. P. 37410 FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito. 6ª edição. São Paulo: Atlas, 2011. P. 328.11 BARROS, J. S. de. A geografia do cangaço: o território de Lampião expresso pela Geografia Cultural. 2010. 45f. Trabalho de Conclusão de Curso (Especialização em Geografia e Território: Planejamento Urbano, Rural e Ambiental) - Universidade Estadual da Paraíba, Guarabira, 2010.

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aumentam com a seca, manifestam-se dois tipos de reação da parte dos pobres do

campo: A formação de grupos de cangaceiros que lutam de armas nas mãos,

assaltando fazendas, saqueando comboios e armazéns de víveres nas próprias

cidades e vilas (como por exemplo, os bandos de Lampião em Pernambuco e o de

Jesuíno Brilhante na Paraíba e no Rio Grande do Norte); e a formação de seitas de

místicos – fanáticos – em torno de um beato ou conselheiro para implorar dádivas

aos céus e remir os pecados, que seriam as causas de sua desgraça (como por

exemplo, o caso de Canudos).12 Logo, fica claro que o cangaço e o fanatismo

pareciam então, a “única alternativa” diante de tantas dificuldades.

Virgulino Ferreirada Silva, o Lampião, nasceu em 1897, na Fazenda

Ingazeira, situada no município de Vila Bela (hoje, Serra Talhada), no sertão de

Pernambuco. Adentrou no cangaço no início do século XX logo após o assassinato

de seu pai devido a conflitos familiares. O orgulho e a questão da honra no sertão

nordestino sempre foram muito fortes e, uma vez que não havia resposta imediata

da justiça – como visto anteriormente – os sertanejos faziam justiça com as próprias

mãos respondendo as suas indignações,13 caracterizando assim, uma forma de

direito alternativo diante de uma questão de inacessibilidade à justiça como será

melhor explicado adiante.

Tomado por um sentimento de injustiça, Lampião forma o seu bando e sai

pelo sertão nordestino saqueando o comércio, as fazendas e matando sem temor,

como forma de se vingar e sobreviver a dor que tomara conta de si. O fato de ser

conhecido por todo o Brasil apenas alimentava o seu ego.14 Ou seja, o que começa

como uma reação à falta de acesso à justiça – mesmo que em forma de uma

organização criminosa – acaba atraindo pessoas que se juntam aos bandos não

para reivindicar seus direitos, mas devido status social que o cangaço adquiriu no

sertão, chamados de justiceiros que ora eram amados e ora temidos.

Assim, o que surge como uma forma de direito alternativo – mesmo se

tratando de uma forma contra legem – acaba se deturpando, ocasionando situações

12 HOLANDA, Lúcia Maria de Souza. Lugares de memória: Jesuíno Brilhante e os testemunhos do Cangaço nos Sertões do Oeste Potiguar e fronteira paraibana / Lúcia Maria de Souza Holanda. -- João Pessoa : [s.n.], 2010. 13 TELES, Fátima. O cangaço, o latifúndio e as oligarquias. 12 de setembro de 2014. Disponível em: < http://www.vermelho.org.br/noticia/249409-11 > Acesso em 11 de junho de 2016.14TELES, Fátima. O cangaço, o latifúndio e as oligarquias. 12 de setembro de 2014. Disponível em: <http://www.vermelho.org.br/noticia/249409-11> Acesso em 11 de junho de 2016.

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como as da analisada no processo (o crime de estupro). No processo analisado,

temos seis membros da equipe de cangaço que possuía atividade no Nordeste

brasileiro, liderada por Lampião sendo acusados de um crime de estupro contra

duas filhas de um agricultor na cidade de Garanhuns. O sentimento de injustiça

desses indivíduos à margem da sociedade toma grandes proporções e,

ironicamente, certas vezes acaba piorando a situação de outros que também se

encontram à margem – como no caso visto no processo.

Ainda assim, pode-se dizer que o cangaço foi um movimento social – de

cunho banditista – que surge como um grito de justiça social em decorrência da

desigualdade social e da inacessibilidade à justiça no período das últimas décadas

do século XIX até primeira metade do século XX. Ou seja, o cangaço nada mais é

do que um fruto do contexto sócio-político-econômico do Brasil nesse período.

4. Acesso à Justiça

A ideia de direito, atualmente considerada como uma ferramenta de solução e

prevenção de conflitos provocados pelo homem, manifestou-se, originalmente,

desde Heráclito, no que ficou conhecido como sua teoria de existência de uma “lei

natural” essencial ao logos universal15, desenvolvendo-se, progressivamente, em

maiores níveis de complexidade e diferentes significados, até chegar,

conclusivamente, à tal teoria que se tem hoje.

Antes de mais nada, é interessante destacar que o direito que se conhece

hoje, pois, para alcançar tal ideal de remédio aos percalços sociais, leva em conta a

divisão entre o certo e errado, i. e., entre o moral e imoral particular a cada

sociedade que ele se desdobra. O conceito moral das ideias, pois, estabelecido de

acordo com a definição dogmática do que é honroso e ordinário para cada cultura,

influencia diretamente na formação do direito de cada povo, uma vez que, de acordo

com tal concepção de moral, rege-se normas que regularão o comportamento dele a

fim de ratificar tal ideia dogmática de ética social. Pode-se dizer, portanto, de acordo

com tal perspectiva, que o direito, instrumento de contenção de combates, funciona,

15ADEODATO, João Maurício Leitão. Ética e retórica: para uma teoria da dogmática jurídica. São Paulo: Saraiva, 5ª ed, 2012, P.19.

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através das normas relativas a cada povo, como um reflexo, i. e., um fruto do

espírito do povo, o que chama-se de Volksgeist16.

O universo do direito, nessa perspectiva, se propõe a ratificar os preceitos

culturais, as necessidades e as aspirações do povo a que versa. Isso se autentica

através da necessidade de se fundamentar uma ampla acessibilidade física ao

judiciário, à jurisdição –em um sentido tutelar- e, consequentemente, à justiça, de

maneira que quando essa representação não se legitima, surgem formas

alternativas de validá-la, a exemplo do cangaço, como já explanado na primeira

parte do artigo.

Essa inacessibilidade à justiça, é interessante destacar, se desdobra em

diversas consequências negativas à busca da legitimação da equidade, cabendo, de

uma maneira geral, explaná-las. Tal falta de representação dos interesses da

sociedade como um todo, pois, não bloqueia de uma maneira absoluta o sentimento

do direito subjetivo dos indivíduos, já que sua subsistência independe da positivação

-através de um código e, consequentemente, legitimação do mesmo- do direito

objetivo, despertando, como já dito (seja devido à falta total de uma legislação que

vise os interesses de uma parcela da população ou devido à falta de execução da

mesmo), a necessidade de legitimar essas aspirações sociais através de vias não

convencionais.

O direito alternativo, assim, nessa tentativa de consagrar os anseios

populares daqueles que não atingiram sua homologação através do Estado, se faz

muito comum, sendo, pois, expresso sob diversas formas. Uma das consequências

mais atuais e interessantes de tamanha falta de representatividade e acesso à

justiça é a formação do PCC (Primeiro Comando da Capital), maior organização

criminosa do país, na atualidade. A facção surge sob um contexto de violência e

sucateamento excessivo nos presídios paulistas, em que, para lutar contra tal

opressão penitenciária, um grupo de oito homens encarcerados se juntam e criam o

partido em 1993, na prisão de Taubaté17.

Com o passar do tempo, o PCC foi se expandindo e passando a ganhar cada

vez mais espaço no cenário nacional. Inicialmente criado por oito indivíduos, o 16ADEODATO, João Maurício Leitão. Ética e retórica: para uma teoria da dogmática jurídica. São Paulo: Saraiva, 5ª ed, 2012, P.21.17Facção criminosa PCC foi criada em 1993. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u121460.shtml. Acesso em 08 de junho de 2016.

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partido se potencializou de uma forma que ganhou um significado muito mais político

do que quando começou sendo, dessa maneira, a maior máfia brasileira da

atualidade, defendendo, nesse sentido, uma gestão que, através do crime

organizado, busque ratificar ideais não legitimados pelo próprio Estado, i. e., de

“Paz, Justiça, Liberdade e Igualdade”4. A ideia, assim, é que a população periférica,

financiada pelo dinheiro do tráfico de drogas, sequestros, assaltos e afins, desça o

morro, sob a organização do PCC, e assuma seus direitos por uma violência ao

sistema, já que o próprio complexo não se faz capaz de garanti-los18.

Outro exemplo interessante das consequências dessa inacessibilidade da

justiça, vale ressaltar, é o direito próprio dos índios. A população, considerada a

primeira a habitar as fronteiras geopolíticas que hoje fazem parte do Brasil, sempre

se organizou sob uma forma própria de sistema, em que, com a colonização

portuguesa, instaurou-se um pluralismo jurídico antropológico, i. e., a coexistência

de dois sistemas jurídicos, o do índio e o do colonizador. Os índios, nesse sentido,

foram considerados, junto com sua instituição, primitivos, sendo massacrados e

amplamente combatidos.

Foram, nesse sentido, após largo genocídio da etnia, socialmente ignorados,

ou seja, tratados como fantasmas, de maneira que não possuíram, por parte do

Estado, nenhuma garantia de ratificação de suas aspirações, bem como qualquer

acessibilidade estatal a qualquer noção de justiça, dando espaço, pois, à

emergência do direito alternativo como única via de legitimação de seus direitos

subjetivos.

O cangaço, ainda no tangente às consequências da inacessibilidade à justiça,

como já dito, também se caracteriza como um exemplo de um direito alternativo,

valendo salientar que, sob forma de uma organização criminosa, buscava,

essencialmente, uma homologação de reivindicações sociais negadas pelo governo.

A inacessibilidade à justiça, portanto, acontece graças à repressão e ao

descaso do Estado às minorias, podendo acarretar na formação de desde um

pluralismo jurídico a organizações criminosas que, de uma maneira ou outra,

buscam ratificar as aspirações populares.

18SANTANA, Aline Guimarães Matos. Inacessibilidade à justiça e o fortalecimento das organizações criminosas. Disponível em: http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=6550#_edn2. Acesso em 08 de junho de 2016

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Assim, o governo, quando não atinge todas as pretensões sociais, ainda que

de maneira substancial, encontra percalços relevantes a toda a população, de uma

maneira geral. Isso porque o Estado, por não atingir os preceitos e direitos sociais

básicos contemplados no artigo 6º da Constituição Brasileira de 1988 -i. e., o direito

àeducação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, lazer, segurança, previdência

social, proteção à maternidade e à infância; e à assistência aos desamparados19-,

forma uma conjuntura em que a marginalização e o roubo se caracterizam como

uma das exclusivas –ou única – configurações que possibilitam assegurar tais

necessidades básicas ao indivíduo, aumentando, de forma significativa, a

criminalidade e, com isso, reduzindo a qualidade de vida, de uma maneira geral, do

corpo social.

Tais sistematizações são, vale lembrar, formadas sob uma distância do

Estado. Isso faz com que elas organizem suas próprias regras e, como

consequência, coloquem a população em risco, já que essa se torna,

eventualmente, refém desses mesmos regulamentos. Exemplo disso é, v. g., os

inúmeros crimes cometidos pelos cangaceiros -como roubos, saques e estupros-

que, de acordo com suas concepções morais, julgavam –diferentemente da

população em geral – banais e, com isso, os praticavam e não eram, na maioria das

vezes, penalizados por eles, já que o governo não tinha controle sob tal grupo.

O direito alternativo, quando se faz organização criminosa, entretanto, é

amplamente perseguido e, porém, muito difícil de ser reprimido, o que se desdobra

em uma guerra do Estado aos direitos alternativos em questão. Isso porque tais

organizações ameaçam, além da autonomia estatal –já que, nos locais onde

operam, seu regulamento é muito mais respeitado que o do próprio governo-, a

própria segurança da sociedade em geral, já que praticam-se crimes condenáveis e,

portanto, puníveis. São, entretanto, organizações clandestinas e difíceis de serem

monitoráveis, já que, como alternativos ao Estado, fogem de seu rastreamento, o

que forma uma verdadeira caça, pelo governo, às organizações criminosas.

Cabe concluir, nesse sentido, que a inacessibilidade da justiça através do

Estado faz com que a população busque legitimá-la por meio de outras vias, i. e., do

19GONÇALVES, Adriana Rodrigues. Direitos sociais: direito à moradia. Disponível em: http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=12892&revista_caderno=9. Acesso em 08 de junho de 2016.

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direito alternativo. Isso, muitas vezes, resulta em organizações criminosas, já que

uma das únicas formas de se garantir tais reivindicações é através da ilicitude, que

representa uma normalidade para aqueles que a cometem, já que não possuem

nadaa perder ao fazê-lo, e um decréscimo de qualidade de vida daqueles que são

vítimas dessas ações.

A sociedade quer paz, mas paz não é apenas vestir-se de branco e fazer caminhadas de curta duração, estiloself promotion. O governo ainda não aprendeu que se trata de uma sincronia de ações. A maior parte dos chamados que o centro de comunicações da polícia recebe são de natureza social. Periferia liga pedindo viatura porque ambulância não vai buscar doente. Mulheres dão à luz no carro da polícia, que em alguns bairros só aparece depois que um fato grave aconteceu. É a ausência do Estado.20

Assim, se as organizações criminosas, em um sentido de ratificação do direito

alternativo, são provocadas pela ausência do Estado, a única forma de evitar tais

vias sistemáticas é tornar o governo mais ativo em relação às demandas sociais e

não apenas um membro passivo que assiste às reivindicações do povo e não faz o

necessário para homologá-las.

20SOUZA, Percival de. O Sindicato do Crime. São Paulo: Ediouro, 2006, P. 229.

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