cangaço: insurgentes do nordeste. origens no século xix

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Universidade de São Paulo Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas Cangaço: Insurgentes do Nordeste Origens no Século XIX História do Brasil Independente I Profª.Drª. Zilda Iokoi Grupo: Cangaceiros da Morte Seca Lucas Vecchi (8576630) Lucas Padula Miranda (8576011) Rodney Fouto (1816673) Felipe Frazão Rodolfo Machado Victor Doutel Pastore (7619600) 2015/1 - Noturno São Paulo 2015

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Page 1: Cangaço: Insurgentes do Nordeste. Origens no Século XIX

!Universidade de São Paulo

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas

!!!!

Cangaço: Insurgentes do Nordeste

Origens no Século XIX

!!!!

História do Brasil Independente I

Profª.Drª. Zilda IokoiGrupo: Cangaceiros da Morte Seca

Lucas Vecchi (8576630) Lucas Padula Miranda (8576011)

Rodney Fouto (1816673) Felipe Frazão

Rodolfo Machado Victor Doutel Pastore (7619600)

2015/1 - Noturno !!

São Paulo 2015

Page 2: Cangaço: Insurgentes do Nordeste. Origens no Século XIX

Introdução ao professor

O material a seguir foi produzido por alunos do curso de História do Brasil

Independente I, da FFLCH-USP, ministrado pela professora Zilda Iokoi, no primeiro

semestre de 2015.

Trata-se de um texto didático voltado aos alunos do ensino médio, e pode

auxiliar o professor na abordagem sobre alguns dos elementos mais presentes e com

causas complexas de nossa história: a violência, corriqueira em bairros da periferia e

comunidades em situação de risco social, e o mandonismo local, que antigamente se

baseava no voto de cabresto, e atualmente mantém o status quo existente no Brasil,

numa situação que tem mais permanências do que rupturas. Se antes havia o coronel

latifundiário e sua milícia de jagunços, convertidos em guarda nacional, hoje

sobrevivem latifundiários com imenso poder político, fortalecidos por emissoras de

rádio e televisão e líderes religiosos corrompidos, que controlam grandes contingentes

de votos através de novas formas de cabresto, diferentes da original coerção violenta

através de ameaças intercaladas à concessão de favores.

O fenômeno social escolhido para tratar de tais questões é o cangaço e suas

origens históricas. Apesar de seu apogeu ser mais facilmente identificável no início do

século 20, com o caso do célebre Lampião, o cangaço é um movimento bem mais

amplo, e suas origens remontam ao século 19, embora o termo já existisse no século 18.

Com características do que o historiador Eric Hobsbawn definiu como banditismo

social, foi o resultado de diversos elementos que gravitam entre dois pilares centrais de

nossa história: o coronelismo latifundiário e escravista, combinado a violência,

costumeira em boa parte dos sertões brasileiros.

No caso específico do sertão nordestino, a pecuária engendrou a “Civilização

do Couro”, uma das bases mais sólidas de boa parte da cultura regional, em que um dos

elementos mais representativos é o vaqueiro. Tal personagem usava uma verdadeira

armadura de couro endurecido, de forma a aguentar, vaqueiro e montaria, também

protegida por peças de couro, o trabalho de capturar o gado que se embrenhava na

caatinga, fugindo em correria do vaqueiro a cavalo; tal prática originou, por outro lado,

a cultura da vaquejada no nordeste brasileiro, e muitos de seus traços estão presentes na

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música, na alimentação, nas festas e folguedos, e nos versos de cordel, cantigas

populares e tradições orais.

Se o vaqueiro era um personagem central no universo da pecuária nordestina,

coadjuvantes de crucial importância histórica também protagonizavam os

acontecimentos do sertão, como o jagunço, muitas vezes capanga de um latifundiário, e

o cangaceiro, indivíduo que se revolta contra um universo de coisas estabelecidas, tendo

a violência como principal elemento que compunha sua revolta.

Escolhemos o cangaço como tema porque é um elemento histórico muito

presente na cultura brasileira. Certamente os alunos do ensino médio já ouviram

histórias sobre Lampião e seu bando, se não sobre outros cangaceiros que existiram, ou

sobre o cangaço, de forma geral.

Mas, embora a palavra “cangaço” seja amplamente conhecida, não sabemos se

seu significado também seja. Também temos dúvidas a respeito da origem histórica do

cangaço, se é razoavelmente conhecida, ou se pairam sobre essa definição as mesmas

dúvidas e equívocos amplamente difundidos sobre a história brasileira, e que o sistema

de educação tradicional tem tantas dificuldades em esclarecer.

Esperamos que a análise da história desse movimento, que tem algumas de

suas causas e características ainda presentes na sociedade brasileira, possa ser de

utilidade para explicar aos estudantes do ensino médio, por exemplo, as origens

históricas da violência presente no cotidiano de grande parte da população brasileira,

que ainda sofre a pressão política para eleger representantes que, uma vez eleitos,

defendem apenas os interesses da elite a que fazem parte, mantendo a maior parte da

população brasileira ainda relegada à própria sorte. Em razão desse abandono, eclode a

violência, e mais diversas outras formas de resistência contra o sistema estabelecido,

que hoje se encontram em movimentos sociais e manifestações culturais em geral.

Partimos do princípio de que os homens não nasciam cangaceiros, e sim se

tornavam cangaceiros, talvez não por própria escolha, mas como a reação básica de

indivíduos pobres frente a um contexto de violências cotidianas e injustiças políticas e

sociais, e que não conseguiam (ou não queriam) sobreviver em tal meio sem se esquivar

da prática da violência. Logo, a violência dos grupos cangaceiros deve ser entendida

mais como uma reação a determinados estímulos, do que uma prática gratuita e

Page 4: Cangaço: Insurgentes do Nordeste. Origens no Século XIX

desenfreada, embora alguns casos reais ou exagerados, e outros ainda possivelmente

inventados, contenham, ao olhar atual e integrado ao processo educacional de hoje em

dia, doses assustadoras de crueldade sanguinária . Todavia, é importante salientar que os

atos mais extremos não eram praticados apenas por cangaceiros: as milícias de

jagunços, ao mando de coronéis, também realizavam atos de crueldade contra sertanejos

indefesos, assim como os batalhões da guarda nacional e, mais tarde, as “volantes”,

como eram denominadas as tropas policiais que percorriam os sertões à caça de

cangaceiros. A violência policial não é, portanto, exclusividade das comunidades

carentes e bairros pobres de hoje em dia, como parece nos jornais. É prática

institucionalizada desde a origem da guarda nacional, e que permanece nas polícias

militares de todos os estados brasileiros.

O professor tem, com o material que oferecemos, a oportunidade de trabalhar

um período muito importante de nossa história – que corresponde ao segundo reinado,

ultrapassando boa parte do século 19 – e como nesse período se formaram as bases para

o cangaço, oferecendo aos alunos a oportunidade de alguma reflexão a respeito da

violência, institucionalizada e criminal, que hoje corre paralela à população mais sujeita

a sofrer com essa chaga, que, não por simples coincidência, é a mesma que sofria com a

truculência dos jagunços dos coronéis e das volantes, e com a revolta de cangaceiros,

quando descontrolada e em fúria.

!!!!!!!!!!!!

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Cangaço Insurgente!

Introdução / Epígrafe

“(…) quanto ao negro Cosme, como bem previ e te anunciei, foi metido a ferros na cadeia, aqui, na capital. Garantem os cabanos que seguirá em breve para o Itapicuru onde será solenemente enforcado em presença de numerosos escravos da região para que o seu suplício sirva de exemplo aos que ainda sonham fugir das fazendas para os quilombos. Bela anistia, meu caro Censor! E dizerem por aí que ela foi a morte do cangaço! Do cangaço? Não: da Balaiada. O cangaço é a alma bravia dos sertões. E as almas bravias não se dominam pela força; domam-se só pelos influxos do ensino e da fé!”

Carta de Marta Alonso Alvarez de Castro Abranches, refletindo sobre o legado da Balaiada.

(em “Balaiada: construção da memória histórica”, de Maria de Lourdes Janotti) !“Essa nossa guerra é apenas uma data nos livros de História. Ninguém conta que Caninana, Sete Estrelas e Raio escaparam e ficaram vagando pelos sertões e aí nasceu o Cangaço. Foi o jeito que a turma que não é de abaixar a cabeça achou pra continuar lutando.”

Uma História de Amor e Fúria !![Para início do presente material didático, que discutirá reflexivamente sobre o Cangaço

e seus personagens, sugerimos a exibição do filme Uma História de Amor e Fúria, de

Luiz Bolognesi (2013) - uma discussão sobre o “insurgente” na História do Brasil. O

filme pode ser encontrado na internet em: https://www.youtube.com/watch?

v=wdkqo_M1gw8

Caso não haja tempo pra tal, deve ser exibida ao menos a parte que diz respeito à

Balaiada (18m15s - 36m00s).]

!Quem nunca ouviu falar de Lampião e seu bando? Quem nunca ouviu a palavra

“cangaceiro”? Que personagem é esse e qual sua importância para nossa história?

!O cangaço, movimento de luta das populações pobres no sertão nordestino, não foi um

fenômeno isolado de insurgência contra a ordem dominante. Tal movimento foi um dos

meios que as populações oprimidas e exploradas encontraram de buscar sua

sobrevivência, reagindo aos estímulos do meio social em que viviam. Outras situações

Page 6: Cangaço: Insurgentes do Nordeste. Origens no Século XIX

que podem ser apontadas nessa mesma lógica são, por exemplo, as fugas e rebeliões de

escravos ou as revoltas armadas contra o poder central. Entre as últimas está a Balaiada,

de 1838. Essa revolta, ocorrida no sul do Maranhão e próximo ao Piauí, é considerada

por muitos uma espécie de marco para o fortalecimento do cangaço, tal como ocorreu

ao longo do século 19.

Nessa revolta, alguns grupos da elite local planejaram se separar do restante do Brasil,

pois achavam que seus interesses particulares não eram bem atendidos pelo governo

central. Com sua influência e poder na região, essas elites mobilizaram grande parte da

população pobre para lutar por eles. Porém, em pouco tempo essa população se rebelou

também contra as elites, quando perceberam que suas prioridades, muitas vezes a

própria liberdade, nada valia na disputa entre as classes dominantes. Uniram-se então

homens pobres livres e escravos fugidos (que se encontravam refugiados em 5 grandes

quilombos do interior), sob o comando de um líder negro chamado de Cosme. Esse

grupo conseguiu tomar a cidade de Caxias, segunda maior da região; localizada no

Maranhão, submetida à capital, São Luís, distante mais de 350 quilometros. Ficava, no

entanto, muito mais próxima de Teresina, capital do atual estado do Piauí, a pouco mais

de 50 quilômetros de distância.

A partir desse momento, as elites até então rebeladas recuaram e preferiram se aliar

novamente com o governo central brasileiro, para não perderem seus privilégios e

posses. No fim, houve uma violenta repressão aos grupos insurgentes e a ordem foi

restaurada, conforme podemos perceber na animação Uma História de Amor e Fúria. O

negro Cosme, entre outros, foi enforcado e os escravos sobreviventes voltaram ao

cativeiro.

Esse episódio, é apenas um dos muitos que podem nos mostrar como o século 19 no

Brasil não foi um período histórico pacífico. Numa sociedade extremamente desigual,

autoritária e violenta, foi quase natural o surgimento de movimentos também violentos

vindos das classes mais baixas, como uma “resposta-bumerangue”, ou seja, reação à

exploração vinda de cima, das classes dominantes. Assim, podemos dizer que a

estrutura social brasileira criou seus insurgentes.

Ao longo desse material, explicaremos o momento histórico em que se encontra o

cangaço, para podermos refletir suas reais causas e pensar o que foi esse fenômeno, sem

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simplesmente dizer que foi “coisa de bandido”. Para isso, precisaremos investigar toda a

pobreza da sociedade e os fatores que a causaram, os quais vem de uma estrutura de

terras baseada na escravidão e na exportação agrícola e de uma estrutura política e

jurídica autoritária que não dá voz e nem atende às necessidades dos mais pobres. Em

seguida, estudaremos o cangaço de forma mais profunda, conhecendo alguns de seus

personagens e histórias marcantes, com foco no século 19, período da História do Brasil

conhecido Segundo Reinado.

!Mas afinal, o que significa esse “cangaço”? Que palavra é essa?

!Diz-se que a origem do termo vem de “canga”, uma peça de madeira usada para prender

os bois a uma carroça. É uma metáfora que retrata o sobrepeso que o cangaceiro

carregava, “andava debaixo do cangaço”. Aos poucos, porém, o termo passa a designar

um estilo de vida, nômade, saqueador, dos que vagam pelos sertões. A palavra já

começa a adquirir um sentido negativo, que logo se desenrola para um sinônimo de

“bandido”.

Porém, esse personagem da história não é considerado um bandido por todos. Para

muitos dos pobres dos sertões, que compartilhavam da mesma pobreza que eles, os

cangaceiros representavam o enfrentamento contra os coronéis - ricos e donos de muitas

terras, que exploravam a população. Passaram a ser vistos com qualidades ideais, como

valentes, justiceiros e defensores dos pobres. Muitos na literatura e nas tradições até os

descreveram como “agitadores sociais” e “revolucionários”. Claro que é um exagero,

pois os cangaceiros não tinham um projeto politico de futuro, como os revolucionários,

para a sociedade, nem buscavam uma transformação das estruturas da sociedade.

Estavam mais preocupados em sobreviver no hostil e injusto cenário brasileiro da

época, afrontando os opressores e exploradores. Mais adiante, pensaremos mais sobre

os significados dos cangaceiros para a sociedade.

Antes de seguir, vale afirmar que na figura dos cangaceiros se misturam três tipos de

banditismo, pensados pelo historiador Eric Hobsbawm. O primeiro é o banditismo de

vingança de sangue, feito de uma família contra a outra por motivos pessoais, que

incluem a honra familiar e individual a ser defendida. O segundo, é o banditismo puro

Page 8: Cangaço: Insurgentes do Nordeste. Origens no Século XIX

ou simples. Trata-se do bandido que rouba para si, assaltando à mão armada. É um meio

de vida encontrado em sociedades onde há pouca abertura e oportunidades de vida

decentes para todos. Por fim, temos o banditismo social, o caso típico do lendário

“Robin Hood”. É a atitude bandida feita como protesto, nem sempre consciente, às

injustiças e hierarquias da sociedade, é o “roubar dos ricos para dar aos pobres” da

lenda. Como veremos, nas histórias dos cangaceiros que analisamos, os três elementos

estão presentes.

!Agora é hora de adentrar nesse universo quente e seco, onde muitas vezes o gado

esquelético apenas tinha para comer os mandacarus espinhosos da caatinga, em que os

poderosos dominavam utilizando tal violência que essa se tornava uma das

características mais marcantes dos sertões nordestinos. Vamos conhecer um pouco do

Brasil do século 19 para conhecer verdadeiramente o cangaço.

Depois, tente perceber que certos elementos não mudaram completamente, presentes

ainda em diversas dimensões do cotidiano e da política do Brasil de hoje.

!!!!!!!!!!!!!!!!

Page 9: Cangaço: Insurgentes do Nordeste. Origens no Século XIX

1. Contexto econômico do Brasil imperial

Para melhor entender a organização dos cangaceiros, é preciso compreender um

pouco mais sobre a organização econômica e de poder na sociedade na qual esses

personagens surgem e estão inseridos. Se os cangaceiros eram por um lado encarados

como violentos, foras-da-lei e bandidos por parte de certos grupos sociais; em outras

camadas, geralmente mais populares, eram conhecidos como “justiceiros”. Por que isso

ocorria? O contexto do surgimento do cangaço, na época do Brasil imperial, pode

ajudar-nos a entender essa questão.

!Estrutura econômica e fundiária

À época do surgimento do cangaço, o Brasil era um país com estrutura

econômica agraria e exportadora, ou seja, o Império tinha como principal fonte

econômica a agricultura, baseada em imensas unidades produtoras, as fazendas movidas

pelo trabalho de escravizados africanos. Logo após a independência, durante a década

de 1820, os principais produtos exportados eram o açúcar, o algodão, o café, embora o

algodão tenha sido bastante restrito, se comparado às outras culturas agrícolas. Após a

segunda metade do século 19, porém, o café passou o açúcar, representando muito mais

da metade do percentual de produtos que eram vendidos ao exterior.

Essa economia agrária leva ao desenvolvimento de alguns fatores que são

consequentes a essa forma de economia, a saber: o latifúndio, a escravidão, o

mandonismo e o clientelismo.

!Organização da terra

Já durante a colônia, a ordem econômica do Brasil era a agricultura voltada para

a exportação. Disso derivava que os mais ricos, homens brancos, geralmente possuíam

extensas quantidades de terras (latifúndios) aonde produziam, graças aos seus grandes

números de escravos – e posteriormente de imigrantes que passaram a trabalhar nas

fazendas –, os produtos agrícolas que revendiam para os mercados europeus.

A concentração de terras nas mãos de pouquíssimas famílias gerava uma grande

concentração de riquezas nas mãos de poucos, uma vez que era a partir da terra que se

desenvolvia a economia. Assim, no Brasil quase não houve espaço para os pequenos

Page 10: Cangaço: Insurgentes do Nordeste. Origens no Século XIX

produtores e para a agricultura familiar. E nem para a classe media. Assim, o espaço

restante aos homens livres e pobres, dentro de um sistema baseado no trabalho escravo

em larga escala, estava mais restrito ao serviço para os latifundiários, de quem muitas

vezes dependiam. Como os latifundiários cobravam a fidelidade dos seus dependentes,

dizia que “mandava” nas atitudes do homem livre pobre, que se sentia na obrigação de

aceitar…

A charge abaixo, de Angeli, satiriza o problema da concentração de terras:

!Para pensar como ocorreu a concentração de terras nas mãos de poucos

proprietários no século 19 é preciso estudar uma lei importante desse período, que ficou

conhecida como Lei de Terras de 1850. Essa lei agravou a situação de desigualdade no

campo.!

O ano de 1850 é considerado um marco na história do Brasil, no que se refere

ao futuro da escravidão, do sistema que baseava a economia agroexportadora. Nessa

metade do século 19, começaram a se intensificar as pressões inglesas – e do

movimento abolicionista brasileiro, que a partir de então fortalece cada vez mais – pelo

fim da escravidão. Logo, os latifundiários escravistas, que influenciavam muito o

governo do 2º Reinado, implantaram uma lei que dificultava demais o acesso à

propriedade da terra, meio de produção de renda e subsistência para a imensa maioria da

população, desprovida de posses, ou seja, de dinheiro para comprar a terra.!

Page 11: Cangaço: Insurgentes do Nordeste. Origens no Século XIX

A Lei de Terras de 1850!

Antes dessa lei no Brasil, a terra era considerada propriedade da Coroa, que

concedia a permissão de uso para as pessoas, mas não a posse. Assim, ninguém era

dono da terra e não podia vendê-la ou comprá-la. Os senhores de engenho, por exemplo,

tinham permissão para plantar e estabelecer seus negócios nas terras da Coroa, mas não

eram os donos. Outra forma de conseguir a terra (já que havia grande quantidade

disponível) era simplesmente ocupar, mas para isso, a pessoa, muitas vezes, tinha que

enfrentar os índios hostis.

Com a Lei, era regularizada a posse de terra, como propriedade privada. Todas

as terras não usadas ficavam para o Estado, que as venderia caro. Eram chamadas de

“terras devolutas”. Temos aí o primeiro fator de exclusão dos mais pobres, o alto preço

da terra pública.

Com o dinheiro desse negócio o governo poderia estimular a imigração de

trabalhadores (a escravidão nessa época estava ficando mais difícil de manter, o tráfico

de escravos já estava proibido... era preciso encontrar outra fonte de mão de obra!) que

não teriam terra e nem dinheiro pra comprá-las, sendo obrigados a trabalhar nas grandes

fazendas. Além disso, agora era possível que as pessoas registrassem sua terra e a

legitimassem como propriedade, pedindo a demarcação de seu território e pagando um

registro. Isso permitiu grandes fraudes: com documentos falsificados, os latifundiários

legitimaram a posse de enormes quantias de terra.

No mesmo período os Estados Unidos também discutiam sua estrutura de

terras, para ocupar o Oeste do país (até então povoado por diversos povos indígenas).

Porém, decidiram fazer uma lei diferente: a Homestead Act, de 1862. Lá, não houve o

problema de terras que temos aqui, mas a lei não resolveu os problemas de pobreza,

embora a simples comparação entre a lei brasileira e a estadunidense demonstre que a

possibilidade aberta pela Homestead Act, aqui simplesmente não existiu. Perceba,

comparando as duas leis (na página seguinte):

!!!!

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!Ordem escravista !

Para desenvolver a agricultura, o Brasil Império continuou adotando, durante

quase toda a sua existência, a escravidão como forma de trabalho. A lógica de o

trabalhador vender a sua força de trabalho através do salário ainda não ocorria no país.

O que acontecia era que os brancos ricos, ou os que podiam, compravam os negros para

que estes trabalhassem em sua produção, embora uma análise mais cuidadosa sobre a

escravidão no Brasil demonstre que a regra não era uniforme, e diversas combinações

entre escravizados, libertos e homens livres fugissem ao que era mais comum na

sociedade de então.

A partir das novas leis: Brasil EUA

Quem podia ter terras? Quem comprasse as terras do Estado ou quem comprovasse que ocupava e usava a terra há tempos, apresentando documentos antigos, exigindo a demarcação e pagando o registro.

Qualquer família interessada em cultivar um lote que estivesse disponível. O governo repassava a propriedade por um baixo custo.

Quem podia desenvolver atividade econômica nas terras?

Todos que se tornassem donos da terra. Como era caro comprar, só quem já tinha terra antes conseguia.

Todos que recebessem a terra do governo eram obrigados a ficar nela e cultivá-la por pelo menos 5 anos.

Quais os resultados? A terra não se distribuiu entre a grande quantidade de pessoas livres e os futuros negros libertos. Pequenos proprietários perderam as terras. Sem terras, essa população teve que trabalhar em condições precárias para os grandes latifundiários. Criou-se um grande problema que dura até hoje: muitas terras na mão de poucos, muita gente sem terra nenhuma.

Quem ficou com a maior parte das novas terras do Oeste foi quem já tinha propriedades no Leste e migrou, ou os imigrantes que vieram da Europa. A lei falhou em não conseguir a migração dos pobres das cidades para as novas terras rurais disponíveis. Além disso, a chegada dos americanos no Oeste acelerou a destruição dos povos indígenas.

Page 13: Cangaço: Insurgentes do Nordeste. Origens no Século XIX

Durante o século 19, em que o Império existiu no Brasil, a escravidão foi

pouco a pouco sendo pressionada para acabar, devido a todo um contexto de luta

abolicionista, dentro e fora do país. Porém, os senhores de escravos se mantiveram

sempre muito resistentes ao fim da escravidão, recorrendo inclusive ao tráfico interno,

quando já estava proibido a importação de novos escravos da África.

Além da utilização de mão-de-obra negra e escrava, os senhores também

passaram a utilizar os imigrantes europeus, que se mudavam para o Brasil em busca de

melhores condições de vida e trabalho, como fonte de trabalho manual. Esses

imigrantes, porém, eram assalariados e tinham, no geral, condições melhores que os

escravos ainda que também fossem explorados.

Quando a escravidão de fato acabou no Brasil, em 1888, um ano antes do fim

do Império, pode-se dizer que o trabalho escravo nas plantações de café praticamente já

não era utilizado, sendo substituído quase que integralmente pela mão de obra imigrante

ou assalariada (ainda que completamente explorada).

!Mandonismo e clientelismo

Vamos agora analisar algumas das formas de mando mais próximas às

populações mais pobres, centradas principalmente na figura do dono das terras e nos

seus capangas, que ajudavam a manter a ordem exploratória no trabalho e a economia

agrária.

Pelo fato de o Brasil ter àquela época a economia baseada na agricultura, os

senhores de terra mais ricos tinham grande influência nas populações mais pobres. Eles

exerciam nesses grupos diversas formas de poder, como o mandonismo (que era

quando, através da posse de terras, o senhor exercia influência direta – econômica e

política – sobre a população que geralmente vivia dentro ou próximo às suas

propriedades) e o clientelismo (sistema de micro-relações políticas onde há a troca de

influências, ou seja: há um “patrão” que proporciona uma série de benefícios aos seus

“clientes”, de forma a sempre mantê-los em sua esfera de controle e poder).

Essas duas estruturas acabam por perpetuar uma organização social onde os

proprietários de terra sempre mantém seu poder econômico frente a uma grande

quantidade de pessoas pobres e sem terras.

Page 14: Cangaço: Insurgentes do Nordeste. Origens no Século XIX

!Incorporação das populações pobres

Depois de analisar toda essa organização da economia, pautada na agricultura,

na exploração violenta da força de trabalho e em formas de mando e poder desiguais, é

difícil afirmar que no Brasil Império as populações mais pobres tivessem qualquer

forma de inserção ou de direitos garantidos.

Porém, como já vimos com o exemplo da Balaiada, durante esse período não

faltaram revoltas populares ou formas de organização da população mais pobre e/ou

escrava contra essas estruturas de poder. Como será mais para frente abordado, pode-se

entender que o cangaço também foi uma das formas de luta encontrada por parte da

população contra essas estruturas de mando e poder centradas na organização

econômica agrária e de exploração da força de trabalho e das populações pobres.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

Page 15: Cangaço: Insurgentes do Nordeste. Origens no Século XIX

2. Violência - Elemento estrutural da sociedade !A violência era um elemento comum na sociedade do século 19 no Brasil. Ela

se manifestava de forma mais clara nas posições mais baixas da sociedade, na

truculência contra o escravo e contra a pessoa livre e pobre - posição ocupada pelos que

se tornavam cangaceiros. O cangaceiro demonstrava relativa agressividade em suas

ações. Entretanto, essa violência não deve ser vista como um aspecto natural do seu

comportamento, ela é na verdade uma reação a uma ação causada anteriormente.

A sociedade desse contexto apresentava diversos elementos que favoreciam o

surgimento da agressividade na pessoa livre e pobre. Na verdade esses elementos eram

violentos por si só, contra essa população e muitos deles se conservam até os dias atuais

no Brasil. Portanto, como uma dinâmica de ação e reação, essa violência social parte do

macro para o micro. No macro ela se dá a partir de todo o sistema político e econômico,

que impõe as suas vontades a todos que estão nas camadas mais baixas. Já no micro ela

aparece na agressividade cotidiana: nas brigas que acabam em morte, nos roubos e

saques, nos duelos, nas pequenas disputas e etc.

No que se denomina “macro”, vamos entender como o contexto em que o

fenômeno social ocorre, ou seja as estruturas que formam o universo que estudamos

agora; no que se denomina “micro”, o ponto para onde convergem todas as forças que

compõem o macro. É onde se encontra o indivíduo pobre e excluído de qualquer

participação política ou forma de alcançar níveis mais dignos de sobrevivência.

A figura abaixo expressa essa dinâmica:

Page 16: Cangaço: Insurgentes do Nordeste. Origens no Século XIX

Essa figura da pirâmide invertida da violência começando com o governo do

Império Brasileiro, um dos principais geradores de violência. Isso porque tal instituição,

representante da ordem e autoridade, impõe suas decisões de forma truculenta, muitas

vezes à custa de morte e sangue (como fez na repressão às diversas revoltas do período),

outras vezes através de leis que tiram direitos e acabam com as liberdades de setores da

população, beneficiando apenas os mais ricos.

Dando continuidade, outro gerador de violência é a estrutura econômica da

sociedade, já estudada no tópico anterior. Totalmente baseada na escravidão e na

economia agroexportadora, ela excluía os homens livres e pobres dos principais

trabalhos existentes, já que todo trabalho relacionado ao cultivo do solo era feito por

escravos. Além disso, o trabalho nas cidades era ocupado apenas por uma pequena

parcela de homens com maiores condições econômicas de empreender um negócio

próprio (artesãos, por exemplo).

Page 17: Cangaço: Insurgentes do Nordeste. Origens no Século XIX

Dessa forma, o sujeito que não pertencia a nenhuma dessas classes era excluído

socialmente. Acabava por ficar à margem nas cidades e no campo, ocupando-se de

atividades que criava ou que lhe restava. Logo, não é a toa que o cangaceiro se torne um

insurgente, um rebelde, que dentro de certos limites pode ser enquadrado como um

bandido social, devolvendo a violência contra o sistema, de forma muitas vezes

indiscriminada. Nesse ponto, a valentia e a violência se tornam valores exaltados por

essas pessoas: numa sociedade onde está melhor quem oprime e usa do outro para se

beneficiar (seja ele escravo ou um livre pobre), é só impondo poder, através da

violência, aos outros que o indivíduo consegue ter seu espaço. É devolvendo a violência

do sistema - seja para alguém igual, abaixo ou acima de sua posição social - que a

pessoa pertence a essa sociedade. Assim, a violência torna-se costumeira.

E hoje? Você considera que vive numa sociedade violenta? Seu bairro, a

comunidade em que você vive, tem violência? De que tipo ela é? Dentro do conjunto da

sociedade brasileira, você considera que algum grupo social é mais atingido do que

outros pela violência urbana? Essa violência é cometida apenas por criminosos, ou

existe participação de representantes do estado nessas ações? E na zona rural, ainda é

possível perceber elementos que tratamos até agora, ou você acha que tivemos grandes

mudanças em nossa história?

!A violência vinda de cima: Duque de Caxias

Durante muito tempo, a história tradicional serviu para preservar as estruturas

injustas do Brasil, responsáveis pelos problemas nacionais. Para tanto, criava

interpretações românticas dos acontecimentos, transformando determinados

personagens em heróis, sem que estes tivessem qualquer mérito, embora ocupassem

posições muitas vezes centrais no contexto em que vivia.

Assim é com Luiz Alves de Lima e Silva, que ficou conhecido como Duque de

Caxias, o “Patrono do Exército”. Nascido em 1803, na então Província do Rio de

Janeiro, era filho de um militar e de uma senhora de família latifundiária e escravista.

Seu pai, o marechal Francisco de Lima e Silva comandou a expedição que derrotou a

Confederação do Equador, que teve em Pernambuco seu epicentro, e foi o comandante

militar de tropas oficiais brasileiras antes da formação do exército brasileiro. Depois,

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fez parte das regências, enquanto Dom Pedro II não tinha idade suficiente para assumir

o trono. Entregou o governo do império ao padre Feijó, e tornou-se senador.

Por conta da linhagem familiar, Luiz Alves de Lima e Silva já chegou oficial

ao exército, ainda não organizado segundo os moldes atuais. Em 1839, quando a

Balaiada ameaçava a ordem estabelecida entre as províncias do Maranhão e Piauí, o

então coronel foi para lá enviado, acumulando o cargo de presidente da Província do

Maranhão. Suas tropas cercaram a cidade de Caxias, no interior do Maranhão, ocupada

pelos balaios, esperando o momento da invasão, quando massacraram boa parte dos

rebeldes.

Por conta da repressão contra a revolta popular, que tinha aspirações muito

Justas dentro de um contexto de injustiça e opressão, o coronel Luiz Alves de Lima e

Silva foi promovido, e tornou-se, sucessivamente, Barão, Conde, Marquês e,

finalmente, Duque de Caxias. Vale esclarecer que os soldados ao comando de Luiz

Alves não tinham treinamento nem disciplina, e obedeciam por conta do terror das

punições instituídas pelos oficiais; a formação dos batalhões utilizava, em larga escala,

o recrutamento forçado.

As revoltas do período regencial – além da Balaiada, ocorreram também a

Cabanada, no Pará, Revolução Farroupilha no sul do Brasil, e na Bahia, a menor de

todas, a Sabinada – ameaçaram, realmente, a unidade nacional. Para não dividir a ex-

colônia portuguesa, a repressão aos revoltosos foi extremamente violenta. No entanto,

as causas da revolta popular não foram sanadas. E, por causa de sua atuação em quase

todas essas guerras civis, Luiz Alves de Lima e Silva foi aclamado como o

“Pacificador”.

Mais de vinte anos depois, o Duque de Caxias, já idoso, comandou o exército

brasileiro, que ainda concluía seu processo de formação, na Guerra do Paraguai. Como

era o comandante do exército durante a etapa crucial da vitória que arrasou o Paraguai,

voltou ao Brasil como herói.

A visão tradicional da história já foi revista, de forma a ajustar a biografia do

Duque de Caxias à realidade em que ele não é um herói; na verdade, é um dos deveres

da história contestar a importância que se dava a tais personalidades tidas como

“heróicas”. Porém, ainda hoje o exército brasileiro mantém o culto à personalidade do

Page 19: Cangaço: Insurgentes do Nordeste. Origens no Século XIX

Duque de Caxias. Corporação que se mantém fechada ao mundo exterior, o exército

mantém uma visão excessivamente tradicional da história, e por isso boa parte da

disciplina militar dos soldados é baseada na glorificação dos heróis, entre eles o Duque

de Caxias.

Hoje, no centro histórico do Rio de Janeiro, próximo ao casarão do Marechal

Deodoro (tido pela desgastada história tradicional como o “Proclamador da

República”), se encontra um imenso monumento em homenagem ao Duque de Caxias.

Tem guarda permanente, ou seja, o tempo todo soldados armados do exército, se

revezam em turnos, zelando pelo “Panteão de Caxias”, onde estão os restos mortais do

“Patrono” do exército. Veja nas fotos abaixo:

Cabe questionar: por que um monumento tão grande? E por que a guarda permanente no local? Por que os restos mortais do Duque de Caxias não estão num cemitério?

Page 20: Cangaço: Insurgentes do Nordeste. Origens no Século XIX

Para esclarecer: todo o centro histórico do Rio de Janeiro foi construído e

reconstruído de forma a funcionar como um cenário artificial de ordem e progresso,

unidade e fausto. Enquanto tal cenário era construído de forma a consolidar todas as

injustiças que causaram os maiores problemas que o Brasil ainda enfrenta, a poucos

quilômetros e por boa parte do interior do Brasil revoltas de escravos e, após o fim da

escravidão, de pessoas simples, tentavam questionar, pela única forma que conheciam –

a violência – toda a ordem de injustiça e opressão imposta.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

Page 21: Cangaço: Insurgentes do Nordeste. Origens no Século XIX

3. Finalmente, o Cangaço!!

Cangaço insurgente! Como vimos, esse fenômeno deve ser pensado levando

em conta as características históricas do contexto socioeconômico, político e

ideológico-cultural que permitiu seu surgimento, atuação e dizimação pelas forças

policiais das classes dominantes e proprietárias que reinavam na região sertaneja do

Nordeste brasileiro.

O cangaço, da dependência inicial dos coronéis e donos da terra (e da vida

alheia), desaguou historicamente na insurgência “fora da lei” contra o mandonismo

coronelista e o latifúndio de raiz colonial para os quais, contraditoriamente, prestou seus

serviços durante boa parte do século 19. De raízes remotas, apontadas pela

historiografia especializada, seguramente, na Balaiada, uma vez fora do controle dos

coronéis da terra e de seus políticos e milícias armadas, os cangaceiros se

transformaram, na visão dominante – e, portanto, das classes dominantes – em sinônimo

de malfeitores.

A chamada “civilização do couro”, nutrida pela exploração do trabalho humano

não-escravo, e pela superexploração do gado bovino, que se alastrou ao longo dos

cursos d’água, a exemplo do Rio São Francisco, também conhecido, desde o período

colonial, como “Rio dos Currais”.

Com toda repressão que acompanha necessariamente a concentração de terras

desde as Sesmarias do período colonial agravada pela já vista Lei de Terras do século

19, diferenciou-se, por exemplo, da grande propriedade escravista voltada para o

mercado exterior, paisagem histórica que marcou e particularizou os engenhos

açucareiros nordestinos. A pecuária era uma atividade complementar de extrema

importância para o funcionamento do sistema agroexportador e escravista, sendo por

isso uma das principais atividades a qual se ocupavam os homens e mulheres livres e

pobres para a subsistência.

Assim, conforme o estudo clássico sobre Os cangaceiros: os bandidos de

honra brasileiros (1958), de Maria Isaura Pereira de Queiroz, “o boi impôs sua marca

na civilização do Sertão”, podendo ser observado “com que precisão se elabora a

civilização do couro e dos reis do cangaço”. A estrutura fundiária, que é como se

organizam, em conjunto, todas as propriedades rurais do país, e mais as características

Page 22: Cangaço: Insurgentes do Nordeste. Origens no Século XIX

específicas da atividade socioeconômica a ela vinculada e coroada na figura dos

tratadores de “boi” - incluindo o tipo de superexploração de trabalho utilizado, bem

como a extrema violência político-jurídica consequente e formadora do sistema -

portanto, formam o pano de fundo histórico para entendermos a violência do cangaço

num contexto de violência sistêmica que marca a região do sertão nordestino, no

mínimo, desde os tempos coloniais.

Até hoje, porém, os dicionários registram o termo cangaceiro, com o

aparecimento do verbete em 1899, como exemplo de “malfeitor fortemente armado que

andava em bando pelos sertões do Nordeste, notadamente ao longo das três primeiras

décadas do século XX” . Trata-se de uma simplificação falsa. 1

Sendo a violência um elemento formador de todo o contexto que estamos

analisando, também muitas das reações da vítimas desse sistema eram também

violentas. Talvez por isso a violência seja tão valorizada, através da valentia, pelas

populações sertanejas da região em que o cangaço se desenvolveu. Eis o motivo da

alegação de Maria Christina Matta Machado, segundo a qual “os cangaceiros nunca

foram entendidos. Passam por simples criminosos e ladrões, quando, na realidade, eram

homens que lutavam porque não conheceram a justiça” . 2

Conclusão e indagações da mesma autora: “Fizeram, então, a justiça com as

próprias mãos. Eram os ‘fora-da-lei’? Mas onde estava realmente a lei? No bolso dos

ricos ou no porrete do coronel?” . Com os estudos anteriores nesse material acho que já 3

podemos dizer a resposta. Na próxima parte, conheceremos os locais onde os

cangaceiros atuaram e algumas histórias de vida dos personagens mais célebres do

cangaço para aprofundar nossos conhecimentos.

!Geografia

A região onde o cangaço ocorreu é bastante extensa: a partir do norte de Minas

Gerais, pelo Vale do Jequitinhonha em direção ao norte, e acompanhando o rio São

Verbete Cangaceiro in: Dicionário Houaiss (2009).1

Nosso Século. 1930/1945: A Era Vargas. São Paulo: Abril Cultural, 1980.2

Ibid.3

Page 23: Cangaço: Insurgentes do Nordeste. Origens no Século XIX

Francisco, de sua nascente até a foz. Dessa região, ao norte do que se considera

legalmente como parte da região sudeste, ou do estado mais ao norte dessa região, que é

justamente Minas Gerais, compreendendo então todos os estados do nordeste: Bahia,

Sergipe, Alagoas, Pernambuco, Ceará, Paraíba, Rio Grande do Norte, Piauí e parte do

Maranhão, até onde se formam as áreas de transição para a região amazônica,

perceptíveis pelas características da vegetação das regiões, que vai se alterando em face

ao regime climático..

Em boa parte dos estados que compõem hoje o interior do Maranhão,

Tocantins, Piauí e Bahia fica uma área em que o cerrado se estende, do planalto central,

até fazer divisa com a caatinga, pelos lados do Piauí, e com a região em que o cerrado

cede lugar às florestas maranhenses. Em parte dessas áreas ocorreu a cultura algodoeira

que serviu de contexto para a Balaiada, entre atuais Maranhão e Piauí. Atualmente é

uma região em que o latifúndio monocultor permanece ativo, mas não com o algodão:

hoje é a soja que avança, quase descontroladamente, sobre o que resta das áreas de

cerrado, devastando esse bioma brasileiro de extrema importância para a renovação dos

lençóis freáticos que abastecem boa parte dos rios que correm pelo centro do Brasil,

como por exemplo o rio São Francisco. Evidentemente, como é praxe na história do

Brasil, tais plantações de soja consomem os recursos do meio ambiente de forma

predatória, afetando a todos de forma negativa, porém enriquecendo poucas famílias

privilegiadas.

No sertão, a estação seca se alterna com a estação das chuvas: de dezembro a

junho, no máximo, é o período de chuvas, quando o sertanejo pode semear suas roças. O

período seco, via de regra, seria de julho a novembro. Porém, sempre foi normal que os

períodos tivessem atrasos e compensações. Afinal, o tempo da natureza não tem a

exatidão dos aparelhos que medem o tempo.

Periodicamente, o regime de chuvas sofre algum desequilíbrio, muitas vezes de

oscilações climáticas ocorridas noutras regiões. Daí vem as secas, historicamente

registradas a partir de quando iniciou a ocupação do interior nordestino pelos

colonizadores, que avançavam sobre a vegetação do agreste e da caatinga tangendo a

pecuária extensiva, que seguia o curso dos rios.

Page 24: Cangaço: Insurgentes do Nordeste. Origens no Século XIX

A história brasileira registra grandes tragédias humanas no sertão nordestino,

como as grandes secas da década de 1870, 1915 e 1983. As catástrofes climáticas

ocorridas entre o final do século 19 e início do 20 agravavam as situações tensas

referentes à violência dos bandos de cangaceiros, assim como os jagunços dos coronéis.

Além de toda a perturbação social, as secas também provocavam intenso êxodo

migratório para outras regiões do Brasil, em correntes mais perceptíveis nos períodos

secos.

A rusticidade do terreno, arenoso no semiárido e agreste, sustenta plantas que

necessitam pouca água: são comuns as cactáceas, que formam as plantas que tem

espinhos em lugar de folhas, do qual o mandacaru é o maior e mais comum exemplo do

cactus, planta típica do sertão, que no entanto também tem árvores de caules não muito

largos e troncos retorcidos, por conta da escassez de umidade, sendo algumas delas

frutíferas, como o umbuzeiro, que tem por característica a resistência ao regime de

chuvas pouco abundantes, e a produção de frutos que complementam a dieta alimentar

quando de sua época.

O habitante dessa região é o sertanejo, sobre o qual Euclides da Cunha se

referiu em sua obra “Os Sertões”, onde registra a história da Guerra de Canudos: “o

sertanejo é, antes de tudo, um forte”; a rusticidade dessa terra só permite a

sobrevivência de gente forte, que resiste à seca e aos desmandos dos coronéis e

potentados locais, formando a alma da cultura sertaneja.

O mapa na próxima página pode dar uma boa ideia da região onde os

cangaceiros atuaram:

!!!!!!!

Page 25: Cangaço: Insurgentes do Nordeste. Origens no Século XIX

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!Região do Nordeste, de maior incidência do cangaço. Repare na legenda que aponta o nível de chuvas na região, assim como na quantidade de bandos cangaceiros registrados a partir do século 19.

Page 26: Cangaço: Insurgentes do Nordeste. Origens no Século XIX

Os Personagens do Cangaço !O cangaço que ficou conhecido como independente (sem vínculos com senhores de terra

ou populações locais) tem sua existência datada da segunda metade do século 19. Antes disso, já

haviam grupos que se formavam nos períodos de seca, aproveitando-se de parcelas grandes de pop-

ulações locais (que se dispersavam em busca de sobrevivência) para saqueá-las. Quando o período

de chuvas voltava eles retornavam a uma vida normal. Já os cangaceiros independentes começaram

a formar bandos permanentes, desenvolver um estilo de vida próprio e em constante movimento

(sem casa fixa) pelos sertões.

O cangaceiro que ficou mais conhecido na história foi “Lampião”, atuante no século 20.

Porém, conheceremos também alguns outros personagens, que desde o século 19 já praticavam o

cangaço no nordeste brasileiro. Vale dizer que Lampião se tornou o mais conhecido também pelo

fato de na sua época já existir tecnologia para uma ampla documentação: seu bando foi muito fo-

tografado e filmado em ação, o que facilitou de história na memória

!João Calangro

Temido na região sul do Ceará (Cariri), João Calangro atuou ainda como cangaceiro ligado

a chefes poderosos, tendo participado do bando de Inocêncio Vermelho. Esse bando protegia

povoados e chefes locais dos roubos de gado, na década de 1870

Inocêncio Vermelho foi assassinado em 1876 e Calangro (que se gabava de ter 32 mortes

nas costas) pode assumir a liderança do bando. No período de seca em 1877, houve grande con-

fusão - migrações, retirantes (famílias que fugiam das secas), saques de povoado por grupos fam-

intos - fato que fez com que seus serviços fossem disputados por várias autoridades, senhores de

engenho e povoados. Adquirindo grande prestígio, sendo preferido até mesmo do que as autoridades

públicas, Calangro se “autonomeou” General Brigadeiro.

Com o fim da seca, da confusão e a volta de famílias inteiras aos povoados, dispensaram

os serviços de Calangro e não queriam mais sua autoridade. Começou um período de perseguição a

seu bando, considerados agora como bandidos. Calangro muito esperto dispensou seus homens e

fugiu da região, calçando suas alpercatas (espécie de sandalhas feitas de couro) ao contrário para

que suas pegadas confundissem seus perseguidores! Dessa forma, conseguiu fugir até o sítio de um

padre amigo seu, que espalhou a falsa notícia de sua morte. De lá, foi para o Piauí, onde seus rastros

se perdem na história.

!

Page 27: Cangaço: Insurgentes do Nordeste. Origens no Século XIX

Antonio Silvino

Descendente de cangaceiros anteriores (família Brilhante, da qual fez parte Jesuíno Bril-

hante, famoso cangaceiro atuante no Rio Grande do Norte e na Paraíba), Antonio Silvino se iniciou

no cangaço para vingar a morte de seu pai (assassinado em um disputa por terras com outros propri-

etários, os Ramos da Silva), não resolvida pela justiça. Após concluir essa ação matando sua vítima,

passou a ser perseguido por um delegado que protegia a família Ramos da Silva. Diz-se que Silvino

se escondeu na caatinga por longo tempo, perseguindo seu perseguidor, até que um dia se encon-

traram em duelo de faca num caminho deserto.

Silvino juntou-se a Luiz Mansidão (descendente de es-

cravos) e seu bando, passando a viver sem uma casa fixa,

vagando pela região de Pernambuco, Ceará e Rio Grande do

Norte na última década do século 19. Aos poucos foi se afa-

stando de disputas políticas e da lógica da vingança dos

sertões, atuando como uma espécie de cavaleiro andante.

Suas histórias são pouco conhecidas e se baseiam mais no

boca a boca, na tradição oral que passa de geração para ger-

ação das famílias nordestinas, mantendo a imagem desse

cangaceiro viva na memória da população. Assim, sua fama

popular é de que partilhava o resultado de seus saques com

os pobres e também apresentava-se como “guardião dos bons costumes e da autoridade dos mari-

dos” (há uma história que diz ele e seu bando foram na casa de um major tirar dele a filha, que

havia fugido do marido, alegando maus tratos). Continuou fugindo de cercos policiais e matando

outros delegados, ficando conhecido e temido na região. Abaixo, um episódio conhecido sobre suas

aventuras:

!

Desenho de Antonio Silvino

Saqueando a vila (Pilar, na Paraíba), abriu o cofre de um negociante, Pio

Napoleão. Dentro havia cinquenta contos. Silvino disse: “Se eu fosse

ladrão, levaria todo este dinheiro. Mas não sou. Preciso agora somente de

duzentos mil-réis. Dê-me os com suas próprias mãos.” O homem deu, e ele

saiu calmamente.

Victor Pastore
* Trechos em vermelho tirados do livro “Os Cangaceiros”, de Maria Isaura Pereira de Queiroz.
Page 28: Cangaço: Insurgentes do Nordeste. Origens no Século XIX

O sertão aos poucos ia se modificando, no início do século 20, com algumas tentativas do

governo de criar infraestrutura, principalmente a partir de estradas que eram construídas com o ob-

jetivo de integrar os locais distantes aos centros (Rio de Janeiro, São Paulo…). Junto ao seu bando,

Antonio Silvino aproveitou a chance para saquear correios e se tornou um grande obstáculo para a

ferrovia de Pernambuco: “perseguiu construtores e engenheiros, impediu trabalhos, cortou fios

telegráficos, obstruiu linhas já construídas, fazendo parar trens e cobrando direitos de passagem aos

aterrorizados passageiros”. Com isso, Silvino foi cada vez mais perseguido pelas polícias e pelos

proprietários.

Em 1910-1911, casou-se com Tita, filha de um fazendeiro, mas ela não o acompanhou em

suas viagens, continuou morando com a família. O cangaceiro começava a sentir o peso de não ter

um lugar fixo e uma vida tranquila, e então planejou logo sair do cangaço. No entanto, sua tentativa

de adquirir uma vida normal foi frustrada:

!!!

!

Antonio Silvino (o segundo de pé, da esquerda para direita) e seu bando

Page 29: Cangaço: Insurgentes do Nordeste. Origens no Século XIX

Seu grande prestígio na região fez com que seu apoio fosse disputado por políticos. Silvino

até começou a se envolver no jogo da política, mas logo viu que não dava certo e não trazia melho-

ras para a população. Logo o fato de ser perigoso começou a valer mais para as autoridades do que

seu possível apoio e os grandes mandantes locais resolveram juntar esforços para capturar o canga-

ceiro mais temido da época. Foi firmado um acordo entre os governos de Recife, Pernambuco, Na-

tal e Paraíba para intensificar a caça a Silvino e outros “criminosos” da região.

Nada disso parou o cangaceiro. Audacioso, ele até enviou um recado em telegrama aos

governadores desafiando-os e dizendo os locais por onde ficaria. Abaixo, o texto enviado ao gover-

nador da Paraíba:

Depois de um tempo, Antonio Silvino acabou sendo capturado ironicamente por uma de

suas vítimas mais humildes: um pequeno comerciante chamado José Alvino Correia de Queiroz.

Depois de ser saqueado pelo

cangaceiro, jurou vingança e

entrou para a polícia com o ob-

jetivo de perseguí-lo. Con-

seguiram capturá-lo em uma

emboscada policial. Os jornais

repercutiram amplamente a

notícia, comemorando a captura

e chamando-lhe de bandido.

!

Sonhando em se estabelecer como criador de gado no Estado do Rio

Grande do Norte, pediu Silvino a um padre de seu conhecimento que inter-

cedesse por ele junto ao governo. Prometia mudar de vida, desde que suas

atividades passadas fossem perdoadas e esquecidas. A resposta foi nega-

tiva, o que o enfureceu.

Dr. Castro Pinto, governador bandido. Não precisava reunir quatro Esta-

dos para perseguir-me, pois garanto-lhe que não saio de dois, fazendo

perseguição ao seu governo. Dr. Massa (chefe de polícia), toda

perseguição que me fizer eu me vingo em sua família (…) (carta publicada no

jornal da Pacotilha, de 30/1/1913).

Page 30: Cangaço: Insurgentes do Nordeste. Origens no Século XIX

Silvino foi preso, condenado a 30 anos de prisão, dos quais cumpriu 23. Foi solto em 1937,

após enviar uma carta ao presidente Getúlio Vargas pedindo liberdade e dizendo que já tinha

cumprido pena suficiente. O presidente ainda lhe arranjou um emprego no Rio de Janeiro, como

construtor na estrada Rio-Salvador, mas ele não conseguia se adaptar, dizia que “o trabalho que lhe

haviam dado não era digno de um homem; era trabalho pra cabra safado e sem vergonha”. A um

jornalista que entrevistou-o na época de prisão contou: “a maior parte dos crimes que me são

atribuídos não fui eu quem cometeu, foi a polícia”.

Como se vê, Antonio Silvino não foi gente de abaixar a cabeça: desconfiou dos poderosos

e políticos; trilhou o próprio caminho de sobrevivência no sertão hostil, onde um polícia autoritária

cometia diversos abusos e protegia mais os donos de terra do que as populações pobres; não se con-

formou com a exploração do trabalho. No fim, morreu em 1944 na Paraíba na casa de sua prima e

ao lado de sua mulher Tita.

!!

Antonio Silvino reinou dezoito anos sobre o Sertão. Seis anos

após sua captura, começou a erguer-se a estrela de Lampião.

Page 31: Cangaço: Insurgentes do Nordeste. Origens no Século XIX

As volantes

Os grupos de policiais que perseguiam os cangaceiros pelas caatingas eram chamados de

“volantes”. Entre os cangaceiros, esses policiais foram apelidados de “macacos” - pois no en-

frentamento direto fugiam pulando como esses animais. Os policiais se vestiam de forma semel-

hante aos seus perseguidos e muitas vezes aterrorizavam e abusavam dos civis mais do que os

próprios cangaceiros.

!

Lampião

!

Grupo de volantes no sertão (acima) e desenho de um membro da volante (ao lado). Note a semelhança dos trajes com o dos cangaceiros

O Rei do Cangaço: Virgulino Ferreira da Silva, nascido em 1898, se tornou o cangaceiro mais conhecido e temi-do da história, sob o nome de Lampião. Antes de entrar para o cangaço trabalhou como artesão, aprendeu a ler e escrever. Em 1919 jurou vingar a morte de seu pai, cau-sada por uma família rival, os Saturninos. A partir de então se embrenhou no sertão, formou seu bando e se tornou temido, procurado e respeitado por toda a re-gião. Em suas andanças conheceu e se apaixonou por Maria Bonita, integrando-a no bando. Após quase 20 anos de banditismo social, seu grupo caiu numa embos-cada, na qual Lampião foi morto. Muitas canções e his-tórias relembram suas façanha até hoje.

Page 32: Cangaço: Insurgentes do Nordeste. Origens no Século XIX

As Mulheres no Cangaço

A presença feminina no cangaço se dá em vários exemplos e são pontos centrais de muitas

narrativas que envolvem o Cangaço. Contudo, parece que a grande maioria dessas narrativas se

concentram também em um dos grupos mais famosos: o próprio bando de Lampião foi um dos pri-

meiros a estabelecerem a figura do casal como parte integrante do grupo. Assim, o primeiro casal,

seria formado pelo chefe do bando, Virgulino Ferreira da Silva, ou Lampião, e Maria Gomes de

Oliveira, também conhecida como Maria Bonita. Relatos de integrantes do grupo, como Volta Seca,

datam a permissão de Maria Bonita se juntar ao bando depois de 1928.

A marcante presença dessa personagem, conhecida pelo

amor e ciúme que sentia por seu companheiro, deixa evi-

dente que foi também da própria mulher a vontade entrar

para o Cangaço. Normalmente, a origem dessas mulheres

era similar a dos homens no cangaço: vinham de uma popu-

lação que encarava a seca e a pobreza no seu cotidiano. As

expedições das quais seus maridos cangaceiros participa-

vam significavam longos períodos fora de casa, o que não

era favorável para a condição da própria mulher no que diz

respeito ao enfrentamento das dificuldades da vida no ser-

tão. Por isso, a decisão de algumas mulheres acompanha-

rem os bandos e se tornarem cangaceiras também. Dessa

forma, é questionável a interpretação de que a participação

das mulheres se deu por uma simples “permissão” dos ho-

mens já que, considerando essas condições, elas mesmas

poderiam preferir seguir junto ao bando.

Na maioria dos casos, as mulheres são descritas como exímias bordadeiras, parteiras

e companheiras dos cangaceiros. Mas o papel das mulheres não se restringia a esses exemplos.

Eram também responsáveis por cuidar de ferimentos, função muito importante para o bando. Assim,

sua atuação envolvia também a produção de medicamentos graças aos seus conhecimentos das mais

variadas ervas. Além desses exemplos, existiam os casos de mulheres que se envolviam na ativida-

de de guerrilha. Esse foi caso de Dadá, mulher do cangaceiro Corisco, que chegava a participar de

verdadeiras guerras contra as volantes e é uma das protagonistas da resistência depois da morte de

Lampião. Ela realizou uma longa busca para obter permissão na justiça para poder enterrar as cabe-

Maria Bonita

Page 33: Cangaço: Insurgentes do Nordeste. Origens no Século XIX

ças dos cangaceiros do bando de Lampião (que ficaram por um longo tempo no Museu do Crime,

em Salvador). Abaixo, sugerimos vídeos com os relatos de Dadá, sobre o protagonismo feminino no

cangaço:

Parte 1 - https://www.youtube.com/watch?v=YDPJYidXn6Q

Parte 2 - https://www.youtube.com/watch?v=w1t4q4FGE3o

!A Literatura de Cordel e o Cangaço

Também na literatura de cordel podemos flagrar a complexidade da violência do cangaço

em um quadro social de violências estruturais, que se identifica com a própria história brasileira.

Assim, diferentemente da visão dominante de “fora-da-lei”, observamos uma outra representação

cultural do cangaceiro no imaginário popular nordestino.

Lembramos que o cordel, expressão cultural de um determinado modo de vida humana em

determinada região geográfica com suas específicas condições sócio-históricas, posicionou-se do

lado oposto da visão oficial, como por exemplo aquela que registramos mais acima com o dicioná-

rio, qual seja: cangaceiro = malfeitor em armas.

Xilogravura do artista Stênio, capa do cordel “A Chegada de Lampião no Inferno”

Page 34: Cangaço: Insurgentes do Nordeste. Origens no Século XIX

Em versos populares, nesse sentido dissonante da definição do vernáculo, insurge-se uma

outra visão cultural de mundo sobre a figura do cangaço e dos cangaceiros. Acompanhemos como o

cordel retrata, sinteticamente, a gênese histórica do cangaceiro como um “bandido social”, fruto das

condições históricas que o criaram:

O indivíduo se vê Da polícia perseguido Não pode plantar roçado Porque vive foragido Invade para comer Ou tem que morrer Assim se forma o bandido 1!A implacável repressão policial contra o cangaço, ainda em versos de cordel, foi represen-

tada na procura da “cabeça do Rei do Cangaço”, de modo a comparar a “polícia de Pernambuco” à

sanha de um “urubu”, ou seja, um comedor de carniças. Clara está, pois, a posição do cordel ao lado

dos “de baixo”, junto aos oprimidos e aos revoltosos e insurgentes, o que se nota ao retratar a re-

pressão do Estado contra Lampião:

!A polícia de Pernambuco Fareja como urubu Procurando Lampião Nas águas do Pajeú 2

!Ainda em expressão literária de cordel, impressiona a sextilha (estrofe de seis versos) que

trata da inserção de Antonio Silvino, como um “justiceiro social” em um mundo repleto de injusti-

ças oficiais:

No bacamarte eu achei Leis que decidem a questão E que fazem melhor processo Do que qualquer escrivão As balas eram soldados Com que eu fazia prisão 3

!Porém, o folheto de cordel intitulado A chegada de Lampião no inferno, de José Pacheco,

nascido no município de Corrientes, em Pernambuco, falecido provavelmente em 1954, ao invés de

Ibid.1

Ibid.2

Ibid.3

Page 35: Cangaço: Insurgentes do Nordeste. Origens no Século XIX

enfatizar o homem/bandido ou “fora-da-lei”, revela o “bandido salteador” que, “embrutecido pela

dureza da vida sertaneja, não aceitava o jugo dos coronéis e partia para o cangaço, vivendo ‘sem lei

e sem rei’” . Transcrevemos abaixo a narrativa desse cordel, representa a “subversão” da ordem das 4

mercadorias e dos lucros, inclusive, de Lúcifer. Ela pode ser estudada juntamente a uma versão mu-

sical disponível na internet em: https://www.youtube.com/watch?v=4ldSot7OLeU. Em seguida,

propomos uma pequena análise da história.

!Um cabra de Lampião De nome Pilão Deitado Que morreu numa trincheira Num certo tempo passado E agora pelo sertão Anda correndo visão Fazendo mal-assombrado !E foi quem trouxe a notícia Que viu Lampião chegar Os inferno nesse dia Faltou pouco pá virar Incendiou-se o mercado Morreu tanto cão queimado Que faz gosto inté contar !Morreram cem negro velho Que não trabalhavam mais Três netos de Parafuso E um cão chamado Cá-traz Morreu também Bigodeira E um cão chamado Guteira Cunhado de satanás !Vamo tratar da chegada Quando Lampião bateu Um moleque ainda moço No portão apareceu: — Quem é você, cavalheiro? — Moleque, sou cangaceiro

VIEIRA, Francisco Jacson Martins. A mitificação das figuras emblemáticas de padre Cícero e Lampião através da 4

literatura de cordel. Universidade Federal do Ceará: Fortaleza: 2012. Disponível em: http://www.repositorio.ufc.br/bits-tream/riufc/8114/1/2012_dis_fjmvieira.pdf

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Lampião lhe respondeu !— Moleque, não sou vigia E não sou seu pariceiro Hoje aqui o senhor não entra Sem dizer quem é primeiro — Moleque, abra o portão Saiba que sou Lampião Assombro do mundo inteiro !O vigia foi e disse: — Fique fora que eu entro Que eu vou falar com o chefe No gabinete do centro Por certo ele não lhe quer Mas conforme eu lhe disser Eu levo o senhor pra dentro !Lampião disse: — Vá logo Quem conversa perde hora Vá depressa e vorte logo E eu quero pouca demora Se não me der o ingresso Eu viro tudo aos avesso Taco fogo e vou me embora !O vigia foi e disse A satanás no salão: — Saiba, vossa senhoria Aí chegou Lampião Dizendo que quer entrar E eu vim lhe perguntar Se eu lhe dou o ingresso ou não !— Não senhor, satanás disse Diga a ele que vá se embora Só me chega gente ruim E eu ando muito caipora Que eu já tô té com vontade De butar mais da metade Dos que têm aqui pra fora !

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Disse o vigia: — Patrão A coisa vai piorá E eu sei que ele se dana Quando não puder entrar Satanás disse: — Isso é nada Reúna aí a negrada E leve os que precisar !Quando Lampião deu fé Da tropa negra encostada Disse: — Só na Abissínia Oh! Tropa preta danada E uma voz que ecoou Satanás foi quem mandou Taca-lhe fogo, negrada! !Lampião pôde pegar Uma caveira de boi Sapecou na testa dum E o cabra só fez dizer: — Oi! !Houve grande prejuízo No inferno nesse dia Queimou-se vinte mil contos Que satanás possuía Queimou-se o livro do ponto Perderam seiscentos contos Somente em mercadoria !Reclamava Lucifer: — Crise maior não percisa Os anos ruim de safra E agora mais essa pisa Se não houver bom inverno Aqui dentro dos inferno Ninguém compra uma camisa !Quem duvidar dessa história Pensar que não foi assim Duvidando de meu verso Não acreditando em mim Vá comprar papel moderno

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Escreva para os inferno Mande saber de Caim 5

!Conforme autora que também estudou esse cordel de José Pacheco, em trabalho intitulado

A mitificação das figuras emblemáticas de Padre Cícero e Lampião através da literatura de cor-

del , “a chegada de Lampião desmantela a ordem do inferno” e, lembrando-se o título do livro clás6 -

sico citado sobre o tema (Os bandidos de honra brasileiros), “Satanás não aceita que Lampião fique

no inferno, por achar que ele é ‘ladrão da honestidade’ e ‘bandido’” . Recordamos que Lampião en7 -

trou no cangaço para vingar a morte da família, retratando-se no cordel sua violência em resposta à

violência satânica.

Ao longo dos versos, como veremos logo abaixo, “percebe-se que Lampião usava mais a

astúcia do que o poder das armas”, o que “aproxima o cangaceiro do povo que se defende com as

armas que tem, diante da opressão. Como esperado, o diabo convoca um exército de demônios para

enfrentar Lampião”, temeroso da desordem que porventura o cangaceiro poderia causar no inferno,

já que “a fama de Lampião, mesmo no outro mundo, continua intocada” . 8

O cordel reforça “a imagem de Lampião como alguém valente e respeitado, qualidades

imensamente valorizadas no sertão”, e “o autor identifica Lampião como um guerreiro do bem que

combate e acarreta um grande prejuízo no inferno, o reino do mal”. “Um Lampião justiceiro dos

males terrenos”, que dá uma surra no cão, “vingando-se deste que, no imaginário cristão, é a causa

maior de todos os males”. Livra-se, porém, da punição do diabo, o que “nos leva a crer que o can-

gaceiro não é tão mau como geralmente é considerado” nos dicionários e na historiografia oficial, 9

isto é, das classes dominantes.

!Repressão e assassinato de Lampião: as instituições do poder e da propriedade

Com a captura do grupo de Lampião, “as onze cabeças foram arrumadas na escadaria da

igreja da matriz, na Praça do Monumento e ali ficaram expostas à curiosidade pública”. Conforme

autora que resenhou o livro Os cangaceiros, “de lá foram conduzidas para Maceió onde chegaram a

31 de julho e ficaram em exposição no quartel da polícia na Praça da Cadeia. Mais uma vez as ca-

ROCHA, José Pacheco da. A chegada de Lampião no inferno. In: Jangada Brasil. Edição Especial: Literatura de Cor5 -del. Agosto 2006 – Ano VIII – n.º 93. Disponível em: http://www.jangadabrasil.com.br/revista/agosto93/es930820.asp

Ibid.6

Ibid.7

Ibid.8

Ibid.9

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beças dos mortos viajam para a Santa Casa de Misericórdia, sendo finalmente conduzidas para Sal-

vador onde, mumificadas, passam para o acervo do Museu Nina Rodrigues, do Instituto Antropoló-

gico e Etnográfico da Bahia” . 10

Esse relato indica que a “própria repressão armada”, incapaz de aprisioná-los vivos, teve

“a necessidade de confiná-los depois de mortos a todas as instituições repressoras sem exceção: es-

cadarias da igreja na Praça, quartel de polícia, Santa Casa com toda sua Misericórdia e, princi-

palmente no museu para que nenhum destes dados de civilização material pudessem lembrar a vida

e a liberdade. No acervo que levava o nome de um antropólogo defensor da superioridade da raça

branca, Nina Rodrigues, institucionalizava-se o discurso ‘científico’ da repressão” . 11

Para finalizar, anote-se que Raimundo Nina Rodrigues é o autor da obra As raças humanas

e a responsabilidade penal no Brasil, de 1938, na qual sustentava que o crime nasce do entrecruza-

SILVA, Janice Theodoro da. In: Revista de História, n.º 112, 1997. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/revhis10 -toria/article/view/75356

Nosso Século. 1930/1945: A Era Vargas. São Paulo: Abril Cultural, 1980.11

Exposição das cabeças do bando de Lampião, na escadaria da Igreja da Matriz

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mento de raças, de modo que o criminoso é o mestiço, classificando-o em degenerados, comuns e

superiores.

Concluímos, assim, que as classes dominantes e proprietárias, que perseguiram e massa-

craram o bando de Lampião que, com seu modo de vida, incomodavam os interesses da ordem es-

tabelecida, precisaram de “teorias sociais” legitimadoras da sua violência e barbárie oficiais. Seus

museus, eugenistas e especialistas em criminologia, institucionalizando a repressão policial com

ares de “ciência” positivista, são a prova disso.

Para encerrar sugerimos um último vídeo, que mostra os únicos minutos da atuação do

bando de Lampião documentados. A partir dele o aluno pode ter uma ideia muito mais clara sobre o

que era, concretamente, o cangaceiro: https://www.youtube.com/watch?v=5fnSUrePAXg

!

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Conclusão

Percebemos, através desse trabalho, o quanto a violência está encravada na história

brasileira. Suas causas perdem-se num passado de escravidão e outras injustiças, que formaram a

massa popular, a imensa maioria da população brasileira ainda exposta à violência, que ainda

guarda, sob certo ponto, causas semelhantes às que formavam, no passado, os bandos de

cangaceiros, sobretudo no Brasil rural. Os movimentos sociais, por exemplo, que defendem a

reforma agraria – o Brasil ainda é um país latifundiário! – ainda são acusados de banditismo pelos

grandes canais de comunicação.

Propomos algumas questões, que podem ser debatidas pelos alunos, após pesquisas, que

podem ser feitas na internet:

Por que a estrutura fundiária brasileira permanece baseada no latifúndio? E as pequenas

propriedades rurais, os minifúndios, como sobrevivem nesse contexto? Por que os grandes canais de

comunicação defendem a estrutura latifundiária, enquanto acusam os movimentos sociais de

banditismo? Esses grandes canais de comunicação, televisão, jornais e revistas, obedecem a que

objetivos? São utilizados politicamente para manter as estruturas de coronelismo, baseadas no voto

de cabresto? Existem meios de comunicação com objetivos diferentes? Onde estão? Os tais

movimentos sociais que defendem a reforma agraria, quais são? O que defendem? Podem ser, na

sua opinião, acusados de banditismo, ou suas atitudes mais extremas são reações aos estímulos

violentos recebidos? Além da reforma agrária, existem outras exigências por parte desses

movimentos sociais? Quais são?

De toda informação, podem surgir questionamentos diferentes. A reflexão sobre a história e

suas consequências pode resultar em todo tipo de questão. O professor, e os próprios alunos podem

levantar outras questões que podem enriquecer o debate.

Como sugerimos na introdução do trabalho a exibição da animação “Uma história de amor

e fúria”, sugerimos outro filme para conclusão. Esperando que as aulas tenham servido para

perceber as origens do cangaço, acreditamos que a exibição de “Deus e o Diabo na Terra do Sol”,

clássico do cinema brasileiro, pode aprofundar ainda mais as diversas questões sobre nossa história

e o assunto que tratamos. Como é uma obra mais complexa do que a animação “Uma história de

amor e fúria”, sugerimos que o professor assista o filme antes da turma, para sintonizar o contexto

da obra e as análises possíveis.

Produzido e dirigido por Glauber Rocha, o filme de 1964, aborda a vida de uma família de

sertanejos nordestinos, marcados pela seca, pelas injustiças e desmandos dos poderosos e sujeitos

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ao fanatismo religioso e a violencia do cangaço. Está completo em: https://www.youtube.com/

watch?v=uJDYsChNqhg

Outro filme, que aborda o Lampião e o libanês que filmou seu bando, é “O baile

perfumado”, de 1996. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=NnmWmTl217k

Todavia, como o tema “cangaço” é profundamente entranhado na cultura brasileira, existe

vasta produção, cinematográfica e televisiva. Na internet são encontrados diversos blogs, muitos

montados por descendentes de cangaceiros, jagunços, volantes e/ou testemunhas de acontecimentos

históricos. Pesquisas no mundo virtual podem mostrar também parte da produção de histórias em

quadrinhos que abordam o tema do cangaço. Em especial indicamos os blogs “cariri cangaço” e

“luz de fifó”, sobre o universo da cultura popular nordestina, inclusive muita coisa sobre o cangaço.

Nesse último destacamos o jogo online “Cangaço Wargame”. Estão respectivamente em http://

cariricangaco.blogspot.com.br e http://luzdefifo.blogspot.com.br/p/classicos-do-cordel.html#uds-

search-results

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Referências bibliográficas

ALENCASTRO, Luiz Felipe de. Memórias da Balaiada: introdução ao relato de Gonçalves de

Magalhães. In: Revista Novos Estudos CEBRAP, n23, março/1988, pp.7-13.

COSTA, Emilia Viotti da. Da Monarquia à República. 3ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1985.

DICIONÁRIO HOUAISS (2009);

FACO, Rui. Cangaceiros e Fanáticos: gênese e lutas. São Paulo: Civilização Brasileira, 3ª ed., 1972.

FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens livres na ordem escravocrata. 3ª ed. São Paulo:

Kairos, 1983.

JANOTTI, Maria de Loudes. Balaiada: construção da memória histórica. In: Revista de História, v.

24, n 1, p.41-76.

NOSSO SÉCULO. 1930/1945: A Era Vargas. São Paulo: Abril Cultural, 1980;

QUEIROZ, Maria Isaura Pereira. Os Cangaceiros. São Paulo: Duas Cidades, 1977.

ROCHA, José Pacheco da. A chegada de Lampião no inferno. In: Jangada Brasil. Edição Especial:

Literatura de Cordel. Agosto 2006 – Ano VIII – n.º 93. Disponível em: http://

www.jangadabrasil.com.br/revista/agosto93/es930820.asp;

SILVA, Janice Theodoro da. In: Revista de História, n.º 112, 1997. Disponível em: http://

www.revistas.usp.br/revhistoria/article/view/75356;

VIEIRA, Francisco Jacson Martins. A mitificação das figuras emblemáticas de padre Cícero e

Lampião através da literatura de cordel. Universidade Federal do Ceará: Fortaleza: 2012.

Disponível em: http://www.repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/8114/1/2012_dis_fjmvieira.pdf

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