cangaço: insurgentes do nordeste. origens no século xix
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!Universidade de São Paulo
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
!!!!
Cangaço: Insurgentes do Nordeste
Origens no Século XIX
!!!!
História do Brasil Independente I
Profª.Drª. Zilda IokoiGrupo: Cangaceiros da Morte Seca
Lucas Vecchi (8576630) Lucas Padula Miranda (8576011)
Rodney Fouto (1816673) Felipe Frazão
Rodolfo Machado Victor Doutel Pastore (7619600)
2015/1 - Noturno !!
São Paulo 2015
Introdução ao professor
O material a seguir foi produzido por alunos do curso de História do Brasil
Independente I, da FFLCH-USP, ministrado pela professora Zilda Iokoi, no primeiro
semestre de 2015.
Trata-se de um texto didático voltado aos alunos do ensino médio, e pode
auxiliar o professor na abordagem sobre alguns dos elementos mais presentes e com
causas complexas de nossa história: a violência, corriqueira em bairros da periferia e
comunidades em situação de risco social, e o mandonismo local, que antigamente se
baseava no voto de cabresto, e atualmente mantém o status quo existente no Brasil,
numa situação que tem mais permanências do que rupturas. Se antes havia o coronel
latifundiário e sua milícia de jagunços, convertidos em guarda nacional, hoje
sobrevivem latifundiários com imenso poder político, fortalecidos por emissoras de
rádio e televisão e líderes religiosos corrompidos, que controlam grandes contingentes
de votos através de novas formas de cabresto, diferentes da original coerção violenta
através de ameaças intercaladas à concessão de favores.
O fenômeno social escolhido para tratar de tais questões é o cangaço e suas
origens históricas. Apesar de seu apogeu ser mais facilmente identificável no início do
século 20, com o caso do célebre Lampião, o cangaço é um movimento bem mais
amplo, e suas origens remontam ao século 19, embora o termo já existisse no século 18.
Com características do que o historiador Eric Hobsbawn definiu como banditismo
social, foi o resultado de diversos elementos que gravitam entre dois pilares centrais de
nossa história: o coronelismo latifundiário e escravista, combinado a violência,
costumeira em boa parte dos sertões brasileiros.
No caso específico do sertão nordestino, a pecuária engendrou a “Civilização
do Couro”, uma das bases mais sólidas de boa parte da cultura regional, em que um dos
elementos mais representativos é o vaqueiro. Tal personagem usava uma verdadeira
armadura de couro endurecido, de forma a aguentar, vaqueiro e montaria, também
protegida por peças de couro, o trabalho de capturar o gado que se embrenhava na
caatinga, fugindo em correria do vaqueiro a cavalo; tal prática originou, por outro lado,
a cultura da vaquejada no nordeste brasileiro, e muitos de seus traços estão presentes na
música, na alimentação, nas festas e folguedos, e nos versos de cordel, cantigas
populares e tradições orais.
Se o vaqueiro era um personagem central no universo da pecuária nordestina,
coadjuvantes de crucial importância histórica também protagonizavam os
acontecimentos do sertão, como o jagunço, muitas vezes capanga de um latifundiário, e
o cangaceiro, indivíduo que se revolta contra um universo de coisas estabelecidas, tendo
a violência como principal elemento que compunha sua revolta.
Escolhemos o cangaço como tema porque é um elemento histórico muito
presente na cultura brasileira. Certamente os alunos do ensino médio já ouviram
histórias sobre Lampião e seu bando, se não sobre outros cangaceiros que existiram, ou
sobre o cangaço, de forma geral.
Mas, embora a palavra “cangaço” seja amplamente conhecida, não sabemos se
seu significado também seja. Também temos dúvidas a respeito da origem histórica do
cangaço, se é razoavelmente conhecida, ou se pairam sobre essa definição as mesmas
dúvidas e equívocos amplamente difundidos sobre a história brasileira, e que o sistema
de educação tradicional tem tantas dificuldades em esclarecer.
Esperamos que a análise da história desse movimento, que tem algumas de
suas causas e características ainda presentes na sociedade brasileira, possa ser de
utilidade para explicar aos estudantes do ensino médio, por exemplo, as origens
históricas da violência presente no cotidiano de grande parte da população brasileira,
que ainda sofre a pressão política para eleger representantes que, uma vez eleitos,
defendem apenas os interesses da elite a que fazem parte, mantendo a maior parte da
população brasileira ainda relegada à própria sorte. Em razão desse abandono, eclode a
violência, e mais diversas outras formas de resistência contra o sistema estabelecido,
que hoje se encontram em movimentos sociais e manifestações culturais em geral.
Partimos do princípio de que os homens não nasciam cangaceiros, e sim se
tornavam cangaceiros, talvez não por própria escolha, mas como a reação básica de
indivíduos pobres frente a um contexto de violências cotidianas e injustiças políticas e
sociais, e que não conseguiam (ou não queriam) sobreviver em tal meio sem se esquivar
da prática da violência. Logo, a violência dos grupos cangaceiros deve ser entendida
mais como uma reação a determinados estímulos, do que uma prática gratuita e
desenfreada, embora alguns casos reais ou exagerados, e outros ainda possivelmente
inventados, contenham, ao olhar atual e integrado ao processo educacional de hoje em
dia, doses assustadoras de crueldade sanguinária . Todavia, é importante salientar que os
atos mais extremos não eram praticados apenas por cangaceiros: as milícias de
jagunços, ao mando de coronéis, também realizavam atos de crueldade contra sertanejos
indefesos, assim como os batalhões da guarda nacional e, mais tarde, as “volantes”,
como eram denominadas as tropas policiais que percorriam os sertões à caça de
cangaceiros. A violência policial não é, portanto, exclusividade das comunidades
carentes e bairros pobres de hoje em dia, como parece nos jornais. É prática
institucionalizada desde a origem da guarda nacional, e que permanece nas polícias
militares de todos os estados brasileiros.
O professor tem, com o material que oferecemos, a oportunidade de trabalhar
um período muito importante de nossa história – que corresponde ao segundo reinado,
ultrapassando boa parte do século 19 – e como nesse período se formaram as bases para
o cangaço, oferecendo aos alunos a oportunidade de alguma reflexão a respeito da
violência, institucionalizada e criminal, que hoje corre paralela à população mais sujeita
a sofrer com essa chaga, que, não por simples coincidência, é a mesma que sofria com a
truculência dos jagunços dos coronéis e das volantes, e com a revolta de cangaceiros,
quando descontrolada e em fúria.
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Cangaço Insurgente!
Introdução / Epígrafe
“(…) quanto ao negro Cosme, como bem previ e te anunciei, foi metido a ferros na cadeia, aqui, na capital. Garantem os cabanos que seguirá em breve para o Itapicuru onde será solenemente enforcado em presença de numerosos escravos da região para que o seu suplício sirva de exemplo aos que ainda sonham fugir das fazendas para os quilombos. Bela anistia, meu caro Censor! E dizerem por aí que ela foi a morte do cangaço! Do cangaço? Não: da Balaiada. O cangaço é a alma bravia dos sertões. E as almas bravias não se dominam pela força; domam-se só pelos influxos do ensino e da fé!”
Carta de Marta Alonso Alvarez de Castro Abranches, refletindo sobre o legado da Balaiada.
(em “Balaiada: construção da memória histórica”, de Maria de Lourdes Janotti) !“Essa nossa guerra é apenas uma data nos livros de História. Ninguém conta que Caninana, Sete Estrelas e Raio escaparam e ficaram vagando pelos sertões e aí nasceu o Cangaço. Foi o jeito que a turma que não é de abaixar a cabeça achou pra continuar lutando.”
Uma História de Amor e Fúria !![Para início do presente material didático, que discutirá reflexivamente sobre o Cangaço
e seus personagens, sugerimos a exibição do filme Uma História de Amor e Fúria, de
Luiz Bolognesi (2013) - uma discussão sobre o “insurgente” na História do Brasil. O
filme pode ser encontrado na internet em: https://www.youtube.com/watch?
v=wdkqo_M1gw8
Caso não haja tempo pra tal, deve ser exibida ao menos a parte que diz respeito à
Balaiada (18m15s - 36m00s).]
!Quem nunca ouviu falar de Lampião e seu bando? Quem nunca ouviu a palavra
“cangaceiro”? Que personagem é esse e qual sua importância para nossa história?
!O cangaço, movimento de luta das populações pobres no sertão nordestino, não foi um
fenômeno isolado de insurgência contra a ordem dominante. Tal movimento foi um dos
meios que as populações oprimidas e exploradas encontraram de buscar sua
sobrevivência, reagindo aos estímulos do meio social em que viviam. Outras situações
que podem ser apontadas nessa mesma lógica são, por exemplo, as fugas e rebeliões de
escravos ou as revoltas armadas contra o poder central. Entre as últimas está a Balaiada,
de 1838. Essa revolta, ocorrida no sul do Maranhão e próximo ao Piauí, é considerada
por muitos uma espécie de marco para o fortalecimento do cangaço, tal como ocorreu
ao longo do século 19.
Nessa revolta, alguns grupos da elite local planejaram se separar do restante do Brasil,
pois achavam que seus interesses particulares não eram bem atendidos pelo governo
central. Com sua influência e poder na região, essas elites mobilizaram grande parte da
população pobre para lutar por eles. Porém, em pouco tempo essa população se rebelou
também contra as elites, quando perceberam que suas prioridades, muitas vezes a
própria liberdade, nada valia na disputa entre as classes dominantes. Uniram-se então
homens pobres livres e escravos fugidos (que se encontravam refugiados em 5 grandes
quilombos do interior), sob o comando de um líder negro chamado de Cosme. Esse
grupo conseguiu tomar a cidade de Caxias, segunda maior da região; localizada no
Maranhão, submetida à capital, São Luís, distante mais de 350 quilometros. Ficava, no
entanto, muito mais próxima de Teresina, capital do atual estado do Piauí, a pouco mais
de 50 quilômetros de distância.
A partir desse momento, as elites até então rebeladas recuaram e preferiram se aliar
novamente com o governo central brasileiro, para não perderem seus privilégios e
posses. No fim, houve uma violenta repressão aos grupos insurgentes e a ordem foi
restaurada, conforme podemos perceber na animação Uma História de Amor e Fúria. O
negro Cosme, entre outros, foi enforcado e os escravos sobreviventes voltaram ao
cativeiro.
Esse episódio, é apenas um dos muitos que podem nos mostrar como o século 19 no
Brasil não foi um período histórico pacífico. Numa sociedade extremamente desigual,
autoritária e violenta, foi quase natural o surgimento de movimentos também violentos
vindos das classes mais baixas, como uma “resposta-bumerangue”, ou seja, reação à
exploração vinda de cima, das classes dominantes. Assim, podemos dizer que a
estrutura social brasileira criou seus insurgentes.
Ao longo desse material, explicaremos o momento histórico em que se encontra o
cangaço, para podermos refletir suas reais causas e pensar o que foi esse fenômeno, sem
simplesmente dizer que foi “coisa de bandido”. Para isso, precisaremos investigar toda a
pobreza da sociedade e os fatores que a causaram, os quais vem de uma estrutura de
terras baseada na escravidão e na exportação agrícola e de uma estrutura política e
jurídica autoritária que não dá voz e nem atende às necessidades dos mais pobres. Em
seguida, estudaremos o cangaço de forma mais profunda, conhecendo alguns de seus
personagens e histórias marcantes, com foco no século 19, período da História do Brasil
conhecido Segundo Reinado.
!Mas afinal, o que significa esse “cangaço”? Que palavra é essa?
!Diz-se que a origem do termo vem de “canga”, uma peça de madeira usada para prender
os bois a uma carroça. É uma metáfora que retrata o sobrepeso que o cangaceiro
carregava, “andava debaixo do cangaço”. Aos poucos, porém, o termo passa a designar
um estilo de vida, nômade, saqueador, dos que vagam pelos sertões. A palavra já
começa a adquirir um sentido negativo, que logo se desenrola para um sinônimo de
“bandido”.
Porém, esse personagem da história não é considerado um bandido por todos. Para
muitos dos pobres dos sertões, que compartilhavam da mesma pobreza que eles, os
cangaceiros representavam o enfrentamento contra os coronéis - ricos e donos de muitas
terras, que exploravam a população. Passaram a ser vistos com qualidades ideais, como
valentes, justiceiros e defensores dos pobres. Muitos na literatura e nas tradições até os
descreveram como “agitadores sociais” e “revolucionários”. Claro que é um exagero,
pois os cangaceiros não tinham um projeto politico de futuro, como os revolucionários,
para a sociedade, nem buscavam uma transformação das estruturas da sociedade.
Estavam mais preocupados em sobreviver no hostil e injusto cenário brasileiro da
época, afrontando os opressores e exploradores. Mais adiante, pensaremos mais sobre
os significados dos cangaceiros para a sociedade.
Antes de seguir, vale afirmar que na figura dos cangaceiros se misturam três tipos de
banditismo, pensados pelo historiador Eric Hobsbawm. O primeiro é o banditismo de
vingança de sangue, feito de uma família contra a outra por motivos pessoais, que
incluem a honra familiar e individual a ser defendida. O segundo, é o banditismo puro
ou simples. Trata-se do bandido que rouba para si, assaltando à mão armada. É um meio
de vida encontrado em sociedades onde há pouca abertura e oportunidades de vida
decentes para todos. Por fim, temos o banditismo social, o caso típico do lendário
“Robin Hood”. É a atitude bandida feita como protesto, nem sempre consciente, às
injustiças e hierarquias da sociedade, é o “roubar dos ricos para dar aos pobres” da
lenda. Como veremos, nas histórias dos cangaceiros que analisamos, os três elementos
estão presentes.
!Agora é hora de adentrar nesse universo quente e seco, onde muitas vezes o gado
esquelético apenas tinha para comer os mandacarus espinhosos da caatinga, em que os
poderosos dominavam utilizando tal violência que essa se tornava uma das
características mais marcantes dos sertões nordestinos. Vamos conhecer um pouco do
Brasil do século 19 para conhecer verdadeiramente o cangaço.
Depois, tente perceber que certos elementos não mudaram completamente, presentes
ainda em diversas dimensões do cotidiano e da política do Brasil de hoje.
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1. Contexto econômico do Brasil imperial
Para melhor entender a organização dos cangaceiros, é preciso compreender um
pouco mais sobre a organização econômica e de poder na sociedade na qual esses
personagens surgem e estão inseridos. Se os cangaceiros eram por um lado encarados
como violentos, foras-da-lei e bandidos por parte de certos grupos sociais; em outras
camadas, geralmente mais populares, eram conhecidos como “justiceiros”. Por que isso
ocorria? O contexto do surgimento do cangaço, na época do Brasil imperial, pode
ajudar-nos a entender essa questão.
!Estrutura econômica e fundiária
À época do surgimento do cangaço, o Brasil era um país com estrutura
econômica agraria e exportadora, ou seja, o Império tinha como principal fonte
econômica a agricultura, baseada em imensas unidades produtoras, as fazendas movidas
pelo trabalho de escravizados africanos. Logo após a independência, durante a década
de 1820, os principais produtos exportados eram o açúcar, o algodão, o café, embora o
algodão tenha sido bastante restrito, se comparado às outras culturas agrícolas. Após a
segunda metade do século 19, porém, o café passou o açúcar, representando muito mais
da metade do percentual de produtos que eram vendidos ao exterior.
Essa economia agrária leva ao desenvolvimento de alguns fatores que são
consequentes a essa forma de economia, a saber: o latifúndio, a escravidão, o
mandonismo e o clientelismo.
!Organização da terra
Já durante a colônia, a ordem econômica do Brasil era a agricultura voltada para
a exportação. Disso derivava que os mais ricos, homens brancos, geralmente possuíam
extensas quantidades de terras (latifúndios) aonde produziam, graças aos seus grandes
números de escravos – e posteriormente de imigrantes que passaram a trabalhar nas
fazendas –, os produtos agrícolas que revendiam para os mercados europeus.
A concentração de terras nas mãos de pouquíssimas famílias gerava uma grande
concentração de riquezas nas mãos de poucos, uma vez que era a partir da terra que se
desenvolvia a economia. Assim, no Brasil quase não houve espaço para os pequenos
produtores e para a agricultura familiar. E nem para a classe media. Assim, o espaço
restante aos homens livres e pobres, dentro de um sistema baseado no trabalho escravo
em larga escala, estava mais restrito ao serviço para os latifundiários, de quem muitas
vezes dependiam. Como os latifundiários cobravam a fidelidade dos seus dependentes,
dizia que “mandava” nas atitudes do homem livre pobre, que se sentia na obrigação de
aceitar…
A charge abaixo, de Angeli, satiriza o problema da concentração de terras:
!Para pensar como ocorreu a concentração de terras nas mãos de poucos
proprietários no século 19 é preciso estudar uma lei importante desse período, que ficou
conhecida como Lei de Terras de 1850. Essa lei agravou a situação de desigualdade no
campo.!
O ano de 1850 é considerado um marco na história do Brasil, no que se refere
ao futuro da escravidão, do sistema que baseava a economia agroexportadora. Nessa
metade do século 19, começaram a se intensificar as pressões inglesas – e do
movimento abolicionista brasileiro, que a partir de então fortalece cada vez mais – pelo
fim da escravidão. Logo, os latifundiários escravistas, que influenciavam muito o
governo do 2º Reinado, implantaram uma lei que dificultava demais o acesso à
propriedade da terra, meio de produção de renda e subsistência para a imensa maioria da
população, desprovida de posses, ou seja, de dinheiro para comprar a terra.!
A Lei de Terras de 1850!
Antes dessa lei no Brasil, a terra era considerada propriedade da Coroa, que
concedia a permissão de uso para as pessoas, mas não a posse. Assim, ninguém era
dono da terra e não podia vendê-la ou comprá-la. Os senhores de engenho, por exemplo,
tinham permissão para plantar e estabelecer seus negócios nas terras da Coroa, mas não
eram os donos. Outra forma de conseguir a terra (já que havia grande quantidade
disponível) era simplesmente ocupar, mas para isso, a pessoa, muitas vezes, tinha que
enfrentar os índios hostis.
Com a Lei, era regularizada a posse de terra, como propriedade privada. Todas
as terras não usadas ficavam para o Estado, que as venderia caro. Eram chamadas de
“terras devolutas”. Temos aí o primeiro fator de exclusão dos mais pobres, o alto preço
da terra pública.
Com o dinheiro desse negócio o governo poderia estimular a imigração de
trabalhadores (a escravidão nessa época estava ficando mais difícil de manter, o tráfico
de escravos já estava proibido... era preciso encontrar outra fonte de mão de obra!) que
não teriam terra e nem dinheiro pra comprá-las, sendo obrigados a trabalhar nas grandes
fazendas. Além disso, agora era possível que as pessoas registrassem sua terra e a
legitimassem como propriedade, pedindo a demarcação de seu território e pagando um
registro. Isso permitiu grandes fraudes: com documentos falsificados, os latifundiários
legitimaram a posse de enormes quantias de terra.
No mesmo período os Estados Unidos também discutiam sua estrutura de
terras, para ocupar o Oeste do país (até então povoado por diversos povos indígenas).
Porém, decidiram fazer uma lei diferente: a Homestead Act, de 1862. Lá, não houve o
problema de terras que temos aqui, mas a lei não resolveu os problemas de pobreza,
embora a simples comparação entre a lei brasileira e a estadunidense demonstre que a
possibilidade aberta pela Homestead Act, aqui simplesmente não existiu. Perceba,
comparando as duas leis (na página seguinte):
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!Ordem escravista !
Para desenvolver a agricultura, o Brasil Império continuou adotando, durante
quase toda a sua existência, a escravidão como forma de trabalho. A lógica de o
trabalhador vender a sua força de trabalho através do salário ainda não ocorria no país.
O que acontecia era que os brancos ricos, ou os que podiam, compravam os negros para
que estes trabalhassem em sua produção, embora uma análise mais cuidadosa sobre a
escravidão no Brasil demonstre que a regra não era uniforme, e diversas combinações
entre escravizados, libertos e homens livres fugissem ao que era mais comum na
sociedade de então.
A partir das novas leis: Brasil EUA
Quem podia ter terras? Quem comprasse as terras do Estado ou quem comprovasse que ocupava e usava a terra há tempos, apresentando documentos antigos, exigindo a demarcação e pagando o registro.
Qualquer família interessada em cultivar um lote que estivesse disponível. O governo repassava a propriedade por um baixo custo.
Quem podia desenvolver atividade econômica nas terras?
Todos que se tornassem donos da terra. Como era caro comprar, só quem já tinha terra antes conseguia.
Todos que recebessem a terra do governo eram obrigados a ficar nela e cultivá-la por pelo menos 5 anos.
Quais os resultados? A terra não se distribuiu entre a grande quantidade de pessoas livres e os futuros negros libertos. Pequenos proprietários perderam as terras. Sem terras, essa população teve que trabalhar em condições precárias para os grandes latifundiários. Criou-se um grande problema que dura até hoje: muitas terras na mão de poucos, muita gente sem terra nenhuma.
Quem ficou com a maior parte das novas terras do Oeste foi quem já tinha propriedades no Leste e migrou, ou os imigrantes que vieram da Europa. A lei falhou em não conseguir a migração dos pobres das cidades para as novas terras rurais disponíveis. Além disso, a chegada dos americanos no Oeste acelerou a destruição dos povos indígenas.
Durante o século 19, em que o Império existiu no Brasil, a escravidão foi
pouco a pouco sendo pressionada para acabar, devido a todo um contexto de luta
abolicionista, dentro e fora do país. Porém, os senhores de escravos se mantiveram
sempre muito resistentes ao fim da escravidão, recorrendo inclusive ao tráfico interno,
quando já estava proibido a importação de novos escravos da África.
Além da utilização de mão-de-obra negra e escrava, os senhores também
passaram a utilizar os imigrantes europeus, que se mudavam para o Brasil em busca de
melhores condições de vida e trabalho, como fonte de trabalho manual. Esses
imigrantes, porém, eram assalariados e tinham, no geral, condições melhores que os
escravos ainda que também fossem explorados.
Quando a escravidão de fato acabou no Brasil, em 1888, um ano antes do fim
do Império, pode-se dizer que o trabalho escravo nas plantações de café praticamente já
não era utilizado, sendo substituído quase que integralmente pela mão de obra imigrante
ou assalariada (ainda que completamente explorada).
!Mandonismo e clientelismo
Vamos agora analisar algumas das formas de mando mais próximas às
populações mais pobres, centradas principalmente na figura do dono das terras e nos
seus capangas, que ajudavam a manter a ordem exploratória no trabalho e a economia
agrária.
Pelo fato de o Brasil ter àquela época a economia baseada na agricultura, os
senhores de terra mais ricos tinham grande influência nas populações mais pobres. Eles
exerciam nesses grupos diversas formas de poder, como o mandonismo (que era
quando, através da posse de terras, o senhor exercia influência direta – econômica e
política – sobre a população que geralmente vivia dentro ou próximo às suas
propriedades) e o clientelismo (sistema de micro-relações políticas onde há a troca de
influências, ou seja: há um “patrão” que proporciona uma série de benefícios aos seus
“clientes”, de forma a sempre mantê-los em sua esfera de controle e poder).
Essas duas estruturas acabam por perpetuar uma organização social onde os
proprietários de terra sempre mantém seu poder econômico frente a uma grande
quantidade de pessoas pobres e sem terras.
!Incorporação das populações pobres
Depois de analisar toda essa organização da economia, pautada na agricultura,
na exploração violenta da força de trabalho e em formas de mando e poder desiguais, é
difícil afirmar que no Brasil Império as populações mais pobres tivessem qualquer
forma de inserção ou de direitos garantidos.
Porém, como já vimos com o exemplo da Balaiada, durante esse período não
faltaram revoltas populares ou formas de organização da população mais pobre e/ou
escrava contra essas estruturas de poder. Como será mais para frente abordado, pode-se
entender que o cangaço também foi uma das formas de luta encontrada por parte da
população contra essas estruturas de mando e poder centradas na organização
econômica agrária e de exploração da força de trabalho e das populações pobres.
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2. Violência - Elemento estrutural da sociedade !A violência era um elemento comum na sociedade do século 19 no Brasil. Ela
se manifestava de forma mais clara nas posições mais baixas da sociedade, na
truculência contra o escravo e contra a pessoa livre e pobre - posição ocupada pelos que
se tornavam cangaceiros. O cangaceiro demonstrava relativa agressividade em suas
ações. Entretanto, essa violência não deve ser vista como um aspecto natural do seu
comportamento, ela é na verdade uma reação a uma ação causada anteriormente.
A sociedade desse contexto apresentava diversos elementos que favoreciam o
surgimento da agressividade na pessoa livre e pobre. Na verdade esses elementos eram
violentos por si só, contra essa população e muitos deles se conservam até os dias atuais
no Brasil. Portanto, como uma dinâmica de ação e reação, essa violência social parte do
macro para o micro. No macro ela se dá a partir de todo o sistema político e econômico,
que impõe as suas vontades a todos que estão nas camadas mais baixas. Já no micro ela
aparece na agressividade cotidiana: nas brigas que acabam em morte, nos roubos e
saques, nos duelos, nas pequenas disputas e etc.
No que se denomina “macro”, vamos entender como o contexto em que o
fenômeno social ocorre, ou seja as estruturas que formam o universo que estudamos
agora; no que se denomina “micro”, o ponto para onde convergem todas as forças que
compõem o macro. É onde se encontra o indivíduo pobre e excluído de qualquer
participação política ou forma de alcançar níveis mais dignos de sobrevivência.
A figura abaixo expressa essa dinâmica:
Essa figura da pirâmide invertida da violência começando com o governo do
Império Brasileiro, um dos principais geradores de violência. Isso porque tal instituição,
representante da ordem e autoridade, impõe suas decisões de forma truculenta, muitas
vezes à custa de morte e sangue (como fez na repressão às diversas revoltas do período),
outras vezes através de leis que tiram direitos e acabam com as liberdades de setores da
população, beneficiando apenas os mais ricos.
Dando continuidade, outro gerador de violência é a estrutura econômica da
sociedade, já estudada no tópico anterior. Totalmente baseada na escravidão e na
economia agroexportadora, ela excluía os homens livres e pobres dos principais
trabalhos existentes, já que todo trabalho relacionado ao cultivo do solo era feito por
escravos. Além disso, o trabalho nas cidades era ocupado apenas por uma pequena
parcela de homens com maiores condições econômicas de empreender um negócio
próprio (artesãos, por exemplo).
Dessa forma, o sujeito que não pertencia a nenhuma dessas classes era excluído
socialmente. Acabava por ficar à margem nas cidades e no campo, ocupando-se de
atividades que criava ou que lhe restava. Logo, não é a toa que o cangaceiro se torne um
insurgente, um rebelde, que dentro de certos limites pode ser enquadrado como um
bandido social, devolvendo a violência contra o sistema, de forma muitas vezes
indiscriminada. Nesse ponto, a valentia e a violência se tornam valores exaltados por
essas pessoas: numa sociedade onde está melhor quem oprime e usa do outro para se
beneficiar (seja ele escravo ou um livre pobre), é só impondo poder, através da
violência, aos outros que o indivíduo consegue ter seu espaço. É devolvendo a violência
do sistema - seja para alguém igual, abaixo ou acima de sua posição social - que a
pessoa pertence a essa sociedade. Assim, a violência torna-se costumeira.
E hoje? Você considera que vive numa sociedade violenta? Seu bairro, a
comunidade em que você vive, tem violência? De que tipo ela é? Dentro do conjunto da
sociedade brasileira, você considera que algum grupo social é mais atingido do que
outros pela violência urbana? Essa violência é cometida apenas por criminosos, ou
existe participação de representantes do estado nessas ações? E na zona rural, ainda é
possível perceber elementos que tratamos até agora, ou você acha que tivemos grandes
mudanças em nossa história?
!A violência vinda de cima: Duque de Caxias
Durante muito tempo, a história tradicional serviu para preservar as estruturas
injustas do Brasil, responsáveis pelos problemas nacionais. Para tanto, criava
interpretações românticas dos acontecimentos, transformando determinados
personagens em heróis, sem que estes tivessem qualquer mérito, embora ocupassem
posições muitas vezes centrais no contexto em que vivia.
Assim é com Luiz Alves de Lima e Silva, que ficou conhecido como Duque de
Caxias, o “Patrono do Exército”. Nascido em 1803, na então Província do Rio de
Janeiro, era filho de um militar e de uma senhora de família latifundiária e escravista.
Seu pai, o marechal Francisco de Lima e Silva comandou a expedição que derrotou a
Confederação do Equador, que teve em Pernambuco seu epicentro, e foi o comandante
militar de tropas oficiais brasileiras antes da formação do exército brasileiro. Depois,
fez parte das regências, enquanto Dom Pedro II não tinha idade suficiente para assumir
o trono. Entregou o governo do império ao padre Feijó, e tornou-se senador.
Por conta da linhagem familiar, Luiz Alves de Lima e Silva já chegou oficial
ao exército, ainda não organizado segundo os moldes atuais. Em 1839, quando a
Balaiada ameaçava a ordem estabelecida entre as províncias do Maranhão e Piauí, o
então coronel foi para lá enviado, acumulando o cargo de presidente da Província do
Maranhão. Suas tropas cercaram a cidade de Caxias, no interior do Maranhão, ocupada
pelos balaios, esperando o momento da invasão, quando massacraram boa parte dos
rebeldes.
Por conta da repressão contra a revolta popular, que tinha aspirações muito
Justas dentro de um contexto de injustiça e opressão, o coronel Luiz Alves de Lima e
Silva foi promovido, e tornou-se, sucessivamente, Barão, Conde, Marquês e,
finalmente, Duque de Caxias. Vale esclarecer que os soldados ao comando de Luiz
Alves não tinham treinamento nem disciplina, e obedeciam por conta do terror das
punições instituídas pelos oficiais; a formação dos batalhões utilizava, em larga escala,
o recrutamento forçado.
As revoltas do período regencial – além da Balaiada, ocorreram também a
Cabanada, no Pará, Revolução Farroupilha no sul do Brasil, e na Bahia, a menor de
todas, a Sabinada – ameaçaram, realmente, a unidade nacional. Para não dividir a ex-
colônia portuguesa, a repressão aos revoltosos foi extremamente violenta. No entanto,
as causas da revolta popular não foram sanadas. E, por causa de sua atuação em quase
todas essas guerras civis, Luiz Alves de Lima e Silva foi aclamado como o
“Pacificador”.
Mais de vinte anos depois, o Duque de Caxias, já idoso, comandou o exército
brasileiro, que ainda concluía seu processo de formação, na Guerra do Paraguai. Como
era o comandante do exército durante a etapa crucial da vitória que arrasou o Paraguai,
voltou ao Brasil como herói.
A visão tradicional da história já foi revista, de forma a ajustar a biografia do
Duque de Caxias à realidade em que ele não é um herói; na verdade, é um dos deveres
da história contestar a importância que se dava a tais personalidades tidas como
“heróicas”. Porém, ainda hoje o exército brasileiro mantém o culto à personalidade do
Duque de Caxias. Corporação que se mantém fechada ao mundo exterior, o exército
mantém uma visão excessivamente tradicional da história, e por isso boa parte da
disciplina militar dos soldados é baseada na glorificação dos heróis, entre eles o Duque
de Caxias.
Hoje, no centro histórico do Rio de Janeiro, próximo ao casarão do Marechal
Deodoro (tido pela desgastada história tradicional como o “Proclamador da
República”), se encontra um imenso monumento em homenagem ao Duque de Caxias.
Tem guarda permanente, ou seja, o tempo todo soldados armados do exército, se
revezam em turnos, zelando pelo “Panteão de Caxias”, onde estão os restos mortais do
“Patrono” do exército. Veja nas fotos abaixo:
Cabe questionar: por que um monumento tão grande? E por que a guarda permanente no local? Por que os restos mortais do Duque de Caxias não estão num cemitério?
Para esclarecer: todo o centro histórico do Rio de Janeiro foi construído e
reconstruído de forma a funcionar como um cenário artificial de ordem e progresso,
unidade e fausto. Enquanto tal cenário era construído de forma a consolidar todas as
injustiças que causaram os maiores problemas que o Brasil ainda enfrenta, a poucos
quilômetros e por boa parte do interior do Brasil revoltas de escravos e, após o fim da
escravidão, de pessoas simples, tentavam questionar, pela única forma que conheciam –
a violência – toda a ordem de injustiça e opressão imposta.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
3. Finalmente, o Cangaço!!
Cangaço insurgente! Como vimos, esse fenômeno deve ser pensado levando
em conta as características históricas do contexto socioeconômico, político e
ideológico-cultural que permitiu seu surgimento, atuação e dizimação pelas forças
policiais das classes dominantes e proprietárias que reinavam na região sertaneja do
Nordeste brasileiro.
O cangaço, da dependência inicial dos coronéis e donos da terra (e da vida
alheia), desaguou historicamente na insurgência “fora da lei” contra o mandonismo
coronelista e o latifúndio de raiz colonial para os quais, contraditoriamente, prestou seus
serviços durante boa parte do século 19. De raízes remotas, apontadas pela
historiografia especializada, seguramente, na Balaiada, uma vez fora do controle dos
coronéis da terra e de seus políticos e milícias armadas, os cangaceiros se
transformaram, na visão dominante – e, portanto, das classes dominantes – em sinônimo
de malfeitores.
A chamada “civilização do couro”, nutrida pela exploração do trabalho humano
não-escravo, e pela superexploração do gado bovino, que se alastrou ao longo dos
cursos d’água, a exemplo do Rio São Francisco, também conhecido, desde o período
colonial, como “Rio dos Currais”.
Com toda repressão que acompanha necessariamente a concentração de terras
desde as Sesmarias do período colonial agravada pela já vista Lei de Terras do século
19, diferenciou-se, por exemplo, da grande propriedade escravista voltada para o
mercado exterior, paisagem histórica que marcou e particularizou os engenhos
açucareiros nordestinos. A pecuária era uma atividade complementar de extrema
importância para o funcionamento do sistema agroexportador e escravista, sendo por
isso uma das principais atividades a qual se ocupavam os homens e mulheres livres e
pobres para a subsistência.
Assim, conforme o estudo clássico sobre Os cangaceiros: os bandidos de
honra brasileiros (1958), de Maria Isaura Pereira de Queiroz, “o boi impôs sua marca
na civilização do Sertão”, podendo ser observado “com que precisão se elabora a
civilização do couro e dos reis do cangaço”. A estrutura fundiária, que é como se
organizam, em conjunto, todas as propriedades rurais do país, e mais as características
específicas da atividade socioeconômica a ela vinculada e coroada na figura dos
tratadores de “boi” - incluindo o tipo de superexploração de trabalho utilizado, bem
como a extrema violência político-jurídica consequente e formadora do sistema -
portanto, formam o pano de fundo histórico para entendermos a violência do cangaço
num contexto de violência sistêmica que marca a região do sertão nordestino, no
mínimo, desde os tempos coloniais.
Até hoje, porém, os dicionários registram o termo cangaceiro, com o
aparecimento do verbete em 1899, como exemplo de “malfeitor fortemente armado que
andava em bando pelos sertões do Nordeste, notadamente ao longo das três primeiras
décadas do século XX” . Trata-se de uma simplificação falsa. 1
Sendo a violência um elemento formador de todo o contexto que estamos
analisando, também muitas das reações da vítimas desse sistema eram também
violentas. Talvez por isso a violência seja tão valorizada, através da valentia, pelas
populações sertanejas da região em que o cangaço se desenvolveu. Eis o motivo da
alegação de Maria Christina Matta Machado, segundo a qual “os cangaceiros nunca
foram entendidos. Passam por simples criminosos e ladrões, quando, na realidade, eram
homens que lutavam porque não conheceram a justiça” . 2
Conclusão e indagações da mesma autora: “Fizeram, então, a justiça com as
próprias mãos. Eram os ‘fora-da-lei’? Mas onde estava realmente a lei? No bolso dos
ricos ou no porrete do coronel?” . Com os estudos anteriores nesse material acho que já 3
podemos dizer a resposta. Na próxima parte, conheceremos os locais onde os
cangaceiros atuaram e algumas histórias de vida dos personagens mais célebres do
cangaço para aprofundar nossos conhecimentos.
!Geografia
A região onde o cangaço ocorreu é bastante extensa: a partir do norte de Minas
Gerais, pelo Vale do Jequitinhonha em direção ao norte, e acompanhando o rio São
Verbete Cangaceiro in: Dicionário Houaiss (2009).1
Nosso Século. 1930/1945: A Era Vargas. São Paulo: Abril Cultural, 1980.2
Ibid.3
Francisco, de sua nascente até a foz. Dessa região, ao norte do que se considera
legalmente como parte da região sudeste, ou do estado mais ao norte dessa região, que é
justamente Minas Gerais, compreendendo então todos os estados do nordeste: Bahia,
Sergipe, Alagoas, Pernambuco, Ceará, Paraíba, Rio Grande do Norte, Piauí e parte do
Maranhão, até onde se formam as áreas de transição para a região amazônica,
perceptíveis pelas características da vegetação das regiões, que vai se alterando em face
ao regime climático..
Em boa parte dos estados que compõem hoje o interior do Maranhão,
Tocantins, Piauí e Bahia fica uma área em que o cerrado se estende, do planalto central,
até fazer divisa com a caatinga, pelos lados do Piauí, e com a região em que o cerrado
cede lugar às florestas maranhenses. Em parte dessas áreas ocorreu a cultura algodoeira
que serviu de contexto para a Balaiada, entre atuais Maranhão e Piauí. Atualmente é
uma região em que o latifúndio monocultor permanece ativo, mas não com o algodão:
hoje é a soja que avança, quase descontroladamente, sobre o que resta das áreas de
cerrado, devastando esse bioma brasileiro de extrema importância para a renovação dos
lençóis freáticos que abastecem boa parte dos rios que correm pelo centro do Brasil,
como por exemplo o rio São Francisco. Evidentemente, como é praxe na história do
Brasil, tais plantações de soja consomem os recursos do meio ambiente de forma
predatória, afetando a todos de forma negativa, porém enriquecendo poucas famílias
privilegiadas.
No sertão, a estação seca se alterna com a estação das chuvas: de dezembro a
junho, no máximo, é o período de chuvas, quando o sertanejo pode semear suas roças. O
período seco, via de regra, seria de julho a novembro. Porém, sempre foi normal que os
períodos tivessem atrasos e compensações. Afinal, o tempo da natureza não tem a
exatidão dos aparelhos que medem o tempo.
Periodicamente, o regime de chuvas sofre algum desequilíbrio, muitas vezes de
oscilações climáticas ocorridas noutras regiões. Daí vem as secas, historicamente
registradas a partir de quando iniciou a ocupação do interior nordestino pelos
colonizadores, que avançavam sobre a vegetação do agreste e da caatinga tangendo a
pecuária extensiva, que seguia o curso dos rios.
A história brasileira registra grandes tragédias humanas no sertão nordestino,
como as grandes secas da década de 1870, 1915 e 1983. As catástrofes climáticas
ocorridas entre o final do século 19 e início do 20 agravavam as situações tensas
referentes à violência dos bandos de cangaceiros, assim como os jagunços dos coronéis.
Além de toda a perturbação social, as secas também provocavam intenso êxodo
migratório para outras regiões do Brasil, em correntes mais perceptíveis nos períodos
secos.
A rusticidade do terreno, arenoso no semiárido e agreste, sustenta plantas que
necessitam pouca água: são comuns as cactáceas, que formam as plantas que tem
espinhos em lugar de folhas, do qual o mandacaru é o maior e mais comum exemplo do
cactus, planta típica do sertão, que no entanto também tem árvores de caules não muito
largos e troncos retorcidos, por conta da escassez de umidade, sendo algumas delas
frutíferas, como o umbuzeiro, que tem por característica a resistência ao regime de
chuvas pouco abundantes, e a produção de frutos que complementam a dieta alimentar
quando de sua época.
O habitante dessa região é o sertanejo, sobre o qual Euclides da Cunha se
referiu em sua obra “Os Sertões”, onde registra a história da Guerra de Canudos: “o
sertanejo é, antes de tudo, um forte”; a rusticidade dessa terra só permite a
sobrevivência de gente forte, que resiste à seca e aos desmandos dos coronéis e
potentados locais, formando a alma da cultura sertaneja.
O mapa na próxima página pode dar uma boa ideia da região onde os
cangaceiros atuaram:
!!!!!!!
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!Região do Nordeste, de maior incidência do cangaço. Repare na legenda que aponta o nível de chuvas na região, assim como na quantidade de bandos cangaceiros registrados a partir do século 19.
Os Personagens do Cangaço !O cangaço que ficou conhecido como independente (sem vínculos com senhores de terra
ou populações locais) tem sua existência datada da segunda metade do século 19. Antes disso, já
haviam grupos que se formavam nos períodos de seca, aproveitando-se de parcelas grandes de pop-
ulações locais (que se dispersavam em busca de sobrevivência) para saqueá-las. Quando o período
de chuvas voltava eles retornavam a uma vida normal. Já os cangaceiros independentes começaram
a formar bandos permanentes, desenvolver um estilo de vida próprio e em constante movimento
(sem casa fixa) pelos sertões.
O cangaceiro que ficou mais conhecido na história foi “Lampião”, atuante no século 20.
Porém, conheceremos também alguns outros personagens, que desde o século 19 já praticavam o
cangaço no nordeste brasileiro. Vale dizer que Lampião se tornou o mais conhecido também pelo
fato de na sua época já existir tecnologia para uma ampla documentação: seu bando foi muito fo-
tografado e filmado em ação, o que facilitou de história na memória
!João Calangro
Temido na região sul do Ceará (Cariri), João Calangro atuou ainda como cangaceiro ligado
a chefes poderosos, tendo participado do bando de Inocêncio Vermelho. Esse bando protegia
povoados e chefes locais dos roubos de gado, na década de 1870
Inocêncio Vermelho foi assassinado em 1876 e Calangro (que se gabava de ter 32 mortes
nas costas) pode assumir a liderança do bando. No período de seca em 1877, houve grande con-
fusão - migrações, retirantes (famílias que fugiam das secas), saques de povoado por grupos fam-
intos - fato que fez com que seus serviços fossem disputados por várias autoridades, senhores de
engenho e povoados. Adquirindo grande prestígio, sendo preferido até mesmo do que as autoridades
públicas, Calangro se “autonomeou” General Brigadeiro.
Com o fim da seca, da confusão e a volta de famílias inteiras aos povoados, dispensaram
os serviços de Calangro e não queriam mais sua autoridade. Começou um período de perseguição a
seu bando, considerados agora como bandidos. Calangro muito esperto dispensou seus homens e
fugiu da região, calçando suas alpercatas (espécie de sandalhas feitas de couro) ao contrário para
que suas pegadas confundissem seus perseguidores! Dessa forma, conseguiu fugir até o sítio de um
padre amigo seu, que espalhou a falsa notícia de sua morte. De lá, foi para o Piauí, onde seus rastros
se perdem na história.
!
Antonio Silvino
Descendente de cangaceiros anteriores (família Brilhante, da qual fez parte Jesuíno Bril-
hante, famoso cangaceiro atuante no Rio Grande do Norte e na Paraíba), Antonio Silvino se iniciou
no cangaço para vingar a morte de seu pai (assassinado em um disputa por terras com outros propri-
etários, os Ramos da Silva), não resolvida pela justiça. Após concluir essa ação matando sua vítima,
passou a ser perseguido por um delegado que protegia a família Ramos da Silva. Diz-se que Silvino
se escondeu na caatinga por longo tempo, perseguindo seu perseguidor, até que um dia se encon-
traram em duelo de faca num caminho deserto.
Silvino juntou-se a Luiz Mansidão (descendente de es-
cravos) e seu bando, passando a viver sem uma casa fixa,
vagando pela região de Pernambuco, Ceará e Rio Grande do
Norte na última década do século 19. Aos poucos foi se afa-
stando de disputas políticas e da lógica da vingança dos
sertões, atuando como uma espécie de cavaleiro andante.
Suas histórias são pouco conhecidas e se baseiam mais no
boca a boca, na tradição oral que passa de geração para ger-
ação das famílias nordestinas, mantendo a imagem desse
cangaceiro viva na memória da população. Assim, sua fama
popular é de que partilhava o resultado de seus saques com
os pobres e também apresentava-se como “guardião dos bons costumes e da autoridade dos mari-
dos” (há uma história que diz ele e seu bando foram na casa de um major tirar dele a filha, que
havia fugido do marido, alegando maus tratos). Continuou fugindo de cercos policiais e matando
outros delegados, ficando conhecido e temido na região. Abaixo, um episódio conhecido sobre suas
aventuras:
!
Desenho de Antonio Silvino
Saqueando a vila (Pilar, na Paraíba), abriu o cofre de um negociante, Pio
Napoleão. Dentro havia cinquenta contos. Silvino disse: “Se eu fosse
ladrão, levaria todo este dinheiro. Mas não sou. Preciso agora somente de
duzentos mil-réis. Dê-me os com suas próprias mãos.” O homem deu, e ele
saiu calmamente.
O sertão aos poucos ia se modificando, no início do século 20, com algumas tentativas do
governo de criar infraestrutura, principalmente a partir de estradas que eram construídas com o ob-
jetivo de integrar os locais distantes aos centros (Rio de Janeiro, São Paulo…). Junto ao seu bando,
Antonio Silvino aproveitou a chance para saquear correios e se tornou um grande obstáculo para a
ferrovia de Pernambuco: “perseguiu construtores e engenheiros, impediu trabalhos, cortou fios
telegráficos, obstruiu linhas já construídas, fazendo parar trens e cobrando direitos de passagem aos
aterrorizados passageiros”. Com isso, Silvino foi cada vez mais perseguido pelas polícias e pelos
proprietários.
Em 1910-1911, casou-se com Tita, filha de um fazendeiro, mas ela não o acompanhou em
suas viagens, continuou morando com a família. O cangaceiro começava a sentir o peso de não ter
um lugar fixo e uma vida tranquila, e então planejou logo sair do cangaço. No entanto, sua tentativa
de adquirir uma vida normal foi frustrada:
!!!
!
Antonio Silvino (o segundo de pé, da esquerda para direita) e seu bando
Seu grande prestígio na região fez com que seu apoio fosse disputado por políticos. Silvino
até começou a se envolver no jogo da política, mas logo viu que não dava certo e não trazia melho-
ras para a população. Logo o fato de ser perigoso começou a valer mais para as autoridades do que
seu possível apoio e os grandes mandantes locais resolveram juntar esforços para capturar o canga-
ceiro mais temido da época. Foi firmado um acordo entre os governos de Recife, Pernambuco, Na-
tal e Paraíba para intensificar a caça a Silvino e outros “criminosos” da região.
Nada disso parou o cangaceiro. Audacioso, ele até enviou um recado em telegrama aos
governadores desafiando-os e dizendo os locais por onde ficaria. Abaixo, o texto enviado ao gover-
nador da Paraíba:
Depois de um tempo, Antonio Silvino acabou sendo capturado ironicamente por uma de
suas vítimas mais humildes: um pequeno comerciante chamado José Alvino Correia de Queiroz.
Depois de ser saqueado pelo
cangaceiro, jurou vingança e
entrou para a polícia com o ob-
jetivo de perseguí-lo. Con-
seguiram capturá-lo em uma
emboscada policial. Os jornais
repercutiram amplamente a
notícia, comemorando a captura
e chamando-lhe de bandido.
!
Sonhando em se estabelecer como criador de gado no Estado do Rio
Grande do Norte, pediu Silvino a um padre de seu conhecimento que inter-
cedesse por ele junto ao governo. Prometia mudar de vida, desde que suas
atividades passadas fossem perdoadas e esquecidas. A resposta foi nega-
tiva, o que o enfureceu.
Dr. Castro Pinto, governador bandido. Não precisava reunir quatro Esta-
dos para perseguir-me, pois garanto-lhe que não saio de dois, fazendo
perseguição ao seu governo. Dr. Massa (chefe de polícia), toda
perseguição que me fizer eu me vingo em sua família (…) (carta publicada no
jornal da Pacotilha, de 30/1/1913).
Silvino foi preso, condenado a 30 anos de prisão, dos quais cumpriu 23. Foi solto em 1937,
após enviar uma carta ao presidente Getúlio Vargas pedindo liberdade e dizendo que já tinha
cumprido pena suficiente. O presidente ainda lhe arranjou um emprego no Rio de Janeiro, como
construtor na estrada Rio-Salvador, mas ele não conseguia se adaptar, dizia que “o trabalho que lhe
haviam dado não era digno de um homem; era trabalho pra cabra safado e sem vergonha”. A um
jornalista que entrevistou-o na época de prisão contou: “a maior parte dos crimes que me são
atribuídos não fui eu quem cometeu, foi a polícia”.
Como se vê, Antonio Silvino não foi gente de abaixar a cabeça: desconfiou dos poderosos
e políticos; trilhou o próprio caminho de sobrevivência no sertão hostil, onde um polícia autoritária
cometia diversos abusos e protegia mais os donos de terra do que as populações pobres; não se con-
formou com a exploração do trabalho. No fim, morreu em 1944 na Paraíba na casa de sua prima e
ao lado de sua mulher Tita.
!!
Antonio Silvino reinou dezoito anos sobre o Sertão. Seis anos
após sua captura, começou a erguer-se a estrela de Lampião.
As volantes
Os grupos de policiais que perseguiam os cangaceiros pelas caatingas eram chamados de
“volantes”. Entre os cangaceiros, esses policiais foram apelidados de “macacos” - pois no en-
frentamento direto fugiam pulando como esses animais. Os policiais se vestiam de forma semel-
hante aos seus perseguidos e muitas vezes aterrorizavam e abusavam dos civis mais do que os
próprios cangaceiros.
!
Lampião
!
Grupo de volantes no sertão (acima) e desenho de um membro da volante (ao lado). Note a semelhança dos trajes com o dos cangaceiros
O Rei do Cangaço: Virgulino Ferreira da Silva, nascido em 1898, se tornou o cangaceiro mais conhecido e temi-do da história, sob o nome de Lampião. Antes de entrar para o cangaço trabalhou como artesão, aprendeu a ler e escrever. Em 1919 jurou vingar a morte de seu pai, cau-sada por uma família rival, os Saturninos. A partir de então se embrenhou no sertão, formou seu bando e se tornou temido, procurado e respeitado por toda a re-gião. Em suas andanças conheceu e se apaixonou por Maria Bonita, integrando-a no bando. Após quase 20 anos de banditismo social, seu grupo caiu numa embos-cada, na qual Lampião foi morto. Muitas canções e his-tórias relembram suas façanha até hoje.
As Mulheres no Cangaço
A presença feminina no cangaço se dá em vários exemplos e são pontos centrais de muitas
narrativas que envolvem o Cangaço. Contudo, parece que a grande maioria dessas narrativas se
concentram também em um dos grupos mais famosos: o próprio bando de Lampião foi um dos pri-
meiros a estabelecerem a figura do casal como parte integrante do grupo. Assim, o primeiro casal,
seria formado pelo chefe do bando, Virgulino Ferreira da Silva, ou Lampião, e Maria Gomes de
Oliveira, também conhecida como Maria Bonita. Relatos de integrantes do grupo, como Volta Seca,
datam a permissão de Maria Bonita se juntar ao bando depois de 1928.
A marcante presença dessa personagem, conhecida pelo
amor e ciúme que sentia por seu companheiro, deixa evi-
dente que foi também da própria mulher a vontade entrar
para o Cangaço. Normalmente, a origem dessas mulheres
era similar a dos homens no cangaço: vinham de uma popu-
lação que encarava a seca e a pobreza no seu cotidiano. As
expedições das quais seus maridos cangaceiros participa-
vam significavam longos períodos fora de casa, o que não
era favorável para a condição da própria mulher no que diz
respeito ao enfrentamento das dificuldades da vida no ser-
tão. Por isso, a decisão de algumas mulheres acompanha-
rem os bandos e se tornarem cangaceiras também. Dessa
forma, é questionável a interpretação de que a participação
das mulheres se deu por uma simples “permissão” dos ho-
mens já que, considerando essas condições, elas mesmas
poderiam preferir seguir junto ao bando.
Na maioria dos casos, as mulheres são descritas como exímias bordadeiras, parteiras
e companheiras dos cangaceiros. Mas o papel das mulheres não se restringia a esses exemplos.
Eram também responsáveis por cuidar de ferimentos, função muito importante para o bando. Assim,
sua atuação envolvia também a produção de medicamentos graças aos seus conhecimentos das mais
variadas ervas. Além desses exemplos, existiam os casos de mulheres que se envolviam na ativida-
de de guerrilha. Esse foi caso de Dadá, mulher do cangaceiro Corisco, que chegava a participar de
verdadeiras guerras contra as volantes e é uma das protagonistas da resistência depois da morte de
Lampião. Ela realizou uma longa busca para obter permissão na justiça para poder enterrar as cabe-
Maria Bonita
ças dos cangaceiros do bando de Lampião (que ficaram por um longo tempo no Museu do Crime,
em Salvador). Abaixo, sugerimos vídeos com os relatos de Dadá, sobre o protagonismo feminino no
cangaço:
Parte 1 - https://www.youtube.com/watch?v=YDPJYidXn6Q
Parte 2 - https://www.youtube.com/watch?v=w1t4q4FGE3o
!A Literatura de Cordel e o Cangaço
Também na literatura de cordel podemos flagrar a complexidade da violência do cangaço
em um quadro social de violências estruturais, que se identifica com a própria história brasileira.
Assim, diferentemente da visão dominante de “fora-da-lei”, observamos uma outra representação
cultural do cangaceiro no imaginário popular nordestino.
Lembramos que o cordel, expressão cultural de um determinado modo de vida humana em
determinada região geográfica com suas específicas condições sócio-históricas, posicionou-se do
lado oposto da visão oficial, como por exemplo aquela que registramos mais acima com o dicioná-
rio, qual seja: cangaceiro = malfeitor em armas.
Xilogravura do artista Stênio, capa do cordel “A Chegada de Lampião no Inferno”
Em versos populares, nesse sentido dissonante da definição do vernáculo, insurge-se uma
outra visão cultural de mundo sobre a figura do cangaço e dos cangaceiros. Acompanhemos como o
cordel retrata, sinteticamente, a gênese histórica do cangaceiro como um “bandido social”, fruto das
condições históricas que o criaram:
O indivíduo se vê Da polícia perseguido Não pode plantar roçado Porque vive foragido Invade para comer Ou tem que morrer Assim se forma o bandido 1!A implacável repressão policial contra o cangaço, ainda em versos de cordel, foi represen-
tada na procura da “cabeça do Rei do Cangaço”, de modo a comparar a “polícia de Pernambuco” à
sanha de um “urubu”, ou seja, um comedor de carniças. Clara está, pois, a posição do cordel ao lado
dos “de baixo”, junto aos oprimidos e aos revoltosos e insurgentes, o que se nota ao retratar a re-
pressão do Estado contra Lampião:
!A polícia de Pernambuco Fareja como urubu Procurando Lampião Nas águas do Pajeú 2
!Ainda em expressão literária de cordel, impressiona a sextilha (estrofe de seis versos) que
trata da inserção de Antonio Silvino, como um “justiceiro social” em um mundo repleto de injusti-
ças oficiais:
No bacamarte eu achei Leis que decidem a questão E que fazem melhor processo Do que qualquer escrivão As balas eram soldados Com que eu fazia prisão 3
!Porém, o folheto de cordel intitulado A chegada de Lampião no inferno, de José Pacheco,
nascido no município de Corrientes, em Pernambuco, falecido provavelmente em 1954, ao invés de
Ibid.1
Ibid.2
Ibid.3
enfatizar o homem/bandido ou “fora-da-lei”, revela o “bandido salteador” que, “embrutecido pela
dureza da vida sertaneja, não aceitava o jugo dos coronéis e partia para o cangaço, vivendo ‘sem lei
e sem rei’” . Transcrevemos abaixo a narrativa desse cordel, representa a “subversão” da ordem das 4
mercadorias e dos lucros, inclusive, de Lúcifer. Ela pode ser estudada juntamente a uma versão mu-
sical disponível na internet em: https://www.youtube.com/watch?v=4ldSot7OLeU. Em seguida,
propomos uma pequena análise da história.
!Um cabra de Lampião De nome Pilão Deitado Que morreu numa trincheira Num certo tempo passado E agora pelo sertão Anda correndo visão Fazendo mal-assombrado !E foi quem trouxe a notícia Que viu Lampião chegar Os inferno nesse dia Faltou pouco pá virar Incendiou-se o mercado Morreu tanto cão queimado Que faz gosto inté contar !Morreram cem negro velho Que não trabalhavam mais Três netos de Parafuso E um cão chamado Cá-traz Morreu também Bigodeira E um cão chamado Guteira Cunhado de satanás !Vamo tratar da chegada Quando Lampião bateu Um moleque ainda moço No portão apareceu: — Quem é você, cavalheiro? — Moleque, sou cangaceiro
VIEIRA, Francisco Jacson Martins. A mitificação das figuras emblemáticas de padre Cícero e Lampião através da 4
literatura de cordel. Universidade Federal do Ceará: Fortaleza: 2012. Disponível em: http://www.repositorio.ufc.br/bits-tream/riufc/8114/1/2012_dis_fjmvieira.pdf
Lampião lhe respondeu !— Moleque, não sou vigia E não sou seu pariceiro Hoje aqui o senhor não entra Sem dizer quem é primeiro — Moleque, abra o portão Saiba que sou Lampião Assombro do mundo inteiro !O vigia foi e disse: — Fique fora que eu entro Que eu vou falar com o chefe No gabinete do centro Por certo ele não lhe quer Mas conforme eu lhe disser Eu levo o senhor pra dentro !Lampião disse: — Vá logo Quem conversa perde hora Vá depressa e vorte logo E eu quero pouca demora Se não me der o ingresso Eu viro tudo aos avesso Taco fogo e vou me embora !O vigia foi e disse A satanás no salão: — Saiba, vossa senhoria Aí chegou Lampião Dizendo que quer entrar E eu vim lhe perguntar Se eu lhe dou o ingresso ou não !— Não senhor, satanás disse Diga a ele que vá se embora Só me chega gente ruim E eu ando muito caipora Que eu já tô té com vontade De butar mais da metade Dos que têm aqui pra fora !
Disse o vigia: — Patrão A coisa vai piorá E eu sei que ele se dana Quando não puder entrar Satanás disse: — Isso é nada Reúna aí a negrada E leve os que precisar !Quando Lampião deu fé Da tropa negra encostada Disse: — Só na Abissínia Oh! Tropa preta danada E uma voz que ecoou Satanás foi quem mandou Taca-lhe fogo, negrada! !Lampião pôde pegar Uma caveira de boi Sapecou na testa dum E o cabra só fez dizer: — Oi! !Houve grande prejuízo No inferno nesse dia Queimou-se vinte mil contos Que satanás possuía Queimou-se o livro do ponto Perderam seiscentos contos Somente em mercadoria !Reclamava Lucifer: — Crise maior não percisa Os anos ruim de safra E agora mais essa pisa Se não houver bom inverno Aqui dentro dos inferno Ninguém compra uma camisa !Quem duvidar dessa história Pensar que não foi assim Duvidando de meu verso Não acreditando em mim Vá comprar papel moderno
Escreva para os inferno Mande saber de Caim 5
!Conforme autora que também estudou esse cordel de José Pacheco, em trabalho intitulado
A mitificação das figuras emblemáticas de Padre Cícero e Lampião através da literatura de cor-
del , “a chegada de Lampião desmantela a ordem do inferno” e, lembrando-se o título do livro clás6 -
sico citado sobre o tema (Os bandidos de honra brasileiros), “Satanás não aceita que Lampião fique
no inferno, por achar que ele é ‘ladrão da honestidade’ e ‘bandido’” . Recordamos que Lampião en7 -
trou no cangaço para vingar a morte da família, retratando-se no cordel sua violência em resposta à
violência satânica.
Ao longo dos versos, como veremos logo abaixo, “percebe-se que Lampião usava mais a
astúcia do que o poder das armas”, o que “aproxima o cangaceiro do povo que se defende com as
armas que tem, diante da opressão. Como esperado, o diabo convoca um exército de demônios para
enfrentar Lampião”, temeroso da desordem que porventura o cangaceiro poderia causar no inferno,
já que “a fama de Lampião, mesmo no outro mundo, continua intocada” . 8
O cordel reforça “a imagem de Lampião como alguém valente e respeitado, qualidades
imensamente valorizadas no sertão”, e “o autor identifica Lampião como um guerreiro do bem que
combate e acarreta um grande prejuízo no inferno, o reino do mal”. “Um Lampião justiceiro dos
males terrenos”, que dá uma surra no cão, “vingando-se deste que, no imaginário cristão, é a causa
maior de todos os males”. Livra-se, porém, da punição do diabo, o que “nos leva a crer que o can-
gaceiro não é tão mau como geralmente é considerado” nos dicionários e na historiografia oficial, 9
isto é, das classes dominantes.
!Repressão e assassinato de Lampião: as instituições do poder e da propriedade
Com a captura do grupo de Lampião, “as onze cabeças foram arrumadas na escadaria da
igreja da matriz, na Praça do Monumento e ali ficaram expostas à curiosidade pública”. Conforme
autora que resenhou o livro Os cangaceiros, “de lá foram conduzidas para Maceió onde chegaram a
31 de julho e ficaram em exposição no quartel da polícia na Praça da Cadeia. Mais uma vez as ca-
ROCHA, José Pacheco da. A chegada de Lampião no inferno. In: Jangada Brasil. Edição Especial: Literatura de Cor5 -del. Agosto 2006 – Ano VIII – n.º 93. Disponível em: http://www.jangadabrasil.com.br/revista/agosto93/es930820.asp
Ibid.6
Ibid.7
Ibid.8
Ibid.9
beças dos mortos viajam para a Santa Casa de Misericórdia, sendo finalmente conduzidas para Sal-
vador onde, mumificadas, passam para o acervo do Museu Nina Rodrigues, do Instituto Antropoló-
gico e Etnográfico da Bahia” . 10
Esse relato indica que a “própria repressão armada”, incapaz de aprisioná-los vivos, teve
“a necessidade de confiná-los depois de mortos a todas as instituições repressoras sem exceção: es-
cadarias da igreja na Praça, quartel de polícia, Santa Casa com toda sua Misericórdia e, princi-
palmente no museu para que nenhum destes dados de civilização material pudessem lembrar a vida
e a liberdade. No acervo que levava o nome de um antropólogo defensor da superioridade da raça
branca, Nina Rodrigues, institucionalizava-se o discurso ‘científico’ da repressão” . 11
Para finalizar, anote-se que Raimundo Nina Rodrigues é o autor da obra As raças humanas
e a responsabilidade penal no Brasil, de 1938, na qual sustentava que o crime nasce do entrecruza-
SILVA, Janice Theodoro da. In: Revista de História, n.º 112, 1997. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/revhis10 -toria/article/view/75356
Nosso Século. 1930/1945: A Era Vargas. São Paulo: Abril Cultural, 1980.11
Exposição das cabeças do bando de Lampião, na escadaria da Igreja da Matriz
mento de raças, de modo que o criminoso é o mestiço, classificando-o em degenerados, comuns e
superiores.
Concluímos, assim, que as classes dominantes e proprietárias, que perseguiram e massa-
craram o bando de Lampião que, com seu modo de vida, incomodavam os interesses da ordem es-
tabelecida, precisaram de “teorias sociais” legitimadoras da sua violência e barbárie oficiais. Seus
museus, eugenistas e especialistas em criminologia, institucionalizando a repressão policial com
ares de “ciência” positivista, são a prova disso.
Para encerrar sugerimos um último vídeo, que mostra os únicos minutos da atuação do
bando de Lampião documentados. A partir dele o aluno pode ter uma ideia muito mais clara sobre o
que era, concretamente, o cangaceiro: https://www.youtube.com/watch?v=5fnSUrePAXg
!
Conclusão
Percebemos, através desse trabalho, o quanto a violência está encravada na história
brasileira. Suas causas perdem-se num passado de escravidão e outras injustiças, que formaram a
massa popular, a imensa maioria da população brasileira ainda exposta à violência, que ainda
guarda, sob certo ponto, causas semelhantes às que formavam, no passado, os bandos de
cangaceiros, sobretudo no Brasil rural. Os movimentos sociais, por exemplo, que defendem a
reforma agraria – o Brasil ainda é um país latifundiário! – ainda são acusados de banditismo pelos
grandes canais de comunicação.
Propomos algumas questões, que podem ser debatidas pelos alunos, após pesquisas, que
podem ser feitas na internet:
Por que a estrutura fundiária brasileira permanece baseada no latifúndio? E as pequenas
propriedades rurais, os minifúndios, como sobrevivem nesse contexto? Por que os grandes canais de
comunicação defendem a estrutura latifundiária, enquanto acusam os movimentos sociais de
banditismo? Esses grandes canais de comunicação, televisão, jornais e revistas, obedecem a que
objetivos? São utilizados politicamente para manter as estruturas de coronelismo, baseadas no voto
de cabresto? Existem meios de comunicação com objetivos diferentes? Onde estão? Os tais
movimentos sociais que defendem a reforma agraria, quais são? O que defendem? Podem ser, na
sua opinião, acusados de banditismo, ou suas atitudes mais extremas são reações aos estímulos
violentos recebidos? Além da reforma agrária, existem outras exigências por parte desses
movimentos sociais? Quais são?
De toda informação, podem surgir questionamentos diferentes. A reflexão sobre a história e
suas consequências pode resultar em todo tipo de questão. O professor, e os próprios alunos podem
levantar outras questões que podem enriquecer o debate.
Como sugerimos na introdução do trabalho a exibição da animação “Uma história de amor
e fúria”, sugerimos outro filme para conclusão. Esperando que as aulas tenham servido para
perceber as origens do cangaço, acreditamos que a exibição de “Deus e o Diabo na Terra do Sol”,
clássico do cinema brasileiro, pode aprofundar ainda mais as diversas questões sobre nossa história
e o assunto que tratamos. Como é uma obra mais complexa do que a animação “Uma história de
amor e fúria”, sugerimos que o professor assista o filme antes da turma, para sintonizar o contexto
da obra e as análises possíveis.
Produzido e dirigido por Glauber Rocha, o filme de 1964, aborda a vida de uma família de
sertanejos nordestinos, marcados pela seca, pelas injustiças e desmandos dos poderosos e sujeitos
ao fanatismo religioso e a violencia do cangaço. Está completo em: https://www.youtube.com/
watch?v=uJDYsChNqhg
Outro filme, que aborda o Lampião e o libanês que filmou seu bando, é “O baile
perfumado”, de 1996. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=NnmWmTl217k
Todavia, como o tema “cangaço” é profundamente entranhado na cultura brasileira, existe
vasta produção, cinematográfica e televisiva. Na internet são encontrados diversos blogs, muitos
montados por descendentes de cangaceiros, jagunços, volantes e/ou testemunhas de acontecimentos
históricos. Pesquisas no mundo virtual podem mostrar também parte da produção de histórias em
quadrinhos que abordam o tema do cangaço. Em especial indicamos os blogs “cariri cangaço” e
“luz de fifó”, sobre o universo da cultura popular nordestina, inclusive muita coisa sobre o cangaço.
Nesse último destacamos o jogo online “Cangaço Wargame”. Estão respectivamente em http://
cariricangaco.blogspot.com.br e http://luzdefifo.blogspot.com.br/p/classicos-do-cordel.html#uds-
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Referências bibliográficas
ALENCASTRO, Luiz Felipe de. Memórias da Balaiada: introdução ao relato de Gonçalves de
Magalhães. In: Revista Novos Estudos CEBRAP, n23, março/1988, pp.7-13.
COSTA, Emilia Viotti da. Da Monarquia à República. 3ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1985.
DICIONÁRIO HOUAISS (2009);
FACO, Rui. Cangaceiros e Fanáticos: gênese e lutas. São Paulo: Civilização Brasileira, 3ª ed., 1972.
FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens livres na ordem escravocrata. 3ª ed. São Paulo:
Kairos, 1983.
JANOTTI, Maria de Loudes. Balaiada: construção da memória histórica. In: Revista de História, v.
24, n 1, p.41-76.
NOSSO SÉCULO. 1930/1945: A Era Vargas. São Paulo: Abril Cultural, 1980;
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira. Os Cangaceiros. São Paulo: Duas Cidades, 1977.
ROCHA, José Pacheco da. A chegada de Lampião no inferno. In: Jangada Brasil. Edição Especial:
Literatura de Cordel. Agosto 2006 – Ano VIII – n.º 93. Disponível em: http://
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SILVA, Janice Theodoro da. In: Revista de História, n.º 112, 1997. Disponível em: http://
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VIEIRA, Francisco Jacson Martins. A mitificação das figuras emblemáticas de padre Cícero e
Lampião através da literatura de cordel. Universidade Federal do Ceará: Fortaleza: 2012.
Disponível em: http://www.repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/8114/1/2012_dis_fjmvieira.pdf
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