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HISTÓRIA DO DIREITO MEDIEVAL: HERANÇAS JURÍDICO-POLÍTICAS PARA A CONSTRUÇÃO DA

MODERNIDADE*

MEDIEVAL LAW HISTORY: POLITICAL AND JURIDICAL HERITAGES FOR THE CONSTRUCTION OF

MODERNITY

LÍGIA MORI MADEIRA**

Resumo:

O artigo pretende apresentar as principais fases da história do direito medieval, com o intuito

de vislumbrar heranças jurídico-políticas e desnaturalizar construções da modernidade. Para

tanto, percorre-se a organização jurídica dos povos germânicos; o direito canônico e as

formações jurídicas eclesiásticas; o direito feudal; o renascimento do direito romano e a

formação das universidades e da cultura do ensino jurídico; os significados do medievo para a

construção da modernidade; e, por fim, as conexões e genealogias da idade média na

formação do direito penal moderno, a partir de uma contribuição de Michel Foucault.

Palavras-chave: história do direito medieval, direito germânico, direito canônico, direito

feudal, cultura jurídica e universidades, instituições modernas.

Abstract:

This article intends to present the main historical phases of Medieval Law, in order to

highlight its political and juridical heritages and also denaturalize the constructions of

modernity. For that matter, we are led through the juridical organization of the Germanic

peoples, the canonic law and the formation of ecclesiastic law, the Feudal law, the rebirth of

Roman law and the creation of universities and the establishment of the juridical teaching

culture. We’re also guided through the meanings of the medieval for the construction of

modernity and, at last, the connections and genealogies of Middle Ages in the formation of

modern penal law, based on a contribution of Michel Foucault.

Keywords: medieval Law history, Germanic Law, canonic Law, feudal Law, juridical culture and universities, modern institutions.

* ARTIGO RECEBIDO 08-04-2010 E APROVADO EM 17-02-2011.

** Doutora em Sociologia. Professora do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Endereço eletrônico: [email protected]

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Introdução

A intenção desse artigo é dar aos alunos de História do Direito algum subsídio de leitura aos

seus estudos de direito medieval. Não se busca aqui, com essas poucas páginas, dirimir e exaurir a

problemática. Também não se pretende dar lições de história geral; a pequena conexão com fases

históricas dá-se no sentido de uma maior compreensão do fenômeno jurídico. A justificativa para

tanto está calcada no pressuposto de que um bom aluno de Direito deva ter uma boa compreensão

dos acontecimentos históricos.

Assim, o leitor deve utilizar tal texto como um roteiro, uma indicação de leitura, quiçá espera-

se que tal material sirva para despertar o interesse em aprofundar a temática, a partir de leituras mais

especializadas e aprofundadas.

Dentre as diferentes fases históricas da humanidade, aquela que talvez mais dúvidas suscite, é

o período medieval. Falar em medievo remete-nos sempre a um período de obscuridade, sendo

tratado como “idade de trevas”. Não obstante, a era medieval pode ser considerada imprescindível

para compreendermos o significado da formação do direito moderno, do Estado moderno, e de toda

a organização social e política a que chamaremos modernidade, bem como seus desmembramentos

posteriores: contemporaneidade, modernidade tardia, modernidade reflexiva, pós-modernidade†.

No que se refere ao direito nesse período, temos que entendê-lo a partir da constatação de

Grossi, como uma fase de vigência de inúmeros ordenamentos jurídicos.

He aqui como debemos aproximarnos al Derecho medieval: como a una gran experiência jurídica que alimenta en su seno una infinidad de ordenamientos, donde el Derecho – antes de ser norma y mandato – es orden, orden de lo social, motor espontâneo, lo que nace de abajo, de una sociedad que se autotutela ante la litigiosidad de la incandescência cotidiana construyéndose esta autonomia, hornacina propia y auténtica protectora del individuo y de los grupos. La sociedad se impregna de Derecho y sobrevive porque ella misma es, antes que nada, Derecho debido a su articulación en ordenamientos jurídicos (Grossi, 1996, p. 52).

Assim, o direito medieval é calcado num processo de descentralização política, relativismo,

sobreposição e disputa de poder entre grupos variados. Grossi (1996, p. 61) classificará o momento

como de um vazio relativo:

La tipicidad del medioevo jurídico descansa ante todo en este vacio relativo, en lo que hemos calificado en el título de este parágrafo de levedad del poder político medieval, entendiendo por levedad la carência de toda vocación totalizante del poder político, su incapacidad para situarse

† Giddens (1991, 1997), Young (2002), Bauman (1998).

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como hecho global y absorbente de todas las manifestaciones sociales, su realización en las vicisitudes históricas medievales, cubriendo solamente ciertas zonas de relaciones intersubjetivas y permitiendo sobre otras – muchísimas – la possibilidad de injerencia de poderes concurrentes; un processo que, amparándose originalmente en las primeras hendiduras del edifício estatal romano, se despliega en una facela absolutamente típica del momento en el que las hendiduras causen un derrubamiento efectivo y sobre las ruínas ya no se edificará una estructura política de la misma cualidade e intensidad.

Todo esse período que passaremos a analisar é fruto da crise do Império Romano, de um

processo de perda de efetividade, que culminará com as conhecidas invasões bárbaras‡. Segundo

Grossi (1996, p. 63),

El medioevo político alcanza su inauguración histórica, cuando, en el siglo IV, se produce el momento de arranque de una profunda crisis Del Estado imperial, diferida, retenida y controlada hasta Dioclesiano pero que ahora desemboca en manifestaciones siempre más relevantes: crisis de efectividad, de credibilidad, de autoridad. En el mundo posdioclecianeo permanece solamente en Estado crisálida, incapaz de imponer la propia voluntad, pero aun más incapaz de expresar aquella voluntad unitária, sustitutiva e intolerante con voliciones particulares concurrentes, que es típica de toda estructura autenticamente estatal; o sea, queda un no-Estado. El Estado romano muere, muere por inanición, por un agotamiento interno que es material y espiritual, por un vacío de poder eficaz y de programación deliberada.

Os primórdios dos ordenamentos jurídicos europeus organizam-se sobre as bases das

sociedades romano-germânicas da alta Idade Média.

‡ Em região alguma se instalou uma ordem política absolutamente nova, impondo modos de vida completamente diferentes. Essas migrações bárbaras são, principalmente, do ponto de vista humano, infiltrações de grupos étnicos pouco numerosos entre populações já bem diversificadas (Heers, 1991, p. 25), Em terra, essas migrações atingem de início as províncias orientais do Império: é a “primeira vaga” germânica, a dos godos que ocupam a Ilíria. Mal estabelecidos no Império, encarregados de restabelecer a ordem, de perseguir e dizimar os bárbaros mais turbulentos, os visigodos (godos do este) obtêm um foedus em 418 e um vasto reino que reúne a Aquitânia e a Espanha. Os ostrogodos (godos do leste), de início estabelecido por um foedus (455) nas planícies do médio Danúbio, ameaçam constantemente os Bálcãs, atingem mesmo Constantinopla e, deslocados finalmente para o oeste pelo imperador bizantino Zenão, tomam a Itália, conduzidos por seu rei Teodorico (1489-493). Na mesma época, outros povos bárbaros haviam atacado diretamente os limes ocidental. Os vândalos cruzam à força o Reno em 406, entram na Espanha três anos mais tarde e, perseguidos e seriamente derrotados pelos visigodos, passam posteriormente à África (429), onde, apesar da assinatura de um foedus (435), conquistam as melhores províncias romanas. Os borgúndios, que foram sempre auxiliares do Império, estabelecem-se primeiramente no Reino (foedus de 413), fundando a seguir um poderoso reino, que tendo como eixo suas duas capitais, Lyon e Genebra, reúne as regiões do Saona e do Ródano até o rio Durance. Nas fronteiras das províncias mais ocidentais, já enfraquecidas, afirma-se, porém, a espantosa sorte política dos francos, povo por muito tempo obscuro, antes uma confederação de populações mais ou menos autônomas, que jamais tentaram ataques frontais contra o limes, infiltrando-se, entretanto, lentamente; eram soldados do exército imperial em toda a Gália, colonos militares estabelecidos muito cedo na Bélgica e nas margens do Reno (o primeiro foedus data do fim do século III) e depois nas terras abandonadas pelas defesas romanas. Mais tarde, outros povos francos, que haviam permanecido na Germânia, aproveitaram-se da abertura oferecida pelos vândalos em 406 e se instalaram como conquistadores nos vales do médio Reno e do Mosela, tomando as fortalezas e devastando as cidades ainda prósperas (Heers, 1991, p. 15).

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Os primórdios dos ordenamentos jurídicos europeus encontram-se nas formas básicas de vida das sociedades romano-germânicas da alta Idade Média e nos três grandes poderes ordenadores que a antiguidade tardia tinha deixado: os restos da organização do império romano do ocidente, a igreja romana e a tradição escolar da antiguidade tardia, restos que os novos povos e tribus assentes no antigo corpo do império e no centro da Europa receberam e de que se acabaram por apropriar (Wieacker, 1967, p. 15).

A Idade Média é constituída por dois grandes períodos: a alta idade média, que se estende dos

séculos V a IX§, é marcada pelos direito romano e germânico, bem como pela formação e

desenvolvimento do direito canônico; e a baixa, dos séculos IX a XV, pelo direito feudal e pelo

renascimento do direito romano nas universidades. Podemos, pois, vislumbrar esse momento

histórico embasado na vigência de quatro grandes ordenamentos jurídicos: um direito de povos

germânicos; o direito oriundo da organização eclesiástica, chamado de direito canônico; o direito

feudal; e um processo de sobrevivência e renascimento do direito romano.

Tendo em conta essa pequena introdução, organizaremos este texto em seis itens: a

organização jurídica dos povos germânicos; o direito canônico e as formações jurídicas eclesiásticas;

o direito feudal; o renascimento do direito romano e a formação das universidades e da cultura do

ensino jurídico; os significados do medievo para a construção da modernidade; e, por fim, as

conexões e genealogias da idade média na formação do direito penal moderno, a partir de uma

contribuição de Michel Foucault.

1. A organização jurídica dos povos germânicos

Fruto de um processo de descentralização política, a Europa medieval e a antiga organização

política romana tiveram seus territórios invadidos** por uma multiplicidade de povos, a quem os

romanos designaram bárbaros††. Tais povos, mais conhecidos e melhor designados por germânicos‡‡,

§ A descrição em séculos não segue uma regularidade. Encontramos autores que conceituam a alta idade média como período transcorrido entre os séculos VI a XII, e a baixa como do XIII ao XVIII (Gilissen, 2003, p. 128) ** As migrações germânicas provocaram, nas províncias do Ocidente, encontros de civilizações originais, freqüentemente bem complexas. Desses choques nasceu nossa civilização medieval, civilização de síntese, onde é difícil distinguir as tradições romanas e as múltiplas contribuições bárbaras. Desde mais de um século, os historiadores, segundo as técnicas de pesquisa, os progressos das ciências auxiliares ou mesmo as teses e correntes de opinião, deram maior ênfase a um ou outro mundo (Heers, 1991, p. 25). †† Os gregos, depois os romanos, designavam pelo nome de bárbaros todos os povos declaradamente estrangeiros, rebeldes à sua civilização, seu modo de vida, suas estruturas econômicas e sociais, sua cultura, e mesmo à sua língua. De fato, o bárbaro, ao longo de todo o Império, é o homem das estepes ou das florestas, nômade mesmo nas cidadelas de agricultores, incapaz em todo caso de assimilar a civilização greco-romana, essencialmente urbana. Por volta do século V, a palavra é, sobretudo, cômoda para dissimular uma ignorância quase total dos povos além dos Limes. Ainda hoje, a história dos bárbaros, que, do século III ao XI, atacam o Ocidente, permanece mal conhecida. Os seus próprios nomes são por vezes incertos: esses povos formam muitas vezes vastas confederações, instáveis, compostas por tribos de

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caracterizavam-se por se encontrar em um período anterior de desenvolvimento sócio-econômico-

cultural§§. Eram povos ligados a terra, não tinham desenvolvido a escrita, não tinham organizações

territoriais ou políticas. Seu principal elemento de organização social eram as famílias, baseadas na

autoridade do pai*** (Castro, 203, p. 127, 128).

Quanto ao seu direito, devido à pequena centralização e uniformidade, tinham formações

jurídicas calcadas na oralidade e no costume, com cada tribo dispondo de uma tradição própria, tal é

a característica de direito consuetudinário. No entanto, tais povos dominantes nos primeiros

momentos do período medieval, mantiveram um princípio de pessoalidade das leis†††, não impondo

seu direito sobre os diferentes povos, que mantiveram o estatuto de suas tribos de origem, o que

também permitiu, como se verá mais adiante, uma sobrevivência do direito romano‡‡‡ (Castro, 2003,

p. 129).

Segundo Wieacker, houve, pelo contrário, uma absorção de valores e instituições romanas

por parte dos germânicos:

A atitude espiritual desses povos (germânicos) não conhecia qualquer repulsa intima pelas respeitáveis e brilhantes tradições, que eles tinham encontrado; adotaram a escrita latina, a civilização material, a língua romana, os restos da cultura tardo-clássica e, finalmente a crença católica em vez da ariana. Quanto ao direito, conservaram o seu durante mais tempo, na medida em que ele ainda era determinado pelo modo de vida das comunidades pessoais e pelo seu próprio ethos e não pelo resultado de novas relações econômicas ou de poder; para isto contribui também a concepção germânica de que o direito não é um comando arbitrário, mas uma tradição de vida inatacável (Wieacker, 1967, p. 27).

origens muito diversas, que se valem do povo vencedor, adotam seu nome, para depois trocá-lo assim que mude a sua sorte (Heers, 1991, p. 13, 14). ‡‡ Vide nota 4. §§ Tornou-se lugar comum relacionar a civilização germânica a uma vida mais ou menos nômade ou errante, estranha, todavia, às tradições da vida urbana. As invasões bárbaras teriam então provocado uma desintegração das cidades, das relações do comércio e do artesanato urbano, da própria economia monetária. Esta visão clássica, no todo, não é de todo inexata; deve ser somente matizada, pois apresenta, em algumas regiões, várias exceções (Heers, 1991, p. 28). *** O cerne da organização política é o clã, chamado sippe, isto é, a família em sentido lato. Vivendo da agricultura e da pecuária, o clã agrupa, sob a autoridade do pai, os membros da família e outros auxiliares, talvez escravos; a família é patrilinear; o pai mantém nela a ordem e a paz; o seu poder é em princípio ilimitado porque não tem superiores. As relações entre os clãs eram a maior parte das vezes reguladas pela faida, a luta, a guerra privada (Gilissen, 2003, p. 162). ††† A aplicação do princípio da personalidade do direito implica a necessidade de determinar que direito é aplicável a cada individuo e de resolver os conflitos que podem nascer entre pessoas pertencentes a dois sistemas jurídicos diferentes. As regras que nascem nesta época estão na origem dos princípios que sobrevivem no direito internacional privado moderno (Gilisssen, 2003, p. 168). ‡‡‡ Seria necessário, para medir mais exatamente a influência germânica, avaliar as migrações, os deslocamentos de pequenos grupos. Já antes do século IV, vários aspectos da civilização, da vida política e do direito das províncias romanas achavam-se profundamente marcados pelos contatos com os bárbaros estabelecidos no Ocidente (Heers, 1991, p. 26).

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Gilissen (2003, p. 167) aponta a diferença entre o nível de evolução do direito romano e dos

povos germânicos como fator para a não imposição destes sobre aquele. Além disso, segundo o

autor, os germânicos acabaram se beneficiando das concepções de direito público romanas, que

reforçavam sua autoridade.

Apesar de restritos documentos escritos, Gilissen analisa a existência de algumas leis bárbaras:

Conhece-se uma dezena de leges barbarorum no quadro geográfico do império carolíngio: lex salica, lex rubuaria, lex burgundionum, lex alamanorum, ... A redação de algumas delas remonta aos séculos V ou VI, outras datam somente do século IX. Desempenharam um papel capital na conservação das tradições jurídicas dos povos germânicos... Estas leges não são verdadeiros códigos, longe disso; não são sequer leis, no sentido atual do termo; são mais registros escritos de certas regras jurídicas, com origem no costume, próprias deste ou daquele povo. São pois compilações muito incompletas, espécie de manuais oficiais para uso dos agentes da autoridade e dos membros dos tribunais... As leges não são pois actos legislativos, leis no sentido moderno – e romano - da palavra. São, na realidade, costumes reduzidos a escrito com a ajuda de “dizedores do direito” e por vezes aprovados pela autoridade. As leges encontram-se escritas em latim, salvo as de Inglaterra (Gilissen, 2003, p. 172).

Tal é, pois a contribuição e a influência desses povos para o medievo e sua construção

jurídica.

2. O direito canônico e as formações jurídicas eclesiásticas

Podemos salientar a importância da Igreja ocidental na Idade Média, tendo assumido muitas

das tarefas públicas, sociais e morais do antigo império romano§§§. A Igreja era a força espiritual de longe

mais importante; era a mais coerente e mais extensa organização social da Idade Média; a sua ordem jurídica interna

era a mais poderosa da Idade Média (Wieacker, 1967, p. 67).

Foi ela a responsável, desde o início, pela fixação de um conceito de direito, calcado na ética

social e, sobretudo, na ética cristã. Tal importância fica clara citando-se Wieacker (1967, p. 17):

A cristandade fixou desde o início o conceito do direito. Na medida em que a fonte de todo o direito não escrito – que arrancava da consciência vital espontânea – continuou a ser a ética social,

§§§ No século II,I o Cristianismo torna-se religião do Estado, com a proibição de todas as outras religiões. A sua organização territorial é estabelecida de acordo com o modelo de administração do Império Romano. É graças à Igreja que alguns vestígios desta administração subsistirão na Idade média. Em cada província romana havia um arcebispo, em cada civitas um bispo, que tinha sob a sua dependência o clero das paróquias. A competência do bispo era extensa, ele era auxiliado por padres e por laicos, arquidiáconos e diáconos (Gilissen, 2003, p. 136). Após o desmembramento do Ocidente no século V, o poder temporal da Igreja enfraqueceu, deixando-se estar submetida ao Estado, mas continuando como única autoridade comum aos fiéis de diferentes estados (Gilissen, 2003, p. 137).

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e na medida em que toda a ética européia continuou a ser, até bem tarde na época moderna, a ética cristã, a doutrina cristã influenciou o pensamento jurídico, mesmo quando legislador e juristas estavam pouco conscientes dessa relação. Através do cristianismo, todo o direito positivo entrou numa relação ancilar com os valores sobrenaturais, perante os quais ele tinha sempre que se legitimar.

Nessa fundamentação ética não podemos nos esquecer da influência grega, principalmente

platônica, de grande influência à teologia, nesse momento histórico:

Esta metafísica, inteiramente estranha às origens da cristandade, bem como às do direito romano, foi a descoberta de Platão, descoberta que os padres da Igreja receberam e a teologia da alta Idade Média renovou. Ainda que ela seja considerada uma descoberta do espírito grego, o certo é que, para o pensamento jurídico europeu até o início da época moderna, foi quase exclusivamente mediada pela teologia (Wieacker, 1967, p. 17).

Sendo assim, vemos uma grande primazia do direito canônico**** na Europa, principalmente

por seu caráter unitário, sua predominância escrita, uma grande supremacia na regulação do direito

privado.

O direito canônico teve uma importância crucial na formação e manutenção das instituições e

da cultura jurídica ocidental. Toda a reorganização da vida jurídica européia, com o desenvolvimento

das cortes, dos tribunais, e das jurisdições tem influência do direito da Igreja.

Segundo Gilissen (2003, p. 134 e 135), vários fatores ressaltam a importância desse direito

para o medievo: o caráter ecumênico da Igreja, que se coloca como a única religião verdadeira para a

universalidade dos homens; a dominação sobre certos ramos do direito privado, que foram regidos

exclusivamente pelo direito canônico, durante vários séculos, mesmo para os laicos; o fato de ser o

único direito escrito, durante a maior parte da idade média, tendo sido objeto de trabalhos doutrinais,

muito mais cedo que o direito laico, constituindo-se numa ciência do direito canônico, exercendo

influência na formulação e desenvolvimento deste direito laico.

Segundo este autor, o direito canônico é um direito religioso, retirando suas regras de

princípios divinos, revelados nos livros sagrados, o Antigo e o Novo Testamento. É o direito de

todos os que adotam a religião cristã, onde quer que se encontrem (Gilissen, 2003, p. 135).

Além disso, a formação de uma classe de juristas, oriunda de dentro da organização

eclesiástica foi fundamental para o desenvolvimento de uma camada de profissionais, que disputará

mais tarde com os não clérigos, o poder de dizer o direito.

**** O direito canônico é o direito da comunidade religiosa dos cristãos, mais especialmente o direito da Igreja católica. O termo cânon é empregado nos primeiros séculos da Igreja para designar as decisões dos concílios (Gilissen, 2003, p. 133).

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Dentre os maiores estudiosos do direito dentro da organização da Igreja encontramos os

canonistas††††, juristas que trabalhavam em um processo de interpretação de textos do passado com

autoridade, identificando direito e teologia. Todas as antinomias são solucionadas a partir de quatro

critérios: a) ratione significationis; b) ratione temporis (lei posterior revoga lei anterior); c) ratione loci (lei local revoga

lei geral); d) rationi dispensationis (lei especial revoga lei geral). (influência na tradição jurídica ocidental) (Lopes,

2003, p. 95).

O Corpus Iuris Canonici, principal legislação do direito canônico, permaneceu em vigor até

1917, tendo sido composto de cinco partes, redigidas dos séculos XII ao XV: Decreto de Graciano,

Decretas de Gregório IX, Livro Sexto, as Clementinae, Extravagantes de João XXII, Extravagantes

Comuns (Gilissen, 203, p. 147).

Wieacker (1967, p. 69, 70, 72) explicita o funcionamento desse direito:

Ao contrário do que acontece com o direito profano, a ordem jurídica da Igreja baseava-se, já na Alta Idade Média, numa tradição salvaguardada pelo uso da escrita, da redação documental e pela escola. As bases desta tradição eram as fontes escritas e os atos de aplicação do direito da Igreja desde o seu início: a Sagrada Escritura e os padres da Igreja; as decisões dos concílios e dos sínodos; os cânones e as decretais dos papas; por fim as leis imperiais e os capitulares relativos à igreja imperial franca. Em consonância com a ciência jurídica profana do seu tempo também a canonistica não era, em primeira linha, o resultado de atos de criação do direito por parte da Igreja, mas antes de um trabalho científico de recolha, certificação e elaboração intelectual de uma tradição já encontrada. A elaboração científica das fontes jurídicas da Igreja não se distinguia das outras disciplinas teológicas (como a teologia moral e a dogmática) a ponto de, neste momento, se poder falar de uma ciência jurídica canônica autônoma. O canonista típico, que agora se formava a par do legista, encontra-se na sua atitude intelectual, mais perto do jurista do que do teólogo; ele corporiza a segunda camada intelectual dos juristas da alta idade Média.

Todo o direito baseado em cânones fez surgir, como mencionado, uma camada de juristas

que fez carreira por seu conhecimento e não mais pelas relações pessoais (Lopes, 2003, p. 98).

†††† O inicio do direito canônico estava inicialmente anexo ao ensino da teologia. O desenvolvimento do estudo do direito romano em Bolonha e a importância da tomada pelo Decreto de Graciano levaram, assim, nos finais do século XII, a que se formassem escolas de direito canônico, a par das escolas de direito romano. Em Bolonha, Montpellier, Toulouse, Orleães, mais tarde as universidades ibéricas e alemãs e em Lovaina coexistiram dois ensinos: muitas vezes os estudantes seguiam os cursos das duas faculdades e tornavam-se doctor utriusque júris (Doutor em ambos os direitos). Os dois principais métodos de ensino ficavam a cargo dos Decretistas, que tomavam o decreto de Graciano como a base dos seus trabalhos, a partir da realização de glosas e summae; e Decretalistas, consagrados ao comentário das Decretais de Gregório IX (Gilissen, 2003, p. 149, 150).

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Este ensino apresenta um largo espectro, correspondente à organização muito variada do ensino da Igreja, mas está sobretudo ligado às escolas conventuais e às escolas reais dirigidas por um clérigo, e mais tarde, também, às escolas catedrais. Aquilo a que nós chamamos ensino do direito era, portanto, também a formação geral dos clérigos, destinada às suas tarefas pastorais, eclesiásticas e mundanas, ainda que o aluno da escola conventual acabasse por não ingressar no estado eclesiástico (Wieacker, 1967, p. 30).

Em termos de características, percebemos uma uniformização, centralização de poder, e o

reconhecimento de um sistema de recursos. No que se refere às regras processuais, podemos

perceber um processo de formalização e racionalização, fases processuais organizadas com clareza,

investigações e provas devendo conduzir a um convencimento do juiz, abolição das provas

irracionais (que serão mantidas e incentivadas no Tribunal da Inquisição), mas também um processo

de perda de celeridade, instaurando-se as práticas dilatórias e a formalização de atos e prazos (Lopes,

2003, p. 105).

Além disso, o direito canônico estabelece regras de competência baseadas na pessoa e na

matéria, especialmente na época de seu apogeu, dos séculos X a XIV (Gilissen, 203, p. 141): em

razão da pessoa (ratione personae), temos: eclesiásticos, tanto clérigos regulares como seculares

(privilegium fori absoluto – os clérigos não podiam renunciar a ele); cruzados (aqueles que tomaram a

cruz, que partem em cruzada: privilegium crucis); membros das universidades (professores e

estudantes); e os miserabiles personae (viúvas e órfãos) quando pediam a proteção da Igreja. Já em

razão da matéria (ratione materiae), em questões penais: infrações contra a religião (heresia, apostasia,

simonia, sacrilégio, feitiçaria, etc); e infrações que atentassem contra regras canônicas (adultério,

usura), com competência concorrente da jurisdição laica. Quanto à matéria civil: benefícios

eclesiásticos; casamento e as matérias conexas: esponsais, divórcio, separação, legitimidade dos filhos;

testamentos; execução de promessa feita sob juramento.

Quanto às limitações hermenêuticas do direito e de sua aplicação,

Era um mecanismo propriamente político de controle pelo alto dos poderes absolutos de um monarca, mesmo que fosse o papa. Conjugava-se com um controle de costumes, que limitava por baixo os mesmos poderes absolutos (Lopes, 2003, p. 99).

Dentre as discussões sobre o direito medieval de origem eclesiástica, temos ainda que

salientar a Reforma Gregoriana e o significado político do Tribunal do Santo Ofício.

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A Reforma Gregoriana, levada a cabo pelo Papa Gregório VII‡‡‡‡, teve como objetivo um

processo de autonomização e centralização da Igreja, a partir de um movimento conhecido como

Querela das Investiduras§§§§, que cerceou nas mãos do pontífice o processo de nomeação de

bispos*****, o que culminará com a organização de um poder político, que será a origem do Estado

Moderno: dominação burocrática, racional, legal e formal (Weber, 1999). A partir da reforma,

inaugura-se o modelo que irá vigorar na Europa até o período das reformas, no século XVI, da Igreja

constituindo-se em poder paralelo ao Estado.

Segundo Gilissen (2003, p. 137),

O poder pontifical atinge o seu apogeu nos séculos XII e XIII. De acordo com a concepção dos grandes papas da época (Gregório VII, Inocêncio III, Bonifácio VIII), os reis detêm o seu poder da Igreja que os sagra e os pode excomungar, no entanto, não se trata de uma teocracia, pois o papa não pode exercer o poder temporal, salvo nos seus próprios Estados.

Enfim, a finalidade de Gregório VII com a Reforma era o estabelecimento de um poder disciplinar

em suas mãos, um controle central de uma população dispersa, o estabelecimento de uma identidade corporativa do clero

com um certo corpo de leis disciplinares, dando em uma consciência de classe. Afirmação da superioridade da lei sobre

os costumes (Lopes, 2003, p. 90).

Por fim, faz-se necessário compreender o significado da Inquisição e das Cruzadas como dois

grandes movimentos interligados e oriundos da organização eclesiástica romana.

‡‡‡‡ Por muito tempo qualificou-se de Reforma gregoriana, do nome do papa Gregório VII, o grande movimento que introduz no Ocidente uma outra espiritualidade e afirma a independência temporal da Igreja diante dos poderes laicos. De fato, é evidente que a personalidade de Gregório VII é apenas um símbolo e sua ação um só aspecto de um vastíssimo e complexíssimo reflorescimento (Heers, 1991, p. 95). §§§§ Os dois aspectos da reforma religiosa, reflorescimento espiritual e libertação dos leigos, são indissociáveis. Esse clima religioso novo fornece ao papado um poder espiritual mais forte, capaz de desafiar o poder político dos soberanos. A luta entre o papado e o Império, que se resume de uma maneira bastante arbitrária, mas cômoda, ao se falar de “questão das investiduras” acende-se de maneira decisiva nos pontificados de Nicolau II (1059-1061) e de Gregório VII (1073-1085). Nicolau II faz promulgar os célebres decretos que confiam doravante a escolha do soberano pontífice aos cardeais da Igreja (bispos da Cura romana, conselheiros do papa); essa escolha é aclamada pelo povo de Roma e o imperador mantém somente o direito de confirmação. Gregório VII, monge (Hildebrando), místico, inteiramente devotado à reforma espiritual do clero, já sustentáculo de vários papas, afirma prontamente após sua eleição a independência da Igreja. No espaço de dois anos faz proclamar a queda de todos os prelados que haviam obtido seus cargos em troca de dinheiro e condena formalmente as investiduras episcopais ou abaciais concedidas pelos leigos. Nos Dictatus Papae, proclama pessoalmente o primado absoluto de Roma sobre a Igreja e o conjunto da cristandade. Esta atitude provoca vivas reações no Imperador Henrique IV e anuncia o início da questão das investiduras, na realidade a luta pela dominação do mundo ocidental (Heers, 1991, p. 98). ***** Nos primeiros tempos bárbaros, o bispo permanece como o único senhor da cidade, encarna a única força espiritual do momento e, muitas vezes, identifica-se mesmo com a “nação” romana. Nessa época conturbada, a escolha dos cristãos será freqüentemente sobre um leigo, pio e poderoso, já acostumado ao andamento dos assuntos públicos. Membro da grande aristocracia, rico proprietário, administrador experiente, o bispo protege a cidade contra pilhagens e desordens; assegura o abastecimento e controla o mercado, constrói hospitais e escolas. Perto da catedral faz trabalhar um grupo de pequenos artesãos e logistas (Heers, 1991, p. 32).

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O Tribunal do Santo Ofício ou Tribunal da Inquisição surgiu como um tribunal especial para

julgar e condenar os hereges†††††.

No Tribunal do Santo Ofício o direito de acusar pertencia somente à parte lesada, com uma

diferenciação na aplicação das penas entre nobres e plebeus. A origem do processo baseava-se em

acusações secretas, os atos e provas eram mantidos em segredo e a prova testemunhal era a mais

utilizada. Além disso, a prova de confissão era a mais importante, sendo na maioria das vezes

alcançada mediante tortura. Os juízes eram livres para interpretar as leis, além de poderem utilizar

penas variadas (Castro, 2003, p. 138).

O processo era instaurado de ofício, a mando do inquisidor, perdendo o caráter de

contraditório, com a utilização da tortura como ato formal, sempre que houvesse indícios.

O processo inquisitorial instituindo o inquérito como modelo judicial e jurídico, faz com que

esse instrumento baseie-se nesse novo personagem: o inquisidor, um acusador oficial que irá

representar o Estado de forma ordenada e racional, e que será objeto de estudos por Michel Foucault

(1996, 1999, 2002, 2003), constituindo num aparte desse texto, como se verá mais adiante (Lopes,

2003, p. 196).

Apesar de o Tribunal do Santo Ofício ser de exceção, voltado especificamente aos delitos de

heresia, acabou tornando-se em um instrumento de centralização monárquica da Igreja e,

posteriormente, dos Estados Nacionais.

Segundo Le Goff (1994, p. 18), a produção cultural e literária da época sobre o que se

chamava “sociedade do Diabo‡‡‡‡‡” acaba por fazer surgir uma série de manuais, instaurando uma

sociedade de estados:

A coroação deste reconhecimento dos “estados” é a sua entronização na confissão e na penitencia. Os manuais de confissão que no século XIII definem os penados e os casos de consciência acabam por catalogar os pecados por classes sociais. A cada estado seus vícios e seus pecados. A vida moral e espiritual socializou-se segundo a sociedade dos estados.

††††† Convém insistir na oposição decisiva entre a heresia oriental, de caráter dogmático, filosófico, e que se desenvolve de início em alguns círculos estreitos de doutores, de eruditos, e a heresia ocidental, essencialmente popular, que conquista elementos pouco instruídos ou iletrados (Heers, 1991, p. 148). ‡‡‡‡‡ Esta nova sociedade é a sociedade do Diabo. Daí a considerável voga que teve a partir do século XII na literatura clerical o tema das “filhas do Diabo”, casadas com os vários estados da sociedade. Por exemplo, numa filha de guarda de um manuscrito florentino do século XIII podemos ler o seguinte: O diabo tem IX filhas, que casou: a simonia com os clérigos seculares; a hipocrisia com os monges; a rapina com os cavaleiros; a profanação com os camponeses; a simulação com os guardas; a fraude com os mercadores; a usura com os burgueses; a pompa mundana com as matronas; e a luxúria, que ele não quis casar e que a todos oferece como amante comum (Le Goff, 1984, p. 18)

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Também as Cruzadas§§§§§ tiveram uma atuação fundamental para uma expansão do Ocidente,

mas não somente uma conquista econômica, haja vista que a resistência e a luta armadas contra os infiéis

pesaram profundamente sobre a vida dos cristãos do Ocidente, desde o século IX e por vezes mesmo mais cedo (Heers,

1991, p. 161).

O direito canônico e a supremacia do poder da Igreja perdem força a partir do século XVI,

com o surgimento das Reformas e de um processo de laicização do Estado e do direito que vai

ocorrer em praticamente toda a Europa (Gilissen, 2003, p. 141).

3. O direito feudal

Por volta do século X, a Europa passa por um processo de transformação da organização

política e social que culminará com o surgimento do feudalismo******.

O feudalismo é caracterizado por um conjunto de instituições das quais as principais são a vassalagem e o feudo. Nas relações feudo-vassálicas, a vassalagem é o elemento pessoal: o vassalo é um homem livre comprometido para com o seu senhor por um contrato solene pelo qual se submete ao seu poder e se obriga a ser-lhe fiel e a dar-lhe ajuda e conselho, enquanto o senhor lhe deve proteção e manutenção. A ajuda é geralmente militar, isto é, o serviço a cavalo, porque a principal razão de ser do contrato vassálico para o senhor é poder duma força armada composta por cavaleiros (Gilissen, 2003, p. 189).

Toda a organização jurídica fica restrita às relações feudo-vassálicas, uma vez que toda a

organização estatal e legislativa desapareceu. O costume é a única fonte do direito laico, tendo

desaparecido o direito romano (exceto na Itália) e o canônico reger apenas as relações eclesiásticas e

alguns ramos civis (supra).

Tendo em vista o também desaparecimento do princípio da pessoalidade das leis, este direito

consuetudinário terá base territorial, ou seja, cada coletividade vive segundo suas tradições jurídicas

próprias.

§§§§§ As Cruzadas são apenas um aspecto particular, sem dúvida o mais espetacular, da expansão do Ocidente, de um forte aumento demográfico, cujas conseqüências no plano econômico já foram medidas. Trata-se aqui de uma verdadeira conquista de terras novas, conquista política e agrária. Que esta expansão se insira num vasto movimento religioso, ou seja, marcada por um espírito bastante particular, apoiada por um ímpeto coletivo espontâneo, não muda em nada o aspecto humano do problema. A Europa ocidental, que era, ainda no século IX, um pólo de atração para os povos invasores do Leste e do Norte, ressente-se dois séculos mais tarde de uma superpopulação manifesta e, por sua vez, lança seus homens à procura de outras terras... Ver, entretanto, nas origens das cruzadas na Terra Santa, na Espanha e mesmo no Leste alemão, somente motivos econômicos é evidentemente uma simplificação abusiva. Não se pode omitir o papel, essencial, da idéia de Cruzada, nem negligenciar o estudo das mentalidades coletivas que sozinhas explicam a amplitude dos empreendimentos, a persistência do entusiasmo em alguns meios (Heers, 1991, p. 161). ****** O desenvolvimento do feudalismo não segue a mesma evolução cronológica em todos os países (Gilissen, 2003, p. 188).

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Os séculos X e XI foram séculos sem escritos jurídicos: nem leis, nem livros de direito, nem sequer actos reduzidos a escrito. Os contratos tão numerosos que estão na base dos laços de dependência de homem para homem (vassalagem, servidão) e dos direitos sobre a terra (feudos, foros, etc.) raramente eram reduzidos a escrito; quando muito, algumas instituições eclesiásticas (sobretudo capítulos e abadias) mandaram redigir os actos (sobretudo doações) que lhe interessavam... à parte alguns clérigos, ninguém sabe ler nem escrever, há poucas escolas; os juízes (por exemplo, os vassalos reunidos num tribunal feudal) são incapazes de ler textos jurídicos. A justiça é feita, a maior parte das vezes, apelando para Deus, com a ajuda de ordálios ou de duelos judiciários. Enfim, a maior parte das relações entre os homens, que nascem das convenções próprias das instituições feudo-vassálicas, são regidas pelo costume que fixa as obrigações duns e doutros (Gilissen, 2003, p. 191).

4. O renascimento do direito romano e a formação das universidades e da cultura do

ensino jurídico

Apesar de as concepções jurídicas medievais terem insistido na separação entre as ordens

canônica e temporal, distinguindo canonistas e legistas, a quem analisaremos mais adiante, houve um

processo de aproximação entre elas, que acabou por fortalecer o renascimento do direito romano.

O jus civile e o jus canonicum, a legistica e a canonística andavam em princípio separadas nas concepções jurídicas da época... No entanto, estes sintomas mostram como, ao mesmo tempo, as duas culturas jurídicas da Idade Média se aproximavam uma da outra e se começavam a se penetrar mutuamente. Um intercâmbio dos princípios favoreceu, sobretudo, um mútuo princípio de subsidiariedade: os juízos eclesiásticos aplicavam, de forma subsidiária, o direito romano; a jurisdição profana aplicava do mesmo modo, os princípios gerais do direito canônico (Wieacker, 1967, p. 76).

O direito romano, apesar de ter continuado a ser aplicado aos povos de origem romana,

acabou por suplantar o direito germânico, nas penínsulas ibérica e itálica, tendo um renascimento

com a formação das universidades medievais e o desenvolvimento dos Estados Nacionais.

Esses povos depararam, neste ponto, com as duas formas do conceito romano de direito: a lei imperial que impunha a sua pretensão absoluta de vigência em relação a todos os membros da comunidade submetida, tornando assim, pela primeira vez possíveis formas alargadas de domínio, o direito como criação intelectual de uma ciência especializada altamente diferenciada.

Não obstante esse processo de manutenção da tradição jurídica romana, que não se dá por

completo, houve, concomitantemente, um processo de perda civilizacional que, segundo Wieacker

(1967, p. 23), será responsável por uma estabilização dos fundamentos da consciência jurídica

européia.

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Como muitas das grandes culturas do mundo, a cultura ocidental desenvolveu-se sobre o corpo de uma pré-cultura, quando grupos de povos guerreiros invasores dominaram uma velha civilização urbana com uma organização débil ou em desagregação e, ao fazê-lo, foram remodelados por ela. A assimilação civilizacional significa simultaneamente uma educação espiritual que desperta uma nova força criadora; à educação externa acaba por se seguir um renascimento da pré-cultura a partir do novo sentido da vida... Esta matriz fundamental domina também o ritmo da evolução jurídica européia, que constitui uma progressiva apropriação do patrimônio romanístico em desenvolvimento até os nossos dias. Primeiramente foram recebidos os elementos materiais e técnicos do direito vulgar. A transição para o século XII assiste ao encontro sempre aberto e provisório, com a grande jurisprudência romana na versão do classicismo justinianeu, encontro acompanhado pela recepção da teoria jurídica e política de Aristóteles que produziu, na Suma de S. Tomás, o primeiro sistema europeu de direito natural. Só com o humanismo se iniciam as tentativas de arrancar ao Corpus Iuris justinianeu o autêntico direito romano clássico, tentativas que, mais tarde, a Escola Histórica de novo retomou e que a moderna romanística concluiu de forma metódica (Wieacker, 1967, p. 24).

Como um processo dialético de incorporação e perda, a cultura jurídica romana atingiu os

germânicos da mesma forma que foi enterrada pelos romanos, podendo ser redescoberta apenas

quando houvesse maturidade para tanto (Wieacker, 1967, p. 28).

Sendo assim, podemos, com relação à história do ensino jurídico e sua metodologia,

distinguir dois tipos de tradições jurídicas: a primeira, sita no universo eclesiástico, de clérigos com

formação jurídica, já, de certa forma descrita anteriormente; e, por outro lado, o desenvolvimento de

universidades laicas, com preponderância para Bolonha, e o desenvolvimento das principais escolas

jurídicas de interpretação do direito no medievo, com o surgimento dos glosadores, consiliadores e

humanistas.

O contexto dos juristas na Idade Média, de estudo ao texto romano, dava-se a partir do

trivium, aplicando-se a dialética, a tópica e a retórica ao texto de Justiniano, o Corpus Iuris Civilis.

Consideravam, pois, o direito romano como uma totalidade, uma razão objetiva e universal (Lopes,

2003, p. 118).

As universidades têm início na Idade Média, a partir da formação das artes liberais e das artes

mecânicas. As primeiras formavam em direito, teologia e medicina, ficando sob a guarda da Igreja até

por volta do século XI.

O estudo do direito era dividido em cânones e civil. O direito romano era visto como um

direito comum a todos, sendo o estudo baseado na busca de objetividade e a ciência considerada um

saber aberto.

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Por volta do século XII começa a haver, principalmente na Itália, um ressurgimento do

direito romano, que irá, nos séculos seguintes, estar relacionado ao nascimento de todo um

movimento de renascimento do pensamento filosófico, da literatura e do desenvolvimento comercial

de certas cidades do norte.

Dentre as principais universidades, Bolonha se destaca, também compartilhando do

referencial filosófico-teórico grego. Bolonha tem seu desenvolvimento a partir do século XI, ligada a

um progresso comercial que impulsiona o desenvolvimento de uma cultura literária profana. Nesse

processo, o direito romano dá sua contribuição:

Essa refracção da idéia de Roma mostra precisamente que os partidos vêem agora no direito romano pura e simplesmente o direito da comunidade jurídica humana. Para todos ele constitui o direito natural por força de sua dignidade histórica e autoridade metafísica; e assumiu, no projeto conjunto do pensamento jurídico medieval, a categoria de uma moral validade em geral: tudo isto, no entanto, sem exigir, nem sequer na Itália, uma aplicação direta através dos corpos de magistrados. Assim, recorriam ao direito romano não só os juristas, como ainda os canonisas e mesmo os cultores da teologia moral, a partir do momento em que os decretistas tinham extraído precisamente das Instituições e do Digesto a idéia de jus naturale. Por outro lado, mesmo a própria imagem do direito dos glosadores não era uma imagem técnico-jurídica. Ela radicava também na idéia mais genérica de direito natural da alta Idade Média, na qual as concepções e tópicos aristotélicos, estóicos, ciceronianos e patrísticos se tinham introduzido como elementos mais firmes (Wieacker, 1967, p. 28).

Segundo Gilissen (2003, p. 205), podem-se elencar algumas transformações nos sistemas

jurídicos dos séculos XII a XIII, que irão ser importantes para a formação de nossos sistemas

jurídicos na atualidade, principalmente os chamados direitos de família romano-germânica: passa-se

de um sistema irracional para um racional, estabelecendo-se a verdade por meios racionais de prova,

com o arbítrio dando lugar à justiça; desaparece a multiplicidade do regime feudal, formando-se os

embriões dos Estados modernos; o desenvolvimento econômico faz surgir um direito urbano,

caracterizado pela igualdade jurídica; além de um processo de emergência da lei frente ao costume.

Dentre os vários métodos de estudo do direito romano neste período, destacam-se algumas

escolas como a dos glosadores, a Escola de Orleães, os pós-glosadores ou comentadores, e os

humanistas.

A Escola de glosadores teve origem em Bolonha, vigorando entre os séculos XII e XIII. Os

glosadores, juristas que trabalham a partir da interpretação de textos romanos, consideram-nos como

instrumento de razão, verdade e autoridade (Lopes, 2003, p. 128, 129).

Segundo Wieacker (1967, p. 48):

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Quando os glosadores interpretam os seus textos e procuram ordená-los num edifício harmônico, partilham na verdade, com as modernas teologia e jurisprudência, as intenções de uma dogmática, de um processo cognitivo, cujas condições e princípios fundamentais estão predeterminados através de uma autoridade... Não queriam nem provar a justeza da afirmação do texto perante o fórum da razão não pré-condicionada, nem fundamentá-lo ou compreendê-lo do ponto de vista histórico, nem, tampouco, torná-lo útil para a vida prática. O que eles queriam era antes comprovar com o instrumento da razão, que para eles era constituído pela lógica escolástica – a verdade irrefutável da autoridade. Esta relação entre autoridade e razão com que os intelectuais medievais se ocuparam tão incansavelmente remonta ao idealismo grego, notadamente ao platônico, e à esperança provinda da filosofia eleática, de que a todo o objeto pensado deveria corresponder um ente metafísico.

Apesar de uma técnica de interpretação de textos, os glosadores passaram a interpretá-los em

conjunto, compreendendo o sentido global do texto e resolvendo as possíveis contradições entre

eles.

Só através da exploração ininterrupta e comparativa do material das fontes os glosadores se apropriaram completamente da problemática jurídica global do Corpus Iuris (Wieacker, 1967, p. 53).

Segundo Wieacker, a importância dos glosadores para a resolução dos conflitos e para a

formação da jurisprudência européia culminou com a formação de uma cultura legalista.

Os glosadores deram forma, com este modelo de ensino, ao método que fundamentalmente ainda hoje se mantém como técnica dos juristas. O resultado destes processos, moldados por incontáveis gerações de juristas e gravado na sua memória, foi um domínio do texto romano de que o jurista moderno já dificilmente pode fazer uma pequena idéia, mas também um treino na exploração lógica dos problemas jurídicos que ainda hoje permanece quase inalterado no estilo específico da discussão das hipóteses jurídicas na argumentação e na interpretação. A aplicação de conclusões lógicas duma forma casuística e analítica se tornou na essência do próprio pensamento jurídico. Os seus defeitos residem, sobretudo, na repressão da razão prática e da justiça pelo culto da autoridade e do formalismo lógico (Wieacker, 1967, p. 65). Os glosadores, pela primeira vez na Europa, apreenderam dos grandes juristas romanos a arte de resolver os conflitos de interesses da vida em sociedade, não mais com recurso à força ou a costumes espontâneos irracionais, mas através da discussão intelectual dos problemas jurídicos autônomos e de acordo com uma regra geral baseada nesta problemática jurídica material. Esta nova exigência dos juristas racionalizou e jurisdicionalizou para sempre a vida pública na Europa. Em virtude da sua influencia, dentre todas as culturas do mundo é a européia a única que se tornou legalista. Na medida em que encontrou um princípio racional que substitui a decisão pela força dos conflitos humanos, a jurisprudência criou uma condição especial para o progresso da civilização material – em especial da técnica da administração -, da organização racional da sociedade econômica e mesmo do moderno domínio técnico da natureza (Wieacker, 1967, p. 65).

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A partir do século XIII, Bolonha tem sua influência diminuída, surgindo na França uma

renovação de estudo dos romanistas, a partir de uma crítica às glosas. Tal método, oriundo da Escola

de Orleães, influenciará todo aquele século, com uma aplicação do método dialético aos textos,

realizando uma argumentação mais fina e mais liberta da análise puramente textual. Essa

universidade eclesiástica era uma escola de formação superior para o clero (Gilissen, 2003, p. 3444,

345).

Por fim, cabe referir a importância dos consiliadores e humanistas. Aqueles, também

conhecidos como pós-glosadores ou comentadores, assim como os glosadores, prosseguiram o

trabalho de interpretação sobre o Corpus Iuris Civilis, no entanto a partir do uso de figuras lógicas

mais complicadas.

A Escola dos pós-glosadores surgiu na Itália, também como uma reação aos glosadores,

implicando em uma evolução ao seu método, vigorando nos séculos XIV e XV.

Os comentadores caminharam cada vez mais para uma atividade de consulta, de cuja experiência resultou em geral uma impregnação e aperfeiçoamento científicos dos direitos estatutários, e mesmo das ordens jurídicas italiana e européia (Wieacker, 1967, p. 80). Os comentadores converteram o direito justinianeu num direito comum de toda a Europa; ao mesmo tempo em que reduziram a multidão dos direitos não romanos da Europa à forma mental da sua ciência (Wieacker, 1967, p. 80). Pela primeira vez uma jurisprudência adulta e consciente das tarefas cotidianas começa a tornar as fontes romanas diretamente úteis para a satisfação das necessidades da vida (Wieacker, 1967, p. 84).

Segundo Wieacker, essas duas grandes escolas, a dos glosadores e a dos comentadores,

constituíram a segunda camada de juristas ao lado dos clérigos. Para ele, o jurista, aparentemente tão

afastado da vida, teve uma participação decisiva na vitória do Estado racionalizado e da idéia de direito depois do fim

da Idade Média (Wieacker, 1967, p. 95).

Por fim, os humanistas (séculos XVI e XVII) realizaram um segundo ressurgimento do

direito romano, a partir de um estudo puramente científico dos textos, com um método visando ao

estabelecimento do sentido original e verdadeiro das regras jurídicas romanas (Gilissen, 2003, p. 349).

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5. Os significados do medievo para a construção da modernidade

Esse tópico final, assim como todo o texto, não tem por intuito encerrar a questão, apenas

tenta tratar das bases medievais para o surgimento da modernidade, principalmente do Estado

moderno.

Segundo Kritsch (2004, p. 1), as bases para a constituição do Estado moderno,

principalmente a noção de soberania, foram construídas a partir dos conflitos políticos e jurídicos,

que deram origem aos alicerces legais e ideológicos do poder do Estado.

Segundo a autora (2004, p. 2), tais conflitos são políticos porque resultaram de uma

redistribuição de poder que acabou culminando com a entrada de novos atores na cena política, bem

como jurídico, porque tais problemas sempre foram explicitados no período como questões de

jurisdição e legitimidade††††††.

Nesse sentido, podemos ver na Igreja a instituição preliminar de centralização de poder:

A partir do final do século XI, porém, novas condições começaram a marcar a vida política e social. Strayer apontou em primeiro lugar a difusão do cristianismo: "a Europa ocidental só passou a ser realmente cristã nos finais do século X", escreve. A Igreja não só tinha alguns dos atributos do Estado, como instituições duradouras e uma teoria do "poder supremo" papal4, mas, além disso, influenciava diretamente a política secular, pelo envolvimento do clero nos negócios públicos e pela atribuição, aos governantes, da obrigação de garantir a paz e a justiça entre os súditos. Exigências desse tipo impunham o desenvolvimento de instituições judiciais e administrativas.

Além disso, a estabilização européia, depois do período das invasões, também é apontada

como uma das matrizes para o surgimento da modernidade:

O segundo fator indicado por Strayer é a estabilização da Europa, depois de longo período de migrações, invasões e conquistas. "Essa crescente estabilidade política veio dar lugar ao aparecimento de uma das condições essenciais para a constituição do Estado, a continuidade no tempo e no espaço. Pelo simples fato de manterem-se de pé, alguns reinos e principados começaram a adquirir solidez. Certos povos, ocupando determinadas áreas, permaneceram, durante séculos, integrados em um mesmo conjunto político. [...] E os governantes de reinos e principados que se mantinham no espaço e no tempo tinham oportunidades e incentivos para desenvolver instituições permanentes" (idem, p. 21-22).

No entanto, o principal elemento ideológico que culminará com a formação do Estado

moderno é o conceito de soberania, que, de acordo com Kritsch (2004, p. 5) começou a desenvolver-se a

†††††† Vide a nota 16 sobre a Querela das Investiduras.

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partir dos intermináveis conflitos de jurisdição entre papas, reis e imperadores que dominaram os séculos finais do

medievo.

Sobre o desenvolvimento da soberania, a autora (2004, p. 4) sustenta ter também origem na

recuperação dos textos jurídicos romanos, que acaba por limitar o poder sobre dado território:

Essa noção nascente de soberania, por sua vez, é constituída de elementos formadores não menos relevantes, que terminariam por fazer parte dos alicerces legais e ideológicos do moderno Estado. Um desses elementos formadores é a recuperação, pelos juristas tanto canonistas quanto civilistas, dos antigos códigos do Direito Romano. Entre os inúmeros princípios retomados, há um de especial importância, que logo seria adaptado aos novos tempos, como observou Calasso: "Enquanto a Europa, particularmente entre os séculos XII e XIII, era trabalhada pelo incessante movimento dos povos que emergiam em busca de seu lugar, dentro e fora da jurisdição direta do Império Romano-germânico, no campo da ciência jurídica abria caminho um novo princípio, destinado a interpretar por séculos o mundo novo que estava por surgir. Esse princípio veio logo encerrado em uma fórmula que assim soou: rex superiorem non recognoscens in regno suo est imperator, e que significava o seguinte: 'o rei, que não reconhece nenhum outro poder acima de si, tem, no âmbito do próprio reino, os mesmos poderes que tem o imperador sobre todo o Império”.

Sendo assim, vemos que determinadas construções, tão características da modernidade,

acabam tendo seu cerne no medievo, sendo, portanto, necessário o conhecimento desse período

histórico para tal compreensão.

Aliás, gostaria de terminar salientando que não se pode fazer um estudo histórico do direito

sem conectá-lo com as demais compreensões sociológicas, políticas e filosóficas que embasam cada

momento histórico.

Sendo assim, não se pode deixar de mencionar, em finais da idade média, o movimento

teórico-intelectual que implicará numa ruptura com tal período, fruto de uma série de teorias que

terão uma importância crucial para o surgimento da modernidade. São, pois, dessa época, com as

devidas diferenciações de datas, as produções de ciência política de Maquiavel (século XV); o

contratualismo de Hobbes, Locke e Rousseau (séculos XVII e XVIII); a escola de direito natural, que

desde São Tomás tem fundamentado todo o direito eclesiástico e que com Grotius (século XVII) irá

ter um embasamento racional; bem como as teorias dos reformadores penais, como Beccaria,

Bentham, Brissot (século XVIII).

Especificamente no que se refere ao direito penal moderno, é importante ter em conta o

quanto a história medieval é importante para a compreensão da sociedade disciplinar e do

surgimento da prisão. Michel Foucault (1996, 1999, 2002, 2003), a partir de análises históricas de

metodologia genealógica, demonstrará como se deu o surgimento da prisão como instrumento

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primordial de controle social da modernidade, descrevendo suas origens históricas e suas implicações

na modernidade e na atualidade. Fruto de uma prática social não oficial, a prisão acaba tornando-se

numa grande bandeira para o tratamento de criminosos, a partir de uma atuação dos chamados

saberes modernos – formações discursivas que compõem aquilo que Foucault entende como ciências

humanas – que acabam por justificar o uso e a manutenção da prisão, calcada no tripé disciplina,

vigilância e correção.

A contribuição de Michel Foucault para estudantes de história do direito é um tanto oblíqua,

mas seguramente imprescindível para uma visão ampla e crítica de nossas instituições e práticas

jurídicas, contribuindo para desmistificar determinadas crenças e valores e desnaturalizar o uso e a

permanência de determinadas instituições. Como teórico crítico da modernidade, Foucault buscará

nas idades Antiga e Medieval origens e explicações para nossas construções absolutizadas, sempre no

sentido de uma desnaturalização, e em nossa opinião, é aí que reside a necessidade de um

conhecimento histórico que transcenda a mera descrição e aponte para uma melhor compreensão

crítica de nossa época.

Referências Bibliográficas

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