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História do Brasil Colonial: Aspectos Formativos

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História do Brasil Colonial: Aspectos Formativos

Os Povos do Novo Mundo

Material Teórico

Responsável pelo Conteúdo:Profa. Dra. Celia Maira Estrella

e Prof. Esp. Pietro Henrique Fernandes Delallibera Sant’Anna

Revisão Textual:Profa. Esp. Natalia Conti

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Nesta Unidade abordaremos os aspectos econômicos, sociais e culturais dos chamados Povos do Novo Mundo.

Em materiais didáticos você encontrará o conteúdo e as atividades propostas para os temas da economia, política, sociedade e cultura colonial.

O principal objetivo desta Unidade é compreender como a economia, a sociedade e a política dos indígenas foram organizadas e como a cultura foi construída. Aqui você terá um entendimento sobre alguns elementos que marcaram a constituição histórica da América Indígena.

Os Povos do Novo Mundo

· Introdução

· Notas sobre a economia dos Tupis

· Alguns aspectos da cultura e das relações sociais dos tupis

· O Sentido da Política Indígena Tupi

· Considerações finais

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Unidade: Os Povos do Novo Mundo

Contextualização

Para iniciar esta Unidade, a partir da ilustração abaixo reflita sobre a questão da cultura indígena.

A figura aborda alguns dos trabalhos das mulheres indígenas.E

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rasil; versa~o do texto

de Marpurgo 1557.

Trata-se de uma representação do trabalho feminino, retirada do livro Viagem ao Brasil; versão do texto de Marpurgo, de 1557. Autor: Hans Staden (1525-1579)

A figura aborda alguns dos trabalhos das mulheres indígenas.

Para Pensar

Oriente sua reflexão pelas seguintes questões:

De qual contexto histórico esta ilustração trata?

Quais protagonistas históricos a ilustração representa?

Qual mensagem a ilustração pretende transmitir?

• http://www.fadedpage.com/books/20130124/20130124.html

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Os indígenas: economia, sociedade, cultura e política

(...) trazer um mapa-múndi (...) e por aí poderá ver Vossa Alteza o sítio desta terra; mas aquele mapa-múndi não certifica se esta terra é habitada ou não (...). Carta do mestre João de Farás. 1500.

Esta unidade abordará algumas esferas da vida dos indígenas - de grande diversidade étnica - que habitavam o território “achado” pelos portugueses: a sociocultural, a econômica e a política, pautando-se nas interpretações de especialistas nesses temas.

Para estudar a dinâmica da vida desses indígenas é importante enfatizar que a divisão do conteúdo em diferentes esferas da atuação humana é meramente didática, visto que todas essas esferas estão entrelaçadas formando um todo.

Esses indígenas foram caracterizados pelos portugueses como gente sem religião, sem justiça e sem Estado, como relata o gramático, historiador e cronista Pero de Magalhães Gândavo, que esteve no Brasil entre 1558 e 1572, para trabalhar na Fazenda do governo da Bahia. (GÂNDAVO, 1980.p 24.)

“A lingua deste gentio toda pela Costa he, huma: carece de tres letras — scilicet, não se acha nella F, nem L, nem R, cousa digna de espanto, porque assi não têm Fé, nem Lei, nem Rei; e desta maneira vivem sem Justiça e desordenadamente.”

As ideias baseadas na observação dos cronistas da época fundamentaram, mais tarde, os conceitos da filosofia política de homem natural e estado de natureza, acrescidas, no século XIX, de outras classificações como atesta Carlos Fausto, doutor em Antropologia pela UFRJ, em sua obra Os índios antes do Brasil, (FAUSTO, 2000, p. 10 -11).

(...) No século XIX, outras dicotomias somaram-se à oposição entre o natural e civil – parentesco versus política, sangue versus território, status versus contrato -, constituindo um corte entre sociedades organizadas por laços de parentesco (mais “naturais”) e aquelas estruturadas segundo vínculos políticos (mais “sociais”).

A classificação das sociedades indígenas da América do Sul, a partir destas dicotomias, foi o tema de um dos mais abrangentes estudos sobre os habitantes da América do Sul, coordenados pelo antropólogo americano Julian Steward, e publicados entre 1946 e 1959.

No Handbook of South Américan Indians (Guia dos índios sul americanos), o autor construiu uma tipologia cultural para as sociedades indígenas, considerando o seu grau de complexidade, a tecnologia, a organização sociopolítica e a feição do espaço que ocupavam.

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Unidade: Os Povos do Novo Mundo

Essa tipologia hierarquizada dos povos indígenas, além de resvalar para o positivismo e o determinismo geográfico, colocava em posição inferior povos que não dominavam tecnologias mais avançadas ou se estruturavam politicamente, sem a presença de um estado. O critério não se aplicava às necessidades desses povos.

Conforme Carlos Fausto, (FAUSTO, 2000, pp. 12-15, passim) em relação ao Brasil, no patamar inferior, situavam-se os povos caçadores e coletores, nômades que habitavam as regiões do Chaco, do Cone Sul e do Brasil Central. Em outro nível, mais elevado, situavam-se os que ocupavam as florestas tropicais: a Amazônia, a costa brasileira. Eles eram agrícolas, pescavam, mas apesar de não terem organização política e religiosa compunham uma sociedade igualitária.

Também nessa linha determinista, outros autores indicaram o império do ambiente na organização das sociedades indígenas, como Betty Meggers e Clifford Evans ao apontarem – como demonstração – a involução de povos que migraram das regiões altas da América do Sul e se estabeleceram na região amazônica.

Essa teoria, com algumas variações, permaneceu até o seu questionamento mais incisivo, iluminado pelos estudos que demonstraram as culturas indígenas a partir do pressuposto da racionalidade, com potencial para erigir seus lugares, como sujeitos que avaliaram e escolheram as melhores opções e para tomar suas decisões, e não como objetos das tirânicas condições geográficas do ambiente em que viviam.

Tal perspectiva é a que norteia a abordagem dessa unidade voltada ao estudo dos povos indígenas designados pelos portugueses como tupis pela semelhança de língua e costumes, cujo contato com os colonizadores ocorreu de forma mais intensa e frequente, possibilitando os registros dos jesuítas e viajantes.

O nome tupi se referia a um grupo numeroso constituído dentre muitos outros pelos guaranis, tupinambás, tupiniquins, tamoios, tabajaras, potiguaras caetés, tupinás, falavam a língua geral mencionada nos relatos dos cronistas quinhentistas, estudada por alguns deles.

GlossárioO tupinólogo Eduardo de Almeida Navarro autor do Dicionário Tupi Antigo, sugere a etimologia “todos da família dos tupis”, para os tupinambás através da junção de tupi (tupi), anama (família) e mbá (todos).

Os grupos que não falavam a língua tupi foram identificados como tapuias que, por habitarem o interior das terras brasileiras, não tiveram um contato regular com os colonizadores, daí o restrito conhecimento da sua cultura na época, só mais tarde valorizado por estudiosos que se debruçaram sobre a extensa diversidade desses grupos.

Os tupis contavam que os tapuias eram originários do seu grupo. Não eram de outra etnia. Dentre eles os mais conhecidos eram os aymorés, botocudos e cariris. Haviam abandonado as aldeias e se instalaram no interior das terras. Daí o nome que lhes atribuíram originário de tapuy-ú, os fugidos da aldeia. Os tapuias eram considerados, por isso, bárbaros e era contra eles em geral que as guerras eram mais acirradas. Tomavam de assalto as regiões costeiras, eram fortes e valorosos. Os aimorés, em especial, eram altos, robustos e belicosos.

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Os aimorés foram identificados por Gabriel Soares Souza, em sua obra “Tratado descritivo do Brasil”:

“Descendem estes aimorés de outros gentios a que chamam tapuias, dos quais nos tempos de atrás se ausentaram certos casais, e foram-se para umas serras mui ásperas, fugindo a um desbarate, em que os puseram seus contrários, onde residiram muitos anos sem verem outra gente; e os que destes descenderam, vieram a perder a linguagem e fizeram outra nova que se não entende de nenhuma outra nação do gentio de todo este Estado do Brasil” (SOUSA, 1971, p.58).

A figura 1, que segue, mostra a distribuição dos indígenas no momento da chegada dos portugueses no Brasil, no início do século XVI.

Figura 1

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Extraído do Guia dos índios sul-americanos / Handbook of South Américan Indians de Julian Steward.

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Unidade: Os Povos do Novo Mundo

Notas sobre a economia dos Tupis

Já no momento da chegada dos navegantes portugueses, descrita nas famosas missivas produzidas pelos integrantes da esquadra de Pedro Álvares Cabral: “A carta a El Rei D. Manuel” - redigida por Pero Vaz de Caminha – a “A carta do mestre João Farás” e a “Relação do Piloto Anônimo”, foi possível identificar alguns dos trabalhos indígenas desenvolvidos como a coleta e a pesca, para garantir a sobrevivência do seu grupo.

Diálogos com os navegantes:

“Nem comem senão desse inhame, que aqui há muito, e dessa semente e frutos, que a terra e as árvores de si lançam. E com isto andam tais e tão rijos e tão nédios, que o não somos nós tanto, com quanto trigo e legumes comemos.” (CAMINHA p.61).

André T

hevet/Wikim

edia Com

mons

A coleta. Extraído de Jean de Léry “Viagem à terra do Brasil”.

(...) O vento era sudeste. Finalmente encontramos um porto onde lançamos âncora e onde encontramos daqueles indígenas que andavam nos seus barcos a pescar”.(...) E tem muito bom ar e estes homens têm redes e são grandes pescadores e pescam peixes de muitas espécies, entre os quais vimos um peixe que apanharam, que seria grande como uma pipa (...) (ANÔNIMO, p. 3)

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Às atividades acima descritas pelos viajantes, devem-se acrescentar a caça e a horticultura, ambas providenciadas pela riqueza natural do lugar, mas, sobretudo, pelo perfeito domínio com que os indígenas se moviam no espaço da floresta explorada, sem nenhuma preocupação formal em preservar o seu equilíbrio, daí a necessidade de deslocamentos constantes em busca de novas terras férteis.

Esses deslocamentos, mais a utilização de ferramentas adequadas as suas necessidades comprovavam que as riquezas poderiam ser extraídas e se recompor, quando em descanso. Esses movimentos comprovam a capacidade de gerenciar o ambiente.

A terra era o maior bem indígena e dependia do conhecimento sobre os seus recursos básicos, sendo a garantia da sobrevivência do seu grupo, conforme menciona Florestan Fernandes em seu estudo sobre “Antecedentes indígenas: a organização social dos índios tupis”:

“Em virtude da importância da natureza na economia tribal, a localização do grupo na porção de território, dominado pela tribo que lhe era destinada, constituía um problema de ordem vital. Dela dependia o provimento fácil de água potável, de lenha para a cozinha ou para fornecer calor à noite, de mantimentos que precisavam ser obtidos em condições de segurança”. (p. 74)

A pesquisa desses recursos, aparentemente muito simples, demandava um movimento contínuo do grupo todo com um mesmo objetivo: a escolha da localidade onde permaneceriam durante certo período, em condições de oferecer comida, moradia e saúde para organizar a sua vida. Mas essa escolha era fruto da deliberação e decisão do conselho dos chefes em prol dos interesses de todos.

No lugar escolhido eles desempenhavam atividades tipicamente femininas; masculinas, e adequadas às idades dos trabalhadores, configurando, nessa dinâmica, sua economia na divisão sexual e etária do trabalho, assim distribuída:

I - As mulheres plantavam, colhiam, faziam cerâmicas, cestarias, cozinhavam, fiavam e teciam, cuidavam da higiene de todos os vivos e preparavam os mortos para os rituais.

II - Os homens preparavam a terra para o plantio, caçavam, pescavam e fabricavam os instrumentos necessários para todas as atividades, construíam as casas, guerreavam e desempenhavam algumas das cerimônias xamanísticas.

III - As crianças, embora extremamente livres, participavam das atividades dos pais e parentes, aprendendo pelo exemplo - imitando - pois não existia um ensino formal. O conhecimento era transmitido de forma espontânea e integral, oralmente.

IV – Os velhos proviam as suas próprias necessidades, viviam junto de suas famílias, ocupavam os postos de pajés, xamãs, compunham os conselhos:

a - consultivo - emitindo pareceres sobre as questões propostas;

b - deliberativo - tomando as decisões sobre os temas importantes para a comunidade.

Eram depositários da experiência: guardavam histórias, tradições e mitos, daí o profundo respeito do qual eram objeto.

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Unidade: Os Povos do Novo Mundo

Você Sabia ?- algumas mulheres eram xamãs?

- tupis não exploravam o trabalho dos seus inimigos cativos, antes da execução?

Recorrendo mais uma vez ao estudo de Florestan Fernandes é possível dimensionar o grau de conhecimento das condições ecológicas do espaço que ocupavam e a compreensão do esforço que teriam que fazer para transformar a realidade em que viviam:

“(...) a pobreza do sistema tecnológico compelia-os a tirar maior proveito do organismo humano e de suas energias, em todo o gênero de atividade, bem como a combinar a capacidade de trabalho individual em diferentes fins. (...)” p. 76.

A grande carga do trabalho individual, no entanto, era recompensada nas atividades desenvolvidas em mutirão, ocasião em que os tupis se dispunham a ajudar-se mutuamente nas atividades mais difíceis como o cultivo ou a colheita de uma roça.

GlossárioA palavra mutirão é de origem tupi, significa auxílio gratuito que prestam uns aos outros os lavradores, reunindo-se todos os da redondeza e, realizando o trabalho em proveito de um só, que é o beneficiado, mas que nesse dia faz as despesas de uma festa ou função. Dicionário Aurélio Buarque de Holanda.

Como comenta o Padre Fernão Cardim em seus relatos reunidos na obra “Tratados da terra e da gente do Brasil”:

Do modo que têm em fazer suas roçarias e como pagam uns aos outros.

“Esta nação não tem dinheiro com que possa satisfazer seus serviços que se lhe fazem, mas vivem em commutatione rerum e principalmente a troco de vinho fazem quanto querem; e assim quando hão de fazer algumas coisas, fazem vinhos, e avisando os vizinhos, e apelidando toda a povoação lhes rogam que queira ajudar em suas roças, o que fazem de boa vontade, e trabalhando até as 10 horas tornam para suas casas a beber os vinhos, e se aquele dia se não acabam as roçarias, fazem outros vinhos e vão outro dia até 10 horas acabar seu serviço”. (Cardim p.173)

Convertia-se o mutirão numa ocasião de festa e de congraçamento entre aqueles que viviam numa mesma aldeia. Um momento de alegria e cooperação que vinha assentado em uma certeza: a da troca, da reciprocidade.

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Alguns aspectos da cultura e das relações sociais dos tupis

A prática do mutirão mencionada no tópico anterior, o da organização econômica, indica o entrelaçamento das diferentes esferas das relações humanas, e a impossibilidade de isolar os estudos econômicos e políticos dos estudos socioculturais dos tupis, pautadas pela solidariedade social. (FERNANDES, 1989, p.76)

Permeada pelos fortes laços do parentesco, a agregação desse povo ocorria graças à interdependência gerada pelo trabalho e compromissos, criando valores e sentimentos transmitidos de geração a geração, que se impunham como impulsos vigorosos nas decisões tomadas pelos indivíduos, considerando, primeiramente a tradição do grupo.

Essas decisões manifestavam a inexistência de uma consciência individual em prol da coletiva, pois o sentimento de pertencimento era muito vigoroso, promovendo uma maior coesão, e harmonia social, como preconizava o sociólogo Émile Durkheim, em seus estudos sobre as sociedades que vivenciavam essas formas de solidariedade.

A coesão social pode ser atribuída à necessidade de uma sociedade em se defender de outras, argumento adequado perfeitamente à sociedade tupi porque as guerras - fenômeno social – eram intermitentes. Ocorriam entre os mesmos grupos ou “nações” de grupos distintos, seguindo um planejamento: raptavam as mulheres da nação inimiga e/ou partiam para o confronto direto.

Eram atividades extremante viris motivadas pelas disputas territoriais, por status, obtenção de esposas, mas também por problemas ocasionais devido a casamentos não realizados para estabelecer alianças.

Você Sabia ?- as mulheres tríbades podiam guerrear?- os mortos e feridos eram devorados durante o combate? - muitas vezes os filhos homens gerados pelas mulheres com que se relacionavam os prisioneiros

eram mortos ao mesmo tempo em que os seus pais, mas as filhas, apenas ocasionalmente eram sacrificadas, porque acreditavam que herdariam as características maternas?

- que quando os portugueses aqui aportaram, as nações indígenas encontravam-se exaustas em um momento crucial dos seus constantes embates?

Os vencedores não escravizavam os vencidos e com eles conviviam pacificamente alimentando-os e oferecendo as mulheres da aldeia, até o momento da execução em rituais antropofágicos que se legitimavam por suas crenças em uma viagem ao Paraíso, após a morte, na vingança dos integrantes da aldeia mortos em combate e no culto dos antepassados.

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Unidade: Os Povos do Novo Mundo

Hans Staden registra um momento de canibalismo na cultura Tupinambá, no litoral paulista:

Fui até a cabana de Cunhambebe, o chefe mais importante, e perguntei-lhe o que pretendia fazer com os mamelucos. Ele disse que seriam comidos e proibiu-me de conversar com eles, pois estava muito zangado com eles. Eles deviam ter ficado em casa e não guerrear contra ele com seus inimigos. Quando lhe pedi que os deixasse viver e os devolvesse aos amigos em troca de um resgate, apenas repetiu que seriam comidos. (Staden, 1974.p.113)

Extraído de STADEN, H.1974 Duas viagens ao Brasil, São Paulo, Edusp. p.114

Os prisioneiros passavam também pelos cuidados das mulheres, sobretudo daquelas indicadas como companheiras durante o período de prisão, e, às vezes, mães dos seus filhos: eram lavados, depilados e pintados. Aguardavam a cerimônia da execução, enquanto dialogavam com seus algozes sobre as razões daquela morte e as propostas de vingança dos seus familiares, demonstrando grande coragem e desprendimento diante da perspectiva de serem sacrificados e devorados.

Staden reproduz o diálogo que segue:

Os selvagens reuniram-se e formaram um grande cerco dentro do qual ficaram os prisioneiros. Estes tiveram de cantar todos juntos e agitar os ídolos, os maracás. Em seguida, um após o outro falou destemidamente, dizendo: “Sim, nós saímos, como fazem os homens corajosos, para capturá-los e comê-los, a vocês, nossos inimigos. Mas vocês foram mais fortes e nos capturaram. Não pedimos nada. Os combatentes valorosos morrem nas terras de seus inimigos. E nossa terra ainda é grande. Os nossos ainda se vingarão em vocês.” Então os responderam: “Vocês já eliminaram muitos dos nossos. Queremos vingá-los em vocês”.

O canibalismo expressa a compreensão da derrota e da vitória; é uma relação de vingança; a devolução da dor pela perda de homens fortes e corajosos – uma dádiva para a nação –- que, apenas naquele momento é a vencedora, mas que respeita suas tradições e reconhece como a vitória é efêmera.

O festim promovido era aguardado com grandes expectativas e o banquete era antecedido pela imobilização dos prisioneiros com cordas enquanto as danças e os cantos se estendiam por vários dias, envolvendo toda a aldeia.

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Wikim

edia Com

mons

Antropofagia ou canibalismo Tupinambá. A representação do ritual associa-se às imagens do purgatório e à ação demoníaca, no âmbito do imaginário religioso europeu. Theodore De Bry, Grandes Viagens, 1592.

http://novahistorianet.blogspot.com.br/2009/01/ndios-no-brasil-histria-sociedade-e.html

Para o historiador John Manuel Monteiro a importância das guerras para as sociedades indígenas foi assim enunciada:

“ao definir os inimigos tradicionais e reafirmar papéis dentro das unidades locais, a vingança e, de modo mais geral, as guerras foram importantes na medida em que situavam os povos tupis em uma dimensão histórico-temporal”. (MONTEIRO, 1994.p.27.)

Na declaração da guerra à outra nação, perfilavam-se os aliados com a mesma disposição para a vitória como uma forma de retaliação. Estabelecia-se uma identidade onde todos os elementos do grupo experimentavam o reconhecimento mútuo dos seus interesses, recuperando as antigas e projetando as futuras alianças e desforras que não tardariam a acontecer dado o crescimento demográfico e as relações conflituosas dos contratos de núpcias.

Percebe-se, mediante a leitura das crônicas da época e dos especialistas, a importância das núpcias e da vida conjugal nas sociedades indígenas. A mulher desempenhava um papel de grande valor reconhecido por toda a sua parentela. Todos os pais, filhos, irmãos, dependiam dos cuidados específicos realizados por elas, considerados verdadeiros “bens” na sociedade. Por isso o casamento era desejado pelos homens da aldeia, que lutavam por uma esposa.

Casamento indígenaAo estudar as relações sociais dos tupis, Florestan Fernandes comenta que o casamento era

preferencialmente avuncular, tio materno com sobrinha, e entre primos cruzados. O marido tinha uma dívida com os familiares da esposa, pela perda dos seus serviços, paga mediante um período de trabalho na casa dos pais da noiva, que poderia ser reduzido pela entrega de uma menina, filha do casal para compensar a falta que a mãe dela faria, caso o marido desejasse retornar a sua aldeia.

Como os homens tinham várias esposas, a formação de novas parentelas e malocas era

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Unidade: Os Povos do Novo Mundo

frequente e as relações sociais provenientes dessa circunstância eram de independência, marcadas pela cordialidade e harmonia. Os tupis viviam compartilhando todos os seus haveres, eram de uma incrível solidariedade. Juntos pesquisavam os terrenos para construírem suas tabas, geralmente perto de rios, erguiam suas casas com varas e cobertas com palhas, ou folhas – que duravam alguns anos – e juntos nelas viviam, pois não possuíam nenhuma divisão interna. (FERNANDES, 1989, p.77)

Porém, quando ocorria algum desvio de comportamento, embora não houvesse denúncias para a exposição do culpado, toda a comunidade era conclamada a relembrar - pelos pronunciamentos dos velhos da tribo - os valores que deveriam ser respeitados na aldeia.

Tal comportamento tolerante era costumeiro em diferentes situações: para acalmar os ciúmes das diversas mulheres; para educar as crianças - que não sofriam castigos corporais; para ajudar os rapazes a vencer as difíceis provas de iniciação e a conseguir esposas jovens; para auxiliar as jovens no momento da puberdade, para auxiliar nos partos mais difíceis, para resolver os imprevistos que surgiam. (FERNANDES, 1989.p. 76.)

Ritos de iniciação dos rapazes ou moças.Os indígenas do quinhentismo eram robustos, ágeis, prontos para os desafiantes combates,

para enfrentar os rigores da natureza na floresta e o trabalho exaustivo nas aldeias. A flexibilidade dos seus corpos também manifestava-se nos movimentos graciosos com os quais dançavam e cantavam costumeiramente, ao celebrar as cerimônias, tanto as festivas e religiosas, como as de preparação para a guerra, ou as fúnebres.

Muitas festas envolviam toda a comunidade: tanto no preparo dos ornamentos, equipamentos, vestimentas, máscaras e instrumentos, que seriam usados, como das comidas e bebidas oferecidas aos convidados. Mas algumas eram específicas para os homens – as guerreiras, as fúnebres.

Tantas celebrações se deviam aos diversos vínculos estabelecidos entre a parentela e a íntima relação com a natureza. Cada flagelo, pescaria, colheita, mito, estação, cada nova posição ocupada por um menino, um rapaz, um homem ou uma menina, uma moça, ou mulher – transmutava-se em um ritual que distinguia uma nova fase da vida social.

Existiam danças típicas dos homens, como as de preparo ou retorno da guerra, as sagradas, executadas apenas pelos velhos pajés, e as das mulheres, dedicadas aos elementos da natureza, e, aquelas em que todos participavam, inclusive as crianças. Algumas dessas danças apenas exigiam a marcação do ritmo pelas pisadas dos participantes, outras, o acompanhamento de instrumentos, máscaras e cantorias.

As danças tupis até hoje permanecem na cultura indígena, como a dança do toré que apresenta variações de ritmos e toadas dependendo de cada povo. O maracá – chocalho indígena feito de uma cabaça seca, sem miolo, na qual se colocam pedras ou sementes – marca o tom das pisadas e os índios dançam, em geral, ao ar livre e em círculos. O ritual do toré é considerado o símbolo maior de resistência e união entre os índios do Nordeste brasileiro. Faz parte da cultura de vários povos como os Pataxó, Tupinambá, entre outros.

O cateretê, outra das danças tupis, pertence hoje ao folclore brasileiro, é executada em diversas regiões do país. É considerada uma das mais genuínas danças rurais brasileiras. É uma espécie de sapateado com bate-pé ao som de palmas e violas, sendo bastante conhecida nos estados de Minas Gerais, São Paulo e Goiás, onde de acordo com Lúcia Gaspar da Fundação Joaquim Nabuco é denominada catira.

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Danças

Valter Cam

panato/Wikim

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Embasadas em temas cosmológicos recorrentes, como o xamanismo, a guerra, morte, a construção da pessoa, as músicas tupis impregnam as danças de movimentos variados e harmoniosos transmitidos pela tradição utilizando uma gama variada de instrumentos de sopro: trompas, clarinetes, flautas e zunidor, e de percussão, bastão de ritmo, chocalho de tornozelo, casca de tartaruga. (BASTOS & PIEDADE, 1999, p.125)

ExploreTrecho de música tupi. https://www.youtube.com/watch?v=Znw5IUoWy5o

Os tupis desenvolveram grafismos e pinturas que manifestavam suas tradições de família e de grupo identificando claramente aqueles que as produziram, tanto no corpo, como na cestaria, na cerâmica.

Mesmo nos enfeites produzidos com os materiais coletados na natureza de raro encanto, viam um caráter utilitário ou sagrado em suas peças, usadas cotidianamente, nas guerras ou em rituais, expressavam um conceito de arte que diferia muito do europeu.

Cestos, cerâmicas, grafismos e pinturas corporais.

tetraktys/Wikim

edia Com

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Dentre as artes produzidas com peças coletadas na natureza, a mais peculiar das artes tupis, porém, foi a arte plumária, feita com arranjos e requinte extraordinários. O esmero com o seu preparo a elevaram a uma das mais apreciadas artes dos povos indígenas, em geral. Desejada por exploradores do período colonial e cobiçada por colecionadores contemporâneos sempre foi e ainda é, exaltada a superioridade no acabamento, perfeição de formas e beleza cromática dos seus trabalhos que a alteou à categoria de um presente digno de um rei!

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Unidade: Os Povos do Novo Mundo

O Sentido da Política Indígena Tupi

A política dos tupis estava concretizavada, em parte, no interior da unidade arquitetônica denominada taba, ou aldeia, constituída de várias casas, as ocas, construídas por uma mesma parentela, ou aliados, onde viviam de forma autônoma e solidária.

As decisões eram tomadas mediante a ação de um “conselho de chefes” integrado pelo chefe militar: o morubixaba, os pajés curandeiros, os chefes das ocas e os mais valentes guerreiros que discutiam as necessidades, as expectativas do grupo. Não existindo propriamente uma liderança individual permanente, só nas ocasiões em que uma aldeia declarava guerra à outra.

Embora as aldeias não dispusessem de hierarquia política, eram reconhecidos os destaques de alguns dos seus homens pela destreza e coragem apresentados nos combates e nas atividades mais exigentes exercidas por eles.

Você Sabia ?- os chefes não se distinguiam dos outros integrantes da aldeia a não ser pelas suas qualidades

e estratégias guerreiras? - os caciques executavam as tarefas que todos os homens da aldeia deveriam cumprir?- para serem alçados ao posto de caciques os homens adultos das aldeias passavam por provas

de resistência e habilidade?

A política indígena, porém, não deve ser entendida apenas como circunscrita ao interior das nações. Ocorreram alianças e lutas efetivadas mediante as posições que as nações tomavam em suas relações entre si, demonstrando os erros e acertos das alternativas escolhidas para a convivência entre elas.

Mais tarde, outras políticas sobrevieram a estas, a partir do contato com os brancos colonizadores, que foram gradativamente impondo tanto a sua presença cada vez mais invasiva nos territórios indígenas, como a urgência em estabelecer coligações dos índios entre si para o duro e constante enfrentamento contra os europeus.

Em diversos momentos e circunstâncias os indígenas uniram-se aos franceses, portugueses e holandeses, aos católicos e protestantes, colocando-se alinhados ora a um, ora a outro grupo, tentando encontrar novas possibilidades de sobrevivência das suas nações, em resposta às disputas travadas pelos brancos entre si pela ocupação do território, pela captura de escravos e pela hegemonia na catequização cristã.

Manuela Carneiro da Cunha atesta as estratégias da política de alianças indígenas, mencionando uma das várias que foram estabelecidas por eles:

“Ora, não há dúvida de que os índios foram atores políticos importantes de sua própria história e de que, nos interstícios da política indigenista se vislumbra algo do que foi a política indígena. Sabe-se que as potências metropolitanas perceberam desde cedo as potencialidades estratégicas das inimizades entre os grupos indígenas: no século XVI, os franceses e os portugueses em guerra aliaram-se respectivamente aos Tamoios e Tupiniquins (...)”. (CUNHA,1992. p.18).

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Os indígenas valeram-se das lutas entre os colonizadores e recorreram às mesmas estratégias que eles. Aprofundaram a disputa pré-existente entre os colonizadores pela hegemonia na dominação e, se utilizando das forças bélicas mais poderosas destes rivais, destruíram outras nações tradicionalmente inimigas .

Considerações finais

Os estudos históricos sobre os Índios Tupis merecem atenção no Brasil.

As estratégias utilizadas pelos colonizadores para estabelecer o domínio da terra que provocaram o extermínio desses povos são por todos conhecidas: perseguição, apresamento, propagação de doenças, “guerras justas”.

Esse domínio não se estabeleceu sem a resistência indígena, a Confederação dos Tamoios, as Guerras Guaraníticas, foram algumas das reações que expressaram o repúdio a essa intromissão desrespeitosa e ilegal.

A ilegalidade dessa invasão permanece até hoje. Inscrita em várias constituições, desde o Alvará Régio do Príncipe Regente Pedro de Bragança, de 1º de abril de 1680, os indígenas são reconhecidos como os “primários e naturais senhores” da terra.

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Unidade: Os Povos do Novo Mundo

Material Complementar

Para complementar os conhecimentos adquiridos nesta Unidade, leia as seguintes obras:

CUNHA, M.C. da. História dos Índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras/Secretaria Municipal de Cultura/Fapesp, 1992.

GRUPIONI, L.D.B. Índios no Brasil. Brasília: SMC/MEC,1994.

São obras fundamentais para enriquecer sua compreensão sobre os aspectos econômicos, sociais e culturais dos povos indígenas.

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Referências

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