história das pesquisas em lagoa santa: museus, crânios e … · e da flora e formulando teorias...

12
1 História das Pesquisas em Lagoa Santa: Museus, Crânios e Antropologia Biológica no Brasil 1 Pedro Da-Gloria – USP Walter Alves Neves - USP Mark Hubbe - The Ohio State University, EUA Resumo (1500 caracteres com espaço): A região de Lagoa Santa, Minas Gerais, foi alvo das primeiras intervenções paleontológicas e arqueológicas no Brasil. Peter W. Lund, um naturalista dinamarquês, realizou intervenções nas grutas da região entre 1835 e 1844, encontrando milhares de fósseis de animais e humanos nas cavernas locais. No começo do século XX, os achados de Lund motivaram pesquisadores do Museu Nacional do Rio de Janeiro e da Academia de Ciências de Minas Gerais a fazerem novas intervenções na região. De fato, na primeira metade do século XX centenas de esqueletos humanos antigos foram estudados dentro de uma perspectiva tipológica. Na década de 1950, Wesley Hurt, filiado à Universidade de Dakota do Sul, empreendeu a primeira missão arqueológica de cunho profissional em Lagoa Santa, enquanto na década de 1970, a Missão Francesa liderada por Annete Laming-Emperaire encontrou o esqueleto mais antigo das Américas. Na década de 1990, Walter Neves da Universidade São Paulo propôs um modelo de migração para as Américas que considera a chegada de dois componentes biológicos principais ao continente. Recentemente, novos trabalhos têm aberto a possibilidade de estudar o material humano depositado em museus sob uma nova perspectiva, incorporando a saúde e o modo de vida dessas populações. Dessa forma, uma renovação de interesses na antropologia biológica de Lagoa Santa começa a surgir, gerando um novo conjunto de questões antropológicas. Palavras chave: Arqueologia, Biologia, Antropologia Física 1 Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto de 2014, Natal/RN.

Upload: duongkhanh

Post on 16-Nov-2018

214 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: História das Pesquisas em Lagoa Santa: Museus, Crânios e … · e da flora e formulando teorias sobre a ocupação do continente. Humboldt também descreveu grupos indígenas nos

1

História das Pesquisas em Lagoa Santa: Museus, Crânios e Antropologia

Biológica no Brasil1

Pedro Da-Gloria – USP

Walter Alves Neves - USP

Mark Hubbe - The Ohio State University, EUA

Resumo (1500 caracteres com espaço):

A região de Lagoa Santa, Minas Gerais, foi alvo das primeiras intervenções

paleontológicas e arqueológicas no Brasil. Peter W. Lund, um naturalista dinamarquês,

realizou intervenções nas grutas da região entre 1835 e 1844, encontrando milhares de

fósseis de animais e humanos nas cavernas locais. No começo do século XX, os achados

de Lund motivaram pesquisadores do Museu Nacional do Rio de Janeiro e da Academia

de Ciências de Minas Gerais a fazerem novas intervenções na região. De fato, na primeira

metade do século XX centenas de esqueletos humanos antigos foram estudados dentro de

uma perspectiva tipológica. Na década de 1950, Wesley Hurt, filiado à Universidade de

Dakota do Sul, empreendeu a primeira missão arqueológica de cunho profissional em

Lagoa Santa, enquanto na década de 1970, a Missão Francesa liderada por Annete

Laming-Emperaire encontrou o esqueleto mais antigo das Américas. Na década de 1990,

Walter Neves da Universidade São Paulo propôs um modelo de migração para as

Américas que considera a chegada de dois componentes biológicos principais ao

continente. Recentemente, novos trabalhos têm aberto a possibilidade de estudar o

material humano depositado em museus sob uma nova perspectiva, incorporando a saúde

e o modo de vida dessas populações. Dessa forma, uma renovação de interesses na

antropologia biológica de Lagoa Santa começa a surgir, gerando um novo conjunto de

questões antropológicas.

Palavras chave: Arqueologia, Biologia, Antropologia Física

1 Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto de 2014, Natal/RN.

Page 2: História das Pesquisas em Lagoa Santa: Museus, Crânios e … · e da flora e formulando teorias sobre a ocupação do continente. Humboldt também descreveu grupos indígenas nos

2

Resumo expandido:

Este trabalho visa traçar a história das pesquisas na região de Lagoa Santa, Minas

Gerais (Figura 1). Essa região apresenta um longo histórico de pesquisas que remonta ao

século XIX, quando ela foi primeiro visitada por naturalistas europeus. Lagoa Santa é

uma região cárstica, cuja topografia inclui centenas de grutas e abrigos sob rocha em

afloramentos calcários. Além de proporcionar paisagens de interesse turístico, as

características geomorfológicas da região favorecem a preservação de material ósseo. A

química do solo das cavernas funciona como um agente fossilizador, retardando a

degradação da parte inorgânica dos ossos (PILÓ, 1998). Ao longo dos anos, a região

destacou-se pela enorme quantidade de ossos de fauna extinta e humanos preservados em

cavernas e abrigos sob rocha. Os esqueletos humanos, foco do presente trabalho, formam

a maior coleção osteológica da transição do Pleistoceno para o Holoceno2 nas Américas

e são ainda hoje cruciais para o estudo dos primeiros grupos humanos do continente. Além

de prover dados empíricos para estudos bioarqueológicos, as pesquisas em Lagoa Santa

formam parte importante da história das ciências arqueológicas e paleontológicas

brasileiras, incluindo a relação entre antropologia e arqueologia, intercâmbios

internacionais, constituição das coleções de museus e mudanças de abordagens teóricas.

Figura 1 – Localização da região arqueológica de Lagoa Santa no mapa do Brasil.

2 A transição do Pleistoceno para o Holoceno ocorre por volta de 11,500 anos atrás e está associada a uma mudança de um clima mais frio e seco para um clima mais úmido e quente.

Page 3: História das Pesquisas em Lagoa Santa: Museus, Crânios e … · e da flora e formulando teorias sobre a ocupação do continente. Humboldt também descreveu grupos indígenas nos

3

Nos séculos XVIII e XIX, as disciplinas científicas modernas ainda não estavam

consolidadas, havendo uma profusão de naturalistas, responsáveis por investigar assuntos

desde a biologia e a geologia até a história e a antropologia. Alexander Von Humboldt,

por exemplo, viajou pela Amazônia entre 1799 e 1803, registrando a diversidade da fauna

e da flora e formulando teorias sobre a ocupação do continente. Humboldt também

descreveu grupos indígenas nos Andes peruanos e equatorianos, e observou aspectos da

arquitetura arqueológica do Império Inca. As pesquisas em Lagoa Santa se iniciaram com

a passagem de um desses naturalistas, o dinamarquês Peter W. Lund, pela cidade de

Curvelo - MG em 1834 durante uma excursão pelo interior do Brasil junto com Ludwig

Riedel. Lund se encantou com os fósseis apresentados a ele na ocasião por outro

naturalista e compatriota, Peter Claussen. Ele percebeu imediatamente o potencial

científico daquele material, resolvendo se instalar permanentemente na cidade de Lagoa

Santa a partir de 1835 (HOLTEN e STERLL, 2011). Nos quase dez que se seguiram Lund

pesquisou intensamente as grutas de Lagoa Santa. Com a ajuda de seu assistente,

topógrafo e desenhista Peter Brandt, visitaram mais de 800 grutas na região (LUND,

1845). Lund exumou milhares de ossos de fauna das cavernas de Lagoa Santa, que foram

posteriormente estudados em detalhe por Herluf Winge, um dinamarquês, na obra E

Museu Lundi, publicada em três volumes entre 1888 e 1915 (e.g., WINGE, 1888, 1915).

Lund não se restringiu a estudos paleontológicos, escrevendo também sobre botânica,

geografia, zoologia, geologia de cavernas, etnografia e arqueologia.

No que diz respeito à arqueologia, Lund encontrou restos esqueletais humanos em

apenas seis grutas, porém foi na Gruta do Sumidouro que seus achados mais marcantes

aconteceram. Ele encontrou restos de mais de 30 indivíduos misturados com animais

extintos, tais como a capivara gigante (Hydrocaerrus sulcidens), o grande jaguar (Felis

protophanter), o lobo de caverna (Palaeocyon troglodytes) e o cavalo (Equus ferus;

LUND, 1845). Essa convivência entre megafauna extinta e humanos era algo impensável

na época, visto que o catastrofismo de Georges Cuvier, do qual Lund era um adepto,

preconizava que os humanos apareceram na Terra somente depois da última extinção dos

grandes animais. Lund não só questionou as teorias vigentes de sua época, como também

observou as semelhanças e diferenças entre animais extintos e atuais no Brasil, sendo sua

coleção mencionada mais tarde na obra seminal de Charles Darwin como uma “admirável

coleção de ossadas fósseis recolhidas nas cavernas do Brasil por Mr. Lund e Clausen”

(DARWIN, 1859:276). Os achados na Gruta do Sumidouro tiveram importante

Page 4: História das Pesquisas em Lagoa Santa: Museus, Crânios e … · e da flora e formulando teorias sobre a ocupação do continente. Humboldt também descreveu grupos indígenas nos

4

repercussão internacional durante o século XIX, uma vez que a maioria dos esqueletos

escavados ficaram depositados na Europa, sendo alvos de diversos estudos por europeus

(e.g., TEN KATE, 1885; HANSEN, 1888). No cenário nacional, os crânios achados na

região fomentaram discussões sobre as características físicas da raça de Lagoa Santa, em

contraposição aos crânios das populações litorâneas que constituíam o “Homem dos

Sambaquis” (LACERDA e PEIXOTO, 1876). Uma questão marcante derivada dos

estudos de Lund foi a antiguidade da ocupação humana na região e consequentemente se

os humanos conviveram com a megafauna extinta. De fato, essa questão norteou muitas

das intervenções arqueológicas posteriores em Lagoa Santa.

Somente no começo do século XX novas intervenções arqueológicas foram

empreendidas em Lagoa Santa. Lanari (1909) escavou a Lapa do Caetano, achando pelo

menos três indivíduos depositados abaixo de uma placa estalagmítica. Essa posição

estratigráfica sugeriu a ele que os ossos teriam sido depositados durante o Pleistoceno, ou

seja, anteriormente ao período Holocênico, quando as placas estalagmíticas teriam sido

formadas pelo aumento de umidade.

Jorge Padberg-Drenkpol retomou as escavações em Lagoa Santa com apoio

institucional do Museu Nacional do Rio de Janeiro. Em 1926, Padberg-Drenkpol

encontrou ossos humanos nos sítios da Lapa do Caetano, Lapa Mortuária, Lapa da

Limeira, Lapa d´Agua e Lapa da Moreira. Padberg-Drenkpol coletou 13 caixas de ossadas

humanas e de animais incluindo cerca de 100 esqueletos humanos bastante fragmentados

(PADBERG-DRENKPOL, 1926). Apesar dessa enorme coleção osteológica, pouco se

sabe sobre o contexto arqueológico desse material. Não há desenhos, descrição

estratigráfica e nem mesmo registro de outros materiais arqueológicos encontrados nos

sítios. Posteriormente, Bastos de Ávila realizou uma intervenção arqueológica na Lapa

das Carrancas, exumando 12 esqueletos humanos (ÁVILA, 1937). Infelizmente, não há

também descrições detalhadas dessa intervenção arqueológica.

A passagem do século XIX para o XX foi um momento de mudanças políticas e

institucionais no Brasil, tais com a consolidação de grandes museus brasileiros no norte

(Museu Paraense Emílio Goeldi) e no sudeste (Museu Paulista e Museu Nacional) do

país. O Museu Nacional do Rio de Janeiro teve um papel central nas expedições em Lagoa

Santa. Nesse museu, a arqueologia, a antropologia e a etnologia estavam conectadas, e

membros do museu realizavam expedições em terras indígenas, empreendiam escavações

arqueológicas e participavam de estudos de saúde em escolas públicas do Rio de Janeiro.

Edgard Roquette-Pinto, por exemplo, realizou estudos dos tipos raciais brasileiros,

Page 5: História das Pesquisas em Lagoa Santa: Museus, Crânios e … · e da flora e formulando teorias sobre a ocupação do continente. Humboldt também descreveu grupos indígenas nos

5

buscando entender a base biológica da mestiçagem no Brasil. Embora dentro de uma

perspectiva racialista, Roquette-Pinto não acreditava na hierarquia entre as raças, nem na

degeneração biológica dos tipos mestiços (SANTOS, 2012; SOUZA, 2012). Nessa

perspectiva, ele promoveu estudos que visavam entender as condições de saúde e higiene

da população carioca, considerando este fator de suma importância para entender a

situação ruim da população brasileira. Nesse mesmo período, Bastos de Ávila se ocupava

de estudos sobre o padrão de crescimento de crianças, ao mesmo tempo que estudava as

populações pré-históricas de Lagoa Santa (GONÇALVES et al., 2012). A antropologia

nesse período era entendida como a história natural do Homem, estando no Museu

Nacional bastante atrelada à biologia comparada e à anatomia médica (KEULLER, 2012).

Dentro desse contexto de ideias, grupos de pesquisa do Museu Nacional e de Belo

Horizonte debatiam a origem e a morfologia dos habitantes de Lagoa Santa.

Entre 1930 e 1960, membros da Academia de Ciências de Minas Gerais (ACMG)

dedicaram-se à escavação de sítios arqueológicos em Lagoa Santa, liderados por Harold

Walter, Arnaldo Cathoud, Josaphat Penna e Aníbal Mattos. Suas intervenções

arqueológicas resultaram em um grande número de esqueletos humanos, que estão

atualmente depositados no Museu de História Natural e Jardim Botânico da Universidade

Federal de Minas Gerais. Harold Walter foi o grande expoente desse grupo no que diz

respeito a escavações arqueológicas. Ele descreveu suas intervenções nos sítios Abrigo

de Limeira, Abrigo de Mãe Rosa, Abrigo de Samambaia, Abrigo do Eucalipto, Abrigo do

Galinheiro, Abrigo do Sumidouro e Lagoa Funda (WALTER, 1958). Suas descrições

arqueológicas, no entanto, tinham pouco detalhamento espacial e estratigráfico. Além

disso, Walter usou conceitos como “homem primitivo” (p 12), “cultura inferior” (p 71) e

“vida fácil” (p 97), o que denota uma visão ingênua da sequência cultural da região. Essa

visão de pré-história remonta às correntes antropológicas evolucionistas do século XIX,

que hierarquizavam as sociedades pelo seu grau de complexidade e de civilização. Nesse

sentido, Walter acreditava que os habitantes de Lagoa Santa representavam populações

primitivas em relação à civilização ocidental. Apesar de descrições bastante superficiais

de suas escavações, sua obra de 1958 é o primeiro grande tratado de arqueologia de Lagoa

Santa. Walter buscou entender tanto o material encontrado como as implicações desse

acervo para o modo de vida dos habitantes da região.

Nesse mesmo período, houve um intenso debate entre a ACMG e o Museu

Nacional quanto à interpretação dos seus achados. O grupo de Minas Gerais defendia a

contemporaneidade entre a megafauna extinta e o Homem de Lagoa Santa, enquanto o

Page 6: História das Pesquisas em Lagoa Santa: Museus, Crânios e … · e da flora e formulando teorias sobre a ocupação do continente. Humboldt também descreveu grupos indígenas nos

6

grupo do Museu Nacional, liderado por Padberg-Drenkpol e Bastos de Ávila, defendia a

tese oposta (CATHOUD et al., 1939). Essa discussão foi centrada no crânio do “Homem

de Confins” escavado pela ACMG nos anos de 1933 a 1935. Esse crânio humano foi

encontrado junto com um crânio de cavalo extinto e um fêmur de mastodonte no interior

da caverna da Lapa Mortuária (WALTER et al., 1937). Tentativas de datação relativa

usando flúor (WALTER, 1958) e fosfato (HURT, 1960) não resolveram o debate,

enquanto datações radiocarbônicas e reanálises estratigráficas da caverna não obtiveram

resultados conclusivos (NEVES et al., 2008). Além disso, na primeira metade do século

XX houve um intenso debate sobre a afiliação racial dos crânios de Lagoa Santa, no qual

merecem destaque o livro “A Raça de Lagoa Santa” de Aníbal Mattos (1941) e o artigo

de Bastos de Ávila (1950) que classificou Lagoa Santa como uma raça Lácida3. Esses

debates foram centrados em conceitos tipológicos e racialistas, predominantes à época.

Os anos de 1955 e 1956 foram marcados pelas primeiras expedições arqueológicas

de carácter profissional em Lagoa Santa, lideradas por Wesley Hurt da Universidade de

Dakota do Sul. Ao invés de se preocupar com definições morfológicas e racialistas, Hurt

procurava entender as ocupações antigas na região. Ele estabeleceu uma parceria com o

Museu Nacional do Rio de Janeiro, incluindo também pesquisadores de outras

instituições, tais como o paranaense Oldemar Blasi. O projeto tinha como questão

principal a convivência entre a megafauna extinta e os humanos, remontando aos

primeiros estudos na região realizados por Peter Lund. Sua equipe escavou os abrigos do

maciço de Cerca Grande e da Lapa das Boleiras, encontrando 24 sepultamentos e grande

quantidade de material lítico (HURT e BLASI, 1969). Essa expedição gerou as primeiras

datas radiocarbônicas para Lagoa Santa: 9.028 ± 120 AP e 9.720 ± 128 AP, atestando a

antiguidade das ocupações na região (HURT, 1964). De fato, eles não encontraram

nenhum vestígio de megafauna extinta nos sítios arqueológicos escavados, concordando

com a tese defendida pelos pesquisadores do Museu Nacional na década de 1930 de que

a ocupação humana em Lagoa Santa não era contemporânea com a megafauna extinta.

Uma resposta mais sólida para esse debate só veio recentemente com datações de

megafauna do mesmo período da ocupação humana na região, ainda que não exista

evidência de interação entre humanos e megafauna nos sítios arqueológicos (NEVES e

PILÓ, 2003; A. HUBBE et al., 2013). Essa intervenção mostra também a importância do

3 A raça Lácida é úma terminologia criada por José Imbelloni caracterizada por crânios dolicocéfalos, platirrinos e hipsicefálicos, ou seja, crânios alongados, achatados dos lados e com aberturas nasais largas.

Page 7: História das Pesquisas em Lagoa Santa: Museus, Crânios e … · e da flora e formulando teorias sobre a ocupação do continente. Humboldt também descreveu grupos indígenas nos

7

intercâmbio internacional para as pesquisas nos museus nacionais. Hurt, por exemplo,

contribuiu para a constituição do Museu Paranaense e do Museu de Antropologia da

Universidade Federal de Santa Catarina.

A década de 1970 foi marcada pela chegada da Missão Francesa na região de

Lagoa Santa. Liderada por Annette Laming-Emperaire, a Missão focou seus esforços na

escavação do sítio Lapa Vermelha IV, utilizando-se de métodos de escavação refinados.

Neste sítio foram identificadas fogueiras, líticos e conchas trabalhadas, embora a

densidade de ocupação do sítio parece ter sido pequena. Por outro lado, as escavações

atingiram profundidade de mais de 10 metros, chegando a níveis pleistocênicos

(LAMING-EMPERAIRE, 1979). Surpreendentemente, no fundo do sítio foi encontrado

um esqueleto humano de uma mulher jovem, incluindo um crânio em ótimo estado de

preservação. Uma datação estratigráfica desse esqueleto apontou para cerca de 11,000

anos AP, caracterizando-o como o esqueleto mais antigo das Américas, e gerando mais

tarde grande repercussão internacional (NEVES et al., 1999). A Missão Francesa também

foi pioneira no estudo da arte rupestre dentro de um contexto cronológico, produzindo

datas do Holoceno Médio para pinturas encontradas na Lapa Vermelha IV. Esse trabalho

estimulou o início de um registro sistemático de pinturas e de gravuras rupestres na região

(PROUS, 1977; BAETA, 2011). Infelizmente, com a morte precoce de Laming-

Emperaire em 1977, as intervenções da Missão Francesa na região foram interrompidas.

Entre 1976 e 1979, uma equipe liderada pelo arqueólogo André Prous da

Universidade Federal de Minas Gerais escavou o sítio Grande Abrigo de Santana do

Riacho a cerca de 60 km ao norte do carste de Lagoa Santa. Embora localizado fora do

carste, esse sítio se insere dentro do contexto cultural e estilístico de Lagoa Santa. Nesta

escavação foi encontrado um rico material arqueológico datado da transição do

Pleistoceno para o Holoceno, além de painéis de pinturas rupestres nas paredes do abrigo.

Ainda mais interessante, 40 indivíduos foram exumados em um estrato arqueológico

datado do Holoceno Inicial4 (NEVES et al., 2003; CORNERO, 2005). As análises

arqueológicas desse sítio foram publicadas em Prous e Malta (1991) e Prous (1992-1993),

consistindo no sítio mais detalhadamente escavado e melhor analisado da região até

aquele momento.

As décadas seguintes de pesquisas em Lagoa Santa foram marcadas pelos estudos

craniométricos comparativos liderados por Walter Neves da Universidade de São Paulo.

4 O Holoceno é dividido nos períodos Inicial, Médio e Final. O Holoceno Inicial compreende o período aproximado entre 11,500 e 7,000 anos atrás

Page 8: História das Pesquisas em Lagoa Santa: Museus, Crânios e … · e da flora e formulando teorias sobre a ocupação do continente. Humboldt também descreveu grupos indígenas nos

8

Motivado por suas análises da morfologia craniana dos habitantes de Lagoa Santa, ele

propôs um modelo de migração para as Américas que considera a chegada de dois

componentes biológicos principais ao continente, encontrando uma diferença de

morfologia craniana entre os primeiros americanos e os indígenas modernos (NEVES e

HUBBE, 2005; M. HUBBE et al., 2010). Em 2000, iniciou-se um grande projeto liderado

por Neves na região, visando responder perguntas longamente debatidas em Lagoa Santa.

Entre essas perguntas, pode-se destacar: 1) a contextualização cronológica das ocupações

humanas de Lagoa Santa; 2) o estudo comparativo da morfologia craniana dos primeiros

habitantes da região em um contexto mundial e suas implicações para os modelos de

migração para as Américas; e 3) sondagem e escavação de novos sítios arqueológicos que

permitissem estudar de maneira mais sistemática o modo de vida dessa população. Entre

os anos de 2000 até 2009, o projeto gerou e continua gerando uma quantidade enorme de

dados arqueológicos que estão contribuindo para o entendimento da vida dessas primeiras

populações americanas.

As pesquisas em Lagoa Santa ao longo do século XX denotam um distanciamento

da antropologia praticada nas universidades brasileiras. Enquanto no começo do século

XX a antropologia era bastante ligada à biologia e à arqueologia, como ocorria no Museu

Nacional, já no decorrer do século XX a antropologia brasileira inseriu-se nos recém-

criados institutos de ciências humanas. As atividades arqueológicas ficaram restritas aos

museus, com algumas inserções pontuais nos departamentos de história (BARRETO,

1999). O departamento de antropologia da Universidade de São Paulo (USP), por

exemplo, se consolidou na faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, enquanto

a arqueologia tem sido realizada no Museu de Arqueologia e Etnologia. Na Universidade

Federal de Minas Gerais (UFMG), André Prous fundou o setor de Arqueologia na década

de 1970, conectado ao Museu de História Natural e Jardim Botânico da UFMG. A

antropologia biológica passou a existir em institutos de biologia, vinculados a

departamentos de genética, como é o caso do Laboratório de Estudos Evolutivos

Humanos da USP, fundado em 1994 por Walter Neves. Essa trajetória mostra uma

fragmentação do campo da antropologia, criando redutos de saber na antropologia

cultural, biológica e arqueologia com pouco diálogo entre si. De fato, essa ausência de

diálogo deveu-se muito à trajetória da antropologia brasileira de se distanciar de ideias

relacionadas à antropometria e ao determinismo biológico, que eram presentes na

antropologia biológica do começo do século XX. Todavia, os estudos de antropologia

biológica se transformaram ao longo do século XX, incorporando novos marcos teóricos

Page 9: História das Pesquisas em Lagoa Santa: Museus, Crânios e … · e da flora e formulando teorias sobre a ocupação do continente. Humboldt também descreveu grupos indígenas nos

9

e metodológicos, bem como questões relacionadas diretamente com a origem da espécie

humana e com a origem da variação biológica que se observa no planeta atualmente.

As pesquisas realizadas nos últimos 30 anos com esqueletos humanos em Lagoa

Santa têm tido uma ênfase em medição de crânios, gerando resultados importantes para a

compreensão da entrada do ser humano nas Américas. De fato, esses estudos

craniométricos já incorporaram inovações teóricas da nova antropologia biológica, pois

não estão mais preocupados com a definição de raças e tipologias, mas sim com o estudo

de histórias populacionais. Esses estudos no Brasil, no entanto, exploraram uma fração

pequena do potencial do material esqueletal depositado nos museus brasileiros. A análise

de outros elementos do esqueleto além do crânio abre a possibilidade de entendermos

aspectos da saúde e do modo de vida desses antigos habitantes do continente. Ainda mais,

os dados arqueológicos gerados nos últimos anos em Lagoa Santa podem ser usados em

conjunto com os dados osteológicos para reconstruir o modo de vida de populações do

passado. Alguns trabalhos anteriores já abordaram questões relacionadas à saúde e ao

estilo de vida usando material de Santana do Riacho (SOUZA, 1992-1993; NEVES e

CORNERO, 1997; CORNERO, 2005) e da Gruta do Sumidouro (NEVES e KIPNIS,

2004). Porém, só recentemente um trabalho sistemático abordou toda a coleção Lagoa

Santa dentro da perspectiva de saúde. O trabalho de Da-Gloria (2012) abordou cinco

aspectos da saúde e do estilo de vida dos primeiros habitantes da região: subsistência,

atividade física, infecções, estresse não específico durante o crescimento e violência. O

autor comparou os esqueletos de Lagoa Santa com um banco de dados comparativo de

6.733 esqueletos humanos oriundos de populações caçadoras-coletoras e agricultoras

viventes no continente americano antes do ano 1500 a fim de reconstruir o

comportamento desses primeiros habitantes de Lagoa Santa.

Essa nova perspectiva de análise do material de Lagoa Santa depositado nos

museus brasileiros tem o potencial de abrir novos diálogos com a antropologia. O

entendimento da saúde de populações pré-históricas incorpora novas abordagens teóricas

na antropologia biológica, usando conceitos como o de biocultura, que se refere a

processos de interação entre o corpo e o ambiente natural e cultural. Estudos de saúde

desses crânios permitem conectar história indígena recente e pré-história brasileira,

estabelecendo novas conexões entre antropologia e arqueologia. Dessa forma,

acreditamos que o diálogo entre antropologia, arqueologia e biologia está sendo renovado

em Lagoa Santa, contribuindo para o surgimento de novas questões de relevância

antropológica.

Page 10: História das Pesquisas em Lagoa Santa: Museus, Crânios e … · e da flora e formulando teorias sobre a ocupação do continente. Humboldt também descreveu grupos indígenas nos

10

Referências Bibliográficas

ÁVILA, J. B. Excursão às grutas e cavernas “Carrancas”, Nova Granja, M.G – 1937. Relatório,

Museu Nacional do Rio de Janeiro, 1937.

ÁVILA, J. B. Anthropometry of the indians of Brazil. In: STEWARD, J. H. (Org.). Handbook of South

American Indians. Washington, DC: Smithsonian Institution, v. 6, 1950, p. 71-84.

BAETA, A. Os Grafismos Rupestres e suas Unidades Estilísticas no Carste de Lagoa Santa e Serra

do Cipó, MG. Dissertação de Doutorado, Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 2011.

BARRETO, C. A construção de um passado pré-colonial: Uma breve história da arqueologia no

Brasil. Revista USP, São Paulo, n. 44, p. 32-51, 1999.

CATHOUD, A.; MATTOS, A.; WALTER, H. V. A propósito do homem fóssil de Confins. Belo

Horizonte: Biblioteca Mineira de Cultura, v. 55, p. 1-49, 1939.

CORNERO SE. Biologia esqueletal de los primeros americanos: un caso de estudio en Santana do

Riacho I, Brasil Central. Dissertação de Doutorado, Universidad Nacional de La Plata, Argentina,

2005.

DA-GLORIA, P. Health and lifestyle in the Paleoamericans: early Holocene biocultural adaptation

at Lagoa Santa, central Brazil. Ph.D., The Ohio State University, EUA, 2012.

DARWIN, C. A origem das espécies. Editora Ediouro, 1859 [1987].

GONÇALVES, A. S.; MAIO, M. C.; SANTOS, R. V. Entre o laboratório de antropometria e a escola:

a antropologia física de José Bastos de Ávila nas décadas de 1920 e 1930. Boletim do Museu

Paraense Emílio Goeldi, Ciências Humanas, v. 7, n. 3, p. 671-686, 2012.

HANSEN, S. Lagoa Santa Racen. Samling as Afhandlinger e Museo Lundii, v. 1, p. 1-37, 1888.

HOLTEN, B.; STERLL, M. Peter Lund e as grutas com ossos em Lagoa Santa. Belo Horizonte:

Editora UFMG, 2011.

HUBBE, A; HUBBE, M; NEVES, W.A. The Brazilian megamastofauna of the Pleistocene/Holocene

transition and its relationship with the early human settlement of the continent. Earth-Science

Reviews, v. 118, p. 1–10, 2013.

HUBBE, M.; NEVES, W. A.; HARVATI, K. Testing evolutionary and dispersion scenarios for the

settlement of the New World. PLoS ONE, v. 5, n. 6, p. e11105, 2010.

HURT, W. R. The cultural complexes from the Lagoa Santa region, Brazil. American Antropologist,

v. 62, n. 4, p. 569-585, 1960.

HURT, W. R. Recent radiocarbon dates for Central Brazil and Southern Brazil. American Antiquity,

v. 30, n. 1, p. 25-33, 1964.

HURT, W. R.; BLASI, O. O projeto arqueológico de “Lagoa Santa”, Minas Gerais, Brasil. Arquivos

do Museu Paranaense, Curitiba, v. 4, p. 1-63, 1969.

KEULLER, A. T. A. M. Entre antropologia e medicina: uma análise dos estudos antropológicos de

Álvaro Fóes da Fonseca nas décadas de 1920 e 1930. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi,

Ciências Humanas, v. 7, n. 3, p. 687-704, 2012.

Page 11: História das Pesquisas em Lagoa Santa: Museus, Crânios e … · e da flora e formulando teorias sobre a ocupação do continente. Humboldt também descreveu grupos indígenas nos

11

LACERDA, F.; PEIXOTO, R. Contribuições para o estudo antropológico das raças indígenas do

Brazil. Archivos do Museu Nacional do Rio de Janeiro, v. 1, p. 47-79, 1876.

LAMING-EMPERAIRE, A. Missions archéologiques franco-brésiliennes de Lagoa Santa, Minas

Gerais, Brésil: Le Grand abri de Lagoa Vermelha (P.L.). Revista de Pré-História, São Paulo, v. 1, n.

1, p. 53-89, 1979.

LANARI, C. U. Ossadas humanas fósseis encontradas numa caverna calcárea das vizinhanças do

Mocambo. Annaes da Escola de Minas de Ouro Preto, v. 11, p. 15-35, 1909.

LUND, P. W. Notícia sobre ossadas humanas fósseis achadas numa caverna no Brasil. In: COUTO,

C. P. (Org.). Memórias sobre a paleontologia brasileira. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do

Livro, 1845 [1950], p. 465-484.

MATTOS, A. A raça de Lagôa Santa: Velhos e novos estudos sobre o homem fóssil americano.

São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1941.

NEVES, W. A.; ARAUJO, A. G. M.; CECCANTINI, G. C. T.; BUENO, L. M. R.; OLIVEIRA, P. E., KIPNIS,

R., BERNARDO, D. V. Origens e microevolução do Homem na América: uma abordagem

paleoantropológica III. Relatório científico, FAPESP, 2008.

NEVES, W. A.; CORNERO, S. What did South American paleoindians eat? Current Research in the

Pleistocene, v. 14, p. 93-96, 1997.

NEVES, W.; HUBBE, M. Cranial morphology of early Americans from Lagoa Santa, Brazil:

Implications for the settlement of the New World. Proceedings of the National Academy of

Science of USA, v. 102, p. 18309-18314, 2005.

NEVES, W. A.; KIPNIS, R. Further evidence of a highly cariogenic diet among late Paleoindians of

Central Brazil. Current Research of Pleistocene v. 21, p. 81–83, 2004.

NEVES, W. A.; PILÓ, L. B. Solving Lund’s dilemma: New AMS dates confirm that humans and

megafauna coexisted at Lagoa Santa. Current Research in the Pleistocene, v. 20, p. 57-60, 2003.

NEVES, W. A.; POWELL, J. F.; OZOLINS, E. G; BLUM, M. Lapa Vermelha IV Hominid 1:

Morphological affinities of the earliest known American. Genetics and Molecular Biology, v. 22,

n. 4, p. 461-469, 1999.

NEVES, W. A.; PROUS, A.; GONZÁLEZ-JOSÉ, R.; KIPNIS, R.; POWELL, J. Early human skeletal

remains from Santana do Riacho, Brazil: implications for the settlement of the New World.

Journal of Human Evolution, v. 45, p. 19-42, 2003.

PADBERG-DRENKPOL, J. H. Relatório de duas excursões à região calcárea de Lagoa Santa em

1926. Relatório, Museu Nacional do Rio de Janeiro, 1926.

PILÓ, L. B. Morfologia cárstica e materiais constituintes: Dinâmica e evolução da depressão

poligonal Macacos-Baú – Carste de Lagoa Santa, MG. Dissertação de Doutorado, Universidade

de São Paulo, 1998.

PROUS, A. 1977. Missão de estudo de arte rupestre de Lagoa Santa. Arquivos do Museu de

História Natural da UFMG, v. 2, p. 51-65.

PROUS, A. (Org.). Santana do Riacho - Tomo II. Arquivos do Museu de História Natural da

Universidade Federal de Minas Gerais, v. 13/14, 1992-1993.

Page 12: História das Pesquisas em Lagoa Santa: Museus, Crânios e … · e da flora e formulando teorias sobre a ocupação do continente. Humboldt também descreveu grupos indígenas nos

12

PROUS, A; MALTA, I. M. (Orgs.). Santana do Riacho - Tomo I. Arquivos do Museu de História Natural da Universidade Federal de Minas Gerais, v. 12, 1991.

SANTOS, R. V. Guardian angel on a nation’s path: Contexts and trajectories of physical

anthropology in Brazil in the late nineteenth and early twentieth centuries. Current

Anthropology, v. 53, n. Suppl. 5, S17-S32, 2012.

SOUZA, S. M. Paleopatologia humana de Santana do Riacho. Arquivos do Museu de História

Natural da Universidade Federal de Minas Gerais, v. 13/14, p. 129-160, 1992-1993.

SOUZA, V. S. Retratos da nação: os ‘tipos antropológicos’ do Brasil nos estudos de Edgard

Roquette-Pinto, 1910-1920. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi, Ciências Humanas, v. 7,

n. 3, p. 645-669, 2012.

TEN KATE, H. Sur les Crânes de Lagoa-Santa. Bulletins de la Société d’Anthropologie de Paris, v.

8, p. 240-244, 1885.

WALTER, H. V.; CATHOUD, A.; MATTOS, A. The Confins Man: A contribuition to the study of early

Man in South America. In: MACCURDY, G. G. (Org.). Early Man. Philadelphia: J. B. Lippincott,

1937, p. 341-348.

WALTER, H. V. Arqueologia da região de Lagoa Santa, Minas Gerais: índios pré-colombianos dos

abrigos-rochedos. Rio de Janeiro: Sedogra, 1958.

WINGE, H. Jorfundne og nulevende Gnawere (Rodentia) fra Lagoa Santa, Minas Gerais,

Brasiliens: med udsigt over gnavares indbyrdes slaegtskab. E Museo Lundii, v.1, n.3, p. 1-200,

1888.

WINGE, H. Jorfundne og nulevende Gumlere (Edentata) fra Lagoa Santa, Minas Gerais, Brasilien:

med udsigt over rovdyrenes indbyrdes slaegtskab. E Museo Lundii, v.3, n.2, p. 1-321, 1915.