história da educação - rhe - n. 27

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ASSOCIAÇÃO SUL-RIO-GRANDENSE DE PESQUISADORES EM HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO NÚMERO 27 Jan/Abr 2009 Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/aspheQuadrimestral História da Educação Pelotas v. 13 n. 27 p. 1-328 Jan/Abr 2009

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Volume completo do n. 27 da revista História da Educação - RHE.

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Page 1: História da Educação - RHE - n. 27

ASSOCIAÇÃO SUL-RIO-GRANDENSE DE PESQUISADORES EM HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO

HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO

NÚMERO 27 Jan/Abr 2009

Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/aspheQuadrimestral História da Educação Pelotas v. 13 n. 27 p. 1-328 Jan/Abr 2009

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HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO ASPHE

Presidente: Maria Stephanou Vice-Presidente: Beatriz Daudt Fischer

Secretário: Claudemir de Quadros

Conselho Editorial Nacional Dra. Carlota Reis Boto (USP) Dra. Denice Cattani (USP) Dr. Dermeval Saviani (UNICAMP) Dr. Elomar Antonio Callegaro Tambara (UFPel) Dra. Flávia Obino Werle (Unisinos) Dr. Jorge Carvalho do Nascimento (UFS) Dr. Jorge Luiz da Cunha (UFSM) Dr. José Gonçalves Gondra (UERJ) Dr. Luciano Mendes de Faria Filho (UFMG) Dr. Lúcio Kreutz (UCS) Dr. Marcus Levy Albino Bencosta (UFPr) Dra. Maria Helena Bastos (PUCRS) Dra. Maria Juraci Maia Cavalcanti (UFC) Dra. Maria Teresa Santos Cunha (UDESC) Dra. Marta Maria de Araújo (UFRGN)

Conselho Editorial Internacional Dr. Alain Choppin (INRP, França) Dr. Antonio Castillo Gómez (Univer. de Alcalá – Espanha) Dr. Luís Miguel Carvalho (Univer. Técnica de Lisboa) Dr. Rogério Fernandes (Univer. de Lisboa) Dr. Antonio Viñao Frago (Univer. de Murcia – Espanha)

Editores Prof. Dr. Elomar Antonio Callegaro Tambara Profa. Dra. Maria Helena Câmara Bastos

Consultores Ad-hoc Rita Grecco (Furg) Giana Lange do Amaral (UFPel) Claudemir de Quadros (Unifra) Berenice Corsetti (Unisinos)

Editoração eletrônica e capa Flávia Guidotti [email protected]

Imagem da capa FARINA, Frederico. Oasi Benedettine in Ciociaria. 3. ed. Itália: Edizioni Torchio de' Ricci, 1999. p. 37. La biblioteca.

História da Educação Número avulso: R$ 15,00 Single Number: U$ 10,00 (postage included). História da Educação / ASPHE (Associação Sul-Rio-Grandense de Pesquisadores em História da Educação) FaE/UFPel. n. 27 (Jan/Abr 2009) - Pelotas: ASPHE - Quadrimestral. ISSN 1414-3518 v. 1 n. 1 Abril, 1997 1. História da Educação - periódico I. ASPHE/FaE/UFPel CDD: 370-5

Indexação: CLASE (Citas Latinoamericas em Ciências Sociales y Humanidades) Bibliografia brasileira de Educação – BBE.CIBEC/INEP/MEC EDUBASE (FE/UNICAMP)

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO ...............................................................................5

O MANUAL ESCOLAR: UMA FALSA EVIDÊNCIA HISTÓRICA THE SCHOOL TEXTBOOK: A FALSELY OBVIOUS HISTORIC FACT

Alain Choppin; Tradução: Maria Helena C. Bastos...................................9

LAS UNIVERSIDADES LIBRES Y POPULARES EN PORTUGAL Y EL PROBLEMA DE LA CULTURA POPULAR THE INDEPENDENT AND POPULAR UNIVERSITIES IN PORTUGAL AND THE PROBLEM OF POPULAR CULTURE

Rogério Fernandes ................................................................................77

O LUNAR DE SEPÉ E A DERRADEIRA MIGRAÇÃO: A EDUCAÇÃO JESUÍTICA ENTRE AS COROAS DE ESPANHA E PORTUGAL "O LUNAR DE SEPÉ" AND THE ULTIMATE MIGRATION: THE JESUITIC EDUCATION BETWEEN THE SPANISH AND PORTUGUESE CROWNS

Dermeval Saviani ................................................................................115

DUAS PRÁTICAS PEDAGÓGICAS NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES BRASILEIROS NA DÉCADA DE 1930: LIVROS E CADERNOS TWO PEDAGOGICAL PRACTICIES IN THE BRAZILIAN TEACHINHG TRAINING COURSES IN THE 1930’S: TEXTBOOKS AND NOTEBOOKS

Eurize Caldas Pessanha; Carla Busato Zandavalli Maluf de Araujo ........139

GESTÃO ELEMENTOS DE UMA REALIDADE VIVENCIADA MANAGEMENT ELEMENTS OF A REAL EXPERIENCE

Maria Aparecida Muccilo; Newton César Balzan...................................167

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O CULTIVO DE VALORES EXEMPLARES: "GALERIA DOS PATRONOS DE ESCOLAS", DE ANTÔNIO D’ÁVILA (1980-1989) EXEMPLARY VALUES CULTIVATION: "GALERIA DOS PATRONOS DE ESCOLAS", BY ANTÔNIO D´ÁVILA (1980-1989)

Thabatha Aline Trevisan ..................................................................... 191

AS MEMÓRIAS E A HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO: APROXIMAÇOES TEÓRICO-METODOLÓGICAS THE MEMORIES AND THE HISTORY OF EDUCATION: THEORETICAL-METHODOLOGICAL APPROACHES

Dóris Bittencourt Almeida .................................................................. 211

UM ESTUDO SOBRE A LEITURA ANALYTICA (1909), DE THEODORO DE MORAES (1877 - 1956) A STUDY ABOUT A LEITURA ANALYTICA (1909), BY THEODORO DE MORAES (1877 - 1956)

Bárbara Cortella Pereira...................................................................... 245

Resenha

HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DA EDUCAÇÃO NO BRASIL

Vivian Batista da Silva........................................................................ 269

Documento

CIVISMO E EDUCAÇÃO NA PRIMEIRA REPÚBLICA - JOÃO SIMÕES LO-PES NETO

Elomar Tambara; Eduardo Arriada...................................................... 279

EDUCAÇÃO CIVICA

CONFERENCIA Realisada pelo Sr. João Simões Lopes Netto, notario, à 17 de julho Anais da Biblioteca Pública Pelotense, Pelotas, 1904 ................................................................................................. 293

ORIENTAÇÕES AOS COLABORADORES ................................. 327

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APRESENTAÇÃO

A revista História da Educação tem o orgulho de iniciar o ano de 2009 abrindo seu primeiro número com textos dos mais renomados pesquisadores em história da educação em nível mundial como são os professores Rogério Fernandes, Alain Choppin e Dermerval Saviani.

Com a missão de difundir e socializar investigações que tem como objeto a história da educação nossa revista tem se esforçado por fortalecer estratégias e mecanismos que reforcem esta tarefa. Neste sentido, temos reiterado a importância do conselho editorial em selecionar textos que efetivamente estejam dentro deste parâmetro e com a qualidade científica exigida por periódico de nível.

Abrimos a revista como o texto do professor Alain Choppin, reconhecido pesquisador da área de história da educação, nos brinda com um texto que aborda um dos temas de preferência de muitos pesquisadores brasileiros que é o livro escolar. Em seu trabalho "Políticas dos livros escolares no mundo: Perspectiva comparativa e histórica" Choppin analisa os diversos aspectos de um debate histórico que entusiama periodicamente a comunidade científica internacional. Para dar conta da natureza e da identidade do manual, o autor, que apóia sua reflexão sobra a análise da literatura científica mundial consagrada à história do livro e da edição escolar, adota quatro perspectivas complementares. Quais vocábulos empregamos (ou podemos empregar) para designar o manual escolar, e quais conclusões relativas à sua natureza, suas funções, seus usos podemos tirar desse inventário? Quais limites, quais fronteiras separam ou separaram o "território" dos manuais escolares e das categorias editoriais próximas. O manual é necessariamente um livro, e um livro impresso, ou pode se revestir de outras formas e em decorrência implicar em outros usos? São enfim evocados os

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problemas metodológicos colocados pelos recenseamentos das coleções de manuais, e mais particularmente as questões ligadas à categorização e à tipologia.

A seguir apresentamos o texto do professor da Universidade de Lisboa, Rogério Fernandes "As Universidades livres e populares em Portugal e o problema da cultura popular". O estudo objetiva caracterizar uma das universidades populares e livres que se criaram em Portugal, no final do século XIX e desenhar o trajeto cultural e político de cada uma delas, privilegiando as mais importantes. Com esse marco, busca-se lançar um olhar crítico sobre as principais Universidades do Norte e centro do país, localizadas no Porto, em Lisboa, Setúbal e Coimbra, intentando caracterizar-lhes a orientação política-ideológica, os objetivos pedagógicos e culturais visados, os meios que recorreram e a identidade política de seus promotores.

O professor Dermerval Saviani emérito pesquisador da área de historia da educação em seu artigo "O Lunar de Sepé e a derradeira migração:educação jesuítica entre as coroas de Espanha e Portugal" analisa uma questão que embora reiteradamente investigada tem merecido cada vez mais a atenção dos pesquisadores em história da educação que é a educação jesuítica. O objeto do trabalho é a grande migração determinada pelo Tratado de Madri, celebrado entre Espanha e Portugal em 1750. Seu objetivo é examinar o modelo educativo das reduções jesuíticas, cuja ação pedagógica gerou um "habitus" que opôs os povos das missões às coroas de Espanha e Portugal.

As professoras Eurize Caldas Pessanha e Carla Busato Zandavalli Maluf de Araújo com o trabalho Duas práticas pedagógicas na formação de professores brasileiros na década de 1930:livros e cadernos analisam a articulação entre duas práticas pedagógicas presentes nos cursos de formação de professores na década de 1930: a utilização de livros didáticos e a anotação dos "pontos" nos cadernos dos alunos das Escolas Normais da época. A análise confirmou o papel dos livros didáticos como suporte das práticas pedagógicas, mas indicou também que, embora as

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anotações nos cadernos tenham sido baseadas nos livros adotados, estes não eram seguidos religiosamente pois há omissões, acréscimos e interferências que tanto podem ser atribuídos a outros livros utilizados quanto aos próprios professores das disciplinas.

Os professores Maria Aparecida Muccilo e Newton César Balzan em seu trabalho "Gestão: elementos de uma realidade vivenciada" tem como objeto de estudo o conceito de gestão que vem sendo instituído pela Secretaria de Estado da Educação do Estado de São Paulo a partir de meados da década de 1990, através de uma leitura da constituição da sociedade capitalista visando compreender a forma de gerir o setor público, em específico da educação no Estado de São Paulo.

Com o artigo "O cultivo de valores exemplares: "galeria dos patronos de escolas", de Antonio d’Avila (1980-1989) a professora Thabatha Aline Trevisan contribui para a história da educação brasileira e para o campo da imprensa periódica pedagógica. Neste artigo, destacam-se a produção de biografias, uma contribuição do educador Antônio d´Ávila para o periódico Jornal dos Professores, publicação do Centro do Professorado Paulista (CPP).

A professora Dóris Bittencourt Almeida com o artigo "As memórias e a história da educação: aproximações teórico-metodológicas reflete sobre as contribuições da memória e da história oral para a história da educação. Tais reflexões foram fundamentais na construção de um estudo referente à formação docente rural, durante as décadas de 1950 e 1960. Assim, por meio da metodologia da história oral, procurou analisar o processo de memória de sujeitos discentes e docentes da Escola Normal Rural de Osório/RS, a partir dos discursos e dos conteúdos de verdade produzidos em entrevistas.

O texto "Um estudo sobre a leitura analytica (1909) de Theodoro de Moraes (1877-1956) elaborado por Bárbara Cortella Pereira contribui para a compreensão de um importante momento da história da alfabetização no Brasil, apresentam-se os conceitos

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básicos da proposta de ensino da leitura defendida por Theodoro de Moraes. Essa análise permitiu constatar que o livreto analisado se apresenta como uma das primeiras tematizações sobre o método analítico para o ensino inicial da leitura, defendido por educadores e administradores escolares paulistas e tornado oficial para as escolas primárias do estado de São Paulo, entre o final do século XIX e o início do século XX.

Por fim, na tradicional seção Documentos, apresentamos um texto pouco conhecido do escritor João Simões Lopes Neto que no final do século XIX e início do século XX desenvolveu no Sul do Brasil uma intensa atividade de divulgação do "civismo" a exemplo de Olavo Bilac, Manuel Bonfim, Coelho Neto,entre outros.

A comissão editorial

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O MANUAL ESCOLAR: UMA FALSA EVIDÊNCIA HISTÓRICA1

Alain Choppin Tradução: Maria Helena C. Bastos

Resumo Depois de trinta anos, a questão da definição do manual escolar é relevada de maneira recorrente pelos historiadores da educação. O objetivo do autor é analisar os diversos aspectos de um debate histórico que entusiama periodicamente a comunidade científica internacional. Para dar conta da natureza e da identidade do manual, o autor, que apoia sua reflexão sobra a análise da literatura científica mundial consagrada à história do livro e da edição escolar, adota quatro perspectivas complementares. Quais vocábulos empregamos (ou podemos empregar) para designar o manual escolar, e quais conclusões relativas à sua natureza, suas funções, seus usos podemos tirar desse inventário? Quais limites, quais fronteiras separam ou separaram o "território" dos manuais escolares e das categorias editoriais próximas. O manual é necessariamente um livro, e um livro impresso, ou pode se revestir de outras formas e em decorrência implicar em outros usos? São enfim evocados os problemas metodológicos colocados pelos recenseamentos das coleções de manuais, e mais particularmente as questões ligadas à categorização e à tipologia.

Palavras-chave: Manual escolar; História do livro; História da edição escolar.

THE SCHOOL TEXTBOOK: A FALSELY OBVIOUS HISTORIC FACT

Abstract For some thirty years, education historians have raised the recurring issue of the definition of the school textbook. The author’s aim is to take stock of the various aspects of a theoretical debate that periodically stimulates the international scientific community. In order to account for the nature and identity of the textbook, the author adopts four complementary perspectives, basing his reasoning

1 Artigo publicado com o título «Le manuel scolaire: une fausse évidence historique» na Revue Histoire de l'éducation. SHE/INRP, n.117, jan-mars 2008. p.7-56. Tradução e publicação autorizada pelo autor.

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on the analysis of world scientific literature devoted to the history of the books and publishing for schools. Wich terms are (or have been) used to name the school textbook and what conclusions concerning its nature, functions or uses can be draw from this inventory? What boundaries or borders separete (or have separated) the "territory" of school textbooks from neighbouring areas of publication? Is the textbook necessarily a book, and a printed book, or can it take other forms and consequently imply other uses? Finally, this census of textbook collections spotlights methodological problems, in particular questions related to categorization and typology.

Keywords: Textbooks; Book history; History of publishing.

POLÍTICAS DE LOS LIBROS ESCOLARES EN EL MUNDO: PERSPECTIVA COMPARATIVA E HISTÓRICA Resumen Después de más de dos siglos, el libro escolar es aún un elemento esencial de la construcción identitária y, en consecuencia, la edición escolar tomó una dimensión nacional. Todos los países colocaron en práctica procedimientos específicos, más o menos coercitivos, para asegurar el control de los libros de clase, que tratan de su concepción, producción, difusión, financiamiento y utilización. En un primer momento, el autor establece un inventario comparativo y una tipología de las principales disposiciones hoy en vigor, en diferentes países del mundo, para controlar las publicaciones destinadas a los alumnos y a los profesores; en un segundo momento, adopta una perspectiva diacrónica examinando, como un ejemplo, las importantes evoluciones que se procesaron, después del siglo XVIII, en La legislación y en la reglamentación relativa a los manuales escolares de Francia. Concluye sobre la imperiosa necesidad de llevar en cuenta los contextos legislativos y de reglamentaciones en todos los estudios consagrados a los manuales.

Palabras Clave: Manuales escolares; Política escolar; Historia del libro.

LE MANUEL SCOLAIRE: UNE FAUSSE ÉVIDENCE HISTORIQUE

Résumé Depuis une trentaine d’années, la question de la définition du manuel scolaire est soulevée de manière récurrente par les historiens de l’education. L’objectif de l’auteur est de faire le point sur les divers aspects d’un débat théorique qui anime périodiquement la communauté scientifique internationale. Pour rendre compte de la nature et de l’identité du manuel, l’auteur, qui fonde sa réflexion sur l’analyse de la littérature scientifique mondiale consacrée à l’histoire

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du livre et de l’édition scolaires, adopte quatre perspectives complémentaires. Quels vocables emploie-t-on (ou a-t-on employés) pour désigner le manuel scolaire, et quelles conclusions relativement à sa nature, ses fonctions ou ses usages peut-on tirer de cet inventaire? Quelles limites, quelles frontières séparent ou ont séparé le «territoire» des manuels scolaires et celui de catégories éditoriales voisines? Le manuel est-il nécessairement un livre, et un livre imprimé, ou peut-il revêtir d’autres formes et par suite impliquer d’autres usages? Sont enfin évoqués les problèmes méthodologiques mis en évidence par le recensement des collections de manuels, et tout particulièrement les questions liées à la catégorisation et à la typologie.

Mots-clés: Manuels scolaire; Histoire du livre; Histoire de l’édition scolaire.

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Definierbar ist nur das, was keine Geschichte hat2.

Os historiadores são a primeira comunidade científica a se interessar, nos anos 1960, pelos antigos livros escolares, mas foi preciso quase duas décadas antes que aparecesse, em reação à mediocridade das investigações levadas a efeito até então3, uma reflexão crítica sobre as problemáticas e os métodos da pesquisa histórica sobre os manuais escolares. Ao mesmo tempo, um interesse novo pelo patrimônio cultural que constitui a literatura escolar e a preocupação de acesso às coleções dispersas, mal conservadas e raramente inventoriadas, suscitam no mundo um certo número de iniciativas visando repertoriar, o que provocou uma questão admiravelmente sofismada até então: "O que é um manual escolar?".

Esta questão da natureza e da identidade do manual é suscitada recorrentemente desde então, notadamente pelos historiadores, visando atestar a continuidade das produções históricas que, depois de trinta anos, consagram freqüentemente um capítulo preliminar ou o tratam de maneira específica4. Nosso

2 «Não é definível aquilo que não tem história»: Friedrich Nietzsche, Zur Genealogie der Moral, Leipzig, Naumann, 1887, Zweite Abhandlung, 13. Todas as traduções do artigo foram efetuadas pelo autor. 3 Geoffrey Hugh Harper, «Textbooks: an under-used Source», History of Education Society Bulletin, 25, 1980, p. 31. 4 Podemos citar especialmente: Hilde Coeckelberghs, «Das Schulbuch als Quelle der Geschichtsforschung. Methodologische Überlegungen», Internationales Jahrbuch für Geschichts- und Geographieunterricht, XVIII, 1977-1978, pp. 7-29; Colin McGeorge, «The Use of School-Books as a Source for the History of Education, 1878-1914», New Zealand Journal of Educational Studies, 14, 2, 1979, pp. 138-151; Geoffrey Hugh Harper, «Textbooks: an under-used Source», art. cit., pp. 30-40.; Alain Choppin, «L'histoire des manuels scolaires: une approche globale», Histoire de l'éducation, n° 9, décembre 1980, pp. 1-25; Buenaventura Delgado, «Los libros de texto como fuente para la historia de la Educación», Historia de la Educación, n° 2, 1983, pp. 353-358; Christina Koulouri, «Scholika encheiridia kai historike ereuna», Mnemon, n° 11, 1987,

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pp. 219-224; David Hamilton, «What is a textbook?», Paradigm, n° 3, 1990, pp. 5-8; Alain Choppin, Les manuels scolaires: histoire et actualité, Paris, Hachette Éducation, 1992, partie I: «Définition, fonctions et statut du manuel», pp. 6-21; Egil Børre Johnsen, Textbooks in the Kaleidoscope: a critical survey of literature and research on educational texts, Oslo, Scandinavian University Press, 1993: «The Textbook Concept», pp. 24-26; Christopher Stray, «Paradigms lost: towards a historical sociology of the textbook», in Selander, Staffan (dir.), Textbooks and educational media: collected papers 1991-1995, Stockholm, IARTEM, 1997, pp. 57-73; Justino Pereira de Magalhães, «Um apontamento para a história do manual escolar entre a produção e a representação», in Rui Vieira de Castro, Angelina Rodrigues, José Luís Silva, Maria Lourdes Dionísio de Sousa (dir.), Manuais escolares: estatuto, funções, história. Actas do I Encontro internacional sobre manuais escolares, Braga, Universidade do Minho, 1999, pp. 279-302; María Victoria Alzate Piedrahita, Miguel Angel Gómez Mendoza, Fernando Romero Loaiza, Textos escolares y representaciones sociales de la familia. I. Definiciones, Dimensiones y Campos de investigación, Santafé de Bogotá, Universidad Tecnológica de Pereira, 1999, 103 p.; Ursula A. J. Becher, «Was ist ein Schulbuch?», in Handbuch Medien im Geschichtsunterricht, Schwalbach am Taunus, Wochenschau-Verlag, 1999, pp. 45-68; Rosa Lidia Teixeira Corrêa, «O livro escolar como fonte de pesquisa em História da Educação», Cadernos Cedes, n° 52, 2000, pp. 11-24; Agustín Escolano Benito, «Tipología de libros y géneros textuales en los manuales de la escuela tradicional», in Alejandro Tiana Ferrer (dir.), El libro escolar, reflejo de intenciones políticas e influencias pedagógicas, Madrid, Lerko, 2000, pp. 439-449; Antônio Augusto Gomes Batista, «Um objeto variável e instável: textos, impressos e livros didáticos», in Márcia Abreu (dir.), Leitura, história e história da leitura, Campinas/São Paulo, Asociação de leitura do Brasil/ Fapesp, 2000, pp. 529-575; Paolo Bianchini, «Una fonte per la storia dell'istruzione e dell'editoria in Italia: il libro scolastico», Contemporanea, III, 1, 2000, pp. 175-182; Martha Rodríguez, Palmira Dobaño Fernández (dir.), Los libros de texto como objeto de estudio: una aproximación desde la historia, Buenos Aires, La Colmena, 2001; Gabriela Ossenbach Sauter, Miguel Somoza, «Definiciones y clasificaciones», in Los manuales escolares como fuente para la historia de la educación en América Latina, Madrid, UNED, 2001, pp. 15-24; Tullio Ramírez, «El texto escolar como objeto de reflexión e investigación», Docencia Universitaria, 3, 1, 2002, pp. 101-124; Monique Lebrun (dir.), Le manuel scolaire, un outil à multiples facettes, Sainte-Foy, Presses de l'Université du Québec, 2006; Jaume Martínez Bonafé, «¿De qué hablamos cuando hablamos de los libros de texto?», in Primer Seminario internacional de textos escolares, Santiago de Chile, Ministerio de Educacíon, 2007, pp. 431-438.

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objetivo é tenatar definir coordenadas sobre os diversos aspectos de um debate teórico que anima periodicamente a comunidade científica internacional, e, mais particularmente, a dos historiadores. Esta reflexão se baseia sobre a análise da literatura científica mundial consagrada à história do livro e da edição escolar, em que efetuamos um inventário sistemático de quase cinquenta anos5.

Para abarcar as diversas dimensões implicadas nas mudanças mais complexas, nós nos colocaremos segundo quatro perspectivas diferentes, mas complementárias. Nos interessaremos então ao léxico: quais vogais empregamos (ou são empregadas) para designar o manual escolar, e quais conclusões relativas à sua natureza, funções ou usos podemos tirar desse inventário? O segundo ângulo de análise é próximo à delimitação do conceito, isto é, ao seu campo semântico: quais limites, quais fronteiras separam ou separaram o "território" dos manuais escolares e das categorias editoriais vizinhas? O terceiro é sobre os suportes do manual e suas modalidades de difusão e de utilização: ele é necessariamente um livro e um livro impresso, ou pode se revestir de outras formas e implicar outros usos? O quarto e último é sobre uma série de problemas metodológicos colocados em evidência pelo recenseamento das coleções de manuais, e, mais particularmente, sobre as questões ligadas à categorização e à tipologia.

Este exercício não tem a pretensão de dar respostas novas, nem a fortiori respostas definitivas à uma questão que continua muito aberta, como testemunha a apresentação de uma recente manifestação científica6; visa reunir um certo número de

5 Quase 5.000 notícias bibliográficas, correspondendo à produção de mais de quarenta países, foram assim coletadas. Elas são progressivamente colocadas em um banco de dados digital «Emmanuelle international», no endereço eletrônico: http://www.inrp.fr/emmainternational/web 6 Em outubro de 2007 ocorreu em Ypres, na Bélgica, um congresso organizado pela Internationale Gesellschaft für Historische und Systematische

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elementos que podem ajudar os pesquisadores à cercar um objeto de estudo que tem, sob uma aparência ilusória, uma particular complexidade.

1 A diversidade do léxico

É preciso sublinhar de imediato que o conceito7 de livro escolar é historicamente recente. As obras, as quais os pesquisadores concordam que têm um estatuto pouco ou muito escolar, só recentemente têm sido percebido pelos contemporâneos como fazendo parte de um conjunto coerente. Assim, a língua francesa não conhece, antes da Revolução, o termo genêrico que designa essa categoria de obras. A situação é comparável em outros países ocidentais: os livros escolares são há muito tempo apresentados ao seus contemporâneos sob uma multiplicidade de denominações8.

Portanto, existe uma série de termos, o mais freqüentemente retirado da minuta dos títulos, que remete à matéria em que a obra é conhecida. Alguns fazem referência a sua organização interna, especialmente quando se referem a um conjunto de textos (português antología; italiano florilegio; frânces recueil, jardin; etc.); outros designam sua função sintética (espanhol compendio; português compêndio; francês précis, abrégé, tableau; feroïen9 samandráttur - de saman, conjunto; italiano Schulbuchforschung e intitulado «Was macht(e) ein Schulbuch zu einem Schulbuch? Art und Identität eines Lernmittels näher betrachtet». 7 Ver Antoine Prost, Douze leçons sur l'histoire, Paris, Seuil, 1996, ch. 6: «Les concepts», pp. 125-143. 8 Ver Antonio Viñao Frago, «La catalogación de los manuales escolares y la historia de las disciplinas a través de sus denominaciones», in Alejandro Tiana Ferrer (dir.), El libro escolar, reflejo de intenciones políticas e influencias pedagógicas..., op. cit., pp. 451-469. 9 Língua falada pelos habitantes das Ilhas Faroé/Dinamarca. (Nota do Tradutor).

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ristretto; etc.) ou seu papel diretivo (espanhol guía; lituâneo vadovelis -de vadov, guia; alemão Hilfsbuch; francês mentor; etc.); outros ainda evocam o método de aprendizagem que trabalham (inglês method; francês cours; etc.), o mais comum é caracterizar positivamente no título das obras (fácil, rápido, completo, novo, etc.)10, a alternância de questões e de respostas (francês catéchisme; sueco katekes; espanhol catecísmo; italiano dialoghi; etc.), ou a exposição organizada, do simples ao complexo que é mais freqüente (francês rudiments; espanhol nociones; inglês elements; etc.).

Esta diversidade não é própria das línguas vernáculas: ela também está presente nos títulos de manuais redigidos em grego (encheiridion, epitomè,…) ou em latim (epitome, compendium, hortulus, manuductio, tirocinium, excerpta, selecta, rudimenta, janua, introductio,…), característica que destaca Pascale Hummel através do estudo de numerosos títulos de obras destinadas ao ensino da gramática grega, ao longo da história da tradição gramatical e filológica11.

Não é raro mais que façamos referência a uma obra consagrada ou a um autor renomado, ao qual é conferido um estatuto de gênero e modelo. Por exemplo, é o caso para Catão, um código de moral cristã e civil inspirado no Disticha Catonis, obra atribuída à Marcus Porcius Cato, conhecido Catão o censor, mas que a versão original foi verdadeiramente redigida no século III de nossa era12; o Catão é revestido, segundo o capricho do autor, de formas diversas, combinando por sua vez a doutrina 10 Anne-Marie Chartier, «Des abécédaires aux méthodes de lecture: genèse du manuel moderne avant les lois Ferry», in Jean-Yves Mollier (dir.), Histoires de lecture XIXe-XXe siècles, Bernay, Société d'histoire de la lecture, 2005, pp. 78-102 (Matériaux pour une histoire de la lecture et de ses institutions, 17). 11 Pascale Hummel, De lingua graeca. Histoire de l'histoire de la langue grecque, Frankfurt am Main, Peter Lang, 2006, pp. 228-235. 12 Lucien Febvre, Henri-Jean Martin, L'apparition du livre, Paris, Albin Michel, 1971, pp. 356-358 (L'évolution de l'humanité, 30).

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cristã e o silabário, ou reunindo em um mesmo o silabário, o catecismo e os preceitos de boa educação13. É também o caso para os Barêmes, antologia de cálculos resolvidos e tabelas numéricas que devem seu nome ao aritmético François Bertrand de Barrême (1640-1703), autor de um grande número de obras dessa natureza.

Por outro lado, é, por sinédoque14, uma marca distintiva, tais como a cruz impressa precedendo os alfabetos, a partir do século XVI, que dá o nome ao conjunto da produção: italiano Santacroce; inglês Crisscross - de Christ’s cross; francês Croiz-de-par-Dieu, ou ainda croisette (no Nordeste da França)15. Esse signo gráfico, que encontramos nas obras litúrgicas, convida o leitor a se benzer em um momento preciso de sua leitura, isto é, no presente caso, antes de começar; indica também que se entregar a esse exercício se reveste da mesma gravidade que a oração16.

A denominação pode então refletir as características materiais, como no caso da cartilha - cartilla, do horn-book, do battledore ou da palette. 13 Paula Demerson, «Tres instrumentos pedagógicos del siglo XVIII: la Cartilla, el Arte de escribir y el Catón», in CIREMIA, L'enseignement primaire en Espagne et en Amérique latine du XVIIIe siècle à nos jours, Tours, CIREMIA, 1986, p. 35; Antonio Viñao Frago, «Aprender a leer en el Antiguo Régimen: cartillas, silabarios y catones», in Agustin Escolano Benito (dir.), Historia ilustrada del libro escolar en España, Madrid, Fundación Germán Sánchez Ruipérez, 1997-1998, 2 vol., t. I, Del Antiguo Régimen a la Segunda República, pp. 149-191. 14 Sinédoque: é um tipo especial de metonímia, onde se troca a palavra que indica o todo de sum ser por outro que indica apenas auma parte dele (Dicionário Houaiss, 2001, p.2578) Nota do tradutor. 15 Ségolène Le Men, Les abécédaires français illustrés au XIXe siècle, Paris, Promodis, 1984. 16 Piero Lucchi, «La santacroce, il psalterio e il babuino. Libri per imparare a leggere nel primo della stampa», in Attilio Bartoli Langeli, Armando Petrucci (dir.), Alfabetismo e cultura scritta, Quaderni storici, XIII, 2, n° 38, 1978, pp. 593-630.

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A cartilla é o nome dado em espanhol (cartilha, em português) aos pequenos livretos que apresentam as letras do alfabeto e os primeiros rudimentos da aprendizagem da leitura, e se difundem muito na Europa, a partir do século XVI17. Ela consta de uma simples folha (carta) impressa que, dobrada duas ou três vêzes, forma um caderno in-4° ou in-8°, com oito ou dezesseis páginas. Essa palavra teve uma imensa popularização, na Península Ibérica e na América Latina, que, na língua espanhola familiar, as expressões cantar a uno la cartilla e no saber la cartilla (não saber a cartilha em português) significam respectivamente "fazer a lição para alguém" e "ser completamente ignorante".

O horn-book (ou hornbook), que tem às vezes outro nomes (italiano tavola; espanhol tableta; etc.), apareceu na Europa na Idade Média; não se pode falar propriamente de um livro, mas uma simples folha de papel sobre a qual estão reproduzidos o alfabeto, a oração do Pai Nosso, ou ainda os números de 1 à 10… Em inglês, o nome deriva dessa folha, montada sobre um pedaço de madeira ou de couro de formato reduzido e emoldurado com madeira ou metal, estando protegido por uma fina película de chifre (inglês horn). Muitas vezes está munido de um cabo, esse instrumento pode ser associado ao jogo de volantes (shuttlecock)18.

O battledore (ou battledoor) deriva do hornbook. Apesar do seu aspecto e do seu nome (battledore significa "raquete" em inglês), os battledores não foram jamais utilizados como jogos. Largamente difundidos na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos, até a metade do século XIX, se apresentam sob a forma de uma folha de cartolina dobrada em dois, algumas vezes em três, oferecendo assim uma grande superfície útil: o texto impresso está

17 Victor Infantes, «De la cartilla al libro», Revue hispanique, 97, 1, 1995, pp. 33-66; Fernando Castelo-Branco, «Cartilhas quinhentistas para ensinar a ler», Boletim Bibliográfico e Informativo de Centro de Investigação Pedagógica de Instituto Gulbenkian, 14, 1971, pp. 109-151. 18 Andrew White Tuer, History of the Horn-book, Londres, Leadenhall Press, 1896, 2 vol.

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colado sobre uma face enquanto a outra está, frequentemente, ornada de gravuras sobre madeira19.

O termo palette está presente na Suíça francofônica, na Savóia e numa parte da Borgonha, para designar um abecedário; esse termo já se encontra no século XV. Remete para um suporte sólido, comumente conhecido e pouco custoso, uma omeoplata do porco. Esse osso, que tem a forma de uma pequena raquete triangular, possui uma face plana e lisa sobre a qual é possível gravar ou colar um alfabeto manuscrito e uma extremidade, o acromio, que uma criança pode ter comodamente na mão. Mesmo recorrendo às plaquetas de madeira e o abecedário ser desde o século XVI um pequeno livro impresso, esta denominação se mantém até o início do século XIX20.

Hoje, ainda, os termos aos quais recorrem as diversas línguas para designar o conceito de livro escolar são múltiplos, e sua acepção não é nem precisa, nem estável21. Percorrendo a abundância bibliográfica científica consagrada no mundo do livro e da edição escolar, constata-se que são utilizadas conjuntamente hoje várias expressões que, na mairoia das vezes, é difícil, até impossível, de determinar o que as diferenciam. Tudo parece ser uma questão de contexto, de uso, até de estilo. Os franceses utilizam assim indiferentemente, entre outros termos, manuels

19 Sobre os hornbooks e os battledores, ver notadamente: Joyce Irene Whalley, Cobwebs to Catch Flies. Illustrated Books for the Nursery and Schoolroom, 1700-1900, Berkeley/Los Angeles, University of California Press, 1975, p. 36 sqq.; Charles H. Carpenter, History of American Schoolbooks, Philadelphia, University of Pennsylvania Press, s.d. [1963]. 20 Georges Panchaud, Les écoles vaudoises à la fin du régime bernois, Lausanne, F. Rouge, 1952, pp. 152-158. Ver também, do mesmo autor, «Les palettes et abécédaires d'autrefois», Folklore suisse, 1949, pp. 4-11. Agradecemos à Pierre Caspard por nos ter comunicado essas referências. 21 Antônio Augusto Gomes Batista, «Um objeto variável e instável: textos, impressos e livros didáticos», in Márcia Abreu (dir.), Leitura, história..., op. cit., 2000, pp. 529-575.

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scolaires, livres scolaires ou livres de classe22; os italianos recorrem especialmente à libri scolastici, libri per la scuola ou libri di testo; os espanhóis hesitam muitas vezes entre libros escolares, libros de texto ou textos escolares23, apesar que os lusófonos optem por livros didáticos, manuais escolares ou textos didáticos. Nos países anglo-saxões, textbook, schoolbook e por vezes school textbook parecem ser empregados indistintamente, o mesmo que Schulbuch e Lehrbuch nos países de língua germânica, schoolboek e leerboek nas regiões que falam holandês; na Suécia se utiliza skolbok e lärebok, skolebok e laerebok na Noruega, skolebog e laerebog na Dinamarca, ou ainda scholica enchreiridia, scholica biblia ou anagnostika biblia na Grécia; etc.

Essas oscilações terminológicas podem explicar as motivações retóricas, especialmente nas línguas romanas, que repugnam geralmente repetir os mesmo termos. Mas se examinarmos mais de perto, constatamos que essa profusão léxica reflete a complexidade do estatuto do livro escolar na sociedade.

Certas expressões remetem ao contexto institucional no qual a obra é utilizada ou à qual é destinada (francês livre d’école, livre de classe, livre classique, etc.24; inglês schoolbook; alemão Schulbuch; holandês schoolboek; dinamarquês skolebog; espanhol

22 Mesmo se elas são mais frequentemente empregadas umas pelas outras, essas expressões não são portanto equivalentes. Cf. Histoire de l'éducation, n° spécial Les manuels scolaires: histoire et actualité, op. cit., p. 14; ver igualmente María Victoria Alzate Piedrahita, Miguel Ángel Gómez Mendoza, Fernando Romero Loaiza, Textos escolares y representaciones sociales de la familia. I. Definiciones…, op. cit., pp. 27-28. 23 Cabe assinalar que certas expressões que designam os livros escolares tomaram uma conotação especialmente pejorativa, é, por exemplo, o caso, no último terço do século XIX, de libro de texto na Espanha e de manuel na França, que remete ao ensino tradicional, fundado sobre a memória; o mesmo para kyôkasho no Japão depois da Segunda Guerra Mundial, quando as obras escolares são denunciadas como responsáveis pela montagem do imperialismo nipônico. 24 Sobre a evolução léxica do adjetivo «clássico», ver Alain Choppin, Les manuels scolaires: histoire et actualité, op. cit, p. 11.

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libros escolares; italiano libri per la scuola, libri scolastichi; albanês libër skhollor; polonês ksiązki szkolne; turco okul kilavuzu; húngaro iskolai tankönyvek; slovaco školská učebnika; lituânio monyklinis vadovelis - de monyklina, escola; tamoul pachadaly putagama - de pachadaly, escola; lingala (Congo) buku ya kelasi; farsi (Irã) ketabe darsi – de ketabe, livro e darsi, escola; chinês xué xiào shu - de xué, instruir, xiào, escola e shu, livro; etc.); elas podem estar acompanhadas de indicações que precisam a natureza do público escolar ou o nível de ensino ao qual a obra se destina (francês manuels de troisième; espanhol libros de bacchilerato; norueguês laerebok för gymnasiet; italiano libri per la scuola elementare; etc.).

Outros, sem fazer referência a este contexto institucional, colocam destaque sobre a função didática, entendida aqui no sentido etimológico: o livro escolar é um livro que serve para ensinar (francês livre d’enseignement; alemão Lehrbuch; húngaro tankönyv - de tanítús, ensino e könyv, livro; norueguês laerebok; greco διδασκαλειον - de διδασκειν (didaskein), ensinar; português livro didático; basco liburu didaktikoen; árabe eddirasat kitab - de eddirasat, ensino) ou para estudar (russo - e, com algumas variantes, outras línguas eslavas - uchébnik - de uchéba, estudos; holandês leerboek25; letão mácíbu grámata - de mácíbu, estudo; espanhol manuales de estudio; hebreu sefer limoud - de sefer, livro e limoud, estudo; suaíli26 kitabu ya masomo - de masomo, estudo; vietnamita sách học - de sách, livro, e học, estudar).

A terminologia remete também seguidamente aos conteúdos de ensino, às vezes de maneira indiferenciada, como para os livros que trazem os conhecimentos enciclopédicos (finlandês oppikirja - de oppi, saberes, et kirja, livro; islandês kennslubók), também nos livros de leitura corrente (greco 25 Etimologicamente, leerboek remete ao ato de ensinar (cf. l'allemand Lehrbuch), mas o contexto cultural conduz esse vocábulo para designar um instrumento de aprendizagem. 26 Suaíli ou suaíle – idioma banto, uma das línguas oficiais do Quênia, Tanzânia e Uganda (Nota do tradutor).

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anagnosticon biblion ou ainda anagnosmata), às vezes fazem explicitamente referência à matéria que trata a obra (inglês grammar; inglês arithmetics; alemão Schulgeschichtsbuch; húngaro törtènelem könyv; espanhol lecciones de cosas; etc.) alguns até o reduzem se o contexto enunciativo não é ambíguo: um aluno falará hoje muito naturalmente de seu livro de geografia (ou de "geo"!), sem outra precisão. É esta referência genérica aos conteúdos que tem prevalecido no Extremo Oriente quando, no fim do século XIX, a influência ocidental é profundamente exercida sobre o sistema educativo nipônico: "livro escolar" se diz kyôkasho em japonês (e kyo kwa so em coreano), expressões que podemos traduzir literalmente por "livro das matérias a ensinar"27.

Por sua vez, o inverso, a natureza das aprendizagens é que dá o nome ao livro escolar. Descobrimos aqui a distinção tradicional, mas longe de ser rigorosa, que divide a literatura escolar em dois grandes conjuntos: de um lado, os livros que apresentam os conhecimentos, do outro, aqueles que visam à aquisição de mecanismos. É a opinião que exprime, antes de muitos outros, Fernando Sainz quando distingue os "livros de matérias" e os "livros de leitura"28. A segunda categoria compreende especialmente os métodos de leitura, alfabetos e abecedários (greco alphabètarè; alemão ABC-Buch; inglês alphabet book; húngaro abécéskönyv; italiano abbecedario; russo azbouka;

27 Em japonês, o conceito de manual escolar não existe antes da Restauração Meiji. As obras utilizadas até esse momento no contexto educativo, os ôraimono, não foram especificamente conhecidos pelos fins didáticos. É o decreto de 1879 que, sob o modelo ocidental, introduz a noção de matéria de ensino (seis matérias são então definidas) e, até 1945, há uma confusão entre programas e manuais, pois na tradição japonesa a aprendizagem se dá por esforço próprio e não através de livros didáticos). Sobre a história dos manuais japoneses, ver o admirável site de Christian Galan, no endereço eletrônico: http://w3.univ-tlse2.fr/japonais/ galan/indexgalan.htm 28 Fernando Sainz, «El libro en la enseñanza», Revista de Pedagogía, 88, 1929, pp. 214-219. Esta distinção, própia da educação elementar, é ainda frequentemente reprisada pelos pesquisadores.

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eslovaco šlabikár; etc.), silabários (inglês spellers; holandês spelboek; espanhol silabario; etc.), livros de leitura (polonês elementarz; lituâneo elementorius; húngaro olvasó könyv; sérvio fibla (derivado do alemão Fibel); ucraniano bukvar; inglês primers – assim designados porque constituem cronologicamente os primeiros livros -, e readers29; alemão Lesebuch; holandês leeseboek; espanhol libro de lectura; português livro de leitura; kirundi (Ruanda, Uganda,...) igitabo co gusoma - de gusoma, que significa ler, mas também beber e beijar; etc.).

Numerosas expressões levam igualmente em conta a forma material, seja de uma obra de formato pequeno que temos à mão ou que levamos na mão (francês manuel; espanhol manuales escolares; português manuais escolares; italiano manuali per la scuola; romeno manual şcolar; bretão levrdorn – de dorn, mão; húngaro kézikönyv – de kéz, mão e könyv, livro; greco encheiridion – de cheir, mão). Encontramos termos equivalentes nas línguas germânicas e eslavas, mas aparecem menos frequentemente associados ao contexto escolar (russo rukovódstvo - de ruka, mão -, palavra que significa por sua vez manual e administração, o que evoca também a função organizacional do manual; tcheca příručka - de pří, ao lado de, e ručka; polonês podręcznik - de pod, sob, e ręka; letão rokas gramata; inglês handbook; alemanha Handbuch; dinamarquês hånbog; holandês handboek; irlandês lámhleabhar – de lamh, mão; etc.). É também a forma adotada pelo esperanto manlibro.

Outras expressões correntemente utilizadas são aquelas que remetem ao texto. Não fazem somente alusão à forma de expressão tradicionalmente privilegiada para transmitir conhecimentos, a ilustração não tem muito tempo no Ocidente, salvo algumas notáveis exceções, mas tem um papel marginal na relação aluno-mestre, sobretudo quanto à autoridade que confere 29 Os primers são livros em que efetuam as aprendizagens iniciais; os readers, que são usados em segundo lugar, supõem um conhecimento prévio dos mecanismos básicos da leitura, pois apresentam textos longos.

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aquilo que é julgado digno de ser escrito (inglês text book; italiano libro di testo, testo scolastico; espanhol libro de texto, texto escolar; norueguês textbok; irlandês téacsleabhar; etc.). Certas expressões inglesas contemporâneas são, por sua vez, reveladoras da autoridade que é investido o manual: a textbook landing, a textbook dive, etc. significam, sem ambigüidade, uma aterrissagem modelo, um mergulho modelo, etc.30. O britânico Christopher Stray, um dos fundadores do Textbook Colloquium31, mostrou que os avatares gráficos da palavra textbook são reveladores da evolução que o conceito conheceu na Grã-Bretanha: assinala que a grafia text book se aplica na origem a um texto habitualmente redigido em grego ou em latim e utilizado para fins pedagógicos, um texto que tinha por objeto comentários e explicações fornecidas oralmente pelo professor; text-book (com a separação) aparece somente nos anos 1830, para ser suplantado, entre 1880 e 1920, pela grafia moderna textbook: "A diferença fundamental entre a palavra ‘manual’ (textbook) e sua predecessora, o ‘livro de textos’ (text book), reside no fato que a primeira é ao mesmo tempo o texto e o ensino"32. Na Espanha, as expressões textos e libros de texto se encontram somente a partir de 1836, nos textos dos regulamentos, para designar obras que podem servir de "texto" ao ensino33.

Qual a conclusão dessa rápida incursão de horizonte léxico?

30 Robert & Collins Super Senior, 1996, verbete «Textbook». 31 The Colloquium on Textbooks, Schools and Society, funda a Swansea (Reino Unido) em 1989, publica a revista Paradigm. 32 Christopher Stray, «Quia nominor leo: vers une sociologie historique du manuel», Histoire de l'éducation, n° spécial 58 sous la direction d'Alain Choppin, Manuels scolaires: États et sociétés, XIXe-XXe siècles, 1993, pp. 73-74. 33 Bernat Sureda García, Jordi Vallespir Soller, Elies Allies Pons, La producción de obras escolares en Baleares (1775-1975), Palma, Universitat de les Illes Balears, 1992, p. 11.

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Em última instância, o manual, sob suas diversas denominações, é progressivamente um objeto planetário: ele se impôs no mundo, pelo viés da evangelização e da colonização, adodato pela maior parte dos países de sistemas educativas e de métodos de ensino inspirados no modelo ocidental. O "manual" é, portanto, freqüentemente designado por termos que são a transcrição, a tradução ou a transposição das designações as mais comumentemente utlizadas nos países desenvolvidos.

Constatamos que, mesmo se certas denominações locais ou tradicionais permanecem muito tempo vivas, o léxico é progressivamente reduzido. A constituição na Europa dos sistemas educativos, que visam uma uniformização dos conteúdos e dos métodos, provoca uma autonomização da edição escolar, uma normalização de sua produção e, portanto, a emergência de uma nomenclatura específica.

Destacamos também que a diversidade do vocabulário empregado reflete a complexidade do manual: segundo as épocas e os ares culturais – mas também, e em menor grau, por uma época e por um país dado -, encontramos uma pluralidade de vocábulos que remetem tanto ao conteúdo intelectual, ao suporte material, a uma ou outra de suas múltiplas funções, etc.

O vocabulário utilizado parece, muitas vezes, traduzir as influências que são exercidas de um país a outro34, porque conforme os ares lingüísticos, não são as mesmas representações, ou as mesmas expectativas, que são privilegiadas. Os anglófonos empregam de preferência a palavra textbook, porque o manual é antes de tudo para eles uma referência; os germanófonos

34 Sobre as designações dos métodos de leitura e dos livros de leitura nos países bálticos e nos países eslavos, ver Wendelin Sroka, «Was macht die Fibel zur Fibel? Eine historisch-vergleichende Annäherung an die Identität von Lehrwerken für den Erstleseunterricht in Deutschland, Russland und den USA», in Actes du colloque «Was macht(e) ein Schulbuch zu einem Schulbuch?Art und Identität eines Lernmittels näher betrachtet», Ypres, 5-6 outubro de 2007 (no prelo).

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Schulbuch, porque privilegiam o aspecto institucional, ou ainda os japoneses kyôkasho porque, a seus olhos, o essencial residirá nos conteúdos?... Em suma, é certo falarmos de um mesmo objeto quando realizamos um estudo comparativo?

2 "On the borders of textbooks…"35

Os manuais escolares fazem parte, ao menos nos países desenvolvidos, do universo cotidiano das crianças e das famílias depois de muitas gerações. Podemos compreender que uma tal familharidade parece uma definição supérflua para os contemporâneos. Ao contrário, é surpreendente constatar que numerosos cientistas que trabalham no campo, no qual os pesquisadores alemães têm, no início dos anos 1970, reconhecido uma identidade e dado um nome Schulbuchforschung36, não julgam mais útil definir sempre preliminarmente seu objeto de pesquisa.

O gramático britânico Ian Michael escreveu em 1990: "Não é fácil de dizer se uma obra é ou não um livro escolar. Se importa pouco dar uma definição exata, no entanto, é necessário fornecer uma descrição aproximada, senão todas as obras remetem para essa categoria"37. Mas resta definir os critérios objetivos sobre 35 O título dessa seção está em inglês no original, o que é mantido na tradução. Significa: "Nos limites dos livros-textos" (Nota do Tradutor). 36 A pesquisa sobre os manuais escolares (Schulbuchforschung) não aparece como uma disciplina acadêmica: não são, portanto, os métodos que fundam sua unidade, são os objetos. Visa apreender o manual no seu contexto global e a recontextualizar seu "discurso". Ver, especialmente, Richard Olechowski (dir.), Schulbuchforschung, Frankfurt am Main/New York, Peter Lang, 1995 (Schule, Wissenschaft, Politik, 10); é também o nome (Internationale Schulbuchforschung) que tem, depois de 1979, a revista publicada pelo Georg-Eckert Institut de Brunswick. O espanhol Agustín Escolano Benito lançou, por outro lado, nos anos 1990, o neologismo "manualística". 37 «It is not easy to say when a work is a textbook. Exact definition does not matter, but description of some sort is necessary, or all books become relevant»: Ian Michael, «Aspects of Textbook Research», Paradigm, 2, March 1990, p. 5.

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os quais podemos basearnos para determinar ou não a característica "escolar" de uma obra.

Tomar o manual escolar como objeto de estudo supõe igualmente que façamos um trabalho prévio de circunscrição conceitual relativamente a outros tipos de produção literária. Isso implica que devemos definir para cada categoria critérios de inclusão e de exclusão em que a natureza não é necessariamente idêntica segundo o estatuto do observador. A perspectiva diacrônica, que leva em conta as evoluções estruturais e as flutuações semânticas, torna essa tarefa de definição, de delimitação, de demarcação ainda mais complexa.

2.1 Mercado doméstico e mercado institucional

Reservar a denominação de "livro escolar" só para as obras que são utilizadas em estabelecimentos de ensino e/ou que são especificadamente conhecidos com estas intenções, não tem sentido, historicamente, a não ser para um período mais recente, particularmente nas regiões onde o setor educativo teve uma institucionalização tardia. A educação doméstica é um fenômeno que temos freqüentemente a tendência de subestimar a importância e a persistência, apesar de ter sido algumas vezes objeto de regulamentação, como na Suécia a partir de 168638. Que venha ou não completar a freqüência escolar, por muito tempo teve um papel essencial na educação de meninos como de meninas. É assim que as Histoires de la Bible de Johann Gottfried Hübner, bestseller publicado pela primeira vez à Leipzig em 1714 e traduzido em numerosas línguas, fornecia aos pais instrumentos que lhes permitia examinar os trabalho dos seus filhos: cada uma das cento e quatro histórias é seguida de um questionário sem

38 Frithiov Borgeson, The Administration of Elementary and Secundary Education in Sweden, New York, 1927, p. 4.

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respostas que, favorecendo a reformulação, permite avaliar o nível de compreensão do texto39.

Mas os editores e os autores, por sua vez, têm interesse, por razões essencialmente econômicas, em apagar a distinção entre ensino doméstico e ensino escolar. Também um grande número de livros foram conhecidos pelo mercado doméstico e pela mercado institucional: os editores freqüentemente assinalam a natureza dual de seu leitor na primeira capa ou na página do título40. Esse cruzamento entre o mercado escolar e o mercado doméstico tende a desaparecer, ao longo do século XIX, com a escolarização em massa, a elaboração dos programas de ensino, a diversificação dos níveis e das séries e a multiplicação dos exames e concursos, aos quais uma parte não negligenciável da produção editorial tem sido preparada. Mas esta estratificação não se efetua de maneira uniforme: "O período durante o qual houve um cruzamento entre a escola e a casa certamente variou segundo as matérias. Ele foi, sem dúvida, longo no caso das antologias poéticas; ao contrário, esse cruzamento foi limitado e, somos autorizados a supor, inexistente para as ciências aplicadas"41.

39 Johann Hübner, Zweymahl zwey und fünfzig auserlesene biblische Historien aus dem Alten und Neuen Testamente, Leipzig, 1714. Ver Pierre Caspard, «Examen de soi-même, examen public, examen d'État: de l'admission à la Sainte-Cène aux certificats de fin d'études, XVIe-XIXe siècle», Histoire de l'éducation, n° spécial 94 sous la direction de Bruno Belhoste, Évaluer, sélectionner, certifier XVIe-XXe siècles, mai 2002, pp. 44-45. 40 Assim, entre outros exemplos: C.-F. Ermeler, Leçons de littérature allemande. Nouveau choix de morceaux en prose et en vers, extraits des meilleurs auteurs allemands à l'usage des écoles de France et des personnes qui étudient la langue allemande, Paris, Baudry, 1826 (14 reedições até 1865). 41 «The age range during which there was an overlap between home and school would vary from subject to subject. It would continue for a long time in the case of poetry anthologies; there would be little overlap in Bookkeeping, and, one might suppose, in Mechanics none»: Ian Michael, «Aspects of textbooks research», art. cit., p. 5.

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2.2 Mercado escolar e mercado profissional

Há também uma terceira categoria da população que é considerada pelos "livros escolares", a dos aprendizes ou dos jovens trabalhadores, mais abudantemente, aquela dos meios profissionais. A imagem que aparece, por volta de 1800, é aquela que será mais tarde a da edição clássica, não muito elogiosa, desses grandes tratados, a mesma situação que hoje conhecemos da edição universitária francesa ou, na ausência de programas nacionais, uma mesma obra deve, por razões econômicas, ser conhecida em função de vários públicos: o mundo universitário (estudantes e professores), o público dito cultivado – as "pessoas do mundo", como foi dito no século XIX –, desejosos em alcançar uma informação certificada e, mais particularmente, mas não exclusivamente, nos domínios jurídico e da medicina, os meios profissionais42.

O que hoje chamamos literatura técnica e profissional parece ter alcançado muito rapidamente certa autonomia43: os manuais e tratados destinados às profissões dos negócios constituem um testemunho particularmente precoce44. O desenvolvimento e a subdivisão de disciplinas científicas, a partir do século XVIII, permite então, em quantidade, uma diversificação da produção especializada; pois, à medida que avança no século XIX e que novas mercadorias são oferecidas pela

42 Alain Choppin, «Le livre scolaire et universitaire», in Pascal Fouché (dir.), L'édition française depuis 1945, Paris, Éditions du Cercle de la Librairie, 1998, pp. 313-339. 43 John Fauvel, «John's Wilkin's Mathematical magic considered as a textbook», Paradigm, 4, 1990, pp. 3-5. 44 Jochen Hoock, Pierre Jeannin, Wolfgang Kaiser (dir.), Ars mercatoria: Handbücher und Traktate für den Gebrauch des Kaufmanns: 1470-1820. Eine analytische Bibliographie in 6 Bänden, Paderborn, Schöningh, 3 vol. publicados. Ver também Franco Angiolini, Daniel Roche (dir.), Cultures et formations négociantes dans l'Europe moderne, Paris, Éditions de l'EHESS, 1995 (Civilisations et Sociétés, 91).

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indústria, se desenvolve uma produção de manuais (inglês companion, assistant; alemão Hilfsbuch (ou Hülfsbuch); espanhol guía; húngaro sèged könyv; etc.) que, distintos das publicações destinadas aos estabelecimentos de ensino "objetivam" públicos muito particulares: eles apresentam, sob a forma enciclopédica e sob uma forma condensada, o conjunto de conhecimentos considerados necessários ao exercício de um ofício determinado. Podemos citar, para os construtores de moinhos e os engenheiros hidráulicos, The Millwright and Engineer’s Pocket Companion de William Templeton45 ou Die Praktische Anweisung de Friedrich Netto46; para os navegadores, The Ship-Master’s Assistant de David Steel47; ou ainda, para os comerciantes, The Man of Business and Gentleman’s Assistant de William Perry48 ou Les Tarifs et comptes faits du grand commerce de François Barrême49; etc. Estas obras figuram por sua vez nos catálogos das livrarias, da

45 William Templeton, The Millwright & Engineer's Pocket Companion: comprising decimal arithmetic, tables of square and cube roots, practical geometry, mensuration, strenght of materials, mechanic powers, water wheels, pumps and pumping engines, steam engines, tables of specific gravities, &c. 2nd ed. […] revised and […] enlarged; to which is added an appendix, containing the circumferences, squares, cubes, and areas of circles, superficies and solidities of spheres, &c. &c., London, Simpkin and Marshall, 1833. 46 Friedrich August Wilhelm Netto, Praktische Anweisung, das Wasserwägen oder Nivelliren in den bei Kultivirung des Landes gewöhnlich vorkommenden Fällen anzuwenden: ein nach dem jetzigen Zustande der Wissenschaft eingerichtetes und mit den neuesten Erfindungen bereichertes unentbehrliches Hülfsbuch für Feld- und Forst-Messer, Land-, Wege- und Wasser-Baubeflissene, Agronomen, Mühlenbesitzer, Berlin/Landsberg an der Warthe, Enslin, 1826. 47David Steel, The Ship-Master's Assistant and Owner's Manual, London, 1788. Esta obra tem mais de vinte edições, sendo a última em 1852. 48 William Perry, The Man of Business and Gentleman's Assistant (3d ed.), Edinburgh, 1777. 49 François Bertrand de Barrême, Les tarifs et comptes faits du grand commerce, Paris, 1670.

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segunda metade do século XVIII, sob a rubrica "Livros escolares"50.

Esse movimento alcança também, mais tardiamente, as atividades que não se beneficiam, como a medicina, as atividades de engenharia ou de direito, de um estatuto profissional reconhecido. É o caso em particular da agricultura. Assim, na segunda metade do século XIX na Inglaterra, os progressos das ciências e das técnicas aplicadas à agricultura e a modificação das representações tradicionais do mundo rural51 fazem aparecer a necessidade de uma educação adequada aos trabalhos agrícolas. Esta evolução não é sem conseqüência sobre o estatuto das obras de agricultura: numerosas obras são adaptadas às necessidades práticas dos agricultores e publicadas, tais como Elements of Agriculture: a Text Book, publicada por William Fream sob os auspícios da Royal Agricultural Society of England, que tem um sucesso considerável: sua 17e edição, sob o título Fream’s Principles of Food and Agriculture, foi publicada em 1992, quase um século depois da edição original52. Na França, a grande

50 «Commercial and technical books were sometimes classified under the rubric of School Books, but were more often listed separately by title» [As obras de comércio e as obras técnicas estão por sua vez classificadas sob a rubrica Livros Escolares, mas, mais frequentemente, estão catalogadas de acordo com a parte seguinte do seu título]. Fiona A. Black, «"Horrid republican notions" and other matters: school book availability in Georgian Canada», Paradigm, 2-3, 2002, p. 2. 51 «The English Farmer is a splendid specimen of the human race. […] The sort of writing which is intelligible by ordinary men is to him a mystery» [«O fazendeiro inglês é um admirável espécime da espécie humana. […] O tipo de escrita que é inteligível para o mais comum dos mortais é para ele um mistério».], Country newspapers, Temple Bar, X, 1864, p. 131, citado por Goddard: cf. Nota seguinte. 52 H. Edmunds, «Eighty years of Fream's Elements of Agriculture», Journal of the Royal Agricultural Society of England, 134, 1973, pp. 66-77; Nicholas Goddard, «"Not a Reading Class": the Development of the Victorian Agricultural Textbook», Paradigm, 23, 1997, pp. 12-21.

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diversidade de climas e de solos fez emergir uma produção editorial específica por setor de atividade e/ou por área geográfica53.

A distinção entre mercado escolar e mercado profissional foi ainda mais problemática desde a integração nos cursos escolares da formação técnica e profissional, sancionada pelos diplomas frequentemente nacionais. Segundo os especialistas, os alunos podem então dispor (ou não) de obras específicas nas quais não são excluídos, e podem também satisfazer suas necessidades profissionais e, portanto, se revelarem úteis nos exercícios cotidianos de seu ofício.

2.3 Livros escolares e livros de vulgarização

Mas, simultaneamente, uma outra evolução começa, com a entrada no mercado de obras inspiradas nos tratados científicos, mas com o objetivo de assegurar a vulgarização dos conhecimentos.

É esta categoria de obras que podem ser chamadas de "compêndios": Jean-Claude Perrot sublinha que, na segunda metade do século XVIII, sob o impulso das sociedades científicass, a vulgarização dos conhecimentos econômicos passa pela publicação de versões abreviadas de obras científicas54. Annie Bruter, principalmente nos trabalhos sobre a história do ensino de história na França durante o Antigo Regime, distingue os compêndios, que não estão, na origem, especificamente destinados ao público escolar, e os manuais escolares de história. Em um sentido, os compêndios seriam "protomanuais". A existência do manual escolar, tal qual como entendemos hoje, necessita um conjunto de condições que não são todas preenchidas na França

53 Por exemplo: Denis Donon, Manuel pratique du vigneron et du cultivateur du Centre, Cosne, Imprimerie de A. Bureau, 1905. 54 Jean-Claude Perrot, «Nouveautés: l'économie politique et ses livres», in Henri-Jean Martin, Roger Chartier, Histoire de l'édition française, t. II, Le livre triomphant, 1660-1830, Paris, Promodis, 1984, pp. 250-251.

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antes do fim do Antigo Regime: as classes recebem um ensino comum (ensino dito simultâneo), uma estruturação de conteúdos em disciplinas autônomas, a posse de um livro por aluno. "A noção de manual de história, resumida por Annie Bruter, pressupõe por sua vez uma certa organização do ensino […], mas também um modo determinado de estruturação dos saberes, um determinado estado de desenvolvimento técnico e comercial e, mais extensamente, um tipo definido de cultura, no sentido do conjunto de valores fundadores: respeito ao saber, especialmente sob sua forma impressa, fiel à forma escolar de educação, concepção da especificidade das idades da vida, etc."55.

Esta é a opinião que exprimiu Lakanal diante da Convenção, quando propõe os compêndios e os livros elementares, que correspondem a nossa visão moderna dos manuais: "Abreviar, restringir uma grande obra, é resumir; apresentar os primeiros germes e de algum modo a matriz de uma ciência, é elementar […]. Desse modo, o resumo, é precisamente o oposto de elementar; é esta confusão de duas idéias muito distintas que tornaram inúteis para a instrução os trabalhos de um grande número de homens estimáveis…"56. O gênero resumo não desaparece do universo escolar ou periescolar, como atesta, por exemplo, ao longo de todo o século XIX, o florescimento dos resumos de história santa para a preparação dos exames do ensino sedundário.

55 Annie Bruter, «Les abrégés d'histoire d'Ancien Régime en France (XVIIe-XVIIIe siècles)», in Jean-Louis Jadoulle (dir.), Les manuels scolaires d'histoire: passé, présent, avenir, Louvain-la-Neuve, Université Catholique de Louvain, 2005, p. 15. 56 «Rapport et projet de loi sur l'organisation des écoles primaires, présentés à la Convention nationale au nom du Comité d'Instruction publique par Lakanal, à la séance du 7 brumaire an III», citado por James Guillaume, Procès-verbaux du Comité d'Instruction publique de la Convention nationale, t. V, Paris, Imprimerie nationale, 1904, p. 183.

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Mas é sobretudo no domínio científico que as obras de vulgarização conhecem, no século XIX, um forte desenvolvimento, a exemplo dos Cahiers de physique, de chimie et d’histoire naturelle à l’usage des jeunes personnes et des gens du monde57. É assim que, dos anos 1830, a produção de obras destinadas ao ensino de química na França é caracterizada por "uma estratégia segamentação e de decomposição de públicos que interfere com a política escolar para segmentar e desmultiplicar os leitores"58. Se a fronteira entre as obras científicas e as obras de vulgarização não são sempre bem colocadas59, aquela que separa as obras escolares e as obras de vulgarização não é mais60: os livros de leitura corrente (mas também os livros de prêmio que não podemos deixar de mencionar pois seu estudo tem sido muito frequentemente negligenciado pelos pesquisadores) têm assim fortemente contribuído à difusão das ciências e das técnicas junto às gerações jovens. Esse foi especialmente o caso na França da Terceira

57 Emmanuel Le Maout, Cahiers de physique, de chimie et d'histoire naturelle à l'usage des jeunes personnes et des gens du monde, Paris, Paul Dupont, 1841. 58 Bernadette Bensaude-Vincent, Antonio García Belmar, José Ramón Bertomeu Sánchez, L'émergence d'une science des manuels: les livres de chimie en France (1789-1852), Paris, Éd. Archives contemporaines, 2003, p. 80. 59 «Eu utilizei o termo manual (textbook) para todas as obras, elementares ou não, que contêm conhecimentos de ordem geral sobre a química destinados aos químicos que não são profissionais»: Catherine Kounelis, «Atomism in France: chemical textbooks and dictionaries, 1810-1835», in Anders Lundgren, Bernadette Bensaude-Vincent (dir.), Communicating Chemistry: textbooks and their audience, 1789-1939, Canton, Watson, 2000, p. 207. Voir aussi Michael Honeyborne, «The communication of science by popular books 1700-1760», Paradigm, 25, 1998, pp. 43-44. 60 David Knight, «Communicating Chemistry: the frontier between popular books and textbooks in Britain during the first half of the nineteenth century», in Anders Lundgren, Bernadette Bensaude-Vincent (dir.), Communicating Chemistry, op. cit., pp. 187-206; Julia Melcón Beltrán, «Ciencia aplicada y educación popular», in Alejandro Tiana Ferrer (dir.), El libro escolar…, op. cit., pp. 161-199.

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República: "A obra de vulgarização a mais ‘popular’ foi assegurada por Le Tour de la France par deux enfants, cuja primeira edição data de 1877. […] [Esta obra] oferece ao leitor uma imagem admirável da história e do estado das ciências, das técnicas e das indústrias da França nessa segunda metade do século XIX"61.

A imbricação entre uso doméstico e uso escolar ocorre tardiamente – e talvez jamais totalmente – decorrente de certas categorias de obras, como as obras de leitura e as antologias.

Esta é a conclusão que chegou o britânico Ian Michael: "É uma situação difícil, e se revelará talvez impossível, distingüir praticamente as obras redigidas com uma intenção especificamente pedagógica daquelas que foram escritas para o lazer. […] É o caso particular das histórias ou dos poemas escritos para as crianças; é igualmente o caso das antologias, que podemos dar uma breve ilustração: um conjunto, passado em revista de maneira aleatória, de vinte e sete antologias publicadas no século XVIII podem ser avaliadas entre aquelas que não trazem nenhum indicação de intenção pedagógica até as que são indicadas como obras de classes"62. Dez anos mais tarde, Michael propõe classificar as

61 Paul Brouzeng, «La vulgarisation scientifique au XIXe siècle en France et l'esprit de l'Encyclopédie de Diderot et d'Alembert», in Jacques Michon, Jean-Yves Mollier (dir.), Les mutations du livre et de l'édition dans le monde du XVIIIe siècle à l'an 2000, Québec/Paris, Les Presses de l'Université Laval/ L'Harmattan, 2001, p. 492; Le Tour de la France par deux enfants, de G. Bruno (pseudônimo de Augustine Fouillée) foi reeditado pela editora Belin até 1960, e são conhecidas inúmeras traduções e imitações. Ver o estudo muito bem documentado de Marie-Angèle Félicité, Le Tour de la France par deux enfants de G. Bruno. Rééditions, adaptations, imitations et historiographie de 1877 à nos jours. Du manuel scolaire au patrimoine: mémoire nationale et identité française?, dissertação de Mestrado em história contemporânea sob a direção de Sylvaine Guinle-Lorinet, Université de Pau et des Pays de l'Adour, 2005; ver também Patrick Cabanel, Le tour de la nation par des enfants: romans scolaires et espaces nationaux, XIXe-XXe siècles, Paris, Belin, 2007 (Histoire de l'éducation). 62 «It is difficult, however, and will perhaps prove impossible, usefully to make any general distinction between works written with a specifically pedagogical purpose and those written for entertainment. […] This is specially true of stories and verse written

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antologias em quatro categorias: as antologias destinadas somente para uso doméstico (H); aquelas que foram inicialmente utilizadas em casa, mas que podem ser utilizadas na escola (HS); as que foram principalmente destinadas para um uso exclusivamente escolar, mas que podem ser lidas em casa (SH); aquelas, enfim, que foram redigidas para um uso puramente escolar (S). Mas ele teve de se convencer, depois de ter submetido a exame algumas obras, os limites de seu método: por um lado, o título tem ressonâncias didáticas, mas o formato é doméstico; por outro, o autor declara ter concebido a obra para seus alunos e para a juventude em geral ("for my pupils, as well as for young people of every description")63.

Harper aborda igualmente as questões ligadas à definição e à classificação dos manuais, de seus conteúdos e das disciplinas escolares. Esse recurso de esclarecimento, que deve muito ao trabalho de Ian Michael (aliás agradecido por Harper), é um aporte essencial de seu artigo: "O continum que engloba livros escolares e diversas categorias de livros não escolares merece talvez ser estudado em si mesmo. Para algumas disciplinas, constatamos uma evolução depois dos livros polivalentes (multipurpose books), cujo objetivo é por sua vez de divertir, de elevar o sentimento moral e de educar stricto sensu, em direção a uma diferenciação colocada entre livros escolares e livros não escolares. Se podemos descobrir um meio de avaliar a "manualística" ("textbookness"), será

for children; it is also true of anthologies, from which it can be more concisely illustrated. A group of 27 anthologies, inspected at random, ranges from collections made without pedagogical intent to those which are offered as school texts»]: Ian Michael, «The Historical Study of English as a Subject; a Preliminary Inquiry into some Questions of Methods», History of Education, 8, 3, 1979, p. 202. 63 Ian Michael, «Home or school? On distinguishing schoolreading from home reading», Paradigm, 3, 1990, p. 11.

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interessante estudar em quais momentos as diferentes disciplinas atendem os diversos graus da diferenciação do livro escolar"64.

Descobrimos sensíveis análises no mundo latino: o brasileiro Leonardo Arroyo, por exemplo, escreve desde 1968: "Não existe, no último século, separação entre os livros de puro divertimento e aqueles de leitura para aquisição dos conhecimentos e estudo nas escolas"65. Trinta anos mais tarde, Paolo Bianchini traça um balanço similar: "Se o processo de especialização do livro de instrução como sua evolução em direção ao manual, durante o século XIX, aparece claramente tanto na definição do conteúdo das obras, que apresentam às vezes formas extremamemnte diversas de acordo com as matérias que abordam e o nível dos alunos aos quais se destinam, quanto na professionalização daqueles que os produzem – editores e autores –, tais transformações tiverem também reflexo na definição dos leitores. É inegável que, nas primeiras décadas do século XIX ainda, a distinção entre livros escolares e livros destinados à um público extra-escolar é ainda bem frágil"66. Mas essa "fragilidade" não é

64 «This continuum of textbooks with various non-textbook categories is perhaps itself worthy of study. Some subjects show a development from 'multipurpose' books, intended simultaneously for entertainment, moral uplift, and education stricto sensu, to a clear differentiation of textbooks from non textbooks. If a means for assessing 'textbookness' could be found, it would be of interest to study the times at which different subject reached different degrees of textbook differentiation»: ibid., p. 33. 65 «Não ha uma nítida separação entre os livros de entretenimento puro e os de leitura para aquisição e estudo nas escolas, durante o século passado»: Leonardo Arroyo, Literatura infantil brasileira – ensaio de preliminares para sua história e suas fontes, São Paolo, Melhoramentos, 1968, p. 93. 66 «Se il processo di specializzazione del libro per l'istruzione e la sua evoluzione in manuale nel corso dell'Ottocento appaiono ben visibili nella definizione del contenuto dei testi, i quali assunsero forme estremamente diverse a seconda delle materie che trattavano e del livello degli studenti a cui si rivolgevano, così come nella professionalizzazione di coloro che li producevano – editori ed autori – tali trasformazioni determinarono sensibili ricadute anche nella definizione dei lettori. Sino ancora ai primi decenni dell'Ottocento, infatti, rimase labile la distinzione tra testi

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resultado de um conhecimento e ainda imperfeito dos fenômenos econômicos? Hoje, as produções escolares se caracterizam pela parcimônia relativa de seu custo unitário, consequência da importância dos números de tiragem e, em numerosos países, das subvenções públicas que são beneficiados. Se o mercado da edição escolar e o papel que exerce a pujança pública na sua regulação e seu desenvolvimento, nos séculos XIX e XX, são nos últimos quinze anos objeto de estudo em numerosos países, as questões financeiras (aquelas dos preços de venda, especialmente), ao contrário, ainda não têm sido abordadas pelos historiadores.

2.4 Literatura escolar e literatura da infância e da juventude

Uma outra questão recorrente, e que não é sem relação com a questão precedente, é a relação entre a literatura da infância e da juventude (children literature) e a literatura escolar. Se a literatura da infância e juventude se define antes de tudo por seu público, dito de outra forma pela idade dos leitores, a literatura escolar poderá se compreender, exceção que exclui os graus superiores (talvez) e os livros destinados aos professores (certamente, aqueles que põem sérios problemas de métodos), como uma categoria vizinha, ou um sub conjunto da literatura da juventude.

Essa é a opinião que sustenta Luís Vidigal quando coloca o conceito de literatura da infância e da juventude como um termo genérico: nesse sentido, os livros para crianças constituem o instrumento o mais importante do processo de aculturação aos quais são submetidos os jovens portugueses alfabetizados. Eles dão lugar às formas literárias e iconográficas variadas, possuem objetivos específicos e adotam estruturas particulares, mas assumem todos a mesma função socializadora. Vidigal os divide segundo três categorias: os catecismos e os livros

scolastici e libri destinati a un pubblico extra-scolastico». Paolo Bianchini, «Una fonte per la storia dell'istruzione...», art. cit., p. 179.

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de formação moral e cívica (nos quais as intenções educativas e formativas são deliberadas), os manuais escolares (que têm todas as finalidades ligadas à instrução), e, enfim, as obras para a juventude (que, caracterizadas desde a origem por uma intenção educativa e formativa, evoluiu para produtos que visam antes de tudo divertir, sem abandonar no entanto seu objetivo de educação)67.

É a área que leva muitos bibliotecários a integrar os livros de classe nos fundos da literatura da juventude68; é também a posição que adotaram alguns pesquisadores quando empreenderam a tarefa de constituir repertórios, especialmente para o período anterior ao desenvolvimento dos sistemas educativos nacionais69. A fronteira entre os livros escolares e os livros da juventude aparece incerta e inconstante70. Também, desde muito tempo, que as políticas nacionais do livro escolar, que aparecem a partir do fim do século XVIII (desde 1777 na Polônia71, em 1793 na França72, em 1813 na Espanha73, em

67 Luís Vidigal, «Entre o exótico e o colonizado: imagens do outro em manuais escolares e livros para crianças no Portugal imperial (1890-1945)», in Antonio Novoa, Marc Depaepe, Erwin Johanningmeyer, Diana Soto Arango (dir.), Para uma história da educação colonial. Hacia una historia de la educación colonial, Porto/Lisboa, Sociedade Portuguesa de Ciências da Educação/EDUCA, 1996, p. 384. 68 John Edmund Vaughan, The Liverpool Collection of Children's Books: geography textbooks in English published before 1914, Liverpool, University of Liverpool, Education Library, 1983. 69 Por exemplo: Alexander Law, Schoolbooks and textbooks in Scotland in the 18th century: a handlist, with introduction and notes, Edinburgh, National Library of Scotland, 1989; Michel Manson, Rouen, le livre et l'enfant de 1700 à 1900: la production rouennaise de manuels et de livres pour l'enfance et la jeunesse, Paris, INRP, 1993; Petrus J. Buijnsters, Léontine Buijnsters-Smets, Bibliografie van Nederlandse school- en kinderboeken 1700-1800, Zwolle, Waanders, 1997. 70 John Fauvel, «On the border of textbooks and children's books: D. E. Smith's "Number Stories of Long Ago"», Paradigm, 3, 1990, pp. 3-5. 71 Czesław Majorek, «Podręczniki Komisji Edukacji Narodowej w aspekcie rozwiądydactycznych (1777-1792)» [Os livros escolares da CoMissão de

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1834 na Grécia74, etc.), não têm produzido seus efeitos, os dois gêneros se encontram muito imbricados75. É o que observa Françoise Huguet para a produção francesa: "De um lado, os livros ‘recreativos’ se tornam também ‘instrutivos’ e, por outro lado, os manuais (de geografia, de história, de ciência, etc.) são recheados de anedotas, historietas e de contos morais, segundo a idéia muito divulgada de tornar a instrução ‘útil e divertida’"76.

A incerteza é particularmente forte quando se refere aos níveis pré-elementares e elementares77, e mais ainda quando o livro é uma mercadoria rara: "Numerosos colecionadores não consideram os primeiros livros de leitura (primers) como os livros para crianças, escreve Charles-Frederick Heartman nos anos 1920. É possível que eles não sejam no sentido estrito, sobretudo se são definidos os livros para crianças como as publicações

Educação nacional analisados do ponto de vista dos métodos de ensino (1777-1792)], Rozprawy z Dziejów Oświaty, XVI, 1973, pp. 69-140. 72 Alain Choppin, Martine Clinkspoor, Les manuels scolaires en France. Recueil des textes officiels (1791-1992), Paris, INRP/Publications de la Sorbonne, 1993 (Collection Emmanuelle, 4). 73 Manuel de Puelles Benítez, «La política del libro escolar en España (1813-1939)», in Agustín Escolano Benito (dir.), Historia ilustrada del libro escolar…, op. cit., t. II, pp. 47-68. 74 Christina Koulouri, Ekaterini Venturas, «Les manuels scolaires dans l'État grec», Histoire de l'éducation, n° spécial 58, art. cit., mai 2002, pp. 9-26. 75 A questão é particularmente árdua para os países que, como a Inglaterra, que não (ou tardiamente) organizaram seu sistema educcativo em um contexto nacional ou regional. 76 Françoise Huguet, Les livres pour l'enfance et la jeunesse de Gutenberg à Guizot, Paris, INRP/Klincksieck, 1997, p. 13. 77 Um exemplo muito recente é dado pela contribuição de Anne Staples que, apesar do título, é consagrado na essência aos manuais de aprendizagem da leitura no México: «Literatura infantil y de jóvenes en el siglo XIX», in Lucia Martínez Moctezuma (dir.), La infancia y la cultura escrita, Mexico, Siglo XXI editores/Universidad autónoma de Morelos, 2001, pp. 339-350.

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destinadas para os entreter ou divertir. Tentar diferenciar essas publicações com uma rigorosa definição, é se aventurar sobre um terreno escorregadio ou, bem entendido, deve ter em conta sua imbricação, para não dizer nada, porque os livros de leitura são, ao menos até a Revolução americana, as únicas obras que as crianças possuem"78.

O fato parte de uma concepção moderna da literatura da infância e da juventude, uma concepção onde o prazer da leitura e o apelo ao imaginário tem um lugar essencial. As obras destinadas aos jovens alunos tiveram, por muito tempo, objetivos essenciais de edificação religiosa, de submissão aos códigos morais e sociais ou ainda, mais próximo de nós, a transmissão de saberes "úteis" ou a inculcação de valores patrióticos. A idéia que uma criança tem de um material de leitura apropriado a sua idade e aos seus centros de interesse é um fenômeno relativamente recente.

Anne-Élisabeth Spica constata assim que a invenção, na França do século XVII, de uma literatura da juventude escolarizada, que é frequentemente associada a imagem ao texto, é para nós paradoxal: "Estes livros que preconizam a leitura, estes livros que são apresentados como literatura da juventude, são obras que levam, segundo nossos critérios, à erudição"79. Na Inglaterra, 78 «Many collectors do not consider Primers children's books. Perhaps in a strict sense they are not, particularly when one defines children's books as something gotten out for the amusement or entertainment of children. Any strict definition trying to differentiate will tread on dangerous grounds for, of course, there is the interlocking character to be considered, to say nothing from the fact that, after all, at least until the American Revolution, Primers were practically the only books owned by children»: Charles Frederick Heartman, American primers, Indian primers, Royal primers, and thirty-seven other types of non-New-England primers issued prior to 1830; a bibliographical checklist embellished with twenty-six cuts, with an introduction & indexes compiled by Charles F. Heartman, Highland Park (New Jersey), H. B. Weiss, 1935, p. XVII. 79 Anne-Élisabeth Spica, «Si la lecture m'était contée: littérature de jeunesse et ouvrages didactiques au XVIIe siècle», in Pierre-Marie Beaude, André Petitjean, Jean-Marie Privat, La scolarisation de la littérature de jeunesse. Actes de colloque, Metz, Université de Metz, 1996, pp. 20-21.

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esta evolução foi precoce, como ilustra a coleção de obras de John Newbery, constituída no início dos anos 1740, porque nesse país, recorda Christopher Stray, a emergência de uma sociedade urbana e de uma elite de ricos proprietários suscita um interesse novo para a educação: "Esse novo mundo [das crianças], para as quais alguns disseram que o capital pode se transformar em cultura, comporta ele mesma uma dimensão comercial através da publicação de livros destinados às crianças"; esse setor conheceu um desenvolvimento muito importante que o poder público que se preocupa com as questões educativas muito mais tardiamente que outros locais80. No seu estudo, já antigo, sobre a história da literatura da juventude, Monica Kiefer assinala que esse fenômeno se observa somente no fim do século XVIII nos Estados Unidos: "A revolução americana corresponde não somente ao início da liberade política para o povo americano, mas também a emancipação da criança americana"81. Keith Hoskins pensa o mesmo, que a primeira obra americana de leitura que leva em conta a psicologia de seus jovens leitores (propõe, especialmente, dois volumes distintos segundo a idade) é Cobwebs to catch flies, or dialogues in short sentences, adapted to children from the age of three to eight years, publicado em 1783, por Lady Fenn pela editora J. Marshall. Mas é também, paradoxalmente, essa "revolução pedagógica" que o fez considerar essa obra como um livro escolar: "Os livros, como Cobwebs, reconhecem de imediato que aquilo que aprendem é uma parte do problema da aprendizagem"82. 80 Christopher Stray, «Quia nominor leo…», art. cit., pp. 74-75. 81 «The American Revolution marked the beginning not only of the political freedom of the American people, but also the emancipation of the American child»: Monica Kiefer, American children through their books, Philadelphia, University of Pennsylvania Press, 1948, p. 229. A obra, apesar de ser muito antiga, traz uma importante bibliografia sobre a história da literatura para a juventude (com algumas referências sobre literatura escolar). 82 «Books like Cobwebs suddenly acknowledge that the learner is part of the learning problem»: Keith Hoskin, «Further Moves towards a Definition», Paradigm, 3, July 1990, p. 9. Sobre a obra de Lady Fenn, que o título pode ser traduzido por

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Se certas produções destinadas à juventude puderam ascender ao estatuto escolar, tais como Milot, de Charles Vildrac, na França, ou Il Viaggio per l'Italia di Giannettino, de Carlo Collodi, na península italiana83, o inverso é igualmente verdadeiro. O manual que publica, em 1920, o brasileiro José Bento Monteiro Lobato, Reinações de Narizinho, coloca em cena uma menina de 10 anos, Narizinho, e sua boneca, Emília, uma boneca que fala, discute, argumenta, contesta e cujo desrespeito é compensado pela curiosidade84. A obra tem um sucesso considerável e Monteiro Lobato monta a sua própria editora, Editoria Nacional – que é hoje uma das mais importantes editoras escolares brasileiras, I.B.E.P./Nacional – para explorar os direitos das edições posteriores; ele também criou uma coleção de obras destinadas por sua vez à juventude, mas muito parecidas com o manual inicial, como Emília e a Aritmética, que coloca em cena, ao lado de Emilia, um outro boneco que se tornará também popular para os brasileiros, o Visconde de Sabugosa. Hoje e depois de quase meio século, a televisão brasileira apresenta uma série muito popular com os personagens dos livros de Monteiro Lobato e de músicas que foram compostas especialmente para esses programas. Vemos aqui que, em um país que não tem tradição de leitura familiar, é através da escola que se desenvolve o gosto pela leitura, e que a fronteira entre o livro escolar e o livro da juventude é, por sua vez, um pouco mais tênue.

Afinal, não é o conteúdo explícito, mas a destinação que será o critério decisivo. O livro para a juventude se define então, segundo Françoise Huguet, por seu contrário padrão: "Desde que «As teias de aranha para apanhar as moscas», ver Joyce Irene Whalley, Cobwebs to Catch Flies: illustrated books for the nursery and schoolroom, 1700-1900, London, Elek, 1974. 83 Charles Vildrac, Vers le travail, Milot, Paris, SUDEL, 1933; Carlo Collodi, Il viaggio per l'Italia di Giannettino, Florence, F. Paggi, 1882-1886, 3 vol. 84 Marisa Lajolo, Regina Zilberman, Literatura infantil brasileira. História e Histórias, São Paulo, Editora Atica, 1985.

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uma obra é explicitamente e exclusivamente destinada à uma instituição escolar, será considerada como um manual e excluído [do corpus de livros para a juventude]"85. Resta, no entanto, o caso, longe de ser marginal, das obras que se dirigem explicitamente ao meio escolar e ao meio familiar e, mais recentemente e não limitada à França, a inclusão progressiva das obras de literatura para a juventude no conjunto do curso escolar86.

2.5 Livros escolares e livros religiosos

Uma outra fronteira, também delicada de ser traçada, é aquela que separa o livro escolar do livro religioso87. Podemos colocar a questão de saber se esta distinção tem realmente sempre um sentido, tanto a imbricação entre religião e educação foi ou está sendo, em muitas regiões, forte se não de facto não se pode dissociar. A evangelização, protestante especialmente, foi um importante fator de alfabetização. As missões tiveram, e permaneceram em certos países, um elemento essencial do desenvolvimento da escolarização; graças as atividades editoriais internacionais de certas comunidades, elas participaram e

85 Françoise Huguet, Les livres pour l'enfance…, op. cit. É também o modo de definição que dá hoje o Sindicato nacional de editores na obra L'édition de livres en France, Paris, SNE, 1999, pp. 59 sqq.: «São todas as obras destinadas aos jovens de menos de quinze anos com exceção das obras escolares». 86 Nicole Robine, «L'apparition et le développement de la scolarisation de la littérature de jeunesse à travers les enquêtes sur la lecture des jeunes en France (1954-1995)», in Pierre-Marie Beaude, André Petitjean, Jean-Marie Privat, La scolarisation de la littérature de jeunesse, op. cit., pp. 33-46. 87 Leslie Howsam, «Beliefs, Ideologies, Technologies: Locating Religion in the History of the Book», in Jacques Michon, Jean-Yves Mollier (dir.), Les mutations du livre et de l'édition…, op. cit., pp. 414-421.

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participam sempre, no domínio educativo especialmente, da circulação e da difusão das idéias e dos impressos88.

É inicialmente sobre esses textos, cujo conteúdo remete à religião, que se efetuam as primeiras aprendizagens, na Cristandade especialmente: os primeiros livros de leitura europeus são os psautiers, os livros de oração ou ainda os catecismos, cuja organização por perguntas e respostas sobreviveu muito tempo a mensagem religiosa original89. E mesmo quando os poderes públicos tomam medidas para organizar um ensino popular, o catecismo constitui freqüentemente o primeiro manual que é colocado nas mãos das crianças, como por exemplo na Suécia,

88 Paul Aubin, «La pénétration des manuels scolaires de France au Québec. Un cas-type: les frères des Écoles chrétiennes, XIXe-XXe siècles», Histoire de l'éducation, n° 85, janvier 2000, pp. 3-24. Ver também o catálogo informatizado dos manuais publicados pela comunidade de Irmãos das Escolas cristãs em vinte países (mais de 6000 títulos) no endereço: http://www.bibl.ulaval.ca/ress/manscol/ diaspora/francais/fec.html 89 A forma de exposição catequética não tem somente sido utilizada para a formação religiosa, mas também para a formação cívica, política, agrária, etc. «P. O que é um catecismo? R. Um catecismo é a explicação racional, por perguntas e respostas, e de uma maneira simples e abreviada, de preceitos de crença, de uma doutrinae, em geral, de todo o conhecimento que pode formar um ensino rudementar fundamental»: Élie Cassiat, Petit catéchisme national, Nevers, Mazeron, ca 1900, p. 9 (referência amavelmente fornecida por Jean-Charles Buttier). Ver também, as três numerosas publicações: Anne Staples, «El catecismo como libro de texto durante el siglo XIX», in Roderic Ai Camp (dir.), Los intelectuales y el poder en México. Memorias de la VI Conferencia de Historiadores Mexicanos y Estadounidenses, Mexico/Los Angeles, El Colegio de Mexico/University of California, 1991, pp. 491-506; Eugenia Roldán Vera, «Reading in Questions and Answers: the catechism as an educational genre in early independent Spanish America», Book History, 4, 2001, pp. 17-48; Alfonso Capitan Diaz, Los catecismos políticos en España, 1808-1822, Granada, Caja de Ahorros, 1978; Barnabé Bartolomé Martínez, «El catechismo come género didáctico. Usos religiosos y laicos del modelo catequético», in Agustín Escolano Benito (dir.), Historia ilustrada del libro escolar..., op. cit., t. I, pp. 399-424.

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com o Petit catéchisme de Martin Luther90. A língua tem guardado traços patentes das origens religiosas da literatura escolar: é o caso do italiano saltiero (Psautier) que continua até o século XIX a ser pregado conjuntamente com o abecedário; ou do alemão Fibel, substantivo que é sempre utilizado nos dias de hoje e pelo qual dicionários dão o equivalente Erstlesebuch (primeiro livro de leitura) ou Lesebuch für Anfänger (livro de leitura para iniciantes), isto é o equivalente do inglês primer. Esse termo não tem nada a ver com a palavra que designa um ágrafo ou um fivela: ela decorre da pronúncia infantil e deformada do alemão Bibel, os primeiros alfabetos e livros de leitura estão compostos de expressões ou de curtas passagens emprestadas da Bíblia91. Do mesmo modo, o substantivo anglo-saxão primer, que designa na origem um livro de orações destinado ao laicos, remete ao ofício monástico da primeira hora (prima hora)92. Apesar de que frequentemente as palavras substituem as coisas que em um tempo designavam, alguns destes termos se aplicam ainda hoje às obras que não apresentam nenhum conteúdo religioso93.

A questão das relações entre literatura escolar e literatura religiosa parecem mais claras desde que, no espaço escolar, o 90 Dr M. Luthers Lilla katekes i sitt ursprungliga skick efter en på biblioteket i Strengnäs förvarad upplaga af år 1579, Stockholm, 1843. O ensino primário sueco foi organizado pelo decreto de 1842 e colocado sob a tutela da Igreja. 91 Renate Schäfer, «Die gesellschaftliche Bedingtheit des Fibelinhalts. Ein Beitrag zur Geschichte des Erstlesebuchs. Teil IV», Jahrbuch für Erziehungs- und Schulgeschichte, XII, 1972, pp. 105-138; Michael Beyer, «Der Katechismus als Schulbuch; das Schulbuch als Katechismus», in Heinz-Werner Wollersheim (dir.), Die Rolle von Schulbüchern fur Identifikationsprozesse in historische Perspektive, Leipzig, Leipziger Universität Verlag, 2002, pp. 97-106. 92 Catholic Encyclopedia, New York, R. Appleton, 1907-1912, vol. XII, verbete «Primer». 93 Por exemplo para o período 1950-1990 na ex-R.D.A.: Bärbel Mager, «Zum Mädchen- und Frauenbild in Kinderliteratur des DDR: am Beispiel der Fibeln und der "ABC-Zeitung" 1950-1990», in Ambivalenzen der Pädagogik, Wernheim, 1995, pp. 281-288.

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ensino de religião se efetue, como as outras "matérias", com a ajuda de um manual particular. Isso supõe uma secularização dos conteúdos do ensino que não é somente universal, mas que, quando se produz, não é produzido para todos no mesmo ritmo nem em condições idênticas. Geralmente, há a tendência de considerar que as Igrejas protestantes têm acompanhado muito esse processo de secularização enquanto que a Igreja Católica a combateu. É assim que na França, a laicização dos programas e a exclusão da escola pública de todos os manuais de ensino da religião, em 1882, provocou uma divisão não somente do sistema educativo, mas também no contexto de uma "guerra dos manuais", da edição escolar.

Alguns pesquisadores estimam que essa secularização dos conteúdos educativos corresponde ao nascimento do manual moderno: é especialmente o caso para Hilde Coeckelberghs94 que situa esse acontecimento na Alemanha, no fim do século XVIII, com a publicação, em Potsdam em 1776, do primeiro livro de leitura que podemos considerar profano, Der Kinderfreund de Friedrich Eberhard von Rochow, uma obra que foi muitas vezes reeditada e traduzida em múltiplas línguas. Tamém é o dado de Hermann Helmers que calculou que só 10% do conteúdo dessa obra remete à instrução religiosa, contra 70% de exemplos morais e 20% de conselhos práticos95. Joachim Max Goldstrom partilha igualmente essa opinião e o lugar da secularização dos conteúdos educativos no mundo anglo-saxão no início dos anos 1830 na

94 «Es muß profane Texte enhalten. […] Das eigentliche Schullesebuch mit weltlichem Inhalt enstand in Deutschland im Jahre 1776» [«Ele deve conter textos profanos. […] É em 1776 que aparece na Alemanha o verdaeiro manual escolar de leitura com conteúdo profano»]: Hilde Coeckelberghs, «Das Schulbuch als Quelle der Geschichtsforschung. Methodologische Überlegungen», op. cit., p. 10. 95 Hermann Helmers, Geschichte des deutschen Lesebuchs in Grundzügen, Stuttgart, E. Klett, 1970, p. 158.

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Irlanda, um processo que alcança em seguida rapidamente a Grã-Bretanha96.

A questão não é portanto simples, pela definição de edição religiosa não é mais evidente. Yvan Cloutier assinala que ao lado da definição que se dá habitualmente, centrada sobre os conteúdos ("o conjunto dos impressos tem nos títulos uma conotação religiosa explícita: espiritualidade, Bíblia, moral, teologia, livro de oração, etc."), podemos pensar hoje uma outra, mais ampla, que se apoiando sobre a finalidade do editor "inclui todos os títulos produzidos num viès evangelizador, sem olhar a conotação explícita do conteúdo"97. Pode então haver permeabilidade não somente entre edição religiosa e edição escolar, mas também entre edição religiosa e edição para a juventude.

3 Suportes, modalidades de difusão e de uso

Para a maioria de nossos contemporâneos, os manuais são livros impressos. Tal representação resiste a uma análise?

96 É assim que a primeira lição do Fourth Book publicada em 1834 pelo Irish Commissionners (é em realidade a primeira das obras redigidas pelo departamento de comissários encarregados da elaboração do sistema educativo e da redação dos novos manuais) que tem por título Animal and vegetable life. Apenas 50 páginas, sobre as 340 que compõem a obra, são consagradas à religião (à história santa essencialmente): Joachim Max Goldstrom, The Social Content of Education, 1808-1870: a study of the working class school reader in England and Ireland, Shannon, Irish University Press, 1972. 97 Yvan Cloutier, «Les communautés éditrices et l'avenir du livre religieux», in Jacques Michon, Jean-Yves Mollier (dir.), Les mutations du livre…, op. cit., pp. 422-423. É essa segunda aproximação que é adotada implicitamente pelo irmão Michel Albéric, Jacques Mignon, «L'édition religieuse en France», in Pascal Fouché (dir.), L'édition française depuis 1945, op. cit., pp. 279-311.

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3.1 Os manuais manuscritos

Convém, no entanto, levantar uma ambigüidade terminológica. Não é o caso de tratar das obras impressas com a ajuda de caracteres semelhantes àqueles da escrita manual, que foram publicados no início do século XIX à metade do século XX, para exercitar alunos e adultos na leitura de documentos manuscritos ou para reprodução caligráfica98. A questão que nos preocupa pode ser assim formulada: existiram manuais manuscritos ou, se preferirmos, obras não impressas que podem ser consideradas como manuais?

Para o historiador Henri-Irénée Marrou, o manual escolar existe desde a Antigüidade, quando o suporte é ainda o rolo de papirus (volumen): "Desenrolar o precioso manual escolar que é o papirus Guéraud-Jouguet; ele começa por lições absolutamente elementares, sílabas e provavelmente o alfabeto, para chegar a uma antologia de textos poéticos de real dificuldade; seu estudo completo deverá exigir vários anos" 99. Independente do suporte, é esta organização do documento – a apresentação dos conteúdos seguido de uma progressão que vai do simples ao complexo – que valida o pertencimento à categoria dos manuais escolares.

Pierre Riché relaciona o aparecimento do manual, no iníco da era cristã, ao codex, manuscrito que consiste na reunião de folhas de pergaminho ligadas ou costuradas, de forma semelhante aos livros atuais, que permitem a manipulação mais fácil100. Para outros, como Henri-Jean Martin, o advento do manual está relacionado com o nascimento e o desenvolvimento

98 Agustín Escolano Benito, «Los manuscritos escolares», in Agustín Escolano Benito (dir.), Historia ilustrada del libro escolar..., op. cit., t. I, p. 345-372. 99 Henri-Irénée Marrou, Histoire de l'éducation dans l'Antiquité, Paris, Seuil, cop. 1948, vol. 1: «Le monde grec», p. 233. 100 Pierre Riché, Éducation et culture dans l'Occident barbare VIe-VIIe siècle, Paris, Seuil, 1962, pp. 510-530.

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das universidades, no século XIII no Ocidente101: se difundem então "os manuscritos de médio e pequeno formato destinados ao ensino (manuais e coleção/antologia de textos)"102, aliado com a instituição de um sistema de multiplicação e de difusão de cópias manuscritas certificadas, a pecia103. Paralelamente, a organização espacial da página e a generalização das ferramentas de leitura moderna (capítulos, index, etc.) traduzem a substituição de uma leitura rápida e fragmentária para uma leitura fundada sobre a memória somente104.

Se a aparição e o desenvolvimento da imprensa não constitui, como mostra Henri-Jean Martin, uma ruptura brutal com os usos precedentes, esta evolução tecnológica é entretanto a origem da edição escolar moderna, caracterizada principalemente pela abundância de tiragens, a continuidade da produção e a obsolência muito rápida dos produtos: "por outro lado, o mercado do livro escolar é na indústria editorial o rabo que, segundo o provérbio, agita o cachorro"105. Uma das primeiras obras publicadas pela Sorbonne foi, por outro lado, um modelo de estilo

101 Michael Baldzuhn, «Avian im Gebrauch. Zur Werwendung von Schulhandschriften im Unterricht», in Christel Meier, Dagmar Hüpper, Hagen Keller (dir.), Der Codex im Gebrauch. Akten des Internationalen Kolloquiums 11. – 13. Juni 1992, Munich, Wilhelm Fink Verlag, 1992, pp. 183-196 (Münstersche Mittelalter-Schriften, 70). 102 Lucien Febvre, Henri-Jean Martin, L'apparition du livre…, op. cit., p. 101. Ver também Hedwig Gwosdek, A checklist of English grammatical manuscripts and early printed grammars ca 1400-1540, Münster, Nodus-Publ., 2000 (The Henry Sweet Society studies in the history of linguistics, 6). 103 Lucien Febvre, Henri-Jean Martin, L'apparition du livre…, op. cit., pp. 24-26. 104 Guglielmo Cavallo, Roger Chartier (dir.), Histoire de la lecture dans le monde occidental, Paris, Seuil, 1997, pp. 125-126 (L'Univers historique). 105 «In many respects, the textbook market is the proverbial tail that wags the dog in the publishing industry»: Philip G. Altbach, The Knowledge Context: comparative perspectives on the distribution of knowledge, Albany, State University of New York Press, 1987, p. 6.

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para a juventude, as Lettres de Gasparin de Pergame, que a tradição designa como o primeiro manual escolar francês106.

A generalização da imprensa significa o desaparecimento dos manuais manuscritos (Schulhandschriften)? A questão tem alguma pertinência, mas é difícil dar uma resposta clara na medida em que os documentos desse tipo não são depositados nas bibliotecas e que, na medida em que eles existem, sua reprodução foi muito restitra, sua difusão confidencial e sua preservação aleatória. Observando as obras que se assemelham aos manuais manuscritos, mas que muitas vezes são cursos anotados pelos estudantes107, que descobrimos nos arquivos de estabelecimentos, nos arquivos municipais, ou ainda em lojas de alfarrábios, são manuscritos de obras aparentemente que não foram jamais reproduzidas ou impressas108, manuais destinados à um ilustre aluno109 ou obras de obscuros professores primários; identificamos alguns fundos, geralmente ligados à abertura de concursos para a composição de obras escolares110; também dispomos de três raros

106 Gasparini pergamensis clarissimi oratoris epistolarum liber foeliciter incipit. Sur cet ouvrage, voir Jacques-Charles Brunet, Manuel du libraire, Paris, Didot, 1861, vol. 2, col. 1498. 107 Ver http://www.inrp.fr/she/cours_magistral/cm_ress_doc.html 108 Ruth Franke, Peter van Zirns Handschrift; ein deutsches Schulbuch vom Ende des 15. Jh, Berlin, E. Ebering, 1932 (Germanische Studien, Heft 127). 109 Oscar de Incontrera, «Un précieux manuscrit de la bibliothèque de Trieste: la grammaire latine de Louis XVII», Cahiers Louis XVII, 14, 1998, pp. 13-28. 110 São conservados nos Archives nationales de France uma séries de manuscritos destinados ao júri de concurso dos livros elementares do ano II (F17 1331b), também os destinados ao júri de um concurso aberto na primavera de 1830 para a composição de um livro de leitura corrente (F17 1331b, F17 11 649 et 11 650). Na França, a obrigação de submeter a utilização dos manuais nas salas de aula à autorização prévia de uma comissão que decidiu, em 1811, de não mais examinar as obras manuscritas, limitou certamente as produções manuscritas.

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catálogos111. Na ausência, segundo nosso conhecimento, de trabalhos específicos, essa questão permanece aberta. Um certo número de testemunhos de pesquisadores que trabalham, com outras preocupações, sobre os fundos de arquivos manuscritos ainda não inventariados, levam no entanto a pensar que tais manuais têm certamente circulado localmente até época muito recente112.

3.2 As folhas clássicas:o anel que faltava?

As "folhas clássicas", recentemente estudadas por Marie-Madeleine Compère, constituem produtos editoriais utilizados nos colégios do século XVI e XVII, para a preleção dos textos em latim e grego113. Antes da tipografia, o regente de classe ditava o texto que ele deveria analisar, antes de passar à sua explicação. Em sua definição completa, a "folha clássica" é composta de duas entidades: um livro impresso, que reproduz o texto do autor e que tem nas entrelinhas e/ou nas margens anotações manuscritas; um caderno anexo inteiramente manuscrito, ligado ao final do texto 111 Olivier Réjean, Fernand Boulet, Catalogue descriptif de quelques manuels scolaires manuscrits datant de 1811 au début du XXe siècle, en possession des Archives et exposés à la Bibliothèque à l'occasion de la Semaine nationale de l'éducation du 30 mars au 3 avril 1981, L'Assomption, Collège de L'Assomption, Archives et Bibliothèque, 1981. 112 «O documento mostras os signos de uso intenso, as páginas são lustradas e escurecidas por gerações de dedos professorais»: Ollivier Hubert, «Un manuel manuscrit d'histoire moderne au Collège de Montréal au début du XIXe siècle», in Monique Lebrun (dir.), Le manuel scolaire…, op.cit., CD-Rom, partie 9, texte 4, p. 3; Pierre Caspard também encontrou manuais manuscritos, redigidos no século XVIII e destinados ao ensino primário, nos arquivos do principado de Neuchâtel, na Suíça. 113 Marie-Madeleine Compère, «Les "feuilles classiques", un support pour la prélection des textes latins et grecs (XVIe-XVIIe siècles)», consultable en ligne à l'adresse:

http://www.inrp.fr/she/cours_magistral/expose_feuilles_classiques/expose_feuilles_classiques_complet.htm

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impresso. Esses diversos lugares de anotação (entrelinhas, margem e caderno anexo) correspondem, a grosso modo, aos três níveis possíveis (parafrase latina do texto, tradução em francês, explicação frase por frase ou comentário global).

Além de dispensar o aluno de pegar o texto ditado e garantir sua integridade e correção, esse novo instrumento permite que cada estudante ter anotações manuscritas, o que traduz e implica uma modificação das práticas de ensino. Pelo seu custo modesto e seu uso individual, a "folha clássica" constitui uma etapa essencial para a emergência de uma edição escolar normatizada e autônoma.

Várias hipóteses podem então avançar: por um lado, a folha clássica, pelos seus conteúdos e sua estrutura, anunciará as obras ad usum Delphini114 e, freqüentemente o que convém chamar as "edições clássicas", edições críticas das obras canônicas em que o aparelho didático (explicações, comentários, questionários, dossiês temáticos,...) não deixam de perder sua amplitude com o tempo115; por outro lado, a coexistência do impresso e do manuscrito lembra, em todos os contextos, as formas editoriais mais modernas, cadernos de exercícios ou produções paraescolares, em que a atividade do leitor é formalmente solicitada116. 114 Catherine Volpilhac-Auger (dir.), La collection Ad usum Delphini. L'Antiquité au miroir du Grand Siècle, Grenoble, Ellug, 2000. Esta coleção, que contêm sessenta e quatro volumes in-quarto, foi publicada entre 1670 e 1698, visa dois objetivos: fornecer ao príncipe os textos e manuais necessários à sua educação e oferecer os instrumentos para edificar ou consolidar uma cultura do homem educado no padrão desse importante modelo. 115 Alain Choppin, «Le livre scolaire et universitaire», in Pascal Fouché (dir.), L'édition française depuis 1945, op. cit.: «Les petits classiques», pp. 322-323. 116 Os cadernos de exercícios (exercise books, quaderni, cuadernos, cadernos…) foram objeto de um número especial da revista Annali di storia dell'educazione e delle istituzioni scolastiche: I quaderni di scuola tra Otto e Novecento, 2006, 13, resultado do primeiro colóquio internacional em Macerata, na Itália, em setembro de 2007.

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3.3 Os manuais para o professor: livros ou revistas?

Em primeiro lugar, devemos lembrar que antes de estarem entre as mãos dos alunos, os manuais foram os livros reservados aos professores. A aceitação persistente da forma de catecismo, com perguntas e respostas, faz com que "leiam simplesmente as interrogações com o estudante, aquele que ensina aprecia insensivelmente ao contrário daquele que é ensinado"117

As obras destinadas aos professores, quando existem, compreendem, em teoria, duas categorias distintas: a primeira contêm os "livros do mestre" ou "livros do professor", que são associados a determinado manual de aluno e que, seguido das disciplinas e das épocas, dá as respostas às questões ou às correções dos exercícios, ou fornece ao professor as pistas para exploração pedagógica ou ainda documentos ou atividades complementares118; a segunda integra os livros que tratam de questões pedagógicas (condução da classe,...) ou didática (métodos de aprendizagem, …) e são utilizados quando da formação incial dos professores, (nesse caso, os mestres estão ainda na posição de aluno, ele podem

117 Resenha de uma obra do padre Claude Buffier (Pratique de la mémoire artificielle pour apprendre et pour retenir aisément la chronologie et l'histoire universelle, Paris, Coustelier, 1705) publicada nas Mémoires de Trévoux, juillet 1705, p. 1127, e citada por Annie Bruter, «L'histoire, discipline scolaire née au sein du pensionnat», in La Flèche. Quatre siècles d'éducation sous le regard de l'État, La Flèche, Prytanée national militaire, 2006, p. 198. 118 Arthur Woodward, «Taking teaching out of teaching and reading out of learning to read: a historical study of reading teacher's guides, 1920-1980», Book Research Quarterly, 2, 1, mars 1986, pp. 53-77; Ulrich Schubert, Das Schulfach Heimatkunde im Spiegel von Lehrerhandbüchern der 20er Jahre, Hildesheim, Olms, 1987 (Documenta paedagogica, 7). Alguns manuais colocados entre as mãos dos alunos comportam, às vezes, indicações destinadas aos professores, formando uma categoria que Johnsen chama de «hidden teacher's guides»: Egil Børre Johnsen, Textbooks in the Kaleidoscope..., op. cit., p. 319.

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aprender nos manuais como os outros119) ou ao longo de sua vida ativa (aqueles da literatura profissional)120.

Na França, se o díptico livro do mestre-livro do aluno aparece desde a primeira metade do século XIX – o livro reservado ao professor, que se apresenta então essencialmente sob a forma de traduções ou de correções -, aparece tão somente na segunda metade do século seguinte: é portanto uma produção que tem um desenvolvimento relativamente recente121. As funções do livro do mestre ou do professor foram substituídas, desde o início do século XIX, pelas revistas e jornais que, emanados sejam da administração, das editoras escolares, ou dos meios profissionais, estavam destinadas aos professores122. Esse afinidade funcional

119 Teresa Rabazas Romero, Los manuales de pedagogía y la formación del profesorado en las escuelas normales de España (1839-1901), Madrid, UNED, 2001; Michèle Roullet, Les manuels de pédagogie, 1820-1880: apprendre à enseigner dans les livres?, Paris, Presses universitaires de France, 2001; António Carlos da Luz Correia, Eliane Peres, «Aprender a ser profesor a través de los libros: representación profesional, currículum escolar y modelos de aprendizaje en los manuales de pedagogía y didáctica para la formación de profesores de enseñanza primaria en Portugal (1870-1950)», in Jean-Louis Guereña, Gabriela Ossenbach Sauter, María del Mar Del Pozo Andrés (dir.), Manuales escolares en España, Portugal y América latina (siglos XIX y XX), Madrid, UNED, 2005, pp. 195-213. 120 Alberto Martínez Boom, «Del Plan de escuela al manual de enseñanza: saber pedagógico en Colombia en el siglo XVIII», ibid., pp. 67-92; Mariano Narodowski, «Libros de texto de pedagogía en la formación de docentes de Buenos Aires (1810-1830)», ibid., pp. 83-94; etc. 121 Ver as introduções dos diferentes volumes publicados no conjunto da coleção «Emmanuelle». Por exemplo, 9% dos manuais de latim publicados na França foram especificadamente destinados aos professores, sendo 15% no século XX e 25% depois de 1950. 122 Documento essencial para os historiadores, a imprensa de educação e de ensino foi, como os manuais, objeto de repertórios sistemáticos em um certo número de países: Maurits De Vroede, Bijdragen tot de geschiedenis van het pedagogisch leven in Belgie in de 19de en 20ste eeuw. De periodieken, Gent/Leuven, Rijksuniversiteit/Katholieke Universiteit, 1973-1978, 3 t. en 4 vol.; Pierre Caspard (dir.), La presse d'éducation et d'enseignement: XVIIIe siècle-1940, Paris,

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conduziu alguns pesquisadores, negligenciando uma clivage que não é somente de natureza catalográfica (monografias/publicações em série), à integrar na categoria de manuais escolares essas publicações periódicas: "Os manuais estão disponíveis ao público sob a forma de livros mas também regularmente apresentados através de periódicos e de revistas, de forma a atender rapidamente todos os mestres do país; consideramos, por essa razão, que essas publicações, que funcionam como orgãos da Instrução pública, foram os grandes manuais dessa época"123.

3.4 As "bordas" da escola: livros de prêmios, livros de bibliotecas escolares e obras paradidáticas

Três categorias de obras se situam igualmente no crescimento do mercado escolar e do mercado doméstico: os livros de prêmios, os livros de bibliotecas escolares e as publicações ditas paradidáticas, que têm por finalidade comum prolongar a mensagem educativa para além do tempo e do espaço escolar.

A entrega de prêmios é uma cerimônia cuja instituição remonta ao Antigo Regime, e o livro de prêmios, que conservamos INRP/CNRS, 1981-1991, 4 vol., et Pénélope Caspard-Karydis (dir.), La presse d'éducation et d'enseignement: 1941-1990, Paris/Lyon, INRP, 2000-2003, 4 vol.; António Nóvoa (dir.), A Imprensa de Educação e Ensino. Repertorió analítico (séculos XIX-XX), Lisboa, Instituto de Inovação Educacional, 1993; Giorgio Chiosso (dir.), La Stampa pedagogica e scolastica in Italia: 1820-1843, Brescia, La Scuola, 1997; Denice Barbara Catani, Cynthia Pereira de Sousa, Impresa periódica educacional paulista (1890-1996): catálogo, São Paulo, Plêiade, 1999. 123 «Los manuales eran entregados al público en forma de libros y también ofrecidos regularmente a través de los periódicos y revistas en el afán de llegar a todos los maestros del país con prontitud; por ello consideramos que dichas publicaciones, actuando cómo órganos de Instrucción Pública, fueron los grandes manuales de esta época»: Claudia Ximena Herrera, Bertha Nelly Buitrago, «Manuales escolares de educación física para la escuela primaria en Colombia entre 1870 y 1915», in Jean-Louis Guereña, Gabriela Ossenbach Sauter, María del Mar Del Pozo Andrés (dir.), Manuales escolares en España, Portugal y América latina…, op. cit., pp. 155-178.

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conosco, é investido de um sentido afetivo particular. Muitos desses livros foram escritos para um público adulto124, e nem a menção de ex praemio sobre as obras, nem, mais tarde, sua inscrição sobre as listas oficiais de livros destinados a serem dados em prêmio, não alteram sua concepção editorial. Numerosas editoras, como, na França, Alfred Mame à Tours, os irmãos Barbou e Martial Ardant à Limoges, Louis Lefort à Lille para os estabelecimentos confessionais, Louis Hachette, Pierre-Jules Hetzel e Charles Delagrave para as escolas públicas, ou, na Itália, a Tipografia Editrice Lombarda ou l’Editrice La Scuola, lançaram, na segunda metade do século XIX, coleções claramente identificadas, com a intenção de criar um mercado específico125.

Presentes no Ocidente desde a Idade Média, nos monastérios e nas universidades, as bibliotecas se expandem desde o século XVI no interior dos estabelecimentos de ensino secundário (collèges, grammar schools, …). Mas é somente no curso do século XIX, que, sob o impulso das associações, das empresas, dos responsáveis políticos, ao nível local, regional ou central, que são tomadas iniciativas em favor do desenvolvimento da leitura popular. Não existe nenhum estudo sistemático em nível

124 Para o que é da França, Dominique Julia localizou nos arquivos dos colégios do Antigo regime numerosas listas de livros dados como prêmios entre 1762 e 1792: sua análise confirma amplamente esta afirmativa. 125 Sobre o papel motriz do mercado do livro de prêmios na França, na segunda metade do século XIX, ver especialmente, «Le livre pour la jeunesse», in Henri-Jean Martin, Roger Chartier (dir.), Histoire de l'édition française, t. III: Le temps des éditeurs? Du Romantisme à la Belle Époque, Paris, Promodis, 1985, pp. 417-443. Ver também Nicole Prévost, Livres de prix et distribution dans l'enseignement primaire (1878-1914), Paris, École nationale des Chartes, 1979; Christine Élie, Un grand éditeur catholique. Alfred Mame (1811-1893), mémoire de DEA d'histoire sous la direction de Jean-Yves Mollier, Nanterre, Université Paris X Nanterre, 1990; Luciano Pazzaglia (dir.), La Scuola (1904-2004). Catalogo storico, Brescia, La Scuola, 2004; Mariella Colin, «La littérature d'enfance et de jeunesse en France et en Italie au XIXe siècle: traditions et influences», Chroniques italiennes, 1992, 2, 30.

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mundial126, mas a organização de bibliotecas no interior das escolas primárias é uma medida adotada por muitos países na segunda metade do século XIX (bibliotecas escolares na França ou no Québec, school libraries na Grã-Bretanha ou nos Estados Unidos, Schulbibliotheken nos países de língua alemã, biblioteche per la scuola na Itália, etc.). A lista de obras suscetíves de entrar nesses fundos é fixada por comissões, ao nível local, regional ou nacional, segundo cada país. Mesmo se o título de algumas edições de obras comporta indicações explícitas, os livros de bibliotecas escolares (como aqueles que compõem hoje os fundos dos centros documetários dos estabelecimentos escolares) não constituíram jamais um setor editorial específico: correspondem às escolhas operadas, sobre critérios especialmente educativos e morais, entre as publicações disponíveis no mercado.

As obras ditas paradidáticas, de criação e sobretudo de difusão mais recente127, são de natureza muito diversa, mas visam claramente um mercado doméstico, mesmo se, em certos países, essas obras podem igualmente serem utilizadas sob a recomendação expressa dos professores128. A regulamentação, a destinação, o financiamento e a distribuição fazem esses produtos diferentes dos manuais, que dispensam uma prescrição institucional; mas sua função (redobrar, completar, aprofundar a mensagem da instituição escolar) e sua concepção (eles se referem, explicita e seguidamente, à uma disciplina e um nível de ensino ou ainda "em torno do programa") estão claramente ligadas ao

126 Laurel A. Clyde, «The Schole Lybrarie: Images from Our Past», IASL Journal: School Library Worldwide, vol. 5, n° 1, January 1999, pp. 1-16. 127 Para a França, é em 1885 que o editor Henry Vuibert inventa o conceito de Annales, e em 1933 que foram publicados por Robert Magnard os primeiros cadernos de férias. 128 Roxane Rojo, Antônio Augusto Gomes Batista, «School Textbooks in Brazil: a General Review», in Cecilia Paula Braslavsky, Textbooks and Quality Learning for All: some lessons learned from international experiences, UNESCO, International Bureau of Education, 2006, p. 276.

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universo escolar. Em alguns países ocidentais, estas obras são hoje frequentemente utilizadas pelos alunos que as obras prescritas pela instituição (dito de outra forma, os manuais), especilamente nas classes de exame129.

3.5 Em direção a uma diversificação e uma hibridização dos suportes

O "livro escolar" conhece depois de algumas décadas uma diversificação de suas funções e suportes.

Na obra fundamental consagrada à pesquisa internacional sobre os livros escolares, Egil Børre Johnsen, primeiro presidente da l’IARTEM130, depois de ter admitido que hoje a definição de um manual (textbook) é, desse ponto de vista, geral, que pode incluir outros livros produzidos e publicados com um objetivo educativo, ou mesmo não importa qual livro utilizado em classe, constata que, depois dos anos 1970, prevalece na pesquisa em educação uma outra distinção, mais pragmática, mas também instável e discutível, entre os manuais (textbooks) e os meios de ensino (teaching media)131.

Esta distinção não tem uma novidade, independente da panóplia das obras as quais podem ser tranferidas as funções específicas (manual, caderno de exercícios, léxicos, etc.);

129 Michèle Colin, Charles Coridian, Les produits éducatifs parascolaires: une réponse à l'inquiétude des familles, Paris, INRP, 1996 (Politiques, pratiques et acteurs de l'éducation); Kazumi Munakata, Produzindo livros didáticos e paradidáticos, São Paulo, Pontifícia Universidade Católica, 1997. 130 International Association for Research on Textbooks and Educational Media. Essa associação, cujos os primeiros estatutos foram definidos em Paris, em 1995, hoje tem sua sede à Tonsberg, na Noruega. Organiza, a cada dois anos, um congresso internacional. Pode-se consultar seu site na internet no endereço: http://www.iartem.no 131 Johnsen conclui sobre a ausencia de consenso sobre os critérios de avaliação dos manuais escolares e dos meios de ensino: Textbooks in the Kaleidoscope…, op. cit., p. 26.

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numerosos outros produtos de finalidades pedagógicas estão entrando progressivamente no domínio da edição clássica (quadro de leitura, cartas murais, imagens fixas ou animadas, discos, televisão,…), mas, até os anos 1980, esses utensílios não são utilizados comumente em classe que como complemento do manual e para atividades precisas. Aluns desses instrumentos são conhecidos, desde a origem, como complementares, indissociáveis das produções impressas para uso nas classes: muitos manuais integram hoje uma cassete ou um CD-Rom, de maneira que eles não podem ser utilizados independentemente dos outros elementos que compõem o conjunto132. O caso mais patente – e já antigo133 - dessa hibridização dos suportes (e das práticas) é certamente aquela dos métodos de aprendizagem das línguas vivas, que associam ao manual cadernos de exercícios, fichas de atividade, áudio ou videocassete, CD-Rom ou outros produtos derivados das tecnologias de informação e da comunicação. O manual passa a participar cada vez menos do mundo do impresso e cada vez mais do da multimídia; é assim que as normas da descrição catalográfica internacional foram, por sua vez, abandonando as bibliotecas para investir nas médiateca.

Hoje, numerosos produtos que usam tecnologias novas, tais como "manuais numéricos"134 ou ainda as plataformas numéricas que constituem na página web novos espaços de aprendizagem (os sites pedagógicos das grandes bibliotecas ou

132 O manual não pode mais ser analisado independentemente de seus «satélites». 133 O Pathégraphe primeiro método de ensino de línguas vivas adaptado ao fonógrafo, data de 1913. 134 Sobre a história desses novas ferramentas, ver Pascale Gossin, «Du manuel papier au manuel numérique», in Claire Bélisle (dir.), La lecture numérique: réalités, enjeux et perspectives, Villeurbanne, Presses de l'ENNSIB, 2004, pp. 223-254. A nomenclatura não é mais fixada. Ver também, para a situação na França, o dossiê constituído pelo ministério da Educação nacional sobre o manual digital (última atualização 27/11/2007) no endereço http://www.educnet.education.fr/dossier/manuel/default.htm

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museus, por exemplo) se apresentam como alternativas aos manuais-papel, e a pesquisa histórica sobre o livro escolar deve necessariamente levar em conta o impacto do que se convenciona chamar a revolução tecnológica no domínio da edição clássica135.

Podemos falar portanto de uma mutação ou não podemos mais nos basear em uma perspectiva continuista, na qual o passado permite esclarecer o futuro que não é uma radical novidade136? Por outro lado, essas novas ferramentas influem sobre a concepção, a estrutura, a difusão e os usos dos livros escolares impressos, como mostram em evidência o grande número de estudos e pesquisas recentes137. Em seguida, parece que o inverso é igualmente verdade: Éric Bruillard sublinha que o modelo pregnante do manual tradicional se sobrepuja, de maneira mais inconsciente mas real, sobre a estrutura e a apresentação das novas ferramentas de ensino e de aprendizagem138.

Dessa forma, a diversificação da oferta dos instrumentos educativos não é somente uma conseqüência das evoluções técnicas: é expressão de uma evolução social e pedagógica. A diferenciação das funções didáticas acompanha sua divisão entre os suportes de natureza diversa; a coabitação do ensino escolar e das

135 Francesc Raventós Santamaría, José Luis Rodríguez Illera, «El nuevo software educativo», in Agustín Escolano Benito (dir.), Historia ilustrada del libro escolar..., op. cit., t. II, pp. 421-438. 136 Éric Bruillard, Bente Aamotsbakken, Susanne V. Knudsen, Mike Horsley (dir.), Caught in the Web or Lost in the Textbook. Eighth International Conference on Learning and Educational Media, Caen, IARTEM, 2006. 137 Mike Hornsley, Susanne V. Knudsen, Staffan Selander (dir.), "Has Past Passed?" Textbooks and Educational Media for the 21st Century, seventh IARTEM conference, Bratislava, september 24-27th 2003, Stockholm/Bratislava, Stockholm Institute of Education Press/IARTEM/Štátny Pedagogický Ústavéoul, 2005 (Stockholm Library of Curriculum Studies, 15). 138 Éric Bruillard, «Les manuels scolaires questionnés par la recherche», in Éric Bruillard (dir.), Manuels scolaires, regards croisés, Caen, Scéren/CRDP de Basse-Normandie, 2005, pp. 13-36.

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informações provenientes de outros recursos dilui as fronteiras da escola, apesar de que com o progresso dos métodos que favorecem iniciàtiva da criança e associam à pesquisa de documentos e à contrução dos saberes, o livro escolar deixa de ser uma referência única: ele perde, no Ocidente ao menos, uma parte de "autoridade" que estava investido até então139. Desde o fim dos anos 1970, Karl-Ernst Jeismann nota que a pesquisa não pode mais se acantonar somente sobre os livros escolares: deverá se interessar, portanto, a todos os meios de ensino (Unterrichtsmittel) que o complementem, o concorrem ou o substituem140.

4 Classificações e tipologias

A constituição em vários países de grandes instrumentos de pesquisa teve um papel fundamental no considerável desenvolvimento que a pesquisa sobre a história do livro e da edição escolar teve nestes últimos vinte e cinco anos141: coleção de textos oficiais relativos à política do livro escolar ou aos conteúdos disciplinares, repertórios das editoras escolares, das revistas pedagógicas e, sobretudo, dos manuais escolares142. São esses

139 David R. Olson, «On the Language and Authority of Textbooks», Journal of Communication, Winter 1980, n° 30, 1, pp. 186-197; Vagn Skovgaard-Petersen, «Educational Texts and Traditions. An overview», in Staffan Selander (dir.), Textbooks and educational media. Collected papers 1991-1995, Stockholm, IARTEM, 1997, p. 6. 140 Karl-Ernst Jeismann, «Internationale Schulbuchforschung: Aufgaben und Probleme», Internationale Schulbuchforschung. Zeitschrift des Georg-Eckert Instituts, 1, 1979, 1, pp. 7-22. 141 Alain Choppin, «L'histoire du livre et de l'édition scolaire: vers un état des lieux», Paedagogica Historica, vol. 38, n° 1, 2002, pp. 21-49. 142 Também foram repertoriados mais de duzentas bibliografias de manuais antigos, limitados a um domínio ou um período dado, visando o mais possível à exaustão, produzidos em quarenta e cinco países. Cinquenta sites dedicados à

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trabalhos sistemáticos de recenseamento que, não limitando o objeto a um nível, uma disciplina ou um curto período, nos permitem colocar as questões metodológicas ligadas à definição conceitual e à análise léxica, e, então, à tipologia dos manuais.

O testemunho de Alejandro Tiana Ferrer, um dos fundadores do programa de pesquisa MANES143, é muito esclarecedor sobre a função heurística inerente à todo inventário racional: "De um lado, proceder a pesquisa dos manuais e colocá-los em seguida em fichas permite estabelecer uma definição operatória do que entendemos por "manual", enquanto objeto bibliográfico sucetível de ser integrado em uma base de dados. Por outro lado, a evolução dos livros escolares editados permitem examinar os diversos gêneros, que podemos distinguir neste setor da produção editorial"144.

história dos manuais escolares, em que muitos são banco de dados de dimensão nacional ou internacional, são igualmente consultáveis on-line. Localiza-se uma apresentação de todos esses sites, como seu endereço eletrônico URL, em Paul Aubin, Alain Choppin, «Le fonti storiche in rete: i manuali scolastici», in Gianfranco Bandini, Paolo Bianchini (dir.), Fare storia in rete. Fonti e modelli di scrittura digitale per la storia dell'educazione, la storia moderna e la storia contemporanea, Firenze, Carocci, 2007, pp. 53-76 (Collana Studi Storici). A versão francesa desse documento está acessível no endereço eletrônico http://www.inrp.fr/she/pages_pro/choppin.htm 143 MANES (MANuales EScolares) é o programa nacional espanhol de pesquisa sobre manuais escolares: ver Paul Aubin, Alain Choppin, Fare storia in rete…, op. cit. 144 «Por una parte, el proceso de búsqueda de manuales y su consiguiente fichado han obligado a definir operativamente qué debe entenderse por manual, en cuanto objeto bibliográfico susceptible de integrarse en la base de datos. Por otra parte, la propia evolución de los libros escolares publicados ha obligado a contemplar los diversos géneros que pueden distinguirse en ese ámbito de la producción editorial»: Alejandro Tiana Ferrer, «Investigando la historia de los manuales escolares», in Alejandro Tiana Ferrer (dir.), El libro escolar..., op. cit., p. 43.

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4.1 Categorizar pelas práticas, ou pela intenção?

O livro escolar pode ser definido somente pelo seu uso. É a posição que adotam Dominique Julia ou Agustín Escolano Benito para o período do Antigo Regime: as escolas recorriam aos livros, mesmo que eles não tivessem claramente definidos como instrumentos pedagógicos conhecidos visando um ensino145. É possível considerar então que toda obra utilizada em uma instituição que ministra um ensino pode ser elevada à categoria dos livros escolares146. Mas, se nos apegamos a um só critério, ele bastar-se-á então, como nota, não sem humor, Ian Michael, que um professor entusiasta em um escola distribui aos seus alunos exemplares da Enciclopédia Britânica para fazê-la de um livro escolar, apesar dessa obra não ter sido redigida como tal147.

Nós abordamos essa questão para o domínio francês nos inícios dos anos 1980: estávamos dedicados a examinar a evolução da terminologia e havíamos proposto uma primeira classificação, sucetível de se inscrever em uma perspectiva globalizante e diacrônica, que levava em conta por sua vez a história do livro e a história da educação. Distinguimos assim duas categorias de produtos: de um lado, aqueles que foram intencionalmente reconhecidos pelo autor ou pelo editor para um uso "escolar", exclusivo ou não, e aqueles que tinham ou não foram efetivamente utilizados148; de outro, aqueles que não foram concebidos com fins

145 Dominique Julia, «Livres de classe et usages pédagogiques», in Henri-Jean Martin, Roger Chartier (dir.), Histoire de l'édition française, op. cit., t. II, pp. 468-497; Agustín Escolano Benito, «Libros para la escuela. La primera generación de manuales escolares», in Agustín Escolano Benito (dir.), Historia ilustrada del libro escolar..., op. cit., t. I, pp. 19-46. 146 Reinhard Horner, «Schulbücher und Bücher in der Schule», Erziehung und Unterricht, 120 Jahrgang, Heft 3, 1970, pp. 152-157. 147 Ian Michael, «Aspects of Textbook Research», art. cit., p. 5. 148 Essa última precisão é capital porque, em vários países, a regulamentação submetida ou a submeter-se a utilização dos livros escolares à uma autoriazação prévia da administração. Um número muito grande de obras conhecidas (e

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educativos, mas que adquiriram posteriormente uma dimensão escolar, seja pelo uso, que não podemos precisar se foi permanente ou generalizado no contexto da escola, seja em virtude de uma decisão administrativa que lhe conferiu explicitamente149.

Esta distinção entre a intenção de uso e o uso efetivo constitui uma linha forte de separação entre os estudos que examinam o manual sob o ângulo da produção e da difusão (isto é, do prescrito, do normativo) e aqueles que o consideram sob o ângulo dos usos (isto é, das práticas) e da recepção. Ela foi retomada (e discutida) ultimamente por vários pesquisadores150, como David Hamilton: "O problema conceitual fundamental é sem dúvida descobrir um meio de distinguir os manuais (textbooks) dos livros escolares (schoolbooks). Minha posição pessoal, e não é admirável, é que os manuais refletem manifestatamente as preocupações pedagógicas. O que significa que um manual não é simplesmente um livro utilizado na escola. É, de preferência, um livro que foi conscientemente concebido e organizado para servir aos objetivos de instrução"151. Para Christopher Stray, esta distinção resulta de uma evolução histórica: "A distinção entre impressas na maioria das vezes) para uso das classes não são ou não foram jamais introduzidas, por não terem obtido a autorização necessária. 149 Alain Choppin, L'histoire des manuels scolaires…, op. cit., pp. 2-6. Nós tivemos a ocasião de rever e aprofundar essa reflexão alguns anos mais tarde, em Les manuels scolaires: histoire et actualité, op. cit., pp. 6-21. 150 «O livro "escolar" é, seja um livro utilizado para ensinar e aprender, seja um livro propositadamente feito para ensinar e aprender»: Magda Becker Soares, «Um olhar sobre o livro didático», Presença Pedagógica (Belo Horizonte), 2, 12, setembro-outubro 1996, p. 57; ver também, entre outros, Tulio Ramírez, «El texto escolar como objeto de reflexión e investigación», Revista Docencia Universitaria (Caracas), 3, 1, 2002, p. 104. 151 «Perhaps the fundamental conceptual problem is to find a way of distinguishing textbooks from schoolbooks. Not surprisingly, my own stance is that textbooks visibly reflect pedagogic considerations. That is, a textbook is not just a book used in schools. Rather, it is a book that has been consciously designed and organised to serve the ends of schooling»: David Hamilton, «What is a textbook?», art. cit., p. 5.

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textbooks e schoolbooks não é somente fruto de um exercício de definição puramente escolástica. É o resultado de um processo histórico que podemos acompanhar através do uso das palavras"152. Segundo Stray, o termo schoolbook, presente na Grã Bretanha desde 1683, com um uso corrente a partir de 1770, apesar que textbook (ou seu sinônimo text-book) não aparece antes de 1830153.

Admitir que os termos manual ou textbook designam uma obra conhecida e produzida para a instrução sem implicar uma destinação escolar pode resultar algumas aparentes redundâncias de expressões como manual escolar ou school textbook, mas esta distinção lexical parece mais teórica que real, e é raramente respeitada, mesmo pelos pesquisadores.

É o critério intencional, que é o mais seguidamente fixado por todos que procuram isolar a produção escolar, e, em primeiro lugar, os editores eles mesmos. A tipologia que elaborou na França o Syndicat national de l’édition [Sindicato Nacional da Edição] (mas encontramos semelhanças na maioria dos países) para elaborar suas estatísticas anuais da produção e das vendas da edição nacional se inscreve sob uma perspectiva econômica. Os livros escolares formam uma rubrica particular, porque correspondem, independentemente de seus conteúdos, um mercado específico e claramente delimitado: esta rubrica "compreende, de uma parte, todas as obras indicadas e que correspondem aos programas estabelecidos pelo Ministério da Educação National e que são obrigatoriamente utilizados pelos alunos em classe, de outra parte, as obras paradidáticas"154. As subdivisões (ensino pré-elemetar e primário; ensino secundário, ensino técnico; e, depois no início dos anos 1970, paradidáticos) não remete à considerações pedagógicas ou disciplinares, mas às características próprias de cada segmento de mercado (programas e

152 Christopher Stray, «Quia nominor leo…», art. cit., pp. 73-74. 153 Ibid. 154 Syndicat national de l'édition, L'édition de livres en France, op. cit., pp. 59 sqq.

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instruções, categoria de prescritores; tipo de financiamento – municipalidades, Estado, conselho regional, famílias; circuito de distribuição; etc.): "Do ponto de vista dos editores, o paraescolar é um conceito comercial, não um conceito intelectual", sublina o brasileiro Kazumi Munakata155. É porque os "livros do professor" – geralmente produzidos no bojo do livro de aluno pelos mesmos autores – são classificados na rubrica "livros científicos e técnicos: livros de ciências humanas" com as obras gerais sobre educação.

O critério intencional é também privilegiado pelos historiadores que procuram efetuar o recenseamento dos manuais. Mas o manual escolar não é um produto fixo, imutável: sua existência, funções, forma, seus usos dependem de múltiplos fatores nos quais os contextos geográfico, histórico e cultural têm, apesar de outros, um papel determinante. Em uma perspectiva histórica, internacional, e a fortiori comparativa, não posso evitar, que temos, uma certa aproximação.

A subjetividade tem algum papel na definição do manual. O britânico Geoffrey Hugh Harper, se interroga, há quase um quarto de século, sobre a definição daquilo que convém ser considerado como livro escolar (textbook). Escreve: "Em síntese, os livros indubitavelmente escolares podem fundir-se na literatura de recreação, no mesmo título que as obras conhecidas para educação doméstica, ou nos textos literários, que comportam alguma ou nenhuma anotação para uso das crianças; ou, para o topo do fracasso educativo, os livros escolares podem não se distinguir mais das obras de pesquisa (em ciência, por exemplo)". E Harper conclui: "Não há provavelmente uma regra geral que permita "definir"o livro escolar sem estabelecer uma fronteira

155 «Do ponto de vista dos editores, paradidático é uma concepção comercial e não intelectual»: Kazumi Munakata, Produzindo livros didáticos e paradidáticos, op. cit., p. 102.

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arbitrária e irrealista […]. Colocar os livros de um lado ou de outro […] é uma tarefa de subjetividade"156.

Mas a definição do manual tem também a ver com o estado dos conhecimentos históricos: fazendo o ponto sobre os "serviços" que possibilitam pesquisar os repertórios dos manuais escolares, Michel Berré se pergunta sobre a maneira como eles são elaborados, sublinha seu interesse, mas mostra também seus limites. Para constituir seu repertório sobre os manuais de ensino da língua francesa em flamengo, publicados na Bélgica de 1831 à 1900, apoia-se na identificação da intenção de uso: considera dois critérios, aquele da menção explícita e aquele da evidência do conteúdo. Mas, constata, "na nossa procura pelos manuais, nós também encontramos ‘obras bizarras’ que não se identificam com aquelas que conhecemos hoje. A mudança concerne mais do estatuto escolar da obra que da divisão disciplinar na qual se inscreve. […] Em muitos casos, tivemos a impressão ao examinarmos alguns manuais que a nossa dificuldade em ‘dar sentido’ às obras elogiadas pela nossa maneira atual de pensar a escola e de representarmos seu passado porque queremos dar uma resposta satisfatória à questão: "Mas a que podem elas bem servir?"157. Da mesma forma, comparando o conteúdo de seu repertório à uma série de listas elaboradas em nível local, listas que são sucetíveis de esclarrecer sobre os manuais que podem ter sido

156 «Briefly, undoubted textbooks may shade off into entertaining literature, with books intended for home education along the continuum somewhere; or into the literature "text" with little or no annotation for pupils; or, at the upper hand of the educational scale, textbooks may become indistinguishable from research monographs (in science, for instance). There is probably no general way to define "textbook" without creating an arbitrary or unrealistic boundary. […] The assignment of books […] will normally be a subjective affair»: Geoffrey Hugh Harper, «Textbooks: An under-used Source», art. cit., p. 33. 157 Michel Berré, «Les manuels scolaires dans l'histoire de l'enseignement des langues: intérêt et limites des répertoires pour la constitution d'un domaine de recherche», in Monique Lebrun (dir.), Le manuel scolaire…, op. cit., CD-Rom, partie 8, texte 1, p. 7.

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utilizados pelos professores, constatamos divergências entre a lista de títulos que foram destinadas (intenção de uso) e aquelas das obras que foram verdadeiramente utilizadas (presunção de uso).

4.2 O recurso a outros critérios

Alguns pesquisadores introduziram critérios de natureza regulamentória, pedagógica, editorial ou ainda econômica para constituir seu corpus. Bernat Sureda García, recenseou a produção escolar das Ilhas Baleares, adotando, além do critério intencional (isto é, intenção deliberada dos autores ou dos editores de publicar uma obra para uso do ensino), dois outros critérios: o critério formal e o critério legal158. São considerados como livros escolares, decorrente do critério formal (criterio formal), todas as publicações em que o conteúdo coincide com uma ou mais matérias ensinadas em um ou mais níveis de ensino e em que a estrutura se adapta ao curso, lições ou temas de um programa escolar. O pesquisador estima que esse tipo de obra corresponde ao livro escolar no sentido mais estrito, mas considera também deve ser levados em conta os programas que apresentam, dando mais ou menos desenvolvimento aos conteúdos de uma ou mais disciplinas. As publicações que satisfazem o critério legal (criterio legal) são aquelas que obtiveram da autoridade competente na área de educação, seja ela civil ou religiosa, nacional ou local, a autorização (a fortiori a obrigação) de ser utilizada no ensino. Sureda nega ao contrário todo o estatuto escolar das obras que, mesmo se seu uso é atestado nas classes, não apresentam nenhum dos três critérios (intencional, formal ou legal) que definiu.

Para Gabriela Ossenbach Sauter, da UNED de Madrid, e Miguel Somoza, da Universidade de Buenos Aires159, os

158 Bernat Sureda García, Jordi Vallespir Soller, Elies Allies Pons, La producción de obras escolares en Baleares..., op. cit., pp. 13-14. 159 Gabriela Ossenbach Sauter, Miguel Somoza, Los manuales escolares como fuente para la historia de la educación en América Latina, op. cit., p. 20.

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manuais têm em comum cinco características: a intenção manifestada pelo autor ou editor de destinar expressamente a obra para uso escolar; a apresentação sistemática dos conteúdos; a adequação ao trabalho pedagógico, a complexidade dos conteúdos deve ser proporcional à maturidade intelectual e afetiva dos alunos; a conformidade com a regulamentação que há sobre os conteúdos de ensino, sua extensão e a maneira que eles devem ser tratados; a intervenção administrativa e política do Estado, pelo conjunto da regulamentação evocada anteriormente (seleção, hierarquização ou exclusão dos saberes e dos valores) e/ou da autorização explícita ou implícita definida após a publicação da obra.

4.3 As tentativas de tipologias

A preocupação de multiplicar os critérios de identificação (as características partilhadas pelo conjunto dos objetos recenseados), está geralmente de par com aquela de definir, no conjunto da população inventariada, as categorias distintas. Diversas tipologias, mais ou menos complexas, têm proposto considerar uma parte ou o conjunto da produção escolar global160. Nós retiramos como exemplo aquelas que constituíram Antonio Viñao Frago e Agustín Escolano Benito, porque elas integram as mais elaboradas e originais.

A tipologia apresentada por A. Viñao Frago repousa sobre a lista de denominações as mais usuais empregadas para designar os livros escolares espanhóis na época de sua produção161.

160 Jacques Priouret, Réflexion sur le statut paradoxal du livre scolaire, thèse sous la dir. de Guy Avanzini, Université Lyon II, 1977, pp. 514-529; Ian Michael, The Teaching of English: from the sixteenth century to 1870, Cambridge, Cambridge University Press, 1987; Alain Choppin, Les manuels scolaires: histoire et actualité, op. cit., pp. 142-148; etc. 161 Antonio Viñao Frago, «La Catalogación de los manuales escolares y la historia de las disciplinas a través de sus denominaciones», in Alejandro Tiana Ferrer (dir.), El Libro escolar, reflejo de intenciones políticas e influencias pedagógicas, op. cit., p. 451-469.

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Mas não é um simples inventário: esse trabalho original sobre o léxico se inscreve claramente no quadro da história das disciplinas, de sua gênese, evolução e das mudanças que permitem entrever a diversidade de suas designações, seus reagrupamentos ou suas diferenciações. Viñao Frago afirma que esse trabalho pode servir não somente para catalogar os manuais escolares, mas pode também constituir um material de base para determinar a possível interação e as influências recíprocas entre o ato oficial das disciplinas e os títulos e os conteúdos dos manuais escolares, ou ainda para analisar quais termos – quais adjetivos, por exemplo – vêm se juntar aos termos utilizados para designar as disciplinas.

A. Escolano Benito tenta, por sua parte, listar os diversos critérios segundo os quais os manuais escolares (manuales escolares) podem ser classificados em relação à evolução do sistema escolar162. Depois de assinalar a distinção tradicional entre os livros de leitura (libros de lectura) e os livros disciplinares (libros de materias)163, conclui que os manuais escolares podem ser classificados, decorrente dessa repartição, segundo outros critérios: em função das disciplinas ou das matérias do programa que tratam, do grau ou do nível aos quais se destinam, do tipo de atividade didática que indicam (estudo, leitura, trabalho, consulta) e dos gêneros ou modelos textuais que adotam para transmitir seus conteúdos. Ele distingue seis tipos que se diferenciam pela sua estrutura, seus modos de expressão e os procedimentos didáticos aos quais recorrem; de fato, esta tipologia se apóia também sobre critérios de natureza pedagógica.

Mas essas tipologias, qualquer que seja o interesse, não são universais: elas variam segundo os ares geográficos e culturais, como atestam especialmente as dificuldades para a constituição de

162 Agustín Escolano Benito, «Tipología de libros y géneros textuales en los manuales de la escuela tradicional», ibid., pp. 439-449. 163 Fernando Sainz, El libro en la enseñanza, op. cit.; Adolfo Maíllo, Los libros escolares, Madrid, Rivadeneyra, 1967.

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grades de análise comuns à interrogação dos bancos de dados que recenseiam a produção escolar de diversos países164.

* * *

Então, definitivamente, quando o manual escolar aparece? Não parece certa a questão assim formulada, essa questão tem um sentido, mas em todo caso, ela sucita muitas respostas. A opinião mais correntemente admitida é colocada por Antonio Petrus Rotger: "Resulta que podemos, na nossa cultura ocidental, distinguir dois períodos na história do livro escolar ou do livro de texto: aquele que se reporta aos séculos XVI, XVII e XVIII, e aquele que está ligado às mudanças que são produzidas nos séculos XIX e XX. No primeiro período, aparece a imprensa e a tecnologia que o torna possível, assim como o ensino, a extensão e a oficialização das línguas vernáculas. O segundo está associado à renovação das técnicas de impressão e ao reconhecimento do livro escolar como instrumento de base da difusão e da organização democrática do ensino"165. 164 Um sistema de interrogação simultânea («multiopac») dos bancos de dados recenseando a produção nacional dos manuais escolares (França, Espanha, Bélgica, Itália, Alemanha, Canadá anglo e francofone, Brasil…) está em curso de realização. Cf. note 138. 165 «De ahí que, en nuestra cultura occidental, podamos diferenciar dos períodos en la historia del libro escolar o libro de texto: el que hace referencia a los siglos XVI, XVII y XVIII, y el que va asociado a los cambios producidos en los siglos XIX y XX. En el primero de ellos surge la imprenta y la tecnología que la hizo posible, así como la enseñanza, extensión y formalización de las lenguas vernáculas. El segundo período va asociado a la renovación de las técnicas de impresión y a la consideración del libro escolar como instrumento básico para la difusión y organización democratica de la enseñanza»: Antonio Petrus Rotger, «Tecnología del libro escolar tradicional: diseño, iconografía y artes gráficas», in Agustín Escolano Benito (dir.), Historia ilustrada del libro escolar..., op. cit., t. I, pp. 102-103. Um fenômeno comparável se observa, um pouco mais tarde, nos países do Norteda Europa. Cf. Vagn Skovgaard-Petersen, «Educational Texts and Tradition…», in Staffan Selander (dir.), Textbooks and educational media, op. cit., pp. 1-8.

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Mas outros fatores podem explicar esta ruptura – ou antes essa mutação –, especialmente a formação dos Estados nações, o advento do capitalismo da edição e a difusão dos novos métodos de ensino. Os novos Estados têm, para a maioria, procurado organizar e desenvolver os sistemas educativos específicos e a instaurar regulamentos particulares, favorecendo assim a constituição de literaturas escolares nacionais para divulgar, senão sempre uma língua única, ao menos um conjunto de referências comuns166. Por outra via, o movimento de massificação do ensino popular que conhecemos, cada um segundo seu ritmo, os países europeus e algumas de suas (antigas) colônias, abriram ao mundo da edição um mercado potencial considerável próprio à fornecer capitais e idéias, provocando uma especialização e uma concentração da produção. Como assinala oportunamente Christopher Stray, o papel do mercado da edição é então particularmente importante nos países onde, como na Inglaterra no século XIX, o Estado não se preocupa que muito tardiamente das questões de educação167. Por fim, o interesse manifestado, a partir da metade do século XVIII, por tudo que se trata da educação da infância, mais a renovação dos métodos pedagógicos (especialmente com o progresso do ensino simultâneo, que supõe que todos os alunos devem estar munidos de instrumentos uniformes), provocam um crescimento, mas também uma racionalização, uma normalização, uma estandartização da produção impressa escolar.

166 Anne-Marie Thiesse, La création des identités nationales. Europe XVIIIe-XIXe siècles, Paris, Seuil, 1999 (L'Univers historique); Patrick Cabanel, Le Tour de la nation…, op. cit. 167 Christopher Stray, «Quia nominor leo…», art. cit., p. 75. Esta particularidade não é sem dúvida estranha à importância que os pesquisadores anglo-saxões, que se interessam pelos manuais – e especialmente os historiadores – concordam, contrariando as tradições francesa, alemã ou japonesa, as questões econômicas e comerciais.

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Mas esta análise, nós já assinalamos, não é partilhada por todos os historiadores168: todas essas considerações, que se referem somente à cultura ocidental e onde a lista pode ser seguramente aumentada, remete à concepções divergentes do que é ou do que foi o livro escolar. Essa definição varia segundo os lugares, as épocas, os suportes, os níveis e as matérias de ensino, as vêzes dos contextos políticos, econômicos, social, cultural, estético, … mas também, e sobretudo, em função da problemática científica no qual se insere. Como todo objeto de pesquisa, o livro escolar não é um dado, mas o resultado de uma construção intelectual: não pode então ter uma definição única. É, ao contrário, indispensável explicitar os critérios que presidem esta elaboração conceitual, porque uma das principais insuficiências – muitas vezes denunciadas – da pesquisa histórica sobre os manuais escolares, e especialmente da pesquisa comparada169, reside sempre, como assinala ainda recentemente Annie Bruter, "no

168 Anthony T. Grafton situa a aparição do manual na Renascença, período que os colégios jesuítas adotam e difundem o método de ensino simultâneo, mas também o período durante o qual se elabora um novo tipo de discurso pedagógico, inspirado especialmente nos trabalhos de Pierre de la Ramée sobre a organização espacial dos conhecimentos: «Teacher, text and pupil in the Renaissance classroom; a case study from a parisian college», History of Universities, 1, 1981, p. 47. O historiador francês Louis Trénard localiza o nascimento do manual escolar moderno na França nos anos 1760, com a tomada de consciência de uma reforma necessária do sistema educativo: «Une Révolution… La naissance du manuel scolaire, 1760-1800», Les Cahiers aubois d'histoire de l'éducation, 1988, n° spécial 10-a, pp. 51-80. Segundo Hans Christian Harten, o manual escolar aparece nos primeiros anos da revolução, com a publicação dos primeiros catecismos republicanos: Les Écrits pédagogiques sous la Révolution. Répertoire établi par Hans Christian Harten avec la collaboration du Service d'histoire de l'Éducation, sous la direction d'Alain Choppin, Paris, INRP, 1989. 169 Jason Nicholls (dir.), School History Textbooks across Cultures: International Debates and Perspectives, Oxford, Symposium Books, 2006 (Oxford Studies in Comparative Education, 15-2).

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caráter de alguma forma natural, ahistórico, dos manuais escolares aos olhos de muitos historiadores"170.

Alain Choppin é professor pesquisador no Service d'histoire de l'éducation (INRP-ENS). Suas pesquisas, que se articulam em torno da constituição de banco de dados Emmanuelle (recenseamento da produção dos manuais escolares franceses desde 1789), relativas à história do livro e da edição escolar e universitária, sob seus múltiplos aspectos (regulamentação, concepção, produção, difusão, recepção, usos, etc.). Lançado em 1979, este programa pioneiro e ambicioso tem inspirado e continua a inspirar a pesquisa em numerosos países estrangeiros. E-mail: [email protected]

Maria Helena Camara Bastos é professora Titular em História da Educação. Atualmente é professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Pesquisadora CNPq. Atua na área História da Educação, com pesquisasnos seguintes temas: ensino laico e liberdade do ensino no século XIX; história de impressos de educação e de ensino; livros, leitura e leitores na escola brasileira.E-mail: [email protected]

Recebido em 20/10/2008 Aceito em 15/11/2008

170 Annie Bruter, «Les abrégés d'histoire d'Ancien Régime en France (XVIIe-XVIIIe siècles)», in Jean-Louis Jadoulle (dir.), Les manuels scolaires d'histoire, op. cit., p. 12.

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LAS UNIVERSIDADES LIBRES Y POPULARES EN PORTUGAL Y EL PROBLEMA DE LA

CULTURA POPULAR1 Rogério Fernandes

Resumen El movimiento de las Universidade Libres y Populares en Portugal no está devidamente estudiado, apesar de su importancia para la historia social y la historia de la educación. Existen, ciertamente, algunos trabajos monográficos parciales, en forma de libro impreso o fotocopiado, y artículos dispersos por periódicos o revistas, traziendo informaciones más o menos valiosas. Pretendemos, sin embargo, de un análisis de conjunto con la necesária profundidad, que permita avaliar la evolución de sus unidades, la acción desenvuelta por ellas y el significado del papel que desempeñaron en relación a la cultura popular. El estudio aqui presentado objetiva caracterizar una de las universidades populares y libres que se criaron en Portugal, al final del siglo XIX y dibujar el trayecto cultural y político de cada una de ellas, privilegiando las más importantes. Con ese marco, se busca lanzar un mirar crítico sobre las principales Universidades del Norte y centro del país, localizadas en el Puerto, en Lisboa, Setúbal y Coimbra, intentando caracterizar la orientación política-ideológica, los objetivos pedagógicos y culturales visados, los medios a que recurrieron y la identidad política de sus promotores.

Palabras Clave: Universidades libres, Universidades populares, Historia social, Historia de la educación, Portugal.

AS UNIVERSIDADES LIVRES E POPULARES EM PORTUGAL E O PROBLEMA DA CULTURA POPULAR

Resumo O movimento das Universidade Livres e Populares em Portugal não está devidamente estudado, apesar de sua importância para a história social e a história da educação. Existem, é certo, alguns trabalhos monográficos parciais, em forma de livro impresso ou fotocopiado, e atigos dispersos por periódicos ou revistas, trazendo informações mais ou menos valiosas. Pretendemos, no entanto, de uma análise de conjunto com a necessária profundidade, que permita avaliar a

1 Este estudo foi publicado originalmente em Historia de la Educación. Revista Interuniversitaria. Salamanca. Ediciones Universidad de Salamanca.

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evolução de suas unidades, a ação desenvolvida por elas e o significado do papel que desempenharam em relação à cultura popular. O estudo aqui paresentado objetiva caracterizar uma das universidade populares e livres que se criaram em Portugal, no final do século XIX e desenhar o trajeto cultural e político de cada uma delas, privilegiando as mais importantes. Com esse marco, busca-se lançar um olhar crítico sobre as principais Universidades do Norte e centro do país, localizadas no Porto, em Lisboa, Setúbal e Coimbra, intentando caracterizar-lhes a orientação política-ideológica, os objetivos pedagógicos e culturais visados, os meios que que recorreram e a identidade política de seus promotores.

Palavras-chave: Universidades livres; Universidades populares; História social; Historia da educação; Portugal.

THE INDEPENDENT AND POPULAR UNIVERSITIES IN PORTUGAL AND THE PROBLEM OF POPULAR

CULTURE Abstract The movement of Independent and Popular Universities in Portugal is not enough studied if we consider how important it is for Social History and for the History of Education. We have not yet a deep global analysis which enables to consider the evolution of theirs units, the actions that have started and the meaning of their role compared to popular culture. In the following study, we will try to characterize each Popular or Independent University create in Portugal from the late XIXth century, and give the cultural and political ways of each university, focussing on the most importants ones. Therefore, we will aim at observing the main Northern and Central Universities situated in Porto, Lisbon, Setubal and Coimbra, giving their ideological and political direction, and their pedagogical and cultural objectives, the means they use and their promoters ‘ political identity.

Keywords: Independent Universities; Popular Universities; Social history; Education history; Portugal.

LES UNIVERSITÉS LIBRES ET POPULAIRES AU PORTUGAL ET LE PROBLÈME DE LA CULTURE

POPULAIRE Résumé Le mouvement des Universités Libres et Populaires au Portugal n’est pas suffisamment étudié, malgré son importance pour l’histoire sociale et pour l’histoire de l’éducation. Il existe certes quelques monographies partielles en forme de livre imprimé ou photocopié et des articles dispersés dans des périodiques ou des revues, lesquels apportent des informations ayant plus ou moins d’intérêt. On a

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l’intention cependant de faire une analyse d’ensemble d’une nécessaire profondité, qui permette d’évaluer l’évolution de leurs unités, l’action qu’elles développent et le sens du rôle qu’elles ont joué par rapport à la culture populaire. Cette étude a pour but de caractériser l’une des universités populaires et libres créées au Portugal à la fin du XIXème siècle et de dessiner le parcours culturel et politique des autres, tout en privilégiant les plus importantes. À partir de cette base, l’on essaie de regarder critiquement les principales Universités du Nord et du centre du pays, situées à Porto, à Lisbonne, à Sétubal et à Coïmbre, en tentant de caractériser leur orientation politico-idéologique, leurs objectifs pédagogiques et culturels, les moyens qu’elles ont utilisés et l’identité politique de leurs dirigeants.

Mots-clés: Universités libres; Universités populaires; Histoire sociale; Histoire de l’éducation; Portugal.

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El movimiento de las Universidades Libres y Populares, del mismo modo que la historia de la educación de adultos, no fue aún objeto de las necesarias investigaciones en Portugal. Es cierto haber sido en escaso número las instituciones de esa categoría que funcionaron en el país. A pesar de eso, se justificaría que la comunidad de historiadores hubiera escuchado la llamada de SÁ (1991) en el sentido de prestarse atención a aquel sector educativo, tanto más que el asunto no sólo interesa a la historia de la educación como también a la historia social2. De este modo, poco sabemos del conjunto de experiencias llevadas a cabo en el pasado. Además de unos cuantos artículos, a veces repetitivos de conocimientos ya alcanzados sobre la cuestión, cabe hacer referencia a los trabajos de FERNANDES (1986, 1993), SAMPAIO (1975-77,1981), BANDEIRA (1994), NEVES (1996) y QUINTAS (2000). Tales estudios abordan apenas un número limitado de esas instituciones de educación popular. Son los casos de FERNANDES, que elaboró una monografía sobre la Universidad Libre para la Educación Popular en Lisboa y analizó algunos aspectos del funcionamiento de la Universidad Popular de Oporto, de BANDEIRA, a quien debemos el más completo escrutinio de la Universidad Popular Portuguesa desde la fundación hasta 1920, o los casos de SAMPAIO, que se ocupó en especial de la misma Universidad, de NEVES, cuyo tema se centró en el pensamiento educacional de algunos personajes de relieve en estos establecimientos de educación popular y finalmente el de QUINTAS, que publicó en un periódico de Setúbal una serie de tres artículos sobre la primera experiencia de la Universidad Popular en aquella ciudad. Portugal está, por tanto, en una situación muy incipiente y sin medida común con la de España, por ejemplo,

2 Sobre las relaciones de la historia de la educación con la historia social, se mantienen pertinentes las palabras de GUEREÑA (1991,1993). Nótese, mientras, la formación del «Project on the Comparative International History of Left Education», en la secuencia del 18º Congreso Internacional de Ciencias Históricas en Montreal (Canadá). Ver a propósito GETTLEMAN (1999).

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caracterizada por una notable profusión de trabajos de elevado nivel cualitativo sobre esta categoría de instituciones.

Cuadro socio - cultural del período

El surgimiento de las primeras iniciativas en este sector de la educación popular de adultos en Portugal coincidió con una fase de desarrollo industrial que, desde 1875, venía acentuándose. La clase operaria conocía entonces un período de ascensión demográfica e de concentración en las principales ciudades. Entre 1864 y 1890, cuanto al número de operarios, Lisboa pasó del índice 100 para el índice 151, Oporto de 100 para 160,1 y Setúbal de 100 para 137,8. Se calcula en 180 000 el número de operarios, un quinto de los cuales menores (CASTRO, 1978, p. 36, 38 e 52).

Las condiciones de vida de los trabajadores se agravaron a lo largo de la centuria de Ochocientos. En los cincuenta años que van entre 1860 a 1910, los sueldos nominales crecieron pero no tanto como los precios de los artículos de consumo, por lo que, dice CASTRO, el sueldo real bajó (Id., p. 186). La alta del coste de vida excedió para los trabajadores portugueses que la de la mayor parte de sus colegas extranjeros (Id., p. 189).

En este cuadro, se comprende que la situación de la clase operaria haya sido acompañada por la implantación de la asociación, instrumento de defensa de los intereses de los trabajadores. El mismo historiador nos invita a mirar los periódicos portugueses de tipo profesional del siglo XIX, sobretodo a partir 1850, especialmente allá de 1869, fecha en que la industria empezó a afirmarse entre nosotros, a fin de registrar las frecuentes apelaciones de elementos operarios con la perspectiva de constituir asociaciones profesionales de que ellos mismo fueran poseedores, con vista a la solución de los respectivos problemas, así como el proceso de nacimiento de esas instituciones, de inicio de tipo mutualista, incluyendo, eventualmente, un componente de

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acción cultural. Castro menciona a propósito la creación de la Associação dos Operários, en 1850 y del Centro Promotor de Melhoramentos das Classes Laboriosas, fundado en 1852 (Id., p. 65).

El mismo historiador recuerda justamente las consecuencias culturales que acompañan el proceso de desarrollo de la clase operaria, llamándonos la atención «para el necesario reflejo que transformaciones tan profundas traen al mismo espíritu de las poblaciones. el poder y la atracción de los centros industriales y urbanos, la movilidad de la población, la desaparición de la dependencia personal y de las relaciones feudales y patriarcales, la concentración de la producción y los progresos técnicos, todos estos factores van necesariamente afectando la manera de encarar la vida y los problemas por parte de las grandes camadas de población» (Id., p. 65).

Bajo el punto de vista cultural, el movimiento asociativo operario procuraba participar de la cultura de las clases hegemónicas, no habiendo, al tiempo, un «choque agudo entre las clases sociales (…) » (Id., p. 78). La mano de obra infantil era largamente utilizada en la industria, perjudicando obviamente la escolaridad. También en la población rural, 70% de la cual era asalariada, el trabajo infantil desempeñaba un papel de importancia capital (GAMEIRO, 1997). La tasa de analfabetismo, que en 1864 se calculaba en 88%, era aún de 75% en 1910 (RAMOS, 1993, p. 231, Tabla nº 29).

Dinamizado por vanguardias operarias, la asociación procuró dar una respuesta al problema. Esos elementos más aclarados de las hileras del proletariado no se encontraron solos. Las instituciones mutualistas y culturales admitía muchas veces la proyección de individuos procedentes de la pequeña burguesía intelectual, como fue el caso del periodista y político António Rodrigues Sampaio3. El florecimiento de los ideales masónicos,

3 António Rodrigues Sampaio (1806-1882) es considerado el más ilustre periodista del liberalismo Portugués. Fue diputado, ministro do Reino y

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teniendo en el centro la doctrina del Iluminismo y consecuentemente la defensa de la instrucción pública como instrumento de progreso, favoreció las alianzas entre la clase operaria y elementos progresistas de la pequeña burguesía. Aunque en este caso no existan pruebas de interferencias de la masonería en la creación de la agremiación, la Sociedade de Instrução dos Operários em Coimbra, fundada en 1851 por estudiantes universitarios, con el apoyo del proletariado de coimbra, ejemplifica la colaboración de clase en el plano de la cultura (FERNANDES, 1990)4. A finales de 1852, una «tienda» masónica entre tanto fundada, hermanando estudiantes y operarios, se decidió desde luego ayudar la Sociedade de Instrução. Dinâmica bien diferente a la de las escuelas nocturnas creadas por la Associação Promotora de Educação Popular (1858), apoyada por figuras de relieve del medio de Coimbra y también por personalidades como Rodrigues Sampaio o António Feliciano de Castilho5, destinada a trabajadores manuales de las zonas rurales de los alrededores de la ciudad.

El movimiento cultural popular no resultó apenas de la intervención de personalidades que hacían profesión de fe de la asociación, como era el caso de aquellas que acabamos de referir. Instituciones cuyos propósitos y programas se reclamaban del socialismo, del republicanismo y del anarquismo, íntimamente conectadas a la pequeña burguesía y al proletariado, contribuyeron a su vez, para el incremento de ese movimiento.

Presidente del Consejo de Ministros. Su política fue siempre en el sentido de la defensa de la descentralización, del asociativismo y de la instrucción popular, debiéndosele la célebre reforma de la enseñanza primaria de 1878. 4 Algunos de esos estudiantes vendrán a ser personalidades notables en los campos de la política, de la enseñanza y de la ciencia. 5 António Feliciano de Castilho (1800-1875) fue poeta, periodista y pedagogo, a quien se debe un método de enseñanza de la lectura que quedó celebrizado en Portugal y en Brasil en el siglo XIX.

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Cuanto a la Iglesia Católica, son manifiestos su atraso y debilidad en el plano de la acción social y socio-cultural entre los operarios en Ochocientos (VOLOVITCH, 1982, pp. 207 e segs.).

Origen de las universidades populares

Las primeras iniciativas portuguesas de creación de esta categoría de instituciones fueron precedidas por la fundación de cursos diurnos y nocturnos, destinados a adultos y a veces a adolescentes, así como por la organización de conferencias sobre los más diversos temas literarios, históricos, científicos, etc.. Desde temprano, sin embargo, hubo quien se refiriese a experiencias extranjeras llevadas a cabo en el sector de la educación de adultos a nivel institucional superior. Entre ellos está Francisco Adolfo Coelho6, que evocó el movimiento de la University Extension en Inglaterra y las llamadas folk-hogskolan, universidades populares de los escandinavos, destinadas a asegurar instrucción complementar de segunda oportunidad, entre los 18 y los 20 años de edad. Otra referencia se debe a Bernardino Machado7, que en 1897, en el discurso de inauguración de los cursos para operarios del Instituto de Coimbra colocó como ejemplo admirable Inglaterra, donde existían «palacios para la cultura del proletariado» y donde las Universidades difundían «por los barrios y regiones industriales del país no solo misiones docentes, pero hasta mismo colainas de profesores, que van permanecer demoradamente entre el pueblo trabajador».

Otros intelectuales republicanos intentaron colocar en pié instituciones del mismo tipo, como fue el caso en 1904 del

6 Francisco Adolfo Coelho (1847-1919). Cf. FERNANDES (1996), pp.169-172. 7 Bernardino Machado (1851-1944). Cf. FERNANDES (1996), pp. 177-180.

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periodista Heliodoro Salgado8, miembro del Comité de los Libres Pensadores, de orientación masónica. El programa de una Universidad Libre (o Popular), a instalar en Lisboa, llegó a ser publicado en el diario republicano A Vanguarda y anunciada la fecha de su entrada en funcionamiento. El declarado propósito de la institución era la difusión del «libre-pensamiento», influyendo en la educación portuguesa y «libertando el pueblo de los obstáculos autoritarios y religiosos (…)». Tres años después, en el ámbito de la Liga Nacional de Instrucción, igualmente relacionada al republicanismo y a la masonería resurge la idea de una Universidad Popular, de esta vez bajo la dirección de Tomaz Cabreira9, entre cuyos fines, se previa el desarrollo de la enseñanza popular mediante conferencias, cursos libres, lecturas, palestras, conciertos, visitas a museos, fábricas y excursiones de estudio, sin exclusión de las «proyecciones luminosas». Tal proyecto surgía en el momento de la crisis universitaria de Coimbra de 1907 (XAVIER, 1962; CORREIA, 1965), en cuyo cuadro los estudiantes pugnaban por una «universidad libre» en el sentido de liberación de las corrientes medievales que aún regían la única universidad oficial portuguesa, una universidad, se escribía en un manifesto estudiantil, «onde se formem homens e donde saiam cidadãos no verdadeiro sentido da palavra (…)» (O Mundo, 4-3-1907, p. 1.)

La Academia de Estudios Libres como Universidad Popular

A pesar de estas vacilaciones, ya existía, en ese tiempo, una primera experiencia localizada en Lisboa. Fundada en 1889, 8 Heliodoro Salgado (1861-1906), perteneció a la Masonería y al Partido Republicano, aunque no desdeñase la colaboración con la prensa anarco-sindicalista. Autor de escritos anti-religiosos y antilclericales de fuerte virulencia. 9 Profesor, politico y militar (1865-1918).

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en la capital, la Academia de Estudios Libres, alteraría en 1904 los respectivos Estatutos de forma a transformarse en «Universidade Popular». A partir de entonces la expresión figuraría como subtítulo.

Prohibidas las «manifestaciones» de política partidaria en sus actividades, la Academia de Estudos Livres se encontraba todavía vinculada al republicanismo y a la masonería. BANDEIRA, basándose en el historiador Oliveira Marques, informa que ella habría sido fundada en conexión con la «Tienda» Simpatía y Unión. Entre sus dirigentes e conferencistas menciona también intelectuales y políticos republicanos de que Bernardino Machado e Teófilo Braga serían los más altos exponentes, al lado de Miguel Bombarda, Manuel de Arriaga, Ladislau Batalha, Leite de Vasconcelos, etc..10

En 1906-1907, un informe de dirección nos informa que la institución contaba con 795 asociados, entre los cuales figuran intelectuales y políticos del republicanismo, incluso mujeres, siendo el sexo masculino largamente mayoritario.

El propósito de la Academia de Estudios Libres parece alejarse de preocupaciones sociales, incidiendo exclusivamente en lo que podríamos llamar «alfabetización cultural y científica». Así, los objetivos visados, según los Estatutos, se centraba en 10 Teófilo Braga (1843-1924), profesor y político portugués, fuertemente influenciado por el positivismo comteano. Tomó parte en la célebre Cuestión del Buen-Senso y Buen-Gusto, al lado de Antero de Quental. Formado en Derecho, la Historia de la Literatura Portuguesa le debe importantes indagaciones histórico-archivísticas. Fue profesor del Curso Superior de Letras y, a partir de 1911, de la Facultad de Letras de la Universidad de Lisboa. Fue presidente del Gobierno Provisorio y Presidente de la República; Miguel Bombarda (1851-1910), médico psiquiatra, profesor en la Escuela Médica de Lisboa; Manuel de Arriaga (1840-1917), es uno de los poetas menores de la llamada Generación de 70, fue diputado y el primer Presidente de la República, cargo a que renunció; Ladislau Batalha (1856-1939), fue profesor y publicista conceptuado en las hileras republicanas y socialistas; Leite de Vasconcelos (1858-1941). Formado en Medicina, abandono completamente la clínica al ser nombrado director de la Biblioteca Nacional. Fue un etnógrafo de elevado marco científico.

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promocionar entre los socios «el gusto por el estudio, por la ciencia y por el arte» y en proporcionarles «el conocimiento de las ciencias y de las artes» (artº 1º).

Estas miras envolvían una serie de medios y de estrategias, miudamente referenciadas en el artº 2º: conferencias públicas sobre cuestiones científicas, artísticas y de interés general, publicaciones, señaladamente del texto de las conferencias, mantenimiento de aulas, gabinetes de lectura, bibliotecas, gabinetes de física, observatorios, laboratorios, museos, oficinas-escuelas que facilitasen a los investigadores los medios de trabajo mecánico y sirvan también de locales de reparación de instrumentos de estudio, cursos libres asegurados por cualesquier profesores y exposiciones. Ni todos estos medios vendrían más tarde a estar disponibles.

Es de admitir, entretanto, que hubiese entre los dirigentes una corriente más ambiciosa en términos de metas a alcanzar. El Parecer del Consejo Fiscal sobre los actos de gerencia ocurridos entre Enero de 1906 y Junio de 1907 identificaba un progreso incesante en las acciones de la Academia y hacia profesión de fe en su futuro. Sin abandonar lo esencial de la línea de acción acordada, hacía cumplir a todos con la contribución para la obtención de los recursos indispensables para que la Academia se elevase a la categoría de «verdadera universidad del pueblo.» A través de semejante institución se añadía que seria posible solucionar lo que se consideraba ser el problema que atormentaba todos los espíritus, o sea «la completa rehabilitación del país ante las naciones más cultas» mediante la extinción del analfabetismo. Se Entendía, pues, la alfabetización escolar como una de las más nobles intervenciones de la Academia, arrancando de las «tinieblas de la ignorancia», se escribía en el estilo oratorio del tiempo, «tantos organismos estériles y restituirlos, mejorarlos, al trabajo profícuo y útil, transformando los párias e inconscientes en ciudadanos prestimosos de sus derechos y deberes sociales». (Relatório, 1908, p. 15). De este modo, se partía del concepto erróneo de que el analfabeto se encontraba necesariamente en un

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espacio de marginalidad social y de inconsciencia cívica, de que la alfabetización sería la operación redentora. Posición de claro paternalismo, suponiendo el analfabeto como sinónimo del «eterno niño». La instrucción era pues derramada de encima por las clases educadas, difundiendo un saber que se pretendía rescatador.

De acuerdo con esta perspectiva, la Academia instituyera en Alto do Pina, uno de los barrios más pobres de Lisboa, la Escuela Marquês de Pombal, con dos secciones (maternal y primaria) y continuará desarrollando en su sede (Rua da Boavista) cursos de instrucción primaria del 1º y 2º grados, y de otras materias, tales como Lengua Francesa, Dibujo Geométrico y de Ornato, y preparación para la admisión a la Escuela Normal Primaria. Estas actividades escolares implicaban el pagamiento a profesores, habiendo un saldo negativo en relación a la Escuela Marquês de Pombal, destinada a 40 niños pobres de uno y de otro sexo.

En 1898 se fundó la Sección Domingos Martins, en Braço de Prata. Se trataba de una escuela-modelo con clases diurnas de instrucción primaria para niños de uno y de otro sexo y cursos nocturnos para adultos. Acerca de la Sección Bernardino Machado, de que existe mención en el Informe de 1906-1907, no se dan más detalles.

De acuerdo con SAMPAIO (1975), las secciones maternal y primaria de la Escuela Marquês de Pombal eran frecuentadas en 1912-1913 por 40 y 96 alumnos, respectivamente. En la enseñanza nocturna, donde eran ministradas varias materias, había 327 alumnos, lo que totalizaba para aquél año lectivo 463 discípulos. En el año lectivo de 1913-1914, la frecuencia global alcanzaría 614 alumnos, de los cuales 139 en la enseñanza maternal y primario diurna (p. 171).

En el citado año lectivo de 1913-1914, además de 98 inscripciones en la enseñanza primario, se ministraban disciplinas de Portugués, Francés, Inglés, Dibujo, Contabilidad Comercial, Taquigrafía, Piano, Rudimentos de Música y Violino. Se habían

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organizado también cursos de Matemáticas Financieras, Economía Política, un Curso Libre de Química, y cursos de Dibujo a la vista, moldaje en barro y pintura a óleo (Id.,ib.).

Además de estos cursos fijos, la Academia realiza una extensa serie de conferencias, sobre los temas más variados, entre los cuales son pocos los que presentaban vínculos directos con problemas de interés para las camadas más carentes de recursos, o temas marcados de cuño social. Así, en la lista de conferencias encontramos referencia a algunas cuestiones de interés inmediato para las camadas proletarias, tales como el contagio y profilaxia de la tuberculosis, la higiene de las clases pobres, la carestía de la vida, la higiene profesional, las falsificaciones alimentares, la protección a los indigentes, el alcoholismo, la habitación del pobre, y aún el tema del proletariado y libertad. Es posible que las varias visitas a fábricas o urbanizaciones industriales se revelasen susceptibles de interesar a los operarios. Cuanto a los asuntos sociales, se debe citar aun una conferencia sobre el delicado asunto constituido por la moral de los sexos y el feminismo y la educación de la mujer.

Hubo algunas series de conferencias sobre asuntos muy diversos, sobre todo pedagógicos, técnicos y científicos.

Otro aspecto muy relevante de la acción de la institución fue la publicación de los Anales de la Academia de Estudios Libres, cuyas páginas siempre estuvieron abiertas a las cuestiones educacionales y por donde pasaron las figuras más eminentes de la pedagogía portuguesa contemporánea. La institución publicaba aún la revista A Mocidade y editó una serie de libros donde se acogían los métodos de enseñanza de lectura por José Augusto Coelho11, trabajos de Teófilo Braga (entre los cuales un estudio sobre Espinoza), descripciones de monumentos y resúmenes de excursiones.

Agraciada por el Gobierno Republicano en 1913, la actividad de esta Universidad Popular aflojará a partir de 1914,

11 (1861-1925). Profesor y pedagogo.

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habiendo sido considerada completamente inactiva en 1925. Antes, sin embargo, en el año de 1923, serán públicamente reconocidos una vez más el celo y dedicación consagrados a la obra de educación popular.

Universidades Populares de Norte

La ciudad de Oporto acogió la segunda grande experiencia portuguesa en este campo de la educación de adultos. Estrechamente asociada al movimiento anarquista, surge en 1902 la primera Universidad Libre portuguesa, gracias a un Comité Academico-Operario animado por el periodista Pádua Correia12 y por el estudiante anarquista Campos Lima13, además de otros intelectuales portuenses próximos o integrados en el anarquismo Por otro lado, asociaciones de clase, organizadas y dinamizadas por el anarquismo, no sólo subvencionaban la institución como habían deliberado, por votación, que los operarios, sus asociados, corriesen en masa a los cursos instituidos. Las lecciones de Duarte Leite14 y de Gonçalo Sampaio15 eran escuchadas por centenas de oyentes, entre los cuales se sentaban un número elevado de trabajadores. Intensificando ese interés, los oradores frecuentemente utilizaban dispositivos, lo que permitía captar más fácilmente el público.

Aunque fuera considerada como «un baluarte de oposición contra la monarquía» y la comparencia a sus cursos fuese mirada por los trabajadores como acto político de «protesto y resistencia», la substancia de las lecciones se sujetaba a la transmisión de nociones científicas en el campo de la biología, lo

12 Periodista y militante anarquista (1873-1913). 13 João Campos Lima (1887-1956). 14 Historiador y diplomata (1864-1956). 15 Profesor de la Universidad de Oporto (1865-1937).

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que contribuía para la formación de una visión materialista de las orígenes de la vida pero no tenía relación directa con los objetivos del republicanismo que también animaba las hileras anarquistas.

Tal divergencia de culturas provocaría a breve plazo una cisión a la izquierda. Álvaro Pinto16, que siguiera de cerca el trayecto de la institución, afirmó más tarde al pronunciarse acerca de las causas de la decadencia de la Universidad. En la Universidad Libre, dirá, «hube durante cierto tiempo una válida acción instigadora; - las asociaciones se congregaron e hicieron valer sus resoluciones. En cierta altura, sin embargo, el desanimo fue invadiendo unos y otros. Porque los resultados no eran inmediatamente gritantes, porque la revolución no surgía enseguida a aquellas centenas de oyentes o porque unas ciertas nociones de comodidad e indiferencia no podían ocultarse por más tiempo – lo cierto es que, a pesar de su gran utilidad, la Universidad Libre cayó. Tal vez ya estuviesen realizados por completo los fines que se propusiera…pues se sabe muy bien que recursos no le faltaban » (FERNANDES, 1986, pp. 41-42.)

Álvaro Pinto se ahogaba en un concepto muy común, mostrándose incapaz de construir una versión racional y comprensiva del choque de culturas que se manifestaba en este conflicto. Lo explicaba mediante la convicción pequeño-burguesa y paternalista de que el rechazo cultural de que daba pruebas la clase operaria tenía que ver con una pretenda aversión al esfuerzo intelectual. El problema del embate entre el significado y el contenido de la cultura popular, en las condiciones que presidían su producción, y los contenidos y significados de la cultura de los intelectuales emergía fuertemente ante la distancia, de un lado, las experiencias de los trabajadores y sus dificultades más inmediatas y, de otro lado, el saber organizado en la ausencia de una perspectiva histórica concreta. Seria necesario llegar a la noción

16 Periodista y editor (1889-1856).

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gramsciana de intelectual orgánico para que se diese un verdadero encuentro entre las dos culturas.

La experiencia de la Universidad Libre daría lugar en 1911, también en el norte, a una segunda iniciativa: la Universidad Popular de Oporto, fundada y organizada por intelectuales progresistas (hombres de letras, profesores, artistas, todos ellos jóvenes), algunos de los cuales, como, por ejemplo, Álvaro Pinto, el historiador Jaime Cortesão17 y el filósofo Leonardo Coimbra18 habían pasado por las hileras del anarquismo.

La Renascença Portuguesa era una asociación cultural con sede en Oporto, alrededor de la cual se congregó durante algún tiempo un notable grupo de escritores. Su objetivo era «promocionar la mayor cultura del pueblo portugués a través de la conferencia, del manifesto, del libro, de la biblioteca, de la escuela, etc.». Para tal editaba la revista A Águia y la Vida Portuguesa.

El grupo fundador de la Universidad Popular de Oporto era constituido por Republicanos, los cuales, en esa cualidad, atrajeron las masas de trabajadores "portuenses". Así, la sesión inaugural, llevada a cabo en Junio de 1911, fue una jornada de gran entusiasmo.

La entrada en funcionamiento de la Universidad Popular de Oporto desencadenaría iniciativas similares en otros puntos de la región. En Noviembre de 1912 se inaugura una Universidad popular en Coimbra, reuniendo estudiantes y operarios, y aún antes del fin del mismo año principiaría la Universidad Popular de Póvoa de Varzim, mediante una serie de conferencias proferidas por elementos de la Universidad Popular de Oporto. Al año siguiente, el consejo de administración de la Renascença Portuguesa se ocupa de la creación de una Universidad Popular en Ponta Delgada, cuya abertura se previa

17 Historiador y poeta (1884-1960) 18 Filosofo, profesor, fué ministro de la Instrucción Publica en la I República (1883-1936).

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para el mes de Octubro siguiente. En 1914, se lanzaría la Universidad Popular de Vila Real de Trás-os-Montes, gracias a conferencistas de la Universidad Popular de Oporto y a la colaboración de profesores del liceo local.

Si la inauguración de la Universidad Popular de Oporto juntó un público socialmente heterogéneo, en otros casos se producen situaciones más complejas. Por ejemplo, en Villa Real el punto culminante de la inauguración fue un sarao nocturno, llevado a cabo en un teatro, viéndose en los camarotes y frisas «las mejores familias de Villa Real», dado que la iniciativa obtuviera «el mejor eco y la más franca adhesión en toda la gente prestable de la villa». En Coimbra la sesión de abertura se realizara en la vieja agremiación Associação dos Artistas de Coimbra. Su vasto salón, relata la Prensa del día, estaba repleto de estudiantes y de «populares», viéndose en el palco «bastantes señoras y representantes de las principales agremiaciones de Coimbra». En este caso, un operario tomara la palabra para enaltecer la obra de Renascença Portuguesa y para hacer apelo a sus camaradas para que viniesen hasta la Universidad Popular para darle su auxilio y coger en ella las enseñanzas que no podían sacar de los liceos y universidades oficiales (FERNANDES, 1986, p. 34).

Cual era la oferta cultural de la Universidad Popular de Oporto y como respondieron sus destinatarios?

Embalado en el proyecto soñado por Renascença Portuguesa – restituir al pueblo portugués «la conciencia clara del original espíritu lusitano y polarizarle las energías en el sentido levantado de realizar un noble ideal colectivo (…)» – la Universidad propuso un programa cultural que incluía, en primer lugar, los siguientes cursos públicos: Historia Patria, Historia de la Literatura Portuguesa, Introducción al Estudio de las Ciencias Naturales, Fenómenos corrientes de la Física, Biología, Historia de la Filosofía, la Comuna de París, Filosofía, Botánica. En esta categoría de cursos se integrarían también La vida y obra de Camilo, Demografía y Emigración, Magnetismo, Electricidad, Química, Los conceptos de historia, La obra y la vida de Gil Vicente. Estos cursos

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fueron asegurados por eminentes intelectuales como Leonardo Coimbra, el mismo Cortesão, Gonçalo Sampaio y otros.

Además de estos cursos, la Universidad Popular ofrecía también los denominados cursos especiales, algunos de ellos incidiendo en materias elementales: Portugués, Ortografía, Aritmética, Contabilidad Comercial (1º e 2º cursos), Trabajos Manuales educativos, Modelaje en barro, Contabilidad, Ciencias, Música, Ingles, Alemán, Ruso, Historia Patria, Derecho Comercial y Dibujo. En la Universidad de Villa Real, cuya inauguración ocurriera en momento tardío del año lectivo, funcionarán con gran afluencia, los cursos de Portugués, Ingles y Francés. El segundo alcanzó tal número de matrículas que tuvo que ser desdoblado, al paso que los otros dos alcanzaron, cada uno, 30 matrículas. El curso de Aritmética Práctica, que no llegó a funcionar por haber abierto demasiado tarde, ya contaba 15 matrículas.

Es visible que los cursos especiales, en su conjunto, dibujaban un currículum de enseñanza secundaria, fuertemente marcado por la vertiente de la enseñanza comercial. Recibiendo también la designación de cursos nocturnos, la Universidad Popular llega mismo a abrir un curso denominado Comercial. Otra idea, propuesta por Cortesão con la intuición de captar los trabajadores fue la creación de un curso tipográfico cuyo elenco de disciplinas, en el 1º año, era constituido por Portugués, Composición, Impresión y, por lo menos en proyecto, el Dibujo.

Los cursos de la primera categoría parecen representar una forma de enseñanza enteramente libre, no imponiendo obligaciones a los oyentes. Habría, cuando mucho una cotización voluntaria. Los cursos especiales, por lo contrario, tenían un horario pós-laboral durante toda la semana, sábados incluidos, obligando la matrícula visto que cada uno no podría tener más de 12 alumnos. La duración de cada curso sería de tres o cuatro meses, conforme el aprovechamiento. De inicio, la frecuencia obligaba a una propina mensual a pagar en la 1ª lección, perdiendo el alumno el lugar después de tres faltas consecutivas. El carácter

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gravoso de estas condiciones llevó, más tarde, a que se regresase al sistema de cotización mensual. Estas condiciones, sin embargo, se ajustarían con dificultad a las posibilidades financieras del público operario.

El recurso a la proyección de dispositivos, la utilización de métodos innovadores en la enseñanza de las lenguas extranjeras y el carácter de convivencia de la enseñanza, permitida por clases tan reducidas de 12 alumnos, instaura una pedagogía ajustada al público adulto.

Como fue recibida esta oferta cultural? A despecho del trazado común del republicanismo, entre los dirigentes de Renascença y de la Universidad Popular, no había unanimidad entre los dirigentes de la institución en relación a las orientaciones culturales en que se filiarían los cursos y conferencias. Seria, sin embargo, la formulación de Jaime Cortesão que acabará por imponerse.

Sustentaba Cortesão que, diferentemente de lo que ocurría en las Universidades Populares francesas, casi exclusivamente dirigidas «al pueblo operario, el pueblo humilde y más o menos inculto de las fábricas, a los que ejercen los más pesados y rudos menesteres», en Portugal tenían las instituciones análogas de dirigirse al «Pueblo», en un sentido que tenía por más lato y por más verdadero. En esta acepción, la palabra «pueblo» significaba «todos los portugueses a cualquier clase que pertenezcan, hayan estos frecuentado sea que curso sea (…)», considerándose ese «pueblo», o sea «todo Portugal» como fallo de educación.

Cortesão asimilaba ignorancia y analfabetismo, pero también ignorancia y "bachillerato", o sea, educación libresca de grado universitario correspondiendo a la enseñanza tradicional. Aunque el campesino y el operario continuasen siendo los depositarios «de algunas virtudes y cualidades esenciales», ellos sufrían tanto cuanto el «bacharel», a pesar de las diferencias de preparación escolar, del mismo «gran defecto»: ausencia de «un ideal colectivo y nacional a unificarles los esfuerzos, siquiera a

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volver equilibrada, fecunda y noble la acción individual». Unos y otros desconocerían el «concepto moderno de patriotismo», o sea, «patriotismo humanitario, que ensimismando el individuo en las cualidades raciales, le valoriza no sólo la individualidad para la obra patriótica como también para la obra de la Humanidad, que la primera debe implicar». Estas afirmaciones, teniendo en el amago el concepto de raza, daban a la educación el papel de agente de transformación de la personalidad, casi diríamos de conversión a una ética idealista conciliable con el Cristianismo.

En este cuadro, a pesar de considerar las Universidades Populares como «una conquista del derecho del Pueblo a la educación», se apoyaba abundantemente en Deherme para atribuirles también una acción de «preservación» sobre los trabajadores, «salvándolo» de la violencia, del fanatismo, del crimen y del alcoholismo, frutos presumibles de las carencias educacionales. En una serie de artículos consagrados al asunto en el quincenal A Vida Portuguesa, Cortesão atribuía a los trabajadores los trazos de «estrecheza intelectual» y del «sectarismo». «Lo que por ahí va de teorías simplistas, basadas en la ignorancia entre los trabajadores», se escribía en 1914 en uno de esos artículos. «Lo que por ahí va de desvarío, violencia y fanatismo!»

Enseguida, Cortesão hacía una lectura política superficial de la crisis de la democracia republicana. La crisis de los Partidos pequeño-burgueses, en un momento de crisis social incontrolable debido al agravamiento de las condiciones de vida y de intensa agitación popular, hacía despuntar los primeros ímpetus de la derecha conservadora. Cortesão ignoraba las componentes socio - económicas de la crisis, atribuyéndola solamente al encuadramiento político. Para una enfermedad idealisticamente diagnosticada, el remedio sería de la misma naturaleza: «Para nosotros el mejor remedio posible a remediar además de esos defectos que a nuestras clases medias toquen (…) es también, sin duda, la educación.» Una parte de esas clases medias por falta de medios o por haber pasado a la edad escolar, no podría aprovechar

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los cursos oficiales, por lo que, hasta a una futura reforma del sistema de enseñanza, sería esa la «gran misión» a cumplir por las Universidades Populares.» (Idem, pp.35-36.)

Constatando que, hasta entonces, la Universidad interesara mediocremente los trabajadores, el historiador explicaba el hecho por la falta de «una preparación primaria general», destacando que las lecciones aprovechaban sobretodo a las clases medias, «profesores, estudiantes, comerciantes, militares, empleados de comercio, etc., etc.». Sólo los cursos sobre Camilo, Demografía y Emigración, Magnetismo, Electricidad, Química, Conceptos de Historia y Gil Vicente, en un total de 22 lecciones, habrían atraído 1272 alumnos, al paso que, de Enero a Marzo de 1914, los matriculados en los cursos especiales habrían sumado 252 alumnos.

A pesar de esa constatación, fue forzoso reconocer que tres lecciones sobre la Comuna de París tuvieron un éxito excepcional entre los trabajadores. A finales de 1913, Cortesão notaría en uno de sus artículos: « (…) fue ese el único curso del año finalizado a que los operarios fueron en gran número.»

En la abertura del año lectivo de 1913-1914, delante de distintas individualidades oficiales y de representantes de la União Geral dos Trabalhadores do Norte y de la Federação das Associações Operárias, Cortesão cotejará la opción realizada por la clase operaria en relación al tema de la Comuna parisiense, al paso que el «otro público», - estudiantes, médicos, abogados, profesores y el mismo público femenino -, prefiriera las lecciones sobre Historia de la Literatura Portuguesa.

El tema del «desinterés» del trabajador por la cultura habrá transparecido de las palabras del gran historiador portugués. Así, se comprende que, enseguida, según el periódico A Montanha, un operario haya puesto el problema de las condiciones de vida de los trabajadores: «Los operarios no procuran divorciarse de la instrucción y de la Universidad Popular. Si no corrieron a las lecciones en gran número y con frecuencia, es porque trabajan mucho y las horas que les sobran mal llegan para descansar.

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Haciendo largas y judiciosas consideraciones de orden social», prosigue el periódico, «defiende la organización operaria como tendiente a mejorar sus condiciones económicas, a fin de recibir después la instrucción de que necesita.»

Esta intervención invertía por primera vez las prioridades. La procura de la cultura debería ser antecedida de la transformación de las condiciones sociales, lo que no era visto como un proceso dialéctico. El influjo de las condiciones de vida de los trabajadores tenía ciertamente un fuerte impacto en el acceso y fruición de la cultura. Según CASTRO, la jornada de trabajo rondaría en 1910 las nueve horas y media, llegando, en ciertos ramos, a trece y catorce horas. Cuanto a la remuneración de los trabajadores, su cuota - parte en el rendimiento nacional diminuyó considerablemente entre 1850 e 1914, situándose entre 1901 y Diciembre de 1911 una intensificación enérgica de las luchas operarias por la elevación de los salarios. En lo referente a las condiciones de habitación, en 1910 existirían en Oporto 1200 «islas» abarcando 12 000 barracones.

La revisión de la sesión inaugural del año lectivo de 1913-1914 sería realizada poco después por Cortesão. Justificando la inusitada afluencia de trabajadores a las lecciones sobre la Comuna, ponderaba ser la cuestión de mayor y más capital interés a la de la emancipación económica. La análisis de la Comuna como estadio del desarrollo histórico de los trabajadores sería, en su entender, « uno de los más interesantes capítulos de la historia social», por ser «de los más fecundos en enseñanzas y más propios a despertar la simpatía, por la recordación trágica de los vencidos de entonces (…)». Mirada la análisis histórica de la Comuna de un punto de vista más sentimental que político, colocaba el tema en paridad de importancia cultural y de interés ideológico, para el proletariado, con el de la Biología, cuyas lecciones serían de largo alcance educacional cuanto a las cuestiones sociales y a las cuestiones religiosas. Así, concluía que los trabajadores no reconocían el valor de la educación «para la

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solución de la cuestión económica, como para su progreso y valorización definida en las luchas del futuro».

Cortesão concluía con la condenación de lo que llamaba «revolucionarismo providencialista». Del mismo modo que, en los tiempos de la monarquía, había quien atribuyese a la revolución la resolución definitiva de todos los problemas, había quien, después de la revolución republicana, sujetase esta a todas las acusaciones y apostase en otra alternativa. Creo, diría Cortesão, «que haya quem revista la Revolución Social de las mismas virtudes omnipotentes y providencialistas, creyendo que en esa palabra o en ese hecho existan infinitos caudales de felicidad, sapiencia, libertad y harmonía social, que sólo un profundo y aún inmenso labor educativo pueden dar».

Esta fe irrestricta en el valor de la educación, traduciéndose en la convicción de que la «reforma de la mentalidad » sería la esencia de la revolución, inspiraba una concepción idealista de las relaciones entre la tomada de Poder y la reestructuración del Estado en los procesos de la revolución proletaria y del papel de la cultura y de la producción cultural en ese proceso histórico. La dilución gradual de la Universidad Popular de Oporto y de sus congéneres en la región norte deriva, por un lado, del alejamiento de los trabajadores y, por otro lado, de las vicisitudes de la misma Renascença Portuguesa.

La Universidad Libre de Lisboa: una obra da Masonería

Al final de 1911, en Lisboa, bajo la orientación de Alexandre Ferreira19, un grupo de ciudadanos republicanos pertenecientes, en su mayor parte, a la clase comerciante y a la Masonería toman disposiciones con vista a la creación de una Universidad Popular. el envío de circulares explicando las finalidades de la iniciativa y solicitando apoyo financiero se 19 Nació en Oporto pero trabajó en Lisboa (1877- 1950).

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prolongó hasta 1912. Por la análisis de un cuaderno manuscrito, se apura que la mayor parte de los destinatarios de esos documentos eran organizaciones masónicas, a veces acompañadas del nombre del respectivo responsable, asociaciones de clases operarias o patronales, de educación y cultura, científicas y tecnológicas, deportivas, así como el nombre de algunos individuos aislados. Las direcciones se distribuyen por muchos distritos y municipios del país.

Los objetivos de la Universidad Libre eran idénticos a los perseguidos por las demás universidades de la misma categoría: elevar el nivel intelectual y moral de las clases populares, en orden a la «emancipación colectiva de la Nación», finalidad cívica y patriótica, enseñanza de las «cosas» a fin de que el hombre tome conocimiento de su lugar en el universo. En estas condiciones, se pretendía que la institución fuese móvil, o sea, que sede se trasladara a las fábricas, a las oficinas, a las aldeas, atrayendo el operario a las lecciones, al estudio, con la intuición, se escribe en un cartel de propaganda, «de guerrear sin treguas los vicios y la taberna. Interesar el pueblo en las cuestiones artísticas, filosóficas, sociales, científicas y morales, enriquecerle el cerebro, para que él, por su vez, se ennoblezca a si mismo y a la colectividad. » Una vez más nos encontramos ante el discurso paternalista de la «preservación» de las clases populares a través de la instrucción.

Inaugurada en 1912, la Universidad Libre para la educación Popular empezó a funcionar en Febrero del mismo año, organizando una serie de conferencias públicas en los barrios operarios de la capital, recorriendo a conferencistas ilustres, entre los cuales primaban universitarios. Al mismo tiempo, se instituyeron en la sede los llamados cursos fijos, de 3 o 4 conferencias sobre temas de cultura general y los cursos permanentes, en los cuales se incluían lenguas, conocimientos comerciales, cultura artística.

La lista de conferencias y lecciones publicadas por la Universidad Libre revelan la diversidad de los temas abarcados. Se

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trata de un conjunto enciclopédico, en el cual figuraban temas de actualidad, como por ejemplo la 1ª Guerra Mundial o los eclipses.

Entre las cuestiones abordadas no se puede dejar de notar la frágil incidencia de las cuestiones de interés directo y de preocupaciones de los trabajadores. En 1912-1913, en una fase de intensa lucha social, habría una conferencia en la Casa Sindical, a pedido de esta entidad, sobre «Educación integral y sindicalismo». En Enero de 1914, Agostinho Fortes20, profesor universitario sin experiencia sindical, hablaría en la Asociación de los de Orfebrería, sobre «La función social de las asociaciones de clase.» En Enero del mismo año, la Universidad Libre anunciaba la intención de iniciar en un próximo futuro un curso sobre «materia asociativa y social», llevada a cabo por un abogado. En materia de formación profesional operaria también se pretendió programar un curso en 5 lecciones sobre metalurgia del hierro. La serie terminaría a 16 de Mayo, tratando sucesivamente de la importancia de la industria siderúrgica y de temas técnicos afines. Los tópicos abordados y la forma clara e intuitiva por que fueron tratados parecen haber agradado fuertemente a los operarios que lo fueron escuchar, llenando la sala de la institución.

Las materias comerciales y liceales ganaron gran ascendiente en los cursos fijos pós-laborales. Se creó de hecho una estructura curricular muy amplia, que contribuyo fuertemente para que la Universidad Libre se hiciera muy útil para centenas de individuos.

Las visitas guiadas a museos y monumentos nacionales, gozando de la colaboración de notables especialistas portugueses, contribuyeron para la ampliación y consecuente enriquecimiento del cuadro de la formación cultural proporcionada.

En 1921, la Universidad Libre organizó, de colaboración con otras instituciones de educación y cultura

20 Profesor en el Curso Superior de Letras y a la Facultad de Letras de la Universidad de Lisboa.

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populares, a excepción de la Universidad Popular Portuguesa, entretanto fundada igualmente en Lisboa. Algunos colaboradores y responsables de esta última contribuyeron para el interés de los temas abordados en el Congreso.

Otro dominio en que la Universidad Libre se distinguió fue en el sector del estímulo a la lectura. Se mantuvo en la sede una biblioteca, asegurando permanentemente lectura, y aún bibliotecas en los jardines públicos, que atrajeron muchos millares de lectores. Por otro lado, se instituyó también bibliotecas infantiles, o sea, pequeños muebles de madera conteniendo lo que había de más recomendable en lengua portuguesa, seleccionados los libros por edades hasta al nivel de edades correspondiente a la 4ª clase de la enseñanza primario.

Otro campo de acción fue el de las publicaciones. La Universidad Libre publicó en folletos las lecciones-conferencias, una pequeña antología camoneana y un boletín mensual.

La Universidad Libre para la Educación Popular consiguió conservar su vitalidad hasta los años 30, en los cuales la Prensa noticia aún una u otra iniciativa. Entretanto, a partir de ese período desaparecerá como entidad actuante.

La Universidad Popular Portuguesa y su acción

En 1919, saliendo Portugal del intento dictatorial de Sidónio Pais, está fundada en Lisboa la Universidad Popular Portuguesa. Se Proponía actuar a escala nacional y en el extranjero donde hubiese núcleos de emigrantes. Su fin exclusivo seria contribuir para la «educación general» del pueblo, para lo que se proponía llevar avante varias líneas de acción, entre las cuales promocionando prelecciones, lecturas públicas, conferencias, cursos libres, aulas, etc. a semejanza de lo que sus congéneres hayan fijado en los estatutos, a excepción de la fundación de escuelas fijas.

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En sus estatutos se fijaba también la exclusión de cualesquier propósitos, discusiones o manifestaciones de política partidaria o de controversia religiosa. Entretanto, las finalidades de la Universidad ganarán contornos más precisos, viniendo a reclamarse de un humanismo progresista. En el primer número de su boletín Educação Popular (Abril, 1921), se escribe que se visaba formar el « hombre individual» y el «hombre social», de cuya síntesis resultaría el «hombre humano» (SAMPAIO, 1981, p. 6).

Un importante informe del Consejo Administrativo, narrando los actos de gerencia desde 1919, desde la fundación hasta Junio de 1924, señala los marcos más importantes del trayecto de la institución (BANDEIRA, II, p. 23). Su autor fue Ferreira de Macedo21. A pesar del proclamado abstencionismo político, social y religioso, desde el inicio se pretende establecer una fuerte conexión con la clase operaria. Aunque el proyecto de crear la Universidad haya partido de Ferreira de Macedo y de un grupo de amigos, se verifica que desde temprano el movimiento operario y sindical adhiere y toma posiciones dentro de la organización. En la lista de dirigentes de la Universidad entre 1919 e 1927, BANDEIRA (II, 1994, pp. 136 e segs.) registra la presencia de 11 operarios y 3 contables, para 17 profesores de los varios grados de enseñanza 4 funcionarios públicos, tres de los cuales cuadros superiores y 1 industrial. La presencia de los trabajadores es, pues, bastante nítida, en contraste con lo que ocurriera en instituciones congéneres. En la fundación de la sección de Setúbal deflagra mismo un conflicto debido a la preponderancia de elementos operarios. BANDEIRA informa que la participación de la organización sindical parece bastante forte, «sea en el apoyo dado por la União dos Sindicatos Operários de Setúbal (propaganda y divulgación a través de su periódico Voz Sindical y aún participando en tareas administrativas, como

21 Antonio Augusto Ferreira de Macedo (1887-1859) fué un excelente matematico e profesor de lo Instituto Superior Tecnico. Demitido por la Ditadura.

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aceptando inscripciones de socios) sea por la Associação dos Trabalhadores do Mar donde tiene sede.» El representante del Ayuntamiento, en la sesión pública de presentación del proyecto de establecer una sección en aquella ciudad promovida por la UPP y hecha por Ferreira de Macedo y Alexandre Vieira22, y donde estuvieron presentes los delegados de los sindicatos de los Soldadores y de los Trabajadores del Mar, se habrá recusado a participar, como conferente, en los trabajos de la sección de Setúbal ya después de inaugurada, «en discordancia con el dominio que en ella ejerce el grupo operario(…)» (II, pp. 39-40).

Concretizando semejante orientación, además de la sede, que se fijará en la Cooperativa "A Padaria do Povo", en uno de los barrios más populares de Lisboa y que se consideraba la 1ª sección, la Universidad Popular fue creando otras secciones, gracias a los dinamismos locales y de clase. Fue el caso de la 2ª sección, localizada en la Associação de Classe dos Caixeiros de Lisboa, inaugurada en 1921, y cuya actividad era la realización de conferencias, de la 3ª, abierta en el mismo año en Barreiro, centro operario de la margen sur del Tajo, instalada en la Associação dos Corticeiros y cuya actividad era también la promoción de conferencias, de la 4ª, instalada aún en 1921 en la sede de la Associação do Pessoal do Arsenal do Exército, visando igualmente la promoción de conferencias, de la 5ª sección, inaugurada en Enero de 1922 en el Sindicato Único das Classes Metalúrgicas, que, además de organizar conferencias, disponía de una biblioteca móvil, de la 6ª, funcionando en el Sindicato dos Operários Chapeleiros desde 1921, en Lisboa, que disponía también de una biblioteca móvil además de organizar conferencias, de la 7ª, localizada en la zona occidental de Lisboa en la Sección de Belén del Sindicato da Construção Civil, cuya actividad, desde 1922 se cingía a la oferta de conferencias. Finalmente, la 8ª sección, fundada en 1925, funcionó en Setúbal, ciudad a sur de Lisboa, en

22 Operario tipografo y periodista (1880-1973), fué militante anarco-sindicalista.

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la Associação dos Trabalhadores do Mar. La 9ª sección tenía su sede en el Sindicato Único da Construção Civil, en Lisboa, desde 1924, igualmente afecta a la realización de conferencias, al paso que la 10ª sección operaba desde 1924 en las Secciones sindicales de la Construcción Civil y Metalúrgica de Alto do Pina y la 11ª, situada en una sección del Sindicato dos Chauffeurs desde 1924.

La fundación de secciones no era consecuencia apenas de la voluntad de la dirección de la Universidad. Resultaba de la operacionalidad de otras fuerzas políticas y sociales convergentes con el ideario humanista de que se reclamaba la institución y que, ya en ese período, se confrontaba con idearios conservadores y derechistas. Setúbal fue un ejemplo de ese dinamismo. La União da Mocidade Republicana decide fundar en Setúbal una sección de la Universidad Popular después de contactos con la dirección. Para tanto, decide promover una reunión con sindicatos operarios, agremiaciones deportivas y entidades oficiales, «visto tratarse de una institución de utilidad pública ajena a todos los credos políticos (…)», para lo que cuenta desde luego con el apoyo del periódico O Setubalense. El secretario de la primera asamblea general, invitó los sindicatos operarios y patronales a filiarse y a pagar la cuota, en cuanto al Ayuntamiento de Setúbal recibiría una apelación en el sentido de patrocinar el proyecto.

La adhesión de los trabajadores a la Universidad Popular, mediante las propuestas de fundación de secciones excedió todas las esperanzas. El autor del informe que venimos siguiendo afirmaría a propósito que, mismo en una fase, como la presente, de ablandamiento de actividad, no habían cesado los pedidos de establecerse nuevas secciones, siendo de esperar, dice, «que el nuevo consejo administrativo tiene que dar un grane desarrollo a esta idea de extraordinaria importancia. Para ese desarrollo contribuirá poderosamente la utilización de un aparato cinematográfico portátil (…)» (BANDEIRA, id., p. 32). Lo que nos parece una propuesta de vuelta de la línea tradicional de actuación.

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La Universidad animó en su sede una valiosa biblioteca con cerca de 10 000 volúmenes, fruto de adquisiciones y de donativos. En su fondo existían, por oferta, las publicaciones del BIT, regularmente recibidas. Aunque el movimiento de lectores en la sede Haya sido siempre diminuto, aumentó regularmente el servicio de préstamo domiciliario, mientras no fuese posible mantenerla en funcionamiento durante la noche. En las secciones, como vimos funcionaban a veces bibliotecas móviles.

En la rubrica «Cinematógrafo» se afirma que desde la inauguración de la Universidad se mantenía en la sede un «cinematógrafo» y un proyector de dispositivos. Vencida esa dificultad inicial, primero mediante préstamo, después por compra, había ahora un segundo problema: las películas. Gracias a la generosidad de un empresario del sector, del Colegio Militar y del proprietario de un cine, pueda la Universidad rodar 50 000 metros de filme.

La Universidad reunirá informaciones sobre las películas educativos editadas en varios países, elaborando un volumoso dossier. Proyectava también adquirir un aparato portátil. Las dificultades financieras se amenizaron en 1925, y fue entonces posible adquirir un aparato del tipo referenciado. BANDEIRA informa que en la sesión inaugural, llevada a cabo en el Sindicato dos Chauffeurs, se proyectara una película sobre la producción de automóviles en FIAT (Id., p. 28).

La Universidad no se limitó a utilizar el cine en beneficio de sus asociados. Organizó sesionees cinematográficas educativas, dominicales y diurnas, en intención de Escuelas oficiales, casí todas precedidas de pequeñas palestras (Id., ib.). De este modo, vemos la Universidad Popular Portuguesa colocarse en la línea da frente de la innovación pedagógica en Portugal.

La actividad de la institución pasaba aún por la organización de grupos de estudio, de excursiones culturales, de un orfeón y de la práctica del canto coral, de las llamadas «matinées» dominicales y recreativas, consagradas a la lectura o recitación de historias para niños, de conciertos sinfónicos y de veladas de arte.

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Uno de los principales medios de acción, según el mismo informe, sería sin embargo la conferencia. No se trataba de un conjunto versátil de intervenciones pero de una organización temática sujeta a un principio de unidad. Por eso mismo fué producido un «Plano Educativo General de la Universidad». Según el autor, se pretendía que el Plano proporcionase todos los elementos indispensables a una cultura general completa. Estos propósitos, como vimos, se ampliaron doctrinalmente. Después el golpe de Estado de 1926, imponiendo la Dictadura, la Universidad se mantiene firmemente en el campo democrático antifascista, congregando elementos anarco-sindicalistas, sociales-democráticos y comunistas. Entre los dirigentes y conferencistas de la institución figuran profesores de Universidades públicas y de la enseñanza secundaria oficial, que, como otros notables docentes y funcionarios, fueron demitidos de la enseñanza y jamás reintegrados. Bento de Jesus Caraça23 gozó de enorme prestigio como dirigente de la Universidad y como paladino de la educación popular. En una conferencia proferida en 1931 en la sección de Setúbal, sobre el tema Las Universidades Populares y la Cultura, Caraça se colocó como adversario del monopolio cultural de la clase burguesa. Sin olvidar que el acceso a la cultura presupone la creación de medios económicos que lo permitan, cultura popular seria, antes de más, una contribución al proceso de conscientificación. «Eduquemos y cultivemos la conciencia humana, despertarla cuando esté dormida, dimos a cada uno la conciencia completa de todos sus derechos y de todos sus deberes, de su dignidad, de su libertad. Seamos hombres libres, dentro del más bello y noble concepto de libertad – el reconocimiento a todos del derecho al completo y amplio desarrollo de sus capacidades intelectuales, artísticas y materiales.» «Así, cultura y libertad se

23 Notable matematico y profesor, escritor, dirigente de la Universidad Popular y de la famosa «Biblioteca

Cosmos», fué militante comunista (1901-1948).

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identifican – sin cultura no puede haber libertad, sin libertad no puede haber cultura. Debe aún la cultura tender al desarrollo del espíritu de solidariedad (…)», que Bento Caraça quería ver tenderse de la familia, de la aldea y de la patria, hasta al mundo.

A pesar de muchas dificultades, la Universidad se mantendría hasta 1950. En esa fecha, reconociendo que las condiciones no más permitían la consecución de los fines propios, y recelando por ventura que su patrimonio fuese aprendido por la policía política cuya vigilancia era constante, la dirección decide proponer la liquidación de la Universidad y la entrega de lo restante a otro organismo de educación popular fundado por trabajadores que se mantenía independiente (SAMPAIO, 1981 p. 8.)

Intento de creación de la Universidad Libre en Coimbra

En 1925, un grupo de intelectuales intenta llevar a cabo en Coimbra una Universidad Libre, designada, en subtítulo, «Instituto de Educación Popular», dado que la institución fundada en el inicio de la República vacilara. Se afirmaba con el objetivo, el fomento de la cultura y de la educación moral y social, la promoción y aproximación de los trabajadores intelectuales y manuales, la facilitación de una obra de extensión universitaria. Declarándose libre de preocupaciones de orden política o religiosa, se propone realizar un programa de educación integral.

El grupo fundador era constituido por dos trabajadores, siendo los restantes profesores, dos asistentes universitarios (doctorados), un catedrático, dos estudiantes, profesores de la Escuela Normal Primaria, un consejero de Cultura del Municipio y un procurador de la Junta General del Distrito.

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La conferencia inaugural fue proferida por Aurélio Quintanilha24, que algunos años más tarde será también dimitido de la enseñanza. Quintanilha parte del panorama de la lucha de clases a escala mundial. Declaraba entender no ser posible eliminarla mientras persistiesen los factores económicos que la determinaban. Rechazando, sin embargo, la violencia histórica, rechazaba también la «separación espiritual de las clases» y se proponía, en su mismo nombre y en el de sus compañeros de jornada, trasladarla de la calle, de la trinchera, de la barricada para «los campos alegres, floridos, bellíssimos del pensamiento» (QUINTANILHA, 1925, p. 13.) Se proponía, en suma, combatir el fanatismo y el espíritu de intolerancia, realizando al mismo tiempo una obra de extensión universitaria.

Estos propósitos se inscribían en una fase de ascensión de la derecha en España y en Itália – referidos por Quintanilha – y de recrudecimiento del terrorismo y de los atentados personales en Portugal, preparando, de cierto modo, el avanzo de la derecha. La Universidad Libre de Coimbra en gestación no tendrá tiempo para realizar semejante programa. El golpe de Estado de 1926 lo aplazará por casi medio siglo.

Consideraciones finales

Este breve panorama del conjunto de Universidades Populares y Libres en Portugal deja entrever algunos aspectos característicos del movimiento. En primer lugar el carácter heterogéneo de los sectores sociales envueltos en la creación y mantenimiento de las instituciones educativas y en la definición de los objetivos visados. La ideología que inspira estas instituciones oscila entre un racionalismo crítico, de pendiente por veces espiritualista, y la aproximación a la ideología marxista que se hace

24 Notable biologo (1892-1987), profesor de la Universidad de Coimbra, fué demitido por la Dictadura.

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más intensa en el caso de la Universidad Popular Portuguesa. Aunque apoyada en un bloque democrático unitario, militantes comunistas animan sus trabajos, entre ellos Bento de Jesus Caraça, cuyo perfil intelectual se destaca en la cultura portuguesa contemporánea. Bajo el influjo de esta corriente, la doctrina de la Universidad Popular Portuguesa converge con la teoría de la conscienzalización cuya formulación hace recordar por veces la de Paulo Freire si no insistiese fuertemente en el proceso de desmistificación ideológica del que se acompaña.

Estas cohabitaciones, variables de institución para institución, ni siempre son pacíficas pero la documentación que nos resta no es siempre explícita a ese propósito.

En segundo lugar, en las Universidades Libres y Populares portuguesas los contenidos culturales mediante los cuales se procesa la formación no reflejan diferencias de clase a no ser cuanto a los temas y preocupaciones que los determinan.

Por último, la creación de esta categoría de instituciones transcurre en gran parte de la insuficiencia de la política educacional oficial, marginalizando sino mismo excluyendo largos sectores de las clases populares.

Este fajo de motivaciones vino cruzarse después la revolución de Abril de 1974 en la revisitación práctica del pasado de las Universidades Populares. Así, en 1979, fue creada la Universidad Popular de Oporto, que viene desarrollando en esta ciudad una intensa y brillante actividad cultural. Más tarde, en 1991, fue establecida en Setúbal una segunda Universidad Popular, la cual piensa modificar sus Estatutos para atribuirle el apellido de Bento de Jesus Caraça, uno de sus más notables conferencistas.

Será aún bajo el patrocinio de su nombre y de su significado simbólico, y en su homenaje, que, en el año de 2001, en curso, y en el cuadro de las conmemoraciones del 1º Centenario del Nacimiento de Bento Caraça que se proyecta crear en Lisboa una nueva Universidad Popular.

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Rogério Fernandes é professor da Universidad de Lisboa. Endereço: Entrecampos, 38 D 1700 Lisboa\Portugal. E-mail: [email protected]

Recebido em: 10/09/2008 Aceito em 15/11/2008

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O LUNAR DE SEPÉ E A DERRADEIRA MIGRAÇÃO: A EDUCAÇÃO JESUÍTICA ENTRE

AS COROAS DE ESPANHA E PORTUGAL1 Dermeval Saviani

Resumo O objeto do trabalho é a grande migração determinada pelo Tratado de Madri, celebrado entre Espanha e Portugal em 1750. Seu objetivo é examinar o modelo educativo das reduções jesuíticas, cuja ação pedagógica gerou um "habitus" que opôs os povos das missões às coroas de Espanha e Portugal. O estudo se baseou em fontes literárias (poema "O Lunar de Sepé", recolhido por Simões Lopes em "Contos gauchescos e lendas do Sul" e poema épico "O Uraguay", de Basílio da Gama) e em fontes documentais (alvarás de expulsão dos jesuítas, Tratado de Madri e carta enviada ao Marquês de Bucareli pelos índios guaranis remanescentes das Missões). Entre as fontes secundárias utilizadas destaca-se o livro de Claude Lugon, "A República ‘comunista’ cristã dos guaranis".

Palavras-chave: Pedagogia jesuítica; Reduções guaranis; Educação e migrações.

"O LUNAR DE SEPÉ" AND THE ULTIMATE MIGRATION: THE JESUITIC EDUCATION BETWEEN

THE SPANISH AND PORTUGUESE CROWNS Abstract The object of this paper is the large migration determined by the Treaty of Madri, between Spain and Portugal, in 1750. Its aim is to examine the education model of the jesuitic reductions, whose pedagogical action created an "habitus" that opposed the people of the missions to the Spanish and Portuguese crowns. The study was based on literary sources (poem "O Lunar de Sepé", by Simões Lopes in "Contos gauchescos e lendas do Sul" and the epic poem "O Uraguay", by Basílio da Gama) and on documental sources (jesuitic expulsion charters, Treaty of Madri and letter sent to Marquis of Bucareli by the remaining guarani indians in the Missions). Among the secondary sources, the book "A República ‘comunista’ cristã dos guaranis" by Claude Lugon is highlighted.

1 Trabalho apresentado no VII Congresso Luso-Brasileiro de História da Educação realizado na cidade do Porto, em Portugal, de 20 a 23 de junho de 2008.

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Keywords: Jesuitic Pedagogy; Guarani Reductions; Education and migrations.

EL LUNAR DE SEPÉ Y LA DEFINITIVA MIGRACIÓN: LA EDUCACIÓN JESUÍTICA ENTRE LAS CORONAS DE

ESPAÑA Y PORTUGAL Resumen El objeto del trabajo es la gran migración determinada por el Tratado de Madrid, celebrado entre España y Portugal en 1750. Su objetivo es examinar el modelo educativo de las reducciones jesuíticas, cuya acción pedagógica generó un "habitus" que opone los pueblos de las misiones a las coronas de España y Portugal. El estudio fue baseado en fuentes literarias (poema "El Lunar de Sepé", recogido por Simões Lopes en "Cuentos gauchescos y leyendas del Sur" es poema épico "El Uraguay", de Basílio da Gama) y en fuentes documentales (alvarás de expulsión de los jesuítas, Tratado de Madrid y carta enviada al Marques de Bucareli por los índios guaranís remanecientes de las Misiones). Entre las fuentes secundarias utilizadas se destaca el libro de Claude Lugon, "La República ‘comunista’ cristiana de los guaranis".

Palabras Clave: Pedagogía jesuítica; Reducciones guaranis; Educación y migraciones.

LE LUNAR DE SEPÉ ET LA DERNIÈRE MIGRATION: L’ÉDUCATION JÉSUITE ENTRE LES COURONNES

D’ESPAGNE ET DU PORTUGAL Résumé L’objet de ce travail est la grande migration déterminée par le Traité de Madrid, signé entre l’Espagne et le Portugal en 1750. Son but est d’examiner le modèle éducatif des réductions jésuites dont l’action pédagogique a créé un "habitus" qui a opposé les peuples des Missions aux couronnes d’Espagne et du Portugal. L’étude s’est appuyée sur des sources littéraires (le poème O Lunar de Sepé, recueilli par Simões Lopes Neto et publié dans son livre Contos Gauchescos e Lendas do Sul et le poème épique O Uraguay, de Basílio da Gama) et sur des sources documentaires (les chartes d’expulsion des Jésuites, le Traité de Madrid et la lettre envoyée au Marquis de Bucareli par les indiens guaranis provenant des Missions). Parmi les sources secondaires utilisées, l’on remarque le livre de Claude Lugon, "A República ‘comunista’ cristã dos guaranis" ("La République ‘comuniste’ chrétienne des guaranis").

Mots-clés: Pédagogie jésuite; Réductions guaranis; Éducation et migrations.

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Introdução

Pode-se considerar que o fenômeno das migrações se apresenta como uma constante na natureza, determinada pela necessidade de sobrevivência. Manifesta-se, assim, entre os animais de modo geral e entre os homens, de modo particular. Entre os animais, esse fenômeno se expressa de modo típico nas "aves de arribação". Entre os homens, no nomadismo. Na transição da Idade Média para a Época Moderna as migrações foram provocadas pela expansão do comércio, que conduziu os povos do ocidente europeu a se lançar no empreendimento das grandes navegações visando à conquista de novas terras. Nesse processo ocorreu, em 1492, a descoberta da América por iniciativa da Espanha e, em 1500, a chegada dos portugueses ao Brasil.

Aproveitando a inclusão da questão das migrações no tema geral do VII Congresso Luso-Brasileiro de História da Educação, recuei ao tempo das fronteiras móveis na América Ibérica abordando a migração forçada a que foram submetidos os "Sete Povos das Missões" na metade do século XVIII em conseqüência do Tratado de Madri celebrado entre Espanha e Portugal em 1750. Nesse mesmo ano ascendeu ao trono português D. José I que, nomeando ministro o futuro Marquês de Pombal, determinou, em 1759, a expulsão dos jesuítas de Portugal e seus domínios.

As reduções jesuíticas ou guaranis foram instituídas a partir de 1610, tendo atingido seu mais alto grau de desenvolvimento em 1750. E se extinguiram em 1768 em conseqüência da expulsão dos jesuítas da Espanha, assinada pelo rei Carlos III em 27 de março de 1767 e aplicada nas missões pelo decreto especial do mesmo Carlos III, de 2 de janeiro de 1768, que baniu os jesuítas das províncias do Paraguai, Plata e Tucumã, com a taxativa determinação: "Se, após o embarque, existir ainda um só jesuíta, mesmo doente ou moribundo, no

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vosso departamento, sereis punido de morte. Eu, o Rei" (LUGON, 1976, p. 302).

Perseguidas pelos espanhóis, as reduções migraram para leste tornando-se, porém, alvos dos ataques dos portugueses, os paulistas que partiam de Piratininga em busca de índios para escravizar. Em conseqüência dos constantes ataques os povos das missões viveram períodos de grandes migrações. Para se defender desses ataques os jesuítas foram levados a armar os indígenas que conseguiram, em 1641, infringir fragorosa derrota aos paulistas na batalha de Mbororé, na região hoje conhecida como tríplice fronteira. Após essa batalha as reduções viveram um longo período de relativa paz: "desde esse momento e durante mais de cem anos, a República Guarani não foi mais inquietada seriamente pelos paulistas" (Idem, p. 62). As reduções foram, então, se multiplicando. Daí se originaram, sob direção dos jesuítas subordinados à coroa espanhola, os aldeamentos conhecidos como "Sete Povos das Missões", estabelecidos já no final do século XVII, na margem esquerda do Rio Uruguai, região que hoje se insere no estado do Rio Grande do Sul. Os "sete povos" eram os seguintes: São Francisco de Borja, São Nicolau, São Luiz Gonzaga e São Miguel, fundados em 1687, seguidos de São Lourenço Mártir, fundado em 1690, São João Baptista, em 1697 e Santo Ângelo Custódio, em 1706. Essas reduções correspondem, respectivamente, às atuais cidades gauchas de São Borja, São Nicolau, São Luiz Gonzaga, São Miguel das Missões, São Lourenço das Missões, São João Batista e Santo Ângelo.

Pelo Tratado de Limites assinado em Madri no dia 13 de janeiro de 1750, a Espanha, em troca da Colônia do Sacramento, cedeu a Portugal os burgos e aldeias da margem oriental do rio Uruguai, com todas as suas casas e edifícios. E obrigou os jesuítas a migrar com os índios e todos os pertences que pudessem carregar para outras terras pertencentes à Espanha. A resistência dos índios em cumprir as determinações do Tratado conduziu às guerras guaraníticas que se estenderam de 1754 a 1756, cujo resultado foi a destruição dos Sete Povos das Missões

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pelas forças associadas de portugueses e espanhóis. Assim, essas reduções, no momento mesmo em que a grande experiência social missioneira atingia seu auge, eram submetidas à sua derradeira migração.

A organização das reduções

As reduções eram comunidades cristãs que procuravam realizar as aspirações manifestas na "Utopia" de Thomas Morus e nas teses expostas pelo dominicano Bartolomeu de las Casas, primeiro sacerdote ordenado na América, que viveu entre 1474 e 1566 e foi bispo de Chiapas, no México.

Do ponto de vista da distribuição espacial, todas as reduções seguiam o mesmo plano, consoante a observação de Thomas Morus: "quem conhece uma cidade, conhece todas, porque todas são exatamente semelhantes, tanto quanto a natureza do lugar o permita" MORUS, 1966, p. 81). O referido plano colocava no centro a igreja tendo à frente uma grande praça retangular, mais ou menos do tamanho de um campo de futebol: a de Santo Inácio-Mini "media 127 metros por 108" (LUGON, 1976, p. 71). Do lado esquerdo da igreja situavam-se o cemitério e o hospital; do lado direito, a escola ou colégio dos padres e a casa das viúvas. Atrás desse conjunto ficavam os alojamentos e o jardim dos padres. Da praça saíam três amplas avenidas, geralmente pavimentadas, uma à frente e as outras nas laterais. No centro da praça normalmente era colocada a estátua do santo padroeiro de cada redução e, nos quatro cantos, grandes cruzes. Nas laterais da praça ficavam a Casa do Povo com os celeiros públicos e o complexo das oficinas, cuja fachada dava para a praça tendo, no lado inverso, pátios interiores cujas arcadas eram sustentadas por grande número de colunas. Nas outras faces da praça situavam-se a hospedagem dos estrangeiros, o arsenal e as casas particulares que abrigavam as famílias dos moradores da redução, cortadas por ruas, sempre retilíneas, que davam acesso aos bairros, até os

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confins da cidade, sendo inexistentes "os becos, vielas sombrias, doentias e tortuosas" (Idem, p. 72).

Do ponto de vista econômico desenvolvia-se uma espécie de coletivismo agrário que combinava o comunismo primitivo, vigente nas tribos encontradas pelos colonizadores, com o regime feudal e o comércio de excedentes próprio da fase mercantilista do capitalismo nascente. Com efeito, os indígenas trabalhavam em terras comuns para o pagamento do tributo real, manutenção das instituições eclesiais e dos órfãos, viúvas e de todos que estivessem impossibilitados de trabalhar. Além disso, o trabalho comunal gerava considerável excedente que alimentava uma extensa atividade comercial. Se a maior parte do solo era explorada coletivamente, distribuíam-se pequenas faixas de terra entre as famílias para que delas extraíssem o próprio sustento. Ao milho, mandioca, batata-doce e erva-mate, que já eram cultivados pelos indígenas, os jesuítas acrescentaram o trigo, cevada, arroz, cana-de-açúcar, algodão e fumo, além do cânhamo, que tinha aplicação têxtil para a produção dos panos requeridos pela comunidade. Cultivavam-se, ainda, hortaliças, legumes, frutas, plantas ornamentais e medicinais, ademais de flores, de cujas essências se produziam perfumes. Extraíam-se, ainda, madeiras para as mais diversas finalidades como construção de casas e embarcações, fabricação de móveis e ferramentas, assim como para o desenvolvimento das artes da marcenaria, tornearia, escultura e o fabrico de instrumentos musicais. Naturalmente praticavam-se também a caça e a pesca. Complementarmente ao cultivo do campo desenvolvia-se amplamente a criação de gado, particularmente as espécies bovina e ovina. Os padres instruíam os indígenas no exercício de inúmeros ofícios, desenvolvendo um amplíssimo artesanato que cobria a produção de paramentos litúrgicos e de vestimentas de algodão, lã e linho, movimentando significativa quantidade de teares; a construção de alojamentos e estaleiros navais; a moagem, conservação e armazenamento de cereais; moinhos, curtumes, serrarias, olarias, usinas de açúcar e de azeite; forjas e fundições; oficinas de ourivesaria, relojoaria,

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serralheria, carpintaria, marcenaria, tecelagem, sapataria, alfaiataria, imprensa, pintura e escultura, multiplicando o número de mestres artesãos e artistas.

Politicamente, tanto na sua organização interna como nas relações entre si e com a coroa de Espanha, as reduções comportavam-se como repúblicas independentes e eram reconhecidas como tais, não obstante considerarem-se submetidas ao governo espanhol: "os padres comprometeram seus neófitos a declararem-se súditos ou vassalos da Coroa de Espanha, fazendo-os compreender que era esse o único meio de assegurar-lhes a liberdade em face dos coloniais" (Idem, p. 105-106). Essa vinculação direta ao rei era uma forma de se colocar a salvo da desconfiança das autoridades coloniais que não viam com bons olhos a independência das reduções. Os guaranis que viviam nos aldeamentos jesuíticos tinham a sua constituição, suas próprias leis, seus dirigentes, juízes, orçamento, exército e polícia, com fronteiras definidas e bem defendidas. O governo era exercido por um "Cabildo" ou conselho eleito que se encarregava de toda a administração prática:

O conselho de cada redução compreendia o corregedor ou presidente, muitas vezes denominado cacique, o qual tinha às sua ordens um alguacil ou comissário administrativo; o teniente ou vice-presidente, dois alcaides, que eram também "juízes em matéria criminal; dois alcaides – oficiais de polícia que dirigiam o policiamento das ruas e dos campos; o fiscal e seu lugar-tenente, encarregado, entre outras coisas, de manter os registros de estado civil; enfim, quatro regedores ou conselheiros, assumindo diversos serviços e, eventualmente, assessores "cujo número é proporcional ao dos habitantes" (Idem, p. 89).

Todos os dirigentes eram eleitos pelos próprios índios no final de cada ano. Como não havia partidos, já que a concepção incontrastável se regia pelo bem comum, o Conselho em fim de mandato preparava uma lista de candidatos. A eleição não era

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secreta, mas se dava pela manifestação livre das opiniões em assembléia pública, cuja tendência comum era de aceitar todos os candidatos constantes da lista. Os novos governantes eram empossados em seus cargos pelas mãos do pároco. O padre exercia grande autoridade moral, sendo freqüentemente consultado, especialmente diante de eventuais litígios. O Superior-Geral dirigia o desenvolvimento das reduções e constituía a última instância de recurso.

O modelo educativo das reduções

O modelo educativo dos jesuítas impregnava toda a vida social, manifestando-se na organização das atividades produtivas, nas horas de lazer, nos ofícios do culto, nas artes, no comércio, na administração da justiça e no exercício da política. A própria escola se regia pela vida prática, começando por ser profissional e utilitária. Com a estabilização da vida social nas reduções estabeleceram-se dois tipos de escolas, uma para os meninos e outra para as meninas, ambas com freqüência obrigatória dos sete aos doze anos. Nessas escolas ensinava-se a ler, escrever e calcular, além das orações e do catecismo, seguindo-se com os trabalhos com madeira, a tecelagem e outros ofícios manuais, a contabilidade para formar fiscais, controladores e contadores, além da costura e bordados para as meninas aprenderem a confeccionar os ornamentos de igreja e roupas variadas, inclusive para as festas. Elemento importante de educação, de modo especial para incutir a fé cristã, era a atmosfera geral respirada nas reduções pela vida social em seu conjunto, com destaque para o teatro e o canto. Todos os professores, tanto os mestres escolares como os regentes de canto e música eram guaranis, devidamente formados pelos jesuítas. Os padres se mantinham na função de inspetores escolares realizando as visitas das aulas nas escolas, nos coros e nos cursos de música. Sobre a base dessa educação comum, de caráter

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eminentemente prático, os jesuítas se propunham a criar uma "elite do espírito e da sabedoria". Como assinala Rohrbacher:

Eles tinham, como o aconselha Platão, separado aqueles que anunciavam dotes de talento especial, para iniciá-los nas ciências e nas letras. Essas crianças selecionadas tinham o nome de Congregação. Eram educadas numa espécie de seminário e estavam submetidas à rigidez do silêncio, do retiro e dos estudos dos discípulos de Pitágoras. Reinava entre os internos tão grande emulação que a simples ameaça de serem devolvidos às escolas comunais lançava um aluno no desespero. Era desse grupo excelente que deviam sair os sacerdotes, os magistrados e os heróis da Pátria (Idem, p. 216).

Pela ação pedagógica decorrente desse modelo educativo, os jesuítas conseguiram inculcar nos guaranis um "habitus", isto é, uma cultura introjetada, um "modus vivendi" que opôs o conjunto dos povos das missões às determinações das coroas de Espanha e Portugal conduzindo-os à resistência armada.

Essa epopéia foi cantada por Basílio da Gama no poema épico O Uraguai, em que faz a louvação de Pombal, enaltecendo os feitos do comandante das tropas lusitanas, Gomes Freire de Andrade, sem deixar de reconhecer o heroísmo dos indígenas, exaltado especialmente nas figuras dos chefes Cacambo e Sepé:

Não me chames cruel: enquanto é tempo Pensa e resolve, e, pela mão tomando Ao nobre embaixador, o ilustre Andrade Intenta reduzi-lo por brandura. E o índio, um pouco pensativo, o braço E a mão retira; e, suspirando, disse: Gentes de Europa, nunca vos trouxera O mar e o vento a nós. Ah! não debalde Estendeu entre nós a natureza Todo esse plano espaço imenso de águas. Prosseguia talvez; mas o interrompe Sepé, que entra no meio, e diz: Cacambo Fez mais do que devia; e todos sabem

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Que estas terras, que pisas, o céu livres Deu aos nossos Avós; nós também livres As recebemos dos Antepassados: Livres hão de as herdar os nossos filhos. Desconhecemos, detestamos jugo Que não seja o do céu, por mão dos padres. As frechas partirão nossas contendas Dentro de pouco tempo: e o vosso Mundo, Se nele um resto houver de humanidade, Julgará entre nós; se defendemos Tu a injustiça, e nós o Deus e a Pátria (GAMA, 2006, pp. 45-46).

Como se vê, o poeta apologista da Coroa Portuguesa transmite uma imagem do índio Sepé como radical e intransigente, ou seja, aquele que teria encarnado mais plenamente o "habitus" inculcado pelos jesuítas. Vejamos, pois, como o ideário popular conformou a figura de Sepé Tiaraju, magistralmente expressa no poema do cancioneiro guasca, "O lunar de Sepé".

O "Lunar de Sepé" na resistência à derradeira migração

O artigo 16 do Tratado de Madri prescreveu:

Das povoações ou aldeias, que cede S. M. C. na margem oriental do rio Uruguai, sairão os missionários com todos os móveis e efeitos levando consigo os índios para os aldear em outras terras de Espanha; e os referidos índios poderão levar também todos os seus bens móveis e semoventes, e as armas, pólvoras e munições, que tiverem em cuja forma se entregarão as povoações à Coroa de Portugal com todas as suas casas, igrejas e edifícios, e a propriedade e posse do terreno. As que se cedem por Sua Majestade Fidelíssima e Católica nas margens dos rios Pequiri, Guaporé e das Amazonas, se entregarão com as mesmas circunstâncias que a Colônia do Sacramento, conforme se disse no artigo XIV; e os índios de uma e outra parte terão a mesma liberdade para se irem ou

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ficarem, do mesmo modo, e com as mesmas qualidades, que o hão de poder fazer os moradores daquela praça; exceto que os que se forem perderão a propriedade dos bens de raiz, se os tiverem (SOUSA, 1939, vol. 19).

Os jesuítas tentaram, primeiramente, negociar a modificação do tratado. Paralelamente, pediram, por duas vezes, a prorrogação de sua aplicação para o fim de terminar as colheitas. Mas foram se convencendo de que o tratado, apesar de injusto, já não podia ser discutido e devia ser cumprido. E tentaram persuadir os guaranis a abandonar a margem oriental do Uruguai. Mas os índios opuseram resistência tenaz e determinada chegando a impedir a deserção de alguns padres com ameaça de morte. Conforme Lugon (1976, p. 296), o "território da República Guarani, com os grandes pântanos do oeste, os rios Paraná e Uruguai, prestava-se admiravelmente a uma resistência indefinida". Nessa configuração espacial os povos das missões, unidos, derrotariam qualquer exército inimigo. Mas as instruções dos padres, aceitando a visão dos superiores, "conseguiram quebrar a solidariedade dos guaranis". E a derrota sobreveio com a morte de Nicolas Languiru na sangrenta batalha de Caybaté, em 10 de fevereiro de 1756. A partir daí a resistência guarani se enfraqueceu definitivamente. Em 16 de maio as tropas tomaram São Miguel, em seguida São Lourenço, São João e Santo Ângelo chegando, já perto do final de 1756, a São Nicolau, "a última das sete reduções" (Idem, p. 294). Languiru havia sucedido Sepé morto, por sua vez, na batalha travada três dias antes, em 7 de fevereiro. Sua epopéia calou fundo na memória popular, sendo celebrada de várias maneiras, entre as quais se destaca o poema "O lunar de Sepé", composto no total por 30 estrofes sendo que a primeira constitui um estribilho que se repete a cada quatro estâncias. Pela força desse poema e pela sua expressividade pedagógica impõe-se considerá-lo no seu todo:

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O LUNAR DE SEPÉ2 Eram armas de Castela Que vinham do mar de além; De Portugal também vinham, Dizendo, por nosso bem: Mas quem faz gemer a terra... Em nome da paz não vem! Mandaram por serra acima Espantar os corações; Que os Reis Vizinhos queriam Acabar com as Missões, Entre espadas e mosquetes, Entre lanças e canhões!... Cheiravam as brancas flores Sobre os verdes laranjais; Trabalhava-se na folha Que vem dos altos ervais; Comia-se das lavouras Da mandioca e milharais. Ninguém a vida roubava Do semelhante cristão, Nem a pobreza existia Que chorasse pelo pão; Jesus Cristo era contente E dava sua benção... Por que vinha aquele mal, Se o pecado não havia?... O tributo se pagava Se o vizo-rei o pedia, E até sangue se mandava Na gente moça que ia...

2 Poema recitado por Maria Genórica Alves, mestiça descendente dos índios missioneiros. Após ouvir a récita de Maria Genórica, J. Simões Lopes registrou esse poema e o publicou em seu livro "Contos gauchescos e lendas do Sul" (ALVES FILHO, 1999, pp. 110-113).

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Esse primeiro conjunto de quatro estrofes marca as condições de vida, a produtividade econômica das reduções e os benefícios que proporcionava à coroa espanhola, inclusive na defesa militar. Por que, então, as armas de Espanha e de Portugal se voltavam contra elas?

Eram armas de Castela Que vinham do mar de além; De Portugal também vinham, Dizendo, por nosso bem: Mas quem faz gemer a terra... Em nome da paz não vem! Os padres da encomenda Faziam sua missão: Batizando as criancinhas, E casando, por união, Os que juntavam os corpos Por força do coração Do sangue dum grão-Cacique Nasceu um dia um menino, Trazendo um lunar na testa, Que era bem pequenino: Mas era um cruzeiro feito Como um emblema divino!... E aprendeu as letras feitas Pelos padres, na escritura; E tinha por penitência Que a sua própria figura De dia, era igual às outras... E diferente, em noite escura!... Diferente em noite escura, Pelo lunar do seu rosto, Que se tornava visível Apenas o sol era posto; Assim era Tiaraiú, Chamado Sepé, por gosto.

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Esse segundo conjunto destaca o papel dos missionários no desenvolvimento cultural e no espírito religioso dos povos das missões, sacramentando as famílias e provendo a educação das crianças, cujo exemplo paradigmático é dado pelo nascimento de Sepé Tiaraju com o seu característico lunar3.

Eram armas de Castela Que vinham do mar de além; De Portugal também vinham, Dizendo, por nosso bem: Mas quem faz gemer a terra... Em nome da paz não vem! Cresceu em sabedoria E mando dos povos seus; Os padres o instruíram Para o serviço de Deus, E conhecer a defesa Contra os males dos ateus... Era moço e vigoroso, E mui valente guerreiro: Sabia mandar manobras Ou no campo ou no terreiro; E na cruzada dos perigos Sempre andava de primeiro. Das brutas escaramuças, As artes e artimanhas Foi o grande Languiru Que lh'ensinou; e as façanhas, De enredar o inimigo Com o saber das aranhas... E tudo isso aprendia; E tudo já melhorava,

3 Se, como adjetivo, lunar significa referente à lua, como substantivo designa uma mancha congênita, ou sinal, gravada na pele, geralmente em forma de meia-lua. No caso de Sepé o lunar tinha a forma estelar do cruzeiro.

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Sepé-Tiaraiú, chefe Que os Sete Povos mandava, Escutado pelos padres, Que cada qual consultava.

Nesse terceiro grupo de estâncias exaltam-se a liderança e as qualidades guerreiras de Sepé, cumprindo-se a predestinação sinalizada pelo lunar.

Eram armas de Castela Que vinham do mar de além; De Portugal também vinham, Dizendo, por nosso bem: Mas quem faz gemer a terra... Em nome da paz não vem! E quando a guerra chegou Por ordem dos Reis de além, O lunar do moço índio Brilhou de dia também, Para que os povos vissem Que Deus lhe queria bem... Era a lomba da defesa, Nas coxilhas de Ibagé, Cacique muito matreiro Que nunca mudou de fé: Cavalo deu a ninguém... E a ninguém deixou de a pé... Lançaram-se cavaleiros E infantes, com partasanas, Contra os Tapes defensores Do seu pomar e cabanas; A mortandade batia, Como ceifa de espadanas... Couraças duras, de ferro, Davam abrigo à vida Dos muitos, que, assim fiados, Cercavam um só na lida!...

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Um só, que de flecha e arco, Entra na luta perdida...

Esse quarto conjunto narra a saga de Sepé que, conforme o imaginário popular, entra na luta abençoado por Deus.

Eram armas de Castela Que vinham do mar de além; De Portugal também vinham, Dizendo, por nosso bem: Mas quem faz gemer a terra... Em nome da paz não vem! Os mosquetes estrondeiam Sobre a gente ignorada, Que, acima do seu espanto, Tem a vida decepada...; E colubrinas maiores Fazem maior matinada!... Dócil gente, não receia As iras de Portugal: Porque nunca houve lembrança De haver-lhe feito algum mal: Nunca manchara seu teto...; Nunca comera seu sal!... E de Castela, tampouco Esperava tal furor; Pois sendo seu soberano, Respeitara seu senhor; Já lhe dera ouro e sangue, E primazia e honor!... A dor entrava nas carnes... Na alma, a negra tristeza Dos guerreiros de Tiaraiú, Que pelejavam defesa, Porque o lunar divino Mandava aquela proeza...

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Nesse penúltimo conjunto de estrofes ressoa o lamento dos povos das missões diante do sem-sentido de uma guerra injusta e de antemão perdida pelos representantes do bem que, no entanto, tinham que cumprir o destino traçado pelo lunar divino.

Eram armas de Castela Que vinham do mar de além; De Portugal também vinham, Dizendo, por nosso bem: Mas quem faz gemer a terra... Em nome da paz não vem! E já rodavam ginetes Sobre os corpos dos infantes Das Sete Santas Missões, Que pareciam gigantes!... Na peleja tão sozinhos... Na morte tão confiantes!... Mas o lunar de Sepé Era o rastro procurado Pelos vassalos dos Reis, Que o haviam condenado... Ficando o povo vencido... E seu haver... conquistado! Então, Sepé foi erguido Pela mão de Deus-Senhor, Que lhe marcara na testa O sinal do seu penhor! O corpo, ficou na terra... A alma, subiu em flor!... E, subindo para as nuvens, Mandou aos povos benção! Que mandava o Deus-Senhor Por meio do seu clarão... E o lunar na sua testa Tomou no céu posição... Eram armas de Castela

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Que vinham do mar de além; De Portugal também vinham, Dizendo, por nosso bem... Sepé-Tiaraiú ficou santo Amém! Amém! Amém!...

E o poema se encerra com a celebração da vitória de Sepé sobre a morte: seu lunar toma no céu a posição do Cruzeiro do Sul e o grande chefe é canonizado e imortalizado como santo no imaginário popular. Sua memória se incrustou definitivamente na geografia do Rio Grande do Sul em cujo centro se localiza a cidade de São Sepé, banhada pelas águas do Rio São Sepé, afluente do Vacacaí. Também a RS-344 recebeu o nome de "Rodovia Sepé Tiaraju". Com a extensão de 104 quilômetros, começa em Porto Mauá, na fronteira com a Argentina, passa por Tuparendi, Santa Rosa, Giruá e Santo Ângelo, chegando até Entre-Ijuís, no entroncamento com a BR-285. Esta, por sua vez, é uma das mais importantes rodovias do Rio Grande do Sul, pois liga Vacaria no nordeste do estado a Uruguaiana, no extremo sudoeste, passando por Passo Fundo, Carazinho, Ijuí, São Luís Gonzaga, São Borja e Itaqui.

Significado pedagógico da imagem de Sepé

A figura de Sepé, com tudo o que ela tem de verdade assim como com tudo o que nela há de lendário, é emblemática do projeto civilizatório e, especificamente, do modelo educativo levado a efeito pelos jesuítas: a aculturação dos indígenas nas tradições e costumes dos colonizadores, com ênfase na fé cristã inculcada por meio da catequese, cujo eixo era o trabalho pedagógico. Para os jesuítas o esforço de conversão devia guiar-se preferencialmente pelo convencimento. E este se dava por meio de práticas pedagógicas institucionais (as escolas) e não-institucionais (o exemplo). Se as primeiras eram mais visíveis, as segundas se revelavam bem mais eficazes porque impregnavam todos os

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aspectos da vida social, assegurando a adesão interior dos indígenas à nova forma de existência. Pelo mecanismo das reduções a visão de mundo dos jesuítas ordenava o universo inteiro da vida dos guaranis garantindo aos padres o controle e a supervisão de todos os atos por eles praticados. Se na vertente religiosa da concepção humanista tradicional de educação o homem é entendido como uma essência universal criada por Deus à sua imagem e semelhança; se, em conseqüência, nessa concepção o papel da educação é moldar a existência particular e real de cada educando à essência universal e ideal que o define como ser humano; se, portanto, isso significa que o modelo a ser imitado é o próprio Deus encarnado na figura de Jesus Cristo; se os homens que mais se aproximaram do modelo de Cristo na prática das virtudes por ele ensinadas são reconhecidos como santos; então, a santidade atribuída a Sepé é a prova robusta do êxito do trabalho pedagógico dos jesuítas, enquanto expressão da plena aculturação dos indígenas na visão de mundo cristã.

Após a derradeira migração representada pela derrota militar dos guaranis, as reduções tiveram uma sobrevida que se estendeu até a expulsão dos jesuítas pelo governo espanhol, aplicada às Missões por decreto de 2 de janeiro de 1768. Isso ocorreu, evidentemente, na margem ocidental do Uruguai que continuou sob jurisdição espanhola. Mas de certo modo se deu também na banda oriental com os "Sete Povos das Missões" cuja região, pelo Tratado de Madri, passaria para o domínio português. Com efeito, aos espanhóis aquela guerra soava estranha, pois se revelava contrária aos interesses de seu país, ao transferir para os portugueses aquela importante região. Assim, os espanhóis encarregados da demarcação das novas fronteiras foram protelando os trabalhos, tendo em vista ganhar o máximo de tempo possível. Nessa situação, parte dos guaranis reocupou as reduções devastadas que apenas nominalmente passaram ao domínio português.

Imediatamente após a migração forçada dos jesuítas decorrente do mencionado decreto de banimento assinado em 2 de

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janeiro de 1768, tivemos mais uma contundente e indiscutível demonstração do êxito do trabalho educativo realizado pelos inacianos. Trata-se da carta dirigida pela Municipalidade da Missão de São Luís Gonzaga ao Governador de Buenos Aires, Marquês de Bucareli. Nessa carta escrita em guarani, datada de 28 de fevereiro de 1768, os membros da municipalidade "e todos os caciques e índios, mulheres e crianças" dirigem-se confiantes ao governador, "com toda a humildade e de lágrimas nos olhos" pedindo "que seja permitido aos filhos de Santo Inácio, aos padres da Companhia de Jesus, continuarem residindo entre nós e aqui permanecerem sempre". Ao mesmo tempo em que fazem essa súplica com "os rostos banhados em lágrimas", eles afirmam: "quanto aos monges e padres que nos foram enviados para substituir os padres da Companhia de Jesus, não os queremos", pois eles "não cuidam de nós, ao passo que os filhos de Santo Inácio eram cheios de bondade por nós. Foram eles quem, desde o princípio, cuidaram de nossos pais, os instruíram, os batizaram e os salvaram para Deus e o rei". Comprometem-se, caso o "bom senhor governador" atenda à sua súplica, a pagar "um tributo mais considerável em erva-mate", acrescentando: "não somos escravos e queremos fazer ver que não nos agrada o costume espanhol que quer que cada um cuide de si, em lugar de se ajudarem mutuamente em seus trabalhos cotidianos". E declaram ao governador que, sem a volta dos jesuítas "esta Missão perder-se-á como as outras. Estaremos perdidos para Deus e para o rei; cairemos sob a influência do Demônio, e onde encontraremos então socorro, na hora da nossa morte?" (LUGON, 1976, p. 307-309).

Conclusão

As migrações nos séculos XVI e XVII fizeram-se da Europa Ocidental para o Novo Mundo pelo impulso da conquista de novos espaços e novos mercados por parte da ascendente

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burguesia. Deu-se, então, um processo contraditório em que a "força civilizadora" perpetrou atrocidades inauditas dizimando indígenas aos milhões e forçando os sobreviventes a contínuas migrações internas. Essa foi a ação de ingleses ao Norte das Américas, de espanhóis ao Centro e ao Sul e de portugueses ao Sul. Complementarmente os negros africanos eram arrancados de suas terras de origem e, em grandes e forçadas migrações, transportados para o trabalho escravo nas "plantations" das Américas. Esse processo culminou, no século XIX, com a constituição do mercado mundial, conforme assinalou Marx em carta a Engels datada de 8 de outubro de 1858:

A verdadeira missão da sociedade burguesa é criar o mercado mundial, pelo menos em suas grandes linhas, assim como uma produção condicionada pelo mercado mundial. Como a terra é redonda, essa missão parece acabada com a colonização da Califórnia e da Austrália assim como a abertura do Japão e da China. Para nós, a questão difícil é esta: sobre o continente europeu, a revolução é iminente e ela toma um caráter socialista, mas não será ela abafada nesse pequeno canto, já que, sobre um terreno muito mais vasto, o movimento da sociedade burguesa é ainda ascendente? (MACHADO, 2002, p. 32).

Como demonstrou Marx, a economia capitalista se caracteriza por crises cíclicas intercaladas com períodos de grande desenvolvimento. Assim é que, após o período de "boom" econômico entre 1848 e 1870, sobrevém na Europa a "grande depressão" (1873-1895) que atingiu, sobretudo, as populações agrícolas que então compunham a maioria dos habitantes dos diferentes países europeus. Conforme testemunha Eça de Queiroz em artigo de 1888, a crise européia parecia sem saída:

Não sei o que aí se passa nessa viçosa América. Mas aqui neste ressequido continente, há já mais de dois anos, aqueles que se distinguem por conhecer as coisas das nações [...] recomeçam a inquietar-se e a gritar sombriamente: -

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A situação da Europa é medonha. Sob as crises que a sacodem, já a máquina se desconjunta. Nada pode suster o incomparável desastre. Este fim de século é um fim de mundo! (QUEIROZ, apud MACHADO, 2002, p.32).

Mas o fenômeno das migrações proporcionou uma válvula de escape à crise que parecia inevitável, como constata o próprio Eça de Queiroz:

Para o proletariado a emigração é a solução material da miséria, para o Estado é o remédio do pauperismo! Poucos governos há, com efeito, na Europa, que não se tenham valido da emigração como um paliativo, indireto mas eficaz, à densidade de população, aos acréscimos da miséria, às crises industriais (QUEIROZ, apud MACHADO, 1999, p.33).

Assim, a partir do último quartel do século XIX, levas e levas de emigrantes se deslocaram do Velho para o Novo Mundo, sendo o Brasil um dos principais alvos dessa grande onda migratória. Entre 1881 e 1930 migraram de Portugal para o Brasil 1.070.351 pessoas.

No momento atual vem se observando uma inversão no fluxo migratório que passa a ocorrer predominantemente das nações periféricas para os países centrais do sistema capitalista, impondo desafios de ordem social, política e educacional. Hoje, como ontem, as decisões são tomadas em nível central, gerando efeitos deletérios para grandes contingentes da população mundial oriunda da periferia do capitalismo. Em 1750 as autoridades de Espanha e Portugal decidiram a sorte dos guaranis, o que resultou na destruição da promissora experiência social e do modelo educativo dos sete povos das missões. Hoje as autoridades dos países europeus, aparentemente seguindo a orientação da União Européia, expulsam cidadãos dos países periféricos e enrijecem os mecanismos legais que dificultam a entrada de imigrantes. Parafraseando Eça de Queiroz, podemos dizer que este início de século é um início de fim de mundo para os deserdados da terra

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que povoam a América Latina, África e grande parte da Ásia. A Europa de Eça de Queiroz logrou escapar da crise recorrendo à emigração. Os deserdados de hoje também se lançam na onda emigratória. Mas os que ontem decidiram pela emigração são os mesmos que hoje a inviabilizam dificultando, por diferentes meios, a imigração. Que modelo educativo poderá dar conta dos conflitos e contradições que atravessam o fenômeno das migrações neste tumultuado mundo em que vivemos?

Referências

ALVES FILHO, Ivan (1999). Brasil, 500 anos em documentos. Rio de Janeiro, Mauad.

GAMA, José Basílio (2006). O Uraguai, 5ª ed. Rio de Janeiro/São Paulo, Record.

LUGON, Clovis (1976). A República "comunista" cristã dos garanis: 1610-1768, 2ª ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra.

MACHADO, Maria Cristina Gomes (2002). Rui Barbosa: pensamento e ação. Campinas, Autores Associados.

MORUS, Thomas (1966). A utopia. Rio de Janeiro, Edições de Ouro.

SOUSA, Octávio Tarquínio (1939). Colecção documentos brasileiros, vol. 19, Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora (disponível também em http://historiaaberta.com.sapo.pt/lib/ doc016b.htm Acesso em 28 de abril de 2008).

Dermeval Saviani é Professor Emérito da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e Coordenador Geral do Grupo Nacional de Estudos e Pesquisas "História, Sociedade e Educação no Brasil" (HISTEDBR).

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Recebido em 11/08/2008 Aceito em 15/11/2008

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DUAS PRÁTICAS PEDAGÓGICAS NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES BRASILEIROS NA DÉCADA DE 1930: LIVROS E CADERNOS

Eurize Caldas Pessanha Carla Busato Zandavalli Maluf de Araujo

Resumo O objetivo deste trabalho é analisar a articulação entre duas práticas pedagógicas presentes nos cursos de formação de professores na década de 1930: a utilização de livros didáticos e a anotação dos "pontos" nos cadernos dos alunos das Escolas Normais da época. Constituem corpus da pesquisa, os livros didáticos comprovadamente utilizados, a documentação escolar existente nos arquivos das escolas e as anotações dos cadernos de duas alunas da época. Os livros identificados e analisados foram: Noções de Higiene de Afrânio Peixoto, Editora Francisco Alves; Didactica (Nas escolas Primárias) de João Toledo, Livraria Liberdade; Pedagogia Científica: Psicologia e direção da aprendizagem de Alfredo Miguel Aguayo y Sanches, Companhia Editora Nacional e Noções de Psicologia Aplicada à Educação, de Iago Pimentel, Editora Melhoramentos. A análise confirmou o papel dos livros didáticos como suporte das práticas pedagógicas, mas indicou também que, embora as anotações nos cadernos tenham sido baseadas nos livros adotados, estes não eram seguidos religiosamente pois há omissões, acréscimos e interferências que tanto podem ser atribuídos a outros livros utilizados quanto aos próprios professores das disciplinas. Parece claro, portanto, que a formação de habitus nas Escolas Normais da década de 1930 não era pautada integralmente pelos conteúdos e valores dos livros didáticos adotados.

Palavras-chave: Livro didático; Formação de professores; Escola Normal; Cadernos escolares.

TWO PEDAGOGICAL PRACTICIES IN THE BRAZILIAN TEACHINHG TRAINING COURSES IN THE 1930’S:

TEXTBOOKS AND NOTEBOOKS Abstract The aim of this paper is to analyze the link between two teaching practices in teaching training courses in the 1930’s: the use of textbooks and the writing of "topics" in the student’s notebooks in the Normal Schools of the time. The corpus of the research is formed by the textbooks provenly used, the documentation available

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in the schools files and the notes taken in the notebooks of two students of the time. The identified and analyzed textbooks were: Notions of Hygiene by Afrânio Peixoto, Francisco Alves Publisher; Didatics (In Primary Schools) by João Toledo, Livraria Liberdade Publisher; Scientific Pedagogy: Psychology and learning management by Alfredo Miguel Aguayo y Sanches, Companhia Editora Nacional Publisher and Notions of Psychology Applied to Education by Iago Pimentel, Melhoramentos Publisher. The analysis confirmed the role of the textbooks as a support to the teaching practices, but it also indicated that, although the notes in the notebooks had been based in the used textbooks, the textbooks were note religiously followed, since omissions, additions and interferences, attributed either to other textbooks used or to the teachers themselves, could be noticed. It seems to be clear, therefore, that the formation of habitus in the Normal Schools in the 1930’s was not entirely ruled by the contents and the values of the used textbooks.

Keywords: Textbooks; Teacher training; Normal School; Notebooks.

DOS PRÁCTICAS PEDAGÓGICAS EN LA FORMACIÓN DE PROFESORES BRASILEROS EN LA DÉCADA DE

1930: LIBROS Y CUADERNOS. Resumen El objetivo de este trabajo es analisar la articulación entre dos prácticas pedagógicas presentes en cursos de formación de profesores en la década de 1930: la utilización de libros didácticos y la anotación de los "puntos" en los cuadernos de los alumnos de las Escuelas Normales de la época. Constituyen corpus de la pesquisa, los libros didácticos comprovadamente utilizados, la documentación escolar existente en los archivos de las escuelas y las anotaciones de los cuadernos de dos alumnas de la época. Los libros identificados y analisados fueron: Nociones de Higiene de Afrânio Peixoto, Editora Francisco Alves; Didactica (En las escuelas Primárias) de João Toledo, Librería Libertad; Pedagogía Científica: Psicología y dirección del aprendizaje de Alfredo Miguel Aguayo y Sanches, Compania Editora Nacional y, Nociones de Psicología Aplicada a la Educación, de Iago Pimentel, Editora Melhoramentos. El análisis confirmó el papel de los libros didácticos como soporte de las prácticas pedagógicas, pero indicó también que, aunque las anotaciones en los cuadernos hayan sido baseadas en libros adoptados, éstos no eran seguidos religiosamente pues hay omisiones, aumentos e interferencias que tanto puedem ser atribuídos a otros libros utilizados cuanto a los propios profesores de las disciplinas. Parece claro, portanto, que la formación de habitus en las Escuelas Normales de la década de 1930

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no era pautada integralmente por los contenidos y valores de los libros didácticos adoptados.

Palabras Clave: Libro didáctico; Formación de profesores; Escuela Normal; Cuadernos escolares.

DEUX PRATIQUES PÉDAGOGIQUES DANS LA FORMATION DE PROFESSEURS BRÉSILIENS DANS

LA DÉCENNIE DE 1930: DES LIVRES ET DES CAHIERS

Résumé Le but de ce travail est celui d’analyser l’articulation entre deux pratiques pédagogiques présentes aux cours de formation de professeurs dans la décennie de 1930: l’utilisation de livres didactiques et la notation des "points" sur les cahiers des élèves des Écoles Normales à l’époque. Le corpus de la recherche est constitué par les livres didactiques utilisés, par la documentation scolaire préservée aux archives des écoles et par les notations faites à l’époque sur les cahiers de deux élèves. Voilà les livres identifiés et analysés: Notions d’hygiène, d’Afrânio Peixoto, Francisco Alves éditeur; Didactique (dans les écoles primaires), de João Toledo, Librairie Liberdade; Pédagogie Scientifique: psychologie et direction de l’apprentissage, d’Alfredo Miguel Aguayo y Sanches, Companhia Editora Nacional et Notions de Psychologie appliquée à l’éducation, d’Iago Pimentel, Melhoramentos éditeur. L’analyse a confirmé le rôle des livres didactiques comme support des pratiques pédagogiques; elle a indiqué par contre que les notations sur les cahiers, tout en étant appuyées sur les livres adoptés, ne les suivaient pas rigoureusement, car l’on peut y trouver des omissions, des ajouts et des interférences qui peuvent être attribués à d’autres livres aussi bien qu’aux professeurs eux-mêmes. Il paraît donc évident que la formation de l’habitus dans les Écoles Normales de la décennie de 1930 n’était pas définie par les contenus et les valeurs des livres didactiques adoptés.

Mots-clés: Livre didactique; Formation de professeurs; École Normale; Cahiers scolaires.

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1 Introdução

O presente artigo insere-se no debate que vem se intensificando no âmbito do grupo de pesquisa, OBSERVATÓRIO DE CULTURA ESCOLAR1, a respeito da necessidade de enfrentar as particularidades da escola sem perder de vista a totalidade histórica. Para o quê, tanto a etnografia quanto a historiografia e os estudos comparados são instrumentos metodológicos indispensáveis. No caso específico dos dados aqui analisados, os estudos comparados, pensados "como uma história das relações, possibilitaram a análise das relações entre sujeitos e práticas, entre espaços sociais, culturais e territoriais, entre saberes e poderes, entre discursos e ações". (Catani, 2007: 168), complementados pelo recurso às fontes como material essencial para discutir a história da escola e do currículo, introduzindo nas análises, uma espécie de retórica: "[...]eis o período histórico, eis a sua ideologia pedagógica, eis as legislações e, finalmente, eis as fontes que testemunham todos esses aspectos" (Pessanha et al., 2007: 1).

Processo semelhante ao garimpo, a localização de fontes depende em grande parte de acasos como os que possibilitaram o acesso às fontes que desencadearam esta investigação. Em um desses acasos, Araújo (1997), ao entrevistar uma normalista da década de 1930, Ayd Camargo César, que cursou a Escola Normal Joaquim Murtinho em Campo Grande, Mato Grosso2., recebeu como presente quatro cadernos bem conservados, material

1 Grupo de pesquisa cadastrado no Diretório de grupos de pesquisa do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, órgão de fomento à pesquisa do governo brasileiro) cujo objetivo é investigar a cultura escolar na confluência entre história e sociologia. 2 Na época, Mato Grosso era uno, apenas a partir de 1979, foi oficializada a divisão do Estado, dando origem ao estado de Mato Grosso do Sul.

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que constituiu uma das fontes primárias de sua pesquisa. Alguns anos mais tarde, ao tentar localizar informações sobre sua própria formação no Liceu de Humanidades de Campos, Pessanha encontrou, em alguma gaveta esquecida da casa onde moraram seus pais, dois cadernos de anotações de sua mãe, Penalva Caldas, outra normalista que cursou a Escola Normal de Campos, Rio de Janeiro.

Tendo analisado separadamente estes cadernos (Araújo, 1997; Pessanha, 2008) as duas autoras perceberam as relações entre os mesmos e decidiram analisar a articulação entre as duas práticas pedagógicas presentes nos cursos de formação de professores na década de 1930: a utilização de livros didáticos e a anotação dos "pontos" nos cadernos dos alunos das Escolas Normais da época, objetivo do presente artigo.

Entre as práticas de seleção de conhecimento e da negociação do currículo que se pode entrever nos cadernos de Ayd e Penalva, destaca-se o registro de "pontos" que serviriam como base para estudos posteriores. Quer fossem copiados de livros ou do quadro-negro ou ditados pelo professor, há indícios desse uso nos dois cadernos, por meio de palavras sublinhadas e de "recados" a outros leitores, como expresso nos seguintes trechos:

Este final é meu, tirado do outro ponto. Nesta chamada (1), você volte ao outro ponto de aliment(.) e copie o lá está marcado até X". (Caderno de Penalva).

Em entrevista à Araújo, Ayd "[...] acentua que as aulas de Didática eram baseadas em definições, no resumo e exposições de textos de livros de Didática, feitos pelo professor no quadro negro". (Araújo, 1997: 137).

A utilização de livros didáticos como guias dos professores já vem sendo enfatizada por vários pesquisadores (Bittencourt, 1993; Correa, 2000; Munakata, 2004; Gatti Junior, 2004). Eram eles que, paralelamente aos programas oficiais, orientavam os mestres sobre a função do ensino de uma

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determinada disciplina, constituindo-se "[...]em poderosa fonte de conhecimento da história de uma nação que, por intermédio de sua trajetória de publicações e leituras, dá a entender que rumos seus governantes escolheram para a educação". (Correa, 2000: 16).

Por serem escassos e de difícil acesso aos alunos, os professores os utilizavam e resumiam, ditavam ou indicavam que os alunos copiassem partes deles mesmos. Além da explicitação de Ayd Camargo César sobre essa prática, Araújo (1997: 20 – 93) cotejou e encontrou identidade entre vários trechos dos cadernos de Didática e Pedagogia e os livros sobre esse tema que circulavam na época e, no caderno de Penalva há menção explícita a um livro de Higiene.

Para efeito deste artigo, os livros identificados e analisados foram: Noções de Higiene, de Afrânio Peixoto, publicado pela Editora Francisco Alves, edição de; Didactica (Nas escolas Primárias), de João Toledo, publicado pela Livraria Liberdade, edição de 1934; Pedagogia Científica: Psicologia e direção da aprendizagem de Alfredo Miguel Aguayo, publicado pela Companhia Editora Nacional, edição de 1953 e Noções de Psicologia Aplicada à Educação, de Iago Pimentel, publicado pela Editora Melhoramentos, 3ª edição.

2 O lugar de produção das fontes

Desde a criação da primeira escola para formação de professores no Brasil, a Escola Normal de Niterói, fundada na capital da província do Rio de Janeiro, em 1835, a história do ensino normal no país revela uma trajetória descontínua de criação sem implantação, aberturas e fechamentos, uma sucessão de projetos irrealizados, só se consolidando a partir nas últimas décadas do século XIX

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Pode-se pois dizer que nos primeiros 50 anos do Império, as poucas escolas normais do Brasil, pautadas nos moldes de medíocres escolas primárias, não foram além de ensaios rudimentares e mal sucedidos. (TANURI, 2000: 65).

O que contribuiu para o desprestígio das Escolas Normais, levando os governos das províncias a utilizar um sistema de formação de professores que hoje chamaríamos "em serviço" contratando aprendizes como auxiliares de professores e lançando mão dos exames e concursos para o recrutamento de professores.

Destinadas exclusivamente a alunos do sexo masculino, foram aos poucos sendo abertas às mulheres até se tornarem, na metade do século XX, o nicho para as filhas das classes médias urbanas (Pessanha, 1994).

As Escolas Normais sempre fizeram parte dos sistemas provinciais3, e seu currículo, nas primeiras décadas de sua existência, limitava-se ao conteúdo dos estudos primários, com uma única disciplina de formação (Pedagogia ou Métodos de Ensino) de caráter essencialmente prescritivo (Tanuri, 2000: 67-67).

Resumidamente, pode-se afirmar que as transformações sociais, políticas e econômicas, que alteraram profundamente a sociedade brasileira, no final do Império e nas primeiras décadas da República, também se expressaram nas Escolas Normais que, ao final da década de 1920, já estavam consolidadas como espaços de formação dos professores capazes de garantir uma educação "salvadora da sociedade" (Nagle, 1974). Na esteira do escolanovismo, os estados realizaram vários processos de reforma do ensino normal diferenciando ainda mais a formação de

3 Embora, em 1879, tenha surgido a primeira proposta do poder central para os Cursos de Formação de Professores, seria a Reforma Leôncio de Carvalho (Decreto 7247, de 19/4/1879), que iria servir como modelo para as próximas reformas de algumas províncias e da própria Escola Normal da Corte instalada em 1880 (Tanuri, 2000).

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professores de um estado para outro. Tanto na duração quanto nos objetivos e currículos não havia uniformização4; embora muitos, por terem sido influenciadas pela reforma paulista de 1890, apresentassem "coincidências" indicativas das "relações entre sujeitos e práticas, entre espaços sociais, culturais e territoriais, entre saberes e poderes, entre discursos e ações" mencionadas por Catani (2007:168).

A formação de professores nas cidades onde estudaram as duas normalistas era objeto de preocupação dos grupos políticos de ambas e tanto a criação quanto a manutenção das respectivas Escolas Normais foram resultado de intensa mobilização.

A Escola Normal de Campos, na cidade de Campos, norte do Estado do Rio de Janeiro, foi criada em 1894 e instalada em 1895, no antigo Solar do Barão da Lagoa Dourada, anexa ao Liceu de Humanidades de Campos. As histórias dessas duas escolas só se separarão em 1954, quando, por força5 da Lei de nº 2146, de 12 de maio, da Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, passou a funcionar em novo endereço, devido à criação do Instituto de Educação de Campos que, para fazer jus ao nome, seguindo o modelo do Instituto de Educação do Rio de Janeiro, deveria agregar um Grupo Escolar e um Jardim de Infância, já existentes no novo prédio, e um Ginásio que foi instalado dois anos depois.

Martinez (2004) identificou sete fases na história dessa escola, desde a sua fundação em 1895 até a sua separação do Liceu de Humanidade de Campos, em 1954. Martinez (2004: 98) elaborou uma periodização baseada nas alterações na identidade da escola, identidade que, segundo a autora, "sofreu

4 Essa situação só vai se alterar com a Lei Orgânica do Ensino Normal (Decreto 8530/1946) que unificava suas diretrizes embora mantivesse a descentralização administrativa, cabendo a cada estado regulamentar a formação de professores no âmbito de sua jurisdição. 5 É preciso sublinhar a palavra força uma vez que a mudança não foi imediatamente aceita como se pode ver em Martinez et al. (2004)

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forte impregnação da política educacional do Estado do Rio de Janeiro e do contexto nacional, assim como de modelos de formação docente. [...] potente presença de valores republicanos nas primeiras três décadas de vida da instituição; assim como uma intensa interferência do governo Vargas após o ano de 1931; e continuidades e rupturas após 1947, no período de redemocratização da sociedade." O período que interessa à análise proposta para este trabalho, é a 5ª Fase, de 1931 a 1938, marcada exatamente pelo funcionamento do Curso de Especialização e Aperfeiçoamento que alterou, entre outros aspectos, o currículo da Escola e que engloba todo o período em que a normalista Penalva Caldas estudou na escola. Martinez et al. (2004) afirmam que, para ex-alunas, o Decreto Lei de nº 2.539, de 13 de janeiro de 1931, representou o fim da antiga Escola Normal, isso porque o decreto extinguiu a Escola Normal de Campos com currículo de quatro anos, na qual se ingressava após um exame de admissão, criando em seu lugar o Curso de Especialização e Aperfeiçoamento. Na verdade, o referido decreto Lei dava nova forma ao Curso Normal, organizado agora em duas partes: o Curso Secundário, com cinco séries, e o Curso de Especialização e Aperfeiçoamento (CEA), com um ano de duração.

Em 21 de abril de 1930, foi instalada em Campo Grande, estado de Mato Grosso, região centro-oeste do Brasil, a primeira escola pública de formação de professores na região sul do Estado, a Escola Normal Joaquim Murtinho, quase cem anos depois da instalação da Escola Normal na capital do Estado. As escolas normais existentes no sul do estado foram instituídas em 1930, sendo que a Escola Normal Dom Bosco, mantida pelas freiras salesianas, passa a funcionar no mesmo ano, tendo formado sua primeira turma em 1933. E a Escola Normal Joaquim Murtinho, administrada pelo Estado, passa a funcionar um ano depois, havendo indícios de que, durante o ano de 1930, foi ministrado o Curso Complementar, antecedendo o Curso Normal. Essa conquista deveu-se à mobilização dos grupos políticos do sul

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do Estado, agora mais fortes devido à ascensão econômica e ao aumento da população da região, estimulados pela construção da Ferrovia Noroeste do Brasil que ligou a região a São Paulo. Araújo afirma que tal demanda "[...] foi alimentada também pela hostilidade existente entre o sul e o norte do estado, pois com a inexistência do Curso Normal em Campo Grande, todos os cargos eram destinados às normalistas cuiabanas."6 (1997: 116).

A história da Escola Normal Joaquim Murtinho se insere no mesmo quadro apontado por Tanuri (2000): implantada em 1930, entra em processo de extinção, a partir de 1937, quando se impede a matrícula na primeira série, até seu fechamento completo em 1940; em 1948, é reativada7. Parece claro que, para a cidade de Campo Grande, na década de 1930, a criação de um curso para formação de professores atendia às mesmas aspirações que levaram à criação de uma Escola Normal na cidade de Campos, no século XIX.

Apesar de algumas semelhanças, os Planos de Estudo das duas escolas também apresentavam diferenças por estarem vinculadas a sistemas estaduais diferentes8, embora na mesma década.

Desde 1931, a Escola Normal de Campos exigia que as futuras professoras cursassem o Curso Secundário, com duração de cinco anos, com as seguintes disciplinas9: nas cinco séries - Português; Geografia; Desenho; História da Civilização; em

6 Originárias e formadas e Cuiabá, capital do estado. 7 Dados obtidos em Araújo (1997). A falta de professores habilitados e competentes é considerada por moradores entrevistados por Araújo (1997, p. 119) como o motivo do fechamento 8 A existência de coincidências entre os planos de estudo das duas escolas reflete as marcas dos reformadores paulistas (Tanuri, 2000), identificadas e analisadas mais detalhadamente por Araújo (1997) e Boynard (2006) 9 As informações sobre a estrutura curricular, horários, exames e distribuição das disciplinas foram extraídas de Dutra (2005).

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quatro séries - Francês (da 1ª à 4ª série); Matemática (na 1ª, 3ª 4ª e 5ª séries); Inglês (na 2ª 3ª e 4ª séries); Física (na 3ª 4ª e 5ª séries); Química (na 3ª 4ª e 5ª séries); em três séries - Educação Física (da 3ª à 5ª série); em duas séries - Latim (na 4ª e 5ªséries); Ciências Físicas e Naturais (na 1ª e 2ª séries); História Natural (na 1ª e 2ª séries); Trabalhos Manuais e Música (na 1ª e 2ª séries): e o Curso de Especialização e Aperfeiçoamento, correspondendo ao sexto ano, com as disciplinas: Pedagogia; Metodologia Didática; Higiene (incluindo puericultura e primeiros cuidados médicos) e Educação Física. Todas com três aulas semanais, sendo que as duas primeiras incluíam aulas práticas – uma para Pedagogia e duas para Metodologia Didática, além de duas aulas teóricas cada uma. Para as aulas de Metodologia, eram reservados dois dias da semana e as demais disciplinas ocupavam os outros três.

O Plano de Estudos da Escola Normal Joaquim Murtinho, de 1931 a 1935, assim especificava: Primeiro ano – Português, Aritmética, Francês, Geografia, Desenho (às vezes acompanhado de caligrafia); Segundo ano - Português, Aritmética, Francês, Geografia, Desenho (às vezes acompanhado de caligrafia) e Psicologia; Terceiro ano – Português, Pedagogia e Psicologia, Física e Química, História Natural, História Universal, Higiene e Desenho (às vezes acompanhado de caligrafia); Quarto ano – Didática e História da Educação, História do Brasil e Educação Cívica, Física e Química, Literatura, História Natural, Higiene.10

10 Dados obtidos por Araújo (1997) nos Livros de Atas da Congregação da Escola Normal Joaquim Murtinho e Curso Anexo/ 1931-1971. Campo Grande, Acervo da Escola Estadual de Primeiro e Segundo Graus Joaquim Murtinho; Livro de Registro de Nomeações, licenças e portarias da Escola Normal Joaquim Murtinho e Curso Complementar/ 1934-1938. Campo Grande, Acervo da E.E.P.S.G. Joaquim Murtinho; Livro de Atas de Exames Trimestrais e Finais da Escola Normal de Campo Grande e Curso Anexo/ 1931-1935. Campo Grande, Acervo da E.E.P.S.G. Joaquim Murtinho; Livro de Portarias da Escola Normal Joaquim Murtinho e Modelo Anexa/ 1934-1945. Campo Grande,

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3 Os cadernos

Como já foi mencionado, os cadernos das normalistas foram as fontes provocadoras desta investigação. Os quatro cadernos de Ayd Camargo César continham anotações de aulas das disciplinas ministradas na Escola Normal Joaquim Murtinho em Campo Grande, Mato Grosso, em 1934 e 1935; dois com anotações das aulas de Didática, um de rascunho onde aparecem também anotações sobre Didática e um de pontos da cadeira de Pedagogia e Psicologia. Os cadernos de Didática contêm definições, descrições e explicações dos métodos de ensino, testes e, exercícios, questionários, exemplificações e explicações sobre a metodologia do ensino de diferentes áreas do conhecimento. Seus conteúdos abrangem elementos da Didática Geral, da Hodogética e de Didática Especial ou Metodologias do Ensino.

O primeiro caderno de Didática11 foi entregue com uma capa que, retirada, revelava uma outra, de papelão, de espessura fina, na cor verde, ilustrada com desenhos de flores e borboletas e, na parte superior, centralizado, um espaço com moldura e duas linhas onde estão escritos o nome da cadeira (Didática) e o da aluna; no mesmo espaço aparece a inscrição D. V. Capa Registrada. O caderno contém quarenta (40) folhas, sendo que trinta e cinco (35) foram usadas com anotações de Didática, a 36ª contém um ponto de História do Brasil e as demais não foram utilizadas.

O segundo caderno de Didática, já foi entregue sem capa, com os mesmos desenhos do anterior, mas em cor bege. Na capa, aparece o nome, Aid(sic) César e, na outra linha, 4º Ano

Acervo da E.E.P.S.G. Joaquim Murtinho; Livro de Discriminação de Matérias Lecionadas na ENJM/ 1935-1941.Campo Grande, Acervo da E.E.P.S.G. Joaquim Murtinho. 11 Descrição mais detalhada dos cadernos de Ayd Camargo César encontra-se em Araújo (1997: 23/24).

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Normal. Essa identificação não parece ter sido escrita pela normalista, dado o erro na grafia do nome.

O caderno de Pedagogia também tem capa de papelão fino, bege, mas com uma estampa diferente daquela dos cadernos de Didática: são desenhos de aviões e a inscrição Jahú. Na parte superior do caderno há, como nos demais, escritos a mão, Caderno de Pedagogia, Ayd Camargo César, Escola Normal Joaquim Murtinho e a data 10/08/1933. Data que corresponde ao terceiro ano do Curso Normal de Ayd. O caderno contém trinta (30) folhas sendo que apenas quinze foram usadas com os pontos de Pedagogia. As outras páginas são ocupadas com letras de música e, na folha final e na contracapa, está registrada a programação de cinema do ano de 1935.

O caderno de rascunho, menor do que os outros, contém apenas seis folhas, apresenta capa verde, de folha de seda. Na capa há, impressos: um brasão dos Estados Unidos do Brasil e partes de identificação com linhas pontilhadas, preenchidas pela aluna indicando se tratar da Escola Normal, caderno de Música, Seção...fem... Classe....... Ano...4° Numero. 8..; Aluna Ayd Camargo César; Professor a. Alice Andrade; Campo Grande, 25 de Março de 1934. Excluindo-se a informação da capa e o fato de ser um caderno com folhas quadriculadas, nada mais indica que ele tenha sido usado para anotações de Música. Esse caderno contém conteúdos de Didática, História Natural, Química e Física, Botânica, Higiene, entre outros que aparecem sem um título específico. Araújo (1997) formula a hipótese de que tal caderno tenha sido usado para anotações durante as aulas inclusive porque apresenta datas o que raramente aparece em outros cadernos analisados.

O caderno de Penalva Caldas é uma brochura, com folhas costuradas, capa verde com desenhos semelhantes a teias de aranha em azul, no centro das quais há o desenho de uma etiqueta de arquivo, contornada com linhas grossas em azul forte, com os dizeres CAPA REGISTRADA, impressos em maiúsculas, também em azul, que foi preenchida à caneta com a identificação

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da dona do caderno e da matéria a cujos registros se destinava: Higiene Penava Caldas 1ª turma - 6º ano. A contracapa apenas repete os desenhos da capa, sem o desenho da etiqueta12.

Assumindo que o que está escrito na última página identifique o conteúdo do caderno, este caderno contém pontos de Higiene, parte do conteúdo ministrado para a 1ª turma do Curso de Especialização e Aperfeiçoamento, mas identificada pela normalista como 6º ano.

Esse não deve ser o único caderno de pontos de Higiene, pois, na primeira linha da primeira página está escrito: Efeitos fisiológicos da iluminação (continuação). Assim mesmo – centralizado e sublinhado o título, mas não a palavra continuação entre parênteses. Esses detalhes parecem indicar que não se trata de um registro realizado em aula, ou, pelo menos, que fora passado a limpo. No caderno inteiro, aparecem sinais de escrita cuidadosa, com palavras sublinhadas e até desenhos.

A lista de temas é extensa, considerando que a normalista identificava os títulos escrevendo-os no centro da linha e sublinhando-os, seriam vinte e dois pontos que serão detalhados a seguir: Efeitos fisiológicos da iluminação (continuação) - seis linhas; Influência das cores - 11 linhas, duas delas escritas a lápis Sombras – 10 linhas, A boa iluminação e suas vantagens – 20 linhas,.Iluminação natural –20 linhas,.Fontes artificiais de luz,.Provisão dagua – 109 linhas,.Importância higiênica da alimentação – 86 linhas,.Alimentos e suas funções – 60 linhas,.Vitaminas – 70 linhas,.Clima e saúde – 72 linhas,.Reação alimentar – 100 linhas

.Leite - 93 linhas.Doenças de origem alimentar – 14 linhas,.Higiene individual – 9 linhas, Cuidados ao recém-nascido normal – a lápis – 80 linhas, Doenças de origem alimentar – 157 linhas,.Alimentação artificial do recém-nascido e seus inconvenientes – 65 linhas,

12 Descrição mais detalhada deste caderno encontra-se em Pessanha (2007)

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Higiene da boca –147 linhas,.Alimentação artificial do recém-nascido, suas necessidades e inconveniências. – 121 linhas,.Perturbações visuais – 88 linhas,.Higiene escolar – 15 linhas.

4 Os livros

Os quatro livros trabalhados nas Escolas Normais em Campos e no sul de Mato Grosso, eram publicados em São Paulo e no Rio de Janeiro e distribuídos pelo país todo. Eles serão descritos a seguir.

4.1 Noções de Higiene, de Afrânio Peixoto

PEIXOTO, Afrânio. Noções de higiene. 7. ed. ver. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1939. Edição revista e adaptada às Escolas Normaes, aos cursos de Farmácia e Odontologia, às Escolas Profissionaes, ao Ginásio e Liceus.

É possível perceber, no caderno de Penalva, a ligação com o livro de Afrânio Peixoto por várias indicações: ao final do "ponto" Reação alimentar aparece uma anotação, Alimentos animais Em A. Peixoto desde a pág. 173 a 180 e também desde 193 a 199 Ovos na pág 218; no meio do "ponto" Leite (depois da linha 24) aparece a seguinte anotação: O restante dessa parte, em A. P. nas págs 205, 206 e 207.; depois da última linha deste "ponto", Alimentos vegetais Em A. Peixoto, à pág. 220.

Não foram encontradas informações explícitas nos cadernos de Ayd sobre os livros didáticos que seriam fonte de suas anotações sobre Higiene no "caderno de rascunho". No entanto, há registro de que a obra de Peixoto foi um dos livros adotados, na década de 1930, na cadeira de Higiene na Escola Normal Joaquim Murtinho (Araújo, 1997: 141).

Afrânio Peixoto, médico, escritor e professor de Higiene foi um dos intelectuais que se empenharam na produção de textos

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que levassem às escolas os conhecimentos e valores necessários para a transformação da sociedade através da escola, "importante meio de difusão de um modo de vida civilizado". (Rocha, 2000). Em 1914, foi publicada a primeira versão desse livro, em co-autoria com o Dr. Graça Couto, com o título Noções de hygiene: Livro de leitura para as escolas pela Editora Francisco Alves & Cia.. A partir de 1921, agora tendo como único autor Afrânio Peixoto, com o título de Noções de Higiene, a obra foi sucessivamente reeditada até 1941, chegando a um total de 26700 exemplares. No entanto, o manual não foi recebido com aprovação unânime, chegando mesmo a figurar entre os livros rejeitáveis, em parecer de Sampaio Dória (Rocha, 2000: 6).

Ao que tudo indica, pelo menos neste caso, os docentes da disciplina Higiene da Escola Normal de Campos, dois médicos, Colatino Gusmão e Alpheu Braga, não seguiam as orientações dos paulistas, pois usavam e recomendavam o livro de Afrânio Peixoto. O mesmo acontecendo na escola normal do sul de Mato Grosso.

Como o autor explicita no primeiro parágrafo da Introdução:

A Higiene não e precisamente uma sciencia, porque é uma aplicação pratica de quase todas as sciencias. É um conjunto de preceitos, buscados em todos os conhecimentos humanos, mesmo fora e além da medicina, tendentes a cuidar da saúde e poupar a vida" (Peixoto, 1939: 7).

A discriminação dos conteúdos no Índice colocado ao final do livro evidencia a preocupação de abordar todos os assuntos que, segundo o autor, estivessem relacionados ao objetivo de cuidar da saúde e poupar a vida. Após uma primeira parte intitulada "INTRODUÇÃO AO ESTUDO DA HIGIENE: ASPECTO GERAL", com 36 páginas, são explicitadas as CONDIÇÕES GERAES DE SAÚDE, cujas 340 páginas abrangem o solo, a água, o ar, o clima, a alimentação, a roupa, a casa. Uma terceira

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parte, com 128 páginas, apresenta AS CONDIÇÕES ESPECIAES DA SAUDE, incluindo Puericultura, educação, exercício, trabalho, asseio, vida no campo e na cidade, concluindo com uma quarta parte dedicada ao AGRAVO À SAÚDE E MEIOS DE OS EVITAR, onde discorre sobre acidentes, doenças infecciosas, parasitárias e tóxicas, profilaxia e doenças comuns.

4.2 Didáctica, de João Toledo

TOLEDO, João. Didáctica: nas escolas primárias. João Toledo. 2. ed. rev. São Paulo: Livraria Liberdade, 1930.

O livro Didáctica, de autoria de João Toledo13, teve duas edições em 1930 e uma em 1934. Tivemos acesso a duas edições, a segunda, de agosto de 193014, e a terceira em novembro de 1934. A partir da leitura do livro, é possível observar semelhanças muito grandes, entre seus textos e as anotações dos cadernos de Ayd: os trechos longos de transcrição idêntica e a existência de seqüências de exercícios seguindo exatamente a mesma ordem encontrada no livro. Além disso, há semelhanças entre o conteúdo do livro e os conteúdos do Livro de Discriminação das matérias lecionadas. 1935/1940, da Escola Normal Joaquim Murtinho.

Segundo o Índice do livro de João Toledo, o livro se organiza em 13 partes, não numeradas, precedidas de uma Introdução, com o subtítulo de Didáctica Geral, registrado no índice como Novo rumo didáctico, de cerca de setenta páginas (abrangendo: Novo rumo didático; Actividade e Educação; Método e Processos de Ensino; O Aproveitamento Escolar e Sua Medida);

13 O nome completo do autor, segundo necrológio publicado no jornal "O Estado de São Paulo", em 23/12/ 41, seria João Augusto de Toledo. Há, porém, algumas variações em seu uso: João Toledo, João de Toledo, João Augusto de Toledo. Nesse trabalho, em especial, será adotada a forma mais citada pelas publicações da época e que consta na capa de todas as suas obras: João Toledo. 14 Arquivo histórico da Escola Estadual Maria Constança Barros Machado, em Campo Grande/MS.

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Programma; Actividade e educação; Méthodo e processos de ensino; Noções comuns; Linguagem; Cálculo; Geographia; Historia; Exercícios physicos; Desenho; O manualismo; Governo da classe. No caderno de Ayd, a Didática é dividida em: geral, especial, autonomia ou Hodogética. Esta divisão e seqüência correspondem exatamente à divisão e seqüência do livro Didáctica de João Toledo. No livro, parte mais extensa é destinada à Didática Geral, que trata do ensino de: Noções Communs, Linguagem, Cálculo, Geografia, Historia, Exercicios Fisicos e Desenho. Por último, é desenvolvida a Hodogética de forma bastante breve, onde são fornecidos conselhos acerca do governo de classe e há reflexões sobre a Escola e a Sociedade.

4.3 Noções de Psicologia, de Iago Pimentel

PIMENTEL., Iago. Noções de Psicologia Aplicadas à Educação. 11. ed. corrigida. São Paulo: Edições Melhoramentos, [1932].

Quando questionada sobre os textos utilizados pelo(a) professor(a) da cadeira de Psicologia, Ayd, apontou o uso do livro de Iago Pimentel 15, cujo título é: Noções de Psychologia Applicadas á Educação. E, realmente, uma comparação entre os títulos encontrados no caderno de pontos e aqueles presentes no índice do livro indica bastante semelhança. O mesmo não acontece quanto ao teor dos conteúdos registrados no caderno de pontos que, provavelmente, conforme relatos de Ayd, eram resumidos pelos professores a partir de vários livros, que não eram do acesso das alunas. Como já foi exposto anteriormente, esses "resumos" feitos pelos professores, na maioria das vezes, não mantinham o sentido original dos textos, havendo simplificações

15 Na capa do livro de sua autoria, o Dr. Iago Pimentel é citado como "Prof. de Psychologia Educacional na Escola Normal de Belo Horizonte". Há referências também de sua participação na III Conferência Nacional de Educação, compondo a delegação de Minas Gerais.

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dos conteúdos, o que gerava, em certos casos, alteração de significado. Para evidenciar as semelhanças indicadas serão transcritos, abaixo, parte do índice do livro de Iago Pimentel e a lista de títulos do caderno de pontos:

CAPITULO IX - A ACQUISIÇÃO DOS CONHECIMENTOS.

A percepção...............................................................234 CAPITULO X - A CONSERVAÇÃO DOS CONHECIMENTOS.

A memoria e as capacidades que a compõem; seu papel, suas variações e suas alterações ....................................................242

A memoria (conclusão): condições que favorecem a acquisição de uma lembrança; a conservação e o esquecimento das lembranças..........................................................................251 CAPITULO XI - A ELABORAÇÃO DOS CONHECIMENTOS.

1- A associação de idéias ............................................261 2-A imaginação .........................................................267 3-A abstração e a generalização...................................271 4-O juizo ..................................................................275 5- O raciocinio..........................................................278 6- A attenção: seu mechanismo e seu papel .................282 A attenção (continuação): suas formas e suas variações.286 A attenção e a educação (conclusão) ........................... 291

CAPITULO XII - A LINGUAGEM. 1-A linguagem falada .................................................296 2-A evolução da linguagem na creança. A linguagem e a

educação.............................................................................300 CAPITULO XIII - A PERSONALIDADE E O CARACTER.

1-A personalidade ......................................................305 2- O caracter.............................................................308

Quadro 1: Índice do livro de Iago Pimentel, Capítulos IX a XVII. (Pimentel, s/d: 315-316)

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Aperfeiçoamento dos sentidos da percepção. Atenção. Como se divide e como se educa a atenção. Memória. Base específica e educação da memória. Educação do Pensamento. Formação da linguagem. Educação Moral. Objetivo da educação Moral. Concepção da Pedagogia e formação da educação. Finalidade educativa. Educação cívica. (Caderno de Pontos, 1933: 1-29)

Quadro 2: Lista dos títulos do caderno de pontos de Pedagogia16.

4.4 Pedagogia Científica, de A.M. Aguayo

AGUAYO, A.M. Pedagogia Científica: Psicologia e direção da aprendizagem. Tradução e notas de J. B. Damasco Penna. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1953. Coleção Atualidades Pedagógicas.

Embora não tenha sido mencionado nas entrevistas, nem localizado nos cadernos de Ayd, Araújo identificou no Programa de Pedagogia e Psicologia em 1936 (Livro de atas, 1935-1944), a colocação do título Pedagogia Científica, seguido da transcrição dos mesmos títulos do índice do livro de A. M. Aguayo, "Pedagogia Científica", levando-nos a concluir que as idéias deste autor também estiveram na base do ensino de Pedagogia da Escola Normal Joaquim Murtinho, na década de 1930 e a incluir este livro nesta análise.

16 Os pontos aparecem no caderno nesta seqüência. Porém, contrariando esta ordem, ao lado de cada título, foi atribuído, após a cópia dos pontos, um número a cada um deles, provavelmente para ser usado como referência nas avaliações. Assim, por exemplo, o primeiro ponto intitulado: Aperfeiçoamento dos sentidos da percepção, é indicado como terceiro ponto. As referências feitas nesse trabalho, seguirão a ordem em que os pontos foram aparecendo no caderno e não a ordem numérica feita a posteriori.

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A edição analisada é de 1953, com tradução e notas de J. B. Damasco Penna, pela Companhia Editora Nacional, como parte da Coleção Atualidades Pedagógicas. Seu autor, Alfredo Miguel Aguayo, porto-riquenho radicado em Cuba, foi professor da Universidade de Havana e precursor dos movimentos para desenvolvimento das bibliotecas de Cuba, tendo publicado várias obras sobre o ensino: Pedagogia Científica: psicologia e direção da aprendizagem; Didática da escola nova; Filosofia Y Nuevas Orientaciones de la educación; El vocabulário de los niños cubanos (1920); Pedagogia para escuelas Y colegios normales (1940).

Além da transcrição dos títulos no caderno de Ayd, Araújo (1997) comparou e encontrou relações entre o livro e os cadernos na forma de tratar alguns temas como:

a) as diferenças individuais enfocadas no capítulo das "Diferenças de capacidade para aprender", onde aparecem as diferenças individuais e as diferenças devidas ao sexo, à raça, à idade e desenvolvimento mental, ao temperamento e caráter, e ao meio. Para salvaguadar a cientificidade da obra, há uma nota de rodapé na qual se condena, para fins científicos, a noção de "raça pura", e esclarecimentos do autor de que, frente a condições semelhantes de vida para as raças branca e negra, a diferença a favor dos homens brancos não é muito apreciável. Os índices mostrados, porém, são sempre favoráveis aos brancos. Há, inclusive, a citação de uma pesquisa sobre índios Norte-americanos que usa os seguintes escores: ¼ de sangue índio; ½ de sangue índio; ¾ de sangue índio; e raça pura. E a conclusão, " pouco suspeita", é de que à medida que aumenta a proporção de raça índia, desce o nível intelectual (Aguayo, 1953: 140-146).

b)A importância do ensino da geografia também é tratada por Aguayo, quando explica as causas pelas quais o ensino da leitura deveria começar apenas no terceiro ano primário. Ele afirma que:

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[...] a leitura se vale de símbolos e, segundo a psicologia, ao conhecimento dos símbolos deve preceder o dos fatos e idéias de caráter concreto, por exemplo, os seres e fenômenos da natureza, a geografia local, as indústrias, o trabalho manual, etc. (AGUAYO, 1953: 298).

5 As "interferências"

Embora as anotações nos cadernos tenham sido baseadas nos livros adotados, estes não eram seguidos religiosamente, já que há omissões, acréscimos e interferências que tanto podem ser atribuídos a outros livros utilizados quanto aos próprios professores das disciplinas. Consideramos importante registrar essas "interferências" que sugerem um processo de negociação tanto do currículo oficial para o qual Goodson (2005: 78) chama a atenção quanto da circulação das idéias pedagógicas longe dos centros onde foram produzidas: "O que está prescrito não é necessariamente o que é aprendido, e o que se planeja não é necessariamente o que acontece". Seguem alguns exemplos dessas dissonâncias, dadas pela apropriação das informações por diferentes sujeitos.

As definições presentes no caderno 1 abrigam vários assuntos: teste, método, equânime, educação, atenção, memória e moral. A palavra equânime é indicada como sinônimo de mau humor, e a princípio, além da incorreção de significado (pois equânime quer dizer igualdade de ânimo, serenidade de espírito, eqüidade em julgar), não se pode articulá-la com a Didática ou com as outras definições, mas no livro de João Toledo, no capítulo final referente à Hodogética, esta mesma palavra é usada numa das orientações para um bom governo de classe, quando o autor sugere "[...] normas práticas que a experiencia (sic) demonstrou serem boas". Na terceira norma: "Criar um ambiente de sympatia e de confiança no meio escolar", afirma-se:

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a) ser equânime, vir á escola sempre de ânimo igual; não sujeitar as crianças ás oscillações do seu humor, alegre e brincalhona um dia, carrancuda e irritada em outro. Quando u'a mágua ou uma contrariedade a molestarem, lembre-se, na porta de entrada, de que as crianças não têm culpa de seus males, e que, por isso, devem ser tratadas com o carinho e com os cuidados que sua debilidade e sua inexperiência reclamam.

Outro trecho do caderno 1 intitulado: "Sobre os metodos", apresenta uma retrospectiva dos processos de ensino da alfabetização e têm a mesma seqüência, mas teor diferente das afirmações de Toledo nas páginas 193-194 do livro Didáctica. Assim como em Toledo, nas anotações admite-se que, antigamente, o método sintético era usado para ensinar a criança a ler. Porém, afirma-se que o método subseqüente a este, era o fonético por palavras e que "modernamente", ensinava-se pelo método fonético por sentenças, o que contraria Toledo.

As orientações acerca da atenção e uniformidade de ação por parte dos alunos e do domínio do professor ao olhar toda a classe, bem como, a forma quase impositiva com que rege a classe, não se assemelham aos preceitos escolanovistas de auto-atividade, atividade a partir do interesse da criança, etc. Esse dado é bastante importante, na medida em que indica, entre artigos veiculados por uma revista declaradamente renovada, orientações de tom mais conservador, elemento igualmente presente nos cadernos de Ayd.

O que se percebe no tocante ao ensino da linguagem, é que as orientações adaptadas, em sua maioria, do livro Didáctica, de João Toledo, alteram em certa medida os princípios escolanovistas defendidos pelo autor. Essa alteração, porém, parece expressar o próprio embate das várias correntes educacionais presentes na década de trinta, e essencialmente, a oposição entre os católicos e os educadores liberais de vários matizes que se reuniram sob a bandeira do Escolanovismo. Expressa também, a própria situação do ensino no Sul de Mato Grosso, onde a adesão aos princípios escolanovistas foi certamente prejudicada pela

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desqualificação e desinformação dos docentes do ensino primário, em sua maioria, regentes leigos de escolas rurais ou isoladas.

6 Conclusões

A adoção ou consulta do livro de João Toledo, provavelmente durante toda a primeira fase da Escola Normal Joaquim Murtinho, confirma a tradição da influência pedagógica do Estado de São Paulo sobre o de Mato Grosso, e também, de certo modo, a busca da renovação educacional pelos professores do Sul do Estado, através da penetração do ideário e princípios da Escola Nova.

Em relação aos conteúdos de Higiene, a leitura atenta dos "pontos" permite situá-los como "uma espécie de receituário da vida moderna" como Rocha (2000:9) classifica o livro de Peixoto. Desde a iluminação da casa, da fábrica e da escola, até os cuidados com o recém nascido, são enunciadas as regras de bem viver todas fundamentadas em dados científicos:

Praticamente, pª sabermos se dentro de casa há boa iluminação, verificamos se em qualquer parte da mesma, vemos uma parte da abóbada celeste. Devido a isso, Forster chegou à seguinte conclusão: segue-se um gráfico para medir a incidência da luz natural (Caderno de Penalva).

Os alim veg contribuem de maneira diversa para a alimentação do homem: 1º com amiláceos que contem principalmente amido em cereais, legumes, raízes e tubérculos[...] (Caderno de Ayd).

Além do livro de João Toledo, a identificação dos livros de Pimentel e Aguayo como fontes, aliada à identificação dos conteúdos de Higiene, tanto nos livros quanto nos cadernos, indicam que a proposta de formação de professores no sul de Mato Grosso e no norte do Rio de Janeiro se revestia de um caráter

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científico-experimental que lhes dava maior legitimidade e contribuía para a profissionalização do magistério. No caso da disciplina Higiene, essa legitimidade era consideravelmente acentuada porque tanto o autor do livro quanto os professores traziam a aura da ciência que a profissão de médico lhes conferia.

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Eurize Caldas Pessanha é doutora em Educação pela Universidade de São Paulo (USP). Realizou estágio de pós-doutorado, como bolsista da CAPES, no Departamento de Curriculum and Instruction da Universidade de Wisconsin, em Madison, em 1999. Atualmente, é professora associada da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), onde atua no Curso de Pedagogia e no Programa de Pós-graduação em Educação. Endereço para correspondência: Eurize Caldas Pessanha Rua São Paulo 526 – Apt. 901 – Campo Grande – MS 79010-050 – Brasil Telefone 55 67 3324 3087

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Endereço eletrônico – [email protected]

Carla Busato Zandavalli Maluf de Araujo é professora da Universidade para o Desenvolvimento do Estado e da Região do Pantanal (UNIDERP), doutoranda do programa de pós-graduação Stricto Sensu em Educação da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), publicou o livro: Saberes em construção: a formação docente e suas relações pela Editora da Uniderp.

Recebido em 10/07/2008 Aceito em 15/11/2008

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GESTÃO ELEMENTOS DE UMA REALIDADE VIVENCIADA

Maria Aparecida Muccilo Newton César Balzan

Resumo Esse artigo teve como objeto de estudo o conceito de gestão que vem sendo instituído pela Secretaria de Estado da Educação do Estado de São Paulo a partir de meados da década de 1990, através de uma leitura da constituição da sociedade capitalista visando compreender a forma de gerir o setor público, em específico da educação no Estado de São Paulo. Como resultado, apontamos os princípios da organização empresarial nos moldes toyotista que são os vetores que orientam a política educacional da Secretaria de Estado da Educação.

Palavras-chave: Gestão; Gestão da Educação Estadual.

MANAGEMENT ELEMENTS OF A REAL EXPERIENCE Abstract This article had as study object the concept of management that comes being instituted for the State secretary of the Education of the State of São Paulo from middle of the decade of 1990, through a reading of the capitalist incorporation aiming at to understand the form to manage the public sector, in specific of the education in the State of São Paulo. As result, we point the principles of the enterprise organization in the molds toyotista that are the vectors that guide the educational politics of the State secretary of the Education.

Keywords: Management; Management of the State Education.

GESTIÓN ELEMENTOS DE UNA REALIDAD VIVENCIADA

Resumen Este artículo tiene como objeto de estudio el concepto de gestión que viene siendo instituído por la Secretaría Educación del Estado de São Paulo a partir de mediados de la década de 1990, através de una lectura de la constitución de la sociedad capitalista visando a comprender la forma de dirigir el sector público, específicamente de la educación en el Estado de São Paulo. Como resultado, apuntamos los princípios de la organización empresarial en los moldes toyotista

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que son los vectores que orientan la política educacional de la Secretaria de Estado de Educación.

Palabras Clave: Gestión; Gestión de la Educación Estatal.

GESTION: DES ÉLÉMENTS D’UNE RÉALITÉ VÉCUE Résumé Cet article a eu comme objet d’étude le concept de gestion institué par le Sécrétariat d’État de l’Éducation de São Paulo à partir du milieu de la décennie de 1990, à travers une lecture de la constitution de la société capitaliste, afin de comprendre la façon dont elle gère le secteur public, spécialement l’éducation à São Paulo. Les résultats montrent que les principes de l’organisation des entreprises selon le modèle toyotiste sont les vecteurs d’orientation de la politique éducationnelle du Sécrétariat d’État de l’Éducation.

Mots-clés: Gestion; Gestion de l’éducation de l’état

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Introdução

Os processos pedagógicos não podem estar desvinculados da subjetividade, da vida, dos valores, da dinâmica social, da cultura, da política, das ideologias etc. como conseqüência, nenhum processo didático pode ser entendido apenas como aplicação de técnicas ou metodologias; ao contrário, só tem sentido na articulação com as concepções da educação, da sociedade, da cultura e da política... (GAMBOA, 2001).

Assinalamos mudanças de ordem específicas, os cargos foram sofrendo alterações conceituais, como por exemplo, no ano de 2000 os Supervisores, Diretores, Vice-diretores e Professores-Coordenadores passaram a ser caracterizados como Gestores do Sistema Educacional.

Optamos por fazer a análise a partir da comparação entre o que é proposto nos Programas de Capacitação de Gestores e alguns desses eixos (revelando assim a concepção de gestão por parte da Secretaria Estadual de Educação) e o que nossos sujeitos pesquisados (Diretores) compreendem dessa concepção.

Para pesquisar a concepção de gestão, acreditamos ser necessário, sobretudo, contextualizá-la. Para tanto, buscamos compreender as metamorfoses do mundo contemporâneo no que diz respeito às políticas governamentais, às políticas econômicas e às relações entre capital e trabalho no contexto nacional e internacional.

Através de uma análise entre a Constituição Federal de 1988 e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional 9.394/96.

Na Constituição Federal de 1988, a preocupação com a Educação está no Artigo 36 (Inciso V) onde se estabelecem os princípios do ensino. No Inciso VI aparece pela primeira vez a preocupação com a gestão democrática do ensino público. Podemos dizer que aqui encontramos o embrião que desencadeará

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toda a discussão e consecução de documentos legais recentes sobre os princípios da gestão democrática na educação no Estado de São Paulo.

No nosso entender, o conceito de gestão democrática implícito quando da elaboração da Constituição Federal implicava muito mais o anseio de participação de diferentes entidades que representavam segmentos da sociedade em relação às decisões políticas e econômicas, do que a retórica sobre gestão democrática que tem perpassado as recentes mudanças em setores públicos.

Tal primazia da questão da participação foi resultado do processo de transição ditatorial para o regime democrático: uma concepção de democracia participativa a qual influenciara o projeto original de LDBEN.

Observamos também que não há na Constituição Federal qualquer referência sobre autonomia no gerenciamento educacional, outro tema bastante recorrente nas recentes discussões sobre sistema educacional.

No Capítulo III – Da Educação, da Cultura e do Desporto – Artigo 205 está que: A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. Já, na LDBEN 9.394/96, no Título II – Dos Princípios e Fins da Educação Nacional – o Artigo 2º assinala que a educação é dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.

Observamos que há uma inversão na ordem de responsabilidades em relação à educação, isto é, enquanto que a Constituição observa primeiramente a responsabilidade do Estado e depois a da família no processo educativo formal, a LDBEN coloca a responsabilidade em ordem inversa, ou seja, cabe primeiramente à família a responsabilidade de educar. Quanto à

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finalidade, ambas ressaltam a importância do exercício da cidadania e a importância da qualificação para o trabalho.

Podemos afirmar que a ideologia que permeou a consecução da Constituição Federal possui um caráter mais social, ou seja, a perspectiva de que o papel do Estado é o de provedor conforme os princípios da social-democracia. Com a LDBEN o princípio ideológico do neoliberalismo também é contemplado, ou seja, o do "Estado Mínimo", cujas características são as que apontamos quando analisamos a teoria monetarista.

Enquanto a sociedade brasileira ansiava pela obtenção de direitos políticos e sociais, sejam eles de inspiração socialista ou mesmo de cunho social-democrata, a crise que se instaurou a partir dos anos de 1970, (As duas grandes crises do petróleo), em várias partes do mundo, foram sinais do esgotamento do padrão produtivo do modelo em vigor. Assim, compreendemos que a concepção de social democracia1, juntamente com a concepção de cunho socialista, foram referenciais que influenciaram de forma decisiva a elaboração da atual Constituição2 que, conforme o então presidente da Assembléia Constituinte, Ulisses Guimarães, declarou promulgada a nova Constituição qualificando-a de "Constituição Cidadã".

Se o processo de redemocratização da sociedade nos anos 1980 garantiu a conquista de direitos sociais - legalmente falando - através da participação de uma assembléia eleita pelo voto

1 Para ANDERSON, (1988) citado por Gentili (1994, p. 118) "Criaram-se assim as condições para o retorno a uma institucionalidade democrática controlada, uma democracia da derrota ou, mais paradoxalmente, uma democracia "não-democrática", cuja base material se imbricava em duas das mais claras conquistas pós-ditatoriais: a traumatização subjetiva e a transformação objetiva da sociedade". 2 Num ensaio de 1995 (p. 63), Gentili observa que "As forças conservadoras, sob o argumento de que a Constituição de 88 foi fortemente influenciada pelas teses do centralismo e do estatismo de inspiração socialista e que agora o socialismo foi liquidado, querem 'depurar' o texto constitucional das referidas influências".

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popular, do ponto de vista da elaboração da nova LDBEN, os esforços empreendidos pelas entidades representativas dos diferentes segmentos da educação pública foram desconsiderados, haja vista a aprovação do projeto substitutivo do Senador Darcy Ribeiro.

Conforme SAVIANI (2001), o texto do primeiro projeto de LDB apresentado à Câmara dos Deputados ocorreu em dezembro de 1988. Observamos a predominância dos interesses do setor privado sobrepondo-se aos interesses sociais. A questão que fica é que "tudo o que é legal, é moral, é ético"?

Encontramos uma resposta no texto de Bernardo para esta questão:

Quanto à Ética, abstrata e com "e" maiúsculo, ela é o que jamais deixou de ser, a pior das hipocrisias. O cínico tem ao menos a desculpa de saber o que faz. O ético nem isso, já que a moral geral e universal serve para encobrir os resultados das ações não tanto aos olhos alheios, mas sobretudo aos que as praticam [...]. Os apelos ao coração e à ética só confundem onde seria necessário esclarecer. A administração de uma empresa pode, evidentemente, patrocinar a arte e as boas causas, aplicar os princípios da nutrição racional no refeitório dos trabalhadores, por exemplo, e dirigir discursos humanistas aos seus assalariados, assim como pode não praticar a corrupção e não recorrer a fraudes (BERNARDO, 2000, p. 7/8).

Deixamos aqui, uma reflexão ao possível leitor... Assinalamos uma questão que nos parece relevante, ou

seja, como articular os princípios de orientação da SEE/SP através dos Programas de capacitação e formação do gestor com o cotidiano das escolas visto que, conforme LÜCK (2002), a idéia de gestão educacional se desenvolve associada a outras idéias globalizantes e dinâmicas em educação..

No que se refere às idéias globalizantes e sua dimensão política e econômica, podemos apontar a questão da racionalização que tem permeado muitas das decisões governamentais e a

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aplicação de princípios como a reengenharia, o dowsinzing e a qualidade. Isso nos leva a apontar que tais princípios serão apregoados no Sistema Educacional e, portanto, os professores poderão ser tratados como operários e os alunos como clientes.

Em nosso entender, a se oficializar tal indício, o mesmo estaria desvinculado do princípio de que problemas globais demandam ações conjuntas, articuladas, onde haja compartilhamento de responsabilidade na tomada de decisão. Novamente nos reportamos a LÜCK (2002), ao assinalar que "os sistemas educacionais são organismos vivos e dinâmicos e se caracterizam por uma rede de relações entre os elementos que nelas interferem, direta ou indiretamente". Enfim, é necessário não perder de vista que o princípio da racionalidade não deve se sobrepor ao princípio da humanização da pessoa.

Isto nos levam a crer que a partir do suposto de que o poder público é incapaz de gerenciar e financiar a educação, e em nome da busca de maior eficiência e produtividade do sistema educacional, assistimos nos anos 90, a propostas governamentais que, pretensamente, visam ao aprimoramento da gestão, Uma dessas iniciativas diz respeito a mobilizar a sociedade para participar da construção de um sistema público de melhor qualidade. Tal participação tem se traduzido, por um lado, na implantação de mecanismos de gestão colegiada nos sistemas de ensino e nas unidades escolares, por outro, na solicitação de provisão direta e indireta de recursos financeiros, materiais e/ou humanos.

A sociedade e particularmente o empresariado vêm sendo convocados pelo Estado para contribuir na melhoria do sistema público de ensino, como condição para viabilizar o seu ajustamento à globalização da economia e às novas formas de organização da produção e dos processos de trabalho. À educação é atribuído papel estratégico, constituindo-se como fator produtivo. (SOUSA, 2006, p 255)

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Nota-se que, gradualmente, vem se explicitando uma perspectiva de delegar a cada escola a responsabilidade de viabilizar recursos na sociedade para a melhoria de suas condições, apoiada em padrões de gestão da educação que enfatizam a importância da autonomia administrativa e financeira da escola. O empresariado é o segmento social mais diretamente convocado para prover auxílios financeiros, com o agravante de abrir, também, a possibilidade de transposição para as instituições educacionais dos critérios de organizações empresariais, visando torná-la mais eficiente e produtiva.

[...] a privatização se coloca, ao menos no caso do ensino fundamental, não na perspectiva de retirada de financiamento público e transferência para o âmbito privado, mas, sim, na de complementação de recursos. Além desta, também fica evidente a perspectiva de adoção de uma lógica privada na gestão educacional; por um lado, ao pretender a apropriação dos critérios de organização empresariais pela escola, por outro, ao prever um mecanismo de gestão do sistema potencialmente gerador de uma diferenciação entre as escolas, fragmentando o sistema de ensino e acirrando as desigualdades. (SOUSA, 2006, p. 267)

Para consecução de nosso propósito, recorremos ao estudo de caso. Neste estudo, assim como nas leituras prévias sobre a problemática da Gestão Educacional, emergiram alguns temas que foram abordados pelos gestores pesquisados e que buscaremos analisá-los não só a partir das falas dos diretores como também problematizando-os na forma como estes temas estão presentes nos Programas de Capacitação dos Gestores e que expressam, tanto por parte dos diretores como da Secretaria de Educação, suas respectivas concepções de gestão. Dessa forma, a análise será entre as concepções presentes nos Programas, intercalando-as com referenciais teóricos que nos parecem pertinentes nesta análise.

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Indagamos os sujeitos pesquisados sobre o motivo pelo qual deu-se a passagem do termo direção para o de gestão, sua origem e sua implementação na reorganização da SEE/SP.

A grande diferença, afirma os sujeitos pesquisados é que o administrador era o senhor todo poderoso, absoluto. Com essa mudança o gestor tem que colher informações, dividir a responsabilidade com sua comunidade escolar, com o Conselho de Escola.

A modernidade caracterizada pela era da razão [...] e a confiança no poder transformador do homem proclamaram, no século XIX, uma escola capacitada para disseminar os conhecimentos acumulados e as luzes da razão; uma escola pública, universal e laica. (SANCHES In LOMBARDI (org.) 2001. p. 80)

O autor segue observando que o ideário da universalidade na educação que nutriu o pensamento latino-americano já discriminava a educação pública mínima, limitada a "ler, escrever e fazer contas" para a maioria da população, estando a educação integral e mais abrangente destinada aos setores privilegiados.

Para o sujeito M esse movimento da concepção "antiga" para a "moderna" passa pela divisão de responsabilidades com sua comunidade escolar, inclusive na decisão sobre como serão gastos os recursos financeiros.

Quando o sujeito G diz que o gestor tem que colher informações, dividir a responsabilidade com a comunidade, ela revela o propósito da gestão de forma descentralizada que, conforme BRESSER (1995), a estratégia da descentralização é uma das características da moderna administração pública gerencial.

Uma outra característica da moderna administração apontada por BRESSER (1995) – é orientada para o cidadão e para a obtenção de resultados – aparece na fala da Diretora P

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quando assinala que passa pela questão do mercado voltado para resultados, para a qualidade.

Outra característica apontada por BRESSER (1999) se refere a que os políticos e os funcionários sejam merecedores de grau limitado de confiança. Observamos também em relação às falas dos sujeitos semelhanças que remetem a uma concepção de gestão em "sintonia com o neoliberalismo", pois eles associaram Gestão à: "participação", "qualidade", "parceria".

Uma apreensão crítica da realidade nos permite supor que a abordagem dada pela SEE/SP também possui caráter unilateral. O "também" é porque Bresser Pereira foi Ministro da Administração e Reforma do Estado no Governo de Fernando Henrique Cardoso a partir de 1995, cuja concepção política de Estado é a Social Democracia. Quanto ao caráter unilateral da SEE/SP justifica-se com a abordagem feita no Circuito Gestão sobre Autonomia e Gestão de Recursos Financeiros nas Escolas.

A partir da segunda metade da década de 1990, a Secretaria da Educação promoveu: reorientação da natureza e da qualidade das intervenções; Integração dos aspectos humanos, físicos e materiais; Estabelecimento de parcerias com vistas a revolucionar a produtividade dos recursos públicos.

A SEE/SP assinalou que isto significa que o Estado passou da função de "mero gestor" de uma máquina gigantesca para o de articulador e integrador de um projeto de Educação, para formulação de uma política educacional que integrasse os mais diferentes aspectos, desde os recursos humanos, físicos e materiais, até o estabelecimento de parcerias com todas as agências responsáveis pela educação escolar, com vistas a revolucionar a produtividade dos recursos públicos.

Considerando o ponto de vista do Estado enquanto articulador da política educacional os apontamentos feitos acima pela SEE/SP revelam características da "Moderna Revolução Gerencial". É o caso da afirmação sobre o estabelecimento de "parcerias com vistas a revolucionar a produtividade dos recursos públicos".

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Considerando o ponto de vista da formação dos gestores, a nosso ver, a abordagem enfocada pelo Circuito Gestão peca por conceber os gestores com elevado grau de autonomia e ao mesmo tempo que suas competências já estão estabelecidas.

Num dos Módulos do Programa de capacitação de gestores é explicitada a perspectiva da "Revolução Gerencial" como aquela que enfatiza o caráter estratégico ou orientado por resultados, a descentralização, a flexibilidade, o desempenho contínuo e crescente, a competitividade, o direcionamento estratégico, a transparência e a cobrança de resultados. Esta perspectiva é apontada pela SEE/SP como a expressão da Revolução Gerencial com base em HOLMES (1995). Esta perspectiva de Revolução Gerencial é recorrente na recente retórica da gestão empresarial e, especificamente no que se refere ao caráter estratégico, MOTTA, (2000) assinala como sendo: um conjunto de decisões fixadas em um plano ou emergentes do processo organizacional. Observamos, porém, que no mesmo documento do Circuito Gestão que enfatiza o caráter estratégico orientado por resultados e, na seqüência desta referência, são apontadas as responsabilidades dos Diretores (gestores) da seguinte maneira: garantir plena informação a todos os membros da equipe; ajudar cada funcionário a entender a responsabilidade por sua carreira e por desenvolver as habilidades necessárias; suportar o direito do funcionário de ser um agente pró-ativo.

Numa perspectiva de análise mais crítica sobre a Revolução Gerencial, FRIGOTTO (1997) observa que os novos conceitos utilizados freqüentemente pelos "homens de negócios e seus assessores" – tais como qualidade total, flexibilização, pedagogia da qualidade e defesa da educação, competitividade e integração, dentre outros - são uma imposição de novas formas de sociabilidade capitalista tanto para estabelecer um novo padrão de acumulação quanto para definir as formas concretas de integração dentro da nova reorganização mundial.

No Programa de Capacitação dos Gestores foi apontado qual deve ser o Perfil do Gestor na "Nova Administração":

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estimular lideranças; competir quanto a resultados; possuir visão pluralista das situações; cristalizar suas intenções honestidade e credibilidade; fundamentar suas decisões; ser pluralista; comprometer-se com a emancipação de seus funcionários; atuar em função de objetivos. Essas características originam-se nos princípios das modernas estratégias da gestão empresarial. O fato de a SEE/SP apontá-las como relevantes implica a sua adoção, ou seja, tais requisitos são imprescindíveis aos novos gestores.

Quando comparamos tais requisitos com a maneira como o sujeito B se define, parece haver um diferença significativa, até mesmo na própria concepção de gestão. Enquanto para a SEE/SP subjaz a visão de totalidade e modernidade, na fala desta Diretora parece que se mantém a prática do controle e da centralização das atividades, bem como a separação entre conceber e executar, característica básica nos moldes do taylorismo e do fordismo. Analisando os limites e as prioridades do conhecimento gerencial, MOTTA, (2000) observa que a "Liderança é um processo no qual um indivíduo influencia outros a se comprometerem com a busca de objetivos comuns" (p. 39). Ela se constitui através de uma interação pessoal e como tal pode ser vista como uma função gerencial sobre o diretor contemporâneo. Justifica seu ponto de vista a respeito da liderança afirmando que:

O Dirigente contemporâneo é visto menos como um decisor racional, planejador, sistemático e supervisor de atividades ordenadas e mais como um desbravador de caminhos, encontrando soluções e tomando decisões com base em informações incompletas, coletadas esparsamente em meio a um processo gerencial fragmentado e descontínuo (MOTTA, 2000. p. 42).

Consideramos, portanto, que as qualidades apontadas por Motta ao identificar o diretor contemporâneo são as mesmas expressas pela SEE/SP quando especifica os recursos pessoais solicitados no contexto de Revolução Gerencial, para o Gestor que

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deve ter: Capacidade de trabalhar; em equipe; Capacidade de gerenciar um ambiente cada vez mais complexo; Criação de novas significações em um ambiente instável; Capacidade de abstração; Manejo de tecnologias emergentes; Negociação; Visão de longo prazo; Assumir responsabilidades pelos resultados; Comunicação.

Isto nos permite afirmar que para a Secretaria da Educação, o princípio da gestão empresarial contemporânea pode e deve ser implementado no Sistema Educacional posto que, enquanto líderes deste sistema "espera-se dos gestores uma ação cujas dimensões atinjam a Gestão Pedagógica, a Gestão de Materiais e Patrimônio, a Gestão de Pessoas e suas Inter-relações e a Gestão Financeira".

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional 9.394/96 afirma já no Artigo 1º parágrafo 2º "que a educação escolar deverá vincular-se ao mundo do trabalho e à prática social". Quando trata o Ensino Médio, no Artigo 35, inciso II afirma "a preparação básica para o trabalho e a cidadania do educando, para continuar aprendendo, de modo a ser capaz de se adaptar com flexibilidade a novas condições de ocupação ou aperfeiçoamento posteriores".

A idéia de "excelência" trata de mobilizar a competitividade entre as escolas e entre os alunos, organizando a educação como um campo de provas cujo objetivo principal é a seleção dos melhores. Buscar a excelência é buscar a estes, aos mais dotados, para tirá-los do suposto marasmo geral e colocar à sua disposição os melhores meios. A idéia da busca da excelência parte, explícita ou implicitamente, da aceitação da imagem de uma sociedade dual. Teoricamente há primeiro que encontrá-los, mas, em realidade, se encontram sozinhos, pois já denominaram-se a si mesmos ou seus pais já o fizeram por eles (ENGUITA, apud in GENTILI, 1997, p. 159). Portanto, a concepção de a educação institucional preparar o aluno para o mundo do trabalho ou, que ele seja capaz de reagir bem às situações imprevistas, que seja capaz de trabalhar em equipe perde o sentido ante a constatação feita por Enguita.

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Todavia, podemos pensar a Escola como um espaço para a formação sócio-histórico-cultural dos alunos e, portanto, retomamos a concepção de Paro (2001), na qual considera que a escola deve ser pensada como instituição que visa contribuir para a transformação social. Não se trata de concordar que a escola tal como está sendo conduzida propiciará transformações, trata-se sim, de considerar a possibilidade da transformação social vir a ocorrer através da escola.

Enquanto a escola pública tal como está visa formar cidadão crítico, capaz de reagir bem às situações imprevistas, com capacidade para trabalhar em equipe, conforme advogam os sujeitos pesquisados, sabemos que a dualidade mencionada por ENGUITA se mantém, haja vista que as escolas particulares continuam a investir na "excelência" da educação dos seus "clientes". Estes, por sua vez, a se manter a atual estrutura, irão se sobressair nos vestibulares, nos concursos, nas entrevistas, na vida....

Lembremos de FOUCAULT (1979) quando diz que: O importante, creio, é que a verdade existe fora do poder ou sem poder [...]. A verdade é deste mundo, ela é produzida nele graças às múltiplas coerções e nele produz efeitos regulamentados de poder. Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua ‘política geral’ de verdade: isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro (FOUCAULT, 1979, p. 12).

Assim podemos assinalar que o princípio da autonomia e da democracia é o que há de mais verdadeiro no atual sistema educacional.

Para os que conceberam tais Programas, é verdadeiro que o encontro de lideranças educacionais sintonizadas pelo compromisso de assegurar a qualidade da escola e o sucesso do

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aluno com o objetivo de envolver os grupos responsáveis pela gestão das escolas públicas da rede estadual na implementação dos princípios de gestão democrática, autonomia e participação presentes na LDB.

A autonomia é um conceito que perpassa tanto as concepções dos Diretores quanto da SEE/SP. Segundo AZANHA (1995)3 autonomia é "um termo quase que sagrado" nas discussões entre os gestores.

A autonomia aparece não só como característica a ser desenvolvida nos alunos mas também entre as diferentes instâncias. Em relação a esta última possibilidade, o sujeito H assinalou a importância do papel do Gestor em relação ao de Diretor visto que este último era de gabinete num sistema de centralização das decisões e, considerando ainda os novos paradigmas da educação.

A ênfase dada em relação a autonomia na gestão dos recursos financeiros, já o outro sujeito afirma que autonomia está intimamente vinculada à parceria com empresas privadas. Outro aspecto apontado refere-se à legalidade da autonomia, o que lhe confirma o caráter ambíguo; conforme observamos, com base em AZANHA, governar a si próprio não se coaduna com o princípio do cumprimento de diretrizes legais.

Concordamos com AZANHA (1995) quando ele observa que "quem, no Brasil de hoje, teria a ousadia de colocar-se contra a autonomia da escola ou de pôr em dúvida a conveniência de sua gestão democrática?" (p. 132).

Mas, diante da precarização do mundo do trabalho onde cada vez mais pessoas perdem seus empregos e onde a grande maioria dos jovens e adolescentes não vê perspectivas, a retórica sobre autonomia e democracia paira sobre os alunos, os pais, a comunidade e até mesmo sobre as mentes de gestores do Sistema de Ensino no Estado de São Paulo.

3 Este e outros textos foram fornecidos durante os Módulos do Circuito Gestão

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No que diz respeito ao conceito de democracia na escola, nos é pertinente retomar FRIGOTTO (1997) quando afirma que, "a realidade como socialmente dada necessita ser elaborada, desenvolvida no horizonte de maior universalidade. Democrática é a escola que é capaz de construir, a partir do dialeto (lingüístico, gnoseológico, valorativo, estético,cultural, em suma) uma ordem mais avançada e, portanto, mais universal".

O sujeito J comenta sobre o grau de participação dos gestores na definição das políticas educacionais. As grandes linhas da política da educação são definidas pela Secretaria.

Embora nos pareça claro que as instituições governamentais - neste caso a Secretaria de Estado - sejam as responsáveis pelas definições e implementação das políticas públicas, também nos parece pertinente retomar LÜCK (2002) que define Gestão associada ao fortalecimento da democratização do processo pedagógico, à participação responsável de todos nas decisões necessárias e na sua efetivação mediante um compromisso coletivo com resultados educacionais cada vez mais efetivos e significativos.

Portanto, assinalamos que se há democratização nas definições das políticas educacionais, não é bem isso que revela a Diretora. Parece que a democratização está apenas no nível da implementação dos princípios definidos nas instâncias superiores e não na sua elaboração, Boito Jr. (1999) nos diz que os neoliberais propõem a descentralização da administração da verba, mas não a democratização da decisão sobre seu montante e destino..

Tal postura diante das políticas públicas, nos remete a PARO (2001) sobre sua análise acerca das Políticas Educacionais. Observa que em conversas com professores, coordenadores pedagógicos e diretores de escola, pode-se perceber a falta, ou a presença ainda muito tímida, de posturas críticas sobre temas como o neoliberalismo, os efeitos da ação do Banco Mundial na política educacional, a privatização do ensino, a municipalização do ensino fundamental, a autonomia escolar, ou a organização da escolaridade em ciclos (p.29/30).

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Resumindo: os novos paradigmas do mundo do trabalho, ou conforme FRIGOTTO (1997), "os slogans dos homens de negócios", foram sobejamente disseminados junto aos gestores do sistema de ensino público no Estado de São Paulo. Segundo a Secretaria da Educação, cabe a estes gestores o papel de efeito multiplicador junto aos professores nas escolas.

Dessa forma, ter clareza quanto aos novos conceitos de Gestão e suas estratégias é parte do processo da reorganização do sistema educacional da SEE/SP e, segundo ela, são os novos gestores que terão a incumbência de formar os jovens para a cidadania, para o trabalho, enfim, possibilitar que eles desenvolvam todas as suas potencialidades e sejam passíveis de empregabilidade.

Iniciamos texto citando Gamboa (1997) posto que ele diz que: Os processos pedagógicos não podem estar desvinculados da subjetividade, da vida, dos valores, da dinâmica social, da cultura, da política, das ideologias...

Este pensamento nos é significativo, pois podemos considerá-lo para nós e nosso trabalho, ou seja, nossa dissertação está vinculada à nossa subjetividade, nossos valores, nossa ideologia, nossa cultura, enfim, a nossa vida e nossa concepção de pessoa e de sociedade.

Por isso, nos apropriaremos também do pensamento de OLIVEIRA (2001),4 num ensaio intitulado: Política Educacional nos anos 1990: educação básica e empregabilidade, onde ele diz que a idéia da educação como forma de mobilidade social divulgada no passado e a de educação para a empregabilidade do presente mitificam a realidade. Essa mitificação supõe que os problemas são conjunturais e para solucioná-los bastariam intervenções pontuais como, por exemplo, melhor distribuição de renda. Tal interpretação relega a questão política a um problema meramente distributivo.

4 In Dourado & Paro (org.), Políticas Públicas & Educação Básica, p. 110.

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Essa concepção aplicada à gestão na educação nos permite assinalar que intervenções como as que foram feitas via Programas de Capacitação são pontuais e talvez não resultarão em transformações de fato na educação e na sociedade se forem feitas desvinculadas de discussões mais gerais visando á real formação dos gestores para que realmente sejam agentes multiplicadores e contribuam para que a escola possa exercer o papel que lhe cabe: o de transformação da sociedade através da formação de indivíduos, de cidadãos de fato.

Tecendo considerações

Há muito que a educação tem sido espaço privilegiado para a divulgação ou mesmo, para a inculcação do modelo ideológico, político e econômico hegemônico. Como não poderia deixar de ser, ela não escapou aos tentáculos das recentes reformas neoliberais. Os mesmos princípios e estratégias que orientam as (re)organizações empresariais do setor privado são adaptados para orientar o gerenciamento de instituições públicas de forma geral e da instituição educação, no Estado de São Paulo, em específico.

Conforme observamos, esses princípios e estratégias não podem ser compreendidos deslocados da dinâmica internacional, das estratégias do projeto neoliberal.

A evidência dessa influência na educação institucional está no que pudemos constatar/apurar no material oferecidos pelos Programas de Capacitação de Gestores e através das observações no caderno de bordo dos nossos sujeitos.

Embora alguns temas sejam específicos da Administração Pública, a abordagem de temas pelos Programas de Capacitação denotam o enfoque apreciado no universo empresarial, estes são relacionados aos atributos imprescindíveis do líder, tipos de liderança, assertividade, dinâmicas sobre como ser um vencedor, análise transacional, atitudes positivas, relações de amizade e cumplicidade, superação de barreiras, lidar com

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conflitos, trabalho coletivo, decisões compartilhadas, resistência à mudança, enfim, um leque de novos slogans que estão no centro dos debates sobre a forma de gerenciamento na era da globalização.

Para tanto, entre outras análises, consideramos os Programas de Capacitação de Gestores como uma ferramenta capaz de explicitar tal concepção. O que encontramos foi uma abordagem inconsistente dos temas presentes na perspectiva da racionalidade administrativa, tornando-os efetivamente slogans que mais servem para causar impactos do que propriamente para propor a gestão democrática, participativa e voltada para a construção de uma educação mais justa.

Tal inconsistência pode ser constatada a partir de um dos textos de apoio oferecido num dos Programas, cuja autora argumenta que, nos últimos anos do século XX, sob o impacto das enormes mudanças ocorridas na sociedade, do avanço da tecnologia e dos meios de comunicação de massa, da constatação cada vez mais óbvia de que a sociedade do futuro será a do conhecimento e que este determinará a riqueza das nações, é promulgada na Lei de Diretrizes e Bases nacionais (LDB) aprovada em 1996.

No que se refere ao impacto das mudanças, ao avanço da tecnologia e dos meios de comunicação de massa, não podemos fechar os olhos e negar que o mundo mudou e que tais mudanças criam novas necessidades.

Em relação à modernização e real democratização para o sistema educacional brasileiro, também cabem considerações. Os princípios da modernização da sociedade remontam ao pensamento iluminista que, conforme GAMBOA apud in LOMBARDI, 2001, p.80.

caracterizada pela razão (cogito cartesiano), recuperação da experiência sensível [...] e a confiança no poder transformador do homem proclamaram, no século XIX, uma escola capacitada para disseminar os conhecimentos

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acumulados e as luzes da razão: uma escola pública, obrigatória, universal e laica.

Não obstante, a confiança no poder transformador do homem implica que consideremos as condições sócio-históricas dos sujeitos sociais. No caso brasileiro, prevaleceu desde os primórdios da colonização a imposição de modos de ser, de pensar, de viver, enfim uma cultura europocêntrica, patriarcal e autoritária. Dessa forma, considerar que vivemos numa democracia plena implica desconsiderar a extrema desigualdade social e as contradições que o ideal da modernização não conseguiu extirpar, ao contrário, o fenômeno da exclusão se acentuou, mesmo em países centrais.

Os projetos educativos são o resultado dos jogos de poder presentes em todo grupo humano [...]. Tanto a revolução das máquinas-ferramentas como a revolução informacional tem desenvolvido e potencializado o trabalho e a comunicação dos homens, mas pouco tem alterado suas relações de poder, devido à permanência das formas de organização social e das relações de propriedade que, apesar das transformações dos meios de produção [...] ainda regem a sociedade nos moldes da propriedade privada e a acumulação ampliada das riquezas geradas pelos processos produzidos por um reduzido número de capitalistas (SANCHES, 2001. p. 87).

Tais constatações nos conduzem à assertiva de que o princípio da racionalidade administrativa nas organizações conforme a estratégia toyotista tem sido o vetor que orienta o sistema educacional.

Mas, apesar de termos constatado que o princípio da autonomia e da democratização da gestão da educação são princípios legalmente constituídos que, por sua vez, foram sobejamente atentados no Circuito Gestão, na prática isto tem se revelado inconsistente na medida em que, conforme observamos no capítulo anterior com base em FUSARI et al (2001), a lógica que nos leva a afirmar que a função histórica do Estado – a de ser

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provedor dos serviços públicos e, entre eles, o serviço educacional – está sendo substituída pelo do Estado avaliador, controlador e punitivo.

Trata-se de uma orientação política falaciosa que não assume o compromisso com a elevação da qualidade do ensino. Ao contrário, essas políticas implementam a redução dos gastos públicos com a educação e se mantêm indiferentes a questões tão relevantes como a carreira e o salário do magistério (FUSARI et al, 2001. p. 14).

Nesta perspectiva e na de uma conjuntura em que o ser humano vale pelo que ele representa e pelo que tem, alimentado pela mass media, parece não ser muito difícil a flexibilidade, por parte dos nossos Diretores, não apenas ao de reproduzir, mas ao de reproduzir de forma inconsistente o discurso oficial. Talvez seja, também por isso, que nossos sujeitos em nenhum momento se assumiram como pedagogos, deixando transparecer que são apenas executores das diretrizes estabelecidas pelo governo do Estado.

Assinalamos com base em Antunes que, enquanto o taylorismo/fordismo se apropriava do trabalho físico do proletário - o toyotismo se apropria, também, daquilo que o taylorismo/fordismo desprezou: o saber intelectual.

Deixamos, em registro... Que gestor é esse?...

Referências

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SOUZA, Aparecida Neri de. Alternativas para uma gestão democrática na educação: desafios para a construção de alternativas democráticas. In Participação da sociedade civil na

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educação: alternativas para melhoria da escola pública. São Paulo: Documentos IBEAC n.8. São Paulo: Laser Press, 1995.

Maria Aparecida Muccilo é Professora da Faculdade Integrada Metropolitana de Campinas e Diretor de escola - Secretaria de Estado da Educação.

Newton César Balzan é Professor voluntário/aposentado da Universidade Estadual de Campinas, bolsista - categoria/nível 1"a" do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico e professor titular da Pontifícia Universidade Católica de Campinas.

Recebido em 08/06/2008 Aceito em 15/11/2008

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O CULTIVO DE VALORES EXEMPLARES: "GALERIA DOS PATRONOS DE ESCOLAS", DE

ANTÔNIO D’ÁVILA (1980-1989) Thabatha Aline Trevisan

Resumo Com o objetivo de contribuir para a história da educação brasileira e para o campo da imprensa periódica pedagógica, apresentam-se resultados de pesquisas desenvolvidas por meio de abordagem histórica do tema, centradas em pesquisa documental e bibliográfica. Neste artigo, destacam-se a produção de biografias, uma contribuição do educador Antônio d´Ávila para o periódico Jornal dos Professores, publicação do Centro do Professorado Paulista (CPP). Os resultados enfatizam o que era levado em conta para a elaboração das biografias e a constituição da representação ideal de ser professor.

Palavras-chave: Imprensa pedagógica; Biografia; Antônio d’Ávila; Pesquisa histórica em educação.

EXEMPLARY VALUES CULTIVATION: "GALERIA DOS PATRONOS DE ESCOLAS", BY ANTÔNIO D´ÁVILA

(1980-1989) Abstract In order to contribute for the comprehension of the History of Education in Brazil and to the research on pedagogical periodic press, they are presented the results of the research developed through the historical approach of the theme, focused on documented and bibliographic research. In this paper, the key feature is the production of biographies, a contribution from Antônio d´Ávila, an educator from São Paulo State, for the periodical Jornal dos Professores, published by the Centro do Professorado Paulista. The results emphasize what was taken into account in the making of biographies and what would be the ideal representation of being a teacher.

Keywords: Pedagogical press; Biography, Antônio d´Ávila; Historical research on education.

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El CULTIVO DE VALORES EjEMPLARES: "GALERIA DE LOS PATRONOS DE ESCUELAS", DE ANTÔNIO

D’ÁVILA (1980-1989) Resumen Con el objetivo de contribuir para la historia de la educación brasilera y para el campo de la imprensa periódica pedagógica, se presentan resultados de pesquisas desarrolladas por medio de un abordaje histórico del tema, centradas en pesquisa documental y bibliográfica. En este artículo, se destacan la producción de biografias, una contribución del educador Antônio d´Ávila para el periódico "Jornal dos Professores", publicación del Centro do Profesorado Paulista (CPP). Los resultados enfatizan lo que era llevado en cuenta para la elaboración de las biografias y la constitución de la representación ideal de ser profesor.

Palabras Clave: Imprensa pedagógica; Biografía; Antônio d’Ávila; Pesquisa histórica en educación.

LA CULTURE DES VALEURS EXEMPLAIRES: "GALERIA DOS PATRONOS DE ESCOLAS", PAR

ANTÔNIO D’ÁVILA (1980-1989) Résumé Dans le but de contribuer pour l’histoire de l’éducation brésilienne la presse pedagogique périodique, on présente des résultats de recherches développées par le biais d’ abordage historique du thème, centrée sur la recherche documentale et bibliographique. Dans cet article, on a mis en évidence la production de biographies, une contribution de l’éducateur Antônio d´Ávila pour le periodique Jornal dos Professores, publication du Centro do Professorado Paulista (CPP). Les résultats montrent bien ce qui était pris en compte pour l’ élaboration des biographies et la constitution de la représentation idéal pour être professeur.

Mots-clés: Presse pédagogique; Biographie; Antônio d’Ávila; Recherche historique dans l’ éducation.

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Introdução

A utilização da imprensa periódica pedagógica como fonte ou como objeto de estudos apresenta relevantes contribuições para a História da Educação. Para Catani; Bastos (1997, p. 7), esse tipo de publicação constitui uma instância privilegiada para entender o funcionamento do campo educacional, uma vez que

faz circular informações sobre o trabalho pedagógico, o aperfeiçoamento das práticas docentes, o ensino específico das disciplinas, a organização dos sistemas, as reivindicações da categoria do magistério e outros temas que emergem do espaço profissional.

Além disso,

acompanhar o aparecimento e o ciclo de vida da imprensa periódica educacional permite conhecer as lutas por legitimidade que se travam dentro do campo e também analisar a participação dos agentes produtores do periódico na organização dos sistemas de ensino e na elaboração dos discursos que visam a instaurar as práticas exemplares. [...] na compreensão de discursos, relações e práticas que as ultrapassam e as modelam ou ao serem investigadas, de um ponto de vista mais interno [...] (CATANI; BASTOS, 1997, p. 7).

Este artigo visa a apresentar reflexão baseada em etapas de desenvolvimento de dois projetos de pesquisa: um de iniciação científica e outro de mestrado. Na iniciação científica iniciei o processo de elaboração de um instrumento de pesquisa referente às publicações de e sobre o professor Antônio d´Ávila, sua atuação profissional e sua produção escrita1. No mestrado, esse 1 Das atividades de iniciação científica (Bolsa PIBIC/UNESP/CNPq), resultou ainda o Trabalho de Conclusão de Curso de graduação intitulado Um estudo sobre Práticas Escolares (1940), de Antônio d´Ávila (TREVISAN, 2003).

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instrumento de pesquisa foi ampliado e resultou, ao final da dissertação, em um guia de fontes.

A elaboração do instrumento de pesquisa envolveu um trabalho árduo e meticuloso de localização, recuperação, reunião, seleção e ordenação de referências de e sobre Antônio d´Ávila, sua atuação profissional e sua produção escrita e resultou em um documento com mais de 300 referências. Todas foram recuperadas durante mais ou menos quatro anos (entre iniciação científica e mestrado), estão organizadas por seções, de acordo com o assunto principal de cada item documental que foi localizado, e foram referenciadas de acordo com a NBR-6023 (2002), da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT).

Dentre tantas referências, optei por destacar, neste artigo, a valiosa contribuição do educador paulista Antônio d´Ávila ao periódico Jornal dos Professores (JP), publicação oficial do Centro do Professorado Paulista (CPP), criado em 1964 e que até hoje se encontra em circulação. O período de publicação do JP foi delimitado entre 1980 e 1989, respectivamente, data da primeira publicação da coluna "Galeria dos Patronos de Escolas", escrita por Antônio d´Ávila, e data do último artigo da coluna, por ocasião do falecimento desse professor.

D’Ávila dedicou uma expressiva parcela de sua vida à educação, atuando como professor, como administrador escolar, como estudioso das questões educacionais, como escritor de manuais de ensino e livros de leitura para curso primário, como crítico pedagógico, como escritor de colunas de diversos jornais paulistas, de artigos em revistas, como tradudor, além de ter produzido várias biografias de educadores paulistas. Sua atuação não ficou limitada à capital paulista. D´Ávila percorreu o interior do estado com suas conferências e palestras, como membro do

Essas atividades estavam vinculadas ao GPHELLB e ao PIPHELLB (apoio e auxílio CNPq; auxílio FAPESP). Da pesquisa de mestrado (Bolsa FAPESP), resultou a dissertação intitulada A Pedagogia por meio de Pedagogia: teoria e prática (1954), de Antônio d´Ávila (TREVISAN, 2007).

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Conselho Estadual de Educação, como diretor do Departamento de Educação do Estado de São Paulo, na inauguração de Institutos de Educação e por intermédio da sua produção escrita.

Ele publicou no Jornal dos Professores 203 artigos, sendo 102 na coluna "Escola Pitoresca" e 68 na coluna "Galeria dos Patronos de Escolas". Não foi possível localizar os números 18, 19, 41 e 51 da "Galeria", o que nos dá um total de 64 homenagens2, e 37 artigos de temas variados sobre educação.

Essas biografias em homenagem aos professores que se "destacaram" no magistério paulista e, portanto, mereceram ser nomeados como patronos de escolas paulistas focalizam figuras que podem ser tomadas como exemplos dignos de imitação e de consideração por parte das futuras gerações.

Em "A ilusão biográfica", Bourdieu (2001) problematiza a questão das biografias pontuando as dificuldades de se trabalhar com a narrativa biográfica ou autobiográfica. Para ele, entender que a vida constitui um todo, um conjunto coerente e orientado, que a vida é organizada como uma história, ou seja, que "desenrola-se segundo uma ordem cronológica que é também uma ordem lógica, desde um começo [...] até seu fim" (BOURDIEU, 2001, p. 74 -75), significa tratar a vida "como a narrativa coerente de uma seqüência significativa e coordenada de eventos [...]" (BOURDIEU, 2001, p. 76), que, conforme ele aponta, pode ser uma "ilusão retórica".

Dada a complexidade dos aspectos envolvidas na vida de um indivíduo, sua personalidade, sua intimidade, aspectos que o biógrafo não consegue apreender e que, no caso de o biografado contribuir com seu relato, na maioria das vezes, não consegue relatar, pode-se pensar que a biografia não consegue retratar fielmente toda uma existência. Isso leva a crer que o biógrafo tem

2 A "Galeria" de número 32 aparece mencionada duas vezes, porém com patronos diferentes. Nesse caso, foram contadas pelos nomes dos biografados. É possível observar esse aspecto na relação feita sobre os homenageados nas páginas 5 e 6 deste artigo.

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a ilusão de que está fazendo uma narrativa "perfeita" da vida de uma pessoa, uma vez que, a partir dos acontecimentos relatados, ele procura dar coerência aos fatos narrados pelo biografado que, por sua vez, conta de forma selecionada, muitas vezes inconscientemente, o que lhe parece mais importante, o que ele quer que seja lembrado, que fique marcado da sua existência para todo o sempre.

Entretanto, as biografias de professores apresentam um significativo material para a história da educação, pois nelas o pesquisador pode identificar informações sobre o sistema de ensino, excertos de produção intelectual, publicações. É possível, ainda, analisar os discursos produzidos pelas biografias, bem como o que é salientado nelas e considerado relevante para a construção do perfil de ser professor e o que delas é omitido. Neste artigo, meu objetivo é compreender qual era o objetivo de d'Ávila com as biografias sobre os patronos escolares e quais aspectos da vida dos biografados eram enaltecidos, a fim de constituir a representação ideal de ser um professor, no período em que foram publicadas.

"Galeria dos Patronos de Escolas": a idealização do professor

A leitura, a análise e o estudo do ciclo de vida do Jornal dos professores3 evidenciaram que a elaboração de biografias como forma de homenagear os patronos das escolas paulistas era uma preocupação constante na trajetória editorial desse jornal, a fim de de valorizar simbólicamente a imagem do professor. Isso pode ser observado por meio das publicações de poesias e de artigos distribuídos pelas páginas do jornal e que configuram a imagem de professor, prescrevendo um modelo de atitudes, de condutas a serem seguidas pelos que se dedicavam ao magistério. Exemplifico essa constatação com os artigos: "O professor ideal", publicado em 3 Sobre o ciclo de vida do Jornal dos professores ver a dissertação de Lugli (1997).

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abril de 1965 (ano I, n.5); "Um mestre", publicado em setembro de 1973 (ano IV, n.55); "Figuras do magistério: Felício Marmo", publicado em fevereiro de 1977 (ano IV, n.124); e as homenagens e prêmios oferecidos ao "Professor do Ano", que colocavam em evidência, a cada "Dia do Professor", um associado da entidade, que se tornaria então um "símbolo das virtudes da classe", conforme se explicitou nesse jornal4. Esses exemplos podem caracterizar a modelagem e disciplinamento do professor.

Com a consideração desses aspectos é que tomo como "objeto cultural" a coluna "Galeria dos Patronos de Escolas", escrita por Antônio d’Ávila, porque penso que elas colaboram para a formação da imagem do professor ideal divulgada pelo CPP por meio do seu principal veículo de comunicação.

Antônio d’Ávila iniciou sua colaboração com o jornal em abril de 1965 (ano I, n.5), com o artigo intitulado "O poeta das crianças", totalizando, ao final, 203 artigos, distribuídos em duas colunas e artigos diversos, como já foi mencionado. Sua coluna sobre os patronos de escolas teve início no número de junho de 1980, ano XIV, n.170, e se encerrou em 1989, ano XXIV, n.239, com o falecimento do educador.

O primeiro artigo da "Galeria" expõe superficialmente as razões do autor inerentes à publicação dessa coluna: "Alimentamos um dia o projeto de organizar um livro, com a vida e a obra de patronos de nossas escolas". Com esse objetivo, d’Ávila informa ter recolhido "pacientemente, dados a respeito", em várias fontes: "revistas, jornais e prontuários". O educador não se esquece de agradecer aos muitos colegas do magistério, de vários pontos do Estado, que o ajudaram nessa busca: "enviaram com entusiasmo e prestez, soma riquíssima de biografias". Assim, ele tinha prontas "quatro centenas de estudos de patronos", sendo que "mais três centenas de biografias" estavam sendo elaboradas. E conclui otimista sua exposição: "temos a esperança de que o livro sairá um

4 Essa prática de premiação teve início em 1970 e terminou em 1984.

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dia. E enquanto esperamos por ele, vamos deixando no Jornal dos Professores algumas das biografias elaboradas [...]".

A coluna publicou o total de 68 biografias de patronos de escolas, porém conforme foi explicitado anteriormente, foram localizadas 64 delas e desse total a maioria (48) dos biografados era do sexo masculino. No Quadro 1, apresento os nomes de todos os patronos biografados, seguidos da numeração que foi dada para cada biografado e das datas de publicação pelo jornal.

Patrono biografado Nº Data Luis Antônio Fragoso 1 Jun./1980 Salvador Rocco 2 Ago./1980 Habib Carlos Kyrillos 3 Set/1980 José Closel 4 Out./1980 Monsenhor Passalacqua 5 Nov./1980 Francisco Gomes 6 Fev./1981 José Carlos da Silva 7 Mar./1981 Clemente Quáglio 8 Abr./1981 Maria de Carvalho Sene 9 Maio/1981 Isabel Vieira de Serpa e Paiva 10 Jun./1981 João Lourenço Rodrigues 11 Set./1981 Alpheu Dominiguetti 12 Nov./1981 Celestino Bourroul 13 Mar./1982 Orestes Guimarães 14 Maio/1982 Joaquim da Silveira Santos 15 Jul./1982 Thales Castanho de Andrade 16 Set./1982 Maria C. da Silva Grohmann 17 Out./1982 Amélia Moncon Ramponi 20 Mar./1983 Zalina Rolim 21 Abr./1983 Gastão Strang 22 Maio/1983 Sinésia Martini 23 Ago./1983 Guilherme Kuhlmann 24 Set./1983 Napoleão de Carvalho Freire 25 Out./1983 Plínio Paulo Braga 26 Nov./1983

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Patrono biografado Nº Data Maria Augusta de Ávila 27 Fev./1984 João Crisóstomo 28 Mar./1984 Gomes Cardim 29 Maio/1984 Valdomiro Silveira 30 Jun./1984 Roberto Mange 31 Set./1984 Anchieta 32 Out./1984 Thomaz Galhardo 325 Nov./1984 Jamil Pedro Sawaya 33 Fev./1985 Ezequiel M. Nascimento 34 Mar./1985 Messias da Fonseca 35 Abr./1985 Antonio Vilela Júnior 36 Maio/1985 Carlos Escobar 37 Jun./1985 João Baptista de Brito 38 Ago./1985 Amadeu Amaral 39 Set./1985 Tancredo do Amaral 40 Nov./1985 Miquelina Cartolano 42 Mar./1986 Adamastor de Carvalho 43 Abr./1986 Paulo Setúbal 44 Maio/1986 Gabriela Mistral 45 Jun./1986 Paulo Monte Serrat 46 Ago./1986 Narbal Fontes 47 Set./out./1986 José Aleixo da Silva Passos 48 Fev./1987 Julia Lopes de Almeida 49 Mar./abr./1987 Horácio Quáglio 50 maio/jun./1987 Luiz Damasco Penna 52 Set./1987 Iracema de Castro Amarante 53 Out./1987 Visconde de Taunay 54 Nov,/dez/1987 Maria Iracema Munhoz 55 Fev./1988 Maria O. Guimarães Bueno 56 Mar./abr.1988

5 Pode ter ocorrido um erro de diagramação, como já foi anunciado no início do texto, e o número 32 se repete.

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Patrono biografado Nº Data Miguel Couto 57 Abr/maio/1988 Índia Vanuire 58 Jun./1988 Prisciliana Duarte de Almeida 59 Ago./1988 Lourenço Filho 60 Out./1988 Bruno Pieroni 61 Out./nov./ 1988 Navarro de Andrade 62 Dez./1988 Júlia da Silveira Melo 63 Jan./1989 Orosimbo Maia 64 Mar./abr./1989 Reynaldo Kuntz Busch 65 Abr/maio/1989 Alexandre de Humboldt 66 Jun./jul./1988 Oscar Thompson 67 Ago./set./1989 Quadro 1 - Relação dos biografados, com respectivos números e data de publicação

Essas homenagens eram dirigidas, em sua grande maioria, a professores, geralmente aposentados e possivelmente já falecidos. Em grande parte dos casos, os patronos compuseram o quadro de professores do estado de São Paulo, tanto da capital como do interior, sendo que apenas um deles trabalhou toda sua vida no estado de Santa Catarina. Esse último dado pode ser indício da penetração do jornal em território nacional, apesar de se tratar de apenas um nome, Orestes Guimarães, "autêntico pioneiro e reformador da instrução, no Estado de Santa Catarina". A predominância de professores que atuaram na capital paulista decorria, em parte, da política de carreira docente na época, que estabelecia o início da vida profissional no interior do estado, alcançando a capital por meio de promoções por mérito, tempo de serviço ou convites.

Um caso que chama a atenção é o Índia Vanuire, pois não há nenhum dado biográfico referente a ela na coluna. É apenas contada brevemente a história da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil e "na trama das grandes figuras que ajudaram a levar a cabo esse esforço gigantesco, destaca-se a figura de uma

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índia coroada [...] misto de pacificadora, cantora e pregoeira da harmonia entre os homens [...], título original e justo do Instituto de Educação de Tupã". E a respeito da professora Iracema de Castro Amarante, têm-se apenas notas a respeito de sua colaboração na renovação escolar. Essa professora, segundo d’Ávila, se destaca no rol dos grandes reformadores da escola paulista por sua colaboração com a introdução da escola nova. Foi publicado até um Boletim (n.10) a respeito da escola nova instituída por essa "notável educadora".

As homenagens a esses professores procurava influenciar, orientar e guiar a prática cotidiana do leitor (que era um professor), por meio da exaltação de atitudes, comportamentos, valores morais, cívicos e éticos, considerados adequados ao perfil docente. Os sacrifícios eram entendidos como virtudes, conforme se nota a partir de qualificações como "esforçada professora", presente na biografia de Maria Augusta de Ávila, "considerando que [...] durante longos anos de magistério se dedicou com inexcedível zelo à educação da infância e da juventude, superando no cumprimento de seus deveres de mestra, suas precárias condições físicas. [...] Isto valeu como consagração à mestra-missionária".

A origem familiar teve destaque em algumas biografias, com ênfase nos atributos de "pais professores", ou, no caso da biografia de Lourenço Filho, em que se tem "filho de [...], português e [...] sueca", "o pai era um extraordinário homem construtor de progresso, mantendo na cidade um jornal [...], uma biblioteca, um cinema e uma tipografia"; ou ainda, "o pai era homem de letras e ator teatral", "descendente de tradicionais famílias paulistas". Esses pequenos trechos exemplificam como eram evidenciados, nas biografias, valores como tradição, religiosidade, honestidade, nacionalidade, cultura, enfim, atributos que deveriam integrar o perfil ideal de um professor.

Também é possível localizar nos textos biográficos referência à origem de classe social: "proveniente de família pobre", "[...] vindos de modestos berços e empregos, realizaram seus

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estudos normais e, na carreira, atingiram altos postos na administração de afamadas escolas". Essa citação extraída de uma das biografias exemplifica a idéia de uma condição exaltada pelo esforço pessoal, buscando mostrar que com esforço e dedicação é possível driblar os obstáculos impostos pela vida.

Encontram-se também nessas biografias alusões ao mito do "dom divino", como, por exemplo: "estava traçado o seu destino, e ia manifestar-se a sua decidida vocação para o magistério"; "revelou desde moço vocação para o magistério [...]".

Já os atributos físicos eram pouco valorizados nas biografias analisadas, mas os poucos localizados destacam a beleza, como em: "considerada a mais bela mulher de São Paulo" (Zalina Rolim); ou a saúde, em: "velhinha afável e simples"; "delicada figura de educadora" (Maria de Carvalho Sene). Os mais enfatizados eram mesmo os atributos morais, cívicos e religiosos — "perfil moral e religioso de uma grande mulher", "educador de alto saber e de nobres predicados morais", "foi mestre modelar, pela inteireza do caráter", "ardoroso patriota", "foi um nacionalista apaixonado", "católica fervorosa", "apaixonado pelo escotismo" —, as referências ao MMDC de 326 e às participações na Revolução paulista de 1932.

Pelo menos 20 biografias fazem referência ao estado civil dos patronos. Para os 48 homens focalizados, 15 são apresentados como "casados" e dois como "religiosos" (Anchieta e o Monsenhor Passalacqua). Com relação às mulheres, cinco são apresentadas como "casadas", sobre oito delas não consta nenhuma indicação e três são denominadas "professoras missionárias": Amélia Moncon Ramponi, Maria de Carvalho Sene e Maria

6 Trata-se de sigla formada a partir das iniciais: Martins, Miragaia, Dráusio e Camargo (MMDC). Os nomes referem-se aos estudantes paulistas, organizadores de um levante revolucionário e mortos pelas tropas federais num confronto ocorrido em 23 de maio de 1932, que antecedeu e originou a Revolução Constitucionalista de 1932. (Informação disponível em: http://pt.wikipedia.org/ wiki/MMDC. Acesso em: 19/04/08).

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Augusta de Ávila, "devotada ao magistério [...]". No entanto, é possível perceber uma valorização do matrimônio, uma vez que, com referência às mulheres, as biografias indicam que a realização feminina se dava primeiramente no casamento, e que o magistério seria um segundo lugar de realização da mulher. Assim, às professoras sem nenhuma indicação do estado civil são feitas alusões, em alguns casos, do tipo "[...] amou as crianças com extremos de mãe", "dotada de profundo espírito cristão e humanitário, fez das escolas por onde passou, um lar feliz e acolhedor [...]".

O histórico da vida escolar ou mesmo a última formação dos biografados são aspectos destacados em pelo menos 50 biografias. Destes, a maioria (38) trazia em seu currículo a formação no Curso Normal (de formação de professores para o ensino primário ou secundário) também em escolas de renome, como a "Caetano de Campos" (SP-capital), "Peixoto Gomide" (Itapetininga-SP). Há, pelo menos, cinco biografados que não apresentam formação em Curso Normal, doze obtiveram formação universitária e três concluíram estudos pós-graduados, certamente em cursos desse tipo oferecidos nos institutos de educação.

O relato da trajetória escolar dos professores, nas biografias em que se encontra essa informação, contribui para a obtenção de informações relativas à história da educação paulista, ao sistema escolar e de ensino de determinada época. Além de destacar o local e até mesmo a data de aspectos da vida escolar dos biografados, as colunas traziam também as condições de formação, como, por exemplo: "obtenção de distinção em seu diploma", "[...] alcançando sempre lugar de destaque", ou "primeiro lugar quando formou-se".

Quanto à trajetória profissional, a maioria dos biografados exerceu suas atividades no setor público. Mais de 33 dos biografados trabalharam em escolas públicas do interior, sendo que alguns apenas inicialmente; alguns trabalharam em escolas isoladas (7), também inicialmente, e pelo menos 30 dos homenageados, em escolas da capital paulista. Dentre os patronos

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biografados, a maioria exerceu funções administrativas e assumiu altos cargos: Diretor (29); Inspetor escolar (9); Delegado Regional do Ensino (6); Diretor da Instrução (5); cargos políticos (4); Secretário da Educação (2); Inspetor Geral do Ensino (2); Auxiliar de Inspeção (2); Diretor do Departamento de Educação (1). Quatro dos biografados atuaram como reformadores do ensino paulista, sendo um deles reformador no estado de Santa Catarina. É significativo destacar que quase a totalidade dos biografados iniciou sua vida profissional no interior paulsita, e, após anos de magistéiro, concluindo-a na capital.

Ainda com relação à trajetória profissional dos biografados, foi dada ênfase ao tempo de serviço, em número de anos, dedicado ao magistério. Assim, temos: "34 anos de trabalho"; "45 anos de atividades na educação"; "mais de 30 anos de serviço público"; "aposentou-se com trinta anos de magistério exemplar"; "labutou por 52 anos". Essa ênfase é indicativa da idéia de que ser professor envolvia dedicação integral e exclusiva até o fim da vida, sem poder contar com recompensa significativa em forma de remuneração. O princípio era de doação do profissional, a fim de cumprir com a "missão" a que estava destinado, como exemplificam os seguintes trechos extraídos das biografias: "Nunca visou o dinheiro"; aposentada continuou trabalhando "sempre gratuitamente"; "faleceu o grande brasileiro em sua mesa de trabalho"; "embora aposentado, prestou serviços ainda [...]"; "dedicou o melhor de sua vida ao magistério público, dando de si os mais belos exemplos de capacidade de trabalho e de amor ao Brasil [...]".

É feita referência também às publicações dos biografados (em torno de 28 deles) em livros, revistas, jornais, livros didáticos, ou na forma de hinos escolares. O papel histórico de alguns dos homenageados também aparece em algumas biografias, como, por exemplo: "primeira mulher diretora do Estado de São Paulo" (Júlia da Silveira Melo); "fundou o Tiro de Guerra de Sertãozinho" (Bruno Pieroni); "ajudou na elaboração do Código de Educação de 1933" (Damasco Penna); "fundador do Gabinete

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de Antropologia, Pedagogia e Psicologia" (Clemente Quáglio). Um número pequeno de referências se encontra nas biografias com relação a órfãos (2), religião (3) e à naturalidade estrangeira dos homenageados (5).

Não se pode deixar de mencionar que d´Ávila muitas vezes se referiu ao Editor-Chefe do Jornal, Sólon Borges dos Reis, agradecendo por suas iniciativas ao homenagear algum nome do magistério paulista por meio da outorga do título de "patrono", tendo em vista que, em geral, esses títulos eram oferecidos por decreto do próprio governador ou de deputados.

Com a composição das biografias dos patronos de escolas paulistas a partir da origem familiar, vida e histórico escolar, trajetória e atuação profissional, atributos morais, cívicos e religiosos, entre outros, os "professores-biógrafos", assim denominados por Bastos; Colla (2004), tentavam formar e cristalizar no leitor (professor) os atributos necessários a um educador, mostrando-lhe a representação ideal do que é ser professor. As biografias objetivavam perpetuar e cristalizar alguns aspectos da vida da pessoa homenageada em detrimento de outros, produzindo e homogeneizando o pensar e o agir de uma categoria profissional.

Com esse propósito, d´Ávila assim se manifesta em uma das biografias: "Recenseamos, de propósito, prêmios e menções honrosas recebidos pelo jovem [...], tanto mais honrosas e expressivas quanto se conhece a tradição pedagógica e humanista da famosa casa de ensino, para oferecer à juventude de hoje um modelo ímpar de dedicação absoluta ao estudo, de quem busca na exação de seus trabalhos escolares os fundamentos de vida dedicada à ciência e ao bem estar do homem". Ou ainda quando assim se refere a uma biografia: "notas que registramos como exemplos para as nossas alfabetizadoras de hoje". Pode-se entender, então, essas biografias como exemplos e estímulos à prática cotidiana escolar e como modelo a ser imitado pelos professores que, seguindo-os, esquecem-se da situação real de seus fazeres pedagógicos e de sua baixa remuneração, trabalhando em

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função de uma "missão divina", de uma recompensa que "cairá do céu" e de uma forma possível de reconhecimento.

De acordo com Lugli (1997), esse cultivo de "valores exemplares" tem enorme importância na constituição de um corpo de valores comuns à profissão, no qual os sócios se reconhecem, constituindo assim a "tradição" da categoria profissional.

Considerações Finais

O objetivo principal da análise da coluna "Galeria dos patronos de escolas", publicada entre 1980 e 1989, no Jornal dos professores, do CPP foi o de identificar o que Antônio d’Ávila selecionava da vida dos homenageados para elaborar suas biografias e o que ele nelas destacava para constituir a representação ideal de ser professor. Deve-se ressaltar que o que era enaltecido representava os aspectos, à época de publicação das biografias, anos de 1980, era considerado essencial para compor certo modelo de professor.

Observou-se, dessa forma, que destaque especial foi dado à trajetória e à atuação profissional dos patronos escolares. Além desses aspectos, foram também evidencidos por d'Ávila a origem familiar, os atributos morais, cívicos e religiosos, o estado civil, tempo de serviços prestados ao ensino ou ao serviço público, contribuições relativas a publicações, o papel histórico dos homenageados e a exaltação das dificuldades como virtudes. Esses aspectos, somados aos adjetivos usados para fazer referência ao biografado, formavam o quadro das virtudes exemplares de um professor.

D’Ávila faz em suas biografias algo próximo ao que Bourdieu (2001) aponta em seu texto sobre a ilusão biográfica. O autor aproxima-se, portanto, do "modelo oficial da apresentação oficial [...] – carteira de identidade, atestado do estado civil, curriculum vitae, biografia oficial". E, no caso das biografias analisadas, as biografias oficiais que não são exatamente reais,

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antes a idealização do real, é justamente utilizada para fazer crer que o necessário para ser um bom professor era o que evidenciavam aquelas biografias. Obter as virtudes, os valores morais, cívicos, religiosos exaltados nas biografias, trabalhar mesmo sendo aposentado e sem pensar em remuneração, doar-se à sua profissão até o fim da vida e concebê-la como "missão divina" era ser reconhecido como um bom professor. Ou melhor, era a representação do modelo ideal de um professor a ser imitado por todos os que se dedicavam ao magistério.

Esse modelo oficial da apresentação de si e do outro, criticado por Bourdieu (2001, p. 80), indica a necessidade de se pensar a história de uma vida como uma trajetória, em que são inseparáveis os acontecimentos de uma existência individual. Ainda para Bourdieu, não é possível tentar compreender uma vida como se fosse uma série única e suficiente de acontecimentos sucessivos, sem outra ligação a não ser com o nome próprio.

No caso das biografias da coluna aqui analisada, certamente a opção por enfatizar determinados aspectos da vida dos patronos de escolas tenha servido para, por meio da apresentação de um modelo de professor, incentivar o cultivo de valores exemplares e cristalizar uma imagem de categoria docente cega e muda com relação aos seus problemas escolares diários e às suas possíveis reivindicações por melhores condições de trabalho e de salário, contribuindo, assim, para evitar problemas ao Estado e a disseminação de novas idéias.

Referências

a) das fontes documentais citadas

O PROFESSOR. São Paulo: CPP, nov. 1964 - out. 1975.

JORNAL DOS PROFESSORES. São Paulo: CPP, nov. 1975 - set. 1989.

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b) da bibliografia citada

ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS. NBR-6023 – referências bibliográficas. Rio de Janeiro, 2002.

BASTOS, M. H. C.; COLLA, A. L. A idealização do professor na representação da docência. Retratando mestres. In: ABRAHÃO, M. H. M. B.(Org.). A aventura (auto)biográfica: teoria e empiria. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004. p. 465-484.

BOURDIEU, P. A Ilusão Biográfica. In: ______. Razões práticas: sobre a teoria da ação. 3. ed. São Paulo: Papirus, 2001. p. 74-82.

CARVALHO, M. M. C. de. Por uma história cultural dos saberes pedagógicos. In: SOUSA, C. P. de.; CATANI, D. B. (Org.). Práticas educativas, culturas escolares, profissão docente. São Paulo: Escrituras, 1998. p. 31-40.

CATANI, D. B.; BASTOS, M. H. C. (Org.). Educação em Revista: a imprensa periódica e a História da Educação. São Paulo: Escrituras, 1997.

LUGLI, R. S. G. Um estudo sobre o CPP (Centro do Professorado Paulista) e o movimento de organização dos professores (1964-1990). 170 f. 2.v. Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo.

TREVISAN, T. A. Um estudo sobre Práticas escolares (1940), de Antônio d’Ávila. 2003. 66 f. Monografia (Trabalho de Conclusão de Curso de Pedagogia) – Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista, Marília. 2003.

______. A Pedagogia por meio de Pedagogia: teoria e prática (1954), de Antônio d´Ávila. 2007. 165 f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista, Marília. 2007.

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Thabatha Aline Trevisan é Mestre e Doutoranda junto ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual Paulista (UNESP)/campus de Marília; membro do Grupo de Pesquisa "História do ensino de língua e literatura no Brasil" (GPHELLB) e do Projeto Integrado de Pesquisa "História do ensino de língua e literatura no Brasil" (PIPHELLB). Endereço: Rua dos Cristais, 43, Bairro Maria Izabel, CEP: 17.516-050, Marília, São Paulo, (14) 3432-3310, e-mail: [email protected]

Recebido em: 08/07/2008 Aceito em: 15/11/2008

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AS MEMÓRIAS E A HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO: APROXIMAÇOES TEÓRICO-METODOLÓGICAS

Dóris Bittencourt Almeida

Resumo O artigo apresenta reflete sobre as contribuições da memória e da história oral para a história da educação. Tais reflexões foram fundamentais na construção de um estudo referente à formação docente rural, durante as décadas de 1950 e 1960. Assim, por meio da metodologia da história oral, procurou-se analisar o processo de memória de sujeitos discentes e docentes da Escola Normal Rural de Osório/RS, a partir dos discursos e dos conteúdos de verdade produzidos em entrevistas. A pesquisa conclui que o processo de memória não é algo individual, não representa exatamente o que se passou, mas é fruto de uma construção social de um grupo de indivíduos, que constitui uma comunidade de memória, marcada pela referência à Escola, sempre presente na construção de suas identidades.

Palavras-chave: Memórias; História da educação; História oral; Escola normal rural.

THE MEMORIES AND THE HISTORY OF EDUCATION: THEORETICAL-METHODOLOGICAL APPROACHES

Abstract The article considers carefully the contributions of the memory and oral history to the education history. Such reflections were fundamental in the construction of a study referring to the the rural teaching staff formation, during the decades of 1950 and 1960.Thus, by means of the oral history methodology, we tried to analyse the process of memory of the teaching staff and students of "Escola Normal Rural de Osório/RS, from the speeches and contents of the truth produced in interviews. The reaserch concludes that the process of memory is not something individual, which does not represent exactly what happened, but is the result of a social construction of an individual group. It constitutes a community of memory, determinated y the reference to the School, always presented in the construction of its identities.

Keywords: Memories; Education history; Oral history; "Normal" school.

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LAS MEMÓRIAS Y LA HISTORIA DE LA EDUCACIÓN: APROXIMACIONES TEÓRICO-METODOLÓGICAS

Resumen El artículo presenta reflite sobre las contribuciones de la memoria y de la historia oral para la historia de la educación. Tales reflexiones fueron fundamentales en la construcción de un estudio referente a la formación docente rural, durante las décadas de 1950 y 1960. Así, por medio de la metodología de la historia oral, se buscó analisar el proceso de memoria de sujetos discentes y docentes de la Escuela Normal Rural de Osório/RS, a partir de los discursos y de los contenídos de verdad produzidos en entrevistas. La pesquisa concluye que el proceso de memoria no es algo individual, no representa exatamente lo que pasó, pero es fruto de una construcción social de un grupo de indivíduos, que constituye una comunidad de memoria, marcada por la referencia a la Escuela, siempre presente en la construcción de sus identidades.

Palabras Clave: memorias, historia de la educación, historia oral, escuela normal rural

LES MEMOIRES ET L'HISTOIRE DE L'EDUCATION: APPROCHES THÉORIQUE-METHODOLOGIQUES

Resume Cet article trate de la contribution de la memoire et de l´histoire oral par l´Histoire de l'Education.Cettes reflexions ont eté fondamentales dans la construction d'un étude référente à la formation de les docenses rurales dans les anées de les decades de 1950 et 1960.D'abord,par la méthodologie de l´histoire oral, on a fait l'analyse de le processe de memoire de les sujets discentes et docentes de l'école "Escola Normal Rural de Osório"/ RS, dans les discourses et les contenus vraiment produits on les entervues. Le recherche a conclué que le procès de la memoire n'a pas quelque chose individuel, n'a pas reprèsente exactemant le que se passé, mais c'est fruit d'une construction social d'un groupe de personnes qui forme une communauté de memoire marqueée pour la reférence à l'école, toujours présent en la construction de ses identités.

Mot-à-clé:: mémoires, histoire de l'education, histoire oral, école normale rural

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1 Memórias e História da Educação: reflexões iniciais

O estudo analisa as memórias de alunos/as e de professores/as acerca de suas experiências vividas na Escola Normal Rural de Osório, Rio Grande do Sul, Brasil, nas décadas de 1950 e 19601. O artigo em questão se propõe a sistematizar algumas reflexões acerca dos aspectos teóricos e metodológicos norteadores da pesquisa, tendo como foco os estudos referentes à memória e história oral acumulados ao longo do tempo.

A escolha por este estudo remete às reflexões sobre os caminhos da História da Educação, apontados por António Nóvoa (1994, p. 67). Ele afirma que a História da Educação traz consigo a marca de um "estatuto de marginalidade", afastando-se de muitos de seus atores educativos, que ficam no esquecimento. Nóvoa critica uma história da educação eminentemente descritiva e factual, propõe investigações em que as pessoas percebam-se como sujeitos de um passado/presente escolar.

Por rejeitar verdades definitivas e entender que a História e as memórias situam-se em áreas de fronteira "entre verdade e ficção, entre o real e não real" (Pesavento, 2003, p. 107), a pesquisa busca uma reinvenção do passado, sob o prisma da descontinuidade. Na construção das memórias opera-se uma espécie de "ficção controlada" (Ibid.). Chartier (2002) explica que há uma tendência dos historiadores em não fazerem qualquer diferença entre ficção e história. Para ele, todo o relato histórico é uma narrativa imaginária, assim como o mito e a literatura são formas de conhecimento. Antonio Benatti (2000, p. 84) também

1 O artigo é uma parte da Tese de Doutorado intitulada "Memórias da Rural: narrativas da experiência de uma Escola Normal Rural pública (1950 – 1960), defendida pelo Programa de Pós-graduação da Universidade Federal do Rio Grande Sul (PPGEdu/UFRGS), 2007, sob orientação da Dra. Maria Stephanou.

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entende que qualquer forma de história depende dos procedimentos de composição próprios da narrativa, e que, portanto, a idéia da história como pesquisa do passado é inseparável do relato deste passado sob a forma de uma narrativa.

Trabalhos com memórias identificam-se com tal perspectiva historiográfica. Segundo Halbwachs, é movediço o terreno que distingue lembranças "reais" de lembranças "fictícias", pois elas se fundem e se complementam, e acontece que, "para algumas lembranças reais, junta-se uma massa compacta de lembranças fictícias" (2004, p. 32). De outra parte, Janaina Amado (1995) assinala que toda a narrativa compreende certa fabulação, uma invenção da realidade vivida, ou ainda, possui uma dimensão simbólica que leva a um certo desapego do real em busca do imaginário, sendo, antes de mais nada, um ponto de vista sobre algo. Assim, o narrar não é algo absoluto, estático, mas depende muito de elementos articulados, tais como: "quem narra, o que narra, por que narra, como narra, para quem narra, quando narra" (Ibid., p. 133).

A perspectiva que concebe a possibilidade de produção de conhecimento tendo a memória como documentação e considera todo o seu componente imaginário, era impensável no passado, em um tempo que entendia o documento de forma mais estrita, sem alcançar a relatividade e a ficcionalidade promovidas pela memória. Portanto, a História assentada em bases tradicionais não entende a memória como um documento histórico confiável por considerar a possibilidade de distorção dos fatos, uma vez que os narradores são sujeitos mais velhos que comumente acentuam um tom nostálgico às suas lembranças. Thomson (1997) critica essa concepção da História, argumentando que a eliminação das fantasias, que são próprias da construção da história, impede o processo de afloramento das lembranças e não permite a exploração dos significados subjetivos das experiências vividas pelos indivíduos e por coletividades.

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2 A História da Educação através das memórias: possibilidades investigativas

As instituições educativas, assim como seus sujeitos, nas palavras de Magalhães, possuem uma memória (1999, p.69), que se assenta nas tradições orais que são transmitidas pelas gerações que se sucedem e contemplam uma cultura escolar marcada pelas práticas cotidianas vividas na escola.

É necessária uma compreensão mais fecunda acerca dos sentidos da memória, concebendo-a como algo muito além da mera capacidade de lembrar os fatos passados. De acordo com o senso comum, pode-se pensar que as memórias referem-se àquilo que lembramos. Sim, a memória também é isso, mas é muito mais, as lembranças podem se apresentar como a ponta de um iceberg. Há um processo de interação entre os atos de lembrar e de esquecer. Para Errante (2000), a forma mais comum da memória são as lembranças que são "densas em detalhes" (p. 147), mas isso não implica a negação de outras formas de memória, que se traduzem nos silêncios, nos esquecimentos, nas rupturas na fala, nos gestos, nos olhares. A memória é uma teia de subjetividades, por mais que haja imersão, por mais que se provoque o/a narrador/a, por mais que se evite a superficialidade durante a entrevista, não há como atingir a totalidade daquilo que foi vivido no passado. Portanto, a memória constitui-se dos atos de lembrar e de esquecer, a um só tempo, e estes são produzidos socialmente. Como explica Bosi, "cabe-nos interpretar tanto a lembrança quanto o esquecimento" (2003, p. 18).

Rejeita-se, por conseguinte, a idéia da memória puramente individual, uma vez que não se pode desconsiderar o contexto vivido pelo sujeito que é "convidado" a pensar sobre o que viveu (Santos, 1993). A memória, portanto, também é coletiva (Bosi, 2003), difundida e alimentada na convivência com os outros, produzida pelos discursos e pelas representações que propõem uma identidade ao grupo.

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A memória, portanto, carrega as marcas da relatividade, da descontinuidade e da impossibilidade de se atingir um conhecimento pleno daquilo que se passou. Entretanto, guarda o mérito de trazer à tona nuances do passado, que podem estar esquecidas e, por vezes, se encontram inatingíveis em outras formas de documentação, além de dar visibilidade aos sujeitos na construção da história. Em "As palavras e as coisas", Foucault faz referência à complexidade e aos significados que são transmitidos por aquele que narra a história:

(...) na superfície de projeção da linguagem, as condutas do homem aparecem como querendo dizer alguma coisa; seus menores gestos, até em seus mecanismos involuntários e até em seus malogros têm um sentido; e tudo o que ele deposita em torno de si, em matéria de objetos, de ritos, de hábitos, de discurso, toda a esteira de rastros que deixa atrás de si constitui um conjunto coerente e um sistema de signos. (1992, p. 374)

Portanto, uma determinada perspectiva de estudo da memória pode encontrar ressonância no pensamento de Foucault, que pensa não interessar as evidências e as continuidades, mas aquilo que se situa às margens, os avessos da história. Procura o descontínuo e as rupturas, e não o encontro da revelação de uma verdade que se apresente como incontestável. Chartier também se refere a uma "forma inédita de história", identificada com os "desvios e as discordâncias existentes" (2001,p. 119).

Beatriz Fischer (1997) propõe uma aproximação entre o pensamento de Foucault e as pesquisas que trabalham com memórias e com a metodologia da história oral. A autora explica que a escolha pela história oral como alternativa operacional à pesquisa aparentemente poderia colidir com o pensamento de Foucault. Mas essa colisão só aconteceria se pensássemos o sujeito em uma perspectiva estritamente individual, como o protagonista da história, detentor de uma identidade fixa, centrado e coerente em sua fala. Para Fischer, a "linguagem é constituinte da

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realidade" (Ibid.,p. 15) e "o conhecimento será sempre parcial, a realidade é uma construção, e a identidade é sempre um estado em processo" (p. 13). A compreensão dos depoimentos dos narradores, como já foi dito antes, não busca um conhecimento verdadeiro, mas "uma identificação das condições de possibilidade para que determinada narrativa emerja enquanto discurso" (Ibid.p. 13). As narrativas de memória, assim, são práticas discursivas.

Sobre a identidade do sujeito, Fentress (1992) analisa o estranhamento daquele que narra (p.19), em relação a sua experiência passada, considerando a idéia de que não há um sujeito único e coerente que se sustente por toda a vida. Assim, não existe uma fala que seja "verdadeira" em si mesma, ainda que a desejemos enquanto ouvintes. Toda narrativa é autobiográfica, a experiência está sempre presente na memória, que se apresenta como uma tentativa de explicar o que cada um pensa ter sido, o que pensa ter sentido. Cada pessoa escolhe o que lembrar conforme o/s lugar/es de sujeito que ocupa. Como sugere Lovisolo (1989), as questões de memória têm a ver com nossos pertencimentos, com aquilo que imaginamos sobre nós mesmos, com nossos desejos, que vamos construindo, desconstruindo e reconstruindo ao longo da vida. Do mesmo modo, Fentress afirma que "a nossa experiência do presente fica, portanto, inscrita na experiência passada. A memória representa o passado e o presente ligados entre si e coerentes, neste sentido, um com o outro" (1992, p.39).

Segundo Thomson (1997), a memória individual é composta de várias camadas, e diferentes narradores podem evocar lembranças distintas acerca de um mesmo tempo, quando convidados a refletir e a rememorar. Além disso, como assinalado anteriormente, é o presente que faz o chamamento à memória, é o entrevistado que escolhe, consciente ou inconscientemente, a história que quer contar, o que pode contar, ou, ainda, que se sente autorizado a narrar. A lembrança é constantemente reformulada pelo que acontece no presente, e essa relação passado-presente caracteriza-se por ser um processo contínuo de reconstrução e de transformação das experiências relembradas.

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Portanto, compomos e recompomos nossas memórias para dar um "sentido satisfatório" às nossas vidas presentes e passadas (Thomson, 1997, p.86), ou seja, a composição de nossas memórias permite a construção de uma história com a qual possamos conviver. Narramos aquilo que é publicizável, que tem um espaço de aceitação pública. Ao longo da vida, construímos nossas histórias procurando criar um enredo que nos seja satisfatório ou que, no mínimo, seja possível de suportar (Ibid.). Isso tudo indica quão complexo (e não menos instigante) é o trabalho com as memórias. Na busca por uma "equalização da vida", há uma tentativa de encontrar uma consonância entre as identidades passadas e as presentes.

E é por isso que, com alguns dos narradores do estudo que desenvolvi acerca das memórias da Escola Normal Rural lembraram, por exemplo, do que era bom na Escola, especialmente das trocas afetivas entre colegas e professores, e acentuaram um caráter melancólico às suas reminiscências; outros lembraram momentos ruins, como a solidão, o frio, a fome que sentiam, a saudade de casa; houve ainda quem ressaltasse o significado de estudar para ser professor rural naquele tempo e o quanto aquilo foi importante para suas vidas, orgulhando-se ao contar como conseguiram enfrentar as adversidades; por fim, houve também quem se negou a lembrar e não aceitou participar da pesquisa. Entretanto, todos "inventam" um passado que, de certa forma, dê legitimidade e dignidade ao presente em que estão, ou, como diz Thomson, a composição do passado precisa trazer ao sujeito "um sentimento de serenidade" (2001, p.86). São as nossas identidades que moldam nossas reminiscências. E assim como buscamos a afirmação da identidade pessoal no âmbito de uma comunidade específica, também buscamos a legitimação de nossas reminiscências.

Os/as alunos/as e os/as professores/as entrevistados/as são sujeitos que fazem o que se pode chamar de uma idealização superlativa de seu passado. São pessoas que, neste momento da vida, estão, de certa forma, afastadas e esquecidas pela sociedade,

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considerando-se várias questões. Estudaram para ser professores/as rurais, uma profissão que, gozava de um valor social, mas que, em pouco tempo, já na década de 1970, desapareceu do quadro de carreira do magistério público. A profissão de professor passou por um processo de proletarização (Nóvoa, 1995), que acabou alijando os docentes de uma participação política mais efetiva na sociedade. O ensino público, que os formou, hoje também atravessa uma crise gravíssima, endossada por discursos que insistem em desmerecer as iniciativas educacionais estatais. Essas pessoas estão mais velhas, embora muitas continuem vinculadas ao mundo do trabalho e do magistério, e, portanto, dirigem um outro olhar às suas lembranças. Por fim, é a escola em si, neste início do século XXI, que se apresenta distinta em seus significados de cinqüenta anos atrás. No passado, ela tinha a prerrogativa de ser o lugar privilegiado da produção e da difusão de saberes. Atualmente, é questionada a manutenção dessa posição privilegiada de acesso ao conhecimento e mesmo de constituir-se no espaço por excelência que possibilita uma ascensão social e cultural.

Como sugerem Schmidt e Mahfoud (1993), ao lembrar que o sujeito não está repetindo cronologicamente os acontecimentos vividos, a escolha daquilo que lhe parece relevante é pautada pelo presente, pelos interesses e pelas necessidades que se apresentam na realidade imediata.

As narrativas pessoais articulam experiências individuais e coletivas. Ao falar, o sujeito se aproxima de seus grupos de referência, revela sua percepção de como vê a si mesmo e de como os outros o vêem. Neste sentido, Thomson salienta que os estudos de memória e de história oral podem "proporcionar uma afirmação positiva de identidade para o narrador, para os membros de uma comunidade particular e para o mundo lá fora" (2002, p. 351). Em suas narrativas, os sujeitos selecionam determinadas lembranças e, nessas recordações, evocam, também, as histórias de sua coletividade, que se imbricam com as histórias individuais. Assim, para Thomson (Ibid.), todos os elementos das narrativas

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são reveladores das experiências vividas pela coletividade, e isso vale tanto para o que é enfatizado quanto para o que é silenciado.

Os sujeitos desta pesquisa insistiram em uma construção imaginária do passado vivido naquela Escola Normal Rural. Atualmente, vive-se uma época de crescentes conflitos nas instituições escolares, como a tensão nas relações entre alunos/as e professores/as, as cobranças do/da professor/a, múltiplas identidades que convivem no espaço da sala de aula, desinteresse dos alunos/as (e até mesmo dos/das professores/as) pelas práticas escolares, discussões acerca da "indisciplina, da liberdade, da permissividade, da autoridade" na escola... Enfim, nesses tempos em que a escola parece ainda resistir e tenta manter-se na sociedade, não sem dificuldades, quando se escuta uma fala que remete ao passado de uma escola perfeita, em que todos pareciam conviver harmonicamente, somos tentados/as a fantasiar e a sonhar com essa escola.

Lovisolo (1989, p. 16) reitera algumas posições já destacadas por outros autores ao afirmar que as questões da memória têm a ver com nossos pertencimentos, com nossas identidades. Ao longo do tempo, mudamos nossa forma de pensar e de perceber o que nos cerca, e, portanto, o que acreditamos ter vivido pode ser o que pensamos ter vivido, e, da mesma forma, o que percebemos e vivemos, pode ser o que pensamos ter percebido e pensamos ter vivido. Quando chegamos a esta etapa da vida, nomeada por Bosi como "o tempo de lembrar, é natural que procuremos compor nossas memórias no intuito de construir um sentido coerente às identidades que formamos no passado e no presente" (Thomson, 2001, p. 86).

3 O lugar da memória: caminhos metodológicos

Memória e história oral se aproximam e se confundem nas pesquisas. A memória constitui-se em documento histórico, e a história oral é a metodologia aplicada no intuito de

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operacionalizar o diálogo entre teoria e os dados empíricos. Fentress considera a história oral como a "matéria-prima da memória" (1992, p.14), que permite outras perspectivas de conhecimento do passado.

A história oral é um dos meios que promovem as aproximações entre a História e a memória. Ou, como diz Errante (2000), existe uma dependência da história oral em relação à memória. A autora endossa a importância da história oral como metodologia a ser adotada em pesquisas identificadas com a história da educação. Afirma que "as histórias orais acrescentam uma dimensão não-oficial inestimável" (p.146) às investigações educacionais, justamente por viabilizarem as narrativas dos sujeitos envolvidos. Deste modo, a história oral possibilita certo afastamento da documentação de caráter oficial das instituições educativas, que muitas vezes não traduzem as experiências vividas no contexto escolar.

Há que se considerar a subjetividade no documento oral, pois trabalha-se com a interação da narrativa, da imaginação e da subjetividade. A fala é suscetível às vicissitudes de cada momento, e, portanto, podem acontecer distorções na interpretação das experiências vividas. Todavia, não significa que a memória seja intangível, pelo contrário, permite a aproximação de verdades que se quer produzir sobre o vivido. E guarda o mérito de trazer à tona nuances do passado, que podem estar esquecidas e que, por vezes, se encontram inatingíveis em outras formas de documentação, além de dar visibilidade aos sujeitos na construção da história.

Antoniete Errante (2000), ao narrar suas experiências de pesquisas em Moçambique, apresenta uma espécie de "roteiro" metodológico, sugestões e conclusões sobre as viabilidades e as armadilhas das pesquisas com história oral. É dela a expressão da "ponte interpessoal’, que estabelece os vínculos entre quem fala e quem escuta durante as entrevistas. É dela, também, uma idéia constituinte deste estudo, quando diz que "as narrativas de memórias são narrativas de identidades". O evento da entrevista também é analisado pela autora, que propõe uma série de práticas

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e de alertas para possíveis situações que podem provocar a inviabilização do desenvolvimento da entrevista.

Em se tratando de questões metodológicas próprias à história oral, é importante ressaltar as orientações de Nadir Zago (2003) que, apesar de destacar a singularidade de cada investigação, apresenta reflexões acerca das entrevistas, expectativas, frustrações, possíveis idealizações que acontecem nos encontros com os narradores. Defende a idéia de uma "entrevista compreensiva" (p. 296) que não guarda uma estrutura rígida e, portanto, pode suscitar diferentes caminhos. Esta flexibilidade, que constitui uma peculiaridade da entrevista compreensiva, afasta-se de qualquer idéia de entrevista anárquica, espontaneísta, sem roteiro, sem objetivos a serem atingidos. Foi fundamental, então, ter questões previamente definidas, por mais que tenham acontecido alterações conforme o direcionamento da investigação (Ibid., p.295). Ao iniciar a conversa, foi igualmente importante apresentar ao entrevistado uma espécie de roteiro da entrevista, a fim de que o mesmo se situasse e até mesmo se tranqüilizasse quanto aos assuntos que seriam temas do encontro. Notei que as pessoas comumente se preocuparam excessivamente com a precisão de datas e de fatos. Vale a sugestão que o pesquisador não se fixe tanto nessas questões cronológicas que possam inibir outras lembranças, talvez mais relevantes. Então, entendi que a entrevista devia se aproximar do que seria um debate, uma conversação acerca do tema da pesquisa, procurando envolver ao máximo o narrador na trama da história. A entrevista compreensiva busca a objetivação, exige o engajamento do/da pesquisador/a, e é seu dever, de alguma forma, sinalizar ao entrevistado onde deseja chegar com suas perguntas. Por fim, esta forma de entrevistar permite a construção da problemática de estudo durante o seu desenvolvimento e nas suas diferentes etapas. Tomo essas reflexões para lembrar o desenvolvimento da pesquisa em questão. Quando iniciaram os primeiros contatos, não se tinha uma problemática definida, havia, e isto considero fundamental, certo encantamento,

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uma inclinação e um desejo de conhecer melhor a proposta de formação daquela escola por meio das memórias de seus sujeitos.

Ao se aproximar das idéias de Bachelard, Zago propõe uma inversão na ordem tradicional dos passos de uma pesquisa, isto é, afirma que a pesquisa de campo não se constitui enquanto instância da verificação de uma problemática definida a priori, mas, sim, o ponto de partida desta problematização que leve à compreensão do fenômeno social que se está investigando.

Nos estudos em que a história oral é a metodologia aplicada, há que se considerar que as entrevistas, como ratifica Zago (2003), nunca são neutras, porque cada entrevistado ocupa um determinado lugar de sujeito naquele instante da entrevista e, conforme este lugar, irá conduzir suas lembranças e sua fala. Conforme já foi enfaticamente abordado neste estudo, entende-se que toda entrevista é, ao menos em parte, autobiográfica, pois, quando a pessoa evoca suas memórias, ela exercita uma tentativa de explicar o que pensa que foi, o que pensa que era, desenvolvendo, assim, a construção de uma verdade sobre si mesma. Cada um, então, escolhe o que lembrar conforme o/s lugar/es de sujeito que ocupa. Reiteram-se as palavras de Errante (op. cit.) sobre a importância de dizer que, ao narrarmos nossas memórias, estamos construindo nossas identidades.

É importante considerar que não houve uma simples coleta de dados para a pesquisa. Produzi intencionalmente os documentos, procurando articulá-los à problemática da pesquisa, tendo como mediadores minha própria subjetividade, os referenciais teóricos que escolhi, a cultura na qual fui constituída. Uma atividade de pesquisa que acredita apenas no recolhimento de uma documentação, acredita que esta coleta conduza a um "encontro com a verdade", que estaria como que "aguardando" ser descoberta, desvelada, coerente aos princípios positivistas. Pelo contrário, entende-se que quem pesquisa produz, cria e dá vida à documentação, em um processo interativo com os indícios e os sujeitos de sua investigação. Para Neves (2000), é importantíssimo o papel do/da historiador/a na construção do que

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chama "memória estimulada", pois, quem pesquisa, retira da memória sua espontaneidade e a transforma em fonte de produção intelectual (p.111).

Para desenvolver metodologicamente este estudo, busquei inspiração em Sarmento, quando propõe que se faça uma espécie de "desenho investigativo" (2003, p. 152), sintetizando algumas orientações fundamentais, tais como: a necessidade do/da pesquisador/a fazer uma imersão no contexto que investiga e de ser um/uma observador/a participante das entrevistas que realiza; a percepção das possibilidades da investigação, tanto dos eventos de maior relevância, como dos traços e pormenores do cotidiano; a atenção para os comportamentos e as atitudes dos sujeitos envolvidos, suas falas e seus silenciamentos, no sentido de buscar como se opera essa "simbolização do real" (p. 153); a produção de textos imbricados nos aspectos significativos da vida dos contextos estudados, estruturando o conhecimento obtido em uma construção dialógica. Essas sinalizações indicam algo semelhante a um roteiro, como caminhos de possibilidades, permeados, entretanto, por incertezas e relativismos. Tomando essas orientações como referenciais para o estudo que me propunha a fazer, iniciei o trabalho das entrevistas.

Uma das dificuldades da pesquisa foi definir com clareza quem seriam os/as narradores. A seleção dos entrevistados/as não obedeceu a critérios definidos com precisão. Foram escolhidos/as com base em uma certa intuição em identificar pessoas que tinham algo a dizer. Não obstante, tomou-se o cuidado de não se afastar da época de formação normal rural. Foram ouvidas pessoas que trabalharam ou estudaram na escola na época em que esta se destinava à formação para a docência rural, os anos de 1950 e de 1960. Dessa forma, a pesquisa ouviu as vozes dos sujeitos que, direta ou indiretamente, estiveram (ou ainda estão) ligados à história da Escola Normal Rural de Osório.

O trabalho com a história oral exige conhecimento e sensibilidade de quem se propõe a fazê-lo. Somando-se a isso, cumplicidade, humildade, respeito, atenção à fala do outro

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(Errante, op. cit., p.149), além de solidariedade, características imprescindíveis. A vivência de tantas entrevistas permite dizer que o estabelecimento da "ponte interpessoal" (Errante, op. cit., p.152) tem seu início antes do primeiro encontro, ainda no contato telefônico. Esta ponte constitui-se em elemento determinante da qualidade da entrevista. É no primeiro diálogo que se estabelece que se operam as primeiras aproximações. A partir daí, a forma como a pessoa recebe o entrevistador, a sua preparação para aquele momento, o grau de disponibilidade para falar, tudo isso contribui e consolida as possibilidades de interação. A metáfora da ponte pode valer para lembrar da importância da relação de interação e de confiança que deve ser o objetivo do entrevistador a cada novo encontro com os sujeitos de sua pesquisa e, segundo Zago (2003), é condição sine qua non da produção de dados significativos, enfim, garantia da fecundidade das entrevistas (p.302).

O estabelecimento da "ponte interpessoal" permite que a pesquisadora compreenda e se aproxime da "dimensão simbólica da memória" (Amado, 1995), já apontada por Sarmento, que deve fazer parte das relações que se estabelecem entre quem indaga e quem narra suas histórias. Ela permite uma espécie de rastreamento das lembranças mais longínquas, mais fecundas. Segundo Janaína Amado, essa dimensão simbólica das entrevistas permite "... compreender os diversos significados que indivíduos e grupos sociais conferem às experiências que têm" (1995, p. 135).

Em cada entrevista, o primeiro encontro é quase um momento de catarse, em que entrevistado e entrevistador deixam entrever suas expectativas, desejos e ansiedades. A entrevista estabelece uma parada no cotidiano do sujeito. Afinal, o narrador, ao aceitar participar da pesquisa, é convidado a "voltar atrás no tempo" e, assim, sua memória inicia uma operação no sentido de reconstruir vivências do passado que hoje são consideradas marcantes.

Ao iniciar o processo das entrevistas, percebi que possuía inúmeras expectativas, poucas vezes correspondidas conforme o

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que havia imaginado. Avaliando a trajetória deste estudo, vejo que, a partir dos primeiros depoimentos, construí uma certa fantasia acerca daquela escola "ideal" e desejei, ingenuamente, acreditar naquela história que me contavam. Depois, diante de algumas frustrações, houve uma fase da pesquisa em que me dirigia a cada novo encontro com certo temor de que a pessoa não estivesse suficientemente disposta a colaborar com a entrevista ou que as vivências na escola não tivessem um significado maior em sua vida. Preocupava-me, também, que o entrevistado, ao começar a falar, se perdesse no emaranhado de vivências passadas e acabasse por se afastar muito dos temas abordados e que eu não mais conseguisse focar a conversa de acordo com o roteiro previsto para aquele momento. Cabe ressaltar que essas preocupações tinham sua razão de ser, porque tais situações aconteceram de fato, em maior ou em menor grau, durante o tempo em que estive envolvida com a investigação. Por fim, nas últimas entrevistas, penso que consegui encontrar certo equilíbrio, evitei fantasiar a "entrevista perfeita", e também consegui afastar sentimentos de frustração prévia, antes mesmo de ir ao encontro dos narradores.

Cada entrevista é um evento único, é difícil não criar expectativas. Até certo ponto, elas são motivadoras, mas, se exageramos e acabamos por fantasiar encontros ideais em que o narrador corresponda exatamente aquilo que imaginávamos, ou seja, se o entrevistador parte do pressuposto que o narrador irá dizer aquilo que ele deseja, corre-se o risco de frustração, pois a entrevista não contemplou aquilo que imaginávamos. Então, precisamos saber e conviver com o fato de que expectativas, frustrações, possíveis idealizações e surpresas compõem o cenário das entrevistas. E assim, quando desisti de buscar a história que eu queria ouvir, consegui perceber melhor o potencial e a riqueza das narrações que tinha colhido. De qualquer forma, é importante a disposição do pesquisador em fazer uma escuta sensível, afinal, naquele momento da entrevista, o narrador está partilhando com ele um pouco de seu mundo, de sua história. Este é um alerta importante, pois, mesmo conhecendo o funcionamento da

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memória, o/a entrevistador/a pode levar-se, ingenuamente, a buscar a veracidade daquilo que está sendo dito, ou, se foi dito de outra forma, preocupar-se em questionar seu entrevistado para que fale aquilo que ele (entrevistador) deseja ouvir. A realização das entrevistas não está voltada para uma espécie de "checagem" das informações ou para tentar encontrar elementos que se constituam em uma "contraprova", no sentido de confrontar, confirmar ou contestar os depoimentos já obtidos. Bosi reforça o esclarecimento de que o interesse deve recair sobre aquilo que o entrevistado escolheu falar e de que é a partir daí que devem ocorrer as análises do historiador.

Ressalto, ainda, outras peculiaridades próprias do evento da entrevista. Ela pode promover uma relação de cumplicidade entre narrador e ouvinte. Lembrar e falar exige esforço, concentração, desprendimento, elaboração e capacidade de enfrentar novos desafios. O ato de ouvir exige atenção, tranqüilidade e certa capacidade de descentramento, ou seja, de tentar colocar-se no lugar daquele que fala para melhor compreendê-lo. A entrevista é um evento, um momento de reconstruir parte das experiências, fragmentos do passado, é uma elaboração no presente, é mediatizada pelo presente. Em geral, os entrevistados preparam-se para o momento da entrevista, procuram estabelecer uma coerência na expressão de seus pensamentos, e isso pode provocar cansaço, às vezes uma sensação de esgotamento ao final dos encontros, tanto para quem fala quanto para quem escuta. A cada encontro, sempre procurei proporcionar um espaço em que a pessoa se sentisse livre, a fim de que as lembranças pudessem ser elaboradas, evitando, também, interferências que quebrassem o fluxo de pensamento e que comprometessem o tom da narrativa. Acima de tudo, mantive o cuidado de calar e procurei concentrar-me na escuta, pois, muitas vezes, a pessoa poderia estar falando, construindo mentalmente o que iria dizer, e uma interferência minha, por menor que fosse, corria o risco de afastar a evocação que iria ser explicada.

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Considerando a qualidade das entrevistas, cumpre destacar que os contatos mais fecundos foram com pessoas que ainda se mantém ativas na sociedade, não necessariamente inseridas no mundo do trabalho, mas que desenvolvem atividades de ocupação saudável do tempo, que têm projetos para o futuro e que lutam para alcançar esses sonhos. Participar de clubes de literatura, fazer trabalhos artesanais, prestar assessoria ao governo municipal, trabalhar como comerciante, lecionar, viajar, ler, ir ao cinema foram algumas das atividades observadas ao longo das entrevistas. Além disso, gostaria de salientar, sem qualquer juízo de valor, o fato de a maioria dos entrevistados expressar-se muito bem, tanto ao falar quanto ao escrever. Demonstraram conhecimentos acerca do mundo, conhecimentos de história, de política e de economia do país. Assim, embora a escola em que estudaram ou trabalharam seja um assunto constante nas entrevistas, não encontrei pessoas mergulhadas no passado, e, sim, cidadãos e cidadãs inseridos no século XXI.

Compreender como a experiência da Escola Normal Rural é rememorada por estes sujeitos no momento presente, apenas considerando as narrativas de algumas pessoas, muitas vezes a partir de um único relato, é algo perigoso, tendo em vista todas as armadilhas possíveis no contexto de uma entrevista. Para o estudo realizado, pode-se afirmar que uma única entrevista não promoveria a aproximação desejada, tampouco permitiria o tempo necessário ao trabalho da memória, de modo que as pessoas pudessem descentrar-se e afastar-se um pouco de seu cotidiano imediato e se permitissem rememorar. Se o conhecimento é produzido por aproximações sucessivas, uma maior imersão no objeto de estudo, seja teórica ou empiricamente, possibilita que a investigação seja mais fecunda. Thomson (2001, p. 88) analisa a importância da segunda entrevista, mas apenas com alguns dos narradores, acentuando que as informações da primeira entrevista promoveram outras questões mais específicas a cada um dos entrevistados.

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Foi necessário um tempo, também, para que se estabelecessem elos de cumplicidade entre entrevistados/as e entrevistadora, tempo que viabilizou um espaço de maior "liberdade" para lembrar e falar. Mais encontros com os/as entrevistados/as permitiram estreitar os vínculos e, com alguns narradores conseguiu-se uma maior imersão nas memórias. Tomou-se o cuidado para não cair em armadilhas de construir uma verdade partindo de informações preliminares, em que aquele que falava praticamente não conhecia aquele que interrogava.

Bosi (2003) reforça a idéia da importância da construção de vínculos entre os sujeitos envolvidos na investigação, ao concluir que, nas suas pesquisas sobre memórias de velhos, muitas vezes as recordações mais valiosas, como confidências, não eram narradas no evento da entrevista, mas em momentos de informalidade. Para a autora, "da qualidade do vínculo vai depender a qualidade da entrevista" (p. 60). E vínculos não se constroem no imediatismo, levam tempo. Errante (op. cit.) também fala da intimidade que acontecia depois da entrevista ter concluído. Portanto, buscou-se uma efetiva aproximação com os sujeitos narradores, envolvendo-se com suas histórias a ponto de acontecer um processo de transformação em que as memórias dos entrevistados passaram a compor as vivências da pesquisadora. Nesta perspectiva, com alguns/algumas narradores/as, realizou-se mais de uma entrevista, com outros foram três, até mesmo quatro encontros, o que permitiu que essas pessoas conseguissem uma imersão maior em seu passado e, assim, contribuíssem com novos elementos e questões a que a pesquisa se propunha problematizar.

Thomson (op. cit.) diz que para encorajar seus narradores a falarem, uma das estratégias utilizadas foi falar de seus próprios interesses e de seu papel como pesquisador. Buscando, mais uma vez, inspiração neste autor, decidi mostrar o texto da proposta de tese a alguns dos entrevistados que haviam se mostrado extremamente disponíveis e que colaboraram efetivamente com o trabalho. Talvez sentisse que lhes devia isso, queria, também promover uma espécie de retorno, ainda que

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parcial, do andamento da pesquisa, que tem muito a ver com suas vidas. Por outro lado, queria que, ao lerem, pudessem colaborar ainda mais, que o texto se constituísse em mais um evocador das memórias e que, portanto, provocasse a lembrarem mais. Quatro pessoas leram o texto, e com as quatro tive oportunidade de retomar algumas questões, percebendo o quanto se sentiram provocadas pelas falas de seus pares. Aqui cabe o conceito de restituição analisado por Portelli (1981, p. 30, 31), segundo o qual o desejo de devolução à comunidade investigada os resultados da pesquisa deve ser um compromisso ético de quem investiga. Entretanto, tal restituição não precisa ser necessariamente a devolução dos materiais produzidos ao longo da investigação. Para Portelli, a restituição "consiste em fazer com que sua voz seja ouvida, em levá-la para fora, em pôr fim à sua sensação de isolamento e impotência, em conseguir que seu discurso chegue a outras pessoas e comunidades." Amado (1997, p. 150) também analisa a questão das trocas que se estabelecem entre pesquisador e informante. Para a autora, a devolução implica em uma conduta extremamente ética por parte de quem pesquisa, uma atitude de respeito e de valorização daqueles/as que dedicaram parte de seu tempo e de seu conhecimento aceitando participar da pesquisa de campo.

Seguindo as orientações de Amado (Ibid. p. 149), também procurei estar atenta a outras questões éticas que considero fundamentais em pesquisas com história oral. Em todas as entrevistas, tive o cuidado de procurar ser fiel às palavras dos informantes e ao contexto do encontro. Informei oralmente os objetivos da pesquisa, o uso que faria da entrevista e respeitei as solicitações dos entrevistados, especialmente os momentos em que pediam para desligar o gravador, pois não desejavam que aquilo que diziam ficasse registrado. Entretanto, nem sempre as entrevistas transcorreram dessa maneira. Houve casos que precisei persuadir o entrevistado a falar mais, diante de respostas evasivas e lacônicas. Também aconteceram situações em que a presença de

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outro narrador constituiu-se como um suporte que estimulou a pessoa a falar.

Além de tudo isso, destacaram-se outras atenções metodológicas, tais como a importância de se estar atenta aos mínimos detalhes durante as entrevistas e de não abrir mão de registros escritos que enriqueceriam as análises. O diário da pesquisa mostrou-se uma ferramenta fundamental para a construção da investigação. Nele, registrei impressões que, posteriormente, poderiam cair no esquecimento. Enquanto o/a entrevistado/a falava, registrei pormenores e detalhes que não se faziam ouvir na gravação, assim como o que circundava o contexto das entrevistas, como o lugar do encontro, os gestos e olhares do/da entrevistado/a, a entonação de sua voz, o acolhimento ou a indiferença diante da presença de um/uma estranho/a, as possíveis interferências durante a entrevista, as relações estabelecidas entre passado e presente, o momento de vida do/da informante, suas emoções, enfim, informações preciosas para aguçar minhas reflexões e, assim, avançar na problemática pesquisada. No diário, foi possível entrever a trama da pesquisa e perceber o espaço pessoal e informal em que expressei suas alegrias, expectativas, frustrações, dúvidas, dificuldades, hipóteses provisórias, primeiras conclusões. Thomson (2001) salienta a importância das anotações no decorrer da entrevista referentes a expressões faciais, movimentos corporais, o modo de falar, de calar... Tudo isso revela significados emotivos da memória que não são apreensíveis apenas com as transcrições das entrevistas.

O pensamento não é algo que se possa disciplinar, ao contrário, é indócil, viaja no tempo e no espaço em uma velocidade acelerada. Então, quem fala não controla todo o fluxo de sua fala. Neste sentido, o uso do gravador foi um facilitador durante as entrevistas, liberando-me para poder melhor observar aquilo que envolvia os encontros. A gravação das entrevistas também proporcionou uma maior capacidade de escuta, disponibilidade para propor novas questões, retomar possíveis pontos obscuros, sem falar que a gravação promoveu uma

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organização mais coerente e completa das idéias suscitadas durante as entrevistas. Então, se por um lado o gravador poderia se constituir um inibidor, por outro, produziu mais benefícios do que problemas.

Na maioria das entrevistas, as pessoas aceitaram o uso do gravador e, aparentemente, não demonstraram qualquer intimidação. Entretanto, em muitas vezes, pediram-me para desligá-lo ao se referirem a episódios que envolviam outras pessoas, ou se consideravam a narrativa demasiado pessoal. Em todos esses casos foi respeitada a vontade do entrevistado. Houve três situações em que não foi permitida a gravação. Fiquei frustrada diante da negativa do uso do aparelho, esforcei-me para uma máxima concentração no que diziam, mas é evidente que a minha preocupação em não conseguir registrar todos os pormenores da conversa influiu no desenrolar do encontro e comprometeu a qualidade da entrevista.

Há uma situação paradoxal que se estabeleceu. Vali-me da história oral, mas, como operação de análise, produzi textos escritos das transcrições. Fazemos parte de uma sociedade grafológica, somos marcados por isso. Metodologicamente, penso que o fato de ter pessoalmente transcrito todas as entrevistas foi uma decisão acertada, que veio em favor da pesquisa, pois ao transcrever, foi possível lembrar dos aspectos marcantes do encontro e fazer anotações paralelas às falas. O grande desafio que me impus foi o de garantir que a transcrição desse conta de contemplar o que aconteceu nos diversos encontros, buscando a heterogeneidade, e não uma narrativa única. Como alerta Diana Vidal (1998, p. 12), por mais que o pesquisador procure ser fiel, na transcrição, à fala do entrevistado, há que se considerar que esta transposição da oralidade à escrita constitui, sob certo aspecto, uma reelaboração da entrevista, uma vez que silêncio, olhares, entonações e diferentes ritmos na fala são particularmente difíceis de se captar na hora de transcrever.

Outro aspecto a ressaltar diz respeito às relações de poder entre entrevistador/a e entrevistado/a. Este/a detém um

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saber fundamental para quem o escuta, afinal, na situação da pesquisa de campo, ele/ela possui os conhecimentos que se busca, o que diz se transforma em documento da pesquisa. "Manter em mente esse fator significa lembrar que estamos falando não com ‘fontes’ – nem que estamos por elas sendo ajudados – mas com pessoas", como alerta Portelli (1981, p. 26). Talvez a percepção de muitos narradores no momento em que se deixaram entrevistar tenha sido de avaliar-me como um "outro", um estranho que vem falar da sua vida. "Este outro será capaz de retratar o que eu disse, o que eu vivi?". Muitas vezes, podem não coincidir os objetivos do entrevistado e do entrevistador. É por isso que Errante (op. cit.) defende a premissa, já indicada anteriormente, de que quem decide o que falar e o que calar é o/a entrevistado/a. Por outro lado, o/a entrevistador/a também tem um poder, pois ele/ela representa um outro tipo de saber, uma determinada instituição, seu trabalho visa uma publicização de teor científico.

Diante dessas questões, muitas vezes me senti uma "estrangeira" frente aos/às entrevistados/as, pois somente eles e elas vivenciaram a experiência e conheciam "a história", direcionando suas falas como melhor entenderam. Muitos/as entrevistados/as criaram uma situação persuasiva, a ponto de provocarem em mim uma certa "sedução", como referi antes, tornando opacos outros entendimentos possíveis da trama que me dispus a construir a partir das narrativas. Neste sentido, Woldmann (1996) aponta as possíveis armadilhas de o/a pesquisador/a encantar-se com suas fontes, a ponto de inviabilizar uma análise com maior distanciamento. Ela complementa comparando a relação que se estabelece entre o historiador e o narrador como um "jogo de esconde-esconde", sendo que o historiador é o inquiridor, se apresenta como "aquele que sabe", aquele que tem por papel estabelecer uma verdade. Ao narrador caberia uma situação forçosa de "ficar na defensiva". Entretanto, tal posição pode ser questionada, uma vez que existem duas subjetividades que se encontram, a do historiador e do narrador, e, como já se alertou, o historiador também fica, e muito, na dependência, nas mãos de

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seus narradores, uma vez que têm o poder de contar o que quiserem, como quiserem e quando quiserem.

Durante a entrevista, há alguns minutos, talvez não passe de meia hora, que são essenciais. É como se o entrevistado "se apossasse" de seu passado e, então, falasse dele fluentemente. Entretanto, por mais envolvido que ambos estejam na conversa, o cotidiano, o passar das horas materializado no relógio, um telefone tocando, os afazeres, chamam o entrevistado de volta ao presente e, rapidamente, as lembranças como que se esvaem... Esse é um aspecto cruel para quem pesquisa. Às vezes gasta-se muito tempo até que a entrevista efetivamente aconteça, e interferências externas, por menores que sejam, acabam, por vezes, inviabilizando a fecundidade daquele encontro.

Há que se considerar que a entrevista, como afirma Portelli (1981, p. 21) é uma invasão à privacidade do outro, afinal, interfere-se no cotidiano das pessoas e toma-se seu tempo. Neste sentido, o autor defende a importância do pesquisador, durante a entrevista, mostrar-se aberto, falar um pouco sobre si, evitar atitudes impessoais e distantes e manter uma abordagem cortês como uma espécie de "protocolo para o trabalho de campo." (p.22). Assim, fica clara a natureza interpessoal da entrevista, pois pesquisador e narrador estabelecem uma relação dialógica em que ambos podem perguntar e responder. Ressalta-se, ainda, a posição do autor ao sugerir que o entrevistador procure provocar o entrevistado a falar mais, por meio, por exemplo, de comparações com o que outros depoentes falaram. Portelli fala de uma espécie de "contradição polida", que pode gerar um adensamento da discussão e análises mais longas, uma vez que o entrevistado estaria sendo instigado a falar mais. Isso aconteceu em várias ocasiões nas conversas que mantive com os sujeitos da pesquisa. Quando começavam a idealizar a "escola perfeita", questionava-os acerca dos possíveis problemas vividos naquela instituição, destacados por alguns narradores. Mesmo que muitos se mostrassem quase indignados diante de tais provocações, no

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mínimo, se expuseram mais e acabaram enriquecendo a entrevista com outras narrativas.

Além disso, o ambiente onde se desenrolaram as entrevistas não foi irrelevante. O melhor espaço para a realização da entrevista, nesta investigação, pareceu ser a casa do narrador, pois é o lugar que mais sinaliza quem ele é, que é mais próximo de suas referências de vida, e, supostamente, menos sujeito a influências externas, oferecendo, portanto, um rico material de observação que auxiliou a compor uma imagem do entrevistado. Assim, o espaço em que acontece o encontro, a preparação do/da entrevistado/a promovem o "clima" em que a conversa tende a se desenrolar. Percebi que as entrevistas em espaços profissionais, tensionadas por elementos externos ou com um tempo exíguo, em geral, não atenderam aos propósitos almejados. Nessas situações, persistiu a superficialidade e não se avançou na problematização. As melhores entrevistas foram aquelas que os entrevistados prepararam o ambiente para o encontro, se dispuseram a falar, desmarcaram outros compromissos e, cabe ressaltar, que, em alguns casos, percebi a colaboração dos familiares por permitirem que o entrevistado se dedicasse àquele momento. A grande maioria dos encontros foi na residência dos entrevistados e, realmente, entrar na casa da pessoa, observar os detalhes da composição do ambiente contribuiu para a construção dos diferentes sujeitos da Escola. Normalmente, as pessoas gostaram de mostrar a sua casa, que reflete fragmentos de suas identidades. Assim, mostraram os livros, os quadros, as plantas, os passatempos, as fotos da família, e esses elementos, reunidos, disseram muito de si mesmos.

Outra questão metodológica relevante se refere ao alerta de Zago (2003) para os riscos de se fazer muitas entrevistas em um espaço de tempo curto. Por vezes, somos tentados a concentrar mais e mais entrevistas, em uma busca de chegar, rapidamente, a uma mostra que dê conta de atender aos objetivos da pesquisa. Entretanto, a autora diz que as perdas podem ser maiores que os ganhos na pressa de se fazer entrevistas. Essa situação ficou muito evidente para mim, quando, nas férias de

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verão, imaginava poder dar conta de todas as entrevistas para a pesquisa. Em um dia, cheguei a conversar com três pessoas em Osório. O número em si diz pouco, mas, se entendermos que cada entrevista exige uma relação de aproximação, de criação de vínculos, de construção de uma certa cumplicidade com o entrevistado, não há como valer-se adequadamente da metodologia da história oral. Desse modo, é importante dizer que, por questões éticas e de respeito ao narrador, não entrei na casa de uma pessoa e fui embora assim que as perguntas se encerraram. Foi preciso conversar, explicar os objetivos do trabalho, valorizar a participação do entrevistado, enfim, persuadi-lo a falar e, depois da entrevista, foi comum as pessoas falarem mais de si, pois estavam mais tranqüilas. Foram momentos que ofereceram algo para beber ou degustar, mostraram a casa, as fotos... Além disso, é importante o entrevistador estar concentrado em tudo o que dizem, nos seus silêncios, gestos, olhares e, ao final do dia, procurar transcrever tudo o que aconteceu para não esquecer. Então, uma quantidade grande de entrevistas em um curto espaço de tempo não promove o adensamento das questões que se pretende analisar e corre-se o risco de não valorizar os detalhes, e estes caírem no esquecimento ou confundirem-se em um emaranhado de falas e de sujeitos entrevistadas. Portanto, os encontros com os narradores, por buscarem a profundidade, não precisaram ser numerosos, mas propiciaram a imersão. O que interessou foi a representatividade, ou seja, que o conjunto de narradores da pesquisa desse conta de levar à compreensão do fenômeno social investigado.

4 Concluindo...

As pesquisas sobre memórias têm se mostrado fecundas, por permitirem um outro tipo de conhecimento do passado educacional, pois valorizam as narrativas construídas pelos sujeitos nos estudos sobre a escola. Para Sarmento (2003), o esforço do/da

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pesquisador/a em ouvir o outro possibilita a construção de um trabalho interativo e permite o desenvolvimento de uma ciência mais humana. E é nesse ato de disponibilizar-se a escutar o que o outro tem a dizer, nessa comunicação intersubjetiva, nesse espaço dialógico, que é possível perceber as diferenças e s idiossincrasias do estudo de caso.

Os estudos desenvolvidos referentes às relações entre história da educação, memória e história oral promovem uma revisão de antigos conceitos, desestabilizam o que antes era tido como "certo", insinuaram novos olhares, indicaram entendimentos plurais, enfim, revelaram outras possibilidades de investigar aquilo que é marginal, no sentido que Certeau2 (1996, p. 44) dá ao termo, ou seja, o que se mostra do avesso.

A história oral permitiu a interlocução com os documentos. Sem se afastar de um rigor metodológico, ao longo do processo das entrevistas, procurou-se ir fundo nas questões propostas. Quando se está envolvida com uma investigação em que os sujeitos narram suas vivências, é difícil não se deixar envolver demasiadamente pelo que dizem. Por vezes, frustraram as expectativas, pois havia, inicialmente, um desejo ingênuo de querer escutar aquilo que era esperado. Se a memória é produtora de conhecimentos, é preciso compreender o que cada sujeito fala, sem esperar que narre a história que os pesquisadores desejam ouvir. As vozes escutadas devem se constituir como "enigmas", para justamente poderem potencializar as problematizações e permitir o avanço e a fecundidade da investigação.

2 A questão da marginalidade assume outros significados para Certeau. Do ponto de vista semântico, a palavra nos induz a pensar naquilo que está de fora e que, portanto, ocupa um espaço menor que o todo. Certeau relativiza essa compreensão ao explicar o conceito de "marginalidade de massa" (1996, p. 44), e isso afasta a possibilidade de pensar que o marginal se refere a pequenos grupos, ao contrário, identifica-se mais com a idéia da marginalidade enquanto uma "maioria silenciosa"(p. 44).

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A intenção aqui foi procurar compreender o processo da memória como algo que não é puramente individual, que não representa exatamente o que se passou, mas que é, muitas vezes, fruto de uma construção social de um grupo de indivíduos. Metaforicamente, a composição da memória se aproxima mais da idéia de um mosaico, do que um quebra-cabeças, em que as peças encaixam-se com exatidão. Para Stephanou e Bastos (2005, p. 420), a memória é "uma espécie de caleidoscópio, composto por vivências, espaços e lugares, tempos, pessoas, sentimentos, percepções/sensações, objetos, sons e silêncios", ou seja, o processo de composição das memórias é marcado pelas lembranças, pelos esquecimentos, pelas falas e pelos silêncios. Assim, a pesquisa encontrou uma comunidade de memória que congrega alunos e professores de uma antiga Escola Normal Rural em Osório. A escola em questão constituiu-se em um marco em suas vidas, é uma referência sempre presente na reconstrução permanente de suas identidades.

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Dóris Bittencourt Almeida é Doutora em Educação, professora da Universidade de Caxias do Sul e do Colégio Farroupilha, em Porto Alegre.

Recebido em 20/09/2008 Aceito em 15/11/2008

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UM ESTUDO SOBRE A LEITURA ANALYTICA (1909), DE THEODORO DE MORAES

(1877 - 1956) Bárbara Cortella Pereira

Resumo Com o objetivo de contribuir para a compreensão de um importante momento da história da alfabetização no Brasil, apresentam-se os conceitos básicos da proposta de ensino da leitura defendida por Theodoro de Moraes (1877-1956), contida no livreto A leitura analytica, publicada pela Typ. do "Diário Official", em 1909. Mediante abordagem histórica centrada em pesquisa documental e bibliográfica, analisou-se a configuração textual desse livreto, que consistiu em enfocar os diferentes aspectos constitutivos de seu sentido. Essa análise permitiu constatar que o livreto analisado se apresenta como uma das primeiras tematizações sobre o método analítico para o ensino inicial da leitura, defendido por educadores e administradores escolares paulistas e tornado oficial para as escolas primárias do estado de São Paulo, entre o final do século XIX e o início do século XX.

Palavras-chave: Ensino da leitura; Método analítico; Pesquisa Histórica em educação.

A STUDY ABOUT A LEITURA ANALYTICA (1909), BY THEODORO DE MORAES (1877 - 1956)

Abstract Aiming to contribute to the understanding of an important moment in the history of literacy in Brasil, they are presented the basic concepts of the proposed for teaching of reading defended by Theodoro de Moraes (1877-1956), contained in the booklet A leitura analytica, published by Typ. do "Diario Official", in 1909. By historical approach focused on documental and bibliographic research, they are analysed the principals aspects of its textual configuration. It was concluded that the booklet may be considered one of the most important tematizations of the analytical method for the initial teaching of reading, advocated by educators and school administrators São Paulo and made official for primary schools in the state of São Paulo, between the end of the XIX century and the beginning of the XX century.

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História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 13, n. 27 p. 245-266, Jan/Abr 2009. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe

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Keywords: Teaching of reading; Analytical method; Historical research in education.

UN ESTUDIO SOBRE LA LECTURA ANALYTICA (1909), DE THEODORO DE MORAES (1877 - 1956)

Resumen Con el objetivo de contribuir para la comprensión de un importante momento de la historia de la alfabetización en Brasil, se presentan los conceptos básicos de la propuesta de enseñanza de lectura defendida por Theodoro de Moraes (1877-1956), contenida en el libreto "A leitura analytica", publicada por Typ. del "Diário Official", em 1909. Mediante un abordaje histórico, centrado en pesquisa documental y bibliográfica se analisó la configuración textual de ese libreto, que consistió en enfocar los diferentes aspectos constitutivos de su sentido. Ese análisis permitió constatar que el libreto analisado se presenta como una de las primeras tematizaciones sobre el método analítico para la enseñanza inicial de la lectura, defendido por educadores y administradores escolares paulistas y tornado oficial para las escuelas primárias del estado de São Paulo, entre el final del siglo XIX y el início del siglo XX.

Palabras Clave: Enseñanza de lectura; Método analítico; Pesquisa Histórica em educación.

UNE ÉTUDE SUR A LEITURA ANALYTICA (1909), PAR THEODORO DE MORAES (1877 - 1956)

Résumé Dans le but de contribuer à la compréhension d’un moment important de l’ histoire de l’alphabétisation au Brésil, on présente les concepts fondamentaux de la proposition d’ enseignement de la lecture défendue par Theodoro de Moraes (1877-1956), qui figure dans la brochure A leitura Analytica, publiée par Typ. do "Diario Official", en 1909. A’ um point vue historique, en mettant l’ accent sur la recherche documentaire et de la littérature, on a passé en revue la configuration textuelle brochure, cette méthode consiste à focaliser lês différents aspects constitutifs de son sens. Cette analyse permet de constater que la brochure est présentée comme une analyse des premières thématisations sur la méthode analytique pour le enseignement initial de la lecture, prônée par les éducateurs et les administrateurs des écoles de São Paulo et rendues officielles pour les écoles primaires dans l’État de São Paulo, entre la fin du XIXe siècle et du début du XXe siècle.

Mots-clés: Enseignement de la lecture; Méthode analytique; La recherche historique en matière d’ éducation.

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Introdução

O ensino da leitura às crianças pelo método analítico1 foi assunto intensamente debatido, especialmente entre as décadas finais do século XIX e as décadas iniciais do século XX, no Brasil. No livreto A leitura analytica2 (1909), de Theodoro de Moraes, tem-se uma importante síntese das idéias e práticas defendidas por seu autor, relativamente a esse método analítico para o ensino da leitura. Esse livreto, assim como os livros de leitura e cartilhas de Theodoro de Moraes, foram produzidos em um momento histórico e social de mudanças significativas relacionadas com os ideais republicanos, especialmente na educação e no ensino inicial da leitura e escrita. Essas mudanças caracterizam o "2o momento" da história da alfabetização no Brasil, proposto por Mortatti (2000).

Considerando, portanto, que esse livreto já centenário é representativo dos debates que se travaram em torno do método analítico para o ensino inicial da leitura nesse momento histórico, apresento, neste artigo3, os principais aspectos constitutivos do 1 O método de marcha sintética para o ensino da leitura consiste em conduzir esse ensino da "parte" para o "todo". De acordo com os processos utilizados para sua condução, esse tipo de método pode ser classificado em: método alfabético, método fônico e método silábico. Seguindo caminho inverso, o método analítico consiste em iniciar esse ensino "[...] com unidades completas de linguagem, para posterior divisão em partes ou elementos menores [...]" (MORTATTI, 2004, p. 123). De acordo com os processos utilizados para sua condução, tem-se a seguinte classificação: método da palavração, método da sentenciação, método da "historieta" e métodos "de contos". 2 Nesta e nas demais citações de trechos e títulos de documentos, manterei a ortografia original. 3 Este artigo é decorrente de pesquisas de Iniciação Científica (PIBIC/CNPq/UNESP) e de Mestrado (bolsa FAPESP), vinculadas ao Grupo de Pesquisa e ao Projeto Integrado de Pesquisa "História do ensino de língua e literatura no Brasil", coordenados por Maria do Rosário L. Mortatti.

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sentido do livreto, decorrentes da análise de sua configuração textual, a saber, do:

[...] conjunto de aspectos constitutivos de determinado texto, os quais referem-se: às opções temático-conteudísticas (o quê?) e estruturais-formais (como?), projetadas por um determinado sujeito (quem?), que se apresenta como autor de um discurso produzido de determinado ponto de vista e lugar social (de onde?) e momento histórico (quando?), movido por certas necessidades (por quê?) e propósitos (para quê?), visando a determinado efeito em determinado tipo de leitor (para quem?) e logrando determinado tipo de circulação, utilização e repercussão. (2000a, p. 31)

Ao intitular esse livreto de A leitura analytica, Theodoro de Moraes também "dialoga" com a conferência proferida pelo professor fluminense João Köpke, em 1896, com o mesmo título4. Talvez essa coincidência de títulos se deva à necessidade sentida por Moraes de retomar e reafirmar as principais idéias defendidas pelo "mestre" ou até mesmo para ampliá-las e sistematizá-las, para posteriormente se tornarem instruções aos professores para a aplicação prática desse método de ensino da leitura5. Compreender esses, dentre outros aspectos intrigantes e fecundos, mediante a análise da configuração textual, é meu objetivo nesse artigo.

4 Estudos sobre essa conferência se encontram em Ribeiro (2001; 2005) e em Panizzolo (2006). 5 Refiro-me, aqui, à participação de Moraes na elaboração de documentos oficiais, contendo instruções práticas aos professores, como o documento "Como ensinar leitura e linguagem nos diversos annos do curso preliminar" (1911), expedido pela Diretoria Geral da Instrução Pública e as instruções contidas ao final das suas cartilhas e livros de leitura para crianças.

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1 Aspectos da vida e atuação profissional de Theodoro de Moraes6

Filho primogênito, dentre os 14 filhos do Dr. Antonio Augusto Rodrigues de Moraes — formado em Direito e chefe de Polícia e Juiz de Direito no Mato Grosso —, e de Maria Eugenia de Vasconcelos de Moraes, Theodoro Jeronymo Rodrigues de Moraes nasceu no dia 18 de agosto de 1877, na cidade de São Paulo, capital da província de mesmo nome.

Iniciou sua carreira de professor público em Amparo-SP, no ano de 1898, como adjunto no Grupo Escolar "Luís Leite", onde lecionou até 1902. Nessa mesma cidade se casou com Joanna Correa Rodrigues de Moraes e constituiu família, tendo tido oito filhos.

Em 1903, regressou com sua família à capital do estado, para iniciar o curso secundário, na Escola Normal "Caetano de Campos". Diplomou-se, em 1906, juntamente com outros 50 normalistas, tendo-se destacado como um dos mais dedicados de sua turma, conforme os registros das notas de exames e médias de aplicação das matérias do curso secundário da Escola Normal da Capital.

Em 1907, foi nomeado diretor do Grupo Escolar "Coronel Joaquim de Sales", em Rio Claro-SP, pelo então diretor Geral da Instrução Pública, Dr. Oscar Thompson. Permaneceu nesse cargo por menos de um ano, mas sua atuação foi elogiada pelo inspetor escolar, Dr. Chrysostomo Bueno dos Reis Junior, em uma visita a esse grupo escolar. 6 As informações contidas neste tópico sobre os aspectos da vida e atuação profissional de Theodoro de Moraes foram extraídas de: documentos do acervo do "Setor de Documentação Histórica Escolar" - CRE Mário Covas; Mesquita (1922); Moraes (1917); Barboza (2006); e do site da E.E "Theodoro de Moraes", a qual foi fundada na cidade de São Paulo, em 25/08/1933, com a denominação "Primeira Escola Reunida", junto ao Asilo Anália Franco; em 25/01/1975, passou a ser denominada E.E. de Primeiro Grau "Professor Theodoro de Moraes".

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Em 1908, regressou à cidade de São Paulo, tendo sido nomeado professor na Escola Modelo Isolada do Largo do Arouche, onde permaneceu trabalhando por três anos. Em junho desse mesmo ano, Theodoro de Moraes foi nomeado também redator efetivo da Revista de Ensino, órgão da Associação Beneficente do Professorado Público Paulista7, função na qual permaneceu até dezembro de 1909.

Iniciou sua produção de livros didáticos, em 1909, com a publicação da cartilha Meu livro: primeiras leituras de accôrdo com o methodo analytico8 e, durante as primeiras décadas do século XX, continuou escrevendo cartilhas e livros de leitura baseados no método analítico.

Theodoro de Moraes se afastou da Escola Modelo Isolada do Largo do Arouche em 1910, para assumir o cargo de Inspetor Escolar, novamente a convite de Oscar Thompson.

Em 1912, foi nomeado professor da 9ª cadeira da Escola Normal de São Carlos, em São Carlos-SP. Regressou à capital do estado, em 1915, tendo sido nomeado professor de uma escola noturna dessa cidade; meses depois, essa escola passou a ser denominada Grupo Escolar "Maria José". Em 1928, Theodoro de Moraes foi Inspetor da Escola Normal Livre anexa ao Colégio N. S. do Amparo, em Amparo-SP.

7 Segundo Catani (2003), a Associação Beneficente do Professorado Público de São Paulo foi fundada em 27 de janeiro de 1901 e, como iniciativa desse grupo de professores foi criada, em 1902, a Revista de Ensino, que foi editada até 1918. Essa revista se destacou como uma instância privilegiada de discussões e debates sobre a instrução pública. Tanto na Diretoria da Associação quanto na Comissão da Redação da Revista de Ensino, teve-se a participação de um grupo representativo de professores normalistas sempre próximo dos órgãos oficiais da instrução pública paulista, ressaltando-se o fato de que Theodoro de Moraes foi redator efetivo dessa revista, entre junho de 1908 e dezembro de 1909. 8 Essa cartilha foi objeto de análise no Trabalho de Conclusão de Curso de Pedagogia, intitulado Um estudo sobre Meu livro (1909), de Theodoro de Moraes, que concluí em 2006, como decorrência de atividades de Iniciação Científica (bolsa: PIBIC/CNPq/UNESP).

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Esse professor foi, ainda, chefe do Departamento de Educação do Estado de São Paulo. Aposentou-se com 33 anos de serviços dedicados à educação e faleceu em 16 de abril de 1956, aos 79 anos.

2 A leitura analytica

O exemplar analisado, de 1909, tem o formato de livreto, com 16 x 23 cm e 34 páginas numeradas na parte superior central da folha.

A capa é flexível e apresenta um fundo vermelho. Em sua parte superior, há o título do texto com a inicial maiúscula. Abaixo do título, são apresentados o nome do autor, grafado da seguinte forma "Theodoro de Moraes"9, e o cargo ocupado por ele no momento de publicação desse livreto: "Professor da Escola-Modelo Isolada Annexa a Escola Normal de S. Paulo".

Na parte central da capa, há uma estampa10. Na parte inferior é apresentado o nome da cidade e do local de impressão "Typ. Do ‘Diário Official’" e, por fim, a data de publicação.

O texto está subdividido em três tópicos separados por algarismos romanos, seguidos da conclusão.

Ao longo do texto, o autor faz citações de palavras e frases em inglês e francês, sem traduzi-las na maioria das vezes, apenas indicando, em notas de rodapé (19 no total), o livro de onde foram extraídas.

No Quadro 1, apresento os nomes dos autores e os títulos dos livros citados em epígrafes e notas de rodapé, de acordo com a ordem de ocorrência no livreto, acompanhadas da quantidade de ocorrências. 9 Nas diferentes publicações do autor, a grafia de seu nome pode aparecer como "Theodoro de Moraes" ou ainda "Teodoro de Morais". 10 O termo "estampa" era utilizado na época de publicação e circulação da cartilha em sentido aproximado ao que atualmente se denomina "ilustração" e correlatos.

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Quadro 1 – Autores e títulos dos livros citados em A leitura analytica (1909), de Theodoro de Moraes

Autor Livro Quantidade Arnaldo de Oliveira Barreto

Cartilha analytica 1

Pascal Penseés 2 Francis Parker Talks on teaching 4 João De Deus Cartilha Maternal" 2 Miss Sarah Arnold Learning to read 3 Buffon Discours sur le style 1 John P. Prince Courses and Methods 1 Sarah Brooks Primary Reading 1 Amy Algeo Primary Reading 2 Rocha Pombo O grande Problema 1 Montaigne Essais – L.I 1 Boileau L’art poetique – Chant I 2 Silva Jardim Reforma do ensino da língua

materna 1

E. Renan Souvenirs d’enfance et de jeunesse

1

Camões Lusíadas – IV e XCIV 1 João Köpke A leitura analítica 1 TOTAL 25

Moraes cita quatro autores brasileiros, cinco norte-americanos, cinco franceses e dois portugueses. No entanto, como se pode observar no Quadro 1, a recorrência aos autores norte-americanos é predominante.

No capítulo "I" (p. 4 - 8), são apresentadas duas epígrafes. A primeira é extraída da Cartilha analytica (1909), de Arnaldo Barreto11, em que esse educador paulista considera que aquele que para ensinar não recorrer aos processos "[...] mais de

11 Estudo minucioso dessa cartilha se encontra em Bernardes (2003; 2008).

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acordo com as leis do espírito [...]", não merece ser chamado de professor; e a segunda, escrita em francês12, é extraída do livro Pensées (1670), do filósofo francês, Blaise Pascal.

Nesse capítulo, Moraes (1909) discorre sobre a dificuldade da implantação do método analítico para o ensino da leitura no espaço escolar, que se vinha prolongando "de longa data", apesar das campanhas incansáveis feitas por aqueles que "occuparam [ ], logares de honra na primeira linha do professorado." (p. 3). Ressalta, porém, que aquele que tem o mínimo conhecimento sobre esse assunto e o "bom desejo" de ensinar a ler com o "espírito lógico" e com a colaboração do aluno conhece as vantagens do método analítico.

De acordo com Francis Parker13, ler é pensar por meio de palavras escritas e impressas dispostas em sentenças. Segundo Moraes (1909), "esta verdade feriu de morte a soletração e a syllabação como pontos de partida para o apprendizado da leitura" (p.4), visto que esses dois processos, característicos dos métodos de marcha sintética, "mutilam a alma do ensino", que é o entendimento do que se aprende, e reduzem o aluno à posição de "repetidor gaguejante [...] de miudezas abstratas", provocando-lhe um imenso desgosto pela leitura.

Pautando-se na explicação de Miss Sarah Arnold14, de que a criança necessita de um ensino que considere o seu passado, para que haja interesse, Theodoro de Moraes conclui que, havendo compreensão, virá o interesse e a simpatia, o sentimento, enfim:

12 Há luz suficiente para aqueles que desejam ver, e falta de claridade o bastante para aqueles que tem uma disposição contrária (Tradução livre da autora). 13 Segundo Torres; Alcântara; Irala (2004), no final do século XIX, Francis Parker, "[...] promoveu a aprendizagem cooperativa, democracia e a devoção à liberdade nas escolas públicas". (p. 11) 14 Segundo Mortatti (2000), a Cartilha de Arnold foi criticada por Oscar Thompson devido aos problemas de tradução; por esse motivo, Thompson solicita a adoção da cartilha Meu Livro, de Theodoro de Moraes. (p.127).

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"[...] haverá pensamentos entendidos, isto é, haverá a leitura" (1909, p. 5).

Essa explicação questiona diretamente o ensino da leitura pelo método sintético, que, para o entendimento da criança, assemelha-se a uma "[...] muralha chineza das letras e sílabas" e, pelo "[...] monótono psitacismo de silabas inexpressivas e senteças anti-melódicas, percucientes, ingratas ao ouvido e ao entendimento [...]." (MORAES, 1909, p. 6), apaga nelas o interesse e o prazer da leitura.

Como exemplo de lentidão com que algumas idéias se desenvolvem, Moraes recorda que, em 1884, portanto 25 anos antes da data de publicação desse livreto, o professor Antonio da Silva Jardim15 defendia que a palavração era o único processo racional do ensino da leitura. A despeito dessa lentidão, ele conclui que o número de adeptos ao método analítico se ia fortalecendo tanto no estado de São Paulo, quanto no estado de Minas Gerais, no qual, depois de uma reforma radical, lançou-se "[...] a sementeira das bôas idéas." (MORAES, 1909, p. 7).

De acordo com o decreto n. 2416, de fevereiro de 1909, as escolas públicas do estado de São Paulo deveriam iniciar o ensino da leitura pela palavra. No entanto, Moraes alerta para as diferentes realidades entre a adoção oficial e a prática efetiva do método analítico e adverte para os perigos de sua implantação, se os professores não estiverem adequadamente orientados.

Moraes (1909) elogia a forma de adoção, cautelosa, desse método nas escolas paulistas, a fim de evitar o fracasso de sua processologia, que considera "[...] facil e ao alcance da bôa vontade de quem a empregar" (p. 7) e a coragem dos professores que apoiavam a iniciativa do Dr. Oscar Thompson, "[...] fiel e

15 Antonio da Silva Jardim (1860-1891), professor positivista, tornou-se também, de acordo com Mortatti (2000a), divulgador do "'método João de Deus', contido na Cartilha maternal, o qual apresenta como revolucionário e fase definitiva — porque científica — para o ensino da leitura no estado atual da civilização." (p. 48).

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experimentado propugnador do método analítico [...]" (p. 7), de implantar definitivamente esse método de ensino da leitura, nas escolas paulistas.

Conclui esse primeiro capítulo, ressaltando que a Cartilha Maternal foi, para ele, na evolução do ensino, "[...] a aurora, os acórdes de uma harmonia ainda distante [...]"; e tão mais será o método analítico, "[...] um hino soberbo – o da redenção intelectual da criança no aprendizado da leitura!" (p. 8).

No capítulo "II" (p. 8-26), é apresentada uma epígrafe extraída da página 48 do livro Courses and Methods, de John P. Prince, já vertida para o português, e traz a diferenciação entre ler e ler em voz alta.

Nesse capítulo, Moraes busca fundamentação em textos das autoras norte-americanas Sarah Brooks e Amy Algeo16, para afirmar que a criança se expressa com maior facilidade em sentenças. Por isso a tarefa do professor, nas primeiras semanas de aulas, deve ser a sistematização da conversação, por meio de palestras que lhe despertem o interesse, por meio de objetos ou estampas, estimulando respostas completas por parte dos alunos.

Ao se questionar sobre quais palavras se deveriam empregar no início do ensino da leitura, Moraes cita um trecho do documento Reforma do ensino da lingua materna (1884), de Silva Jardim, o qual aponta três fases percorridas na "arte da leitura": "ficticia" (soletração), "transitoria" (sillabação) e definitiva (palavração). Silva Jardim propõe o ensino da leitura pela palavração, "[...] PARTINDO DA MAIS FÁCIL PARA A MAIS DIFÍCIL, DA SIMPLES PARA A COMPOSTA" (JARDIM apud Moraes, 1909, p. 11, grifos do autor). Moraes (1909) ressalta, porém, que, embora tenha preocupação semelhante, seu critério de escolha de por onde iniciar o ensino da leitura difere do de Silva Jardim; esse ensino deve ser iniciado não

16 Até o momento, não foi possível localizar informações sobre vida e atuação profissional dessas autoras.

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por palavras, mas por pensamentos, já que são eles que expressam coisas, fatos, cenas e ações que despertem o interesse da criança.

Segundo Moraes, tanto a psicologia quanto a fisiologia consideravam mais adequado o ensino inicial da leitura por meio de sentenças como "Paulo tem um tambor" em oposição a sentenças como "o vovô viu o viúvo" (p. 12). Para fundamentar essa proposição, Moraes cita um artigo do professor francês Ludwig Laqueur, transcrito no jornal O Estado de S. Paulo, em que explica que a percepção das palavras está ligada à forma das letras que as compõem; se na palavra não houver nenhuma letra com saliência para cima ou para baixo, a leitura se torna mais difícil para a criança.

Em seguida, Moraes (1909) explica detalhadamente e com transcrições de exemplos, a processuação do método analítico, "[...] segundo os conselhos de autoridades no assumpto [...]" (p. 13) para o bom êxito do ensino da leitura.

No "1o Passo", Moraes enfatiza a importância da realização de palestras com os alunos sobre o texto das 12 primeiras lições, atividade que deve ocupar no mínimo as duas primeiras semanas de aula. Essas palestras devem ser ilustradas com objetos ou estampas de tamanho suficiente para serem vistas por todos.

O professor deve manter uma linguagem simples na conversação e conduzir a criança a formar sentenças completas em suas respostas. Exemplifica como deve ser dirigida essa palestra, por meio da lição de Cartilha de Arnold, de Sarah Arnold. Moraes considera que nessas palestras o aluno, como "interlocutor" e "observador", adquire idéias por intuições "porque vê para entender" (MORAES, 1909, p. 15).

No "2o Passo", Moraes considera que, após o exercício da formação oral de sentenças, o aluno está apto a iniciar as suas primeiras lições de leitura. As primeiras lições serão dadas exclusivamente no quadro negro, "[...] campo de acção do mestre [...]", segundo João Köpke (apud MORAES, 1909, p. 16). Portanto, o livro não deverá jamais ser entregue antes de o aluno

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conseguir reconhecer as sentenças escritas no quadro negro, pois causaria embaraço e confusão.

Fundamentado nas idéias de Francis Parker, Moraes reafirma as vantagens do quadro negro em relação ao livro. O professor deve escrever as sentenças no quadro negro, a fim de que os alunos, por esse "acto de associação", as dominem e as reconheçam num "[...] golpe de vista (sight-sentence)" (p. 17).

Moraes exemplifica com a "historia da maça", extraída de Cartilha de Arnold, como o professor deve utilizar o quadro negro: deve escrever a sentença, alterando a ordem das palavras, se necessário repetir as que ainda não foram compreendidas, apagá-las e escrevê-las novamente e, por fim, dispor as palavras da sentença em colunas, para o domínio efetivo por parte dos alunos da classe.

Após a leitura das lições no quadro negro, o aluno começará a reconhecer de "golpe de vista" as palavras. Moraes considera que a fragmentação da sentença em palavras é um começo de análise, o "[...] unico supportavel pelo espirito da criança nesta phase inicial da leitura" (MORAES, 1909, p. 20). No entanto, como propõe Arnold, as preposições, conjunções, interjeições e os artigos devem permanecer ligados aos nomes ou verbos a que estejam associados na sentença.

Moraes, ainda, reúne oito exercícios (da letra "a" até "f") do tipo sight-word, por considerá-los importantes para manter o interesse do aluno. Em seguida, propõe que o professor organize lições retrospectivas com as sentenças estudadas anteriormente na cartilha.

No "3o Passo", propõe a entrega da cartilha, que deve ser feita com "caracter festivo", para que a criança guarde esse memorável dia.

Após as lições, o professor deve obedecer ao mesmo roteiro proposto: toda nova lição será ensinada primeiramente no quadro negro, para posteriormente ser lida "no livro". O professor deve permitir que os alunos façam primeiramente a leitura silenciosa de cada lição para, em seguida, proceder à leitura oral.

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Moraes encerra esse capítulo com a reprodução de quatro conselhos de Parker para manter vivo o gosto da criança pela leitura.

No capítulo "III" (p. 27-31), a epígrafe selecionada é extraída do livro Talks on teaching, de Francis Parker17. Nesse capítulo, Moraes apresenta algumas considerações sobre o momento mais adequado para o trabalho de análise no ensino da leitura e, mais uma vez, concorda com os "pedagogistas norte-americanos" de que se deve "[...] afastar do período inicial da leitura qualquer tentativa de analyse como extemporânea e dispersiva" (MORAES, 1909, p. 27). Para ele, o propósito essencial nessa fase de ensino é "[...] dar ao alumno o habito da leitura, é adestra-lo na acquisição de pensamentos [...]" (p. 27). Ao final desse capítulo, Moraes (1909) acrescenta que "[...] deve o alumno começar, desde logo, o mais cedo possível, os seus primeiros exercícios de linguagem escripta" (p. 30).

Na "Conclusão" (p. 33-34) é apresentada uma epígrafe, em francês extraída de Pensées, de Pascal. Moraes conclui o texto ressaltando os resultados do ensino da leitura pelo método analítico que "[...] são antes mediatos que immediatos" (1909, p. 33). E para preencher as lacunas dos conceitos por ele apresentados mediante sua "[...] simples exposição [...] ", rememora as palavras de João Köpke, seu "[...] mestre insigne[...]" e também defensor do método analítico para o ensino da leitura:

[...] abandonei o processo synthetico de resultados apparentes mais promptos e mais procurados, portanto, contra o conselho da economia, e adopto e aconselho o analytico, mais trabalhoso, para o mestre, e mais tardo na fructificação, que agrada ao interessado. (KÖPKE apud MORAES, 1909, p. 34).

17"A palavra deve ser aprendida como um todo, e qualquer tentativa de iniciar a análise da palavra retarda o ensino. A luta para analisar uma nova palavra, ou construí-la a partir de partes absorve a atenção, o que impede o ato de associação" (Tradução livre da autora).

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3 Repercussão, circulação e tipo de leitores

Em 1909, A leitura analytica foi publicada pela Typ. Do "Diário Official" (do estado de São Paulo) como livreto, o que permite inferir que teve circulação oficial, visto que a Typ. do ‘Diário Official’ imprimia documentos oficiais para a Diretoria Geral da Instrução Pública Paulista.

Em março desse mesmo ano, o capítulo I de A leitura analytica foi publicado na Revista de Ensino (anno VIII, n.1, p.17-20), sob o título "Leitura analytica".

Em 1913, a "Typ. Siqueira, Nagel & Comp." republica o livreto, sem nenhuma alteração em seu conteúdo e forma, apresentando apenas atualização ortográfica.

Após 36 anos de sua 1ª edição, em 1945, a Revista Educação18 republica esse texto na íntegra, na seção "Metodologia" (p. 174-200), também apenas com atualização ortográfica. Dos sete artigos publicados nessa seção desse número da Revista Educação, seis tratam do ensino da leitura pelo método analítico. O artigo de Theodoro de Moraes é o último dessa seção; os títulos e autores dos artigos precedentes são: "Como ensinar a ler pelo método analítico", de Raimundo Pastor; "O ensino da linguagem na Escola Primaria", de Vicente Peixoto; "O ensino da leitura pelo método analítico", de João Köpke; "Problemas", de Jersey de Castro; "Didática da Sociologia nas Escolas Normais", de Wellman G. F. Rangel e "Lição e unidade de aprendizagem", de José de Almeida.

Como informei, também sob a forma de livreto o texto de Moraes teve ampla circulação no estado de São Paulo, com repercussão além do seu momento histórico em que foi publicado pela primeira vez.

18 De acordo com Mello (2007), a revista de Educação no Estado de São Paulo foi editada com diferentes denominações, em diferentes períodos: Educação (1927-1930); Escola Nova (out. de 1930 a jul. de 1931) e Educação (ago/set. de 1931-dez.de 1932) e Revista de Educação (mar. de 1933 –1943).

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História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 13, n. 27 p. 245-266, Jan/Abr 2009. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe

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Com base nas informações apresentadas, pode-se inferir que esse livreto se destinava a tipos de leitores específicos. O leitor previsto mais evidente é o professor primário, o que pode ser confirmado pela "marca" deixada no exemplar que analisei, um carimbo apresentado na parte superior da página 4, com as letras legíveis "Hygino Rolim – Professor preliminar – São José do Rio Pardo". Além dessa "marca", esse tipo de leitor previsto pode também ser confirmado pela publicação do texto, sob a forma de artigo, em duas revistas pedagógicas paulistas. Em decorrência, pode-se inferir que A leitura analytica se destinava também a normalistas, diretores, de escolas primárias e autores de cartilhas e livros de leitura pelo método analítico.

Como se pode constatar, ao escrever o livreto A leitura analytica, além de divulgar o método analítico e reafirmar as vantagens desse método em relação aos métodos sintéticos que até então se empregavam no ensino da leitura, Theodoro de Moraes visava a fundamentar o uso do método analítico, baseado especialmente nas idéias da pedagogia norte-americana. Também visava a sistematizar, pioneiramente, instruções aos professores para processuação do método analítico para o ensino da leitura. Em decorrência, A leitura analytica (1909) visava também a responder às necessidades do momento histórico de sua publicação, com ecos no momento posterior em que foi re-publicado na Revista Educação. Portanto, mais do que mera discussão sobre o melhor método a ser utilizado, a defesa do método analítico por parte de Theodoro de Moraes envolvia principalmente uma questão política, social e educacional.

4 Aspectos do momento histórico de publicação

Segundo Souza (1998), no final do século XIX, no Estado de São Paulo:

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História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 13, n. 27 p. 245-266, Jan/Abr 2009. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe

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[...] os republicanos impuseram um projeto de educação popular baseado em algumas concepções pedagógicas consideradas modernas e racionais e tiveram que se haver não só com outras concepções em voga mas também com as formas peculiares de apropriação de representações e de interpretações por parte dos profissionais da educação. (p.18).

Nesse projeto de educação almejado e implementado pelos republicanos paulistas "acreditava-se" no poder redentor da educação, que:

[...] pressupunha a confiança na instrução como elemento (con) formador dos indivíduos. Potência criadora do homem moral, a educação foi atrelada à cidadania e, dessa forma, foi instituída a sua imprescindibilidade para a formação do cidadão. Articulada com a valorização da ciência e com os rudimentos de uma cultura letrada, ela se apresentava como interpretação conciliadora capaz de explicar os motivos de atraso da sociedade brasileira e apontar a solução para o mesmo. (SOUZA, 1998, p.26-27).

O "segundo momento crucial" na história da alfabetização no Brasil, proposto por Mortatti (2000), se estende de 1890 a meados de 1920. Articuladamente, ao projeto de educação republicano, esse foi um momento tanto de intenso combate ao uso do método silábico e do método da soletração para o ensino da leitura, considerados como "tradicionais", quanto de disputa entre os "mais modernos" e "modernos" defensores do método analítico, "[...] pela hegemonia de tematizações, normatizações e concretizações relativamente ao ensino da leitura, da qual resulta a fundação de uma (nova) tradição" (MORTATTI, 2000, p. 78).

Segundo essa pesquisadora, a origem dessa disputa está relacionada com a reforma da instrução pública paulista, iniciada em 1890, pelo Dr. Antonio de Caetano de Campos que:

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[...] veio oficializar, institucionalizar e sistematizar um conjunto de aspirações educacionais amplamente divulgadas no final do Império brasileiro. Enfeixadas pela filosofia positivista, essas aspirações convergiam para a busca da cientificidade - e não mais o empirismo - na educação da criança e delineavam a hegemonia dos métodos intuitivos e analíticos para o ensino de todas as matérias escolares, especialmente a leitura. (MORTATTI, 2000, p.78).

Para Mortatti (2000), do ponto de vista didático, a base dessa reforma eram os novos métodos de ensino, em especial o "então novo e revolucionário método analítico para o ensino da leitura". Esse novo método se baseava na pedagogia norte-americana, que tinha por princípios didáticos uma nova concepção, de caráter biopsicofisiológico da criança.

A utilização mais sistemática do método analítico para o ensino da leitura teve início entre o final da década de 1890 e o início da década de 1900, quando começaram a ser publicadas as primeiras cartilhas escritas por brasileiros e afinadas com esse novo método para o ensino da leitura. No entanto, passou a ser indicado oficialmente durante a primeira gestão de Oscar Thompson, na Diretoria da Instrução Pública (1909-1910), tendo sido "[...] adotado em grupos escolares da capital e do interior do Estado, como objetivo de uniformizar esse ensino e consolidar o modelo considerado cientificamente verdadeiro". (MORTATTI, 2000, p.83).

Considerações finaisDe acordo com os aspectos da configuração textual de A leitura analytica (1909), de Theodoro de Moraes, aqui já apresentados, é possível considerar que nesse livreto está contida uma das primeiras tematizações sobre o método analítico para o ensino inicial da leitura no Estado de São Paulo.

Em cem anos de história, esse texto parece ocupar um lugar de pioneirismo na história do ensino inicial da leitura, visto que teve uma permanência além do seu momento histórico de

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publicação e que seu autor buscou fundamentar e sistematizar, cientificamente, o uso do método analítico para esse ensino para, posteriormente, tornar-se instruções de aplicação prática desse método.

Apesar de certas limitações decorrentes das dificuldades características do desenvolvimento da pesquisas históricas, principalmente no que se refere ao distanciamento para a compreensão das fontes documentais localizadas, recuperadas, reunidas e selecionadas, sem que meu olhar do momento presente se visse tentado a interpretá-las com parcialidade, considero que o que apresentei aqui permite compreender a importância tanto dos debates que se travaram em torno do método analítico para o ensino inicial da leitura, no âmbito do "2o momento crucial" da história da alfabetização no Brasil, quanto do lugar ocupado por Theodoro de Moraes nesses debates.Referencias

a) das fontes documentais citadas

BARRETO, Arnaldo de Oliveira. Cartilha analytica. 27.ed. Rio de Janeiro: Livraria

Francisco Alves, 1926.

KÖPKE, João. A leitura analytica (Conferência feita a 1 de março de 1896, no Instituto

Pedagógico Paulista). São Paulo: Typ. a vapor de Hennies Irmãos, 1896.

MORAES, Theodoro de. A leitura analytica. São Paulo: Typ do ‘Diario Official’, 1909.

______. ______. São Paulo: Typ. Siqueira, Nagel & Comp, 1913.

______. ______. Educação, São Paulo, v. 33, n. 46/47, jan/jun. 1945.

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MORAES, Theodoro de; Miguel, Pinto J; OLIVEIRA, Mariano Carneiro de. Como ensinar leitura e linguagem nos primeiros annos do curso preliminar. São Paulo: Siqueira, Nagel & Comp, 1911.

MORAES, Theodoro de. Leitura analytica. Revista de ensino, São Paulo, ano 8, n. 1, p. 17-20, mar.1909.

______. Meu livro: primeiras leituras de accôrdo com o methodo analytico. 9.ed. São Paulo: Typ. Augusto Siqueira & Comp., 1920.

______. Sansões: no ensino e para o ensino. São Paulo: Pocai, 1917.

b) da bibliografia citada

BARBOZA, Andressa Cristina Coutinho. Cartilha do operário: alfabetização de

adolescentes e adultos em São Paulo (1920-1930). 217f. 2006. Dissertação (Mestrado em

Educação) - Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, 2006.

BERNARDES, Vanessa Cuba. Um estudo sobre Cartilha Analytica, de Arnaldo de Oliveira Barreto (1869-1925). 2003, 67 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Licenciatura em Pedagogia) – Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista, Câmpus de Marília, 2003.

______. ______. Revista de Iniciação Científica da FFC, Universidade Estadual Paulista – UNESP. v. 8, n. 1, p. 1-17, 2008.

CATANI, Denice Bárbara. Educadores à meia luz: um estudo sobre a Revista de Ensino da Associação Beneficente do Professorado Público de São Paulo (1902-1918). Bragança Paulista: EDUSF, 2003.

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MELLO, Márcia Cristina de Oliveira. A alfabetização na imprensa periódica

educacional paulista (1927-1943). 2007. 239 f. Tese (Doutorado em Educação) –

Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista, Marília, 2007.

MESQUITA, José de. O capitão-mór André Gaudie Ley e a sua descendência: ensaio de reconstituição histórico-genealógico. Revista. do IHMT, Cuiabá, ano IV, tomo VIII, 1922.

MORTATTI, Maria do Rosário Mortatti. Os sentidos da alfabetização: (São Paulo/ 1876-1994). São Paulo: Editora UNESP, 2000.

______. Educação e letramento. São Paulo: Ed. UNESP, 2004.

PANIZZOLO, Cláudia. João Köpke e a escola republicana: criador de leituras, escritor da modernidade. 2006. Tese (Doutorado em Educação: História, Política, Sociedade). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, PUC/SP, 2006.

PEREIRA, Bárbara Cortella. Um estudo sobre Meu livro (1909), de Theodoro de Moraes. 72 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Licenciatura em Pedagogia) – Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista, Marília, 2006.

RIBEIRO, Neucinéia R. Um estudo sobre A leitura analytica (1896), de João Köpke. 2001, 66f. Trabalho de Conclusão de Curso (Licenciatura em Pedagogia) – Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista, Câmpus de Marília, 2001.

______. ______. Revista de Iniciação Científica da FFC, Universidade Estadual Paulista – UNESP. v. 5, n. 1/2/3, p. 12-29, 2005.

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SOUZA, Fátima Rosa. Templos de civilização: a implantação da escola primária graduada no estado de São Paulo (1890-1910). São Paulo: UNESP, 1998.

TORRES, Patrícia Lupion; ALCANTARA, Paulo R.; IRALA, Ersom Adriano Freitas. Grupos de consenso: uma proposta de aprendizagem colaborativa para o processo de ensino-aprendizagem. Revista dialogo educacional, v.4, n.13, p.129-145, set./dez. 2004.

Bárbara Cortella Pereira é Mestranda junto ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual Paulista (UNESP)/campus de Marília; membro do Grupo de Pesquisa "História do ensino de língua e literatura no Brasil" (GPHELLB) e do Projeto Integrado de Pesquisa "História do ensino de língua e literatura no Brasil" (PIPHELLB). Endereço: Rua Arco Verde, 343, Bairro Alto Cafezal, CEP: 17.504-084, Marília, São Paulo, (14) 8148-2674, e-mail: [email protected]

Recebido em 10/07/2008 Aceito em 15/11/2008

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Resenha

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HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DA EDUCAÇÃO NO BRASIL1

Vivian Batista da Silva

STEPHANOU, Maria; BASTOS, Maria Helena Câmara (orgs.). Histórias e memórias da educação no Brasil. 3 volumes. Rio de Janeiro: Vozes, 2005

Histórias e memórias da educação no Brasil, já no seu título, remete o leitor para uma temática ampla, incluindo a análise de experiências educativas vivenciadas na escola ou em outros espaços. Embora incorpore a análise de várias épocas e espaços, a partir de múltiplas metodologias e fontes, a coletânea chama a atenção também por se constituir num lugar de diálogo entre os textos reunidos. A obra está organizada em três volumes, incorporando ao todo mais de trinta artigos escritos por cinqüenta colaboradores de diversos estados brasileiros, como São Paulo, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, Pernambuco, Paraná, Santa Catarina, Mato Grosso e Minas Gerais, além de pesquisadores portugueses. Ao organizarem a obra dessa forma, Maria Stephanou e Maria Helena Câmara Bastos ressaltam aproximações entre os trabalhos de diferentes autores, que contribuem para entender como os modos de educar têm sido construídos em diferentes tempos e lugares. Um investimento dessa natureza abrange um período extenso, que vai desde o século XVI até o século XX. Os trabalhos incluídos na série examinam aspectos da educação brasileira em períodos muito diversificados. O volume I, por exemplo, atenta para práticas de ensino levadas a efeito antes mesmo de se consolidar no país um sistema escolar 1 Essa resenha foi publicada na Paedagogica Historica - International Journal of the History of Education, volume 44, issue 3, 2008, p.347-368.

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História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 13, n. 27 p. 269-275 Jan/Abr 2009. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe

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organizado em séries graduadas, contando com matérias de estudo estruturadas e métodos didáticos específicos, pensados pelo Estado para consolidar uma instituição capaz de atender a todas as crianças, independentemente da classe social à qual pertençam, ao seu sexo ou à sua crença religiosa. Esforços educativos anteriores à chamada escola de massas podem ser identificados, por exemplo, na catequização dos índios durante a colonização do território brasileiro, nas lições transmitidas aos filhos de famílias ricas ou aos futuros membros do clero. Nessa perspectiva, pode-se considerar a ação de companhias religiosas, como a dos jesuítas ou a dos franciscanos, aspectos que, ao serem estudados, contribuem de forma inegável para entender a configuração da escola pública no Brasil. De fato, essa instituição é tomada como um dos objetos nucleares dos artigos apresentados nos volumes II e III da série. Esses trabalhos analisam questões relacionadas à história de diferentes iniciativas de escolarização, desde aquela organizada pelo Estado para o povo, passando por aquelas promovidas pela Igreja ou por grupos de imigrantes; consideram ainda níveis e tipos diferenciados de escola, como, por exemplo, os chamados grupos escolares, os seminários, o ensino secundário ou médio, o industrial, aquele destinado especificamente à alfabetização de adultos ou à educação de crianças e mulheres. A obra está dividida considerando-se alguns períodos de tempo nos quais determinadas formas de ensino são mais evidentes. Assim, o primeiro volume assinala modos de educar anteriores à escolarização de massas, compreendendo os séculos XVI ao XVIII. O segundo volume dá a conhecer diversos aspectos relacionados ao projeto do Estado de estruturação da escola pública, abrangendo o século XIX. E o terceiro volume, reunindo textos relativos a experiências levadas a efeito no século XX, ressalta o desenvolvimento e consolidação de aspectos relativos a uma cultura escolar e profissional docente. Mas isso não significa que os artigos estejam organizados tendo-se em mente uma temporalidade linear e ascendente. Os escritos estão arranjados de forma a dar a discutir questões ligadas aos

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História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 12, n. 26 p. 269-275, Set/Dez 2008. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe

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atores, às práticas, às idéias e aos sistemas educativos, no intuito de apreender múltiplas configurações sobre a realidade pedagógica.

O objetivo das organizadoras foi o de ampliar e pluralizar as possíveis interpretações dadas a práticas e proposições educativas. Por isso, as histórias e memórias da educação, no plural, não supõem a escrita de uma única história, mas favorecem leituras do passado a partir de fontes e objetos variados. Ou seja, relatos memorialísticos, leis de ensino e documentos oficiais são estudados em diferentes trabalhos, estruturando, assim, uma coletânea que trata de experiências educacionais a partir de diferentes perspectivas. Leis e documentos oficiais relativos à educação são lidos em diversos trabalhos da coletânea para apreender as diversas proposições relativas à escola. E outros tipos de material também são estudados, tal como os livros e manuais correntemente usados durante as aulas, mas que são esquecidos na historiografia tradicional. Eles são tomados na coletânea como objetos e/ou fontes privilegiados de estudo. Na verdade, a história do livro e da leitura escolar é essencial para as práticas, disciplinas e currículos escolares. A produção desse material pode ser associada ao esforço de escolarização em diferentes tempos e lugares, sobretudo à expansão da escola pública elementar. Convém lembrar o estudo de outros materiais, que também incorporam a chamada cultura escolar. Entre eles, estão coleções de cadernos escolares de estudantes, distribuídos em diversas regiões do Brasil e que chamam a atenção por suas capas coloridas e por cultivarem, dessa forma, o amor à pátria, aos heróis nacionais, às riquezas naturais do território. O material deixa entrever, assim, os esforços de construção da identidade nacional empreendidos por meio da escolarização pública e obrigatória. Os álbuns de poesias e recordações, por sua vez, são materiais usados para celebrar amizades e relações estabelecidas pelos alunos durante sua vida escolar, tendo sido utilizados desde finais do século XIX até meados do século XX entre os brasileiros. A análise dessa modalidade de prática deixa entrever experiências produzidas e vividas no ambiente da escola. As revistas pedagógicas também

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História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 13, n. 27 p. 269-275 Jan/Abr 2009. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe

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aparecem recorrentemente em artigos incluídos na obra, assumindo uma configuração especial, pois são reconhecidas como espaços de produção e circulação de saberes pedagógicos entre os professores que, aliás, constituem, objeto de estudo privilegiado, identificando-se, por exemplo, a edificação de um modelo moderno da mulher professora ou a configuração de movimentos associativos docentes no Brasil, localizando-se as lutas empreendidas no século XX pela melhoria das condições de trabalho e pelo maior reconhecimento social da categoria. Assim, a profissão docente é analisada considerando-se os diferentes momentos de sua história e as várias instâncias que participam de sua regulamentação, ou seja, o Estado, os teóricos da educação e os próprios professores. Os estudantes também ganham visibilidade e alguns textos da coletânea permitem compreender como a criança é transformada em aluno nos textos de educadores e outros profissionais. Assim, não se analisa apenas o discurso pedagógico, como também produções de médicos, higienistas e estatísticos, quando eles elaboram explicações e propostas para ensinar as crianças, participando, portanto, da construção de práticas e teorias pedagógicas. E esse tipo de interpretação envolve reflexões acerca do trabalho realizado pelo historiador da educação. As escolhas dos métodos e fontes evidenciadas nos vários artigos decorrem da valorização do cotidiano e de personagens pouco examinadas no âmbito de uma história social e de interpretação marxista. A obra resulta do anseio de ampliar as possibilidades de pesquisa no campo da História da Educação, seus objetos e pesquisas, como bem ilustram os artigos reunidos. A leitura da coletânea deixa entrever, então, intercâmbios estabelecidos não só entre os colaboradores da obra, mas também entre os historiadores da educação e pesquisadores de outras áreas de saber, sobretudo a Sociologia, a Filosofia, os Estudos Literários, apenas para citar aqui alguns exemplos que até pouco tempo foram escassos ou, como diria Peter Burke, corresponderam a "diálogos de surdos". Ao ampliar os espaços de investigação, mobilizando instrumentos teóricos e metodológicos diferenciados, um dos intuitos nucleares

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da obra é buscar alternativas para responder a questões do presente, compreendendo as formas pelas quais experiências educativas são construídas e transmitidas no tempo. Mais do que uma descrição de realidades passadas, isso implica determinadas modalidades de interpretação dos problemas e materiais colaborando para a elaboração de novas propostas pedagógicas. Afinal, a articulação entre a compreensão do passado e a discussão sobre a realidade educativa deve ser constitutiva do trabalho dos historiadores da educação.

E se a aproximação é uma imagem útil para pensar as várias construções teóricas e metodológicas presentes nos textos que integram a obra, ela é igualmente sugestiva dos diálogos estabelecidos entre pesquisadores portugueses e brasileiros. Ao integrar no conteúdo dos três volumes investigações feitas, tanto em Portugal como no Brasil, e igualmente acerca dos dois países, Histórias e memórias da educação no Brasil promove a colaboração de uma geração de historiadores de âmbito nacional e internacional. E assinala as relações social e historicamente estabelecidas no campo educacional, ao longo do tempo, pois, ao tratar do caso brasileiro, enfatiza também experiências e influências dos portugueses no Brasil e vice-versa, já que ambos os países compartilham um língua e uma parte significativa de suas histórias. Esse tipo de colaboração integra os vários volumes da série, com estudos que compreendem desde o período colonial. A leitura dos trabalhos dá a conhecer as diversas configurações do discurso educacional português, ao longo dos séculos XVI e XVIII, por exemplo, quando é notável a permanência de relações características do Antigo Regime e, simultaneamente, as contribuições do movimento científico e cultural na direção da modernidade. O movimento iluminista português também é objeto do exame das representações acerca da infância e da formação humana durante o século XIX e esse tipo de trabalho esclarece modos pelos quais foram constituídos intercâmbios entre os dois países, questionando, por exemplo, afirmações comuns na historiografia brasileira, segundo as quais os jovens que saíram do

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História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 13, n. 27 p. 269-275 Jan/Abr 2009. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe

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Brasil-Colônia para estudarem na Universidade de Coimbra teriam formado um pensamento chamado de "atrasado", por não terem recebido referências do conhecimento "moderno". Assim, a formação da intelectualidade portuguesa e brasileira no século XVIII, as iniciativas dos Estados português e brasileiro, ao longo dos séculos XIX e XX, no que tange à estruturação da escola pública, permitem apreender as proximidades e os distanciamentos das práticas educativas nos dois países. A coletânea traz, nesse sentido, elementos importantes para uma área de estudos que foi objeto de críticas até há pouco tempo, mas que atualmente tem ocupado um novo lugar na pesquisa educacional. Trata-se da história comparada, a qual tem articulado esforços de compreender diferentes realidades, não apenas para descrevê-las nem muito menos para encontrar experiências de educação supostamente ideais. As análises sobre Portugal e Brasil articulam um esforço para identificar e interpretar os vínculos e os distanciamentos culturais e sociais que favorecem o desenvolvimento das formas de educar em ambos os países.

Nessa perspectiva, a obra retrata importantes esforços levados a efeito no campo da História da Educação numa dupla perspectiva: primeiramente, enquanto uma disciplina científica que tem se consolidado nos últimos anos, graças a fatores como os intercâmbios estabelecidos entre pesquisadores de diferentes lugares e áreas de conhecimento. E além disso, os volumes contribuem de forma inegável no âmbito da formação de professores e da elaboração de proposições pedagógicas, pois ao construírem as Histórias e memórias da educação no Brasil, os vários artigos oferecem elementos essenciais para refletir a realidade escolar nos dias de hoje. A série constitui, portanto, um espaço de encontros férteis entre os historiadores e os educadores, estimulando discussões úteis à organização da escola e da pedagogia.

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História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 12, n. 26 p. 269-275, Set/Dez 2008. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe

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Vivian Batista da Silva é professora do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Educação da Universidade São Francisco/Bragança Paulista/SP. E-mail: [email protected].

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História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 13, n. 27 p. 279-292, Jan/Abr 2009. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe

CIVISMO E EDUCAÇÃO NA PRIMEIRA REPÚBLICA - JOÃO SIMÕES LO-PES NETO

Elomar Tambara Eduardo Arriada

No final do século XIX, o pessimismo em relação à população brasileira estava em voga na intelectualidade brasileira. Diversos autores como Nina Rodrigues, Silvio Romero, mas principalmente Oliveira Viana criticavam o nosso atraso, nossa inferioridade étnica, salientando a superioridade da raça branca, que construíra a Europa. Porém, no início do século XX, já consolidada a República, começam a surgir correntes nacionalistas, que fazem a apologia das "riquezas que dormem em nosso solo", presente em obras como "Por que me ufano de meu país (1902) de Afonso Celso; Minha Terra e Minha Gente (1915) de Afrânio Peixoto; Educação Cívica (1906) de Mario Bulcão; Através do Brasil (1910) de Olavo Bilac e Manuel Bonfim; A Pátria Brasileira (1909) de Olavo Bilac e Coelho Neto; Pátria ! Livro de mocidade (1900) de Alfredo Varela.

O nacionalismo entra definitivamente no cotidiano do país. Em discurso feito em 1915, Olavo Bilac prega a obrigatoriedade do serviço militar encarado não apenas como uma necessidade militar, mas como uma escola de civismo capaz de resolver os problemas nacionais. Isso vai culminar com a criação da Liga de Defesa Nacional em 1916.

Um amplo programa ditava o papel da Liga: "a moralização da política", "o voto secreto e obrigatório", "o combate ao analfabetismo", "a educação cívica", "a melhoria da saúde". (BILAC, 1917)

O início do século XX foi marcado no Brasil por intensa campanha de divulgação dos valores decorrentes da universalização do acesso ao sistema escolar. De certa forma a República procurava plasmar uma identificação com a educação. Este

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História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 13, n. 27 p. 279-292, Jan/Abr 2009. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe

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processo, na verdade, estava associado a alguns valores específicos, dentre os quais se destacavam o civismo e o moralismo patriótico.

Assim, vamos encontrar nos primeiros decênios do século passado um efetivo trabalho desenvolvido por uma plêiade de intelectuais que peregrinaram pelo país na defesa da constituição de um processo de conformação ideológica consentânea com as premissas republicanas em consolidação.

Exemplos destes paladinos foram Olavo Bilac, Coelho Neto, Medeiros de Albuquerque. Este último considerava-se o introdutor da popularização do uso das conferências no Rio de Janeiro. Popularização, aliás, questionada por João do Rio:

Essas conferências cívicas que ocorreram nos anos 10 no Brasil todo eram dadas por literatos e intelectuais, normalmente dirigidas a um público desinteressado e elitista. A maior parte dessas conferências eram ufanistas, elogiando as grandezas da pátria sem nenhum senso crítico.

A cidade só tem uma preocupação, ouvir e fazer conferências! (...) O delírio, a nevrose, a ânsia da cidade, conferências! Sempre conferências! Só conferências! Nós estamos no país das Conferências (João do Rio, 1978:131)

Em verdade, a questão da "educação cívica" era uma ação "missionária" que grassava em todo o continente. Um exemplo disso foi o texto "Instruccion cívica Argentina" escrito por Juan G. Beltran um texto didático para uso nos colégios e na Escola Normal na década de 1910.

No Rio Grande do Sul destacou-se, nesta perspectiva, o trabalho de João Simões Lopes Neto. Apesar de sua obra não ter recebido uma exegese mais profunda, sob esta ótica, é inquestionável que este intelectual teve uma inserção muito intensa na área da educação, e mais do que isto, teve uma efetiva intencionalidade em formatar muitos de seus textos no sentido de

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moldar um comportamento mais comprometido com os valores cívico-patrióticos em vigor à época.

Entretanto é questionável a assertiva de que Simões Lopes Neto seja um escritor eminentemente regionalista.

João Simões Lopes Neto foi, sem dúvida alguma, um escritor provinciano. Tendo vivido quase toda a sua existência em Pelotas sem nenhum contato com a vida literária do resto do país e nem sequer do Estado (apesar de fazer parte da Academia Riograndense de Letras) sua atividade literária se caracteriza, em boa parte, por uma ausência de qualquer atividade mais ampla (Filipouski et alli, 1973:22)

É nossa tese de que ao contrário Simões Lopes Neto esteve efetivamente engajado num projeto de cunho continental que primava pela divulgação e consolidação de um ideal cívico-patriótico que plasmou a consolidação do republicanismo nesta região. Este processo de "apostolização" do civismo pode ser dimensionado em diversas iniciativas de João Simões Lopes Neto. A) O projeto terra gaúcha (livro didático); B) As conferências cívicas; C) A semana centenária; D) os Cartões postais

Quando o jornalista Carlos Reverbel "descobriu" adormecido Os Casos do Romualdo no rodapé do jornal Correio Mercantil de Pelotas publicando-os em livro, em 1952, pela editora Globo, Mozart Victor Russomano, acertadamente, afirmou que João Simões Lopes Neto, "literariamente, era um manancial apenas parcialmente conhecido".

Desde então, diversos textos e originais do autor têm sido exumados. Particularmente, em relação a textos didáticos ou para-didáticos, alguns trabalhos têm redimensionado a percepção de muitos investigadores em relação à obra simoniana e sua vinculação com a área da educação.

Em 1955 apareceu Terra Gaúcha com apresentação de Manoelito D’Ornellas e introdução e notas de Walter Spalding. Embora, trata-se de um texto didático (uma história elementar do

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Rio Grande do Sul). Não devemos confundir essa obra publicada pela Editora Sulina, com o outro projeto acalentado por João Simões Lopes Neto e por ele divulgado diversas vezes em suas conferências:

Sonho fazer um livro simples, saudável, cantante de alegria e carinho, que os homens, rindo da sua singeleza o estimassem; que fosse amado pelas crianças, que nele, com a sua ingênua avidez, fossem bebendo as gotas que se transformassem mais tarde em torrente alterosa de civismo(...) que pudesse condensar o coração meigo, valente e virtuoso da mãe brasileira; a serenidade dos nossos heróis, a independência e a firmeza dos nossos maiores, a probidade dos nossos estadistas(...) que ressalta-se a terra, o povo, a pátria(...) Sonho fazer um livro assim que concretizasse a tradição, a história, ensina-mentos cívicos e as aspirações pátrias.

Neste projeto, o escritor buscou fazer um livro simples, de linguagem clara, agradável aos pequenos leitores, um livro para o ensino primário bem escrito, patriótico e que valorizasse a realidade sul-rio-grandense. A elaboração desse texto didático representou, sob certo sentido, o projeto mais dentro da ortodoxia efetuado por Simões Lopes Neto nesta área. Constitui-se num texto que claramente adotava uma prática estilo-literária muito em voga à época e que se inspirava na obra de Edmundo D´amicis "Cuore". Apesar de extremamente popular, também no Brasil, é preciso levar em consideração que provavelmente Simões Lopes Neto tomou contato mais intenso com esta obra por ocasião da publicação de sua publicação pela Livraria Universal de Pelotas em 1907.

Assim como Simões muitos outros autores tiveram iniciativas semelhantes, como o texto de F.Farias com a obra "Coração Brasileiro (Palestras Morais e Cívicas)".

Sem dúvidas, a tentativa de ver sua obra adotada nas aulas públicas do Rio Grande do Sul consistia uma das grandes metas de vida de Simões Lopes, em conseqüência, a recusa do

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Conselho de Instrução pública que vetou sua adoção nas escolas públicas do Rio Grande do Sul transformou-se numa mágoa que Simões nunca assimilou inteiramente.

Essa obra a ser publicada teria um perfil eminentemente didático e João Simões Lopes Neto queria que a mesma fosse adotada nos colégios e destinada às primeiras leituras das crianças no ensino primário, tinha como inspiração as obras "Educação Nacional" de José Veríssimo e "Porque me ufano do meu país" de Afon-so Celso.

Na tentativa de editar essa obra o próprio escritor deixou um "rastro de pistas" denotando uma efetiva preocupação como um projeto de popularização da Educação. Em 1909 ao publicar a lenda "A M’boi-tatá" no Correio Mercantil, referiu-se como sendo do "livro Terra Gaúcha". Em 1911, no número sete da Revista da Academia de Letras do Rio Grande do Sul, ao editar o conto "A Recolhida" registrava ter sido extraída "do livro escolar Terra Gaúcha".

Em seu prefácio à obra homônima, Manoelito D’ornellas, esclarecia dúv-das: "Terra Gaúcha" constituía, para ele, assim como um complemento da obra também inédita que dedicara à juventude rio-grandense, com o título de "Eu, no Colégio" e que fora, na época, recusada pela Direção do Ensino Público do Estado, sob a alegação de uma desconformidade ortográfica. No trabalho de feição elementar, como foi o do pequeno manual de iniciação na história, nos hábitos, costumes e tradições gauchescas, João Simões Lopes Neto deixou muito daquela simplicidade humana que ele soube comunicar às páginas vivas dos "Contos Gauchescos". E é possível que o autor de "Lendas do Sul" houvesse pensado no imenso benefício que representaria à formação moral e espiritual das novas gerações do Rio Grande, esse pequeno livro de leitura que lhes falaria dos fatos históricos nacionais na linguagem acessível e própria da terra.

Aparentemente, neste quadrante de sua vida Simões Lopes Neto, estava com a mente eivada de projetos, e freqüentemente reutilizava textos, reestilizava outros já

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desenvolvidos, como recortava composições constituindo novos trabalhos.

Artinha da Leitura (João Simões Lopes Neto) Dentro da consolidação do projeto republicano no Rio

Grande do Sul, todas as esferas de poder eram controladas pelos detentores do poder. A "ditadura" castilhista controlava ferrenhamente todas as instâncias, não sendo diferente em relação à instrução pública. A aprovação de métodos, livros didáticos, cartilhas, etc., a serem adotados deveriam passar pelo crivo das autoridades. Nos diversos relatórios governamentais, na seção intitulada "Livros Escolares", podemos verificar a atuação desse órgão. Seguindo os trâmites burocráticos, João Simões Lopes Neto, encaminha a obra "Artinha de Leitura dedicada as escolas urbanas e rurais", com um subtítulo onde registrava a continuação da obra referida: "A seguir: Eu na escola; terra gaúcha; hinos e storias do Brasil, Pelotas, 1907).

Declarava que: "ler e escrever devem andar de par; e pois, logo de começo faça por que o aprendiz vá ajeitando-se, educando a mão, os dedos, a segurar o lápis". Opinava ainda que: "é corrente em pedagogia que não é pelo nome da letra mas pelo som dela que o iniciando há de aprender a ler; forma, som e nome da letra são os elementos que a um tempo embaraçam o aprender. Tal processo [...] parece que obedecem primordialmente o método João de Deus, a ele orientou-se o de Hilário Ribeiro, e a seguir, outros".

De acordo com as Atas das Sessões do Conselho da Instrução Pública, temos a seguinte notícia: "5º Sessão. Aos vinte e um dias do mês de julho de 1908. [...] Passou-se à ordem dos trabalhos. Foram apresentados ao Conselho para julgamento os livros: Histórias de Nossa Terra de Julia Lopes de Almeida e a Cartilha de Leitura: Série Brasileira de J. Simões Lopes Neto. Em tempo declaro que este último trabalho foi apresentado em manuscrito. [...]. Na 6º Sessão consta: "Sobre a Cartilha Primária "Série Brasileira", em manuscrito, de J. Simões Lopes Neto, entende o Conselho que, não podendo o Estado impor a ortografia seguida pelo autor, deve ser reparado o trabalho por

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estar em desacordo com o regulamento e não obedecer ao critério do ensino. Protásio Alves, Álvaro Batista, Manuel Pacheco Prates. 25.07.1908".

João Simões Lopes Neto era um espírito voltado para os temas da educação: vibrátil às manifestações do civismo e suscetível de arroubos sem ufanismos, na exaltação da Pátria. Cuidou de imprimir e distribuir folhetos e postais com legendas e símbolos e até as insígnias das armas brasileiras".

No jornal "Correio Mercantil", por meio de uma circular solicitou o envio de gravuras, vistas de cidades, fotografias, estampas ou reproduções de quadros que retratassem episódios históricos, monumentos e placas para ilustrar o seu livro escolar "Terra Gaúcha". Nesse mesmo jornal em 24.11.1904, noticiava-se por palavras do escritor que esse livro era destinado "aos pequenos leitores, com a finalidade de incutir o conhecimento e a notícia dos homens e fatos do Brasil, até então arredados do diário convívio da juventude escolar".

Sua preocupação em editar uma obra de perfil didático e vê-la adotada na escola primária, com o intuito de incutir nas crianças o conhecimento e fatos do Brasil, ia ao encontro da proposta de José Veríssimo:

O ensino da história pátria, além de escacissimamente feito, é pessimamente dado. Os compêndios, insisto, são em geral despidos de qualquer merecimento didático. São pesados, indigestos e mal escritos.

Para o ensino primário, os poucos que há, são inspirados na velha pedagogia jesuíta das perguntas e respostas, e limitam-se a uma enfadonha e estúpida nomenclatura de governadores, de reis, de capitães-mor ou de fatos áridos de nenhum modo úteis ao ensino primário da história pátria.

É preciso que o livro de leitura entre nós se reforme completamente e que tudo fale do Brasil e de nossas coisas. Os primeiros livros devem conter contos e cantos populares e pequenas histórias em que se reflitam a nossa vida e os nossos costumes. Só assim interessaram à

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criança. Entremeados com esses assuntos, viram pequenas cenas da história pátria mesmo legendárias.

Conviria muitíssimo que o livro de leitura, como compêndio, fossem ilustrados, como seria de grande alcance, ao menos para as classes infantis, possuir a escola uma coleção de gravuras históricas, que, comentadas em classes, seriam a melhor e a mais gostosamente aprendida das lições.

Servindo-se do modelo proposto por José Veríssimo, João Simões Lopes Neto, declara que:

O ensino de nossa história pátria é mal feito e mal dado. No Brasil esse estudo não é somente descurado, mas não existe, nunca existiu, e a comsequencia é a profunda ignorância em que vivemos da nossa historia, soletrando aliás a alheia.

Os poucos compêndios que há, são inspirados na pedagogia jesuítica- das perguntas e respostas e limitando-se a uma enfadonha nomenclatura de governadores, de reis, de capitães-mores, ou de fastos áridos, seccamente expostos.

Pelo "Diário Popular" de 11 de março de 1908 fica-se sabendo da remessa da obra ao "Conselho de Instrução Pública do Estado", tendo sido a mesma recusada. Triste e desiludido o autor acaba entregando a sua sobrinha Ivete Simões Lopes Massot, então com dez anos, a cópia do exemplar rejeitado pelas autoridades do ensino:

João Simões parecia advogar, vibrante de entusiasmo, a propaganda do nosso folclore e dos costumes do Rio Grande. Era tão grande o seu amor pelo chão, que fundou em Pelotas o primeiro Centro de Tradições Gaúchas e esse livrinho gauchesco teria o poder de prender a atenção da garotada, como o teve de fascinar as suas sobrinhas, que brigavam pelo único exemplar. E eram dois aliás, mas o outro havia tomado o rumo do

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Ministério da Educação, onde teria o destino do primeiro: "Rejeitado".

Um dia meu dindo entregou-me uma tesoura, dizendo: - Minha filha, faze destas figurinhas, o que quiseres...

Recortei as belíssimas, "prendas" e gauchinhos feitos por ele, feliz da vida, porque nos meus primeiros anos sentia um prazer imenso em picar papel. Quando ele viu bem mutilada a sua obra, disse à esposa:

- Graças a Deus, Velha, este livro teve o poder de dar alegria a uma criança...

Simões Lopes Neto em sua empreitada no sentido de popularizar a educação tinha sempre em mente a crença na importância do texto de leitura. E particularmente a crença de que o mesmo deveria ter toda uma compleição que privilegiasse a educação cívica, os faustos nacionais, a brasilidade, as características regionais, etc. Estas eram temáticas reiteradamente presentes nas prédicas de Simões nas "conferências cívicas":

Neste levantamento geral que é preciso promover a favor da educação cívica, uma das mais neccessarias reformas é a do livro de leitura primário. Cumpre que elle seja brazileiro pelo assumpto, pelo espírito, pelos auctores transladados, pelo sentimento nacional que o anime e faça estimar. (1906:19)

Temos como hipótese que a famosa "Coleção Brasiliana" é resultado decorrente da rejeição da obra "Terra Gaúcha" pelo "Conselho de Instrução Pública do Estado". Ao não ter sido aprovada, João Simões Lopes Neto resolve utilizar o material iconográfico que iria ilustrar a obra, na elaboração da "Brasiliana". Série de cartões-postais alusivos a história pátria, a personalidades, datas e episódios, "faustos da História Nacional", como vem inscrito nos cartões.

Acabaram sendo produzidas duas séries de cartões-postais. A primeira série (25 cartões) era colorida e foram confeccionados na gráfica Chapon. Eram de altíssima qualidade.

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No desenho dos belíssimos postais, no dizer de sua sobrinha, João Simões mais uma vez revelou o artista que era. Na "Coleção Brasiliana" resplandecem os seus profundos conhecimentos de arte e história. Para imprimi-los, ele e João Chapon, o proprietário da tipografia, muitos cartões inutilizaram, para fazerem de novo, até sair cada um uma obra prima.

A 2º série, também com 25 cartões, não alcança a qualidade gráfica da 1º série, sendo os cartões monocromáticos. Datam de 1908, e a maior parte dos mesmos retrata a história do império, particularmente a Guerra do Paraguai.

Apesar de apostar no seu sucesso, basta saber que João Simões pretendia editar diversas séries, essa iniciativa foi de novo um grande fracasso. No ano de 1914, essas coleções ainda eram anunciadas nos catálogos da Livraria Americana, sinal de evidente encalhe comercial. Consta a seguinte nota nesse catálogo:

Coleção Brasiliana. Cartões postais, finamente ilustrados – organizados por J. Simões Lopes Neto. Os motivos da "Coleção Brasiliana" é todo ele nacional, e, portanto, patriótico; as ilustrações dão cópia fiel dos emblemas da soberania nacional, de todos os monumentos públicos, estaduais, etc., e reprodução de quadros célebres de combates e atos solenes, retratos de todos os governantes e de brasileiros notáveis, desde a época colonial até os nossos dias, túmulos, grandes invenções, obras de arte, objetos, lugares, documentos, cenas históricas, tudo explicado em notícia concisa e clara. Nenhuma coleção neste gênero existe no país, nos próprios livros de instrução pública não se encontram as preciosas ilustrações da Coleção Brasiliana, algumas das quais são absolutamente inéditas e todas documentadas.

Quem manusear esta coleção verá e aprenderá coisas que desconhecia, e outras de que formava idéia errônea e terá uma verdadeira lição de educação cívica. É o melhor prêmio, o melhor presente, o brinde mais significativo que se pode oferecer. Um colecionador de bom gosto só permutará com os seus correspondentes oferecendo-lhes

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destes cartões, destinados a terem lugar de honra nos álbuns. Uma série ou 25 cartões, 4$000.

Sob o prisma comercial e mesmo de abrangência da dispersão da distribuição o sucesso do empreendimento foi mínimo. Isto pode ser verificado pelo anúncio de venda da coleção muitos anos depois e pela inexistência da utilização dos cartões como "tarjeta postal" como originalmente se pretendia. Hoje em dia, conta-se nos dedos as pessoas ou instituições que possuem as duas séries destes cartões postais.

Uma terceira estratégia de divulgação de suas concepções educacionais foram as conferências cívicas. Por um longo período, Simões Lopes peregrinou em várias cidades da região sul do Rio Grande do Sul em seu apostolado cívico. Constituiu-se neste período um verdadeiro paladino da causa do civismo no estado. Em verdade, todas estas iniciativas tinham um explícito caracter de popularizar a educação no Estado.

As conferências tinham uma formatação nitidamente voltada para exaltar as características do estado e em particular, plasmar a necessidade de formatar as mentalidades no sentido de solidificar a assunção da superioridade nativa em relação aos padrões de comportamentos estrangeiros.

Finalmente, uma outra atividade desenvolvida por Simões Lopes Neto e que, sob certo prisma, singulariza sua atuação nesta apostolização cívica, é a Semana Centenária.

Ele se aproveita da oportunidade do centenário do município de Pelotas para propugnar uma série de atividades comemorativas desenvolvidas diretamente pelos estudantes.

No jornal "A Opinião Pública" de 01 de julho de 1913, João Simões Lopes Neto conclamava os estudantes de Pelotas a criarem a "Semana Centenária" ou simplesmente a "Centenária", com o propósito de que todos os anos, nos dias 07 a 14 de julho, fosse comemorado a criação da Freguesia de São Francisco de Paula (Pelotas).

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Estudantes! A vós todos – senhoritas e rapazes, meninas e meninas – todos os que estudam, não importa si apenas o abc, si a seleta e os verbos, si os bojudos compêndios inflados de gravidade, venho propor uma conspiração...

Vamos ao assunto.

Lembram-se de que o ano passado comemoramos o Centenário de Pelotas, de 7 a 14 de julho? Lembram-se?

E si fizessem, voces, estudantes, agora uma parada geral, comemorativa?

Que dizem?

Vai nisto a fundação de uma tradição a deixar aos que vierem depois. Seria, vamos chama-la assim Semana Centenária, e até por abreviar, simplesmente a centenária.

Um aspecto diferencial destas manifestações foi o caráter descontraído e de certa forma popular das mesmas, de modo especial, as passeatas estudantis.

Ao mesmo tempo em que o autor da idéia propunha que se realizasse um amplo movimento estudantil, que contasse com a participação de alunos de ambos os sexos e de todas as idades (acadêmicos, de ensino secundário e de ensino primário), marcado pela irreverência e alegria, semelhante aos que ocorriam em outros países europeus e importantes cidades brasileiras, não passa desapercebida a idéia de que se voltasse ao passado, buscando lições ao presente, cuja decadência, de uma forma ou de outra, já se fazia sentir (AMARAL, 2003:213)

Em suma, o trabalho literário de João Simões Lopes Neto, sua atuação como jornalista e sua atividade como professor revela uma preocupação claramente direcionada à divulgação de ideais nacionalistas e patrióticos consentâneos com os procedimentos de outros divulgadores em nível nacional como Olavo Bilac e Coelho Neto. Neste trabalho está subsumido uma estratégia cujo esteio é a popularização da educação. Não

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identificar estes procedimentos como educação popular seria apenas uma questão conceitual?

Referências

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CHIAPPINI, Ligia. No entretanto dos Tempos: Literatura e história em João Simões Lopes Neto. São Paulo: Martins Fontes, 1988.

CORREIO Mercantil. Pelotas. 04.10.1904.

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DINIZ, Carlos Francisco Sica. João Simões Lopes Neto: uma biografia. Porto Alegre: AGE/UCPel, 2003.

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MASSOT, Ivete Simões Lopes. Simões Lopes Neto na intimidade. Porto Alegre: Bels, 1974, p. 133.

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ORNELLAS, Manoelito de. Prefácio. In: LOPES NETO, João Simões. Terra Gaúcha. Porto Alegre: Sulina, 1955.

REVERBEL, Carlos. Um capitão da Guarda Nacional: vida e obra de J. Simões Lopes Neto. Porto Alegre: Martins/UCS, 1981.

ROMERO, Sylvio e GUIMARÃES, Arthur. Estudos Sociais: O Brasil na primeira década do século XX. Lisboa: Typographia da A Editora, 1911.

RUSSOMANO, M. V. Como se fosse um prefácio. In: Novos Textos Simonianos. Pe-lotas: Confraria Cultural e Científica Prometheu/Livraria Lobo da Costa, 1991.

SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. São Paulo. Companhia das Letras, 2003.

VERÍSSIMO, José. A Educação Nacional. 2ª edição. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1908, p. 130.

Elomar Tambara é professor titular de História da Educação da Faculdade de Educação da UFPel. Pesquisador CEIHE. Publicou vários livros, dentre eles: "Positivismo e educação" e "Introdução à História da Educação do Rio Grande do Sul". E-mail: [email protected]

Eduardo Arriada é Professor Doutor da Faculdade de Educação de Pelotas (UFPEL). E-mail: [email protected]

Recebido em 10/05/2008 Aceito em 15/11/2008

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EDUCAÇÃO CIVICA CONFERENCIA

Realisada pelo Sr. João Simões Lopes Netto, notario, à 17 de julho Anais da Biblioteca Pública Pelotense, Pelotas, 1904

ILLUSTRE DIRECTORIA DA BIBLIOTHECA EXMAS. SRAS. MEUS SRS. Supplica! eis a minha primeira palavra. Premado pelo desempenho do compromisso cujo alcance

não bem avaliei, sem preparo mental á altura d’elle, sem trabalhos de algum mérito a me fortalecer, sem um titulo a me amparar, sem figura, sem vóz, sem eloquencia, que mais fazer senão – supplicar – a vossa bôa vontade? – Seja pois a vossa benevolencia o manto que me cubra e me proteja, neste lance de arrojo meu, de menos pensada conta da responsabilidade que assumi; seja a vossa benevolencia a tenda hospitaleira a que me abrigue, na digressão escabrosa, que a outros, mais competentes, caberia encetar e vencer. – Mas, fosse o exagerado temor a preoccupação constante dos homens, e a modesta bôa vontade e o singelo desejo de ser util, mesmo errando, se annullariam: a offerenda sincera, vale sempre pela intenção.

- O raio que se desprende da nuvem negra da procella, quando cahe procura as eminencias; quando elle fulge, estala, zigue-zaguea e desce, fére e despedaça de preferencia o jequitibá potente e altaneiro, e poupa e não fulmina o arbusto humilde, que medra e viceja na sombra do gigante.

Cada geração recebe augmentada a cuspide portentosa do admiravel edificio social; abriga-se consolada e esperançosa sob a cupola amplissima do maravilhoso edificio e rememora e agradece os guias e fauctores da solidariedade humana, bem-dizendo os pastores solicitos que vigiaram em que se não tresmalhasse para o mal e para o erro o innumeravel rebanho humano, docil como as mansas ovelhinhas, sanhudo e truculento como as feras mais

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bravias. – Mas passa, e esquece e nem se preoccupa com o artificie ignorado, desconhecido, que ajudou a argamassar o barro, que carreou a pedra, que deu um impulso do seu hombro ao peso dos madeiros.

Nem por isso, o operario infimo, atomo na vastidão, marca tenuissima na grande estrada da ascensão humana, nem por isso elle tem menos a consciencia das gottas de suor com que se abendiçoou na sacra pia do trabalho, da ancia commum, do esforço geral, para a consecução da grandiosa cathedral do futuro, em cujas naves, abertas aos quatro ventos da terra, reboarão ainda um dia os hymnos triumphaes da victoria final e consoladora do amor, da concordia e da fraternidade dos povos!

- Aos toques de avançar – do clarim incitador do progresso, tem acudido pressurosos a esta tribuna, o talento, o preparo scientifico, a eloquencia, a previsão, o exemplo salutar de homens dos de maior merecimento no nosso meio social; deste quartel-general do estudo, da perseverança e do altruismo, têm partido para as varias linhas de combate á rotina, ao erro, ao obscurantismo, não os missionarios da benemerita Cruz Vermelha, que acode ao gemido e á morte, mas os pregadores da benemerita Cruz Branca que illumina a intelligencia e modifica as almas.

Destes, um já tombou nas sarças do caminho... E seja-me permittido – que ainda resoam nos tectos

desta sala os échos da sua palavra, seja-me permittido, unindo a minha vóz á vossa recordação, reverenciar uma sombra amiga, que talvez nos comtemple, da orla do mysterioso além: seja a nota mais carinhosa e a mais doce da minha desataviada conferencia, a do preito da nossa saudade á memoria do cidadão digno, modesto e trabalhador, que teve a suprema ventura de repousar na morte, no seio da mesma terra amiga que lhe foi berço – o Dr. Alberto Vieira Braga.

O labaro rutilante da paz, do estudo e do saber, tem passado de mão em mão, mantido á mesma altura arfando sereno e magestoso á mesma atmosphera sympathica de louvor, de

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acolhimento e de carinho; mãos fortes se estendem ainda, vozes autorisadas o pedem; peitos robustos o sustentarão...

Mas, por um supremo esforço de audacia, eis surge, no roldão dos cavalleiros da vanguarda que já têm de outros prelios, ganhas as suas esporas de ouro, eis surge a figura obscura do mais obscuro dos infantes, esquecido o arrojo do lance, deslembrado o perigo do posto, fitando como fascinado a luz que o attrahe, o fim que o seduz, immerso no sonho magico da grandeza patria – a que aspira.

Tal é, Srs. o meu parallelo: humilde arbusto – entre arvores frondosas; operario mesquinho entre architectos, sentinella perdida nas linhas distantes do acampamento.

Benevolencia – pois, pela intenção.

Como trave tosca pousada sobre duas columnas

poderosas, assim eu me apoio nos dois livros de ensinamento e de conforto: a "Educação Nacional", de José Verissimo, e "Porque me ufano do meu paiz", de Affonso Celso Junior.

São dois livros que todo o brazileiro devia conhecer e estimar; os velhos, rememorariam nelles os factos do passado, em que foram talvez, participantes; e da calma da sua velhice e da experiencia da sua jornada poderiam confirmar aos moços, o que elles contam de advertencia e de esperança; os moços deviam lel-os, porque pensariam com madureza no porque vago e indeciso de tantas cousas que os cercam e embaraçam, e elevariam o pensamento e o coração na segurança propicia que se imanta para um futuro de rutila ascenção.

Dois livros que são dois brados na vastidão do anhelo: um, o do gageiro vigilante que aponta os arrecifes á flor d’agua, e que é um – alerta! – ao leme do manobra; outro, o do piloto impaciente que ve que a náu esta apparelhada, e manda o – ferro acima! – e aprôa para além o casco branço, velas ao vento, as flammulas esguias beijando a esteira prateada, a prôa gracil cortando as aguas marulhosas!

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São dois livros de educação civica: um, severo no estudo das causas; o outro, sadio na promessa dos effeitos.

São dois bellos livros de educação civica – e bem de nós, si na escola e na vida pratica, os tivessemos sempre sob os olhos, si corrente fosse a leitura e a meditação delles, tão simples, tão leaes, tão esperançosos.

Palavras e trechos, ideas e analyse, conselho e desejos, de ambos colho e reproduzo. Do que ambos dizem e ensinam, é quasi, aqui, uma leitura ampla, em voz alta.

Senhores: Quando dizemos – uma arvore – damos a idea certa do

que queremos expressar para nos fazer comprehender: não precisamos individuar as raizes, o tronco, os ramos, as folhas. A arvore é como uma thése; e, si nesta, eu tivesse de personalisar, os vicios e defeitos patrios, tomal-os-hia gostosamente a mim, como pleno delles, que não sou, pela origem e pela educação. E não teria de que corar: realmente, qual o nosso vicio que degrade, qual o nosso defeito repulsivo? Tranquillamente, podemos affirmar – nenhum.

Nacionaes e estrangeiros que tém se occupado de nós, estam todos de accordo em reconhecer como a nota dominante do nosso caracter, a indifferença, o desanimo, a passividade.

Paciencia! Amanhã – sam palavras classicamente nossas. Temos patente inclinação ou para tudo addiar ou tudo fazer de afogadilho.

Dizer-nos a nós mesmos os nossos vicios e defeitos é já um passo para corrigil-os. O exame de consciencia – independente da confissão – é, para os individuos como para os povos, um salutar recurso moral.

E feito elle, cumpre procurar a pratica das virtudes contrarias aos peccados reconhecidos.

Cumpre-nos ter a coragem de affrontar com a nossa situação e dizer lealmente e completamente a verdade.

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Máo patriota, desleal cidadão fôra aquelle, que não sei sob que falso pêjo, entendesse menos amar a patria, dissimulando-lhe os erros, cuja emenda está exigindo sejam divulgados e conhecidos. Não! A patria quer ser amada sem reservas, mesmo com os senões e faltas dos seus filhos e das suas insstituições.

As virtudes e vicios de um paiz, não sam senão os vicios e as virtudes de seus filhos. A patria, essa, na sua figura ideal e amada paira acima dos nossos erros e das nossas paixões; e atacar a inopia dos que a constituem ainda é estremecel-a no filial desejo de a ver não só objecto do nosso amor, mas fonte do nosso orgulho, pyra do nosso enthusiasmo.

Não basta estar, como o sacrilego filho de Noé, a por a nú as vergonhas do paiz: cumpre mais que tudo, remedial-as, e abandonando as declamações tão do nosso gosto, pormo-nos franca e singelamente a sevil-a, com a consciencia de um simples dever individual, religiosa, humilde, mas devotada e correctamente cumprido.

Celso Junior no formoso livro que referi, cariciosamente severo, impõe aos seus filhos – quero que consagreis sempre illimitado amor á região onde nascestes, servindo-a com dedicação absoluta, destinando-lhe o melhor da vossa intelligencia, os primores do vosso sentimento, o mais fecundo da vossa actividade; dispostos a quaesquer sacrificios inclusive o da vida.

Embora padeçam por causa da patria, cumpre que lhe voteis alto, firme, desinteressado affecto, o qual, longe de esmorecer, augmente, quando desconhecido, injustamente aquillatado ou ingratamente retribuido, e jamais, em circumstancia alguma, vacille, descreia ou s’ontibie.

Ousa muita gente affirmar que ser brazileiro importa

condição de inferioridade. Ignorancia ou má fé. Ser brazileiro, significa distinção e vantagem. Assiste-

nos o direito de proclamar, cheios de desvanecimento, a nossa

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origem, sem receio de confrontar o Brazil com os primeiros paizes do mundo. Varios existem mais prosperos, mais poderosos, mais brilhantes que o nosso.

Nenhum mais digno, mais rico de fundadas promessas, mais invejavel.

Ao terminar o seculo 19, já constituimos a 2a. potencia do Novo Mundo, a 1a. da America do Sul, a 1a. em extensão e a 3a. em população da raça latina. Seremos a 2a, ou 1a. do orbe, quando a hegemonia se deslocar da Europa para a America, o que fatalmente succederá. Encarnaremos então as qualidades, guardaremos as tradicções, representaremos os serviços dos latinos no trabalho universal.

O Brazil constitue um dos mais vastos paizes da terra, capaz de conter toda a população nella existente; possue riquezas incalculaveis, tudo quanto de precioso se encontra no globo: gosa de perpetua primavera sem jamais conhecer temperaturas extremas; não soffre as calamidades que costumam affigir a humanidade como os vulcões, terremotos, cyclones, inundações.

Nunca soffreu humilhações, nunca fez mal, nunca perdeu uma pollegada do seu solo, nunca foi vencido, antes tem vencido poderosas nações; sempre procedeu honesta e cavalheirosamente para com os outros povos, livrando até com absoluta abnegação seus visinhos mais fracos, de odiosas tyranias.

Primeiro paiz autonomo da America latina, na sua historia, relacionada com os mais notaveis acontecimentos da especie humana, escasseiam – guerras civis e effusões de sangue, sobejando feitos heroicos, formosas legendas, preclaras figuras, luminosos exemplos.

Sempre manifestou espirito de independencia, desfructou liberdades desconhecidas em outras nações, mostrou-se apto para todas as melhorias, produzio representantes distinctos em qualquer ramo da actividade social, resolveu com calma e sensatez, á luz do direito, a mór parte das suas questões, acolheu carinhosamente quem quer que o procurasse.

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O Brazil é um paiz privilegiado, reunindo primores sem conta, que lhe conferem primazia sobre todos os mais. Outros povos se avantajam ao nosso, n’aquillo que a idade secular lhes conquistou.

O Brazil poderá tornar-se o que elles sam. Elles nunca serão o que o Brazil é. Qual o que em absoluto nos excede?

Nenhum, dadas as nossas circumstancias faria mais do que fisemos.

Quando nos lançarem em rosto as grandezas alheias, consideremos as suas miserias.

Tem elles primores de arte? Nós possuimos portentos naturaes, sem duvida

melhores. Apresentam cultura mais fina? Lá chegaremos, que para isso sobra-nos capacidade. Vangloriam-se de rutilante passado? Aguarda-nos deslumbrante porvir. Patenteiam maior

força armada? Vivemos mais tranquillos, mais fraternalmente. A Inglaterra com sua formidavel expansão, a Italia com

os seus monumentos, a França com os seus artistas, a Allemanha com a sua sciencia não nos acabrunham, mas despertam nobre emulação: nada disso nos é inaccessivel. Exhibimos titulos equivalentes para merecer o respeito, a estima e a admiração universaes. Viveremos, cresceremos, prosperaremos.

A educação, o aperfeiçoamento ham de vir. Somos uma aurora. Chegaremos necessariamente ao brilho e ao calor do meio dia!

Grande povo, capaz de heroicidade, de justiça, de

vibração, mas, disperso na disciplina, desordenado na formatura, rumoroso quando o silencio se impõe, povo de impetos de todo o arrojo e tambem povo estranhamente indifferente.

Avança e ri-se bravamente no perigo e é resmungão e impaciente por frioleiras.

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Esta falta de unidade, esta falta de uniformidade, esta desafinação, digamos, provem indubitavelmente da falta da educação civica, que, só ella, representa o arcabouço robusto do grande corpo nacional, a educação civica, que é como o accorde no teclado, a harmonia na orchestra.

Essa lastimavel lacuna, essa falha perigosa, vem de causas numerosas: vagas, esparsas, obscuras, umas, e positivas, definidas, determinadas, outras.

E o seu conjuncto, complexo, não tem sido modificado por uma acção energica de remodelação, de reforma vivificadora.

Brazileiro nenhum, estudando com amor, á falta de talento, a sua patria, nas varias manifestações da sua vida, na sua política, na sua arte, na sua industria, na sua litteratura e até nos seus usos e costumes, deixará de verificar consternado a pobresa do nosso sentimento nacional.

A lacuna fundamental da nossa educação publica é a ausencia de um ideal – e esse ideal lhe não podia ser dado senão animando-o de um espirito, o espirito do sentimento nacional.

E dado o nosso tempo e a necessidade innilludivel de nelle e com elle vivermos, havemos de conformar-nos com as suas tendencias, sob pena de perecer ou arrastar uma vida ignorada e ingloria, no concerto universal.

Nenhum povo hoje póde ser grande, sem esse sentimento, nenhuma nação póde ser forte, sem n’elle apoiar-se. É elle o mais solido elo da nacionalidade e o mais certo estimulo dos cidadãos.

Vencida e mutilada, diminuida no seu territorio, fundamente ferida no seu orgulho, é para a educação civica que se volve a França.

Foi ahi, nesse manancial inesgotavel, que ella se revigorou e se reconstituio com uma assombrosa rapidez e firmesa.

Nós tambem temos a refazer-nos não sómente temperamento, ideias e costumes novos, senão tambem um espirito novo, o espirito nacional, tão enfraquecido entre nós, e é á educação civica, nacional, que compete essa tarefa ingente e

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benemerita. Neste novo mundo, o Brazil tem um primeiro lugar e os mais insignes destinos.

- Sejamos brazileiros com todo o ardor do nosso temperamento, mas sem os desfallecimentos que o neutralisam.

Não copiemos servilmente a ninguem, mas estudemos tudo e a todos – e, principalmente, estudemo-nos a nós mesmos. Tiremos, porque os temos grandiosos, tiremos do conhecimento da patria, os mesmos elementos com que lhe havemos de preparar a grandeza futura. Precisamos ser physica, moral e intellectualmente fortes e a humanidade pode contar comnosco. Para isso porém, carecemos em primeiro lugar – ser brazileiros – e o conhecimento e a consciencia do nosso valor proprio só nos poderá vir da educação civica, no mais elevado sentido da palavra.

Uma simples nota, que é como um transumpto de todas,

é da nossa indifferente observação diaria: o hymno e a bandeira. Sempre – de pé – elle deve ser ouvido: de cabeça

descoberta, é que ella deve ser saudada! O hymno nacional! A vibração marcial e soberana, o clangor da victoria, a

marcha para o progresso! Elle é como o applauso, de todo o peito, ou o tremendo rugido de um povo ferido, a espiritual, a solemne e confortante presença de toda a patria, liame do mar, da serra e da campina, no momento e no lugar onde é vibrado.

O hymno nacional, que na sua larga accepção é o conjuncto do vagido do infante que nasce, do brado enthusiastico do homem feito, do suspiro do ancião que tomba, o hymno, que é o aroma da flor, o brilho da estrella, o canto da ave, o soluçar da fonte, o balar do gado pacifico da lavoura e o bramir da féra, que é uma fremente onda sonora, mas que é a Patria, em summa, si accorda em nós a soberba acclamação delirante, é, por uma indifferença nossa, por uma fraqueza e – porque não direi? – por uma criminosa tolerancia, executado até em barracas de cavallinhos, em miseraveis exhibições de brutos e de palhaços!

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E nós não protestamos, não impomos a suspensão dos compassos que deprimem: ouvimos com indifferença!

A bandeira! Se o hymno é a vóz, a bandeira é a face augusta da Patria.

É para ella, que na magoa publica os olhos se voltam; é para ella que os labios se arqueam em beijo; é para ella que os joelhos se dobram.

Hasteada na terra estrangeira, é territorio patrio aquelle que ella cobre; na popa do navio, é a alcyone amorosa que o acompanha no vendaval e na bonança, no turbilhão das aguas infinitas ou no remanso pacifico dos portos; no quadrado em combate, é a patria mesma, que está entre os soldados.

É ella que segreda a um – resiste! - a outro – protege-me! – a outro – vence!

É ella que soluça a bençam maternal ao ouvido dos que morrem; é ella que diz ao ferido – tem fé! – é ella que diz ao vencedor – cumpriste o teu dever!

Varada pelas balas, negra do fumo, humida de lagrimas, salpicada de sangue, ella é sempre immaculada e pura e lucida e bemdicta!

A bandeira, que entre todos os povos é tractada com o mais grave e elevado respeito, - força é dizel-o, - entre nós, ella serve de cartaz nos circos de touros, de reposteiro em exposição de cobras e bonecos e de taboleta de aviso, de kiosque de loterias, em dias de sorte grande!

Não! Não consintamos mais em tal abuso. Isso é vergonhoso. Reajamos contra tanto desamor! Tiremos dos olhos

curiosos e innocentes das creanças, dos nossos irmãosinhos, dos nossos filhos, destes petizes que hoje sam a aurora e serão amanhã o zenith da patria, acabemos para os seus olhos ainda puros, o espectaculo deprimente, que não se lhes apagará da memoria, evitemos que vendo, desde tão tenros, a indifferença para o delicto, elles sejam depois, cumplices innocentes, tambem!

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É certo que varias causas acudiram a estorvar em nós o

brazileirismo. A enorme extensão do territorio e a falta e a difficuldade

de communicações, isolou o habitante do convivio continuado dos seus concidadãos, formando-se assim mais o sentimento local, que o patrio; ha bahianos, paulistas, cariocas, paraenses, rio-grandenses: raro, existe o brazileiro.

A propria legislação portugueza do tempo, difficultava as relações das capitanias entre si e com as nações estrangeiras, preferindo que só as tivessem com o Reino.

Somos o producto da fusão de tres dignas e valorosas raças, perfeitamente distinctas: duas, selvagens, primitivas e simples e portanto descuidosas e indifferentes e outra, em rapido declinio, depois de uma gloriosa, brilhante e fugaz civilisação.

Quando iniciava a colonisação do Brazil, começava a gente portugueza, nosso tronco e primeira seiva, a experimentar os symptomas da perversão moral, que fez resvalar os heroicos batalhadores da Peninsula e da Africa, os ousados navegadores do mar tenebroso, mestres de Colombo, nos enfraquecidos dominadores da India.

A figura lendaria de um D. João de Castro, que por um pello da barba honrada se constituio fiador da divida do seu rei, succedia Martim Affonso de Souza, o temerario almirante da costa brazileira, que ao depois, nas conquistas da Asia, foi um dos mais infamados concussionarios.

Amollecido nos prazeres faceis das terras conquistadas das Indias, de um lado enfreado pelo temor da inquisição, de outro lado enervado pela educação jesuítica da epocha, o povo portuguez decahia visivelmente ao tempo da colonisação, que iniciada sob D. Manoel, se veio prolongando até sob os Philippes, da Hespanha, então odiados dominadores de Portugal, que se deixara domar, mais pelas divisões politicas intestinas, do que pela falta de valor para a resistencia.

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O Brazil, infelizmente simples colonia de uma pequena metropole, nada podia fazer.

Para avaliarmos quanto póde influir o modo por que se deve desenvolver uma nação afim de attingir a sua prosperidade, basta observar o exemplo pratico da America do Norte, que actualmente offusca, com as suas riquezas e poder, as velhas e principaes nações do antigo continente, causando-lhes inveja e temor.

E comtudo, toda essa grandeza não é mais do que uma consequencia logica do modo pelo qual ella se constituiu.

Os seus primeiros habitantes foram immigrantes compostos de varias especies de homens sociaes, de agricultores, capitalistas, homens illustrados e de merecimento, que abandonaram o solo natal por questões politicas, que se tinham travado na Inglaterra.

Os inglezes, que foram para a America do Norte, abandonando a sua mãe patria por questões politico-religiosas, dedicaram-se de corpo e alma ao seu novo berço, a esse novo torrão, que em breve tão alto elevaram.

Os descobridores, povo longiquo, embóra militar, pouco numeroso, attenta a nossa extensão, não possuindo elementos para agir a tão grande e mal conhecida distancia, não podiam favoravelmente exercer a sua tutela na immensa colonia do Brazil!

As condições climatericas e geographicas do Brazil

concorreram para desenvolver a nossa indolencia. Uberrimo, de clima propicio, sem lucta com as forças

destruidoras da natureza, com o braço escravo para a rudeza do serviço, a educação geral desde o principio, foi-se accentuando para um fatuo desprezo do trabalho.

Não é possivel exagerar os males que nos trouxe a execranda chaga. A ama escrava, amamentou todas as gerações brazileiras; mucama, a todas acalentou, homens para todas trabalhou, mulher, a todas entregou-se. Durante 300 annos

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refastelamo-nos no trabalho oriundo da iniquidade, sobre o indio e sobre o negro. Não sómente abolindo como aviltando o trabalho, a escravidão consumou em nós a morte de todas as energias, já enfraquecidas pelo clima, viciadas pela hereditariedade e amodorradas pela acção politica monarchica.

Vale a pena ainda uma vez relembrar a innata generosidade brazileira: não nos deve envergonhar, o facto de havermos mantido a escravidão. No começo do seculo passado, admittia ainda a Inglaterra o trafico humano, com o qual enriqueceu e cuja suppressão difficilmente conseguio.

Em França, só em 1848 extinguio-se a escravidão nas suas colonias. Nos Estados Unidos a abolição custou uma guerra civil que durou cerca de 5 annos; O Brazil não amou ou defendeu o captiveiro: apenas o tolerava. Ultimado o triumpho da libertação, os novos homens encorporaram-se á população em perfeito pé de igualdade, a elles e aos seus descendentes desvendaram-se os vastos horizontes abertos a todos os habitantes do Brazil.

Sahidos do rijo systema de educação portugueza,

cahimos, por uma infeliz deturpação de ideas francezas, no extremo oposto. Sob o pretexto de educação moderna – tudo foi permittido, e a facilidade de tudo fazer, enfraqueceu-a, porque na vida pratica, a vontade amimada da mocidade deu para as mais extravagantes exterioridades da calçada, do botequim e dos licenciosos convivios.

Não cultivou um ideal, uma aspiração, um objectivo para a solidificação da solidariedade nacional.

O melhor argumento contra o systema em geral entre nós adoptado, de consentir em tudo, afrouxando a disciplina até o relaxamento, é que os poovos mais viris, mais fortes, mais energicos, sam justamente aquelles cuja educação domestica e publica manteve em todo o seu prestigio a autoridade do mestre e da familia; os inglezes, os americanos, os allemães.

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Obdecendo é que se aprende a mandar – e esta verdade até está traduzida n’um adagio nosso – quem não sabe fazer, não sabe mandar.

Si o habito de mandar desenvolvesse a energia, o brazileiro seria um dos homens mais energicos, porque, desde a primeira infancia elle não fez outra cousa!

Mas, sobrepujando tudo, faltou-nos educação publica,

civica, nativista. Durante muito tempo, mesmo depois de 1800, os

estudos se iam fazer á Europa: Lisbôa e Coimbra eram as nossas capitaes intellectuaes. E la se iam as creanças estudar fóra do paiz, na idade justamente em que se começa a formar o caracter e o coração, na idade em que se gravam para sempre as primeiras impressões do amor da familia e do amor da terra.

- Justiça seja – não foi isso um desleixo perfido ou preconcebido proceder dos nossos avós: era até logico com o tempo e com as cousas de então: sendo como era, o Brazil, uma simples colonia, sem autonomia.

A nossa vida publica, da rua, externa, tem sido sempre

muito parcimoniosa. A sua manifestação mais viva tem sido a da politica ou

antes, do partidarismo. Fomos liberaes e conservadores – em torno de homens,

entrando os partidos, sem cerimonia, na seara dos principios um do outro, conforme a pressão do momento. Tanto na monarchia, como modernamente na republica, conhecemos os parlamentos quasi unanimes. Os meetings, os comicios, as conferencias politicas, entre nós, raro são praticadas: ao contrario, os nossos homens mais eminentes evitam o contacto da multidão. Allegar-se-há que o povo não está preparado para – pensar – mas, quanto

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mais se lhe distanciar a escola do seu ensinamento politico, tanto mais difficil será oriental-o.

Recem vamos trazendo os nossos homens para o bronze

da consagração. Os monumentos imperiaes tiveram a sua subsistencia da propria instituição, e só para ella; agora um escriptor, Alencar, já tem uma estatua na praça publica; Carlos Gomes emerge da grata saudade paulista: bustos se erguem; modestas placas commemorativas e columnas singelas, mas sinceras os republicanos vam implantando; elles trouxeram Osorio e Caxias para exemplo permanente, do povo.

Floriano tem no seu tumulo um symbolo de peregrinação; Castilho terá o seu monumento, estimulo de meritos; os de Tamandaré, Saldanha, Mauá, Silveira Martins, Benjamin Constant e outros se estam cimentando; e, não ha negar, já foi a aura nova, só ella, que trouxe este rejuvenescimento dos credos dos cidadãos.

O nosso jornalismo, a fora a politica e as pequenas noticias, escassamente se occupa do Brazil.

É mais corrente encontrar n’elle noticias de cousas estrangeiras que do paiz; e nos estados, si raro é o jornal de alguma importancia que não tenha uma correspondencia de Lisbôa ou de Paris, e transcripções de outros paizes, tambem raro se toparia com algum que a tenha não já das outras partes do Brazil, mas do proprio Rio de Janeiro.

Quantas vezes, dos proprios jornaes estrangeiros é que vamos ter noticia de cousas patrias! Não possuimos uma unica revista, variada, popular, barata, que leve a todos os cantos do paiz os trabalhos dos seus escriptores, dos seus pensadores e artistas, das obras e construcções no Brazil e por brazileiros feitas, nem dos seus homens, cousas e successos mais notaveis.

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A nossa legislação é uma montanha de leis, de disposições, regulamentos, decretos, circulares, avisos, que se chocam, se enovellam, se disputam; sendo opulentistissima, é difficil de destrinçal-a; nós vemos seguidamente os nossos tribunaes, alfandegas, commandos e repartições, em conflictos, em attrictos de attribuições, despejarem perguntas e consultas sobre assumptos que deveriam ser correntes. Uma nevrose de desorientação lavra por toda a parte.

Ella é lamentavel, mas é perdoavel. É o facto que se daria com um individuo que fosse encarregado de cuidar de uma machina que elle nunca vio funccionar; fecha valvulas, abre torneiras, alarga movimentos, desloca ajustamentos; produz-se a desordem no funccionamento, elle allarma-se, confunde tudo, quer remediar o caso, mas não conhece a manobra e complica a sua situação, pondo em prova sem necessidade, a robustez da machina, que felizmente resiste e resistirá ao seu noviciado...

Entre outros, ao acaso cito alguns factos mais recentes. É isso o que acontece com um conselho municipal que

indo contra o principio expresso da constituição brazileira, sobre a ampla liberdade dos cultos, decreta o ensino religioso obrigatorio, nas escolas; isto na capital federal!

Outra camara municipal, no Estado do Rio, propõe a revisão da constituição d’aquelle Estado, para se votar um artigo de excepção, pessoal, afim de poder ser reeleito um presidente; num Estado, do Norte, em que se deu feriado official nas repartições publicas, porque fallecera um cidadão particular, filho do governador; em que seio do proprio Congresso levanta-se um deputado para pedir que compareça um ministro, para ser interpellado, como succedeu o anno passado, na questão boliviana, tristemente esquecido esse representante, da lei fundamental da Republica, que prohibe tal comparecimento.

Na generalidade, cada cidadão devia ser aproveitado

segundo e para o fim de suas aptidões.

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Temos na verdade concidadãos dotados de larga capacidade, para poderem se dirigir com firmeza em assumptos de ponderação varia; mas sam typos de excepção – e não é com essa, seguramente, que se há de argumentar. Uma das nossas mais caracteristicas inversões do censo pratico é a da não utilisação dos homens em cargos para os quaes as suas habilitações os apontassem.

Na nossa vida publica era corrente termos advogados como ministros da guerra e da marinha; mais agora, um medico foi nomeado para o Supremo Tribunal de Justiça; e sentio-se tão deslocado que pouco depois, deu a demissão; um litterato foi encarregado do serviço de immigração; um medico dirige o Banco da Republica... que é aliás um constante doente.

Os nossos parlamentos sam quasi totalmente compostos de homens de profissões liberaes, que, quando enfrentam com os grandes problemas de ordem pratica, material, vem se deslocados e ignorantes delles, e dahi os embaraços do proprio governo, obrigado a dar interpretações a disposições obscuras e até absurdas, algumas.

Em quanto os outros povos festejam solemne e ruidosamente as suas grandes datas nacionaes, as nossas cahem no olvido e no abandono; o povo vae-se tornando desinteressado da commemoração que ellas lembram e n’uma embrulhada confusão de feriados e dias santos – só aproveitamos d’ahi uma folga de um dia ou meio dia de trabalho – para ir á pesca ou ao bilhar...Recordar é reviver, e o povo que fecha o coração e a memoria á relembrança das suas grandes horas historicas – é digno de lastima.

Quem já assistisse a um 4 de Julho nos Estados Unidos, a um 14 de Julho na França, a um 20 de Setembro na Italia, pasmará contristado da nossa musulmana indifferença.

Os nossos proprios uzos e costumes, tradicionaes,

resvalam para um lamentavel abandono. Habitos saudaveis na

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familia, estam sendo cada dia abolidos; brinquedos infantis, esquecidos; praticas e usanças – caracteristicas, desprezadas. Quem quer que passe em revista o que tem sido ingratamente mutilado da nossa tradicção, ficará espantado do evidente lento suicidio da nossa personalidade, na sua feição particular.

Não é que deseje que ficassemos estacionarios, immoveis, perante as novas formas de viver moderno; eu lamento é a implantação de habitos, usos e costumes em contraste, em desaccordo com o nosso temperamento, o nosso clima. O estrangeiro é tão firme na tradicção, que mesmo na terra estranha elle a põe em pratica, não cede á que encontra, venera a sua; nós desprezamos a nossa e adoptamos a alheia, sem indagar o porque, a razão de ser de tal ceremonia ou tal costume.

Não tanto nos Estados affastados, em que ainda se descobre o cunho proprio, mas nos que se dizem mais adeantados, o cosmopolitismo – tem tudo avassalado e afogado. Desde o vestuario até a linguagem, desde o porte até o proceder, a feição nativista está assoberbada pela imitação servil, ridicularisada pelos proprios imitados.

O desanimador resultado desses factos, infelizmente

incontestaveis, é esta dolorosa verdade: nós nos ignoramos a nós mesmos.

Vemos os consulados estrangeiros expedirem aos seus governos relatorios tão completos, tão acabados, que nelles vamos conhecer, descobrir e saber de cousas nossas que ignoravamos e de que pasmamos ingenuamente de ter noticia exacta.

Pois, - e ainda apezar disso – encolhemos os hombros desdenhosamente desinteressados. E a funestissima consequencia deste alheiamento das cousas patrias, é a extrema fraqueza, a falha completa, a postergação até, do sentimento nacional.

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Mas Senhores – o sol que no alto céo profundo as vezes se vela n’um manto de brumas, não deixa por isso, de ser o mesmo maravilhoso foco de luz, de vida e de calor.

Assim, esta bemdita patria predestinada e tão fecunda, como que em espontanea revolta, rompe contra as causas accidentaes do entravamento e lampeja para o horisonte do futuro, fachos de intensa claridade, de esperança e conforto.

Sendo um povo jovem, temos um espolio moral de desmarcada grandeza. Temos no tabernaculo da nossa historia – defeza e factos que não cedem em magnitude aos de qualquer outra procedencia.

Os peiores detractores não poderão negar que – physicamente, o brazileiro não é um degenerado: de boa estatura e aspecto, vigor e agilidade pouco vulgares.

Quanto ao caracter, temos innato o sentimento da independencia, levado até a indisciplina; affeição a ordem, a paz, ao melhoramento, gosto pela hospitalidade, escrupulo no desempenho das obrigações contrahidas; espirito extremo de caridade: produz sempre resultado o menor appello em nome dos que soffrem; tolerancia, ausencia de preconceitos de raça, religião, côr, posição, decahindo mesmo em promiscuidade; honradez no desempenho das funcções publicas ou particulares; indolente e generoso, o brazileiro em geral, conserva-se estranho ás desmesurados ambições, machinações e certos vicios, que vemos em outros povos. Os nossos homens de Estado costumam deixar o poder mais pobres do que nelle entram: quasi todos os homens politicos brazileiros costumam legar a miseria ás suas familias.

Os Andradas viveram em aperturas economicas; o visconde de Itaborahy, o conselheiro Francisco J. Furtado, Buarque de Macedo e muitos, muitos outros morreram em extrema pobreza. O visconde do Rio Branco, ministro plenipotenciario, ministro da fazenda, presidente do conselho de ministros, deputado, senador, conselheiro, morreu menos que pobre, tendo sido sua familia obrigada a vender os modestos

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moveis, e os seus amigos tiveram de fazer uma subscripção para ajudal-a á manter-se.

Quando foi pelo governo provisorio, os jornaes do Rio deram noticia sobre os recursos que tinham ou a profissão que iam recomeçar, para viver, os membros de senado dissolvido.

D. Pedro II, é sabido, deixou uma pobre partilha de bens aos seus herdeiros; e a Republica, que o combateu como adversario fundamental, fez honra á sua honradez pondo á sua disposição forte quantia, que elle, aliás, recusou.

Os poderes discricionarios do marechal Deodoro não lhe deixaram uma mancha na reputação de pobreza honrada: ainda hoje a familia vive da pensão e monte pio que lhe cabem por lei.

O immortal Floriano viveu sempre modestamente: toda a sua fortuna pessoal era uma fazenda no Estado de Alagoas.

O presidente Prudente de Moraes era de uma singeleza que admirava.

O contrario disso, é entre nós extraordinaria excepção. Sirvam elles de saudavel exemplo, de pharóes bemdictos na procella que faz naufragar tantos escrupulos na actualidade.

A nossa proverbial indolencia não nos impedio nem nos

impede de termos progredido e progredirmos sempre. Somos a despeito de tudo, tão adiantados como os paizes de condicções analogas as nossas ou mesmo mais do que elles.

Homem perfeito, disse-o alguem – é aquelle em quem as qualidades levam pequena vantagem aos defeitos.

No caracter brazileiro há saldo consideravel á favor das qualidades.

Tem lhe faltado – cultivo – Tem lhe faltado nacionalisação, para que n’uma inesperada hora solemne, não andemos desorientados.

Amemos, conservemos a nossa patria.

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Assim como só bem avalia a inestimavel saude, os que adoecem; assim só fazem idéa da falta da patria aquelles que lhe choram a ausencia.

Que vóz de dórida saudade, cantaria no coração soluçante do poeta da Canção do Exilio!

Mentem, mentem os arautos do cosmopolitismo. Não é leal e sincero aquelle que diz que a patria é onde

se está! Não! Feliz aquelle que só se aqueceu ao fogo dos seus lares, feliz aquelle que cerra os olhos á luz, á luz do sol, sob o azul do ceu do seu paiz natal!

Razão sublimada teve o procer romano, que como único grito de recriminação e angustia e dor e pena, disse outr’ora, ao affastar-se da plaga nativa: ingrata patria não guardarás meus ossos! Outro, brada – a patria não se leva na sola dos sapatos! Outro ainda e mais e muitos, morrem de não vel-a; o nauta intemerato, pluma vagabunda que balança na crista da onda espumejante, o viajante adaptado a toda a raça e a todo o clima, o guerreiro calejado na dureza do combate, todo o musculo de aço, toda a coragem varonil, cede e fraquea ante a doença do amor da patria ausente, ante a languida e mysteriosa nostalgia soberana! É a doença do desterrado, é a doença da saudade, que stringe o coração, tormenta a alma, explode em lagrimas, desata-se em queixumes e anniquilla e consome e mata – e não consola! É á doença da saudade suspirosa, que se cura com a visita da velha casa paterna, a sombra da arvore que nos vio creança, o fallar da nossa lingua, a toada da nossa trova, a borboleta irisada, filha de outra que perseguimos no tempo ido,, o murmurio – soluço e casquinada – do mesmo resgatinho feiticeiro que nos deu o golo da agua crystalina!

Não creio, não creio e não commungo na utopia dos

visionarios do seculo, que pregam por uma só lingua, n’uma patria universal.

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Em quanto essa utopia, como flor delicada de estufa, medra no ambiente tepido da vaga aspiração, como symbolica pomba de alliança dentro de uma jaula de féras – os paizes blindam-se em malhas de aço, rugem as forjas na fusão do bronze dos canhões, abatem-se sob sacrilegos golpes do machado impiedoso as venerandas arvores seculares, para a construcção das naves pavorosas. A mathematica estuda a potencia e a resistencia dos engenhos de destruição e a chimica inexoravel, combina e multiplica a força dos explosivos mais crueis, emquanto o calculo dos governos – como fiel de uma balança maldicta, pesa e avalia o numero dos homens.

Os velhos paizes da Europa que se proclamam os sacerdotes do tabernaculo da civilisação, tem creado pela bocca meliflua da sua diplomacia, nomes especiosos e procederes especiaes para a implantação, alargamento e permanencia das suas influencias entre os paizes de além. E a hypocrisia e o feroz egoismo internacional atiram com uma mão o gesto brando da bençam pela paz, depois que tem na outra o gladio que mais corta.

Será sim, ainda por dilatados seculos, a força, a garantia do direito.

Em um seculo pratico, positivo, industrial, mercantil e interesseiro como o nosso, é preciso estar preparado e saber contrabalançar as formidaveis exigencias da lucta pela vida.

E, ai! do fraco, ai! da cubiçada preza, que não rugir masculamente, que não tiver dentes firmes e garras possantes para se resguardar e defender.

Por isso, em todos os povos da nossa civilisação, dá-se

hoje e a nossa vista, como que uma concentração sobre si mesmos, uma exagerada renascença do sentimento nacional. Todos elles buscam hoje uma educação systematica desse sentimento, na propria exageração delle, um factor de grandeza, de vida e de prosperidade.

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O nacionalismo e portanto o patriotismo, sam hoje paixões fortes e dominantes em todos os povos, e o que mais é, paixões raciocinadas, laboradas por uma sabia e consciente educação guiada e mantida com tenacidade e habil orientação. E dahi o esmerarem-se todas, com perigosa excepção da nossa – no desenvolvimento constante do orgulho nativista.

Quem quer que observe o que se passa neste momento na vida das nações ha-de chegar á conclusão de que não é uma época calma e de horisontes claros a que atravessamos. Na Europa, as velhas nacionalidades sentem-se mal nos seus limites e procuram expandir-se em outras terras onde contam encontrar remedios aos males que as affligem.

Os territorios desoccupados já se distribuiram todos, de sorte que as nações fracas estam em perigo.

Na propria America, o desenvolvimento assombroso da União Americana do Norte com a victoria de sua politica imperialista é, não ha negar, um pesadello para as outras nações do continente.

Accresce ainda, que confinamos com outras nações que positivamente não nos apreciam, não obstante todos os protestos de amizade e fraternidade sul-americana.

Ha uma aprehensão que é preciso que desappareça: a separação do territorio nacional em varios estados; mas sobre isso, não só ha, por agora, symptomas serios, como pesa tambem contra ella a tendencia da evolução humana, que é para as grandes agglomerações. A Inglaterra, a Hespanha, a Italia, a Allemanha são frizantes exemplos.

Todos elles eram um amontoado de pequenos territorios e governos locaes varios, que obedecendo aquella lei, se foram juntando, fundindo, unificando, até formarem os grandes e solidos corpos que hoje vemos.

Uma propaganda, de boa fé, mas que parece, só vio o

interesse do Brazil por um lado, attrahio e localisou em

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determinadas regiões do paiz, innumeras levas de individuos de uma só nacionalidade extrangeira, facto esse, que crea dentro da Grande Patria, outras tantas pequenas patrias de uma immigração forte, pelo numero e pelo vigor e que mais valera disseminada por todo elle. A lucta entre essa gente, incomparavelmente mais forte, mais disciplinada, e nós, não pode ser duvidosa.

O campo de combate será e tem sido primeiramente o das actividades physicas, aquelle que exige maior somma de robustez, de força, e de saude: o commercio, a industria, os officios, a lavoura...

Quem já luctou com os inglezes, quem já expulsou os francezes do Rio de Janeiro e do Maranhão, quem combateu 30 annos e afinal venceu os hollandezes, luctará vantajosamente se quizer, contra qualquer invasor. Não perderemos com facilidade uma autonomia illustrada em 100 annos de opulentas recordações confortantes, passemos embora por tremendas crises, inherentes á condição humana e afinal não sem vantagem, porquanto ensinam e virilisam. Nenhum problema insoluvel, nenhum perigo inevitavel e immediato ameaça o desenvolvimento do Brazil.

Mas na previsão de uma intervenção estrangeira, seria ingenuidade contar com auxilio alheio ou com o prestigio do nosso direito. O recurso consiste na prudencia e elevação do nosso procedimento. Adquiramos força moral: a dignidade e a honra inspiram sempre respeito instinctivo.

A nossa raça, sentem-o todos, se enfraquece e abastarda,

sob a influencia de uma instrução publica sem o alevantado ideal patrio, firmemente invocado e incutido, e sob a influencia do clima, peiorada pela falta de hygiene e pela carencia de exercicios.

É indispensavel preparar-nos para, sem recorrer a meios que não consente a nossa civilisação, não nos deixarmos abater e esbulhar, afim de que esta terra que os nossos antepassados crearam e civilisaram e cuja futura grandeza prepararam, seja, principalmente, nossa; afim de que esta terra que nos legaram os

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nossos avós, a possamos manter e illustrar, para legal-a as gerações vindouras melhorada, altiva e indivisa. Essa, é a missão nobre da Familia, da Escola, da Sociedade, das Religiões, da Politica, da Arte, da Litteratura e da Sciencia.

Do que trago dito concluo pela necessidade urgente de

adoptarmos, mantermos e desenvolvermos tenazmente a campanha vivificadora da nacionalisação, de educarmos e fortificarmos o espirito, o sentimento patrio, o amor da tradicção, o conhecimento e a consciencia de nós mesmos. A geração que passa, que já se acotovella para o declinio, ao lado dos velhos fortes que subsistem, essa, já pouco poderá influir para a transformação indispensavel, a não ser pelo conselho, apontando com insistencia para o horisonte.

Um grande, fecundo, incomparavel trabalho, cabe á Mãe

de familia: a todas que me podessem ouvir, eu diria ainda e sempre:

Ides para o vosso lar: enlevo dos olhos, estuar dos corações, alegria dos beijos, sonhos do puro amor, os pequenos, os filhinhos, vos esperam.

Á cabeceira de cada berço, a nevoa do destino, se conserva indecifravel.

Cada um de vós anceia e sonha por ver a pequenina e fragil semente hoje brotada, transformada amanhã em roble vigoroso, que dê a sombra hospitaleira e que se perpetue.

Assim é: o futuro, sam elles! Dae-nos, formar para o amanhã da patria, cidadãos

fortes, castos, justos, e valentes! Dae-nos, formar mulheres modestas, firmes, virtuosas!

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Feita a Republica, o facto da mudança de forma de governo não foi e não é de per si mesmo bastante para facultar-nos uma era nova de completa regeneração: o arraigamento dos habitos anteriores não se extirpa instantaneamente.

As formas de governo tem um valor relativo: a força progressiva das nações actua de baixo para cima e não de cima para baixo; é no povo que reside e é a somma dos seus esforços em qualquer ordem de phenomenos, que produz a civilisação e o progresso.

A Republica pode e hade ser um bem, por dois motivos de ordem bastante elevada: ella era fatalmente determinada pela nossa evolução historica e circumstancias politicas; a outra razão, é comportar moldes mais amplos, fórmas politicas e administrativas mais largas que a monarchia, o que para nós, povos americanos, mais que necessario, é indispensavel á nossa evolução.

A historia é feita com um só elemento, o povo; é pois o povo e não o governo, quem em definitiva pode mudar radicalmente as condições de uma nação, cujos vicios e defeitos sam antes seu do que dos que administram, que não são mais que seus delegados.

Sobrou por isso razão a quem disse que – cada povo tem o governo que merece.

É pois a nós mesmos, é ao povo, é a nação que cumpre corrigir e reformar se quizermos realise a Republica as bem fundadas esperanças que brotaram nos corações brazileiros, com o seu desejado e auspicioso advento.

Para reformar e restaurar um povo, um só meio se conhece: é a educação, no mais largo sentido, na mais elevada accepção desta palavra.

Não ha talvez nesta sala, uma só pessoa de mais de 25

annos de idade, que não tenha, no collegio que frequentou – na roça ou nas cidades – que não tenha aprendido o – cathecismo

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christão. Cito esta lembrança – como um exemplo da uniformidade, sob um ponto de vista da forma da educação. Neste ponto o clericalismo, sagaz e previdente, soube incutir – constante – a sua orientação no animo popular, especialmente, da mocidade. Pois bem – si a par do cathecismo, como fonte de moral religiosa, nos tivessem incutido juntamente o conhecimento patrio, o valor do civismo, o apreço da solidariedade nacional, não tinha sido uma bella conquista, promissora, e fructificante até, na actualidade? E o modesto cathecismo, não é a theologia, a vasta sciencia dos doutores da igreja: é apenas um ligeiro capitulo, sufficiente para a moral individual; nós não precisariamos desde logo uma volumosa erudição sobre a nacionalidade, mas as breves e solidas noções indispensaveis para o conhecimento della e o apreço e o respeito que se lhe deve dedicar. É que a escola brazileira isolada na esphera de uma pura e estreita instrucção primaria, não teve, e não tem ainda, influencia decisiva nem na formação do caracter nem no desenvolvimento do sentimento nacional, da educação civica.

Nada distingue a instrucção publica primaria brazileira, da instrucção publica que se poderia dar em outro qualquer paiz – e na escola brazileira, pode-se dizer que o Brazil, brilha pela ausencia.

O eminente Ruy Barbosa, n’um relatorio que fez sobre a reforma do ensino, diz: - A cultura civica, obrigatoria hoje na escola americana, na franceza, suissa, belga, allemã, italiana, não carece de maior justificação. Tereis instituido realmente a educação popular, si a escola não derramar no seio do povo a substancia das tradicções nacionaes? Si não communicar ao individuo os principios da organisação social que o envolve? Si não imprimir no futuro cidadão idea exacta dos elementos que concorrem na vida organica do municipio, do Estado? Si não lhe influir o sentimento do seu valor e da sua responsabilidade como parcella integrante do corpo nacional? – É isso – o que não temos.

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O amor da patria alenta-se e avigora-se pelo conhecimento do seu passado e do presente e da fé no seu futuro.

A profunda indifferença, feição dominante do nosso caracter, fez-nos sobretudo desprezar o nosso passado e esse esquecimento lastimavel, foi parte grande nesta nossa falta de sentimento nacional. A historia entre nós, foi tão prodigiosamente desprezada, que só temos – um – historiador brazileiro, o Visconde de Porto Seguro! É com os estrangeiros que teremos de ir aprender a historia do nosso paiz, e sam: Southey, Beauchamp, Constancio, Grant, Henderson, Ferdinand, Denis, e Warden, e Armitage, e outros. Isto basta e dispensa mais commentarios.

Temos, verdade, de ha muito, um Instituto historico e geographico; mas quem lhe conhece os preciosos trabalhos á não ser um reduzidissimo grupo de silenciosos estudiosos?

O ensino da nossa historia patria é mal feito e mal dado. No Brazil esse estudo não é somente descurado, mas não existe, nunca existio, e a consequencia é a profunda ignorancia em que vivemos da nossa historia, soletrando aliás a alheia.

Os poucos compendios que ha, sam inspirados na pedagogia jesuitica – das perguntas e respostas e limitando-se a uma enfadonha nomenclatura de governadores, de reis, de capitães-móres, ou de factos aridos, seccamente expostos.

Na escola primaria, afora a decoração, que é inconsciente, nada mais auxilia, elucida e completa o estudo da historia nacional. O mestre, elle mesmo, que no geral a ignora no fundo e nos detalhes rigorosos, limita-se a tomar a lição, sem uma explicação oral especial. Tomada a lição – ha dois entes satisfeitos – um que cumprio a obrigação official – outro que não mais lerá aquelle trecho.

Todo o ensino tem um fim: o da historia patria é dar-nos conhecimento da origem commum, das difficuldades em commum soffridas e em commum vencidas; a marcha e evolução dos nossos costumes, das nossas leis e da organisação do progresso, custosa, lenta, mas seguramente adquirido, a noção exacta da

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solidariedade nacional, da disciplina civica, da liberdade obediente e com ella, o amor da patria.

A instrucção publica no Brazil não procurou jamais ter

uma funcção – energica e decisiva na integração do caracter nacional. E a verdade é, que a escola, tem vivido, mais isolada pelo espirito do que pelo espaço. Si nella se tractava de patria, não era com mais cuidado e mais amor do que de outras terras. Era até vulgar merecer menos. Nas nossas escolas, a geographia é apenas um amontoado de nomes, principalmente europeos; mas a geographia patria é quasi ignorada. Achamos um esquisito sabor de novidade em parolar da cataracta do Niagara, do Monte Branco, da Floresta Negra, do Danubio; mas abrimos grandes olhos de pasmo e de duvida si, descrevemos a estupenda superioridade das nossas cachoeiras, da nossa selva maravilhosa, dos nossos rios immensuraveis. Devemos fazer como os outros povos da actualidade: sabem o mais que se pode saber delles proprios e depois procuram saber muito, dos outros.

O livro de leitura, por sua vez, o livro de leitura, que é acaso a mola real do ensino, guarda a mesma indifferença pela infiltração patria; e as suas paginas, cheias de historietas lastimosamente futeis, ou de demasiado alcance para as creanças, ou ridiculamente traduzidos, ou alheios ou deslocados para o meio em que terá de viver e agir o joven estudante; sam paginas brancas para a geographia e a historia da patria, as tradicções e os costumes.

Sam os escriptores estrangeiros, que traduzidos, trasladados ou imitados, que fazem a educação da nossa mocidade. Recem, muito recentemente se vae modificando esta rota, em alguns Estados. Sam elles, os pequenos livros, que despertam, no pequeno estudante a primeira impressão, a primeira curiosidade, a primeira pergunta. Qual é de nós hoje, calejado nos attrictos da vida, desilludido pelo roçar dos homens, que não recorda na nevoa do passado saudoso a amoravel recitação do Padre Nosso, ao collo

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de nossa mãe, cabeceando de somno, estropeando no cochilo, as palavras da sublime oração? Assim, assim se incutam no eu infantil as primeiras ideas do paiz, da raça, da nacionalidade.

Mesmo a generalidade dos livros dos cursos mais adeantados, ainda é de origem e de intuitos estranhos.

Uma sociedade que se preza de civilisada e á quem não sam alheios os interesses das gerações que lhe ham de succeder, não pode sem fallir aos seus deveres, descurar também do fortalecimento physico de seus filhos.

Como a educação intellectual tem por fim preparar um espirito culto e bom, assim á educação physica compete formar um corpo robusto e sam, completando ambas o fim superior da educação, que é tornar o homem bom, instruido e forte. A educação physica, pois, deve tambem tomar o homem, creança ainda e atravez da infancia, da adolescencia e da mocidade, leval-o á virilidade, que lhe cabe fazer o manter rija, casta e valente.

Não só nos collegios, mas nas academias e universidades

inglezas, suissas, allemãs, francezas, belgas, italianas, americanas, a educação physica é um são costume tão inveterado e tão respeitado, que quasi faz lei – Na Suissa, as grandes festas federaes que alli se fazem, de tiro, de gymnastica e exercicios militares, não sam apenas manifestações de vigor physico, sam mais, sam verdadeiros meios de educação nacional, pelos sentimentos patrioticos que despertam, pela consciencia da solidariedade dos mesmos esforços, em commum feitos, galardoados pelas mesmas palmas, em commum partilhadas.

A Allemanha, diz o conselheiro Ruy Barbosa, consagra á educação physica um culto que quasi se confunde com o patriotismo. Michel Breal diz que alli, a gymnastica é uma arte nacional.

Na Inglaterra, cujo povo é incontestavelmente o mais forte, o mais energico, o mais viril da actualidade, os exercicios physicos sam, por assim dizer, uma instituição nacional; seus

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resultados ahi estam patentes. Não nos admiremos pois, que este povo va conquistando o mundo: sobeja-lhe para isso, audacia, energia e força.

Creemos na nossa mocidade, tão fraca, tão estiolada,

com um ar tão envelhecida, isso que um francez illustre chamou de – materia de enthusiamo.

Sentimos abespinhados a sem cerimonia do estrangeiro, que pisa com firmeza, que respira desafogado, que canta, salta, corre e ri saudavelmente, que usa trajos que chamamos exquisitos, mas que lhe dam satisfação para o tempo de calor ou tepido agasalho contra o frio, e, ao envez de examinarmos o porque dessa commodidade despretenciosa, vamos justamente buscar, e usar, o que elle, sornamente, fabrica apparatosamente pomposo, para exportação. Precisamos sahir do triste receio do commentario, da cobarde preoccupação do que dirão os mais, do futil terror do que nós chamamos – o desfructe – porque se salte ou corra ou vibre uma risada: os moços devem ser ruidosos, joviaes, espontaneos, ageis. Não graves, como estadistas, tristes como doentes, meditabundos como prophetas – Devem ser o que sam: moços!

Neste levantamento geral que é preciso promover a favor da educação civica, uma das mais necessarias reformas é a do livro de leitura, primario. Cumpre que elle seja brazileiro, brazileiro pelo assumpto, pelo espirito, pelos auctores trasladados, pelos poetas reproduzidos, pela historia, pela tradicção, pelo sentimento nacional que o anime e faça estimar.

Seria um innegualavel triumpho o do escriptor

brazileiro, patriota e illuminado,que pudesse vencer o difficultoso problema de fazer um livro de leitura primario, adaptavel e ageitado a tão diversos meios de ser e de existir, no nosso paiz. O famoso e realmente bello livro de D’Amicis – O coração – apezar de esplendidamente escripto e soberbamente patriotico, é para lá,

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para a gloriosa Italia, que elle tem toda a sua razão de ser. – É sempre a Italia adorada que o escriptor faz resaltar das suas extraordinarias paginas e faz muito bem, que para a creança italiana elle as escreveo; e sendo livro estranho, é talvez o de mais corrente leitura nos nossos primeiros cursos; e não devera ser: envolve a creança nas condicções de clima e habitos que não sam os nossos; leva-a a paysagens cobertas de neve, que não temos, a festas patrioticas que não sam nossas, a scenas e modos de vida que nos sam desconhecidos. É bello, fecundo, lá; para nós – tirante a parte moral, deslocado.

Sonho de ambicionado ideal – fazer, eu, um livro simples, lucido, saudavel, cantante, de alegria e caricioso, que os homens, rindo da sua singeleza o estimassem; que fosse amado pelas creanças, que nelle, com a sua ingenua avidez, fossem bebendo as gottas que se transformassem mais tarde em torrente alterosa de civismo; um livro em que eu pudesse condensar o coração meigo, valente e virtuoso da mãe brazileira; a serenidade dos nossos heróes, a independencia e a firmeza dos nossos maiores, a probidade dos nossos estadistas; um livro vibrante, de que eu pudesse fazer resaltar a terra, o povo, a patria, n’um relevo tão grande, tão firme, tão illuminado, que a impressão da sua leitura fosse eterna; em que rumorejasse a floresta virgem na sua esmagadora solemnidade, em que as grandes aguas dos nossos rios gigantes, espelhassem o sol e os outros, entoando o – hosanna! Da natureza grandiosa.

Em que, das aguas e das selvas, surgissem e desfilassem ante a evocação dos pequenos brazileiros, os traços atrevidos dos bandeirantes lendarios, os negros altivos de Palmares, tamoyos, potiguaras e guaranys adustos, figuras de indias amorosas, Lyndoya, Paraguassú, Moema, iguaes em poesia á Francesca da Rimini, dos cabellos de ouro!

Pelejas nunca perdidas, rasgos de generosidade, iguaes pelo menos, aos maiores de qualquer povo da terra; a inconfidencia mineira; o rei desambicioso de Sam Paulo, a retirada da Laguna – rival da do historiador grego – e tantos e

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tantos esplendores patrios, até á abolição, a sciencia, a arte brazileira, e por fim, a Republica, a resplendente liberdade!

Sonhadas paginas, longinquo ideal, que eu pudesse encher com a rima ardente dos poetas, a palavra prophetica dos missionarios, de eterna projecção na nossa historia; o – avante – impetuoso e triumphal dos generaes e almirantes, a eloquencia fogosa dos tribunos brazileiros!

Um livro em que eu pudesse lançar golpes de luz, de gratidão e amor sobre a immensa tela do Brazil mas, entoando a gloria excelsa patria...como um passarinho que voeja por todo o jardim, e que tem o seu galho predilecto na roseira mais amiga e ahi desfere o canto, repousado, assim eu me prendesse mais detidamente ao meo Estado natal.

Era um livro assim, em que se cocretisasse a tradicção, a historia, o ensinamento civico e as aspirações patrias, que eu dedicaria, mais vibrante hausto da minha pobre vida, á terra riograndense, mãe de raça forte, tumulo de ossadas venerandas, berço de incomedido patriotismo.

Um livro que vivesse no rancho das margens do Uruguay e no palacio das plagas do Oceano; e que das suas paginas simples e sinceras, fulgisse nitida e vivaz, amorosa, exemplificadora e saudosa, a plaga dos pampas, o berço dos Farrapos, a

"Terra Gáucha!!!" O homem morre, as gerações se succedem, mas a Patria

fica e sobrevive e segue avante, e mais e sempre, librada na saudade dos que tombaram e na aspiração dos que surgem. E quando um povo desapparece, é tão grande o arquejar do seu ultimo suspiro, que ainda hoje, nos ambitos colossaes da grande historia, nós ouvimos com espanto o echo do fragor do desmoronamento dos phantasticos imperios de outras eras!

Pois bem: Quando, no fim dos tempos, no turbilhão desencadeado

das fatalidades, a nação, o povo brazileiro, tenha de anniquillar-se e perecer, seja nascido de ventre brazileiro, o ultimo filho, cidadão soldado, para lançar mão decidida do pavilhão auri-verde – sagrada

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imagem da patria quese afunda, e nelle envolto e nelle amortalhado, penetre os humbraes da eternidade, sem deixar ao vencedor mais que a lembrança apavorante de um povo que succumbe, mas não sobreviveo para o escarneo, nem a submissão.

Mas até lá, que a terra do Cruzeiro, no cenaculo da paz

universal, possa repetir e sustentar o hymno da plaga lusitana; que na tuba da fama, a vóz do passado resôe no futuro: que o verso camoneano, que foi epopea para Portugal, seja prophecia para o Brazil, sempre, quando e onde:

Cesse tudo o que a Musa antigua canta, Que outro valor, mais alto se alevanta!

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