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Simpósio Internacional sobre Interdisciplinaridade no Ensino, na Pesquisa e na Extensão Região Sul 1 HISTÓRIA AMBIENTAL E INTERDISCIPLINARIDADE NA ANÁLISE DE DESASTRES Marcos Aurélio Espíndola Pós-doutorando (PPGICH-UFSC) - [email protected] Eunice Sueli Nodari Professora (PPGH-UFSC) e do (PPGICH-UFSC) - [email protected] Alfredo Ricardo Silva Lopes Doutorando do (PPGH-UFSC) - [email protected] Eixo Temático: Conhecimento Interdisciplinar Este trabalho integra o Projeto Desastres Ambientais e Políticas Públicas em Santa Catarina nos séculos XIX, XX e início do XX 1 e propõe a analisar as questões interdisciplinares dentro do campo da História Ambiental para o estudo dos desastres socioambientais. A História Ambiental, que é interdisciplinar na sua essência, reconhece que formas vivas e não vivas do sistema terrestre, tem afetado os seres humanos. Também avalia os impactos e as mudanças causadas pelos agenciamentos humanos no mundo natural. Estes processos ocorrem há algum tempo e são mutuamente condicionados (HUGHES, 2001). A narrativa da História Ambiental leva em conta as mudanças nas sociedades humanas e como elas interferem nas mudanças no meio natural e como o meio natural condiciona a experiência humana. Desta maneira, promove a aproximação entre as ciências sociais e naturais, na medida em que tenta redefinir a investigação do passado humano vem retirando subsídios de diferentes disciplinas. O diálogo de diferentes áreas da ciência se mostra fundamental para os estudos ambientais, pois ela insere-se numa perspectiva interdisciplinar que implica na articulação de recortes analíticos e metodologias distintas, oriundas de diferentes disciplinas, na busca de constituição de entendimentos mais amplos dos temas nele propostos. As diversas disciplinas (História, Geografia, Antropologia, Filosofia, Sociologia e Psicologia Ambiental, entre outras) são necessárias para a compreensão da constituição cultural e histórica das relações da humanidade com a Natureza, em diferentes sociedades, sendo por isto que o campo que denominamos de História Ambiental torna-se interdisciplinar por excelência. Definem-se desastres ambientais como fenômenos ao mesmo tempo físicos e humanos, sob a perspectiva de que a Natureza hoje existente é resultado também da ingerência humana, que rompe uma 1 O Projeto tem a duração de dezembro de 2011 a agosto/2014 e está sob a Coordenação da professora Drª Eunice Sueli Nodari na Área de Concentração Sociedade e Meio Ambiente do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina (PPGICH-UFSC) com apoio financeiro da CAPES.

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Simpósio Internacional sobre Interdisciplinaridade no Ensino,

na Pesquisa e na Extensão – Região Sul

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HISTÓRIA AMBIENTAL E INTERDISCIPLINARIDADE NA ANÁLISE DE

DESASTRES

Marcos Aurélio Espíndola Pós-doutorando (PPGICH-UFSC) - [email protected]

Eunice Sueli Nodari Professora (PPGH-UFSC) e do (PPGICH-UFSC) - [email protected]

Alfredo Ricardo Silva Lopes Doutorando do (PPGH-UFSC) - [email protected]

Eixo Temático: Conhecimento Interdisciplinar

Este trabalho integra o Projeto Desastres Ambientais e Políticas Públicas em Santa Catarina nos

séculos XIX, XX e início do XX1 e propõe a analisar as questões interdisciplinares dentro do campo da

História Ambiental para o estudo dos desastres socioambientais.

A História Ambiental, que é interdisciplinar na sua essência, reconhece que formas vivas e não vivas

do sistema terrestre, tem afetado os seres humanos. Também avalia os impactos e as mudanças causadas

pelos agenciamentos humanos no mundo natural. Estes processos ocorrem há algum tempo e são

mutuamente condicionados (HUGHES, 2001). A narrativa da História Ambiental leva em conta as

mudanças nas sociedades humanas e como elas interferem nas mudanças no meio natural e como o meio

natural condiciona a experiência humana. Desta maneira, promove a aproximação entre as ciências sociais e

naturais, na medida em que tenta redefinir a investigação do passado humano vem retirando subsídios de

diferentes disciplinas.

O diálogo de diferentes áreas da ciência se mostra fundamental para os estudos ambientais, pois ela

insere-se numa perspectiva interdisciplinar que implica na articulação de recortes analíticos e metodologias

distintas, oriundas de diferentes disciplinas, na busca de constituição de entendimentos mais amplos dos

temas nele propostos. As diversas disciplinas (História, Geografia, Antropologia, Filosofia, Sociologia e

Psicologia Ambiental, entre outras) são necessárias para a compreensão da constituição cultural e histórica

das relações da humanidade com a Natureza, em diferentes sociedades, sendo por isto que o campo que

denominamos de História Ambiental torna-se interdisciplinar por excelência.

Definem-se desastres ambientais como fenômenos ao mesmo tempo físicos e humanos, sob a

perspectiva de que a Natureza hoje existente é resultado também da ingerência humana, que rompe uma

1 O Projeto tem a duração de dezembro de 2011 a agosto/2014 e está sob a Coordenação da professora Drª Eunice Sueli Nodari na Área de Concentração Sociedade e Meio Ambiente do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas da

Universidade Federal de Santa Catarina (PPGICH-UFSC) com apoio financeiro da CAPES.

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“normalidade” anterior estabelecida no tecido social, caracterizando a contraditória relação

Homem/Natureza. As discussões em relação aos processos de apropriação da Natureza na área das ciências

humanas somam-se, em grande parte, à ansiedade em relação aos problemas ambientais contemporâneos.

Existem estudos em diferentes áreas do conhecimento, sem a preocupação de uma visão interdisciplinar

onde o processo histórico não está presente nos estudos, dificultando o entendimento das ações, pois de

acordo com Worster:

Se optamos ou não por aprender com o passado, se escolhemos aprender ou ignorar esse

passado, o passado é nosso único instrutor. Nós não temos uma revelação nem uma

autoridade dos quais depender. Desse passado em constante mudança, e só dele, nós

devemos. De algum modo, tirar, com auxílio da razão imperfeita, o que nós valorizamos de devemos defender. (WORSTER. 2012, p. 384).

Em Santa Catarina, apesar dos inúmeros desastres ambientais que têm atingido o Estado, os desastres

são tratados como fenômenos independentes, onde as causas ambientais, sociais, econômicas, culturais e

políticas não são articuladas na compreensão dos eventos danosos. Assim, “a interdisciplinaridade surge

como uma necessidade prática de articulação dos conhecimentos; [...] constitui um dos efeitos ideológicos

mais importantes sobre o atual desenvolvimento das ciências, justamente por apresentar-se como

fundamento de uma articulação teórica” (LEFF, 2007, p. 37-38).

Interdisciplinaridade na história

A guinada interdisciplinar na História tem seu início na década de 1930, quando Lucien Febvre e

Marc Bloch, fundadores da Revista dos Annales d’Histoire Économique et Sociale, passaram a influenciar

toda uma geração de historiadores. Essa Nova História vinculada à política e a intelectualidade reivindicava

novas perspectivas para o campo histórico. Questões sociais e econômicas vinham à tona como palavra de

ordem a fim de orientar o percurso historiográfico francês, que ainda, abria-se às outras Ciências Sociais e

rompia os compartimentos especializados dos historiadores que trabalhavam com períodos ou temáticas

estanques (FONTANA, 2004, p. 267).

Entretanto não cabe aqui fornecer a ideia de uma irrupção nos estudos históricos, pois a primeira

geração do grupo da revista Annales, como ficou popularmente conhecida, traz consigo as transformações

sociais que o período impôs à História, além da herança da Geografia de Vidal de La Blache, da Sociologia

de Durkheim e dos historiadores Henri Berr e Henri Pirenne. Nesse momento na área das Ciências Humanas

as análises com enfoque estritamente político perdiam fôlego, já que eventos como a Grande Depressão e as

duas Grandes Guerras, por exemplo, não podiam ser explicados simplesmente através da política. “Os

Annales vão definir-se, em primeiro lugar, como hostis ao discurso e à análise políticos” propondo um

alargamento do campo da história, surgindo então: a natureza, a paisagem, a população e a demografia, os

costumes, dentre outros (DOSSE, 2003, p. 83).

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A Crise Ambiental

A crise ambiental presenciada depois da segunda metade do século XX transformou a percepção dos

seres humanos sobre a realidade do planeta, pois evidenciou a uma possível crise que não se relacionava

simplesmente a escassez ou fartura dentro das fronteiras políticas. Nas palavras do economista Enrique Leff,

a degradação ambiental irrompeu na cena política como sintoma de uma crise de civilização, marcada pelo

modelo de modernidade regido sobre o predomínio do conhecimento científico e da razão tecnológica sobre

a natureza. “A questão ambiental problematiza assim as próprias bases da produção: aponta para a

desconstrução do paradigma econômico da modernidade e a construção de uma racionalidade produtiva,

fundada nos limites das leis da natureza, assim como nas potencialidades ecológicas e na criatividade

humana” (LEFF, 2006, p. 136).

Esse processo se deu em virtude da excessiva objetivação da natureza na ordem econômica, que

produz seu reflexo deformado em todos os campos do conhecimento. Nesse caso, todo e qualquer estudo

sobre a realidade humana se estabelece em uma estrutura simbólica sem relação com a natureza. Segundo

Leff, “o ecologismo não se constitui apenas como um movimento de defesa da natureza, mas como uma

nova cosmovisão baseada na compreensão do mundo como um sistema de inter-relações entre as populações

humanas e seu entorno natural (LEFF, 2006, p. 78).

Os problemas estruturais que a crise ambiental, analisada por Leff, são fruto de uma “economização”

da sociedade, onde se espera que as forças invisíveis do mercado, com base na lei de oferta e procura,

atribua valor à natureza. Pois “o discurso do desenvolvimento sustentado colonizou a natureza, convertendo-

a em capital natural” (LEFF, 2006, p. 142). Entretanto, o mercado tem se mostrado incapaz de atribuir

valores econômicos à produtividade da natureza e aos serviços ambientais. Desta forma, a crise dos recursos

deslocou a natureza do campo de reflexão filosófica e da contemplação estética para reintegrá-la ao processo

econômico, processo que foi se desprendendo de suas bases materiais para ficar suspenso no circuito

abstrato dos valores e preços do mercado.

Ao apontar estratégias para lidar com a crise ambiental, o economista mexicano defende a

necessidade de interiorizar um saber ambiental emergente no corpo das ciências naturais e sociais.

Para construir um conhecimento capaz de integrar a multicausalidade e as relações de

interdependência dos processos da ordem natural e social que determinam, condicionam e

afetam as mudanças socioambientais, assim como para construir uma racionalidade produtiva fundada nos princípios do desenvolvimento sustentável (LEFF, 2006, p. 239).

Nesse sentido a racionalidade ambiental que orienta a construção da sustentabilidade implica um

encontro de racionalidades - de formas diferentes de pensar, de imaginar, de sentir, de significar e de dar

valor às coisas do mundo. Portanto, não é a expressão de uma lógica, mas sim um nó complexo, de

raciocínios e significados construídos por conjuntos de práticas sociais e culturais, heterogêneas e diversas

(LEFF, 2006, p. 250).

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A Emergência da História Ambiental

A História Ambiental surge no contexto dessa crise ambiental, pois nasce da necessidade de melhor

compreender a interação dos seres humanos com o meio ambiente. O historiador ambiental José Augusto

Pádua explica que as “vozes da rua”, ou seja, as demandas da sociedade foram basilares para o crescimento

da História Ambiental, pois no primeiro momento havia uma premissa moral que norteava o direcionamento

das pesquisas.

Apesar das pesquisas históricas se interessarem pelo ambiente desde o final do século XVIII, a

grande novidade das últimas décadas se deve à difusão na esfera política do emaranhado de ideias e

percepções sobre o mundo natural. Nesse cenário três ideias são fundamentais para as mudanças

epistemológicas que incidiram sobre os mais diversos campos científicos. A primeira faz referência à ação

humana e seu impacto no mundo natural, inclusive a ponto de provocar degradação ambiental; a segunda,

uma revolução nos marcos cronológicos de compreensão do mundo; e finalmente, a visão de natureza como

uma história, como um processo de construção e reconstrução ao longo do tempo (PÁDUA, 2013, p. 19).

A interdisciplinaridade aparece como característica essencial dessa nova forma de se fazer história,

como exemplo pode ser citadas as diretrizes que Donald Worster traz para o domínio do historiador

ambiental. A primeira diretriz lida com domínios das ciências naturais, pois trata da busca pelo

entendimento do funcionamento do meio analisado, nesse ponto Geologia, Hidrologia, Agronomia, Biologia

são colocadas para conversar a fim de compreender as dinâmicas do ambiente. O segundo nível de análise

diz respeito às relações socioeconômicas realizadas pelos seres humanos para produzir sua subsistência

naquele ambiente, Economia, Sociologia, e outros campos do conhecimento, são trazidos à baila para

melhor vislumbrar a complexa teia de relações dos seres humanos com o ambiente. O terceiro e último nível

é o palco das ideias, onde as concepções sobre a natureza são analisadas; aqui as ideias são vistas como

ferramentas utilizadas para interagir com o mundo natural, cada tipo de ideia gera um tipo de interação

diferente. Filosofia, Psicologia, Antropologia são algumas ciências que produzem metodologias eficazes

para o exame dessas ideias. Por fim, o historiador estadunidense destaca que o ponto teórico essencial se

encontra na combinação dos níveis para uma análise cada vez mais integral (WORSTER, 1991).

O desafio da História Ambiental está em, como a ciência social, inclui a historicidade dos processos

naturais na experiência das sociedades humanas no tempo.

Desastres Socioambientais

Os desastres de maneira geral têm sido estudados pela história na escala dos eventos únicos e

explicitamente naturais. O desafio da História ambiental ao direcionar seu trabalho para esta temática está

em perceber os desastres como processos socioambientais, ou seja, buscar compreender como, ao longo do

tempo, determinados grupos sociais através de sua interação com o ambiente produzem e/ou intensificam

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cenários de vulnerabilidade.

O historiador Christof Mauch destaca que o estudo dos desastres tem assumindo um papel

proeminente em diversas disciplinas. Sociólogos, antropólogos e psicólogos tem se focado nos efeitos

imediatos dos desastres em indivíduos e sociedades. Antropólogos e historiadores exploram as conexões

entre catástrofe e identidade, enquanto geólogos e climatologistas se concentram principalmente nas causas

naturais (MAUCH, 2012, p. 4).

Segundo o antropólogo estadunidense Anthony Oliver-Smith, os desastres tem sido fortemente

estudados pelas ciências sociais nas últimas sete décadas, durante este período múltiplos conceitos e focos

emergiram de variadas origens, cada um contribuindo de formas diferentes para o desenvolvimento dos

estudos, entretanto existe pouco consenso na definição de desastre. Em alguns casos, a falta de consenso tem

causado sérias preocupações levando em consideração a integridade do campo de pesquisa. Nessa

perspectiva, o autor enseja uma conceitualização do desastre e discute o desenvolvimento de uma política

ecológica do desastre (OLIVER-SMIYH, 1999).

Alguns elementos são centrais para categorização e compreensão dos desastres. No tocante à

variabilidade externa referem-se a uma larga gama de “objetos”, fenômenos tidos como naturais e

tecnológicos que geram ou desencadeiam tipos diferentes de impactos físicos. Enquadram-se nesse grupo,

desde desastres com impactos imediatos, como tornados, a desastres de contato prolongado como exposição

a toxinas.

Um dos pontos centrais para conceituação do desastre está em perceber sua variabilidade e

complexidade. Oliver-Smith enfatiza que a variabilidade refere-se à imensa gama de fenômenos de caráter

natural e tecnológico que geram “gatilhos” de desastres e produzem diferentes tipos de impactos físicos

(OLIVER-SMIYH, 1999, p. 20). Por si só a variabilidade das ocorrências de desastres já desafia o potencial

analítico dos pesquisadores que procuram estabelecer características comuns para o vasto conjunto de

eventos. A complexidade também está no centro da análise, em função dos desastres serem um ponto de

intersecção de diversos processos e eventos de natureza social, ambiental, cultural, política, econômica,

física e tecnológica. Nesta perspectiva, “os desastres são eventos totalizantes” (OLIVER-SMIYH, 1999, p.

20), pois neles se desenrolam todas as dimensões da formação da estrutura social. Não se pode esquecer que,

a complexidade também está envolvida numa multiplicidade de perspectivas que variam de acordo com os

indivíduos e grupos impactados ou participantes dos eventos ou processos.

Apesar da falta de consenso das diversas disciplinas que debruçam seus olhares sobre os desastres,

algumas balizas são salutares para o estabelecimento de parâmetros que facilitem o diálogo entres os

diversos campos da ciência. Desastres normalmente são rotulados como eventos não rotineiros,

desestabilizantes, causadores de incerteza, desordem e colapso sociocultural. Nessa lógica, são percebidos

como acontecimentos que produzem a disrupção da rotina vivida e dos sistemas de compreensão (OLIVER-

SMIYH, 1999, p. 23). Contudo, deve-se partir do pressuposto que alguns grupos estão cientes em habitar

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áreas denominadas “de risco”, isso não quer dizer que houve uma escolha pela área. Muito pelo contrário,

não raro, o estabelecimento em áreas de risco é fruto da segregação espacial, ou seja, a tácita aceitação da

“normalidade” pode produzir a ideia de disrupção, mas quando visualizada numa escala temporal distante do

acontecimento, põe por terra a ideia de segurança e ordem.

Apesar da unicidade e complexidade de cada acontecimento, os desastres devem ser analisados para

além da esfera de eventos únicos, para se perceber como a noção de normalidade é produzida dentro de um

ambiente continuamente afetado por desastres. A disrupção tem um papel fundamental para compreensão da

noção de normalidade, entretanto não deve ser o ponto focal para o entendimento do fenômeno desastre, em

razão dele não estar apenas inscrito numa curta duração. Outro ponto importante também reside em não

esperar que o evento demonstre uma sociedade que se transforma durante os momentos de calmaria/caos, o

desastre deve ser visto como mais um dos eventos produzidos pela sociedade na sua relação com o ambiente,

mesmo que em diversos momentos a maioria esmagadora dos indivíduos sequer lembre-se do desastre como

possível de ocorrer.

Formação sócio-espacial

Nesta perspectiva, pode-se observar que todo conhecimento ambiental é culturalmente constituído e

historicamente contingente. Reconhecer o conhecimento histórico como contingente ajuda a proteger o

historiador ambiental, ou qualquer historiador, contra os perigos das definições absolutas, das

descontextualizadas “leis” e “verdades”, as quais podem facilmente obscurecer a diversidade e sutileza da

cultura e do ambiente. No fim das contas, essa é mais uma lição sobre humildade, tolerância e autocrítica

para aqueles que produzem o conhecimento histórico.

As proposições do geógrafo brasileiro Milton Santos, concernentes a formação sócio-espacial e ao

dinamismo dos processos que incidem sobre o espaço são seminais para os estudos de História Ambiental. O

legado materialista, marcante no trabalho de Santos, contribui de forma interdisciplinar para uma percepção

dinâmica das transformações no espaço.

Em Espaço e Método (SANTOS, 1992) e A Natureza do Espaço (SANTOS, 2012) o autor externa

sua preocupação com o desenvolvimento metodológico da Geografia e explica que é uma dúvida frequente

dentro da disciplina a conceitualização do espaço, tal anseio deve levar em consideração fatores sociais e

naturais. Como ponto de partida propõe que o espaço seja definido como “um conjunto indissociável de

sistemas de objetos e sistemas de ações” (SANTOS, 2012, p. 21), ainda sugere que o espaço assim definido

seja considerado como um fator de evolução social, ou seja, uma instância da sociedade, assim como cultura,

economia.

A empreitada miltoniana, segundo Dias, caminha na “direção do difícil exercício do pensamento

crítico e reflexivo, no qual não há praticamente distinção entre termos teóricos e termos empíricos” (DIAS,

2007, p. 11). No caminho pela definição, Santos também se preocupa em tratar cronologicamente dos

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elementos constitutivos do espaço, explica que cada variável inserida no espaço muda de valor a cada

período histórico e, até mesmo, qualquer análise geográfica que seja, demanda um esforço de periodização,

“cada lugar tem um momento no processo produtivo” (SANTOS, 1992, p. 3). Entretanto a escolha das

variáveis que compõe a análise não pode ser aleatória, deve levar em conta o fenômeno estudado e sua

significação em um dado momento. Desta forma, suas ponderações mostram-se profícuas como ferramentas

interdisciplinares para o exercício da História Ambiental. O autor ainda explica que a maioria dos estudos

espaciais é deficiente em virtude de tenderem a representar situações atuais como se elas fossem resultado

das suas próprias condições no passado (SANTOS, 1992, p. 20). O que corrobora para o aumento da

responsabilidade metodológica dos historiadores ao tratar do espaço.

Nesse espaço como sistema de objetos e ações, Santos explica que “na medida em que função é ação,

a interação supõe interdependência funcional entre os elementos. Através da estreitada interação

recuperamos a totalidade social, isto é, o espaço como um todo e, igualmente, a sociedade como um todo”

(SANTOS, 1992, p. 7). A ânsia pela totalidade em Santos se explica na necessidade da divisão em partes do

espaço, para uma posterior reconstrução dessa totalidade examinada. Pois, a distinção entre os elementos de

um território é fundamental para compreensão dos encadeamentos de funções e ações destes elementos para

análise da lógica das dinâmicas que incidem sobre o espaço.

As especificidades do lugar oferecem subsídios para decifrar as ações e funções dos objetos nele

inseridos, pois “cada lugar atribui a cada elemento constituinte do espaço uma significação particular”

(SANTOS, 1992, p. 10), pela dinâmica dialética das relações com os elementos daquele lugar, “o valor de

uma variável não é a função dela própria, mas seu papel no interior de um conjunto. Quando este muda de

significação, de conteúdo, de regras ou leis também muda o valor de cada variável (SANTOS, 1992, p. 11).

No esforço de classificação dessas variáveis pelo ângulo da técnica e suas organizações, mostra-se

necessário considerar que cada lugar é marcado por uma combinação técnica, um nível de desenvolvimento

tecnológico, e um nível e estruturas de organização social usados para interagir com o espaço (SANTOS,

1992, p. 11). Nesse sentido, tanto a produção social dos desastres quanto as estratégias para mitigação desses

eventos estão relacionadas com tais condicionantes espaciais.

Santos ainda defende o valor particular de cada lugar em sua relação com as cadeias produtivas.

Cada lugar é marcado por uma combinação de técnica diferente e por um combinação diferente dos elementos do capital, que atribui a cada qual uma estrutura técnica própria. [...].

Como resultado cada lugar é uma combinação de diferentes modos de produção

particularmente ou modos de produção concretos (SANTOS, 1992, p. 13).

Qualquer análise geográfica ou histórica leva em consideração escalas. A primeira advoga em defesa

das espaciais e a segunda das cronológicas. O geógrafo brasileiro explica que até mesmo usando uma escala

global, o espaço se mostra como um sistemas de sistemas, ou seja, um sistema de estruturas, com base na

constatação de que as relações entre os elementos do espaço não são bilaterais, mas relações multivariáveis,

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onde as interações ente as partes são mediadas pelo todo. “Deste modo a noção de causa e efeito, que

permite a simplificação das relações entre os elementos é insuficiente para compreender e valorizar o

movimento do real” (SANTOS, 1992, p. 14). Explica ainda, que o simples nexo causal linear é ineficiente

para compreender a dinâmica espacial das variáveis em relação à sua função e ação no interior da totalidade.

A verdade é que, seja qual for a forma de ação, entre as variáveis ou dentro delas, não se

pode perder de vista o conjunto, o contexto. As ações entre as diversas variáveis estão subordinadas ao todo e aos seus movimentos. Se uma variável atua sobre outra, sobre um

conjunto delas ou, ainda, conhece uma evolução interna, isso se dá com pelo menos dois

resultados práticos, que são igualmente elementos constitutivos do método (SANTOS, 1992, p. 15).

Esses movimentos dialéticos de transformação do todo, arbitram novas interações sobre as partes,

que por sua vez se caracterizam como as relações dos elementos inseridos no espaço.

O movimento que estamos tentando explicitar nos leva a admitir que o espaço total, que

escapa a nossa apreensão empírica e vem ao nosso espírito sobretudo como conceito, é que constitui o real, enquanto as frações do espaço, que nos parecem tanto mais concretas quanto

menores é quem constituem o abstrato, na medida em que seu valor sistêmico não está na

coisa tal como a vimos, mas no seu valor relativo, dentro de um sistema mais amplo (SANTOS, 1992, p. 19).

O que se mantém latente na preocupação de Santos não é a sucessão dos elementos isolados, mas,

sim, dos sistemas. A formação de um espaço, ou seja, a acumulação de ações localizadas em diferentes

momentos se dá como um processo químico, onde “o que é formado extrai sua especificidade exatamente de

certo tipo de combinações posteriores, a sua continuidade é consequência de sua dependência de cada

combinação em relação às precedentes” (SANTOS, 1992, p. 23).

Apesar da fertilidade da adoção do conceito de espaço de Milton Santos para uma análise

interdisciplinar do processo de transformações que incidem sobre um determinado meio, há uma série de

implicações que devem ser esclarecidas. Não se trata de “disciplinarizar” conceitos importados de outras

disciplinas, mas para desígnios interdisciplinares se deve evitar um certo “contrabando”, fazendo as devidas

ressalvas tributárias, pois da mesma forma que a Geografia possui um movimento e momento

epistemológico, a História também.

Apesar da constante preocupação com as escalas temporais e espaciais, sua percepção está inscrita

em uma teleologia, onde cada lugar apesar de sua especificidade está inscrito em um quadro de “evolução

social”. Moreira, ao balizar a relação dos indivíduos com o espaço na obra miltoniana, destaca que a

interação entre homem e meio também pode ser traduzida na relação história/natureza, onde a história dos

seres humanos seria resultado da transformação acumulativa da natureza para promover a subsistência

humana (MOREIRA, 1982). As considerações de Moreira enfatizam um panorama estrutural, no qual a

primazia do econômico dita as regras da existência humana.

Cruz evidencia a hereditariedade materialista nos trabalhos de Santos e considera que o

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estruturalismo Althuseriano foi fundamental para construção do conceito de formação espacial, sua

contribuição consiste em uma visão mais sistematizada do conceito de modo de produção e sua relação com

o conceito de formação econômica e social.

A leitura de Louis Althusser da obra de Marx constitui uma explicação estruturalista do materialismo histórico e da dialética marxista. Para Althusser, o conceito de modo de

produção é a base para a compreensão da estruturação. Este processo pode ser utilizado para

explicar o movimento real do mundo social. A ideologia (super-estrutura) atua na

manifestação das aparências da sociedade e as reproduz como categorias em um discurso não examinado (CRUZ, 2003, p. 70).

Ainda que os trabalhos de Santos, apoiados no materialismo histórico da década de 1970, acusarem a

existência de uma forte noção de cadeias estruturais derivadas das proposições de Louis Althusser, a teoria

espacial de Milton Santos já apresenta uma percepção de ruptura e descontinuidades que lesa a proposta

metodológica de Althusser. Entretanto, o geógrafo brasileiro não abre mão da noção de totalidade, pois “tais

descontinuidades não implicam a ausência de inter-relação entre as diferentes formas espaciais” (SANTOS

apud CRUZ, 2003, p. 68). Como foi destacado anteriormente, é nesta ânsia por totalidade que está

legitimada a partilha as múltiplas divisões do espaço, para consequente reconstrução do todo.

A particularidade do lugar, ou seja, as especificidades das relações espaciais em cada território para

Santos ditam as premissas metodológicas. Neste caso, a relação com o objeto em Santos é bem semelhante à

relação do historiador inglês Edward P. Thompson. Embora estejam em disciplinas diferentes, destacam que

o primado metodológico no materialismo se dá na relação do objeto com o pesquisador, e não o contrário.

O presente trabalho se apropria das ponderações teórico-metodológicas do historiador inglês para

refutar a ideia de um materialismo estrutural e estruturado, no qual as relações entre os indivíduos e,

especialmente, as interações dos indivíduos e ambiente sejam amparadas num propósito imanente.

Em Miséria da Teoria, E. P. Thompson rechaça materialismo histórico de Althusser enfatizando o

seu caráter idealista, e por isso contrário a proposta desenvolvida por Marx e Engels. Thompson explica que

Althusser e os seus seguidores questionam o próprio materialismo, “não pretendem modificá-lo, mas

deslocá-lo, em troca oferecem um teorismo a-histórico que ao primeiro exame, revela-se um idealismo

(THOMPSON, 1981, p. 11). Estruturalismo marxista de Althusser, de forma geral, é uma teoria que não se

estrutura a partir do objeto, conforme elucida Thompson, o materialismo de Althusser se instala como uma

lógica auto-definidora, da mesma forma que a matemática, utiliza apenas a lógica e as ferramentas

concebidas dentro da própria disciplina (THOMPSON, 1981, p. 35).

O marxismo estruturalista do filósofo francês não leva em conta a possibilidade de rupturas e

descontinuidades, produzidas segundo Thompson pela agência humana. Thompson ainda explica que

Althusser se apropria da categoria “luta de classes” e concede a ela um valor atemporal, pois no planetário

de Althusser, a metáfora utilizada para explicar a movimentação da sociedade - a luta de classes - seria a

força que produz a movimentação deste universo. O historiador inglês explica que as categorias utilizadas e

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desenvolvidas pelo materialismo histórico devem considerar o contexto histórico em que são produzidas e

utilizadas, pois a história é a disciplina do contexto (THOMPSON, 1981, p. 49).

Conclusões

O espraiamento do capitalismo industrial e de mercado depois da década de 1970, disseminou pelo

globo um padrão de consumo que coloca em xeque em longo prazo a sustentabilidade humana no planeta. A

crise ambiental analisada por Enrique Leff trouxe novamente a natureza para o centro do debate político. A

necessidade de compreender como a crise se estruturou e quais as possíveis alternativas, impuseram aos

diversos campos do conhecimento a necessidade de “recalibrar” seus instrumentos de análise.

Entretanto, nenhum campo do conhecimento se mostrou capaz de encarar sozinho a tarefa de lidar

com essa crise de proporção planetária. A interdisciplinaridade emergiu como uma estratégia eficaz para o

diálogo em prol da disseminação do conhecimento sobre o meio ambiente.

Já os desastres são percebidos como socioambientais pelas suas diversas características e

consequências, contudo não são aqui compreendidos apenas como consequência da interação humana com o

ambiente, pois existem eventos que tem sua gênese exclusivamente natural. Neste caminho, a História

Ambiental tem muito a oferecer, pois tem como premissa fundamental a busca pela compreensão da

interação humana com o ambiente através do tempo.

A definição de espaço na obra de Milton Santos faz alusão a um dos pontos mais importantes para a

análise interdisciplinar nos estudos de desastres, a objetividade da matéria como ponto inicial da pesquisa,

ou seja, é a partir da realidade socioambiental do ambiente que as estratégias de compreensão são definidas,

nunca o contrário.

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