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i Alexander Maximilian Hilsenbeck Filho O MST no fio da navalha dilemas, desafios e potencialidades da luta de classes CAMPINAS 2013

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Hilsenbeck - o Mst No Fio Da Navalha

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    Alexander Maximilian Hilsenbeck Filho

    O MST no fio da navalha

    dilemas, desafios e potencialidades da luta de classes

    CAMPINAS

    2013

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    Alexander Maximilian Hilsenbeck Filho

    O MST no fio da navalha

    dilemas, desafios e potencialidades da luta de classes

    Orientadora: Isabel Maria Loureiro

    ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE VERSO FINAL DA TESE

    DEFENDIDA PELO ALEXANDER MAXIMILIAN HILSENBECK FILHO, E ORIENTADA PELA PROFA. DRA ISABEL MARIA

    LOUREIRO

    CAMPINAS

    2013

    Tese de Doutorado apresentada ao Instituto

    de Filosofia e Cincias Humanas, para

    obteno do Ttulo de Doutor em Cincia

    Poltica.

    Universidade Estadual de Campinas

    Instituto de Filosofia e Cincias Humanas

  • iv

  • v

  • vi

  • vii

    RESUMO: O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) formado no processo de

    redemocratizao nacional, junto com outras organizaes como o PT e a CUT constituiu-se ao

    longo de trs dcadas no principal movimento social do pas, e num dos mais relevantes do mundo,

    sendo referncia anticapitalista e de resistncia s polticas neoliberais na dcada de 1990. Nesse

    processo, o MST conseguiu se reinventar e equilibrar a dimenso pragmtica visando soluo dos

    problemas cotidianos de sua base com o objetivo de uma sociedade livre e igualitria, alicerado

    numa prtica de ao direta e de negociao. Contudo, com a chegada do PT ao governo federal e

    numa conjuntura de crescimento econmico, diminuio da desigualdade social e queda no

    desemprego, em que as polticas participativas (pblicas e privadas) ganham capilaridades nos mais

    distintos setores da esquerda, como tem se caracterizado a luta do MST, e que tendncias se podem

    observar? Diante de parcerias com empresas capitalistas transnacionais, gesto de recursos

    governamentais e dificuldade crescente em fazer ocupaes e conquistar novos assentamentos,

    constata-se que essa situao no pode ser compreendida apenas como resultado de alianas e

    composies de classes numa frente governista. No sendo a realidade uma figura monocromtica,

    a anlise das contradies do MST nos permite desvelar mecanismos prprios do capitalismo

    visando a assimilao das lutas sociais. A partir da anlise da literatura existente (nos meios

    acadmicos, militantes e empresariais), de pesquisas de campo e entrevistas, procuramos identificar

    alguns desafios enfrentados pelo MST na ltima dcada, desafios que colocam impasses no apenas

    ao Movimento Sem Terra, mas que so, em grande medida, generalizveis para o conjunto das

    foras antissistmicas.

    Palavras-chave: Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra; Movimentos sociais;

    Capitalismo; Polticas pblicas; Conflito Social.

    ABSTRACT The Landless Workers Movement (MST) formed in the process of national re-democratization in

    Brazil together with other organizations like PT and CUT became in the course of three decades

    the countrys main social movement and one of the most important in the world, as an example of

    an anti-capitalist movement opposed to neoliberal policies in the 1990s. In this process, MST has

    managed to reinvent itself and to balance its pragmatic dimension aimed at solving the everyday

    problems of its base with the goal of a free and equalitarian society, founded on the practice of

    direct action and negotiation. However, with PTs arrival at the federal government and in a context

    of economic growth, reduction of social inequality and declining unemployment, when

    participatory policies (public and private) gain currency in the most diverse sectors of the left, what

    characterizes MSTs struggle, and what tendencies can be observed? Considering MSTs

    partnerships with transnational corporations, the management of government resources, and

    increasing difficulty in making occupations and conquering new settlements, one concludes that this

    situation can not be understood simply as a result of alliances and class compositions in a

    government coalition. Insofar as reality is not monochromatic, the analysis of MSTs contradictions

    allows us to unveil capitalisms own mechanisms aimed at the assimilation of social struggles.

    From the analysis of the current (academic, activist and corporate) literature, of field researches and

    interviews, we sought to identify some of the challenges faced by MST in the last decade, that

    present dilemmas not only for that movement, but in general for all anti-systemic forces.

    Keywords: Social movement; Capitalism; Public policies; Social Conflict.

  • viii

  • ix

    SUMRIO

    1 PREMBULO......................................1

    1.1 Introduo............................................11

    2. REFORMA(S) AGRRIA(S) PARA QUE(M)?............15

    2.1 A questo da reforma agrria no Brasil................15

    2.2 Projetos de reforma agrria do MST....................23

    2.3 Reforma agrria atual.................................32

    2.4 Dualidade na agricultura brasileira e as polticas pblicas para a agricultura familiar.......................36

    2.5 Emancipao compulsria dos assentamentos.............46

    2.6 Agricultura Familiar..................................48

    2.7 Atualidades da questo (da reforma) agrria...........53

    3. NEO(NACIONAL)DESENVOLVIMENTISMO, NEOLIBERALISMO E BRASIL POTNCIA PARADOXOS DAS LUTAS SOCIAIS...61

    3.1 Governos, alianas, correlaes de foras e composio de classes.................................................66

    3.2 O velho MST e o novo Brasil...........................73

    (parntese geogrfico, ideolgico e poltico)..............74

    4. A CRISE E O MST (ou o MST dentro da Crise)....79 4.1 MST e Empresas........................................86

    4.2 Participao social..................................112

    4.3 Permanncias e continuidades: governos e conflitos agrrios..................................................127

    4.4 Relao PT-MST-PT...................................135

    4.5 Polticas pblicas, enfrentamento e recuperao......145

  • x

    4.6 Desenvolvimento das polticas de recuperao no Brasil....................................................155

    4.7 Tecnicizao da militncia...........................162

    4.8 Burocratizao e Movimentos Sociais: uma tendncia intrnseca?...............................................168

    4.9 Socialismo da Misria................................172

    5. A ESQUERDA QUE OCUPA A ESQUERDA: O DRAMA DO ASSENTAMENTO MILTON SANTOS.......................189

    5.1 Duas concepes de ao..............................200

    5.2 Ocupar a casa do homem.............................205

    6. ALGUMAS CONSIDERAES PARA UM DEBATE EM ABERTO...........................................221

    6.1 Ocupao como estratgia e como ttica...............225

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS.......................241

    APNDICE.........................................259

  • xi

    ... A todos e todas que mantm a dignidade seguindo o

    caminho do corao, isto , abaixo e esquerda, que no se

    vendem e no se rendem...

  • xii

  • xiii

    Agradecimentos

    verdadeiramente um prazer agradecer a todas as pessoas que contriburam

    acadmica, poltica e pessoalmente para a confeco dessas pginas. Mesclam-se e se

    embaralham muitas vezes essas trs dimenses. Os agradecimentos servem, tambm, para

    indicar alguns alicerces que sustentaram a tese, para alm das convices e valores de quem

    monograficamente a escreveu. E como todo trabalho monogrfico este coletivo.

    Puxando a memria pelos cabelos, tenho que iniciar agradecendo ao e-mail que

    recebi (em cima da hora verdade) indicando que ainda estavam abertas as inscries para

    o doutorado na Unicamp; agradecer ao motoboy que viajou com o envelope com a

    documentao e aos funcionrios que o receberam quase nos acrscimos do tempo; tambm

    agradeo a mirade de trabalhadores, funcionrios e professores, que contriburam

    fundamentalmente com minha formao, bem como agradeo aos discentes que tive o

    desafio e o prazer de lecionar nessa jornada.

    Deixo registrada a importncia dos debates junto aos companheiros do coletivo

    poltico de comunicao Passa Palavra, aos grupos acadmicos e polticos NEILS, ACySE,

    GENeo e CEMARX.

    Sou grato s lutas travadas e a todos os companheiros de peleja, que me

    ensinaram que todos os dias so de luta, quer saibamos disso ou no, e que mais saboroso

    no se prender apenas ao estudo de livros de receitas, mas conjuntamente cozinhar. Esses

    so dias que fazem brotar a paixo e a esperana. Agradeo, notadamente, companheirada

    do MST e do Assentamento Milton Santos, bem como aos lutadores que foram se somando

    nesse caminhar.

    Aos amores-amigos-famlia que suportaram ausncias e presenas, por vezes

    efusivas, por outras angustiadas, e que se mostraram uma slida ponte na qual pude

    transitar temas e vivncias.

    Isabel Loureiro, que alm da pacincia excepcional, ofertou reconfortante

    carinho.

    Igualmente agradeo banca, de qualificao e defesa, pela leitura sincera e

    atenta, pelo debate franco e fraterno e pela gentileza em outorgar a titulao.

    Titulao que, se por um lado no me permitir o exerccio da advocacia ou da

    medicina, por outro lado possibilitar a abertura de novos horizontes, de janelas a

    vislumbrar e novas portas a atravessar.

    Tambm agradeo fora e ao afago de todos os que estiveram presentes

    mesmo que no fisicamente antes, durante e aps a defesa, o que inclui as

    confraternizaes que seguiram e seguem...

    ... foi e continua sendo um prazer compartilhar no espao e no tempo essa

    existncia com todos vocs.

    Muito obrigado, mesmo.

  • xiv

  • xv

    A resposta certa no importa nada: o essencial

    que as perguntas estejam

    certas. Mrio Quintana

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  • 1

    1. PREMBULO

    A ordem reina em Varsvia, a ordem reina em Paris, a ordem reina em Berlim. A cada meio sculo os guardies da ordem obtm os comunicados vitoriosos dos holocaustos das guerras e conflitos mundiais.

    Esses vencedores exultantes so incapazes de perceber que uma ordem que necessita ser mantida periodicamente custa de sangrentas

    hecatombes inelutavalmente caminha para seu destino histrico, sua

    perdio. [...] A ordem reina em Berlim! Esbirros estpidos! Vossa ordem um castelo de areia. Amanh a revoluo se levantar de novo clamorosamente, e para espanto vosso proclamar: era, sou e serei!

    Rosa Luxemburgo

    A paisagem poltica mundial passou por modificaes importantes entre o final

    da dcada de 1960 e os princpios dos anos 1990, o que se refletiu nas formas de

    interpretao desta realidade, bem como nos modos de interveno nela. As resistncias

    contra determinados efeitos dos regimes capitalistas receberam novos impulsos, sobretudo

    na esteira das agitaes de 1968, reconfigurando espaos polticos e temticas das lutas

    sociais. O contexto histrico mundial das dcadas de 1960-1980 revelou a emergncia de

    novas formas de ao coletiva e diversificao de lutas sociais. Estas corresponderiam ao

    ciclo batizado por Wallerstein (1996) como revoluo de 68, no qual a burguesia

    reestruturou o modo de acumulao e reproduo capitalista, desmantelando as fbricas

    tradicionais baseadas no modelo de gesto fordista e taylorista como forma de organizao

    do trabalho. Considerando que a crise ou avano do sistema capitalista est estreitamente

    vinculado s lutas da classe trabalhadora, o neoliberalismo, assim, aparece como uma

    contraofensiva do sistema s lutas desenvolvidas desde a dcada de 1960 (ZIBECHI, 2012).

    O bloco socialista da Europa oriental e a Unio Sovitica desintegraram-se, e na Amrica

    Latina as guerrilhas foram gradualmente depondo suas armas. Os partidos radicais de

    esquerda, notadamente os comunistas, que agregavam os setores mais consistentemente

    militantes do movimento operrio foram perdendo relevncia quantitativa e qualitativa. As

    culturas polticas das lutas sociais relegavam ao ostracismo certos temas e objetivos, como

    a superao do capitalismo, ao mesmo tempo em que ostentavam novos, tais como a

    transparncia e prestao de contas dos governos democrticos. Na Amrica Latina, e

    especialmente no Brasil, a luta contra as ditaduras civil-militares e a redemocratizao

    introduziam novos temas nas agendas polticas. Os espaos das alternativas radicais, ainda

    que imaginados, estreitaram-se profundamente.

  • 2

    No campo terico, isto significou uma perda de fora importante das anlises

    centradas numa perspectiva de totalidade e nos conflitos entre classes, para a

    predominncia de interpretaes situadas nas identidades e nos indivduos, em estudos

    lingusticos, tnicos e culturais. Na Cincia Poltica, ganhou fora a conceitualizao da

    novidade nos movimentos sociais, suas contribuies para a normatividade da democracia

    parlamentar, sendo simblica, desta viragem, a literatura que procurava fundamentar a

    falncia de todo projeto de transformao e no apenas de reformas do atual sistema

    mundial.

    Os estudos sobre essa nova situao se intensificaram com o final da ditadura.

    As anlises buscavam compreender (no apenas no Brasil) o surgimento desses novos

    movimentos (GOHN, 2000; KOWARICK, 1987). A hegemonia de um tipo de conflito

    centralizado no movimento operrio, com reivindicaes econmicas e trabalhistas, teria,

    supostamente, dado lugar a variadas e fragmentrias formas de luta, orbitando em torno de

    temas como identidade, diferena, cidadania, meio-ambiente (MELUCCI, 2001),

    reconhecimento (HONNETH, 2003). Esses temas, acompanhados de modos de luta

    prprios, como as comunidades reivindicantes, organizaes no-governamentais sociais,

    polticas e culturais especficas (GOHN, 2000), entre outras, podem, inclusive, configurar

    movimentos que agrupem mais de uma categoria reivindicativa, como de gnero e de raa,

    caracterizando coletividades ambivalentes (FRAZER, 2001) que sofrem injustias

    socioeconmicas e falta de reconhecimento. A partir da dcada de 1980, ganhou fora a

    perspectiva terica de classificar os movimentos sociais por sua reivindicao de identidade

    e pluralidade de formas de ao/reivindicao coletivas (EVERS, 1984). Com a ampliao

    das dimenses da luta poltica, os conflitos no se restringiriam mais a atingir o processo

    produtivo em sentido estrito (tampouco o Estado), mas estariam se apropriando do tempo,

    do espao, das relaes, do si-mesmo dos indivduos (MELUCCI, 2001).

    As consequncias aparentemente mais marcantes dessa mudana de orientao

    dos conflitos talvez tenham sido a transio de uma perspectiva de totalidade, alicerada

    nas relaes capital x trabalho, com um projeto sociopoltico de transformao estrutural da

    sociedade capitalista, para movimentos que se inscrevem nos marcos de polticas

    focalizadas e reivindicativas, no inscritas diretamente nas (quando no situadas fora das)

    relaes de produo do sistema capitalista (GOHN, 2000). Essas transformaes se

  • 3

    refletiriam na fragmentao dos atores sociais, na perda da coeso e identidade de classe e

    da capacidade organizativa de suas instituies tradicionais de representao, como o

    partido poltico e o sindicato. No entanto, outras interpretaes (BERNARDO, 2009a;

    ZIBECHI, 2008), iro assinalar que o surgimento dos movimentos sociais se d como

    resposta dos dominados ao processo de transformao do capitalismo, deslocando o eixo da

    contestao do local de trabalho para o territrio, dado o processo de debilidade das

    organizaes tradicionais da classe trabalhadora e das suas formas correspondentes de

    conflitos terem sido, de certo modo, neutralizadas. Nesse sentido, nos anos 1970, os

    movimentos sociais e suas prticas mais autnomas teriam conseguido se generalizar para

    alm de setores minoritrios e herticos para, ento, modificar a forma e o repertrio dos

    conflitos e da luta poltica.

    nesse contexto poltico, e nesse caldo terico, que se situa o objeto do

    presente estudo: o principal movimento social de camponeses brasileiros sem terra (para

    no dizer o principal movimento social brasileiro de todos os tempos), o MST, formado em

    1984, junto a outras organizaes sociais (notadamente no campo sindical a Central nica

    dos Trabalhadores, e no poltico eleitoral o Partido dos Trabalhadores). Essas organizaes

    foram herdeiras de uma concepo de esquerda dominante nas dcadas de 1950 e 1960,

    baseada na anlise de que o capitalismo brasileiro era dependente dos pases do capitalismo

    central, e que, para superar tal situao, tornava-se fundamental completar o processo de

    desenvolvimento nacional, realizando as tarefas em atraso, tpicas do que se convencionou

    denominar revoluo burguesa clssica1. Para tal estratgia construiu-se o Projeto

    Democrtico Popular, tendo por perspectiva no longo prazo a construo do socialismo, e

    assim, valendo-se do acmulo de foras, a via eleitoral seria uma das arenas de disputa. O

    1 Em tempos nos quais certas ideias do passado so requentadas para serem novamente consumidas no

    presente, numa falsa repetio da histria, convm lembrar alguns ensinamentos. O capitalismo brasileiro no

    levou em conta a teorizao de esquerda e desenvolveu-se com os setores (incluindo o latifndio) que, nas

    formulaes dominantes na esquerda, deveriam constituir-se como entraves. Florestan Fernandes, na dcada

    de 1970, nadando a contracorrente, no supunha aes progressistas por parte da burguesia nacional. Ele

    identificava que os tempos da revoluo democrtico-nacional haviam passado (mas deixado em atraso as

    tarefas democrticas do ciclo burgus) e sido substitudos pelo tempo da acelerao do desenvolvimento

    econmico e aprofundamento dos mecanismos de poder mundial do capitalismo. Assim, estaramos na poca

    das revolues proletrias (ainda que nos elos dbeis do capitalismo) (FERNANDES, 1978; 1981). Tais concepes iro influenciar a formao do PT, da CUT e do MST, que, ao invs do antigo ciclo da revoluo

    democrtico-nacional, adotariam a tarefa de uma revoluo democrtico-popular, forjada na aliana entre

    setores em contradio com a lgica do capital e fundamentada nos trabalhadores urbanos e rurais.

  • 4

    regime civil-militar aparecia, ento, como inimigo comum a ser enfrentado pelas

    organizaes progressistas e de massa, fazendo com que toda luta de caractersticas

    populares e/ou democrticas fosse, por isso, contraposta ordem estabelecida.

    Em dada medida, os objetivos desse projeto foram bem-sucedidos: neste

    processo importantes conquistas foram alcanadas, espaos democrticos e de participao

    forjados, o campo institucional ampliado. O PT, enquanto polo aglutinador, transformou-se

    em governo (inicialmente em mbito municipal e estadual e posteriormente em nvel

    federal). O MST e a CUT, que organizaram e desenvolveram diversas lutas, consolidaram-

    se enquanto interlocutores polticos relevantes e legtimos, tendo tambm presena e

    influncia nos rgos governamentais e na constituio de polticas pblicas.

    Nosso intuito neste trabalho a partir do resgate da memria da histria de luta

    e da anlise das inevitveis contradies de praticamente trs dcadas de existncia do

    MST compreender seu atual momento que, para personagens esquerda e direita do

    movimento, e inclusive de dentro do prprio MST, vive um perodo de crise, de perda de

    influncia e relevncia como fora social autnoma. Num quadro mais amplo, esperamos

    que a apreenso dos elementos especficos do MST possa trazer contribuies para a

    anlise das lutas sociais, em sua forma de movimento, numa contemporaneidade marcada

    no pelo contexto mais direto e imediato de pura represso, mas pelo corolrio da

    participao (ou ainda, pela juno destes dois atributos).

    Nossa hiptese que o processo de redemocratizao nacional e de participao

    institucional dos movimentos sociais (elementos ampliados quando levados adiante por

    governos oriundos do campo da esquerda) trazem novos elementos e contradies s lutas

    sociais. Estas, ao mesmo tempo em que so fruto das modificaes do campo poltico

    institucional, o remodelam, influenciando-o e sendo por ele influenciadas. No caso

    especfico de nosso objeto, e no atual momento de acumulao do capital em pas de

    capitalismo dependente e de fragmentao das classes dominadas, isso significa um

    processo de crise poltica e ideolgica do MST. Nesse sentido, duas perguntas

    interconectadas nortearam nossa anlise, que crise? e refutando a hiptese de que a

    vitria do capital sobre o trabalho seja definitiva como sair dela?.

    Partimos do pressuposto de que as lutas dos trabalhadores podem (o que no

    significa que o faam) gerar espaos e formas de sociabilidade antagnicas s dominantes,

  • 5

    isto , no baseadas no individualismo, na opresso, na explorao e dominao do ser

    humano, como imperam nas relaes sociais no capitalismo. Tais tendncias, ainda que no

    efetivem nenhuma mudana revolucionria, no sentido de mudana estrutural radical num

    curto espao de tempo, so importantes como espaos de porvir, de criao de algo novo,

    de novas formas polticas e relaes sociais2. Essa novidade tambm se reflete no campo

    das ideias pois estas, no existindo sem uma base social prpria, decorrem de um quadro

    social j existente ou em possibilidades materiais concretas de existir. As sociabilidades

    emergentes se do nas formas de luta, e so elas mesmas formas de luta, criadas e

    amadurecidas no cotidiano dos movimentos e dos conflitos, o que no significa que sejam

    generalizveis para toda a sociedade. Curiosamente, o exemplo maior utilizado por distintas

    correntes de esquerda tem sido uma experincia com durao de setenta e dois dias, a

    Comuna de Paris. Por que ento ignorar outras experincias, mais ou menos efmeras, mais

    ou menos contundentes?

    Assim sendo, um dos objetivos secundrios desta tese ser a busca de relaes

    de novo tipo, sociabilidades anticapitalistas ou antissistmicas nas prticas e experincias

    de luta do MST, no cotidiano de ocupaes, acampamentos e assentamentos. O movimento

    estaria contribuindo para gerar outra cultura poltica? Em caso afirmativo, qual e de que

    forma? Em que sentido poltico apontam as tendncias atuais do Movimento? Partimos,

    assim, de uma primeira caracterizao que no consensual entre os analistas do MST, a de

    que ele defende ou melhor, que setores dentro do movimento sustentam um projeto com

    vistas construo de uma sociedade no capitalista. Essa perspectiva pode ser encontrada

    j nos primrdios do MST, quando, em janeiro de 1984, no seu I Encontro Nacional,

    aprovou dentre os princpios gerais os de Lutar pela reforma agrria j e Lutar por uma

    sociedade igualitria, acabando com o capitalismo (MST, 1984)3, mas tambm est

    2 Alain Badiou (2012) observou que alguns eventos, como a Comuna de Paris e a Revoluo Cultural chinesa,

    fizeram aparecer no mundo o que no existia nele um dia antes. Neste sentido, buscamos observar o que as

    lutas travadas no cotidiano da territorialidade dos movimentos sociais podem trazer de novo em termos

    emancipatrios, e que formas se utilizam para isso.

    3 Grifo nosso. Este tema tambm aparece, entre outros documentos e declaraes, nos objetivos do seu 3

    Congresso Nacional: Difundir os valores humanistas e socialistas nas relaes sociais (MST, 1995). No Caderno de Educao n 8, elaborado pelo coletivo nacional do setor de educao do MST em 1996, entre os

    princpios filosficos encontramos uma definio mais acabada desses valores humanistas e socialistas nas

    relaes sociais: Estamos chamando de valores humanistas e socialistas aqueles valores, ento, que colocam no centro dos processos de transformao a pessoa humana e sua liberdade, mas no como indivduo isolado e

    sim como ser de relaes sociais que visem a produo e a apropriao coletiva dos bens materiais e

  • 6

    presente numa srie de simbologias do Movimento, bem como no anseio de muitos

    militantes e no discurso de vrios dirigentes.

    Para tal anlise, teremos que articular o aspecto de participao institucional do

    movimento com sua luta pelo socialismo. Como se conjuga a reivindicao anticapitalista

    e autnoma do movimento com a integrao a um governo capitalista? possvel tal

    realizao de modo que no se caia numa contradio que estagna e sufoca um dos polos?

    De modo mais claro, quais so as tendncias, no MST, de ruptura com o capitalismo? Ou

    ser que estes elementos de ruptura no existiam? Ou no existem mais?

    Ao tratarmos de movimentos sociais, cabe ainda aclarar de que forma

    utilizamos este conceito. Mesmo que a temtica dos movimentos sociais seja uma rea

    clssica de estudo das Cincias Sociais, constituindo-se, numa de suas primeiras

    preocupaes enquanto mobilizaes na sociedade4, faz-se pertinente a observao de

    Maria da Glria Gohn (2000)5, para quem no existe na literatura especializada uma teoria

    sobre movimentos sociais, mas vrias.

    Neste trabalho adotamos uma conceitualizao para movimento social mais

    restrita e antissistmica, isto , como uma forma especialmente crtica e ousada de ativismo

    social6. Entendemos os movimentos sociais como os que promovem aes de rebeldia

    social, subverso da ordem, ruptura com o cotidiano, e tentativa organizada de grupos de

    superar o contexto de represso e alienao coletivas, quase sempre numa tentativa de

    articular questes particulares com objetivos mais gerais7. Desse modo, os movimentos so

    espirituais da humanidade, a justia na distribuio destes bens e a igualdade na participao de todos nestes

    processos (MST, 1996).

    4 Scherer-Warren (1987, p. 12), afirma que na sociologia acadmica o termo movimento social surgiu com

    Lorenz von Stein, por volta de 1840, quando este defende a necessidade de uma cincia da sociedade que se

    dedicasse ao estudo dos movimentos sociais, tais como o movimento proletrio francs e o do comunismo e

    socialismo emergentes.

    5 (...) poucos autores se dedicaram a definir ou a conceituar o que entendem por movimentos sociais [...]

    [eles] tm sido tratados da mesma forma, alm da no-diferenciao entre movimentos propriamente ditos,

    lutas, protestos, revoltas, revolues, quebra-quebras, insurreies e outras formas de aes coletivas (...) uma

    teoria consistente para explicar os movimentos sociais latino-americanos est ainda por se construir. O que

    temos so esboos explicativos (GOHN, 2000, p. 13-18).

    6 Sabemos que esta circunscrio contm limites para a anlise, mas acreditamos que para os objetivos que

    nortearam esta pesquisa foi prefervel correr o risco em vez de adotarmos conceitualizaes extremamente

    genricas e abstratas. Para uma discusso sobre formas de ativismo social e o papel de movimento social, ver

    (SOUZA, 2006).

    7 Ainda que o tipo de transformao social, se de carter mais reformista ou revolucionrio, possa ser

    colocado em questo no consideramos os movimentos antecipadamente como revolucionrios ou no ,

  • 7

    campo de luta, mobilizaes coletivas que trabalham com uma cultura instituda (e que

    tambm podem criar uma nova cultura poltica), e em que a direo tomada depende,

    tambm, da correlao de foras atuantes no interior dos prprios movimentos sociais.

    Neste cenrio, defendemos a ideia de que a novidade expressa na

    configurao dos novos movimentos sociais deve ser pensada em termos de

    continuidade-ruptura, que se apresenta em diversas faces, desde seus ideais e objetivos at

    as formas organizativas, reivindicativas e programticas.

    Definir o MST a partir de um dos paradigmas dos movimentos sociais pode

    levar a um certo reducionismo da realidade8. De acordo com Michel Lwy, o MST pode ser

    caracterizado por (...) um misto espantoso de religiosidade popular, revolta camponesa

    arcaica e organizao moderna, na luta radical pela reforma agrria e, em longo prazo, por

    uma sociedade sem classes (LWY, 2001, p. 12).

    Os movimentos sociais atuam em mais de uma direo e clivagem, atualizando

    a dialtica entre reforma e revoluo. O MST, por exemplo, utiliza um repertrio amplo de

    aes e demandas, no se limitando apenas a uma delas (ainda que a questo da terra seja

    obviamente central). sintomtico da multiplicidade de temas abrangidos pela luta dos

    Sem Terra a igual variedade de anlises produzidas sobre ele9, que do um exemplo da

    estas caractersticas so construdas a partir das prticas sociais e das relaes que vo sendo elaboradas,

    tampouco sendo algo fixo e linear. Discordamos, portanto, de anlises que classificam toda forma de ao

    coletiva como movimento social, quer sejam conservadores, revolucionrios, ambos ou nenhum (CASTELLS,

    2000). Consideramos essas definies de pouco valor analtico, na medida em que tal abrangncia conceitual

    seria capaz de abarcar uma infinitude de mobilizaes na sociedade, inclusive de carter antagnico.

    Tampouco podemos defini-los por escolas ou paradigmas, como neoinstitucionalistas, marxistas, anarquistas

    etc., pois isso so formas de compreenso do fenmeno, no o fenmeno em si. Os movimentos no se

    mobilizam por serem marxistas ou neoinstitucionalistas, mas podem ser neoinstitucionalistas ou marxistas por

    se organizarem dessa ou daquela forma, ter determinados objetivos e dada leitura da realidade. Tambm

    entendemos que insuficiente classific-los a partir somente da posio que os seus membros ocupam no

    processo produtivo, ainda que esse seja um elemento muito importante, pois num mesmo movimento social

    podem existir diversas fraes da classe trabalhadora: camponeses, desempregados urbanos, trabalhadores

    rurais, indgenas, pessoas oriundas das classes mdias, universitrios etc., conformando-o efetivamente. E o simples pertencimento estrutural no parece ser capaz de definir suas potencialidades e limites a priori, sendo

    fundamental a tomada de conscincia a partir da experincia vivida de classe, sobretudo no terreno frtil para

    seu florescimento, nas lutas (THOMPSON, 2001).

    8 (...) fica difcil definir em qual categoria o MST se encaixa, pois ao mesmo tempo em que ele tem tradio

    marxista, com lderes carismticos, elementos que envolvem fatores psicossociais da tradio clssica, como a

    mstica, os smbolos, a memria, tem materializado na sua prtica um jeito sui generis de mobilizar os

    trabalhadores em torno de mudanas pontuais na sociedade com base em categorias como identidade e

    valorizao da cultura, prprias dos NMS [Novos Movimentos Sociais] (SANTOS, 2013, p. 297).

    9 Passando pela dimenso pedaggica (NETO, 1999; CALDART, 1986; BAUER, 2009); as relaes de

    gnero (RUA; ABRAMOVAY, 2000; GONALVES, 2005; 2009; FURLIN, 2009); o espao socioterritorial

  • 8

    pluralidade de temas e formas de conceitualizar e abordar os impactos produzidos pelo

    MST.

    Versamos sobre os movimentos sociais, nesta tese, no apenas pela tica da

    questo social, de suas misrias e carncias, como movimentos sem, mas tambm numa

    perspectiva poltica fundante, de transformao de aspectos estruturantes da sociedade, no

    restrita ao campo eleitoral. Por isso, abordamos o MST como uma forma organizativa

    desenvolvida por um conjunto da classe trabalhadora, que no prprio processo de fazer-se,

    deu vazo aos limites das formas sindicais, que tinham por norte uma classe trabalhadora

    masculina, estvel e com direitos. O MST desenvolve outros mecanismos que permitem a

    integrao mais ampla dessa classe, incorporando a famlia e setores instveis de trabalho

    informal, mais prximos da nova morfologia do trabalho. Contudo, o MST tambm no

    escapa das formas clssicas de organizao da classe, como a prpria forma sindical e a

    forma partido10. Isso faz com que o Movimento tenha grande capacidade de reinventar-se

    e disponha de mltiplo repertrio de aes. Mas, igualmente, faz com que herde

    particularidades e limites das formas organizativas tradicionais, como no conseguir

    dilogo mais unitrio entre diversos setores e divises da classe, e uma verticalidade que

    asfixia a crtica interna. Entretanto, cabe uma obviedade que, contudo, merece ser repetida:

    todo processo social ambguo, e a mesma realidade que cria a tese cria a sua anttese.

    Esta hibridizao do MST faz com que o Movimento v alm da atualizao do

    repertrio reivindicativo que busca sadas para o desemprego no meio rural, lutando por

    uma poltica de democratizao do campo brasileiro e pela transformao radical da

    estrutura social do pas. Desta forma, ele transcende a classificao como um movimento

    social temtico e diversifica o leque de formas de protesto social, atuando em variadas

    frentes em parceria com distintos setores e produzindo impactos mltiplos na configurao

    da sociedade brasileira.

    (FERNANDES, 1996); os impasses na luta pela terra (LERRER, 2003); as relaes raciais (FERNANDES et

    al., 2007; SOUZA, 2009; VILLAS BOAS, 2011); os meios de comunicao (GOHN, 2000b); a produo da

    memria (BORGES, 2010; MORISSAWA, 2001); seus impactos na democratizao nacional (CARTER

    2006; 2010); anlises comparativas dos processos de resistncia ao neoliberalismo (MACHADO, 2004);

    relatos de sua luta (BRANFORD; ROCHA, 2004); a utilizao da mstica (VARGAS, 2008); a produo

    cultural (VILLAS BOAS, 2006; HILSENBECK FILHO, 2012); entre outras obras.

    10 No caso do MST ter caractersticas da forma partido, entendido como partido de organizao da classe,

    Cf.: ALIAGA, 2008. Em sua dissertao Luciana Aliaga enfoca o momento essencialmente poltico do MST

    e ressalta as suas novas experincias no campo da organizao poltica das classes subalternas do campo.

  • 9

    ********

    Esta pesquisa passou tambm ela por diversos dilemas e encruzilhadas.

    Inicialmente pensava-se em articular uma anlise que conjugasse a luta popular no mbito

    urbano (tendo por objeto alguns movimentos piqueteros argentinos), indgena (atravs do

    zapatismo mexicano j anteriormente analisado na graduao e no mestrado), e rural (via

    MST). Apesar das vrias advertncias, desde a poca da banca de seleo na Unicamp, de

    que poderia ser uma tarefa demasiado extensa e herclea, insistimos nesse projeto at a

    qualificao. Momento no qual, dada a complexidade no apenas do prprio MST, como

    tambm do momento histrico especfico e dos dilemas enfrentados pelo Movimento na

    atual conjuntura nacional, optamos (com a devida contribuio dos professores Paulo

    Arantes e Andria Galvo) por nos centrar apenas na investigao do MST.

    Outro elemento que contribuiu categoricamente para tal deciso foi o

    envolvimento poltico e pessoal em assentamentos e acampamentos do MST, vivenciando

    seus dilemas e potencialidades numa prtica que, inevitavelmente, reverberou na

    constituio terica e analtica deste trabalho. Isto no significa um enviesamento da

    pesquisa, que tampouco pretende uma assptica e impossvel neutralidade. Contudo, esta

    postura tem implicaes metodolgicas, na medida em que a conquistada relao de

    amizade e cumplicidade construda ao longo dos anos, em situaes de convvio as mais

    variadas indo de festividades s resistncias contra despejos, de ocupaes de terras s

    longas conversas com refeies preparadas no lento fogo a lenha permitiu ambientes de

    grande informalidade e tambm de confiana mtua em relao a temas pouco explicitados

    publicamente. Assim, nos valemos das intervenes, tanto como pesquisador que trazia

    reflexes que podiam ser discutidas coletivamente junto a assentados, bem como de aes

    polticas nas quais dissonncias e aproximaes podiam ser percebidas e apreendidas,

    problematizando uma relao sujeito-objeto a partir de uma preocupao com a

    potencialidade dos conhecimentos alternativos e da ao coletiva. Esperamos que tal

    envolvimento profundo com os atores sociais, e as permutas recprocas (com integrantes e

    com crticos do MST), tenham nos possibilitado uma viso menos chapada e ideologizada,

    que reflita parte da amplitude de cores que envolvem as lutas sociais na atualidade.

    Cabe ainda registrar um fato pouco lembrado na construo de uma tese de

    doutoramento. Apesar de sua inquestionvel importncia, ela somente um elemento a

  • 10

    mais do que forma um doutorado, competindo com outros fatores, como a prtica da

    docncia, a participao em grupos de pesquisa, o conhecimento de novas teorias, o

    aprofundamento de autores e temas, as paixes, as iluses e desiluses construdas, gerando

    um amadurecimento terico e pessoal.

    Uma das dificuldades em se realizar uma pesquisa sobre a esquerda, quando

    nos situamos nesse campo poltico, evitar que a pura subjetividade interfira no processo

    de anlise, ou seja, que a nossa vontade se sobreponha prpria realidade. Os resultados

    desta pesquisa no foram decididos antes do seu incio, pelo contrrio, seus passos foram

    nos levando por caminhos imprevisveis. Solues binrias, ideias simples e anlises

    monodimensionais so mais sedutoras. Porm, apesar da (falsa) sensao de segurana,

    pouco auxiliam na compreenso de uma realidade complexa, com problemas atravessados

    por contradies e foras em conflito.

    Deixando de lado o conforto de dogmas que levam esterilidade da

    interpretao poltica, buscamos seguir o caminho da abertura de um debate que seja capaz

    de auxiliar a compreender a situao vivenciada hoje pelo maior movimento social

    brasileiro, e, atravs dele, a compreender os dilemas que na atualidade parecem atingir (de

    modo mais ou menos contundente) a quase totalidade da esquerda. Neste caminho,

    procuramos no ser irresponsveis, o que significa no desvelar questes de cunho ttico,

    zelar pela segurana dos que nos forneceram informaes, manter constantemente a

    preocupao com o possvel uso do que apresentamos, mas tambm, e de modo igualmente

    importante, significa no sermos ingnuos em relao censura que argumenta que as

    informaes desagradveis sobre fatos concretos devem ser silenciadas internamente. J

    sabemos aonde essa histria nos levou e a inteno aqui no repeti-la, mas super-la11

    .

    A unio entre centralismo democrtico (ainda muito presente na esquerda),

    moral e culpa religiosa acaba por produzir a paralisia da crtica. Junte-se a isso um processo

    11

    Realizar crticas a questes da esquerda no deveria se confundir com uma crtica esquerda em geral (nem

    mesmo a todo um movimento em particular). Diante da existncia de campos de concentrao na URSS,

    muitos intelectuais e militantes de esquerda preferiram o silncio, porque queriam acreditar que a denncia

    pblica seria fazer o jogo do imperialismo estadunidense e do capitalismo. Portanto, esses fatos deveriam ser

    discutidos em privado, afirmavam os defensores desta perspectiva. A indignao era, ento, remetida aos que

    denunciavam publicamente a existncia dos campos de concentrao e no aos campos de concentrao em

    si. As lutas no so a propriedade de um dirigente, de um partido ou um movimento. Se este tipo de

    chantagem revivido porque as condies materiais de sua reproduo permanecem vivas.

  • 11

    de massiva produo literria e pouco crtica dos rumos do MST. Como nos disse uma ex-

    dirigente: Quem era liderana na dcada de 1990 caiu num deslumbramento, nunca fomos

    to elogiados e aplaudidos e passamos a acreditar no que escreviam sobre ns, sem fazer

    um processo de autocrtica dos nossos passos.

    Esta tese foi escrita no calor de um tempo histrico repleto de enorme

    quantidade de mudanas, num momento em que as ruas sussurravam ou gritavam, e exigiu

    a disposio de abandonar e repensar premissas profundamente arraigadas e aceitar

    desencantamentos. No foram poucas as vezes em que sentimos o ato da escrita como algo

    doloroso. Dialeticamente, a perda de iluses em conjunto com o chamado das ruas permitiu

    o aflorar de uma convico que no poderia mais ser arrancada. Esta tese no teve por

    intuito retratar o quo gloriosas so as lutas e seus sujeitos. Antes de tudo uma tese sobre

    o presente, isto , uma tese sobre a nossa derrota at aqui. Mas tambm sobre uma

    histria incompleta e aberta, e, por isso, uma tese que visa ao futuro. Em vez de nos

    paralisarmos nos mitos, optamos por nos embrenhar em labirintos e becos sem sada, na

    busca de desvendar ambiguidades e contradies, para, assim, auxiliar no processo coletivo

    de formulao de perguntas que permitam o no tardar do nascimento do novo.

    *******

    1.1 Introduo

    Aps um prembulo mais explicativo sobre algumas caractersticas e

    porqus desta tese, optamos por fugir um pouco do convencional resumo preliminar dos

    captulos e apresent-los a partir dos questionamos levantados. A linha condutora comum a

    todos eles procurou ser pr em causa certos lugares comuns no pensamento corrente de

    esquerda, com a inteno de contribuir em questes que se apresentam normalmente como

    dualidades.

    A comear pela questo da reforma agrria como algo intrinsecamente

    progressista ou revolucionrio. Quais tm sido os argumentos para a realizao (ou no) de

    uma reforma agrria no Brasil? Seguiria o modelo clssico adotado por outros pases?

    Manteria a sua pertinncia na atualidade? Caso sim, a sua configurao seria a mesma?

    Seria uma bandeira unvoca da esquerda? Como avanou essa discusso no interior do

    prprio MST? E quais as implicaes da realizao da reforma agrria? De que modo o

  • 12

    governo tem tratado a agricultura (tanto a patronal quanto a camponesa e a familiar)?

    E que tendncias podem-se observar a partir das polticas governamentais?

    Dada a pertinncia do Estado e dos governos na definio dos rumos das lutas,

    no terceiro captulo tentamos caracterizar um pouco os entendimentos do pas (com ou sem

    sufixos) nesta ltima dcada de governos oriundos de partidos trabalhistas. Ps-neoliberal?

    Neoliberal? Desenvolvimentista? Neo-desenvolvimentista? A compreenso dessas

    definies ir implicar determinadas condues polticas, assim como determinadas

    condues polticas iro definir o tipo de compreenso desses governos. Quais as

    correlaes de fora? Que alianas e composies de classes? Como a velha (ou nova)

    esquerda entende esse novo (ou velho) pas?

    No quarto captulo dispomos acerca de uma possvel crise do MST nessa nova

    conjuntura e interpelamos parcerias e convenincias. A relao do Movimento Sem Terra

    com empresas do capitalismo transnacional seguiria uma linha nica de confronto e crtica?

    Ou tambm seria permeada por trilhas paralelas de negociao, acordos e transaes?

    Haveria um entendimento geral sobre monocultura, trabalho precarizado, insero no

    (super)mercado? Como se tem dado a insero do MST nas polticas pblicas de

    participao social? De que modo os distintos governos no pas redemocratizado tm

    desenvolvido as polticas para reforma agrria e como essas se ligam com a participao do

    Movimento e a continuidade do conflito agrrio? Mais especificamente, qual a relao

    prtica do MST com o PT-governo? Como surgiram e que formas assumiram as polticas

    pblicas de participao no pas, e o impacto delas nas formas de conflito (inclusive no

    interior dos movimentos)? Qual o efeito, para os movimentos sociais, das polticas de

    redistribuio de renda para as camadas mais pauperizadas da sociedade?

    No quinto captulo fugimos do protocolo e abrimos uma exceo para discutir

    um caso concreto que envolveu a luta de um assentamento para permanecer assentamento.

    Procuramos compreender que tipos de relaes se desenvolveram no tringulo que envolvia

    a luta desse assentamento, o MST e o governo.

    Ah, cabe apenas mais uma advertncia: no se priorizaram as respostas a estas

    questes. Assim, encerramos com algumas consideraes para deixar em aberto diversos

    questionamentos.

  • 13

    Ainda inclumos um apndice para uma caracterizao mais detalhada da

    formao e desenvolvimento do MST. Optamos por no inserir esta parte no corpo do texto

    propriamente dito, por ponderar ser mais proveitosa a leitura direta dos temas candentes,

    considerando o amplo conhecimento da banca, e mesmo do leitor mdio, sobre o tema.

    Ainda assim, nos pareceu importante deixar registradas as informaes sistematizadas

    sobre o MST, para que os que se aventuram nas caractersticas e definies do Movimento

    possam ter alm de uma interpretao sobre ele (o que pode dizer muito sobre o tipo de

    questes que suscitamos), tambm uma fonte de referncias para o aprofundamento de

    leituras e pesquisas. Tambm procuramos diluir a metodologia e as referncias tericas

    utilizadas no corpo das discusses, no intuito de evitar um trao comum em teses que

    separar a explicao terica e metodolgica da anlise e desenvolvimento do objeto.

  • 14

  • 15

    2. REFORMA(S) AGRRIA(S) PARA QUE(M)?

    Pensava que ns seguamos caminhos j feitos, mas parece que no os h. O nosso ir faz o caminho.

    C. S. Lewis

    2.1 A questo da reforma agrria no Brasil

    O Brasil atual, contradizendo dcadas de cartilhas militantes, tem demonstrado

    que a modernizao do campo pode ocorrer sem a implantao da reforma agrria, pois

    efetua um tipo de insero na economia em que unifica modelos arcaicos e modernos12

    .

    Esta questo deve ser colocada em seu contexto histrico concreto, longe de corresponder a

    um trajeto mecnico de modelos clssicos, que reproduziria automaticamente os

    resultados desses modelos13

    . Neste sentido, convm problematizar a funo da reforma

    12

    De acordo com notcia publicada no Valor Econmico em 11 de Julho de 2012, um levantamento realizado

    pela OCDE estabeleceu que a produtividade da agricultura brasileira cresceu o dobro da mdia mundial na ultima dcada, ou cerca de 4% ao ano. O crescimento da produtividade brasileira passou de 0,9% ao ano, em mdia, entre 1961 e 1970, para 4,04% entre 2001 e 2009. Para efeitos de comparao, a Rssia e Ucrnia, que saram de nveis baixssimos, conseguiram altas de 4,29% e 5,35% ao ano, respectivamente, na

    ltima dcada. Porm, no caso dos EUA, um dos maiores produtores mundiais, o ganho mdio de produtividade aumentou de 1,21% para 2,26% ao ano na ltima dcada. Cf.: Brasil destaque da OCDE sobre produtividade. Clipping Planejamento, 11 jul. 2012. Disponvel em:

    . Alm do mais, numa srie de artigos, publicados em outubro de 2012, a revista Exame

    (2012), confirma uma tendncia de aumento da produtividade na agricultura nacional. Um dos raros setores do Brasil que tm conseguido romper a barreira da inrcia na produtividade a agricultura. Resultado do

    melhoramento gentico de sementes e da adoo de mquinas no campo, uma parte da agricultura nacional

    deu um salto de eficincia. Nas ltimas quatro dcadas, a produtividade agrcola tem avanado, em mdia, 3%

    ao ano. O melhor exemplo dessa transformao ocorreu nas lavouras de soja (...) Em 2011, o Brasil alcanou

    o topo da produtividade mundial de soja. Os dados da importncia do setor agrcola para a economia nacional, fruto de dcadas de pesquisa de agncias como a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuria

    (Embrapa) e de institutos universitrios como a Esalq-USP, foram, tambm, fruto de editorial do jornal Folha

    de S. Paulo, em 03/12/2012. Outro documento interessante para anlise o Atlas do Espao Rural Brasileiro,

    publicao do IBGE que integra os dados do Censo Agropecurio 2006, o processo de modernizao da

    agropecuria vive uma transformao de um momento de grande mecanizao para um de maior investimento

    em capital intelectual: Cf.: Censo Agropecurio 2006, IBGE. Disponvel em:

    . E, o governo, atravs da agncia de inovao (Finep) e do BNDES lanou em 2013 um programa (Inova) no

    valor de R$ 3 bilhes para financiar empresas do setor agropecurio, abrangendo trs linhas temticas:

    insumos, processamento e mquinas e equipamentos: Cf.: Programa d apoio de R$ 3 bi agropecuria.

    Folha de S. Paulo, 29 mail 2013. Disponvel em:

    .

    13 Um exemplo dessa complexidade apontada por um ex-militante do MST, para quem a modernizao

    produtiva no campo foi, mesmo que indiretamente, resultado das lutas sociais. A minha impresso que no auge de nossa radicalidade a gente criou as condies para o desenvolvimento do capitalismo no campo, a

    burguesia por conta prpria no chegava a esse patamar de organizao da produo, sem as tenses que

    existiam no campo. A nossa radicalidade forou que eles resolvessem um problema que eles no resolveriam

  • 16

    agrria no Brasil contemporneo, que tipos de reforma agrria so propostos e por quem,

    quais os projetos defendidos pelos movimentos populares rurais, qual o peso no

    desenvolvimento econmico e social e o que sua ausncia revela. Em outras palavras,

    preciso distinguir projetos direcionados exclusivamente para as estruturas econmicas dos

    que so voltados para mudanas mais amplas, que envolvam a renovao da composio

    das classes dominantes, ou a superao da prpria diviso de classes. Em suma, o que se

    quer dizer com reforma agrria? Uma mobilizao de massas com aspectos radicais e

    igualitrios, possibilitando servir como laboratrio de novas formas de sociabilidade ou

    qualquer tipo de mudana relativamente profunda da sociedade rural? Sua natureza

    capitalista, socialista, reformista-desenvolvimentista, revolucionria? A diviso entre

    reforma e revoluo seria to demarcada? E, se for uma reforma, que tipo de reforma14

    ?

    Como se configura a questo da reforma agrria no Brasil contemporneo? Como projeto

    popular e progressista ela permanece inalterada, tal qual dcadas passadas? Quais os

    entraves atuais para sua realizao? Ela ainda faz parte da agenda antissistmica e

    anticapitalista de transformao social?

    A reforma agrria no um termo unvoco; ao contrrio, um conceito bastante

    controverso, podendo ser analisado enquanto uma questo de ordem econmica, poltica,

    ideolgica, social. Portanto, devemos compreend-la como um processo (contraditrio) de

    transformao das relaes sociais (relaes de produo e poder) e seu carter

    revolucionrio, radical, progressista, capitalista definido pela correlao das foras

    polticas.

    Considerando as posies defendidas nos congressos do Partido Comunista

    Brasileiro (PCB) e as aes governamentais, a percepo da existncia de uma questo

    por conta prpria. O nosso grande questionamento para a reforma agrria era a produtividade, o fato de ter

    latifndios improdutivos no Brasil. (...) Se no existisse os enfrentamentos que a gente travou, talvez, a

    formao das indstrias no campo no estaria no estgio de desenvolvimento que est. Porque usina sempre

    existiu, isso fato, mas no a integrao dela ao processo cientfico, com formas de explorao de trabalho e

    as estruturas que possui (ALBUQUERQUE, 2012).

    14 Mnica Dias Martins (2004, p. 61) demonstra que A reforma agrria no necessariamente radical. A

    administrao Kennedy e a Aliana para o Progresso pressionaram os governos latino-americanos a

    empreender programas de reforma agrria. No Brasil, durante a presidncia de Joo Goulart (1962-1964),

    ocorreram grandes mobilizaes pela reforma agrria, tida como um elemento-chave para democratizar a

    estrutura social do pas. No perodo da ditadura (1964-1985), os militares a consideraram uma questo de

    segurana nacional, estratgica para o desenvolvimento capitalista. E, ainda, a reforma agrria foi utilizada

    como uma poltica estatal para restringir as lutas por terra. Mas ela tambm teve importante papel nas

    mudanas estruturais em pases como Mxico, Cuba, Chile, Nicargua e Peru, entre outros.

  • 17

    agrria no Brasil consolidou-se na dcada de 1950 (ainda que a reflexo sobre a questo

    agrria seja bem anterior)15

    . A centralizao da terra como propriedade de alguns

    latifundirios seria o principal motivo da misria econmica, social e poltica da grande

    maioria da populao nacional, na poca, em 1940, com cerca de 70% residente no campo.

    Mas essa situao no era restrita ao meio rural, pois, a misria imposta no campo, que

    exclua grande parte da populao do mercado, acabava por bloquear tambm o

    desenvolvimento da industrializao, fazendo com que o latifndio fosse alado a agente do

    atraso do desenvolvimento brasileiro16

    .

    As lutas camponesas, diante desse quadro, obtiveram visibilidade e apoio de

    grupos diversos, como partidos e sindicatos, mas tambm a oposio de grupos

    tradicionais, sendo a questo da reforma agrria um dos motivos sustentados para o golpe

    civil-militar. Em 1964 a reforma agrria j se constitua como pauta poltica nacional e o

    governo do general Castelo Branco criou o Estatuto da Terra, a primeira lei de reforma

    agrria. Independentemente de a reforma agrria no ter sido realizada, ela se tornou o

    fundamento das mobilizaes rurais.

    Nos anos 1970 ganha fora o argumento de que o peso da pequena produo era

    estratgico para o desenvolvimento capitalista, na medida em que ofertava alimentos a

    baixos preos. Na dcada seguinte esta tese ser questionada por argumentos de que o

    problema alimentar nacional no teria relao direta com a questo agrria, convertendo-se

    mais num problema de renda, sendo que a pequena produo adquiriria um peso econmico

    15

    Por parte da burguesia local, vem pelo menos desde os debates do Baro de Mau com seus pares aristocratas do Senado quanto vocao do Brasil, se agrria ou industrial. Este debate segue nos anos 1930 com os corporativistas Roberto Simonsen e congneres e Octvio Brando como voz isolada no PCB. De todo o modo, embora estivesse colocada desde muito antes, foi a partir do fim da Segunda Guerra

    Mundial, em especial com o avano da industrializao, que a questo agrria passou a ter mais peso. (PASSA PALAVRA, 2012).

    16 Conferir, entre outras, as obras de Nelson Werneck Sodr (1964) e Alberto Passos Guimares (s/d).

    relevante tambm considerar a observao de Horcio Carvalho (2013, p. 130-131), de que nas diferentes

    proposies estratgicas sobre a questo agrria, seja popular ou burguesa (salvo pontuais excees), (...) o campesinato, na sua enorme diversidade, foi considerado a expresso do atraso tecnolgico, cultural e

    poltico, portanto, com potencial antirrevolucionrio. E, alm dele, foram desconsiderados, como sendo

    irrelevantes para as mudanas capitalistas pretendidas no campo, os extrativistas, os povos indgenas, os

    quilombolas e o protagonismo das mulheres.

  • 18

    cada vez menor, bem como a agricultura iria perdendo importncia no desenvolvimento do

    pas (ABRAMOVAY, 2013)17

    .

    Jos de Souza Martins (1984) ir defender que o entrave circulao e

    reproduo do capital na agricultura foi removido pelos incentivos fiscais, e no pela

    realizao de uma reforma agrria, diferenciando-se, assim, e invertendo o modelo clssico

    da relao entre terra e capital. O empresrio pagava por terras ilcitas, fruto de grilagem, e

    recebia como compensao, sob a forma de incentivo fiscal, o capital necessrio para tornar

    a terra produtiva, reforando, com isso, o sistema oligrquico. Nesse modelo o capital

    transforma-se tambm em proprietrio da terra. A ditadura gestou o casamento em uma s

    figura entre latifundirios e capitalistas. Essa perspectiva, de desenvolvimento do modo

    capitalista de produo brasileiro alicerado num processo contraditrio e combinado,

    questiona o pressuposto de que a burguesia e o capital teriam uma misso revolucionria

    em face da questo agrria. O desenvolvimento imporia relaes especificamente

    capitalistas (como o trabalho assalariado), mas igual e contraditoriamente, mantendo

    relaes camponesas de produo, sendo ambas necessrias para a sua lgica de

    desenvolvimento.

    Antes de prosseguirmos na exposio das posies deste debate, convm

    explicitar a leitura de Cndido Grzybowski (2013, p. 346-347), datada de 1991, sobre a

    relao entre modernizao e excluso social:

    Os problemas vividos pela maioria da populao rural, em

    particular os trabalhadores assalariados, os camponeses e as suas

    famlias, por trs das variadas formas de sua integrao, explorao

    e marginalizao, que aprofundam a desigualdade, no so devidos

    falta de desenvolvimento, mas, ao contrrio, ao sucesso do modelo modernizador.

    Modernizao que, por certo, no criou a desigualdade e a excluso no meio

    rural, mas serviu como processo de sua reproduo ampliada. E a resistncia a esse

    processo o que vislumbramos com a ao dos movimentos populares rurais. Alis, a

    relao entre desenvolvimento e conflito agrrio inerente contradio estrutural do

    17

    Para uma perspectiva contempornea de defesa das Ocupaes rurais no agrcolas (Orna) e de uma

    reforma agrria que impulsione novas formas de atividades no meio rural, como o ecoturismo, em que h uma

    relao profunda entre o rural e o urbano que lhe contguo, cf.: Graziano da Silva (2013).

  • 19

    capitalismo, ocorrendo, de forma paradoxal, concomitantemente (FERNANDES, 2013a, p.

    174).

    O debate contemporneo sobre reforma agrria no Brasil divide-se basicamente

    em dois polos antagnicos. Por um lado, h os que compreendem que a reforma agrria no

    seja mais necessria, pois a modernizao tecnolgica da agricultura e o aumento da

    produtividade a tornaria cada vez mais desnecessria; o xodo rural levaria ao

    desaparecimento da classe camponesa; o problema da improdutividade da terra estaria

    sendo resolvido pela converso dos latifndios em empresas do agronegcio (para as quais

    no caberia limitao de tamanho); alm do mais, a poltica de assentamentos da reforma

    agrria no teria sido bem sucedida, pois teriam se tornado favelas rurais. Os que

    defendem a obsolescncia da reforma agrria apostam na simbiose entre a agricultura

    familiar e as fazendas do agronegcio (NAVARRO, 2002; 2003)18

    .

    Por outro lado, os que defendem a reforma agrria, contra-argumentam que

    grande parte dos latifndios no perduraria sem os volumosos subsdios pblicos e que a

    precariedade de muitos assentamentos decorrncia da (falta de) poltica governamental, e

    de sua constituio em reas longe do acesso a servios pblicos e a mercados locais. Dos

    assentamentos criados entre 1995 e 2001, cerca de metade no possua energia eltrica e

    gua potvel, em quase 1/3 no havia escola de nvel fundamental e em mais de 60% no

    havia assistncia mdica emergencial. Ainda assim, apenas 12% dos lotes agrcolas haviam

    sido abandonados (CARTER, 2009). Esta situao no uma singularidade brasileira. De

    acordo com dados da CEPAL h uma relao na Amrica Latina entre pobreza e mundo

    rural, sendo que as cidades concentram 26% da populao em situao de pobreza,

    enquanto no campo a porcentagem chega a 56% (TRASPADINI, 2012).

    Outro argumento dos defensores da reforma agrria que ela integra uma

    poltica eficaz contra a secular injustia social do Brasil, pois conseguiria diminuir a

    desigualdade social. O agronegcio19

    no seria uma alternativa, porque no to eficiente

    18

    Em editorial, o jornal O Globo decreta a reforma agrria como desnecessria, dado o avano do capitalismo

    no campo, que teria acabado com o latifndio improdutivo e, de quebra, com a ajuda da agricultura familiar,

    estaria recolhendo uma bandeira ideolgica da esquerda. Cf.: A cada vez mais desnecessria reforma agrria.

    O Globo, 03 fev. 2013. Disponvel em: < http://oglobo.globo.com/opiniao/a-cada-vez-mais-desnecessaria-

    reforma-agraria-7470663>.

    19 O processo de construo da imagem do agronegcio oculta seu carter concentrador, predador,

    expropriatrio e excludente para dar relevncia somente ao carter produtivista, destacando o aumento da

    produo, da riqueza e das novas tecnologias. Todavia, a questo estrutural permanece. Do trabalho escravo

  • 20

    quanto divulgam, sendo prova disso o fato de o governo continuar a utilizar os ndices de

    produtividade do Censo Agropecurio de 1975, e no norte do pas a improdutividade da

    terra no foi superada, a exemplo de outras regies. Mantm-se a acumulao no campo

    pela forma de espoliao de terras, conjugando-a com a explorao do trabalho.

    Alm disso, baseando-se no Censo Agropecurio de 2006, demonstram que a

    maior parte dos alimentos consumidos no Brasil produto da agricultura familiar:

    mandioca (92%), carne de frango e ovos (88%), banana (85%), feijo (78%), batatas (77%),

    caf (70%) e leite (71%) (CARTER, 2009) 20

    . Para muitos de seus defensores, a reforma

    agrria tambm teria que ser considerada pelos seus ganhos no manejo ecolgico, que seria

    prprio da agricultura familiar, em contraposio ao agronegcio, marcado pela forte

    dependncia de defensivos qumicos, pela monocultura e pela criao de gado21

    . Afirmam

    tambm que este tipo de produo agrcola apresenta maior produtividade por hectare (em

    terras de menor qualidade) do que as fazendas de grande escala, gerando ainda um maior

    nmero de empregos no campo (87%) e de forma mais barata (OLIVEIRA, 2004). Por

    outro lado, Joo Bernardo (2011) chama a ateno para o fato de que os dados referentes ao

    colheitadeira controlada por satlite, o processo de explorao e dominao est presente, a concentrao da

    propriedade da terra se intensifica e a destruio do campesinato aumenta (...) qualquer que seja o eufemismo

    utilizado, no pode esconder o que est na sua raiz, na sua lgica: a concentrao e a explorao (FERNANDES, 2013a, p. 216)

    20 A agricultura familiar abordada a partir de caractersticas especficas a depender do recorte do

    pesquisador, podendo ser analisada a partir de seu peso econmico, da importncia dos aspectos sociolgicos,

    ressaltando as relaes sociais dessa forma de produo, ou, por exemplo, com enfoque a partir de um ponto

    de vista antropolgico. Para alguns crticos desta perspectiva, o que fruto de uma derrota seria apresentado

    como uma conquista, pois as estatsticas do Censo Agropecurio de 2006 demonstrariam a reproduo do

    mesmo sistema que combatido na estrutura agropecuria nacional (em que a produo de subsistncia se d

    a reboque dos sistemas de grandes plantaes de monocultura). A agricultura familiar no teria condies de

    avanar em setores onde o agronegcio e a monocultura domina (e considerando, ainda, arrendamentos e

    meaes), pois exigiria economias de escala impossveis para a agricultura familiar alcanar (PASSA

    PALAVRA, 2012).

    21 Alguns argumentos crticos em relao produtividade da agricultura familiar procuram sustentar que: Por

    um lado, as culturas intensivas so sempre mais produtivas por hectare do que as culturas extensivas. Por rea

    plantada, as hortas e os pomares so sempre mais produtivos do que os campos de cereais, da o papel que

    desempenham na produo de alguns alimentos. A comparao da produtividade por hectare deve ser feita,

    por isso, entre a cultura intensiva em exploraes familiares tradicionais e a cultura intensiva em exploraes

    capitalistas modernas e usando novas tecnologias. Por outro lado, quando afirmam que a agricultura familiar

    gera um maior nmero de empregos no campo, os defensores desta modalidade de Reforma Agrria esto

    implicitamente dizendo que esse tipo de explorao muito menos produtivo em termos de fora de trabalho.

    E quando acrescentam que os empregos so gerados de forma mais barata na agricultura familiar do que no

    agronegcio, os defensores daquela modalidade de Reforma Agrria esto implicitamente reconhecendo que o

    sistema de trabalho domstico constitui uma forma gravosa de auto-explorao (PASSA PALAVRA, 2012b).

  • 21

    emprego de um maior nmero de mo-de-obra a um custo inferior indicariam que a

    agricultura familiar se assenta num sistema de mais-valia absoluta, de sobre-explorao,

    pois no contabiliza o tempo de trabalho como custo, o que prprio das economias

    domsticas.

    necessrio considerar que o Brasil passou por mudanas fundamentais na sua

    distribuio populacional, invertendo a relao entre o rural e o urbano. Se em 1940 havia a

    predominncia da populao residindo no meio rural, em quatro dcadas essa proporo se

    inverteu, e em 1980 a populao urbana j era de aproximadamente 68%, contra 32% da

    rural. Essa tendncia se aprofundou e, de acordo com o Censo de 2010, a populao

    residente na rea rural inferior a 16%; continuando nessa perspectiva, estimativas

    preveem que a taxa de urbanizao no Brasil deva chegar a 90% at 2020 (ONU-

    HABITAT, 2012). Mas, ainda de acordo com o Censo de 2010, temos que considerar que a

    concentrao urbana no significa necessariamente a reduo da agropecuria22

    . A maioria

    dos municpios possui economia diretamente ligada produo agropecuria ou ao

    extrativismo, fazendo com que, embora a maior parte da populao viva nas cidades, quase

    metade dela ainda esteja ligada agropecuria ou a servios relacionados. Sendo assim,

    embora hoje mais de 80% da populao brasileira resida em cidades, pode dizer-se que

    quase metade da populao brasileira vive da agropecuria ou de servios a ela

    relacionados.

    Uma das maiores consequncias da reforma agrria, segundo a quase

    generalidade de seus defensores, seria a de modificar a dinmica de crescimento das

    periferias e favelas nos centros urbanos, atravs da conteno do xodo rural. Um dos

    argumentos subjacentes a esta perspectiva que, com o fortalecimento dos pequenos

    municpios e com a conteno do xodo rural, ocorreria a diminuio da pobreza, dos

    ndices de criminalidade e da violncia. Ora, esta tese encontra paralelo na de que esses

    fatores so gerados pela classe trabalhadora precarizada: O problema do aumento da

    violncia urbana, gerada pelo desemprego, levou a sociedade brasileira, de modo geral, a

    apoiar a luta dos sem-terra pela reforma agrria, na esperana de fixar o homem no campo,

    22

    Dos 5.565 municpios brasileiros somente 284 (5,1% do total) ultrapassaram os 100 mil habitantes, e sua

    populao somada chegava a 105.626.953 pessoas (54,91% do total). Os 5.279 municpios restantes (94,86%

    do total) esto abaixo dos 100 mil habitantes, e sua populao somada era de 86.649.231 pessoas (45,04% da

    populao brasileira total).

  • 22

    diminuir a pobreza nas cidades, e diminuir aquela violncia (GOHN, 2000, p. 305). Assim

    se repe, uma vez mais, outra diviso no seio da prpria classe trabalhadora, pretendendo

    que os mais pobres so os mais perigosos. Nas teorias segundo as quais a reforma agrria

    a sada para os pobres e a violncia nas cidades, tambm se instala a pobreza como um

    problema em si, invisibilizando que a riqueza a sua contraparte dialtica e causadora dos

    problemas sociais. Esta perspectiva, mesmo que involuntariamente, acaba por vincular o

    discurso de lideranas do MST (e de amplos setores da esquerda que o endossam) com o

    seu corolrio inverso, fazendo uma analogia fcil entre pobreza e violncia. De todo modo,

    ao proceder a uma anlise comparativa no tocante definio de pobreza, percebe-se que a

    situao econmica das famlias nos assentamentos difere, qualitativamente, em muitos

    graus da carncia em que viviam anteriormente, e ainda deve-se considerar que uma

    pobreza autogerida e vivenciada solidariamente pode ser o oposto da misria23

    .

    Alm da permanncia de trabalhadores no campo e da migrao para as

    periferias e favelas das grandes cidades, ocorre tambm o processo de migraes sazonais

    em busca de empregos temporrios nas indstrias agrcolas e na construo civil. O

    crescimento econmico nos ltimos anos coloca algumas dificuldades para a proposta de

    reforma agrria, com a oferta de empregos nas cidades, como na construo civil, e a crise

    da agricultura camponesa, em que cerca de 90% dos agricultores familiares esto com

    enormes dificuldades econmicas (FERNANDES, 2011). Contudo, deve-se considerar que

    essa situao de crescimento econmico tambm possibilita a criao e o desenvolvimento

    de uma unidade de luta entre os trabalhadores, do campo e da cidade, seja por interesses

    comuns ou pelo mesmo sujeito social pertencer em momentos distintos dinmica do

    trabalho urbano e rural.

    23

    O referido relatrio da ONU para o habitat conclui que so os centros urbanos os impulsionadores da

    economia no apenas no pas mas em toda a regio da Amrica Latina e do Caribe, concentrando-se nas

    cidades os servios e a indstria; sendo elas responsveis por dois teros do Produto Interno Bruto de toda a

    regio; tendo crescido seis vezes o nmero de cidades na regio desde os anos 1960, o que a torna uma das

    regies mais urbanizada do mundo, com cerca de 80% do total da populao (588 milhes de pessoas)

    vivendo em cidades ficando atrs da Amrica do Norte (82,1%) e Europa (84,4%). Este relatrio da ONU mostra tambm que aumentaram a desigualdade e as contradies sociais nas cidades, sendo que 111 milhes

    de pessoas na regio vivem em habitaes precrias. Mas uma das caractersticas do sistema capitalista a

    concentrao demogrfica urbana, e o processo de inverter a migrao dos campos para as cidades tem sido

    consequncia do atraso econmico, tanto diminuindo a produtividade da agropecuria como freando o

    crescimento da indstria e dos servios.

  • 23

    Deve-se ainda considerar que o agronegcio em parte como efeito colateral da

    luta dos movimentos rurais nas dcadas passadas j no corresponde ao velho modelo

    latifundirio, tendo se modernizado e elevado os nveis de produtividade. No atual modelo

    econmico responde a uma parte considervel do supervit comercial24

    mesmo que

    alguns autores, como Delgado (2012), apontem que no ocorre uma distribuio desses

    benefcios para o conjunto da economia. Alm do mais, esses fatores somados aos

    programas de assistncia focada, como o Bolsa Famlia25

    , ao retirarem milhes de pessoas

    da misria extrema, romperem com elementos mais imediatos da cultura coronelista

    (baseada na dependncia alimentar) e garantirem o acesso a certos servios bsicos,

    impactam na base potencial de agricultores, colocando novos dilemas para a reforma

    agrria. Numa conjuntura em que impera o livre desenvolvimento do capitalismo no

    campo, atravs do incentivo governamental ao mercado, qual tem sido a proposta de

    reforma agrria do MST?

    2.2 Projetos de reforma agrria do MST

    Simplificadamente, o MST tem proposto um modelo de reforma agrria que

    modifique no apenas a estrutura da propriedade da terra, redistribuindo-a entre os

    pequenos agricultores, mas tambm que transforme o modo de produo e as relaes de

    trabalho no meio rural.

    Entretanto, a problemtica da questo agrria muito mais complexa. A

    contradio est presente no apenas no modelo de reforma agrria hegemnico, mas,

    inclusive no projeto do MST. Essa contradio seria expressa no fato do MST atravs da

    ocupao romper com o direito de propriedade privada, mas acabar por aceitar, e mesmo

    defender, a pequena propriedade rural, no rompendo, assim, com as relaes capitalistas

    de produo (NETO, 1999). Para Neto, apesar da extrema relevncia do MST na luta pela

    organizao dos trabalhadores rurais, essa contradio se constitui historicamente como um

    entrave conservador que amplia e refora as relaes capitalistas.

    24

    Joo Bernardo (2011b) um dos autores que, ao contrrio de teses como a de Bresser-Pereira, defende que

    a transformao das commodities num dos principais pilares da economia brasileira no corresponde a uma

    regresso tecnolgica nem a um regresso ao Brasil-colnia.

    25 Cf.: DOSSI: Especial Bolsa Famlia. Passa Palavra, 19 abr. 2010. Disponvel em:

    .

  • 24

    Ainda assim, alguns questionamentos que podem ser levantados referem-se ao

    processo de concentrao do capital: seja atravs de alguns poucos proprietrios bem-

    sucedidos que passem a assalariar grande parcela de ex-proprietrios fracassados (como

    ocorreu, por exemplo, na URSS entre 1917 e 1928); seja por meio das grandes empresas

    transnacionais assalariarem temporariamente os pequenos proprietrios, ou ainda pelo fato

    de estes arrendarem suas terras para a plantao de determinada monocultura (sob

    orientao e assessoria das transnacionais e grandes proprietrios), fato que poder ser

    facilitado e legalizado pela poltica proposta pelo atual governo Dilma de emancipao

    dos assentamentos26.

    Ademar Bogo (2009, p. 69), da direo do MST, reconhece os limites da

    reforma agrria e do MST neste quesito:

    Somos uma fora poltica importante e ao mesmo tempo limitada.

    Nosso objetivo lutar pela reforma agrria, embora saibamos que

    ela somente se realizar na totalidade em um sistema socialista, mas

    nem por isso, como movimento social, temos a pretenso de

    impulsionar sozinhos a construo dessa grande obra, a revoluo

    poltica, pois demanda muito mais fora e muito mais

    representatividade. Mas o importante no reconhecer a fraqueza,

    mas descobrir como ampliar as foras.

    Essa condio tambm problematizada por Eliel Machado, para quem,

    (...) a despeito de sabermos que estes movimentos no tm fora

    poltica para enfrentar a sua situao de classe pauperizada a no ser

    reivindicando terra ou trabalho para sobreviver, este acaba sendo

    um fator limitador da sua luta poltica e ideolgica. Aquilo que

    serve como motor da organizao em classe o questionamento jurdico-poltico da concentrao da propriedade privada dos meios

    de produo em pouqussimas mos durante os acampamentos,

    marchas, bloqueios de estradas etc. perde fora poltica quando se torna assentado ou cooperado (formao das cooperativas: olarias,

    marcenarias, padarias, metalurgias etc.), pois so obrigados a

    produzir para o mercado e, alm disso, demonstrar a viabilidade

    econmica de seus empreendimentos. O Estado burgus, por sua

    vez, procura inviabiliz-los de vrias formas, sendo a mais comum

    ao dificultar a liberao de crditos para a produo, plantio e

    cultivo (MACHADO, 2009b, p. 40).

    26

    Trataremos deste assunto mais frente no tpico sobre a emancipao compulsria dos assentamentos.

  • 25

    Mas, o membro do MST destaca a potencialidade da reforma agrria como elo

    de um processo revolucionrio mais amplo:

    Podemos dizer que, por duas razes, a reforma agrria est ligada

    revoluo. A primeira por ela estar no campo das reformas em que obrigatoriamente deve impulsionar a revoluo para a frente

    por meio da luta pelas necessidades imediatas dos Trabalhadores

    Sem Terra e da sociedade. A segunda razo, por ela estar vinculada

    a essa concepo antecipada da sociedade socialista que

    pretendemos construir, em que a propriedade privada sofrer

    mudanas profundas na forma de sua existncia (BOGO, 2009, p.

    69-70).

    Contudo, quais seriam essas concepes antecipadas da sociedade socialista? O

    questionamento da propriedade privada no daria lugar a uma defesa da pequena

    propriedade? A organizao da produo em bases coletivas no cederia normatividade

    do mercado institudo?

    Estas contradies permeiam a luta do MST, e as tendncias que o empurram

    para a normatividade sistmica travam um embate com os elementos de ruptura com o

    capitalismo (a concepo antecipada da sociedade socialista, como destaca Bogo)

    existentes dentro dos assentamentos e acampamentos, tanto no mbito da produo quanto

    das relaes sociais e da prpria poltica. Em que medida ambas as tendncias so

    incentivadas ou constrangidas pela prpria forma organizativa do MST?

    A transformao do projeto de reforma agrria do MST

    Como pode ser conferido no Apndice desta tese, no seu I Encontro Nacional

    em 1984, o MST defende como um de seus princpios gerais o de Lutar pela reforma

    agrria j, alm de Lutar por uma sociedade igualitria, acabando com o capitalismo.

    Alm disso, enfatizado que o MST deve sempre manter sua autonomia poltica,

    sendo que o acesso terra deve ser atravs da presso e da luta (MST, 1984, apud

    STDILE, 2012a grifos nossos).

    Porm, o modelo econmico desenvolvido na sociedade brasileira (urbano-

    industrial) iniciado nos anos 1930 teve seu fechamento nos anos 1980, fazendo com que se

    modificasse a funo da agricultura (PIZZETA, 2012). Na avaliao do dirigente do MST

    ainda havia espao poltico para o modelo clssico de reforma agrria enquanto o padro da

  • 26

    agricultura era o de fornecer mo-de-obra, alimentos e matria-prima para uma sociedade

    em processo de industrializao. Mas, com o declnio desse antigo modelo de

    industrializao (de substituio de importaes) e a insero do pas na economia

    capitalista globalizada, a totalidade das terras (produtivas ou improdutivas) passa a ser alvo

    de empresas transnacionais e de especulao do agronegcio, com vistas a atender

    demanda internacional de commodites e matria-prima. Isso faz com que a reforma agrria

    (baseada na produo de alimentos) e a questo agrria brasileira estejam ligadas a uma

    mudana no modelo de agricultura do pas.

    Assim, uma dcada depois da primeira meno de reforma agrria apresentada

    pelo MST (em 1984), no III Encontro Nacional, o Movimento apresentou uma Proposta

    para a Reforma Agrria, ampliando a discusso para vrios pontos no tratados no

    documento de 1984. Insere a reforma agrria no conjunto mais amplo da sociedade,

    transcendendo os problemas especficos dos sem terra e do conflito fundirio. Reafirma o

    questionamento da propriedade privada ao vincular a terra sua funo social e por

    entend-la como (...) um bem fundamental da natureza que no pode estar aprisionada pela

    propriedade privada absoluta, em que o proprietrio faz o que quiser (MST, 1995),

    passando a abordar temas como a comercializao dos produtos agrcolas e a ao do

    Estado como instrumento essencial desse projeto de reforma agrria. Nestes dois ltimos

    quesitos, o MST passa a reivindicar a existncia de polticas pblicas de compras dos

    produtos dos assentamentos, atravs das associaes dos camponeses em empresas de

    produo agropecuria sob gesto dos trabalhadores (vinculados como donos de cota-

    partes ou por contrato de trabalho individual), e o estabelecimento de preos subsidiados e

    diferenciados para esse setor. Desse modo, reivindica que seja dada prioridade nas compras

    governamentais para merenda escolar, cesta bsica, programas de combate fome,

    hospitais pblicos, foras armadas etc. aos produtos agrcolas oriundos da reforma agrria.

    No entanto, tambm esta proposta de reforma agrria popular de 1995 estava

    alicerada numa conjuntura que se transformou rapidamente, como j apontado por Pizzeta.

    Na avaliao de Stdile (2012b),

    No passado, a expresso reforma agrria era entendida por muitos

    apenas como desapropriao de uma fazenda e distribuio dos

    lotes de terra. Essa reforma agrria funcionava quando o modelo

    econmico era dominado pelas indstrias. E, portanto, os

    camponeses se integravam com a indstria e conseguiam sair da

  • 27

    pobreza. Era a chamada reforma agrria clssica, que a maioria dos

    pases industrializados fizeram. Agora, o capitalismo dominante o

    do capital financeiro e das empresas transnacionais, tambm na

    agricultura, com o chamado agronegcio. Assim, eles conseguem

    aumentar o lucro e a produo sem os camponeses.

    Na avaliao de Pizzeta (2012) a reforma agrria atual no pode prescindir do

    acesso ao conhecimento cientfico e pesquisa, no sentido de se fundamentar em outra

    matriz produtiva, que englobe os avanos adquiridos pela humanidade e promova a

    preservao do meio ambiente e que no seja danosa sade do produtor e do consumidor.

    Leitura semelhante desenvolvida por outra liderana do MST, Gilmar Mauro (2013), para

    quem um novo modelo de reforma agrria e de processo produtivo deve aliviar as

    dificuldades do trabalho agrcola e, ao mesmo tempo, no ser nociva populao e ao

    ambiente.

    Nestas circunstncias (e alicerado numa leitura de descenso social da classe

    trabalhadora), para superar a proposta de reforma agrria clssica, um dos desafios para o

    MST e movimentos camponeses estaria em comunicar um novo projeto,

    (...) para fazer com que a sociedade perceba quais so as bandeiras

    que defendemos e quais so as propostas que esto em confronto: a

    da Reforma Agrria popular e a do Agronegcio [] preciso que a sociedade perceba que est em jogo o tipo de sociedade, de

    agricultura e de alimentos que queremos (PIZZETA, 2012).

    Ainda conforme Pizzeta (2012) h a necessidade de um avano na questo da

    agroindstria, levando-a para as reas de reforma agrria.

    Isso possibilitaria um acmulo de produo, de riqueza, daquilo que

    a agricultura pode gerar [] no s a questo da produo, de agregar valor para aquilo que se produz. tambm um leque de

    possibilidades para que a populao tenha melhores condies de

    vida no campo e uma perspectiva de ascenso social no meio rural.

    Contudo, como questiona o coletivo Passa Palavra (2012a),

    (...) esta comunicao com a sociedade refere-se apenas escolha entre aqueles dois modelos de desenvolvimento propostos? Tal

    como ocorre nas eleies, caberia a essa sociedade consumidora optar por dois produtos na prateleira? Ou cabe s foras polticas e

    aos militantes de esquerda refletirem sobre as consequncias de tais

    modelos, optando, inclusive, pelo desenvolvimento de formas

  • 28

    alternativas, em vez de se assemelharem a torcedores numa partida

    de futebol?

    Reforma agrria atualmente

    Como visto, de acordo com o MST, com o atual modelo hegemnico do

    capitalismo no campo no cabe mais a implantao do projeto clssico de reforma agrria

    (de diviso das terras do latifndio improdutivo entre os camponeses empobrecidos), pois

    se aprofundou a integrao do latifndio com as empresas transnacionais e com o capital

    financeiro (no que se denominou agronegcio), com o intuito de exportar matrias-primas e

    para a produo de energia, celulose e commodities27

    . No entanto, o MST tambm

    reconhece que a reforma agrria no se resume a esse modelo clssico e a proposta

    defendida pelo Movimento, supostamente, pretende contrapor-se ao modelo hegemnico.

    Combater as empresas transnacionais que querem controlar as

    sementes, a produo e o comrcio agrcola brasileiro, como a

    Monsanto, Syngenta, Cargill, Bunge, ADM, Nestl, Basf, Bayer,

    Aracruz, Stora Enso, entre outras. Impedir que continuem

    explorando nossa natureza, nossa fora de trabalho e nosso pas

    (MST, 2007)28

    .

    Modifica-se, portanto, a luta de classes no campo, somando-se ao antigo

    inimigo no derrotado novos oponentes.

    Armando Boito Jr. (2012, p. 98) nos fornece uma definio mais rigorosa do

    agronegcio, como um setor mais amplo e heterogneo, de poder e lucratividade bastante

    desigual, atuando antes, dentro e depois da porteira. As funes ativas no agronegcio so

    a propriedade da terra, a produo agrcola ou pecuria, a comercializao do produto, a

    intermediao financeira e a prpria indstria de processamento um dos departamentos

    importantes da FIESP cuida do agronegcio. O peso poltico deste setor seria o elo mais

    fraco, apesar de seu poder na estrutura econmica e social brasileira. importante tambm

    27

    Segundo Joo Pedro Stdile (2007), o agronegcio uma grande aliana entre as empresas transnacionais que controlam os insumos, o mercado internacional e os preos dos produtos agrcolas e os grandes proprietrios capitalistas. Eles querem produzir apenas mercadorias que deem lucro e para o mercado

    externo.

    28Algumas anlises iro sustentar que tal perspectiva no corresponde realidade contempornea, pois o

    Brasil procederia nos moldes de um pas hegemnico (e mesmo com traos neoimperiais) na frica e em

    alguns pases da Amrica Latina (que se exerce notadamente na agropecuria), do mesmo modo que o MST

    acusa o imperialismo estrangeiro de atuar no pas, sendo esta uma inadequao do discurso nacionalista a uma

    realidade transnacional do capital. Cf.: Passa Palavra (2012).

  • 29

    distinguir entre, por um lado, os grandes grupos econmicos que se inserem em todas as

    etapas do ciclo de valorizao do capital e, por outro, as empresas e grupos familiares

    especializados em cada uma dessas funes.

    Como de