hilsenbeck - o mst no fio da navalha
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Hilsenbeck - o Mst No Fio Da NavalhaTRANSCRIPT
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Alexander Maximilian Hilsenbeck Filho
O MST no fio da navalha
dilemas, desafios e potencialidades da luta de classes
CAMPINAS
2013
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Alexander Maximilian Hilsenbeck Filho
O MST no fio da navalha
dilemas, desafios e potencialidades da luta de classes
Orientadora: Isabel Maria Loureiro
ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE VERSO FINAL DA TESE
DEFENDIDA PELO ALEXANDER MAXIMILIAN HILSENBECK FILHO, E ORIENTADA PELA PROFA. DRA ISABEL MARIA
LOUREIRO
CAMPINAS
2013
Tese de Doutorado apresentada ao Instituto
de Filosofia e Cincias Humanas, para
obteno do Ttulo de Doutor em Cincia
Poltica.
Universidade Estadual de Campinas
Instituto de Filosofia e Cincias Humanas
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RESUMO: O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) formado no processo de
redemocratizao nacional, junto com outras organizaes como o PT e a CUT constituiu-se ao
longo de trs dcadas no principal movimento social do pas, e num dos mais relevantes do mundo,
sendo referncia anticapitalista e de resistncia s polticas neoliberais na dcada de 1990. Nesse
processo, o MST conseguiu se reinventar e equilibrar a dimenso pragmtica visando soluo dos
problemas cotidianos de sua base com o objetivo de uma sociedade livre e igualitria, alicerado
numa prtica de ao direta e de negociao. Contudo, com a chegada do PT ao governo federal e
numa conjuntura de crescimento econmico, diminuio da desigualdade social e queda no
desemprego, em que as polticas participativas (pblicas e privadas) ganham capilaridades nos mais
distintos setores da esquerda, como tem se caracterizado a luta do MST, e que tendncias se podem
observar? Diante de parcerias com empresas capitalistas transnacionais, gesto de recursos
governamentais e dificuldade crescente em fazer ocupaes e conquistar novos assentamentos,
constata-se que essa situao no pode ser compreendida apenas como resultado de alianas e
composies de classes numa frente governista. No sendo a realidade uma figura monocromtica,
a anlise das contradies do MST nos permite desvelar mecanismos prprios do capitalismo
visando a assimilao das lutas sociais. A partir da anlise da literatura existente (nos meios
acadmicos, militantes e empresariais), de pesquisas de campo e entrevistas, procuramos identificar
alguns desafios enfrentados pelo MST na ltima dcada, desafios que colocam impasses no apenas
ao Movimento Sem Terra, mas que so, em grande medida, generalizveis para o conjunto das
foras antissistmicas.
Palavras-chave: Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra; Movimentos sociais;
Capitalismo; Polticas pblicas; Conflito Social.
ABSTRACT The Landless Workers Movement (MST) formed in the process of national re-democratization in
Brazil together with other organizations like PT and CUT became in the course of three decades
the countrys main social movement and one of the most important in the world, as an example of
an anti-capitalist movement opposed to neoliberal policies in the 1990s. In this process, MST has
managed to reinvent itself and to balance its pragmatic dimension aimed at solving the everyday
problems of its base with the goal of a free and equalitarian society, founded on the practice of
direct action and negotiation. However, with PTs arrival at the federal government and in a context
of economic growth, reduction of social inequality and declining unemployment, when
participatory policies (public and private) gain currency in the most diverse sectors of the left, what
characterizes MSTs struggle, and what tendencies can be observed? Considering MSTs
partnerships with transnational corporations, the management of government resources, and
increasing difficulty in making occupations and conquering new settlements, one concludes that this
situation can not be understood simply as a result of alliances and class compositions in a
government coalition. Insofar as reality is not monochromatic, the analysis of MSTs contradictions
allows us to unveil capitalisms own mechanisms aimed at the assimilation of social struggles.
From the analysis of the current (academic, activist and corporate) literature, of field researches and
interviews, we sought to identify some of the challenges faced by MST in the last decade, that
present dilemmas not only for that movement, but in general for all anti-systemic forces.
Keywords: Social movement; Capitalism; Public policies; Social Conflict.
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SUMRIO
1 PREMBULO......................................1
1.1 Introduo............................................11
2. REFORMA(S) AGRRIA(S) PARA QUE(M)?............15
2.1 A questo da reforma agrria no Brasil................15
2.2 Projetos de reforma agrria do MST....................23
2.3 Reforma agrria atual.................................32
2.4 Dualidade na agricultura brasileira e as polticas pblicas para a agricultura familiar.......................36
2.5 Emancipao compulsria dos assentamentos.............46
2.6 Agricultura Familiar..................................48
2.7 Atualidades da questo (da reforma) agrria...........53
3. NEO(NACIONAL)DESENVOLVIMENTISMO, NEOLIBERALISMO E BRASIL POTNCIA PARADOXOS DAS LUTAS SOCIAIS...61
3.1 Governos, alianas, correlaes de foras e composio de classes.................................................66
3.2 O velho MST e o novo Brasil...........................73
(parntese geogrfico, ideolgico e poltico)..............74
4. A CRISE E O MST (ou o MST dentro da Crise)....79 4.1 MST e Empresas........................................86
4.2 Participao social..................................112
4.3 Permanncias e continuidades: governos e conflitos agrrios..................................................127
4.4 Relao PT-MST-PT...................................135
4.5 Polticas pblicas, enfrentamento e recuperao......145
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4.6 Desenvolvimento das polticas de recuperao no Brasil....................................................155
4.7 Tecnicizao da militncia...........................162
4.8 Burocratizao e Movimentos Sociais: uma tendncia intrnseca?...............................................168
4.9 Socialismo da Misria................................172
5. A ESQUERDA QUE OCUPA A ESQUERDA: O DRAMA DO ASSENTAMENTO MILTON SANTOS.......................189
5.1 Duas concepes de ao..............................200
5.2 Ocupar a casa do homem.............................205
6. ALGUMAS CONSIDERAES PARA UM DEBATE EM ABERTO...........................................221
6.1 Ocupao como estratgia e como ttica...............225
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS.......................241
APNDICE.........................................259
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... A todos e todas que mantm a dignidade seguindo o
caminho do corao, isto , abaixo e esquerda, que no se
vendem e no se rendem...
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Agradecimentos
verdadeiramente um prazer agradecer a todas as pessoas que contriburam
acadmica, poltica e pessoalmente para a confeco dessas pginas. Mesclam-se e se
embaralham muitas vezes essas trs dimenses. Os agradecimentos servem, tambm, para
indicar alguns alicerces que sustentaram a tese, para alm das convices e valores de quem
monograficamente a escreveu. E como todo trabalho monogrfico este coletivo.
Puxando a memria pelos cabelos, tenho que iniciar agradecendo ao e-mail que
recebi (em cima da hora verdade) indicando que ainda estavam abertas as inscries para
o doutorado na Unicamp; agradecer ao motoboy que viajou com o envelope com a
documentao e aos funcionrios que o receberam quase nos acrscimos do tempo; tambm
agradeo a mirade de trabalhadores, funcionrios e professores, que contriburam
fundamentalmente com minha formao, bem como agradeo aos discentes que tive o
desafio e o prazer de lecionar nessa jornada.
Deixo registrada a importncia dos debates junto aos companheiros do coletivo
poltico de comunicao Passa Palavra, aos grupos acadmicos e polticos NEILS, ACySE,
GENeo e CEMARX.
Sou grato s lutas travadas e a todos os companheiros de peleja, que me
ensinaram que todos os dias so de luta, quer saibamos disso ou no, e que mais saboroso
no se prender apenas ao estudo de livros de receitas, mas conjuntamente cozinhar. Esses
so dias que fazem brotar a paixo e a esperana. Agradeo, notadamente, companheirada
do MST e do Assentamento Milton Santos, bem como aos lutadores que foram se somando
nesse caminhar.
Aos amores-amigos-famlia que suportaram ausncias e presenas, por vezes
efusivas, por outras angustiadas, e que se mostraram uma slida ponte na qual pude
transitar temas e vivncias.
Isabel Loureiro, que alm da pacincia excepcional, ofertou reconfortante
carinho.
Igualmente agradeo banca, de qualificao e defesa, pela leitura sincera e
atenta, pelo debate franco e fraterno e pela gentileza em outorgar a titulao.
Titulao que, se por um lado no me permitir o exerccio da advocacia ou da
medicina, por outro lado possibilitar a abertura de novos horizontes, de janelas a
vislumbrar e novas portas a atravessar.
Tambm agradeo fora e ao afago de todos os que estiveram presentes
mesmo que no fisicamente antes, durante e aps a defesa, o que inclui as
confraternizaes que seguiram e seguem...
... foi e continua sendo um prazer compartilhar no espao e no tempo essa
existncia com todos vocs.
Muito obrigado, mesmo.
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A resposta certa no importa nada: o essencial
que as perguntas estejam
certas. Mrio Quintana
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1. PREMBULO
A ordem reina em Varsvia, a ordem reina em Paris, a ordem reina em Berlim. A cada meio sculo os guardies da ordem obtm os comunicados vitoriosos dos holocaustos das guerras e conflitos mundiais.
Esses vencedores exultantes so incapazes de perceber que uma ordem que necessita ser mantida periodicamente custa de sangrentas
hecatombes inelutavalmente caminha para seu destino histrico, sua
perdio. [...] A ordem reina em Berlim! Esbirros estpidos! Vossa ordem um castelo de areia. Amanh a revoluo se levantar de novo clamorosamente, e para espanto vosso proclamar: era, sou e serei!
Rosa Luxemburgo
A paisagem poltica mundial passou por modificaes importantes entre o final
da dcada de 1960 e os princpios dos anos 1990, o que se refletiu nas formas de
interpretao desta realidade, bem como nos modos de interveno nela. As resistncias
contra determinados efeitos dos regimes capitalistas receberam novos impulsos, sobretudo
na esteira das agitaes de 1968, reconfigurando espaos polticos e temticas das lutas
sociais. O contexto histrico mundial das dcadas de 1960-1980 revelou a emergncia de
novas formas de ao coletiva e diversificao de lutas sociais. Estas corresponderiam ao
ciclo batizado por Wallerstein (1996) como revoluo de 68, no qual a burguesia
reestruturou o modo de acumulao e reproduo capitalista, desmantelando as fbricas
tradicionais baseadas no modelo de gesto fordista e taylorista como forma de organizao
do trabalho. Considerando que a crise ou avano do sistema capitalista est estreitamente
vinculado s lutas da classe trabalhadora, o neoliberalismo, assim, aparece como uma
contraofensiva do sistema s lutas desenvolvidas desde a dcada de 1960 (ZIBECHI, 2012).
O bloco socialista da Europa oriental e a Unio Sovitica desintegraram-se, e na Amrica
Latina as guerrilhas foram gradualmente depondo suas armas. Os partidos radicais de
esquerda, notadamente os comunistas, que agregavam os setores mais consistentemente
militantes do movimento operrio foram perdendo relevncia quantitativa e qualitativa. As
culturas polticas das lutas sociais relegavam ao ostracismo certos temas e objetivos, como
a superao do capitalismo, ao mesmo tempo em que ostentavam novos, tais como a
transparncia e prestao de contas dos governos democrticos. Na Amrica Latina, e
especialmente no Brasil, a luta contra as ditaduras civil-militares e a redemocratizao
introduziam novos temas nas agendas polticas. Os espaos das alternativas radicais, ainda
que imaginados, estreitaram-se profundamente.
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No campo terico, isto significou uma perda de fora importante das anlises
centradas numa perspectiva de totalidade e nos conflitos entre classes, para a
predominncia de interpretaes situadas nas identidades e nos indivduos, em estudos
lingusticos, tnicos e culturais. Na Cincia Poltica, ganhou fora a conceitualizao da
novidade nos movimentos sociais, suas contribuies para a normatividade da democracia
parlamentar, sendo simblica, desta viragem, a literatura que procurava fundamentar a
falncia de todo projeto de transformao e no apenas de reformas do atual sistema
mundial.
Os estudos sobre essa nova situao se intensificaram com o final da ditadura.
As anlises buscavam compreender (no apenas no Brasil) o surgimento desses novos
movimentos (GOHN, 2000; KOWARICK, 1987). A hegemonia de um tipo de conflito
centralizado no movimento operrio, com reivindicaes econmicas e trabalhistas, teria,
supostamente, dado lugar a variadas e fragmentrias formas de luta, orbitando em torno de
temas como identidade, diferena, cidadania, meio-ambiente (MELUCCI, 2001),
reconhecimento (HONNETH, 2003). Esses temas, acompanhados de modos de luta
prprios, como as comunidades reivindicantes, organizaes no-governamentais sociais,
polticas e culturais especficas (GOHN, 2000), entre outras, podem, inclusive, configurar
movimentos que agrupem mais de uma categoria reivindicativa, como de gnero e de raa,
caracterizando coletividades ambivalentes (FRAZER, 2001) que sofrem injustias
socioeconmicas e falta de reconhecimento. A partir da dcada de 1980, ganhou fora a
perspectiva terica de classificar os movimentos sociais por sua reivindicao de identidade
e pluralidade de formas de ao/reivindicao coletivas (EVERS, 1984). Com a ampliao
das dimenses da luta poltica, os conflitos no se restringiriam mais a atingir o processo
produtivo em sentido estrito (tampouco o Estado), mas estariam se apropriando do tempo,
do espao, das relaes, do si-mesmo dos indivduos (MELUCCI, 2001).
As consequncias aparentemente mais marcantes dessa mudana de orientao
dos conflitos talvez tenham sido a transio de uma perspectiva de totalidade, alicerada
nas relaes capital x trabalho, com um projeto sociopoltico de transformao estrutural da
sociedade capitalista, para movimentos que se inscrevem nos marcos de polticas
focalizadas e reivindicativas, no inscritas diretamente nas (quando no situadas fora das)
relaes de produo do sistema capitalista (GOHN, 2000). Essas transformaes se
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refletiriam na fragmentao dos atores sociais, na perda da coeso e identidade de classe e
da capacidade organizativa de suas instituies tradicionais de representao, como o
partido poltico e o sindicato. No entanto, outras interpretaes (BERNARDO, 2009a;
ZIBECHI, 2008), iro assinalar que o surgimento dos movimentos sociais se d como
resposta dos dominados ao processo de transformao do capitalismo, deslocando o eixo da
contestao do local de trabalho para o territrio, dado o processo de debilidade das
organizaes tradicionais da classe trabalhadora e das suas formas correspondentes de
conflitos terem sido, de certo modo, neutralizadas. Nesse sentido, nos anos 1970, os
movimentos sociais e suas prticas mais autnomas teriam conseguido se generalizar para
alm de setores minoritrios e herticos para, ento, modificar a forma e o repertrio dos
conflitos e da luta poltica.
nesse contexto poltico, e nesse caldo terico, que se situa o objeto do
presente estudo: o principal movimento social de camponeses brasileiros sem terra (para
no dizer o principal movimento social brasileiro de todos os tempos), o MST, formado em
1984, junto a outras organizaes sociais (notadamente no campo sindical a Central nica
dos Trabalhadores, e no poltico eleitoral o Partido dos Trabalhadores). Essas organizaes
foram herdeiras de uma concepo de esquerda dominante nas dcadas de 1950 e 1960,
baseada na anlise de que o capitalismo brasileiro era dependente dos pases do capitalismo
central, e que, para superar tal situao, tornava-se fundamental completar o processo de
desenvolvimento nacional, realizando as tarefas em atraso, tpicas do que se convencionou
denominar revoluo burguesa clssica1. Para tal estratgia construiu-se o Projeto
Democrtico Popular, tendo por perspectiva no longo prazo a construo do socialismo, e
assim, valendo-se do acmulo de foras, a via eleitoral seria uma das arenas de disputa. O
1 Em tempos nos quais certas ideias do passado so requentadas para serem novamente consumidas no
presente, numa falsa repetio da histria, convm lembrar alguns ensinamentos. O capitalismo brasileiro no
levou em conta a teorizao de esquerda e desenvolveu-se com os setores (incluindo o latifndio) que, nas
formulaes dominantes na esquerda, deveriam constituir-se como entraves. Florestan Fernandes, na dcada
de 1970, nadando a contracorrente, no supunha aes progressistas por parte da burguesia nacional. Ele
identificava que os tempos da revoluo democrtico-nacional haviam passado (mas deixado em atraso as
tarefas democrticas do ciclo burgus) e sido substitudos pelo tempo da acelerao do desenvolvimento
econmico e aprofundamento dos mecanismos de poder mundial do capitalismo. Assim, estaramos na poca
das revolues proletrias (ainda que nos elos dbeis do capitalismo) (FERNANDES, 1978; 1981). Tais concepes iro influenciar a formao do PT, da CUT e do MST, que, ao invs do antigo ciclo da revoluo
democrtico-nacional, adotariam a tarefa de uma revoluo democrtico-popular, forjada na aliana entre
setores em contradio com a lgica do capital e fundamentada nos trabalhadores urbanos e rurais.
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regime civil-militar aparecia, ento, como inimigo comum a ser enfrentado pelas
organizaes progressistas e de massa, fazendo com que toda luta de caractersticas
populares e/ou democrticas fosse, por isso, contraposta ordem estabelecida.
Em dada medida, os objetivos desse projeto foram bem-sucedidos: neste
processo importantes conquistas foram alcanadas, espaos democrticos e de participao
forjados, o campo institucional ampliado. O PT, enquanto polo aglutinador, transformou-se
em governo (inicialmente em mbito municipal e estadual e posteriormente em nvel
federal). O MST e a CUT, que organizaram e desenvolveram diversas lutas, consolidaram-
se enquanto interlocutores polticos relevantes e legtimos, tendo tambm presena e
influncia nos rgos governamentais e na constituio de polticas pblicas.
Nosso intuito neste trabalho a partir do resgate da memria da histria de luta
e da anlise das inevitveis contradies de praticamente trs dcadas de existncia do
MST compreender seu atual momento que, para personagens esquerda e direita do
movimento, e inclusive de dentro do prprio MST, vive um perodo de crise, de perda de
influncia e relevncia como fora social autnoma. Num quadro mais amplo, esperamos
que a apreenso dos elementos especficos do MST possa trazer contribuies para a
anlise das lutas sociais, em sua forma de movimento, numa contemporaneidade marcada
no pelo contexto mais direto e imediato de pura represso, mas pelo corolrio da
participao (ou ainda, pela juno destes dois atributos).
Nossa hiptese que o processo de redemocratizao nacional e de participao
institucional dos movimentos sociais (elementos ampliados quando levados adiante por
governos oriundos do campo da esquerda) trazem novos elementos e contradies s lutas
sociais. Estas, ao mesmo tempo em que so fruto das modificaes do campo poltico
institucional, o remodelam, influenciando-o e sendo por ele influenciadas. No caso
especfico de nosso objeto, e no atual momento de acumulao do capital em pas de
capitalismo dependente e de fragmentao das classes dominadas, isso significa um
processo de crise poltica e ideolgica do MST. Nesse sentido, duas perguntas
interconectadas nortearam nossa anlise, que crise? e refutando a hiptese de que a
vitria do capital sobre o trabalho seja definitiva como sair dela?.
Partimos do pressuposto de que as lutas dos trabalhadores podem (o que no
significa que o faam) gerar espaos e formas de sociabilidade antagnicas s dominantes,
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isto , no baseadas no individualismo, na opresso, na explorao e dominao do ser
humano, como imperam nas relaes sociais no capitalismo. Tais tendncias, ainda que no
efetivem nenhuma mudana revolucionria, no sentido de mudana estrutural radical num
curto espao de tempo, so importantes como espaos de porvir, de criao de algo novo,
de novas formas polticas e relaes sociais2. Essa novidade tambm se reflete no campo
das ideias pois estas, no existindo sem uma base social prpria, decorrem de um quadro
social j existente ou em possibilidades materiais concretas de existir. As sociabilidades
emergentes se do nas formas de luta, e so elas mesmas formas de luta, criadas e
amadurecidas no cotidiano dos movimentos e dos conflitos, o que no significa que sejam
generalizveis para toda a sociedade. Curiosamente, o exemplo maior utilizado por distintas
correntes de esquerda tem sido uma experincia com durao de setenta e dois dias, a
Comuna de Paris. Por que ento ignorar outras experincias, mais ou menos efmeras, mais
ou menos contundentes?
Assim sendo, um dos objetivos secundrios desta tese ser a busca de relaes
de novo tipo, sociabilidades anticapitalistas ou antissistmicas nas prticas e experincias
de luta do MST, no cotidiano de ocupaes, acampamentos e assentamentos. O movimento
estaria contribuindo para gerar outra cultura poltica? Em caso afirmativo, qual e de que
forma? Em que sentido poltico apontam as tendncias atuais do Movimento? Partimos,
assim, de uma primeira caracterizao que no consensual entre os analistas do MST, a de
que ele defende ou melhor, que setores dentro do movimento sustentam um projeto com
vistas construo de uma sociedade no capitalista. Essa perspectiva pode ser encontrada
j nos primrdios do MST, quando, em janeiro de 1984, no seu I Encontro Nacional,
aprovou dentre os princpios gerais os de Lutar pela reforma agrria j e Lutar por uma
sociedade igualitria, acabando com o capitalismo (MST, 1984)3, mas tambm est
2 Alain Badiou (2012) observou que alguns eventos, como a Comuna de Paris e a Revoluo Cultural chinesa,
fizeram aparecer no mundo o que no existia nele um dia antes. Neste sentido, buscamos observar o que as
lutas travadas no cotidiano da territorialidade dos movimentos sociais podem trazer de novo em termos
emancipatrios, e que formas se utilizam para isso.
3 Grifo nosso. Este tema tambm aparece, entre outros documentos e declaraes, nos objetivos do seu 3
Congresso Nacional: Difundir os valores humanistas e socialistas nas relaes sociais (MST, 1995). No Caderno de Educao n 8, elaborado pelo coletivo nacional do setor de educao do MST em 1996, entre os
princpios filosficos encontramos uma definio mais acabada desses valores humanistas e socialistas nas
relaes sociais: Estamos chamando de valores humanistas e socialistas aqueles valores, ento, que colocam no centro dos processos de transformao a pessoa humana e sua liberdade, mas no como indivduo isolado e
sim como ser de relaes sociais que visem a produo e a apropriao coletiva dos bens materiais e
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presente numa srie de simbologias do Movimento, bem como no anseio de muitos
militantes e no discurso de vrios dirigentes.
Para tal anlise, teremos que articular o aspecto de participao institucional do
movimento com sua luta pelo socialismo. Como se conjuga a reivindicao anticapitalista
e autnoma do movimento com a integrao a um governo capitalista? possvel tal
realizao de modo que no se caia numa contradio que estagna e sufoca um dos polos?
De modo mais claro, quais so as tendncias, no MST, de ruptura com o capitalismo? Ou
ser que estes elementos de ruptura no existiam? Ou no existem mais?
Ao tratarmos de movimentos sociais, cabe ainda aclarar de que forma
utilizamos este conceito. Mesmo que a temtica dos movimentos sociais seja uma rea
clssica de estudo das Cincias Sociais, constituindo-se, numa de suas primeiras
preocupaes enquanto mobilizaes na sociedade4, faz-se pertinente a observao de
Maria da Glria Gohn (2000)5, para quem no existe na literatura especializada uma teoria
sobre movimentos sociais, mas vrias.
Neste trabalho adotamos uma conceitualizao para movimento social mais
restrita e antissistmica, isto , como uma forma especialmente crtica e ousada de ativismo
social6. Entendemos os movimentos sociais como os que promovem aes de rebeldia
social, subverso da ordem, ruptura com o cotidiano, e tentativa organizada de grupos de
superar o contexto de represso e alienao coletivas, quase sempre numa tentativa de
articular questes particulares com objetivos mais gerais7. Desse modo, os movimentos so
espirituais da humanidade, a justia na distribuio destes bens e a igualdade na participao de todos nestes
processos (MST, 1996).
4 Scherer-Warren (1987, p. 12), afirma que na sociologia acadmica o termo movimento social surgiu com
Lorenz von Stein, por volta de 1840, quando este defende a necessidade de uma cincia da sociedade que se
dedicasse ao estudo dos movimentos sociais, tais como o movimento proletrio francs e o do comunismo e
socialismo emergentes.
5 (...) poucos autores se dedicaram a definir ou a conceituar o que entendem por movimentos sociais [...]
[eles] tm sido tratados da mesma forma, alm da no-diferenciao entre movimentos propriamente ditos,
lutas, protestos, revoltas, revolues, quebra-quebras, insurreies e outras formas de aes coletivas (...) uma
teoria consistente para explicar os movimentos sociais latino-americanos est ainda por se construir. O que
temos so esboos explicativos (GOHN, 2000, p. 13-18).
6 Sabemos que esta circunscrio contm limites para a anlise, mas acreditamos que para os objetivos que
nortearam esta pesquisa foi prefervel correr o risco em vez de adotarmos conceitualizaes extremamente
genricas e abstratas. Para uma discusso sobre formas de ativismo social e o papel de movimento social, ver
(SOUZA, 2006).
7 Ainda que o tipo de transformao social, se de carter mais reformista ou revolucionrio, possa ser
colocado em questo no consideramos os movimentos antecipadamente como revolucionrios ou no ,
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campo de luta, mobilizaes coletivas que trabalham com uma cultura instituda (e que
tambm podem criar uma nova cultura poltica), e em que a direo tomada depende,
tambm, da correlao de foras atuantes no interior dos prprios movimentos sociais.
Neste cenrio, defendemos a ideia de que a novidade expressa na
configurao dos novos movimentos sociais deve ser pensada em termos de
continuidade-ruptura, que se apresenta em diversas faces, desde seus ideais e objetivos at
as formas organizativas, reivindicativas e programticas.
Definir o MST a partir de um dos paradigmas dos movimentos sociais pode
levar a um certo reducionismo da realidade8. De acordo com Michel Lwy, o MST pode ser
caracterizado por (...) um misto espantoso de religiosidade popular, revolta camponesa
arcaica e organizao moderna, na luta radical pela reforma agrria e, em longo prazo, por
uma sociedade sem classes (LWY, 2001, p. 12).
Os movimentos sociais atuam em mais de uma direo e clivagem, atualizando
a dialtica entre reforma e revoluo. O MST, por exemplo, utiliza um repertrio amplo de
aes e demandas, no se limitando apenas a uma delas (ainda que a questo da terra seja
obviamente central). sintomtico da multiplicidade de temas abrangidos pela luta dos
Sem Terra a igual variedade de anlises produzidas sobre ele9, que do um exemplo da
estas caractersticas so construdas a partir das prticas sociais e das relaes que vo sendo elaboradas,
tampouco sendo algo fixo e linear. Discordamos, portanto, de anlises que classificam toda forma de ao
coletiva como movimento social, quer sejam conservadores, revolucionrios, ambos ou nenhum (CASTELLS,
2000). Consideramos essas definies de pouco valor analtico, na medida em que tal abrangncia conceitual
seria capaz de abarcar uma infinitude de mobilizaes na sociedade, inclusive de carter antagnico.
Tampouco podemos defini-los por escolas ou paradigmas, como neoinstitucionalistas, marxistas, anarquistas
etc., pois isso so formas de compreenso do fenmeno, no o fenmeno em si. Os movimentos no se
mobilizam por serem marxistas ou neoinstitucionalistas, mas podem ser neoinstitucionalistas ou marxistas por
se organizarem dessa ou daquela forma, ter determinados objetivos e dada leitura da realidade. Tambm
entendemos que insuficiente classific-los a partir somente da posio que os seus membros ocupam no
processo produtivo, ainda que esse seja um elemento muito importante, pois num mesmo movimento social
podem existir diversas fraes da classe trabalhadora: camponeses, desempregados urbanos, trabalhadores
rurais, indgenas, pessoas oriundas das classes mdias, universitrios etc., conformando-o efetivamente. E o simples pertencimento estrutural no parece ser capaz de definir suas potencialidades e limites a priori, sendo
fundamental a tomada de conscincia a partir da experincia vivida de classe, sobretudo no terreno frtil para
seu florescimento, nas lutas (THOMPSON, 2001).
8 (...) fica difcil definir em qual categoria o MST se encaixa, pois ao mesmo tempo em que ele tem tradio
marxista, com lderes carismticos, elementos que envolvem fatores psicossociais da tradio clssica, como a
mstica, os smbolos, a memria, tem materializado na sua prtica um jeito sui generis de mobilizar os
trabalhadores em torno de mudanas pontuais na sociedade com base em categorias como identidade e
valorizao da cultura, prprias dos NMS [Novos Movimentos Sociais] (SANTOS, 2013, p. 297).
9 Passando pela dimenso pedaggica (NETO, 1999; CALDART, 1986; BAUER, 2009); as relaes de
gnero (RUA; ABRAMOVAY, 2000; GONALVES, 2005; 2009; FURLIN, 2009); o espao socioterritorial
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pluralidade de temas e formas de conceitualizar e abordar os impactos produzidos pelo
MST.
Versamos sobre os movimentos sociais, nesta tese, no apenas pela tica da
questo social, de suas misrias e carncias, como movimentos sem, mas tambm numa
perspectiva poltica fundante, de transformao de aspectos estruturantes da sociedade, no
restrita ao campo eleitoral. Por isso, abordamos o MST como uma forma organizativa
desenvolvida por um conjunto da classe trabalhadora, que no prprio processo de fazer-se,
deu vazo aos limites das formas sindicais, que tinham por norte uma classe trabalhadora
masculina, estvel e com direitos. O MST desenvolve outros mecanismos que permitem a
integrao mais ampla dessa classe, incorporando a famlia e setores instveis de trabalho
informal, mais prximos da nova morfologia do trabalho. Contudo, o MST tambm no
escapa das formas clssicas de organizao da classe, como a prpria forma sindical e a
forma partido10. Isso faz com que o Movimento tenha grande capacidade de reinventar-se
e disponha de mltiplo repertrio de aes. Mas, igualmente, faz com que herde
particularidades e limites das formas organizativas tradicionais, como no conseguir
dilogo mais unitrio entre diversos setores e divises da classe, e uma verticalidade que
asfixia a crtica interna. Entretanto, cabe uma obviedade que, contudo, merece ser repetida:
todo processo social ambguo, e a mesma realidade que cria a tese cria a sua anttese.
Esta hibridizao do MST faz com que o Movimento v alm da atualizao do
repertrio reivindicativo que busca sadas para o desemprego no meio rural, lutando por
uma poltica de democratizao do campo brasileiro e pela transformao radical da
estrutura social do pas. Desta forma, ele transcende a classificao como um movimento
social temtico e diversifica o leque de formas de protesto social, atuando em variadas
frentes em parceria com distintos setores e produzindo impactos mltiplos na configurao
da sociedade brasileira.
(FERNANDES, 1996); os impasses na luta pela terra (LERRER, 2003); as relaes raciais (FERNANDES et
al., 2007; SOUZA, 2009; VILLAS BOAS, 2011); os meios de comunicao (GOHN, 2000b); a produo da
memria (BORGES, 2010; MORISSAWA, 2001); seus impactos na democratizao nacional (CARTER
2006; 2010); anlises comparativas dos processos de resistncia ao neoliberalismo (MACHADO, 2004);
relatos de sua luta (BRANFORD; ROCHA, 2004); a utilizao da mstica (VARGAS, 2008); a produo
cultural (VILLAS BOAS, 2006; HILSENBECK FILHO, 2012); entre outras obras.
10 No caso do MST ter caractersticas da forma partido, entendido como partido de organizao da classe,
Cf.: ALIAGA, 2008. Em sua dissertao Luciana Aliaga enfoca o momento essencialmente poltico do MST
e ressalta as suas novas experincias no campo da organizao poltica das classes subalternas do campo.
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9
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Esta pesquisa passou tambm ela por diversos dilemas e encruzilhadas.
Inicialmente pensava-se em articular uma anlise que conjugasse a luta popular no mbito
urbano (tendo por objeto alguns movimentos piqueteros argentinos), indgena (atravs do
zapatismo mexicano j anteriormente analisado na graduao e no mestrado), e rural (via
MST). Apesar das vrias advertncias, desde a poca da banca de seleo na Unicamp, de
que poderia ser uma tarefa demasiado extensa e herclea, insistimos nesse projeto at a
qualificao. Momento no qual, dada a complexidade no apenas do prprio MST, como
tambm do momento histrico especfico e dos dilemas enfrentados pelo Movimento na
atual conjuntura nacional, optamos (com a devida contribuio dos professores Paulo
Arantes e Andria Galvo) por nos centrar apenas na investigao do MST.
Outro elemento que contribuiu categoricamente para tal deciso foi o
envolvimento poltico e pessoal em assentamentos e acampamentos do MST, vivenciando
seus dilemas e potencialidades numa prtica que, inevitavelmente, reverberou na
constituio terica e analtica deste trabalho. Isto no significa um enviesamento da
pesquisa, que tampouco pretende uma assptica e impossvel neutralidade. Contudo, esta
postura tem implicaes metodolgicas, na medida em que a conquistada relao de
amizade e cumplicidade construda ao longo dos anos, em situaes de convvio as mais
variadas indo de festividades s resistncias contra despejos, de ocupaes de terras s
longas conversas com refeies preparadas no lento fogo a lenha permitiu ambientes de
grande informalidade e tambm de confiana mtua em relao a temas pouco explicitados
publicamente. Assim, nos valemos das intervenes, tanto como pesquisador que trazia
reflexes que podiam ser discutidas coletivamente junto a assentados, bem como de aes
polticas nas quais dissonncias e aproximaes podiam ser percebidas e apreendidas,
problematizando uma relao sujeito-objeto a partir de uma preocupao com a
potencialidade dos conhecimentos alternativos e da ao coletiva. Esperamos que tal
envolvimento profundo com os atores sociais, e as permutas recprocas (com integrantes e
com crticos do MST), tenham nos possibilitado uma viso menos chapada e ideologizada,
que reflita parte da amplitude de cores que envolvem as lutas sociais na atualidade.
Cabe ainda registrar um fato pouco lembrado na construo de uma tese de
doutoramento. Apesar de sua inquestionvel importncia, ela somente um elemento a
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10
mais do que forma um doutorado, competindo com outros fatores, como a prtica da
docncia, a participao em grupos de pesquisa, o conhecimento de novas teorias, o
aprofundamento de autores e temas, as paixes, as iluses e desiluses construdas, gerando
um amadurecimento terico e pessoal.
Uma das dificuldades em se realizar uma pesquisa sobre a esquerda, quando
nos situamos nesse campo poltico, evitar que a pura subjetividade interfira no processo
de anlise, ou seja, que a nossa vontade se sobreponha prpria realidade. Os resultados
desta pesquisa no foram decididos antes do seu incio, pelo contrrio, seus passos foram
nos levando por caminhos imprevisveis. Solues binrias, ideias simples e anlises
monodimensionais so mais sedutoras. Porm, apesar da (falsa) sensao de segurana,
pouco auxiliam na compreenso de uma realidade complexa, com problemas atravessados
por contradies e foras em conflito.
Deixando de lado o conforto de dogmas que levam esterilidade da
interpretao poltica, buscamos seguir o caminho da abertura de um debate que seja capaz
de auxiliar a compreender a situao vivenciada hoje pelo maior movimento social
brasileiro, e, atravs dele, a compreender os dilemas que na atualidade parecem atingir (de
modo mais ou menos contundente) a quase totalidade da esquerda. Neste caminho,
procuramos no ser irresponsveis, o que significa no desvelar questes de cunho ttico,
zelar pela segurana dos que nos forneceram informaes, manter constantemente a
preocupao com o possvel uso do que apresentamos, mas tambm, e de modo igualmente
importante, significa no sermos ingnuos em relao censura que argumenta que as
informaes desagradveis sobre fatos concretos devem ser silenciadas internamente. J
sabemos aonde essa histria nos levou e a inteno aqui no repeti-la, mas super-la11
.
A unio entre centralismo democrtico (ainda muito presente na esquerda),
moral e culpa religiosa acaba por produzir a paralisia da crtica. Junte-se a isso um processo
11
Realizar crticas a questes da esquerda no deveria se confundir com uma crtica esquerda em geral (nem
mesmo a todo um movimento em particular). Diante da existncia de campos de concentrao na URSS,
muitos intelectuais e militantes de esquerda preferiram o silncio, porque queriam acreditar que a denncia
pblica seria fazer o jogo do imperialismo estadunidense e do capitalismo. Portanto, esses fatos deveriam ser
discutidos em privado, afirmavam os defensores desta perspectiva. A indignao era, ento, remetida aos que
denunciavam publicamente a existncia dos campos de concentrao e no aos campos de concentrao em
si. As lutas no so a propriedade de um dirigente, de um partido ou um movimento. Se este tipo de
chantagem revivido porque as condies materiais de sua reproduo permanecem vivas.
-
11
de massiva produo literria e pouco crtica dos rumos do MST. Como nos disse uma ex-
dirigente: Quem era liderana na dcada de 1990 caiu num deslumbramento, nunca fomos
to elogiados e aplaudidos e passamos a acreditar no que escreviam sobre ns, sem fazer
um processo de autocrtica dos nossos passos.
Esta tese foi escrita no calor de um tempo histrico repleto de enorme
quantidade de mudanas, num momento em que as ruas sussurravam ou gritavam, e exigiu
a disposio de abandonar e repensar premissas profundamente arraigadas e aceitar
desencantamentos. No foram poucas as vezes em que sentimos o ato da escrita como algo
doloroso. Dialeticamente, a perda de iluses em conjunto com o chamado das ruas permitiu
o aflorar de uma convico que no poderia mais ser arrancada. Esta tese no teve por
intuito retratar o quo gloriosas so as lutas e seus sujeitos. Antes de tudo uma tese sobre
o presente, isto , uma tese sobre a nossa derrota at aqui. Mas tambm sobre uma
histria incompleta e aberta, e, por isso, uma tese que visa ao futuro. Em vez de nos
paralisarmos nos mitos, optamos por nos embrenhar em labirintos e becos sem sada, na
busca de desvendar ambiguidades e contradies, para, assim, auxiliar no processo coletivo
de formulao de perguntas que permitam o no tardar do nascimento do novo.
*******
1.1 Introduo
Aps um prembulo mais explicativo sobre algumas caractersticas e
porqus desta tese, optamos por fugir um pouco do convencional resumo preliminar dos
captulos e apresent-los a partir dos questionamos levantados. A linha condutora comum a
todos eles procurou ser pr em causa certos lugares comuns no pensamento corrente de
esquerda, com a inteno de contribuir em questes que se apresentam normalmente como
dualidades.
A comear pela questo da reforma agrria como algo intrinsecamente
progressista ou revolucionrio. Quais tm sido os argumentos para a realizao (ou no) de
uma reforma agrria no Brasil? Seguiria o modelo clssico adotado por outros pases?
Manteria a sua pertinncia na atualidade? Caso sim, a sua configurao seria a mesma?
Seria uma bandeira unvoca da esquerda? Como avanou essa discusso no interior do
prprio MST? E quais as implicaes da realizao da reforma agrria? De que modo o
-
12
governo tem tratado a agricultura (tanto a patronal quanto a camponesa e a familiar)?
E que tendncias podem-se observar a partir das polticas governamentais?
Dada a pertinncia do Estado e dos governos na definio dos rumos das lutas,
no terceiro captulo tentamos caracterizar um pouco os entendimentos do pas (com ou sem
sufixos) nesta ltima dcada de governos oriundos de partidos trabalhistas. Ps-neoliberal?
Neoliberal? Desenvolvimentista? Neo-desenvolvimentista? A compreenso dessas
definies ir implicar determinadas condues polticas, assim como determinadas
condues polticas iro definir o tipo de compreenso desses governos. Quais as
correlaes de fora? Que alianas e composies de classes? Como a velha (ou nova)
esquerda entende esse novo (ou velho) pas?
No quarto captulo dispomos acerca de uma possvel crise do MST nessa nova
conjuntura e interpelamos parcerias e convenincias. A relao do Movimento Sem Terra
com empresas do capitalismo transnacional seguiria uma linha nica de confronto e crtica?
Ou tambm seria permeada por trilhas paralelas de negociao, acordos e transaes?
Haveria um entendimento geral sobre monocultura, trabalho precarizado, insero no
(super)mercado? Como se tem dado a insero do MST nas polticas pblicas de
participao social? De que modo os distintos governos no pas redemocratizado tm
desenvolvido as polticas para reforma agrria e como essas se ligam com a participao do
Movimento e a continuidade do conflito agrrio? Mais especificamente, qual a relao
prtica do MST com o PT-governo? Como surgiram e que formas assumiram as polticas
pblicas de participao no pas, e o impacto delas nas formas de conflito (inclusive no
interior dos movimentos)? Qual o efeito, para os movimentos sociais, das polticas de
redistribuio de renda para as camadas mais pauperizadas da sociedade?
No quinto captulo fugimos do protocolo e abrimos uma exceo para discutir
um caso concreto que envolveu a luta de um assentamento para permanecer assentamento.
Procuramos compreender que tipos de relaes se desenvolveram no tringulo que envolvia
a luta desse assentamento, o MST e o governo.
Ah, cabe apenas mais uma advertncia: no se priorizaram as respostas a estas
questes. Assim, encerramos com algumas consideraes para deixar em aberto diversos
questionamentos.
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13
Ainda inclumos um apndice para uma caracterizao mais detalhada da
formao e desenvolvimento do MST. Optamos por no inserir esta parte no corpo do texto
propriamente dito, por ponderar ser mais proveitosa a leitura direta dos temas candentes,
considerando o amplo conhecimento da banca, e mesmo do leitor mdio, sobre o tema.
Ainda assim, nos pareceu importante deixar registradas as informaes sistematizadas
sobre o MST, para que os que se aventuram nas caractersticas e definies do Movimento
possam ter alm de uma interpretao sobre ele (o que pode dizer muito sobre o tipo de
questes que suscitamos), tambm uma fonte de referncias para o aprofundamento de
leituras e pesquisas. Tambm procuramos diluir a metodologia e as referncias tericas
utilizadas no corpo das discusses, no intuito de evitar um trao comum em teses que
separar a explicao terica e metodolgica da anlise e desenvolvimento do objeto.
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14
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15
2. REFORMA(S) AGRRIA(S) PARA QUE(M)?
Pensava que ns seguamos caminhos j feitos, mas parece que no os h. O nosso ir faz o caminho.
C. S. Lewis
2.1 A questo da reforma agrria no Brasil
O Brasil atual, contradizendo dcadas de cartilhas militantes, tem demonstrado
que a modernizao do campo pode ocorrer sem a implantao da reforma agrria, pois
efetua um tipo de insero na economia em que unifica modelos arcaicos e modernos12
.
Esta questo deve ser colocada em seu contexto histrico concreto, longe de corresponder a
um trajeto mecnico de modelos clssicos, que reproduziria automaticamente os
resultados desses modelos13
. Neste sentido, convm problematizar a funo da reforma
12
De acordo com notcia publicada no Valor Econmico em 11 de Julho de 2012, um levantamento realizado
pela OCDE estabeleceu que a produtividade da agricultura brasileira cresceu o dobro da mdia mundial na ultima dcada, ou cerca de 4% ao ano. O crescimento da produtividade brasileira passou de 0,9% ao ano, em mdia, entre 1961 e 1970, para 4,04% entre 2001 e 2009. Para efeitos de comparao, a Rssia e Ucrnia, que saram de nveis baixssimos, conseguiram altas de 4,29% e 5,35% ao ano, respectivamente, na
ltima dcada. Porm, no caso dos EUA, um dos maiores produtores mundiais, o ganho mdio de produtividade aumentou de 1,21% para 2,26% ao ano na ltima dcada. Cf.: Brasil destaque da OCDE sobre produtividade. Clipping Planejamento, 11 jul. 2012. Disponvel em:
. Alm do mais, numa srie de artigos, publicados em outubro de 2012, a revista Exame
(2012), confirma uma tendncia de aumento da produtividade na agricultura nacional. Um dos raros setores do Brasil que tm conseguido romper a barreira da inrcia na produtividade a agricultura. Resultado do
melhoramento gentico de sementes e da adoo de mquinas no campo, uma parte da agricultura nacional
deu um salto de eficincia. Nas ltimas quatro dcadas, a produtividade agrcola tem avanado, em mdia, 3%
ao ano. O melhor exemplo dessa transformao ocorreu nas lavouras de soja (...) Em 2011, o Brasil alcanou
o topo da produtividade mundial de soja. Os dados da importncia do setor agrcola para a economia nacional, fruto de dcadas de pesquisa de agncias como a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuria
(Embrapa) e de institutos universitrios como a Esalq-USP, foram, tambm, fruto de editorial do jornal Folha
de S. Paulo, em 03/12/2012. Outro documento interessante para anlise o Atlas do Espao Rural Brasileiro,
publicao do IBGE que integra os dados do Censo Agropecurio 2006, o processo de modernizao da
agropecuria vive uma transformao de um momento de grande mecanizao para um de maior investimento
em capital intelectual: Cf.: Censo Agropecurio 2006, IBGE. Disponvel em:
. E, o governo, atravs da agncia de inovao (Finep) e do BNDES lanou em 2013 um programa (Inova) no
valor de R$ 3 bilhes para financiar empresas do setor agropecurio, abrangendo trs linhas temticas:
insumos, processamento e mquinas e equipamentos: Cf.: Programa d apoio de R$ 3 bi agropecuria.
Folha de S. Paulo, 29 mail 2013. Disponvel em:
.
13 Um exemplo dessa complexidade apontada por um ex-militante do MST, para quem a modernizao
produtiva no campo foi, mesmo que indiretamente, resultado das lutas sociais. A minha impresso que no auge de nossa radicalidade a gente criou as condies para o desenvolvimento do capitalismo no campo, a
burguesia por conta prpria no chegava a esse patamar de organizao da produo, sem as tenses que
existiam no campo. A nossa radicalidade forou que eles resolvessem um problema que eles no resolveriam
-
16
agrria no Brasil contemporneo, que tipos de reforma agrria so propostos e por quem,
quais os projetos defendidos pelos movimentos populares rurais, qual o peso no
desenvolvimento econmico e social e o que sua ausncia revela. Em outras palavras,
preciso distinguir projetos direcionados exclusivamente para as estruturas econmicas dos
que so voltados para mudanas mais amplas, que envolvam a renovao da composio
das classes dominantes, ou a superao da prpria diviso de classes. Em suma, o que se
quer dizer com reforma agrria? Uma mobilizao de massas com aspectos radicais e
igualitrios, possibilitando servir como laboratrio de novas formas de sociabilidade ou
qualquer tipo de mudana relativamente profunda da sociedade rural? Sua natureza
capitalista, socialista, reformista-desenvolvimentista, revolucionria? A diviso entre
reforma e revoluo seria to demarcada? E, se for uma reforma, que tipo de reforma14
?
Como se configura a questo da reforma agrria no Brasil contemporneo? Como projeto
popular e progressista ela permanece inalterada, tal qual dcadas passadas? Quais os
entraves atuais para sua realizao? Ela ainda faz parte da agenda antissistmica e
anticapitalista de transformao social?
A reforma agrria no um termo unvoco; ao contrrio, um conceito bastante
controverso, podendo ser analisado enquanto uma questo de ordem econmica, poltica,
ideolgica, social. Portanto, devemos compreend-la como um processo (contraditrio) de
transformao das relaes sociais (relaes de produo e poder) e seu carter
revolucionrio, radical, progressista, capitalista definido pela correlao das foras
polticas.
Considerando as posies defendidas nos congressos do Partido Comunista
Brasileiro (PCB) e as aes governamentais, a percepo da existncia de uma questo
por conta prpria. O nosso grande questionamento para a reforma agrria era a produtividade, o fato de ter
latifndios improdutivos no Brasil. (...) Se no existisse os enfrentamentos que a gente travou, talvez, a
formao das indstrias no campo no estaria no estgio de desenvolvimento que est. Porque usina sempre
existiu, isso fato, mas no a integrao dela ao processo cientfico, com formas de explorao de trabalho e
as estruturas que possui (ALBUQUERQUE, 2012).
14 Mnica Dias Martins (2004, p. 61) demonstra que A reforma agrria no necessariamente radical. A
administrao Kennedy e a Aliana para o Progresso pressionaram os governos latino-americanos a
empreender programas de reforma agrria. No Brasil, durante a presidncia de Joo Goulart (1962-1964),
ocorreram grandes mobilizaes pela reforma agrria, tida como um elemento-chave para democratizar a
estrutura social do pas. No perodo da ditadura (1964-1985), os militares a consideraram uma questo de
segurana nacional, estratgica para o desenvolvimento capitalista. E, ainda, a reforma agrria foi utilizada
como uma poltica estatal para restringir as lutas por terra. Mas ela tambm teve importante papel nas
mudanas estruturais em pases como Mxico, Cuba, Chile, Nicargua e Peru, entre outros.
-
17
agrria no Brasil consolidou-se na dcada de 1950 (ainda que a reflexo sobre a questo
agrria seja bem anterior)15
. A centralizao da terra como propriedade de alguns
latifundirios seria o principal motivo da misria econmica, social e poltica da grande
maioria da populao nacional, na poca, em 1940, com cerca de 70% residente no campo.
Mas essa situao no era restrita ao meio rural, pois, a misria imposta no campo, que
exclua grande parte da populao do mercado, acabava por bloquear tambm o
desenvolvimento da industrializao, fazendo com que o latifndio fosse alado a agente do
atraso do desenvolvimento brasileiro16
.
As lutas camponesas, diante desse quadro, obtiveram visibilidade e apoio de
grupos diversos, como partidos e sindicatos, mas tambm a oposio de grupos
tradicionais, sendo a questo da reforma agrria um dos motivos sustentados para o golpe
civil-militar. Em 1964 a reforma agrria j se constitua como pauta poltica nacional e o
governo do general Castelo Branco criou o Estatuto da Terra, a primeira lei de reforma
agrria. Independentemente de a reforma agrria no ter sido realizada, ela se tornou o
fundamento das mobilizaes rurais.
Nos anos 1970 ganha fora o argumento de que o peso da pequena produo era
estratgico para o desenvolvimento capitalista, na medida em que ofertava alimentos a
baixos preos. Na dcada seguinte esta tese ser questionada por argumentos de que o
problema alimentar nacional no teria relao direta com a questo agrria, convertendo-se
mais num problema de renda, sendo que a pequena produo adquiriria um peso econmico
15
Por parte da burguesia local, vem pelo menos desde os debates do Baro de Mau com seus pares aristocratas do Senado quanto vocao do Brasil, se agrria ou industrial. Este debate segue nos anos 1930 com os corporativistas Roberto Simonsen e congneres e Octvio Brando como voz isolada no PCB. De todo o modo, embora estivesse colocada desde muito antes, foi a partir do fim da Segunda Guerra
Mundial, em especial com o avano da industrializao, que a questo agrria passou a ter mais peso. (PASSA PALAVRA, 2012).
16 Conferir, entre outras, as obras de Nelson Werneck Sodr (1964) e Alberto Passos Guimares (s/d).
relevante tambm considerar a observao de Horcio Carvalho (2013, p. 130-131), de que nas diferentes
proposies estratgicas sobre a questo agrria, seja popular ou burguesa (salvo pontuais excees), (...) o campesinato, na sua enorme diversidade, foi considerado a expresso do atraso tecnolgico, cultural e
poltico, portanto, com potencial antirrevolucionrio. E, alm dele, foram desconsiderados, como sendo
irrelevantes para as mudanas capitalistas pretendidas no campo, os extrativistas, os povos indgenas, os
quilombolas e o protagonismo das mulheres.
-
18
cada vez menor, bem como a agricultura iria perdendo importncia no desenvolvimento do
pas (ABRAMOVAY, 2013)17
.
Jos de Souza Martins (1984) ir defender que o entrave circulao e
reproduo do capital na agricultura foi removido pelos incentivos fiscais, e no pela
realizao de uma reforma agrria, diferenciando-se, assim, e invertendo o modelo clssico
da relao entre terra e capital. O empresrio pagava por terras ilcitas, fruto de grilagem, e
recebia como compensao, sob a forma de incentivo fiscal, o capital necessrio para tornar
a terra produtiva, reforando, com isso, o sistema oligrquico. Nesse modelo o capital
transforma-se tambm em proprietrio da terra. A ditadura gestou o casamento em uma s
figura entre latifundirios e capitalistas. Essa perspectiva, de desenvolvimento do modo
capitalista de produo brasileiro alicerado num processo contraditrio e combinado,
questiona o pressuposto de que a burguesia e o capital teriam uma misso revolucionria
em face da questo agrria. O desenvolvimento imporia relaes especificamente
capitalistas (como o trabalho assalariado), mas igual e contraditoriamente, mantendo
relaes camponesas de produo, sendo ambas necessrias para a sua lgica de
desenvolvimento.
Antes de prosseguirmos na exposio das posies deste debate, convm
explicitar a leitura de Cndido Grzybowski (2013, p. 346-347), datada de 1991, sobre a
relao entre modernizao e excluso social:
Os problemas vividos pela maioria da populao rural, em
particular os trabalhadores assalariados, os camponeses e as suas
famlias, por trs das variadas formas de sua integrao, explorao
e marginalizao, que aprofundam a desigualdade, no so devidos
falta de desenvolvimento, mas, ao contrrio, ao sucesso do modelo modernizador.
Modernizao que, por certo, no criou a desigualdade e a excluso no meio
rural, mas serviu como processo de sua reproduo ampliada. E a resistncia a esse
processo o que vislumbramos com a ao dos movimentos populares rurais. Alis, a
relao entre desenvolvimento e conflito agrrio inerente contradio estrutural do
17
Para uma perspectiva contempornea de defesa das Ocupaes rurais no agrcolas (Orna) e de uma
reforma agrria que impulsione novas formas de atividades no meio rural, como o ecoturismo, em que h uma
relao profunda entre o rural e o urbano que lhe contguo, cf.: Graziano da Silva (2013).
-
19
capitalismo, ocorrendo, de forma paradoxal, concomitantemente (FERNANDES, 2013a, p.
174).
O debate contemporneo sobre reforma agrria no Brasil divide-se basicamente
em dois polos antagnicos. Por um lado, h os que compreendem que a reforma agrria no
seja mais necessria, pois a modernizao tecnolgica da agricultura e o aumento da
produtividade a tornaria cada vez mais desnecessria; o xodo rural levaria ao
desaparecimento da classe camponesa; o problema da improdutividade da terra estaria
sendo resolvido pela converso dos latifndios em empresas do agronegcio (para as quais
no caberia limitao de tamanho); alm do mais, a poltica de assentamentos da reforma
agrria no teria sido bem sucedida, pois teriam se tornado favelas rurais. Os que
defendem a obsolescncia da reforma agrria apostam na simbiose entre a agricultura
familiar e as fazendas do agronegcio (NAVARRO, 2002; 2003)18
.
Por outro lado, os que defendem a reforma agrria, contra-argumentam que
grande parte dos latifndios no perduraria sem os volumosos subsdios pblicos e que a
precariedade de muitos assentamentos decorrncia da (falta de) poltica governamental, e
de sua constituio em reas longe do acesso a servios pblicos e a mercados locais. Dos
assentamentos criados entre 1995 e 2001, cerca de metade no possua energia eltrica e
gua potvel, em quase 1/3 no havia escola de nvel fundamental e em mais de 60% no
havia assistncia mdica emergencial. Ainda assim, apenas 12% dos lotes agrcolas haviam
sido abandonados (CARTER, 2009). Esta situao no uma singularidade brasileira. De
acordo com dados da CEPAL h uma relao na Amrica Latina entre pobreza e mundo
rural, sendo que as cidades concentram 26% da populao em situao de pobreza,
enquanto no campo a porcentagem chega a 56% (TRASPADINI, 2012).
Outro argumento dos defensores da reforma agrria que ela integra uma
poltica eficaz contra a secular injustia social do Brasil, pois conseguiria diminuir a
desigualdade social. O agronegcio19
no seria uma alternativa, porque no to eficiente
18
Em editorial, o jornal O Globo decreta a reforma agrria como desnecessria, dado o avano do capitalismo
no campo, que teria acabado com o latifndio improdutivo e, de quebra, com a ajuda da agricultura familiar,
estaria recolhendo uma bandeira ideolgica da esquerda. Cf.: A cada vez mais desnecessria reforma agrria.
O Globo, 03 fev. 2013. Disponvel em: < http://oglobo.globo.com/opiniao/a-cada-vez-mais-desnecessaria-
reforma-agraria-7470663>.
19 O processo de construo da imagem do agronegcio oculta seu carter concentrador, predador,
expropriatrio e excludente para dar relevncia somente ao carter produtivista, destacando o aumento da
produo, da riqueza e das novas tecnologias. Todavia, a questo estrutural permanece. Do trabalho escravo
-
20
quanto divulgam, sendo prova disso o fato de o governo continuar a utilizar os ndices de
produtividade do Censo Agropecurio de 1975, e no norte do pas a improdutividade da
terra no foi superada, a exemplo de outras regies. Mantm-se a acumulao no campo
pela forma de espoliao de terras, conjugando-a com a explorao do trabalho.
Alm disso, baseando-se no Censo Agropecurio de 2006, demonstram que a
maior parte dos alimentos consumidos no Brasil produto da agricultura familiar:
mandioca (92%), carne de frango e ovos (88%), banana (85%), feijo (78%), batatas (77%),
caf (70%) e leite (71%) (CARTER, 2009) 20
. Para muitos de seus defensores, a reforma
agrria tambm teria que ser considerada pelos seus ganhos no manejo ecolgico, que seria
prprio da agricultura familiar, em contraposio ao agronegcio, marcado pela forte
dependncia de defensivos qumicos, pela monocultura e pela criao de gado21
. Afirmam
tambm que este tipo de produo agrcola apresenta maior produtividade por hectare (em
terras de menor qualidade) do que as fazendas de grande escala, gerando ainda um maior
nmero de empregos no campo (87%) e de forma mais barata (OLIVEIRA, 2004). Por
outro lado, Joo Bernardo (2011) chama a ateno para o fato de que os dados referentes ao
colheitadeira controlada por satlite, o processo de explorao e dominao est presente, a concentrao da
propriedade da terra se intensifica e a destruio do campesinato aumenta (...) qualquer que seja o eufemismo
utilizado, no pode esconder o que est na sua raiz, na sua lgica: a concentrao e a explorao (FERNANDES, 2013a, p. 216)
20 A agricultura familiar abordada a partir de caractersticas especficas a depender do recorte do
pesquisador, podendo ser analisada a partir de seu peso econmico, da importncia dos aspectos sociolgicos,
ressaltando as relaes sociais dessa forma de produo, ou, por exemplo, com enfoque a partir de um ponto
de vista antropolgico. Para alguns crticos desta perspectiva, o que fruto de uma derrota seria apresentado
como uma conquista, pois as estatsticas do Censo Agropecurio de 2006 demonstrariam a reproduo do
mesmo sistema que combatido na estrutura agropecuria nacional (em que a produo de subsistncia se d
a reboque dos sistemas de grandes plantaes de monocultura). A agricultura familiar no teria condies de
avanar em setores onde o agronegcio e a monocultura domina (e considerando, ainda, arrendamentos e
meaes), pois exigiria economias de escala impossveis para a agricultura familiar alcanar (PASSA
PALAVRA, 2012).
21 Alguns argumentos crticos em relao produtividade da agricultura familiar procuram sustentar que: Por
um lado, as culturas intensivas so sempre mais produtivas por hectare do que as culturas extensivas. Por rea
plantada, as hortas e os pomares so sempre mais produtivos do que os campos de cereais, da o papel que
desempenham na produo de alguns alimentos. A comparao da produtividade por hectare deve ser feita,
por isso, entre a cultura intensiva em exploraes familiares tradicionais e a cultura intensiva em exploraes
capitalistas modernas e usando novas tecnologias. Por outro lado, quando afirmam que a agricultura familiar
gera um maior nmero de empregos no campo, os defensores desta modalidade de Reforma Agrria esto
implicitamente dizendo que esse tipo de explorao muito menos produtivo em termos de fora de trabalho.
E quando acrescentam que os empregos so gerados de forma mais barata na agricultura familiar do que no
agronegcio, os defensores daquela modalidade de Reforma Agrria esto implicitamente reconhecendo que o
sistema de trabalho domstico constitui uma forma gravosa de auto-explorao (PASSA PALAVRA, 2012b).
-
21
emprego de um maior nmero de mo-de-obra a um custo inferior indicariam que a
agricultura familiar se assenta num sistema de mais-valia absoluta, de sobre-explorao,
pois no contabiliza o tempo de trabalho como custo, o que prprio das economias
domsticas.
necessrio considerar que o Brasil passou por mudanas fundamentais na sua
distribuio populacional, invertendo a relao entre o rural e o urbano. Se em 1940 havia a
predominncia da populao residindo no meio rural, em quatro dcadas essa proporo se
inverteu, e em 1980 a populao urbana j era de aproximadamente 68%, contra 32% da
rural. Essa tendncia se aprofundou e, de acordo com o Censo de 2010, a populao
residente na rea rural inferior a 16%; continuando nessa perspectiva, estimativas
preveem que a taxa de urbanizao no Brasil deva chegar a 90% at 2020 (ONU-
HABITAT, 2012). Mas, ainda de acordo com o Censo de 2010, temos que considerar que a
concentrao urbana no significa necessariamente a reduo da agropecuria22
. A maioria
dos municpios possui economia diretamente ligada produo agropecuria ou ao
extrativismo, fazendo com que, embora a maior parte da populao viva nas cidades, quase
metade dela ainda esteja ligada agropecuria ou a servios relacionados. Sendo assim,
embora hoje mais de 80% da populao brasileira resida em cidades, pode dizer-se que
quase metade da populao brasileira vive da agropecuria ou de servios a ela
relacionados.
Uma das maiores consequncias da reforma agrria, segundo a quase
generalidade de seus defensores, seria a de modificar a dinmica de crescimento das
periferias e favelas nos centros urbanos, atravs da conteno do xodo rural. Um dos
argumentos subjacentes a esta perspectiva que, com o fortalecimento dos pequenos
municpios e com a conteno do xodo rural, ocorreria a diminuio da pobreza, dos
ndices de criminalidade e da violncia. Ora, esta tese encontra paralelo na de que esses
fatores so gerados pela classe trabalhadora precarizada: O problema do aumento da
violncia urbana, gerada pelo desemprego, levou a sociedade brasileira, de modo geral, a
apoiar a luta dos sem-terra pela reforma agrria, na esperana de fixar o homem no campo,
22
Dos 5.565 municpios brasileiros somente 284 (5,1% do total) ultrapassaram os 100 mil habitantes, e sua
populao somada chegava a 105.626.953 pessoas (54,91% do total). Os 5.279 municpios restantes (94,86%
do total) esto abaixo dos 100 mil habitantes, e sua populao somada era de 86.649.231 pessoas (45,04% da
populao brasileira total).
-
22
diminuir a pobreza nas cidades, e diminuir aquela violncia (GOHN, 2000, p. 305). Assim
se repe, uma vez mais, outra diviso no seio da prpria classe trabalhadora, pretendendo
que os mais pobres so os mais perigosos. Nas teorias segundo as quais a reforma agrria
a sada para os pobres e a violncia nas cidades, tambm se instala a pobreza como um
problema em si, invisibilizando que a riqueza a sua contraparte dialtica e causadora dos
problemas sociais. Esta perspectiva, mesmo que involuntariamente, acaba por vincular o
discurso de lideranas do MST (e de amplos setores da esquerda que o endossam) com o
seu corolrio inverso, fazendo uma analogia fcil entre pobreza e violncia. De todo modo,
ao proceder a uma anlise comparativa no tocante definio de pobreza, percebe-se que a
situao econmica das famlias nos assentamentos difere, qualitativamente, em muitos
graus da carncia em que viviam anteriormente, e ainda deve-se considerar que uma
pobreza autogerida e vivenciada solidariamente pode ser o oposto da misria23
.
Alm da permanncia de trabalhadores no campo e da migrao para as
periferias e favelas das grandes cidades, ocorre tambm o processo de migraes sazonais
em busca de empregos temporrios nas indstrias agrcolas e na construo civil. O
crescimento econmico nos ltimos anos coloca algumas dificuldades para a proposta de
reforma agrria, com a oferta de empregos nas cidades, como na construo civil, e a crise
da agricultura camponesa, em que cerca de 90% dos agricultores familiares esto com
enormes dificuldades econmicas (FERNANDES, 2011). Contudo, deve-se considerar que
essa situao de crescimento econmico tambm possibilita a criao e o desenvolvimento
de uma unidade de luta entre os trabalhadores, do campo e da cidade, seja por interesses
comuns ou pelo mesmo sujeito social pertencer em momentos distintos dinmica do
trabalho urbano e rural.
23
O referido relatrio da ONU para o habitat conclui que so os centros urbanos os impulsionadores da
economia no apenas no pas mas em toda a regio da Amrica Latina e do Caribe, concentrando-se nas
cidades os servios e a indstria; sendo elas responsveis por dois teros do Produto Interno Bruto de toda a
regio; tendo crescido seis vezes o nmero de cidades na regio desde os anos 1960, o que a torna uma das
regies mais urbanizada do mundo, com cerca de 80% do total da populao (588 milhes de pessoas)
vivendo em cidades ficando atrs da Amrica do Norte (82,1%) e Europa (84,4%). Este relatrio da ONU mostra tambm que aumentaram a desigualdade e as contradies sociais nas cidades, sendo que 111 milhes
de pessoas na regio vivem em habitaes precrias. Mas uma das caractersticas do sistema capitalista a
concentrao demogrfica urbana, e o processo de inverter a migrao dos campos para as cidades tem sido
consequncia do atraso econmico, tanto diminuindo a produtividade da agropecuria como freando o
crescimento da indstria e dos servios.
-
23
Deve-se ainda considerar que o agronegcio em parte como efeito colateral da
luta dos movimentos rurais nas dcadas passadas j no corresponde ao velho modelo
latifundirio, tendo se modernizado e elevado os nveis de produtividade. No atual modelo
econmico responde a uma parte considervel do supervit comercial24
mesmo que
alguns autores, como Delgado (2012), apontem que no ocorre uma distribuio desses
benefcios para o conjunto da economia. Alm do mais, esses fatores somados aos
programas de assistncia focada, como o Bolsa Famlia25
, ao retirarem milhes de pessoas
da misria extrema, romperem com elementos mais imediatos da cultura coronelista
(baseada na dependncia alimentar) e garantirem o acesso a certos servios bsicos,
impactam na base potencial de agricultores, colocando novos dilemas para a reforma
agrria. Numa conjuntura em que impera o livre desenvolvimento do capitalismo no
campo, atravs do incentivo governamental ao mercado, qual tem sido a proposta de
reforma agrria do MST?
2.2 Projetos de reforma agrria do MST
Simplificadamente, o MST tem proposto um modelo de reforma agrria que
modifique no apenas a estrutura da propriedade da terra, redistribuindo-a entre os
pequenos agricultores, mas tambm que transforme o modo de produo e as relaes de
trabalho no meio rural.
Entretanto, a problemtica da questo agrria muito mais complexa. A
contradio est presente no apenas no modelo de reforma agrria hegemnico, mas,
inclusive no projeto do MST. Essa contradio seria expressa no fato do MST atravs da
ocupao romper com o direito de propriedade privada, mas acabar por aceitar, e mesmo
defender, a pequena propriedade rural, no rompendo, assim, com as relaes capitalistas
de produo (NETO, 1999). Para Neto, apesar da extrema relevncia do MST na luta pela
organizao dos trabalhadores rurais, essa contradio se constitui historicamente como um
entrave conservador que amplia e refora as relaes capitalistas.
24
Joo Bernardo (2011b) um dos autores que, ao contrrio de teses como a de Bresser-Pereira, defende que
a transformao das commodities num dos principais pilares da economia brasileira no corresponde a uma
regresso tecnolgica nem a um regresso ao Brasil-colnia.
25 Cf.: DOSSI: Especial Bolsa Famlia. Passa Palavra, 19 abr. 2010. Disponvel em:
.
-
24
Ainda assim, alguns questionamentos que podem ser levantados referem-se ao
processo de concentrao do capital: seja atravs de alguns poucos proprietrios bem-
sucedidos que passem a assalariar grande parcela de ex-proprietrios fracassados (como
ocorreu, por exemplo, na URSS entre 1917 e 1928); seja por meio das grandes empresas
transnacionais assalariarem temporariamente os pequenos proprietrios, ou ainda pelo fato
de estes arrendarem suas terras para a plantao de determinada monocultura (sob
orientao e assessoria das transnacionais e grandes proprietrios), fato que poder ser
facilitado e legalizado pela poltica proposta pelo atual governo Dilma de emancipao
dos assentamentos26.
Ademar Bogo (2009, p. 69), da direo do MST, reconhece os limites da
reforma agrria e do MST neste quesito:
Somos uma fora poltica importante e ao mesmo tempo limitada.
Nosso objetivo lutar pela reforma agrria, embora saibamos que
ela somente se realizar na totalidade em um sistema socialista, mas
nem por isso, como movimento social, temos a pretenso de
impulsionar sozinhos a construo dessa grande obra, a revoluo
poltica, pois demanda muito mais fora e muito mais
representatividade. Mas o importante no reconhecer a fraqueza,
mas descobrir como ampliar as foras.
Essa condio tambm problematizada por Eliel Machado, para quem,
(...) a despeito de sabermos que estes movimentos no tm fora
poltica para enfrentar a sua situao de classe pauperizada a no ser
reivindicando terra ou trabalho para sobreviver, este acaba sendo
um fator limitador da sua luta poltica e ideolgica. Aquilo que
serve como motor da organizao em classe o questionamento jurdico-poltico da concentrao da propriedade privada dos meios
de produo em pouqussimas mos durante os acampamentos,
marchas, bloqueios de estradas etc. perde fora poltica quando se torna assentado ou cooperado (formao das cooperativas: olarias,
marcenarias, padarias, metalurgias etc.), pois so obrigados a
produzir para o mercado e, alm disso, demonstrar a viabilidade
econmica de seus empreendimentos. O Estado burgus, por sua
vez, procura inviabiliz-los de vrias formas, sendo a mais comum
ao dificultar a liberao de crditos para a produo, plantio e
cultivo (MACHADO, 2009b, p. 40).
26
Trataremos deste assunto mais frente no tpico sobre a emancipao compulsria dos assentamentos.
-
25
Mas, o membro do MST destaca a potencialidade da reforma agrria como elo
de um processo revolucionrio mais amplo:
Podemos dizer que, por duas razes, a reforma agrria est ligada
revoluo. A primeira por ela estar no campo das reformas em que obrigatoriamente deve impulsionar a revoluo para a frente
por meio da luta pelas necessidades imediatas dos Trabalhadores
Sem Terra e da sociedade. A segunda razo, por ela estar vinculada
a essa concepo antecipada da sociedade socialista que
pretendemos construir, em que a propriedade privada sofrer
mudanas profundas na forma de sua existncia (BOGO, 2009, p.
69-70).
Contudo, quais seriam essas concepes antecipadas da sociedade socialista? O
questionamento da propriedade privada no daria lugar a uma defesa da pequena
propriedade? A organizao da produo em bases coletivas no cederia normatividade
do mercado institudo?
Estas contradies permeiam a luta do MST, e as tendncias que o empurram
para a normatividade sistmica travam um embate com os elementos de ruptura com o
capitalismo (a concepo antecipada da sociedade socialista, como destaca Bogo)
existentes dentro dos assentamentos e acampamentos, tanto no mbito da produo quanto
das relaes sociais e da prpria poltica. Em que medida ambas as tendncias so
incentivadas ou constrangidas pela prpria forma organizativa do MST?
A transformao do projeto de reforma agrria do MST
Como pode ser conferido no Apndice desta tese, no seu I Encontro Nacional
em 1984, o MST defende como um de seus princpios gerais o de Lutar pela reforma
agrria j, alm de Lutar por uma sociedade igualitria, acabando com o capitalismo.
Alm disso, enfatizado que o MST deve sempre manter sua autonomia poltica,
sendo que o acesso terra deve ser atravs da presso e da luta (MST, 1984, apud
STDILE, 2012a grifos nossos).
Porm, o modelo econmico desenvolvido na sociedade brasileira (urbano-
industrial) iniciado nos anos 1930 teve seu fechamento nos anos 1980, fazendo com que se
modificasse a funo da agricultura (PIZZETA, 2012). Na avaliao do dirigente do MST
ainda havia espao poltico para o modelo clssico de reforma agrria enquanto o padro da
-
26
agricultura era o de fornecer mo-de-obra, alimentos e matria-prima para uma sociedade
em processo de industrializao. Mas, com o declnio desse antigo modelo de
industrializao (de substituio de importaes) e a insero do pas na economia
capitalista globalizada, a totalidade das terras (produtivas ou improdutivas) passa a ser alvo
de empresas transnacionais e de especulao do agronegcio, com vistas a atender
demanda internacional de commodites e matria-prima. Isso faz com que a reforma agrria
(baseada na produo de alimentos) e a questo agrria brasileira estejam ligadas a uma
mudana no modelo de agricultura do pas.
Assim, uma dcada depois da primeira meno de reforma agrria apresentada
pelo MST (em 1984), no III Encontro Nacional, o Movimento apresentou uma Proposta
para a Reforma Agrria, ampliando a discusso para vrios pontos no tratados no
documento de 1984. Insere a reforma agrria no conjunto mais amplo da sociedade,
transcendendo os problemas especficos dos sem terra e do conflito fundirio. Reafirma o
questionamento da propriedade privada ao vincular a terra sua funo social e por
entend-la como (...) um bem fundamental da natureza que no pode estar aprisionada pela
propriedade privada absoluta, em que o proprietrio faz o que quiser (MST, 1995),
passando a abordar temas como a comercializao dos produtos agrcolas e a ao do
Estado como instrumento essencial desse projeto de reforma agrria. Nestes dois ltimos
quesitos, o MST passa a reivindicar a existncia de polticas pblicas de compras dos
produtos dos assentamentos, atravs das associaes dos camponeses em empresas de
produo agropecuria sob gesto dos trabalhadores (vinculados como donos de cota-
partes ou por contrato de trabalho individual), e o estabelecimento de preos subsidiados e
diferenciados para esse setor. Desse modo, reivindica que seja dada prioridade nas compras
governamentais para merenda escolar, cesta bsica, programas de combate fome,
hospitais pblicos, foras armadas etc. aos produtos agrcolas oriundos da reforma agrria.
No entanto, tambm esta proposta de reforma agrria popular de 1995 estava
alicerada numa conjuntura que se transformou rapidamente, como j apontado por Pizzeta.
Na avaliao de Stdile (2012b),
No passado, a expresso reforma agrria era entendida por muitos
apenas como desapropriao de uma fazenda e distribuio dos
lotes de terra. Essa reforma agrria funcionava quando o modelo
econmico era dominado pelas indstrias. E, portanto, os
camponeses se integravam com a indstria e conseguiam sair da
-
27
pobreza. Era a chamada reforma agrria clssica, que a maioria dos
pases industrializados fizeram. Agora, o capitalismo dominante o
do capital financeiro e das empresas transnacionais, tambm na
agricultura, com o chamado agronegcio. Assim, eles conseguem
aumentar o lucro e a produo sem os camponeses.
Na avaliao de Pizzeta (2012) a reforma agrria atual no pode prescindir do
acesso ao conhecimento cientfico e pesquisa, no sentido de se fundamentar em outra
matriz produtiva, que englobe os avanos adquiridos pela humanidade e promova a
preservao do meio ambiente e que no seja danosa sade do produtor e do consumidor.
Leitura semelhante desenvolvida por outra liderana do MST, Gilmar Mauro (2013), para
quem um novo modelo de reforma agrria e de processo produtivo deve aliviar as
dificuldades do trabalho agrcola e, ao mesmo tempo, no ser nociva populao e ao
ambiente.
Nestas circunstncias (e alicerado numa leitura de descenso social da classe
trabalhadora), para superar a proposta de reforma agrria clssica, um dos desafios para o
MST e movimentos camponeses estaria em comunicar um novo projeto,
(...) para fazer com que a sociedade perceba quais so as bandeiras
que defendemos e quais so as propostas que esto em confronto: a
da Reforma Agrria popular e a do Agronegcio [] preciso que a sociedade perceba que est em jogo o tipo de sociedade, de
agricultura e de alimentos que queremos (PIZZETA, 2012).
Ainda conforme Pizzeta (2012) h a necessidade de um avano na questo da
agroindstria, levando-a para as reas de reforma agrria.
Isso possibilitaria um acmulo de produo, de riqueza, daquilo que
a agricultura pode gerar [] no s a questo da produo, de agregar valor para aquilo que se produz. tambm um leque de
possibilidades para que a populao tenha melhores condies de
vida no campo e uma perspectiva de ascenso social no meio rural.
Contudo, como questiona o coletivo Passa Palavra (2012a),
(...) esta comunicao com a sociedade refere-se apenas escolha entre aqueles dois modelos de desenvolvimento propostos? Tal
como ocorre nas eleies, caberia a essa sociedade consumidora optar por dois produtos na prateleira? Ou cabe s foras polticas e
aos militantes de esquerda refletirem sobre as consequncias de tais
modelos, optando, inclusive, pelo desenvolvimento de formas
-
28
alternativas, em vez de se assemelharem a torcedores numa partida
de futebol?
Reforma agrria atualmente
Como visto, de acordo com o MST, com o atual modelo hegemnico do
capitalismo no campo no cabe mais a implantao do projeto clssico de reforma agrria
(de diviso das terras do latifndio improdutivo entre os camponeses empobrecidos), pois
se aprofundou a integrao do latifndio com as empresas transnacionais e com o capital
financeiro (no que se denominou agronegcio), com o intuito de exportar matrias-primas e
para a produo de energia, celulose e commodities27
. No entanto, o MST tambm
reconhece que a reforma agrria no se resume a esse modelo clssico e a proposta
defendida pelo Movimento, supostamente, pretende contrapor-se ao modelo hegemnico.
Combater as empresas transnacionais que querem controlar as
sementes, a produo e o comrcio agrcola brasileiro, como a
Monsanto, Syngenta, Cargill, Bunge, ADM, Nestl, Basf, Bayer,
Aracruz, Stora Enso, entre outras. Impedir que continuem
explorando nossa natureza, nossa fora de trabalho e nosso pas
(MST, 2007)28
.
Modifica-se, portanto, a luta de classes no campo, somando-se ao antigo
inimigo no derrotado novos oponentes.
Armando Boito Jr. (2012, p. 98) nos fornece uma definio mais rigorosa do
agronegcio, como um setor mais amplo e heterogneo, de poder e lucratividade bastante
desigual, atuando antes, dentro e depois da porteira. As funes ativas no agronegcio so
a propriedade da terra, a produo agrcola ou pecuria, a comercializao do produto, a
intermediao financeira e a prpria indstria de processamento um dos departamentos
importantes da FIESP cuida do agronegcio. O peso poltico deste setor seria o elo mais
fraco, apesar de seu poder na estrutura econmica e social brasileira. importante tambm
27
Segundo Joo Pedro Stdile (2007), o agronegcio uma grande aliana entre as empresas transnacionais que controlam os insumos, o mercado internacional e os preos dos produtos agrcolas e os grandes proprietrios capitalistas. Eles querem produzir apenas mercadorias que deem lucro e para o mercado
externo.
28Algumas anlises iro sustentar que tal perspectiva no corresponde realidade contempornea, pois o
Brasil procederia nos moldes de um pas hegemnico (e mesmo com traos neoimperiais) na frica e em
alguns pases da Amrica Latina (que se exerce notadamente na agropecuria), do mesmo modo que o MST
acusa o imperialismo estrangeiro de atuar no pas, sendo esta uma inadequao do discurso nacionalista a uma
realidade transnacional do capital. Cf.: Passa Palavra (2012).
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29
distinguir entre, por um lado, os grandes grupos econmicos que se inserem em todas as
etapas do ciclo de valorizao do capital e, por outro, as empresas e grupos familiares
especializados em cada uma dessas funes.
Como de