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Da Disciplina à Segurança - Michel Foucault e a Biopolítica Neoliberal

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  • DA DISCIPLINA SEGURANA:

    MICHEL FOUCAULT E A BIOPOLTICA NEOLIBERAL

    Allan Mohamad Hillani

    Mestrando em Teoria e Filosofia do Direito UERJ

    [email protected]

    Uma das afirmaes mais comuns feitas a partir da obra de Michel Foucault a

    de que vivemos em uma sociedade disciplinar (Foucault, 2011, p. 198), que estamos

    sob constante vigilncia e submetidos a diversos crceres sociais (a escola, o hospital,

    a famlia, etc.) que nos tornam sujeitos dceis e controlados. No entanto, na segunda

    metade dos anos setenta, Foucault comeou a perceber que a sociedade contempornea

    estava cada vez menos se caracterizando por essas formas de exerccio do poder. Essa

    passagem se deu em boa parte graas insero da ideia de governamento nas suas

    pesquisas, que representou uma mudana de perspectiva em seu pensamento a partir de

    1978. At esse ano os estudos foucaultianos sobre o poder se dedicavam disciplina e

    diferena desta para com a soberania (forma jurdica clssica de poder). A forma soberana

    de exerccio do poder, espetacular e dispendiosa, tpica das punies exemplares, se

    oporia disciplina e vigilncia panptica, uma forma de poder individualizadora que

    agia diretamente sobre o corpo do indivduo em todos os estgios de sua vida (p. 282). A

    soberania seria um poder jurdico, o poder da lei, a disciplina seria o poder das prticas,

    da norma, da normalizao (Foucault, 2010, p. 32). Sua teoria do poder at ento se

    amparava na chamada hiptese de Nietzsche, uma percepo do poder sempre como

    uma relao conflitiva, uma luta entre sujeitos em que um polo exerceria poder e o outro

    resistncia (Castro-Gmez, 2010, p. 22).

    A partir de 1978, nos dois cursos no Collge de France que sucedem seu ano

    sabtico, Segurana, territrio e populao e O Nascimento da biopoltica, Foucault

    muda seu objeto de interesse para o que ele chamar de uma genealogia da

    governamentalidade (Castro-Gmez, 2010. p. 10). A tecnologia governamental est entre

    aquelas que determinam a conduta dos sujeitos (sujeio) e aquelas que permitem aos

  • sujeitos dirigirem autonomamente sua prpria conduta (subjetivao) (p. 39), uma forma

    de poder que no se resume a uma luta entre dominao e resistncia diretas, pois engloba

    acordos, jogos, adeses ao poder, ampliando sua compreenso do poder para alm das

    lutas e dos confronts. No intervir diretamente por meio da represso, intervir sobre um

    campo possvel de aes, no anul-las ou obrig-las, mas conduzi-las. Governar

    significa, ento, conduzir a conduta de outros mediante a interveno regulada sobre seu

    campo de aes presentes e futuras (p. 44). Nem sujeio plena, nem autodeterminao

    absoluta: a meta destas tecnologias a autorregulao.

    Se a soberania proibitiva no consegue controlar subelevaes, a disciplina surge

    como tentativa de enraizar a obedincia. No entanto, ainda agindo de modo direto

    (enclausurando, sancionando, vigiando constantemente, examinando), o poder gera

    resistncias igualmente diretas que questionam e minam a sua efetividade. E se o objetivo

    e principal tem dos mecanismos de poder manter mesmo que no o consigam o

    prprio poder (Foucault, 2008b, p. 4), garantir uma certa ordem social, o que Foucault

    encontra na noo de governo que, para funcionar, o poder precisa articular melhor

    controle e liberdade. A questo ainda , como na disciplina, a produo da obedincia,

    mas de forma distinta: o problema como agir para produzir indiretamente obedincia

    em um indivduo ou em um grupo com fins de dirigir suas conscincias e conduzir suas

    condutas, ou seja, govern-los (Augusto, 2011, p. 30). O governamento no diz o que

    fazer, permite a escolha e controla as opes, mantendo o controle com menos desgaste

    e mais eficincia.

    O governamento se articula por meio do que Foucault chamou de dispositivos de

    segurana, que se diferenciam dos dispositivos disciplinares justamente por trabalharem

    essa articulao entre controle e liberdade (Foucault, 2008a, p. 63). A diferena tambm

    se d nos espaos e objetos de atuao, na forma de tratamento do aleatrio e no processo

    de normalizao. Se a soberania agia nos limites jurdicos do territrio e a disciplina se

    exercia sobre o corpo dos indivduos, a segurana se exerce sobre o conjunto de uma

    populao (p. 15-16). A disciplina busca moldar o corpo e a subjetividade, age em um

    espao vazio, artificial, construdo idealmente com fins de otimizao, j a segurana se

    apoia nos dados materiais da realidade (p. 25). Isso muda a forma de lidar com o

    imprevisvel: se a disciplina busca anular o imprevisvel por meio do planejamento em

    funo de uma percepo esttica que garantiria instantaneamente a perfeio da

    funo, os dispositivos securitrios se abrem para um futuro nem controlado nem

  • controlvel, nem medido nem mensurvel, e o bom funcionamento do controle vai ser

    justamente saber lidar com o que pode acontecer, com o contingente (p. 26).

    Isso nunca seria possvel com uma predominncia de dispositivos disciplinares.

    A disciplina, por definio, regulamenta tudo. A disciplina no deixa escapar nada (...).

    A menor infrao disciplina deve ser corrigida com tanto maior cuidado quanto menor

    ela for (Foucault, 2008a, p. 59). Os dispositivos de segurana, por outro lado, inserem o

    fenmeno numa srie de acontecimentos provveis. As reaes a esse poder sero

    previstas com base em um clculo de custo e buscar uma mdia aceitvel, tolervel, alm

    da qual no se poderia pormitir (p. 9). Os dispositivos de segurana foram o que permitiu

    um progressivo abandono da correo das causas em prol da preveno e da

    administrao das consequncias e isso se deu, segundo Foucault, a partir do papel que

    a economia poltica passou a exercer na sociedade. Nas reflexes do sculo XVIII sobre

    os problemas econmicos que surgiam que geravam revoltas e problemas para o poder,

    sua soluo no seria evitar esse suposto mal a qualquer custo, at mesmo porque no se

    trataria exatamente de um mal, mas de um funcionamento tido como natural da sociedade

    (p. 48). As medidas de preveno da escassez, por exmplo, vo impedir o que mais se

    teme: que os preos disparem nas cidades e que as pessoas se revoltem (p. 43) mas

    isso no funcionava sempre, alm de ser muito custoso (como a disciplina). O que os

    fisiocratas queriam era um dispositivo que, conectando-se prpria realidade dessas

    oscilaes, [atuasse] de tal modo que, por uma srie de conexes com outros elementos

    da realidade, esse fenmeno, sem ser impedido, se [encontrasse] pouco a pouco

    compensado, freado, finalmente limitado e, no ltimo grau anulado (p. 49). apoiando-

    se nessa realidade dada para traar uma linha normal e no estabelecendo metas

    idealmente timas que um dispositivo de segurana aos poucos vai comear a

    hegemonizar e transformar o sistema jurdico-disciplinar.

    Um dos caminhos propostos para evitar os problemas foi, portanto, deix-los

    acontecer, deixar que as relaes naturais (como o mercado) reestabelecessem o

    equilbrio timo, laissez-faire e agir somente quando as coisas fugissem desse equilbrio.

    Assim possvel gerir os problemas, permiti-los em alguns momentos, em alguns lugares,

    com algumas populaes e restringi-los em outros. Os problemas deixariam de ser

    problemas generalizados e passariam a ser tpicos, j no haver escassez alimentar em

    geral, desde que haja para toda uma srie de pessoas, em toda uma srie de mercados,

    uma certa escassez, uma certa carestia, uma certa dificuldade de comprar trigo, uma certa

  • fome (Foucault, 2008a, p. 55). A consequncia lgica desse modelo de gesto que

    haver mortes, haver fome, haver falta, mas no para todos, no generalizadas. Surgem

    ento noes e expresses novas para abordar esses fenmenos como caso, risco,

    perigo, crise, justamente por conta de toda uma srie de formas de interveno que

    vo ter por meta, no fazer como se fazia antigamente tentar anular pura e simplesmente

    o problema em todos os seus mbitos , mas a administrao das consequncias, a gesto

    das emergncias (p. 81).

    Outro fator que demanda essa abertura dos dispositivos de segurana o seu

    objeto no ser o corpo do indivduo a ser moldado, como na disciplina, mas sim a

    populao, o conjunto catico de seres humanos, com necessidades humanas. E esse

    aspecto imprevisvel inerente vida humana em coletividade que vai demandar um trato,

    uma administrao e uma reflexo especfica, que Foucault sintetizou no conceito de

    biopoder, uma tecnologia que gira em torno dos processos vitais que incidem sobre o

    ser humano como espcie (Candiotto, 2011, p. 82). No final de seu curso de 1976, Em

    defesa da sociedade, e do primeiro volume da Histria da Sexualidade, Foucault traz o

    conceito de biopoder, que para ele possuiria dois polos: o da anatomopoltica, um poder

    que se exerceria sobre os corpos dos indivduos, individualizando-os e produzindo corpos

    dceis e teis (em suma, o poder disciplinar); e o da biopoltica, um poder que se exerceria

    sobre a espcie a fim de controlar e regular a populao (Foucault, 2015, p. 150). Polticas

    distintas mas complementares: a individualizao, resultante da atuao do poder

    disciplinar sobre os corpos, complementada pela constituio de uma populao

    biologicamente regulada por parte do biopoder (Candiotto, 2011, p. 83). O biopoder

    demarcaria uma transformao da soberania, que se caracterizava pelo poder soberano

    obsceno de fazer morrer e deixar viver e passaria agora a fazer viver e deixar morrer.

    No mais deixar o cuidado da vida ao espao privado se importando somente com as

    ameaas coroa, mas passar a cuidar da vida dos cidados, fazendo da morte uma

    consequncia natural da humanidade (Foucault, 2010, p. 202).

    Essa biopoltica se manifestou de duas formas distintas na histria. A primeira,

    identificada a partir do sculo XVII, se caracterizava por tcnicas de governamento

    policial que visavam o controle microscpico das condutas humanas, das riquezas e das

    condies de subsistncia (Duarte, 2011, p. 58). O que Foucault chamou de razo de

    Estado se dava pela ideia de que a populao a maior riqueza de um Estado e que,

    portanto, seria papel do governo garantir o bem-estar e a sade das pessoas, bem como

  • otimizar e organizar a sua fora. nesse momento que comea a se desenvolver tanto a

    cincia da polcia (vigilncia e disciplina social) e do urbanismo (racionalizao da

    distribuio no espao). no governo da razo de Estado que o poder disciplinar ganha

    as propores descritas anteriromente, sendo o dispositivo pelo qual os sujeitos eram

    normalizados e adaptados a essa boa forma social. A razo de Estado, no entanto, nesse

    seu objetivo de controlar a mincia do detalhe, passou a ser contestada em sua viabilidade

    econmica e em sua eficcia, um questionamento sobre o excesso de governo e que deu

    origem economia poltica (Foucault, 2008b, p. 18), estebelecendo limites ao governo a

    partir das leis naturais de produo e circulao de riquezas (Lpez, 2010, p. 42).

    Esta autolimitao da razo de Estado, que determina com base nos objetivos da

    governamentalidade e nas condies materiais disponveis os limites de ao

    governamental, o que recebe o nome de liberalismo. Foucault interpreta o liberalismo

    (como tambm o neoliberalsimo) no como teoria econmica ou poltica simplesmente,

    mas como modo de governamento tomando como ponto de partida os movimentos

    econmicos da sociedade (Duarte, 2011, p. 62). Para o liberalismo, a boa vida no se

    alcanaria pelo controle minucioso das condies de vida da populao isso alm de

    caro havia se mostrado ineficaz. Seu fundamento era a ideia de que h uma harmonia

    natural do mercado que deve ser preservada da intromisso estatal, a responsvel pelo

    desequilbrio dessa harmonia. Partia do pressuposto que se todos perseguirem seus

    interesses prprios favoreceriam, por consequncia, os interesses do Estado (Castro-

    Gmez, 2010, p. 146). Dessa forma, no seria papel do governo conformar a sociedade

    e forar uma organizao social, mas laissez faire, laissez passer, deixar acontecer, e,

    posteriormente, quando necessrio, administrar os riscos, traar uma taxa de normalidade

    a partir de uma taxa aceitvel, tolervel, de problemas sociais. A normalidade ento, no

    mais desenvolvida com o objetivo de otimizao, posteriormente conformando os

    sujeitos a essa norma estabelecida (como na razo de Estado), ela construda a partir

    dos padres estatsticos tolerveis daquela conduta. O governo liberal age na

    administrao das consequncias e no propriamentena na correo-preveno das causas

    e assim como a razo de Estado se baseava nos dispositivos disciplinares para fazer esse

    tipo de preveno, a arte liberal de governar se ampara nos dispositivos de segurana,

    administrando as emergncias resultantes desses desvios de normalidade.

    Os dispositivos disciplinares produziam sujeitos dceis e que estavam a servio

    dos interesses da razo de Estado. No liberalismo (bem como no neoliberalismo) a

  • subjetivao se opera de outra forma: a articulao de um tipo de subjetividade do

    mercado se apresenta em dois nveis diferentes da doutrina neoliberal: na relao que o

    sujeito estabelece com sua exterioridade ou meio, e na relao que estabelece consigo

    mesmo (Castro, 2010, p. 75). Quanto ao meio, o governamento (neo)liberal pressupe a

    figura do homo oeconomicus, uma compreenso do ser humano como unidade individual

    movida pelo interesse que age sempre racionalmente (procurando o prazer e evitando a

    dor) em um meio econmico que desconhece e no controla (Castro, 2010, p. 75). Ele

    o governvel, o parceiro do governo, que o deixa livre para agir (Foucault, 2008b, p. 369-

    370). O sujeito de interesse a forma como o governo percebe externamente os

    governados, agindo como se eles fossem racionais e nesse processo h uma certa adeso

    dos governados no sentido de, de fato, agir racionalmente. Governar o novo sujeito de

    interesses supe tanto a determinao do entorno no qual h de buscar a satisfao de

    seus interesses como a constituio de mbitos de liberdade nos quais possa desenvolver

    sua iniciativa privada (Lpez, 2010, p. 45). A ordem liberal governa produzindo a

    liberdade que a fundamenta.

    A arte liberal de governar se apoia na liberdade. No em uma liberdade emprica,

    mas em uma exigncia, um mandato: preciso ser livre. Isto quer dizer que o liberalismo

    trata de produzir, organizar e administrar a liberdade; (...) assegurar a liberdade, control-

    la e conserv-la (Castro, 2010, p. 76). A liberdade no liberalismo no um dado,

    preciso fabric-la a cada instante, suscit-la, produzi-la com, bem entendido, todo o

    conjunto de injunes, de problemas de custo que essa fabricao levanta (Foucault,

    2008b, p. 88). Neste sentido, o intervencionismo da ordem neoliberal no menos ativo

    nem menos denso que o de outros sistemas, apenas escolhe diferentes pontos de aplicao

    (Lpez, 2010, p. 50). A governamentalidade neoliberal produz uma tecnologia de

    governo, uma poltica da vida que [garante] o funcionamento da sociedade e a

    subjetividade de acordo com as regras de mercado (Castro, 2010, p. 75). Essa a

    essncia do processo de subjetivao neoliberal: a teconologia liberal no regulamenta,

    certamente, a liberdade dos indivduos, mas a gestiona; ou, pra dizer de outro modo: no

    intervm diretamente sobre a liberdade, mas sobre as condies da liberdade. Esta

    precisamente a funo dos dispositivos de segurana (Castro-Gmez, 2010, p. 153).

    H ainda um segundo processo de subjetivao que se reflete internamente nos

    sujeitos e que se apresenta posteriormente no neoliberalismo, alterando a concepo

    clssica de homo oeconomicus. As teorias econmicas neoliberais se destacam, para

  • Foucault, por perceberem o trabalho no somente como fora produtiva a ser

    alienada, mas como uma espcie de mercado. Para o neoliberalismo, tudo pode ser

    mercantificvel, inserido em uma lgica de concorrncia e custo-benefcio, inclusive o

    trabalho, e isso sempre seria benfico. No se trata de determinar qual o preo do

    trabalho ou o valor transmitido ao produto, mas saber como o trabalhador utiliza os

    recursos que dispe e que racionalidade guia sua disposio ao trabalho (Lpez, 2010, p.

    51). como se cada trabalhador se tornasse seu prprio capitalista, empresrios de si

    mesmos, cabendo a eles investirem em si para receberem melhores salrios e terem

    melhores condies de vida. Isso estaria ligado diretamente reformulao neoliberal do

    homo oeconomicus, adotando a escolha racional como critrio desses auto-investimentos.

    Com isso, as relaes de mercado, amparadas no lucro, na eficincia, na oferta-demanda,

    passam a ser generalizadas para todas as relaes sociais (Foucault, 2008b, p. 330-332).

    A mo invisvel do mercado se torna a responsvel por dizer se os investimentos foram

    bem ou mal feitos com base nos resultados atingidos, um ribunal econmico permanente

    em face do governo (Foucault, 2008b, p. 339), e a vida passa a ser, ento, uma questo

    de risco. O homo oeconomicus do liberalismo clssico, compreendido em sua relao com

    a busca da utilidade, das necessidades e da troca, agora um homem que se constitui em

    seu prprio capital, sua prpria fonte de renda (Lpez, 2010, p. 51), um empresrio de

    si, deixando de ser somente um parceiro de trocas.

    como se do governamento de bem-estar para o governamento neoliberal o

    controle passasse de um controle externo (em que h uma ao externa normalizando os

    sujeitos) para um controle interno (um controle que afeta os desejos e os interesses dos

    sujeitos), um controle que sequer precisa ser praticado porque a prpria subjetividade

    exerce controle sobre si. No se trata de um policiamento da sociedade nem de uma

    criminalizao da pobreza ou da misria, mas da expanso de uma subjetividade policial

    em cada cidado, que teme o tribunal do mercado e que julga a ao do governo e dos

    cidados (Augusto, 2011, p. 26). A teoria do capital humano, de que as pessoas esto

    sempre sujeitas ao investimento e que o sucesso depende justamente desse investimento,

    se torna, assim, a forma mais eficaz de controle social, a mais efetiva associao entre a

    vontade individual e os objetivos do governamento. O neoliberalismo acredita que pela

    liberdade de mercado que se pode melhorar a vida das pessoas, e no pela interveno

    estatal, e essa , precisamente, sua dimenso biopoltica. Compreender o liberalismo e o

    neoliberalismo como formas de biopoltica (o que justificaria o ttulo do curso de 1979),

  • d significados completamente distintos e interessantes sobre o fazer viver e deixar

    morrer.

    A forma (neo)liberal de governo prope que no seja o Estado o responsvel pelo

    bem viver, mas sim o mercado, ou seja, os sujeitos livres e interessados agindo de forma

    interessada. Seria o mercado, portanto, o responsvel por manter os ndices de natalidade

    e de mortalidade adequados, por garantir a sade dos sujeitos, por garantir a vida digna

    (Augusto, 2011, p. 23). Esses aspectos da vida social passaram a ser vistos no

    neoliberalismo como mercados a serem explorados e estariam inseridos na lgica de

    cooperao que pressupe essa teoria. As privatizaes acontecem porque elas

    pressupem pessoas que sejam sujeitos interessados e que acreditem que agindo como

    empresrios de si mesmos vo alcanar o sucesso e que o regulador do sucesso e do

    fracasso seria o mercado no sentido amplo (ideia bsica da meritocracia). O modo de

    governo dos sujeitos caracterstico das sociedades neoliberais funciona atribuindo a cada

    um dos indivduos a responsabilidade de seu prprio bem estar (Lpez, 2010, p. 52). O

    mercado, portanto, faz viver e deixa morrer com base no merecimento dos sujeitos. Os

    bem-sucedidos tero condies de acessar os servios necessrios para sobreviver, os

    mal-sucedidos no. Deixar morrer passa a ter outro significado: h uma biopoltica

    neoliberal, que se dirige apropriao mercantil dos corpos e intenta produzir a vida

    como principal valor do capital, bem como uma tanatopoltica neoliberal, que aponta a

    excluso da vida no rentvel, que deixa morrer os indivduos cujo consumo no

    relevante (Castro, 2010, p. 77). H vidas que no merecem ser preservadas. Os Estados

    governam as populaes no somente pela expanso, mas tambm pela contrao,

    abstendo-se de atuar em alguns pontos chave: o conceito de deixar morrer constitui o

    impensado do neoliberalismo, mostrando-se na superfcie de maneira intermitente, mas

    sem ser nunca confessado de maneira aberta nem integrado dentro de seu sistema terico

    (Lpez, 2010, p. 55).

    A ordem neoliberal se ampara em processos de subjetivao ligados a uma

    autoadministrao da vida, isto , que existe um mercado biopoltico, uma verdadeira

    monetarizao da existncia (Castro, 2010, p. 77) e a melhor forma de fazer isso por

    meio da criao de um ambiente de insegurana generalizada (...) porque o

    empreendimento implica necessariamente na inovao, e esta pode se desenvolver com

    mais facilidade em um ambiente de insegurana (Castro-Gmez, 2010, p. 208). Na

    individualizao neoliberal h uma espcie de privatizao das contradies sociais, no

  • sentido de que os conflitos e os problemas sociais so tratados como assuntos privados

    de responsabilidade individual (Castro, 2010, p. 78). o indivduo que deve gerir seus

    prprios riscos, articular uma forma de vida que preserve e melhore sua prpria vida.

    Como afirma Foucault, o lema do liberalismo viver perigosamente porque os

    indivduos so postos perpetuamente em situao de perigo, ou antes, so condicionados

    a experimentar a sua situao, sua vida, seu presente, seu futuro como portadores de

    perigo (2008b, p. 90). No h liberalismo sem cultura do perigo (p. 91) e com isso abre-

    se todo um novo horizonte de necessidades e demandas a serem exploradas pelos

    mercados, um territrio de ameaas rentveis onde ingressam as ofertas de consumo da

    indstria dos seguros e da indstria da sade (Castro, 2010, p. 77).

    No governamento neoliberal seria como se houvesse uma privatizao da

    segurana/seguridade. A segurana (a conteno do aleatrio da convivncia humana) e

    a seguridade (as condies de vida na sociedade) tambm passariam ser reguladas pelo

    mercado. O contingente seria contido na medida em que no perturbasse completamente

    a ordem, na medida em que no fosse mais custoso impedi-lo que deix-lo acontecer,

    enquanto que a seguridade passaria a depender do sucesso ou do insucesso dos sujeitos

    para acess-la. No neoliberalismo, literalmente, deixa-se morrer alguns enquanto que

    faz-se viver outros. Os dispositivos de segurana que toleram taxas aceitveis de

    fenmenos e que se constituem a partir de uma realidade dada so os dispositivos

    utilizados para lidar com a pobreza e a desigualdade no neoliberalismo: encar-la como

    um dado natural, como fruto da dinmica natural do mercado, devendo apenas ser

    regulada nas suas taxas aceitveis, taxas estas a serem estabelecidas pelo prprio

    mercado.

    As decises no campo da seguridade social podem expor as pessoas a uma

    situao de extrema fragilidade e impotncia, gerando um estado de constante temor e

    insegurana. O neoliberalismo gera a prpria insegurana que os seus dispositivos de

    segurana controlam e administram. Todos perseguem cada vez mais segurana (da

    seguridade social segurana pblica), se submetendo a coisas que em outras situaes

    no se submeteriam e num mundo globalizado, em que as trocas comerciais exigem

    essa segurana, seu asseguramento se torna ainda mais fundamental. desse tipo de

    subjetivao e controle que o mundo vem sendo testemunha com o neoliberalismo. Um

    modo de governar que produz uma liberdade controlada, tolera a morte seletiva e resolve

  • as crises (tidas como excepcionais) aprofundando o sistema e reprimindo violentamente

    quem se colocar no seu caminho.

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