heranca cultural e linguagem em 201cvida maria201d

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HERANÇA CULTURAL E LINGUAGEM EM “VIDA MARIA” 1 MASIERO, Cláudia Gisele (Especialista) 2 SILVA, Cristina Ennes da (Doutora) 3 Universidade Feevale, RS. RESUMO: Este estudo tem por objetivo analisar o curta intitulado “Vida Maria”, compreendido como produto cultural, quanto às questões de herança cultural e linguagem, recorrendo principalmente a autores como Laraia (2001) e Cavalli – Sforza (2003). Pretende-se verificar de que modo se dá o processo de transmissão cultural mostrado na narrativa fílmica e a importância da linguagem para esse processo. Também se procura refletir sobre o próprio filme enquanto prática social, crítico e propagador de uma cultura brasileira. Percebe-se por fim que a herança cultural que se recebe dos antepassados é importante e eficiente para a nossa vida em sociedade e é graças a ela que se consegue viver no coletivo e que o conhecimento de mantém a salvo. PALAVRAS-CHAVE: Herança Cultural; Linguagem; Cinema. Introdução O curta-metragem de animação “Vida Maria” (2006), o qual se pretende analisar nesse estudo, é uma produção cearense de Joelma Ramos e Marcio Ramos, que também foi o seu diretor, editor e roteirista. Foi patrocinado pelo 3º Prêmio Ceará de Cinema e Vídeo, Governo do Estado do Ceará e Secretaria da Cultura. Feito em computação gráfica 3D, colorido e finalizado em 35mm, tem aproximadamente nove minutos de duração. Recebeu mais de quarenta prêmios em festivais de cinemas no país e no exterior, segundo informações do site Porta Curtas 4 . 1 Trabalho apresentado no GT de História da Mídia Audiovisual e Visual, integrante do 9º Encontro Nacional de História da Mídia, 2013. 2 Especialista em História Comunicação e Memória do Brasil Contemporâneo. Mestranda em Processos e Manifestações Culturais, Universidade Feevale, RS, Bolsista PROSUP/CAPES ([email protected]). 3 Doutora em História – PUCRS. Professora no Programa de Pós-Graduação em Processos e Manifestações Culturais da Universidade Feevale, RS ([email protected]). 4 Porta Curtas Petrobrás, disponível em http://portacurtas.org.br/filme/?name=vida_maria. Acesso em 12 de jun. de 2012.

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resenha sobre o filme vida maria

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Page 1: Heranca Cultural e Linguagem Em 201cvida Maria201d

HERANÇA CULTURAL E LINGUAGEM EM “VIDA MARIA”1

MASIERO, Cláudia Gisele (Especialista)2 SILVA, Cristina Ennes da (Doutora)3

Universidade Feevale, RS.

RESUMO: Este estudo tem por objetivo analisar o curta intitulado “Vida Maria”, compreendido como produto cultural, quanto às questões de herança cultural e linguagem, recorrendo principalmente a autores como Laraia (2001) e Cavalli – Sforza (2003). Pretende-se verificar de que modo se dá o processo de transmissão cultural mostrado na narrativa fílmica e a importância da linguagem para esse processo. Também se procura refletir sobre o próprio filme enquanto prática social, crítico e propagador de uma cultura brasileira. Percebe-se por fim que a herança cultural que se recebe dos antepassados é importante e eficiente para a nossa vida em sociedade e é graças a ela que se consegue viver no coletivo e que o conhecimento de mantém a salvo.

PALAVRAS-CHAVE: Herança Cultural; Linguagem; Cinema.

Introdução

O curta-metragem de animação “Vida Maria” (2006), o qual se pretende analisar

nesse estudo, é uma produção cearense de Joelma Ramos e Marcio Ramos, que também

foi o seu diretor, editor e roteirista. Foi patrocinado pelo 3º Prêmio Ceará de Cinema e

Vídeo, Governo do Estado do Ceará e Secretaria da Cultura. Feito em computação

gráfica 3D, colorido e finalizado em 35mm, tem aproximadamente nove minutos de

duração. Recebeu mais de quarenta prêmios em festivais de cinemas no país e no

exterior, segundo informações do site Porta Curtas4.

1 Trabalho apresentado no GT de História da Mídia Audiovisual e Visual, integrante do 9º Encontro Nacional de História da Mídia, 2013. 2 Especialista em História Comunicação e Memória do Brasil Contemporâneo. Mestranda em Processos e Manifestações Culturais, Universidade Feevale, RS, Bolsista PROSUP/CAPES ([email protected]). 3 Doutora em História – PUCRS. Professora no Programa de Pós-Graduação em Processos e Manifestações Culturais da Universidade Feevale, RS ([email protected]). 4 Porta Curtas Petrobrás, disponível em http://portacurtas.org.br/filme/?name=vida_maria. Acesso em 12 de jun. de 2012.

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O filme se passa no sertão nordestino e retrata a vida de Maria José, uma menina

de cinco anos a quem lhe é negado o direito de ter infância, tendo ela que deixar os

estudos e trabalhar para ajudar a família. A história começa com a menina ajoelhada em

uma cadeira, apoiando um caderno sobre o parapeito da janela, no qual está escrevendo.

Em seguida sua mãe, Maria Aparecida, a impede de continuar fazendo aquela tarefa que

lhe parecia tão prazerosa, obrigando-a a ajudá-la nos afazeres. Seguindo sua difícil

trajetória a menina cresce, casa, tem vários filhos, executa sua rotina de múltiplas

tarefas, envelhece e em meio a isso vai se tornando uma pessoa mais rude. O último de

seus filhos é uma menina, a quem dá o nome de Maria de Lurdes. Ao final do filme,

quando Maria José vê a filha escrevendo no caderno, vai ao seu encontro e repete para

ela o que ouvira de sua mãe quando criança, que ela não deve perder tempo

“desenhando o seu nome” e exige que a menina a ajude nas tarefas, perpetuando a sina

das Marias da família. Na última cena, o vento sopra e folheia ao contrário o caderno no

qual Maria de Lurdes escrevia e assim percebe-se que as personagens usavam o mesmo

caderno ao longo da história, pois em cada velha folha que ressurge há um outro nome

escrito, Maria de Lurdes, Maria José, Maria Aparecida, Maria de Fátima e Maria do

Carmo, reforçando a ideia de que a história foi se repetindo ao longo do tempo.

Culturalmente inserida em um meio bastante humilde e sofrido, ao menos é o

que o filme deixa transparecer, Maria José segue os passos da mãe e guia a filha na

mesma direção. O tema central da narrativa fílmica é justamente essa transmissão, não

somente de um modo de vida, mas também de valores e hábitos, processo que se

denomina herança cultural5, e, assim, se tem o tema desse estudo. Pretende-se refletir

sobre tal processo e nele analisar a importância da linguagem na transmissão da cultura,

com ajuda do curta-metragem, ao mesmo tempo em que se busca dialogar com o filme e

aprofundar o entendimento de sua mensagem. Entende-se, assim, que o curta-metragem

é um produto cultural que merece ser analisado devido ao seu considerável alcance e a

relevante questão que aborda, sendo um crítico propagador da cultura brasileira.

1. Cultura, Herança Cultural e Linguagem

5 Não se pode confundir herança cultural com difusão cultural. O segundo Ortiz (2007), a difusão cultural é a transmissão de conteúdos culturais de uma população para outra, e não de uma geração para outra, operando essencialmente em termos de espaço e não de tempo.

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Entender o cinema, e também o curta-metragem que faz parte dessa arte, como

prática social, como acredita Turner (1997), é ir além da análise estética e estudá-lo

como entretenimento, narrativa e evento cultural, como se tem por objetivo nesse

estudo. Ou seja, é considerar, que por meio de sua narrativa, se pode encontrar

evidências do modo como nossa cultura dá sentido a si própria. Além de se entender

“Vida Maria” com um produto cultural, exemplo material da produção cinematográfica

brasileira do início do século XXI, se entende que ele traz, de maneira implícita em sua

narrativa, questões relativas à cultura e como essa é transmitida, considerando que “o

cinema desempenha uma função cultural que vai além do prazer da história” (TURNER,

1997, p. 69). Por isso se acredita ser possível analisar tais questões por meio de sua

narrativa. Pensando nessa estrutura de análise se inicia com o conceito de cultura.

É preciso, em primeiro lugar, abandonar o conceito clássico de cultura, que por

muito tempo perdurou, pensando que essa se refere a um processo de desenvolvimento

intelectual, quando se tornavam cultos os que entravam em contato com as artes e as

ciências. Caso essa ideia perdurasse, poder-se-ia dizer que as personagens do filme são

desprovidas de cultura, devido à simplicidade do contexto em que vivem e de suas

ações, o que seria um grande equívoco. O amadurecimento desse conceito, que passou

por várias etapas, que não cabe descrever aqui6, permite dizer em linhas gerais que

“cultura é o conjunto das práticas, das técnicas, dos símbolos e dos valores que devem

transmitir às novas gerações para garantir a reprodução de um estado de coexistência

social” (BOSI, 1992, p. 16). Com outras palavras Turner (1997) diz que a cultura é um

processo dinâmico que produz os comportamentos, as práticas, as instituições e

significados que constituem a nossa existência. Assim, a cultura pode ser entendida

como uma teia de significados, tecida pelo próprio homem, segundo a definição de

Geertz (1989). O fato é que todos essas definições seguem uma linha de pensamento e

mostram a centralidade exercida pela cultura, do seu papel constituinte em todos os

aspectos da vida social, como mostra Hall (1997), afirmando que toda a ação social é

cultural e que no último século vem ocorrendo o que chama de “revolução cutural”,

quando a cultura tem assumido uma centralidade, não no sentido de ocupar o centro,

mas de indicar a forma como penetra em cada recanto da vida social contemporânea,

mediando tudo.

6 Para entender a evolução do conceito de cultura pode-se recorrer a Laraia (2001) ou Bosi (1992).

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Assim, se a cultura, é como se viu, mais ampla, sendo o elemento chave do

modo como nos relacionamos e vivemos, não cabe classificar os que têm ou não

cultura, mas é preciso ver, o outro como um eu sujeito também, como sugere Todorov

(2003), portador de cultura, devendo-se respeitar a já reconhecida diversidade cultural

existente. Ou como diz Geertz (2008), se deve aprender o caráter essencial não apenas

das várias culturas, mas também dos vários tipos de indivíduos dentro de cada cultura.

Pode-se também dizer que “cultura é aquilo que aprendemos com os outros e,

em especial, com os antepassados” (CAVALLI-SFORZA, 2003, p. 226). Fato que leva

a refletir sobre como ela é transmitida e como se dá esse processo. O homem é o único

ser possuidor de cultura, como escreve Laraia (2001), porque tem ao seu dispor a

comunicação oral e a capacidade de fabricação de instrumentos, capazes de tornar mais

eficiente o seu aparato biológico7. Dessa forma, ainda segundo o autor, os

comportamentos humanos não são biologicamente determinados, tantos os seus

pensamentos quanto as suas ações dependem de um processo de aprendizagem. O

âmbito cultural, então, “é o único que permite que o conhecimento sobre o mundo se

acumule ao longo das gerações. Com isso elimina o limite de uma só existência para o

acúmulo de informações” (CAVALLI-SFORZA, 2003, p. 227). Sabe-se que “o homem

é o resultado do meio cultural em que foi socializado, ele é o herdeiro de um grande

processo acumulativo que reflete o conhecimento e a experiência adquiridas pelas

numerosas gerações que o antecederam” (LARAIA, 2001, p. 45).

Esse processo é exatamente o que vemos representado em “Vida Maria”, ou

seja, a cultura como uma herança recebida dos antepassados e o modo como ela é

novamente transmitida. A ideia de não ser importante o contato com o mundo escrito e

de que a criança deve ajudar nas tarefas e não precisa brincar, foi assimilada por Maria

José porque a ela também não foi dado o direito de estudar e nem de brincar e, em

decorrência disso, é assim que ela age com sua filha. É dessa forma que acredita que

deva agir enquanto mãe, sua referência é a sua mãe, que agiu assim com ela, é a forma

como vê a situação, o que por sua vez retoma a ideia de uma herança cultural, pois, o

modo de ver o mundo, as apreciações de ordem moral e valorativa, os diferentes

7 Tornar mais eficiente o aparato biológico humano, segundo Laraia (2001) é obter a capacidade de voar, que o homem naturalmente não tem, assim como aumentou sua força, velocidade e capacidade auditiva e visual com ajuda da tecnologia que foi capaz de inventar, sem ser preciso mutações genética, como em alguns animais para fins de adaptação.

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comportamentos sociais e mesmo as posturas corporais são assim produtos de uma

herança cultural, ou seja, o resultado da operação de uma determinada cultura

(LARAIA, 2001, p.68).

Esse é o ponto crucial da narrativa, pois, depois de mostrar Maria José tendo que

abandonar a infância para trabalhar e ter crescido executando as mesmas tarefas, no

mesmo lugar, sem perspectivas de mudança, tendo assim uma vida sofrida,

caracterizada não somente pela aridez e pobreza do lugar onde vivia, mas pelos muitos

filhos que teve, espera-se que ela aja de maneira diferente com sua filha, para que essa

tenha um destino diferente. Porém, não é o que acontece. Acontece a repetição e isso é

capaz de chocar o espectador. Sabe-se que a cultura é dinâmica e o sistema cultural está

num contínuo processo de mudança, ou seja, a conservação é sempre algo relativo,

depende da dimensão de tempo e do sistema cultural a ser considerado, como explica

Laraia (2001). Assim, se fica esperando que naquele contexto cultural a inovação

também ocorra. E não ocorre porque o sistema de transmissão cultural em questão não

favorece a mudança, como veremos adiante. Justamente porque a mudança não ocorre é

que o curta-metragem é tão significativo e reflexivo, pois tem a coragem de mostrar

uma realidade dura, que se perpetua por gerações e que, como ele mesmo sugere,

nomeando as personagens por “Marias” e não lhes dando sobrenome, pode ser mais

comum do que se imagina.

Segundo explica Cavalli-Sforza (2003) a transmissão cultural, entendida aqui

como o processo que faz com que a herança cultural seja transmitida para as gerações

futuras, pode se dar de duas maneiras; de forma tradicional, como no curta-metragem,

ou seja, pela observação, ensino, conversação ou pode ocorrer também por meio de

livros, computadores e quaisquer outros meios desenvolvidos pela tecnologia moderna.

Talvez a opção do filme em mostrar esse modelo tradicional de transmissão cultural

ajude a dar a ideia de isolamento das personagens, que estão à margem da sociedade.

Em volta da casa e do pátio que é o único cenário para toda a narrativa, há um cercado

que os envolve por todos os lados, feito de tábuas de madeira, que também parece

querer mostrar o quanto estavam fechados enquanto grupo. Normalmente quando se

retrata o cenário do sertão nordestino faz-se com que se perca de vista a paisagem. Já no

filme, o cercado impede de ver o horizonte, como que simbolizando que para aquelas

personagens não há horizontes, não há perspectivas.

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Quanto as rotas de transmissão cultural, segundo Cavalli-Sforza at al. (1982),

existem três principais rotas: vertical, horizontal e oblíqua. A vertical é a passagem de

informações de pai para filho, de uma geração para a seguinte, a exemplo do curta. A

horizontal abrange todos os outros percursos entre indivíduos não aparentados, entre

membros da mesma geração. Ainda há a oblíqua quando se dá entre não parentes de

gerações diferentes. Essa definição é importante para que se possa entender a certa

imobilidade da transmissão cultural que é mostrada no curta, uma vez que se sabe que

no regime de transmissão vertical a evolução é lenta, segundo afirma Cavalli-Sforza

(2003).

Não somente a rota de transmissão cultural, sendo ela vertical, contribuiu para a

permanência do modo de vida que levam as personagens, mas também não se pode

deixar de analisar a conjuntura, pois “qualquer transmissão cultural só pode ocorrer

dentro de um contexto social” (PONTES & MAGALHÃES, 2003, p.120). Nesse caso,

considerando o contexto no qual estão vivendo, talvez seja mais importante para a vida

em grupo que todos ajudem na execução das tarefas, inclusive as crianças, não sobrando

tempo para os estudos. E a escola também não é entendida como capaz de melhorar as

condições de vida. As necessidades pela qual passam os sertanejos nordestinos

implicam em que primeiro lugar sejam elas supridas e as outras questões só podem

mesmo ficar em segundo plano. Como pensar em ir para a escola, por exemplo, se não

se tem comida e nem água.

Parece não restar dúvidas de que a herança cultural foi aceita e possibilita que as

características do grupo se perpetuem na situação trazida pela narrativa fílmica.

Considerando que “a transmissão cultural ocorre necessariamente em duas etapas:

primeiro, uma ideia tem de ser comunicada, depois precisa ser aceita” (CAVALLI-

SFORZA, 2003, p. 229), num primeiro momento isso é percebido no curta-metragem

quando a mãe (Maria José) tem convicção da ideia que está passando, de que a menina

está perdendo tempo desenhando o seu nome, é a ideia sendo comunicada, e quando a

menina balança positivamente a cabeça, deixa o caderno e o lápis e corre para o pátio,

iniciando a tarefa de levar água aos animais, é a ideia sendo aceita. Posteriormente se

tem realmente a verificação de que a ideia fora aceita quando ela decide transmiti-la

para sua filha anos depois.

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Não se pode negar a importância e eficiência dessa herança cultural que se

recebe dos antepassados para a nossa vida em sociedade, é graças a ela que se consegue

viver no coletivo e que o conhecimento de mantém a salvo. Aceitá-la é inevitável, faz

parte da condição humana. Porém isso não significa que se deva preservá-la e transmiti-

la sem alterações, como acontece no filme, pois a inovação também faz parte da

condição humana e é o que possibilita as melhorias sociais e tecnológicas. É sempre

necessário que se reflita sobre essa herança. Ainda é preciso dizer que mesmo se Maria

José tivesse pensado em dar um destino diferente para sua filha e tivesse permitido que

ela estudasse e tivesse os momentos de brincadeira, ainda assim teria agido segundo a

herança cultural que recebera, seria uma tomada de consciência baseada na sua vivência

e no que lhe ensinaram. Hall (1997) explica que é quase impossível para o cidadão

comum ter uma imagem precisa do passado histórico sem tê-lo tematizado, no interior

de uma “cultura herdada”, que inclui panoramas e costumes de época.

Através da narrativa fílmica em questão, também se vê a importância da

linguagem nesse processo de transmissão da cultura, pois foi por esse meio que Maria

Aparecida expressou8 o seu desejo à filha de que ela lhe ajude nos afazeres. Pode-se

dizer ainda que “através da comunicação oral a criança vai recebendo informações sobre

todo o conhecimento acumulado pela cultura em que vive” (LARAIA, 2001, p.).

Entende-se linguagem na perspectiva de Bakhtin (1988), ou seja, sociointeracionista.

Afirma que é o fenômeno social da interação verbal, realizada através da enunciação ou

das enunciações, que constitui a realidade fundamental da linguagem, compreendida

pelo princípio dialógico, sendo que a palavra constitui justamente o produto da

interação do locutor e do ouvinte. Dessa forma, o ser humano usa a linguagem para agir

no contexto social9.

Maria José repete para sua filha pequena exatamente as mesmas palavras que

ouvira de sua mãe, muitos anos antes, quando também era uma criança. Também seus

gestos e feições são imitados. Em sua fala também está presente a fala de sua mãe, que,

ao que tudo indica, foi a ela bastante significativa. Esse processo de significação pode

8 Bakhtin (1988) conceitua expressão, no que caracteriza como simples e grosseira definição, como sendo tudo aquilo que, tendo se formado e determinado de alguma maneira no psiquismo do indivíduo, exterioriza-se objetivamente para outrem com a ajuda de algum código de signos exteriores. 9 Convém destacar que a linguagem é mais abrangente que a língua e a fala. Bakhtin (1988) apoiado em Sauserre, diz que a linguagem pode ser entendida como a totalidade das manifestações físicas, fisiológicas e psíquicas que entram em jogo na comunicação linguística. Pode ser ela verbal e não verbal.

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ser melhor entendido quando Bakhtin (1988, p.95) escreve que “a palavra está sempre

carregada de um conteúdo ou de um sentido ideológico ou vivencial. É assim que

compreendemos as palavras e somente reagimos àquelas que despertam em nós

ressonâncias ideológicas ou concernentes à vida”. O autor ainda afirma que a palavra é

o modo mais puro e sensível nas relações sociais.

É possível dizer, então, que além da capacidade de observação, a capacidade de

comunicação é a grande facilitadora desse processo de aquisição da chamada herança

cultural, ou seja, permite que a cultura seja transmitida às futuras gerações, como

explica Laraia, “a comunicação é um processo cultural”. Mais explicitamente, a

linguagem humana é um produto da cultura, mas não existiria cultura se o homem não

tivesse a possibilidade de desenvolver um sistema articulado de comunicação oral”

(2001, p.52). Assim, a linguagem pode ser entendida como um mecanismo para a

transmissão da cultura, no qual

há sempre, no mínimo10, um emissor, um receptor e a informação que é transmitida de um a outro. A linguagem aumenta enormemente a eficiência do processo e constitui a própria base da cultura humana. Mais do que qualquer outro fator, ela permite que os seres humanos se adaptem e dominem a circunvizinhança num espaço de tempo bastante curto (CAVALLI-SFORZA, 2003, p. 227).

A questão da linguagem é bastante destacada no curta e, apesar de comportar

apenas três diálogos, eles são cruciais para o entendimento da história e implicitamente

para entender o modo como a linguagem é um elemento essencial no processo de

transmissão cultural, mas também que é ao mesmo tempo fruto da cultura. Nesse

sentido, pode-se dizer que a linguagem é também parte dessa herança cultural que se

recebe ao longo da vida em sociedade, mas que é o pilar sobre o qual se apoia toda a

transmissão cultural.

Por fim, o filme traz consigo uma herança cultural muito mais profunda, a de um

país que ainda não conseguiu suprimir a enorme desigualdade social existente. O fato de

não se ter escolaridade e não proporcioná-la aos filhos é uma realidade de muitos

brasileiros, por isso se diz que o filme é um crítico propagador da cultura brasileira.

Primeiro porque é um produto cultural que dela emana e consequentemente como é

dirigido ao público em geral, ele a propaga. Mas, fundamentalmente, é preciso que se

destaque o caráter crítico a que o curta-metragem se propõe, mostrando uma triste

10 Grifo nosso, para destacar que os processos comunicacionais podem ser bem mais complexos.

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realidade que acaba por não se solucionar ao final da narrativa, levando o espectador à

reflexão. A herança cultural que está implícita, a qual pode-se dizer que culmina no

modo de vida da personagem Maria José, é a de um povo colonizado e que, por essa

condição, não se viu nutrido de investimentos suficientes em educação e cultura, por

exemplo. Aliada a sua história de exploração se tem a expansão moderna do capital

comercial, que “assanha com a oportunidade de ganhar novos espaços, brutaliza e faz

retroceder a formas cruentas o cotidiano vivido pelos dominados” (BOSI, 1992, p.21).

Ou seja, dentro dessa lógica continua-se a produzir excluídos, muitas “Marias” que não

poderão se inserir no grupo de consumo. Quanto a isso é preciso considerar as palavras

de

O homem não pode viver fora da cultura, mas ela não é o seu destino, e sim um meio para sua liberdade. Levar a sério a cultura não significa sacralizá-la e sim permitir que a exigência de problematização inerente à comunicação que se dá na cultura se desenvolva até o telos do descentramento. Não somos humanos fora da cultura, mas não seremos homens libres se não pudermos sempre que necessário assumir uma posição de exterioridade com relação ao mundo social (1990, 133).

Desde o Brasil-Colônia, segundo Bosi (1992), que o domínio do alfabeto, ou

seja saber ler escrever, era um privilégio de poucos e isso era um divisor de águas entre

a cultura oficial e a vida popular. Pode-se dizer que hoje ser alfabetizado não é mais

privilégio de poucos, mas ainda não o é de todos. A exemplo do curta, muitas crianças

brasileiras ainda estão fora da escola e novamente o próprio filme é exemplo crítico das

consequências que isso pode acarretar.

Considerações Finais

Por meio do curta-metragem, como se viu, pode-se refletir sobre a questão da

herança cultural, concluindo que é através dela que o sujeito se conecta à sociedade,

sendo a linguagem grande facilitadora desse processo. Sabe-se que, ao mesmo tempo

em que vai se inserindo em uma cultura, o sujeito tem também tem a oportunidade de

modificá-la, porém, tal mudança propositalmente não é mostrada no filme, que retrata a

continuidade de uma triste realidade que se estende por gerações. É justamente isso que

faz com que se assuma uma postura crítica em relação a transmissão dessa herança. É

ela fundamental para que a cultura e o conhecimento não se esvaiam no tempo, mas sem

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um equilíbrio entre conservação e inovação, corre-se o risco de se fazer apenas uma

repetição.

A escolha do nome “Maria” para todas as personagens do curta-metragem, um

dos nomes femininos mais comuns, juntamente com o fato de não lhes ser atribuído

sobrenome, possivelmente indica quão ordinária também é a história vivida por elas, ou

seja, que pode ser vivida por outros personagens em outros contextos, em situações

reais, como já se disse. A crítica trazida pelo curta não é quanto à perpetuação de

hábitos e valores, mas acerca do quanto esse processo pode significar também a

perpetuação de uma realidade em que os indivíduos que nela se inserem não conseguem

melhorar a sua condição de vida e muitas vezes ficam à margem da sociedade. É assim

uma severa crítica ao próprio país que retrata e do qual é um produto cultural, que não

consegue garantir, por exemplo, o direito a educação a todos e também ao modelo

consumista de sociedade na qual se vive, insustentável, inatingível para muitos e por

isso excludente.

O elemento cultural chave, que se vê transmitido na narrativa é o descrédito das

personagens quanto aos estudos, mas, como já se concluiu, talvez naquele contexto

fosse mais importante para a sobrevivência do grupo, que todos ajudassem nas tarefas.

Assim, de maneira nenhuma se quer fazer um julgamento das personagens, nem mesmo

o filme parece querer fazer, mas sim uma crítica ao sistema maior da qual fazem parte,

porém que não lhes acolhe de fato. “Vida Maria” é um filme sensível, sua beleza não

está somente na riqueza dos detalhes e do projeto gráfico em si, mas na sua mensagem

de reflexão, que faz com que pensemos sobre a sociedade da qual fazemos parte.

Referências

BOSI, Alfredo. Colônia, culto e cultura. São Paulo: Cia. das Letras, 1992. BAKHTIN, Mikhail. Língua, fala e enunciação. Interação verbal. In:______. Marxismo

e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Hucitec, p. 90 – 138, 1988. CAVALLI-SFORZA, Luigi Luca, et al. Theory and observation in cultural transmission. Science. Nº218, 19-27, 1982.

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CAVALLI-SFORZA, Luigi Luca. Genes, Povos e Línguas. São Paulo: Cia das Letras, 2003. Tradução: Carlos Afonso Malferrari. GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. 13ª ed. Rio de Janeiro : LTC, 1989. HALL, S. The centrality of culture: notes on the cultural revolutions of our time. In.: THOMPSON, Kenneth (ed.). Media and cultural regulation. London, Thousand Oaks, New Delhi: The Open University; SAGE Publications, 1997. ( Cap. 5) LARAIA, Roque. Cultura, um conceito antropológico. 14ª ed. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed. 2001. ORTIZ, Renato. Uma cultura internacional Popular. In: ______. Mundialização e

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